116
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NAVARRO O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL: O Samba Paulista: Do Rural as Rodas de Samba da Capital São Paulo 2017

O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

0

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NAVARRO

O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO

COM A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL:

O Samba Paulista: Do Rural as Rodas de Samba da Capital

São Paulo

2017

Page 2: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

1

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NAVARRO

O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO

COM A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL:

O Samba Paulista: Do Rural as Rodas de Samba da Capital

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação da Universidade Presbiteriana

Mackenzie como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Educação, Arte e História da

Cultura.

ORIENTADOR (a): Profa. Dra. Silvana Seabra Hooper/ Prof. Dr. Marcel Mendes

São Paulo

Page 3: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

2

2017

N322s Navarro, Maria José de Oliveira.

O samba paulista e sua relação com a formação da identidade

nacional: O samba paulista: do rural ao urbano/ Maria José de Oliveira

Navarro. – 2017.

115 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) -

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientadores: Silvana Seabra Hooper, Marcel Mendes.

Referências bibliográficas: f. 113-115.

1. Identidade nacional. 2. Cultura brasileira. 3. Pertencimento. 4.

Projeto nacional. 5. Samba paulista. 6. Estado Novo. I. Título.

CDD 780.98161

Page 4: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

3

Page 5: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

4

RESUMO

A pesquisa aqui apresentada tem como objetivo compreender e contextualizar a formação da

identidade nacional, buscando a percepção do papel do samba paulista nesse processo de

formação. Além da busca do entendimento do reflexo do samba rural paulista no urbano, o

samba paulista é comparado com o carioca. Convém ressaltar que o foco deste estudo é o

samba rural paulista. A metodologia utilizada nesta pesquisa acadêmica foi a bibliográfica,

sendo esta fundamental para a realização deste estudo historiográfico, buscou-se o método

comparativo antropológico. Utilizando-se da leitura dos clássicos da literatura brasileira, que

relatam o transcurso da identidade nacional, encontramos mais elementos para melhor

interpretação desta organização. Foram utilizadas obras dos seguintes autores: José Ramos

Tinhorão, um dos principais estudiosos da música popular brasileira do século XIX e XX,

Mário de Andrade e sua contribuição que propõe um paralelo entre o samba e a modernização

da cultura brasileira. Magno Bissoli Siqueira, com a questão do embranquecimento do samba,

através da apropriação deste pelo governo de Getúlio Vargas. Florencia Garramuño, com uma

análise comparativa da importância do tango e o samba; o tango para a Argentina, assim

como o samba para o Brasil, trata do conceito “primitivismo moderno”. Os dois ritmos com

papéis fundamentais, pois tornaram-se símbolos nacionais nas primeiras décadas do século

XX. Conclui-se neste estudo que há uma peculiaridade inerente do samba paulista e, esta se

dá através do samba de bumbo de Pirapora, este migrando para a capital paulista e trazendo

consigo características rurais, com Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e outros nomes. Já

no espaço urbano, o ritmo chega às ruas com cordões, blocos até o carnaval. E na

contemporaneidade observa-se um movimento de resgate deste samba rural paulista, um

movimento de resistência cultural através de grupos como Kolombolo, Samba Autêntico e

Samba da Vela.

Palavras-chave: Identidade nacional. Cultura brasileira. Samba Paulista. Projeto nacional.

Page 6: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

5

ABSTRACT

The research presented here aims to understand and contextualize the formation of the

national identity, seeking the perception of the role of Paulista Samba in this process of

formation. In addition to the search for an understanding of the reflex of rural samba in the

urban samba, paulista samba is compared to the carioca samba. It should be emphasized that

the focus of this study is the rural samba of São Paulo. The methodology used in this

academic research was the bibliographical, being this fundamental for the accomplishment of

this historiographic study, sought to use the comparative anthropological method. Using the

reading of the classics of Brazilian literature, which relate the course of national identity, we

find more elements for a better interpretation of this organization. Works by the following

authors were used: José Ramos Tinhorão, one of the main Brazilian popular music scholars of

the 19th and 20th centuries, Mário de Andrade and his contribution that proposes a parallel

between samba and the modernization of Brazilian culture. Magno Bissoli Siqueira, with the

subject of the whitening of the samba, through the appropriation of this one by the

government of Getúlio Vargas. Florencia Garramuño, with a comparative analysis of the

importance of tango and samba; The tango for Argentina, as well as the samba for Brazil,

deals with the concept "modern primitivism". The two rhythms with fundamental roles, as

they became national symbols in the first decades of the 20th century. It is concluded in this

study that there is an inherent peculiarity of samba from São Paulo, and this occurs through

the Pirapora samba bass drum , this one migrating to the capital of São Paulo and bringing

with it rural characteristics, with Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro and other names. In

urban space, the rhythm reaches the streets with strings, blocks until the carnival. And

contemporaneously, there is a movement to rescue this rural samba from São Paulo, a

movement of cultural resistance through groups such as Kolombolo, Samba Authentic and

Samba da Vela.

Keywords: National identity. Brazilian culture. Paulista Samba. National project.

Page 7: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

6

Ao meu marido, pelo apoio e

compreensão; às minhas filhas, pela

força e incentivo, à minha sogra pelo

apoio constante.

Page 8: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

7

AGRADECIMENTOS

À Deus, pela sabedoria me fornecida, pela força e coragem durante todo o percurso.

Aos colegas, com os quais eu muito aprendi, com os quais me alegrei, chorei, além de

criar amizades para além da academia.

Ao Prof. Dr. Paulo Monteiro de Araújo pelos ensinamentos e acolhimento durante

todo o percurso.

À mestranda Karina de França Silva, amiga que me incentivou em vários momentos

da minha vida tão atribulada, fazendo-me repensar e prosseguir na luta.

À Profa. Dra. Ingrid Hötte Ambrogi, pelas sugestões pertinentes no momento da

qualificação.

Ao Prof. Dr. Daniel de Lucca Reis Costa, pelo carinho, compreensão e generosidade

dedicada.

Ao Prof. Dr. Marcel Mendes, pelo acolhimento, gentileza e sabedoria com os quais me

atendeu prontamente.

Page 9: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

8

Batuque de Pirapora

Eu era menino, mamãe disse “vamo embora.

Você vai ser batizado no samba de Pirapora”

Mamãe fez uma promessa

Para me vestir de anjo.

Me vestiu de azul-celeste,

Na cabeça um arranjo.

Ouviu-se a voz do festeiro

No meio da multidão

“Menino preto não sai

Aqui nessa procissão”

Mamãe, mulher decidida,

Ao santo pediu perdão,

Jogou minha asa fora,

Me levou pro barracão.

Lá no barraco tudo era alegria;

Nego batia na zabumba e o boi gemia.

Iniciado o neguinho

Num batuque de terreiro,

Samba de Piracicaba,

Tietê e campineiro.

Os bambas da Paulicéia

Não consigo esquecer

Frederico na Zabumba

Fazia a terra tremer.

Cresci na roda de bamba,

No meio da alegria,

Eunice puxava o ponto,

Dona olímpia respondia,

Sinhá caía na roda

Gastando a sua sandália

E a poeira levantava

Com o vento das sete saias

(Geraldo Filme)

Page 10: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

9

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO - ...............................................................................................................13

1.1MÉTODO.............................................................................................................................13

1.2 OS CAPÍTULOS.................................................................................................................13

1.3 O PROBLEMA IDENTITÁRIO PAULISTA COMPARADO AO

BRASILEIRO...........................................................................................................................14

1.4 A LITERATURA DO SÉCULO COMO HISTORIOGRAFIA DA FORMAÇÃO

IDENTITÁRIA.........................................................................................................................16

1.5 A SEMANA DA ARTE MODERNA DE 22......................................................................17

1.6 O PROJETO NACIONAL DE GETÚLIO E O SAMBA...................................................19

2. CAPITULO 1 – A HISTÓRIA DO SAMBA ...................................................................20

2.1.1 O QUE É O SAMBA?................................................ ....................................................20

2.1.2 SAMBA COMO DANÇA DOS NEGROS.....................................................................24

2.1.3 O SAMBA E A LITERATURA......................................................................................25

2.1.4 O SAMBA COMO DANÇA...........................................................................................26

2.1.5 O SAMBA E A VIOLA...................................................................................................29

2.1.6 A DIÁSPORA DO SAMBA............................................................................................32

2.1.7 O SAMBA COMO PRODUTO NACIONAL.................................................................35

2.1.8 O SAMBA E A POLÍTICA.............................................................................................38

2.1.9 O SAMBA, O RACISMO E OS CONFLITOS SOCIAIS..............................................40

2.1.10 O SAMBA COMO PRODUTO.....................................................................................42

2.2. CAPÍTULO 2 – SAMBA E O ESTADO NOVO DE GETÚLIO VARGAS..............45

2.2.1. O SAMBA A SERVIÇO DO GOVERNO.....................................................................45

2.2.2 O SAMBA E O EMBRANQUECIMENTO A SERVIÇO DO PROJETO NACIONAL

...................................................................................................................................................48

2.2.3 O SAMBA E A ESCOLHA DE SEUS REPRESENTANTES......................................54

2.2.4 O SAMBA E O TANGO, UMA ANALISE COMPARATIVA DO PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DE SÍMBOLO NACIONAL........................................................................55

2.2.5 SAMBA E TANGO COMO GÊNEROS NACIONAIS..................................................57

3.1 CAPÍTULO 3 - O SAMBA PAULISTA DO RURAL AO URBANO..........................62

3.1.1 O SAMBA RURAL PAULISTA.....................................................................................62

Page 11: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

10

3.1.2 O QUE É O SAMBA PAULISTA?.................................................................................63

3.1.3 UMA ANALISE COMPARATIVA ENTRE O SAMBA PAULISTA E O

CARIOCA.................................................................................................................................67

3.1.4 O SAMBA, O BUMBO E A VIOLA..............................................................................70

3.1.5 O SAMBA E O HIBRIDISMO CULTURAL.................................................................74

3.1.6 O SAMBA PAULISTA E O CARNAVAL.....................................................................78

3.2 DO SAMBA RURAL AO CARNAVAL E ÀS RODAS DE SAMBA DA

CAPITAL..................................................................................................................................79

3.2.1 O SAMBA PAULISTA URBANO NAS RUAS E NOS CORDÕES.............................79

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................113

Page 12: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

11

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras

1 – Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 177 X 154 cm, 1925....................................... p.18

2 – Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 33 X 55 cm, 1967 ........................................... p.25

3 – Modesto Brocos. Óleo sobre tela, c.i.d. 199.00 X 166.00 cm, 1895.................p.48

Fotos

1 – Cartaz da Semana da Arte Moderna apresentando Villa Lobos........................p.16

2 – Foto do acervo da USP/ Imagens - São Paulo- SP- Brasil- Primeiro folguedo negro

criado especialmente para desfilar no carnaval paulistano. O cordão do Camisa Verde

e Branco. Criado por Dionísio Barbosa. Aqui vemos “Camponeses do Egito”.......p.86

Page 13: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

12

1.INTRODUÇÃO

1.1 Método

Os métodos aos quais esta pesquisa se propôs a utilizar foram: pesquisa bibliográfica,

o método comparativo antropológico e o histórico. A razão dessa escolha foi que partir da

pesquisa bibliográfica, observou-se que, os principais autores utilizados como fundamentação

teórica tecem análises comparativas, principalmente os estudos de Tinhorão, por apresentar

análises entre o samba e a dança, por exemplo. O samba e a fofa, o samba e o fado, o samba e

o lundu, o samba e o maxixe. Já a autora Florência Garramuño se utiliza do conceito de

primitivo e do moderno em uma análise não de oposição, mas de complemento desses termos

tecendo comparações entre o samba e o tango como símbolos de construção da identidade

nacional. Garramuño compara os processos de construção dessas identidades, a brasileira e a

argentina.

A intenção com a qual se empregou esses métodos se fez para identificar, em

princípio, semelhanças entre os estilos musicais e em seguida compará-los, o samba rural e o

urbano paulista, ainda apontar relações comparativas entre o samba paulista e o carioca.

Ainda tratando do método comparativo observa-se que durante o século XX houve

uma ascendência do nível de subjetividade do método ligado ao desenvolvimento do pensar a

teoria antropológica. Com a ideia de totalidade, Mauss e Durkheim abriram uma nova

dimensão no que se refere ao uso do método e ao seu aos objetos a serem pesquisados. A

partir da cisão teórica Boas/Malinowski, o método comparativo foi utilizado das mais

diferentes maneiras, com Radcliffe-Brown, Murdock e rejeitado por outros, como Evans-

Pritchard, ou ainda usado em um momento e abandonado posteriormente, como Leach e

Geertz...1

Os estudos comparativos a que me refiro tentam explicar costumes e ideias

de notável similaridade encontradas aqui e ali. Mas eles também têm o plano

mais ambicioso de descobrir as leis e a história da evolução da sociedade

humana. O fato de que muitos aspectos fundamentais da cultura sejam

universais – ou que pelo menos ocorram em muitos lugares isolados –

quando interpretados segundo a suposição de que os mesmos aspectos

devem ter se desenvolvido sempre a partir das mesmas causas, leva à

conclusão de que existe um grande sistema pelo qual a humanidade se

desenvolveu em todos os lugares, e que todas as variações observadas não

1Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 9, volume 16(1): 87-108 (2005)

Page 14: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

13

passam de detalhes menores dessa grande evolução uniforme (BOAS, 2004,

P. 8-9).

Esta pesquisa buscou, também buscar em Boas (BOAS,2004, P.8-9), a definição do

conceito comparativo, e em seguida, voltou-se para a questão histórica que denota que cada

região teve sua peculiaridade e o enfoque na observação antropológica do samba rural

paulista, sua mistura ao urbano, assim como sua contribuição no hibridismo da capital

paulista, onde se encontravam povos de diferentes países, estados, cidades e bairros da cidade

de São Paulo.

Através da utilização desses métodos, tanto o bibliográfico, como o histórico e o

comparativo buscou-se chegar a relevância histórica, social e cultural da relação do samba

paulista com a formação da identidade nacional.

O método comparativo trouxe consigo a máxima de Franz Boas “comparar o

comparável”, o samba com os seus componentes de sua formação: o samba paulista com o

carioca, os elementos que participaram deste universo: o negro e o branco, a elite e os pobres,

o Brasil e a Europa, o rural e o urbano, comparar o processo do Brasil e da Argentina de

construção da identidade nacional; o Brasil com o samba e a Argentina com o tango, através

da contribuição de Florencia Garramuño (2009). Há que se observar que esse exercício

comparativo está focado na questão do samba rural paulista e seu reflexo no urbano e, como

este samba urbano dialoga com o carioca.

1.2 Os capítulos

No primeiro capítulo é apresentada A História do Samba, em ordem cronológica

discorre-se a historiografia do samba, desde a origem do seu nome. No subcapítulo deste, nos

debruçamos nas questões que permeiam o Estado Novo de Getúlio Vargas e a sua utilização

do samba como catalizador para um Projeto Nacional, que tira o samba da marginalidade para

torná-lo o principal símbolo de identidade nacional brasileira.

No segundo capítulo apresentamos o Samba Paulista. Utilizando Mário de Andrade,

como o primeiro a observar o samba paulista rural, além da obra quase biográfica, de um

autor que fez parte da história do samba paulista urbano. Osvaldinho da Cuíca e a

contribuição da biografia de Germano Mathias, dentre outros relatos, documentários e as

próprias letras das músicas, principalmente as de Adoniran Barbosa, que é reconhecido como

um cronista social. O subcapitulo deste trata do samba rural e sua colaboração para as rodas

de samba da capital e a criação do carnaval paulista, este influenciado e moldado aos padrões

Page 15: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

14

do carnaval carioca para que desta forma, pudesse profissionalizar o carnaval e receber as

verbas devidas.

1.3 O problema identitário paulista comparado ao brasileiro

O interesse pelo tema: “O samba paulista e sua relação com a formação da identidade

nacional” surgiu das discussões em sala de aula no curso de pós-graduação “Docência na

Educação Superior”, de forma específica na apresentação de trabalhos sobre cultura brasileira.

Em função da pesquisa sobre o tema: “A Formação e a Criação da Identidade Nacional”, fez-

se necessário o retorno a alguns clássicos da literatura brasileira. Partindo da reflexão sobre

essas obras, originou-se o desejo de investigar a relação do samba com a formação da

identidade nacional.

No processo de investigação e leituras foram surgindo outras questões, como por

exemplo, o que é pertencimento? Dessa forma, após a conclusão do curso de pós-graduação

lato sensu, no qual foi apresentada uma monografia com o objetivo de compreender como se

criou e formou a identidade nacional, levantaram-se outras questões, estas de cunho

estritamente cultural. O interesse pelo tema ficou mais nítido e a busca pelo aprofundamento,

pela compreensão antropológica, tornou-se necessária.

Nesta etapa do trabalho acadêmico, busca-se o entendimento da formação cultural

nacional com enfoque na música brasileira, mais especificamente no gênero samba – que se

tornou um ritmo nacional – e este numa análise antropológica, com o enfoque no samba

paulista, que tem sua relevância na composição identitária brasileira.

Neste contexto, percorreu-se a história do samba do final do século XIX e das

primeiras décadas do século XX, partindo de algumas regiões do nordeste brasileiro como o

Ceará, Pernambuco e Bahia, nesse percurso “diaspórico”, indo para o sudeste, chegando ao

Rio de Janeiro – onde se “patenteou” o samba nacional, até suas primeiras observações no

interior de São Paulo por Mário de Andrade, a partir do antropólogo Claude Lévi-Strauss,

pelo pintor modernista Di Cavalcanti, dentre outros acadêmicos ou não. A partir daqui, cabe

entender a chegada dos negros escravizados nas roças de café do interior de São Paulo, na

região de Pirapora do Bom Jesus e no decorrer do crescimento da metrópole com a

industrialização, o samba rural acabou por alcançar a capital paulista, primeiro em bairros

como Barra Funda, Casa Verde, Liberdade, até a região central, tendo como um dos bairros

mais importantes o bairro do Bixiga na cidade de São Paulo.

Page 16: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

15

Nota-se que em São Paulo o samba rural e o samba urbano se desenvolveram da

mesma forma que em outras regiões do país, comparativamente notam-se semelhanças no

processo da construção histórica do samba, em que os negros que trabalhavam nas plantações

de café migravam para a cidade levando consigo sua cultura. Dessa forma, em São Paulo, o

gênero primeiro surgiu no interior do estado para posteriormente ser levado aos bairros como

Barra Funda, Casa Verde e Liberdade na capital de São Paulo, o bairro do Bixiga como um

dos mais importantes nesta cena paulistana, e o centro, como a Praça da Sé onde se

encontravam os engraxates sambistas, somando-se, assim aos elementos do processo de

construção identitária na diversidade cultural brasileira. Inicialmente, podemos observar o

bumbo, como o principal elemento de identificação do samba rural paulista revelando-se as

primeiras especificidades do samba paulista em relação ao nacional.

1.4 A literatura do século como historiografia da formação identitária

A análise sobre a formação da identidade nacional e seus reflexos se deu considerando

o período do final do século XIX e o início do século XX, e buscou-se ainda compreensão

quanto ao início deste século XXI. Aborda-se a construção nacional no final do século XIX

com o Positivismo, o Romantismo e o Realismo. Entende-se que o positivismo é elemento de

fomentação de discussões político-econômicas em Terra Brasilis, assim como o Romantismo

– este representado na literatura, na música e nas artes plásticas.

O Romantismo tem destaque, pois valoriza o eu lírico, a saudade e a natureza

brasileira; segundo Bosi (2013), o movimento romântico no Brasil, principalmente no que diz

respeito à literatura, contou com a participação dos filhos das famílias mais abastadas de São

Paulo, Rio de Janeiro e Recife, além de filhos de comerciantes portugueses. Esta era a classe

“pensante”, que reproduzia os padrões culturais absorvidos da Europa (Londres, Paris e

Lisboa).

Dessa forma, a literatura e as artes foram contribuindo para a construção de uma

identidade nacional, mas ainda com influências europeias, como no caso de A Moreninha

(1844), de Joaquim Manuel de Macedo – primeiro romance romântico brasileiro. Já O

Guarani (1857), de José de Alencar, foi o primeiro romance de temática indianista publicado

pelo autor, e estabelece uma visão idealizada da formação do povo brasileiro, por meio do

índio Peri e da portuguesa Cecília.

Um fato relevante do movimento romântico foi a criação, pelo maestro Carlos Gomes,

da ópera O Guarani – baseada no livro homônimo de José de Alencar – primeira obra musical

Page 17: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

16

brasileira a obter sucesso no exterior. Quanto ao Realismo, poucos autores foram tão

importantes para a literatura brasileira como Machado de Assis; sua obra é marcada por

pessimismo e ambiguidades, o que se identifica em personagens como Capitu e Bentinho.

Nas artes plásticas, os pintores brasileiros buscavam valorizar o nacionalismo,

retratando fatos históricos importantes. Dessa forma, os artistas contribuíam para a formação

de uma identidade nacional. No início, assim como na literatura, os artistas plásticos

brasileiros tinham como inspiração os índios, a natureza e temas afins, buscando representar

os fatos ocorridos no Brasil naquele contexto histórico.

1.5 A semana da Arte Moderna de 22

2

Na música, Villa-Lobos trazia o folclore e os costumes populares brasileiros em forma

de composições como ”A Fiandeira”, “Cascavel”, “Camponesa cantadeira” e “Festim Pagão”.

Um dos mais relevantes acontecimentos da arte brasileira na história da formação da

identidade nacional foi a Semana de Arte Moderna de 1922. O evento, que ocorreu no Teatro

Municipal de São Paulo, entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, pode-se ser entendido

como um marco na história cultural brasileira. Essa era a intenção dos artistas envolvidos, que

levantaram a bandeira de “cultura nacional”. Assim, buscou-se reunir no evento artistas que

trabalhassem temas nacionais em suas obras.

2 http://portalarquitetonico.com.br/wp-content/uploads/534px-Arte-moderna-8.jpg

Page 18: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

17

Em 1944, Oswald de Andrade participa da Exposição de Arte Moderna, no Edifício

Mariana, em Belo Horizonte. Em sua palestra, cujo título “O caminho percorrido” faz uma

metáfora referente à distância geográfica entre as duas cidades, São Paulo e Belo Horizonte, e

à distância temporal entre os dois eventos – a Semana de 22 e aquela Exposição – aponta para

a continuidade do projeto moderno vinte e dois anos depois, pelas mãos de Juscelino

Kubitschek e confere importância histórica ao movimento paulista.

Neste contexto de busca por identidade nesse projeto nacional volta-se para a questão

de Raça e Cultura, tema absorvido de Franz Boas por Gilberto Freyre, que contribui para o

entendimento dessa fusão étnica. Gilberto Freyre analisa geograficamente essa distribuição

Brasil adentro o classificando nas suas misturas de raça e cultura, que segundo Schwarz,

Gilberto Freyre, que constrói o mito e Florestan Fernandes, que o desconstrói. No Brasil

coexiste as duas realidades dessemelhantes, isto é, de um lado, a constatação de um país

profundamente mestiçado em suas práticas e credos; de outro, tem-se um local de um racismo

invisível e de um caráter enraizado na intimidade (SCHWARZ, 2012, p.82).

Esse povo que descende dessas misturas as reflete de forma notória nas suas formas de

representação nas artes, e como é o foco desse projeto, na música, e mais especificamente no

Samba.

Page 19: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

18

3

Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 177 X 154 cm, 1925

Anteriormente tínhamos o convite da semana de 22, com a apresentação de Villa

Lobos. Neste contexto, a música está intrinsicamente ligada às outras formas de arte,

entendendo que a música traz consigo movimento, sentimento, história, crônica, etc. Além de

ser inspiração para artistas de outras áreas. Enquanto o samba traz consigo o ritmo afro-

brasileiro e torna-se, desta forma, o símbolo de representação das especificidades brasileiras.

1.6 O projeto nacional de Getúlio e o Samba

A partir de uma análise dialética do samba, relacionando-o ao projeto nacional de

Getúlio Vargas na construção do Estado Novo, abordando suas dicotomias e sua conexão com

outros ritmos, além de buscar entender a sua inserção em diferentes camadas sociais.

Tratamos a este diálogo as analises de: José Ramos Tinhorão, Florencia Garramuño e

Magno Bissoli Siqueira, estes três autores tratam da questão politica entre o samba e o

governo de Getúlio Vargas, o samba como símbolo de brasilidade.

3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:83-Di-Cavalcanti-%E2%80%93Samba---1.jpg

pode-se analisar o quadro de Di Cavalcanti, o qual representa o samba. Assim, observa-se a soma das artes: a de

Di Cavalcanti, e esta numa representação do ritmo musical, samba. Acesso em:23/03/2017

Page 20: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

19

Nestas análises, foi abordado a questão latente desse período (primeiras décadas do

século XX), a questão da apropriação do samba pelo poder politico de Getúlio, que ao mesmo

tempo o tirou da marginalidade, o embranqueceu étnica, cultural e socialmente, segundo

análises principalmente de Siqueira que trata fortemente desta questão do embranquecimento

do samba.

O samba paulista desde sua construção nos interiores do estado de São Paulo traz uma

ancestralidade africana, assim como em outras regiões do país, onde trouxeram negros e os

escravizaram, mas em principio, não escravizaram sua cultura, cheia de crenças e costumes.

Estas crenças e costumes trazidos pelos negros escravizados se depararam com a cultura que

já havia nestas regiões do interior paulista, isto é, de uma cultura “caipira”. Pode-se concluir

que estas misturas refletiram de alguma forma, na construção do samba rural paulista. Na

citação a seguir, Antonio Cândido define a formação da “cultura caipira”.

Da expansão geográfica dos paulistas, nos séculos XVI, XVII e XVIII,

resultou não apenas incorporação de território às terras da Coroa portuguesa

na América, mas a definição de certos tipos de cultura e vida social,

condicionadas em grande parte por aquele grande fenômeno de mobilidade.

Não cabe analisar aqui o sentido histórico, nem traçar o seu panorama geral.

Basta analisar que em certas porções do grande território devassado pelas

bandeiras e entradas – já denominado significativamente Paulistânia – as

características iniciais do vicentino se desdobravam numa variedade

subcultural do tronco português, que se pode chamar de “cultura caipira”

(CÂNDIDO, 1998, p. 35).

E esta cultura caipira, que Antonio Cândido descreve, tem muita relação com o samba

rural paulista, mas antes, convém uma pergunta, a qual permeia o universo do samba e da

musica popular brasileira: Onde nasceu o samba? A partir daqui tem-se um caminho

historiográfico a percorrer, pois da mesma forma que chegaram negros de diversas regiões da

África – de diferentes tribos, com diferentes dialetos – na Bahia, também num movimento

diaspórico, chegaram as outras regiões do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro. Contudo,

em principio nas fazendas para o trabalho braçal, por estas razões, talvez do clima, ou às

influências culturais regionais, surgiram variações rítmicas do samba, antes uma dança, ou

danças, como a umbigada, o jongo, o samba de bumbo, entre outros.

O que se pode concluir no presente estudo é que, através da busca pelo entendimento

das peculiaridades do samba paulista rural e suas transformações no aspecto urbano, em

relação a formação da identidade nacional, a influência cultural da formação da identidade

nacional na peculiaridade do samba paulista, este tem originalidade, apresentada em seu

ritmo, em suas letras, na utilização da viola, trazida da cultura portuguesa, também encontrada

Page 21: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

20

no nordeste, como veremos nos capítulos seguintes, mas com presença enfática no interior

paulista. Mário de Andrade, precursor nesses estudos sobre o Samba de Pirapora, seus

batuques e batucadas, classificou o samba observado como: samba rural paulista.

2. CAPÍTULO 1 – A história do samba

2.1.1 O que é o samba?

Debruçando-se sobre o tema logo se descobre, por meio de registros, que o samba

descende do povo africano que chegou em Terra Brasilis.

As primeiras referências ao termo samba ocorreram, segundo indicações, descrevia

uma festa típica dos negros, o que será aprofundado e detalhado mais à frente neste capítulo.

Essas primeiras ocorrências do termo se deram no nordeste brasileiro, e migraram pelo Brasil

acompanhando os fatos históricos do país, pois a história do samba está intrinsecamente

ligada à história da construção e formação da identidade nacional.

Em finais do século XIX o Brasil era apontado como um caso único e singular

de extremada miscigenação racial. Um “festival de cores” (Airmad, 1888) na

opinião de certos viajantes europeus, uma “sociedade de raças cruzadas”

(Romero, 1895) na visão de vários intelectuais nacionais; de fato, era como

uma nação multiétnica que o país era recorrentemente representado. Não são

poucos os exemplos que nos falam sobre esse “espetáculo brasileiro da

miscigenação”.

(SCHWARZ, 1993, p. 15)

Esse espetáculo citado por Schwarz nos mostra o ambiente em que o samba se

constituiu, isto é, um espetáculo de raças de diversas culturas étnicas e classes sociais

miscigenadas. E neste contexto constrói-se um Brasil e, nele o samba.

Canto das Três Raças

Ninguém ouviu

Um soluçar de dor

No canto do Brasil

Um lamento triste

Sempre ecoou

Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro

E de lá cantou

Negro entoou

Um canto de revolta pelos ares

No Quilombo dos Palmares

Page 22: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

21

Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes

Pela quebra das correntes

Nada adiantou

E de guerra em paz

De paz em guerra

Todo o povo dessa terra

Quando pode cantar

Canta de dor

E ecoa noite e dia

É ensurdecedor

Ai, mas que agonia

O canto do trabalhador

Esse canto que devia

Ser um canto de alegria

Soa apenas

Como um soluçar de dor

(Compositor: Paulo César Pinheiro, intérprete: Clara Nunes)

Uma das possíveis respostas a pergunta: O que é o samba? É que o samba é

ancestralidade. E já que esta pesquisa trata de música, a musica citada acima, interpretada por

Clara Nunes, traz consigo essa ancestralidade incutida, esta música conta a história da

escravidão, mas além disso, traz o sentimento de dor, de injustiça, de abuso do outro e ,

mesmo em meio a este ambiente hostil, os negros escravizados, ainda mantiveram suas

tradições e sua cultura, e esta veio a ser o símbolo de identidade de um país, eles foram

trazidos nos navios negreiros de forma desumana, sem opção de escolha. Assim este povo de

origem africana de vários países e tribos. Contribuíram em princípio, com mão de obra

escrava que construiu esse país, ainda, e mais expressivamente, como artistas, que criaram um

ritmo, um gênero musical.

No Brasil, o samba é reconhecido desde seu surgimento como uma forma de expressão

de um povo, constituindo mais do que um gênero musical. O samba, com origem nas tribos

africanas, espalhou-se por toda a extensão do território brasileiro, do Nordeste ao Sudeste.

Então, vem a pergunta: Porque só no Brasil o samba encontrou “ambiente favorável”

para sua expressão? Pode-se pensar o seguinte: entre outras razões de se fazer samba somente

no Brasil é que no Brasil não houve, por exemplo, proibição da utilização dos tambores.

Neste capítulo, mais adiante, essas razões serão desenvolvidas.

Page 23: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

22

Convém trazer a este diálogo Peter Fry, o qual se ocupa da manipulação dos símbolos

étnicos nacionais, como a feijoada, o candomblé e o samba. Feijoada e Sou-Food16

, artigo

reapresentado e discutido 25 anos depois de sua publicação. Peter Fry inicia o artigo original,

contando a história do convite que fez a um grupo de amigos negros nos EUA. Para provar

um prato que ele considera um dos ícones da cultura brasileira; quando o prato foi servido os

convidados não se surpreenderam, dizendo que aquilo era conhecido no país deles como

comida de negros. Contudo, a principal análise do autor é que a feijoada, o samba e o

candomblé são símbolos nacionais que, originários da cultura negra, incorporaram o disfarce

do racismo, pois o candomblé, assim como o samba e a feijoada fazem parte da cultura

brasileira, tanto de brancos como de negros e, segundo o autor, estimula uma opressão

disfarçada tese defendida também por Schwarz (2012).

Atendo-nos ao samba, pode-se afirmar que o samba é um gênero que se constituiu

originalmente como música dançante das camadas sociais menos abastadas. A princípio

restrito às senzalas, alcançou os terreiros, as periferias das grandes capitais e, por fim chegou

aos centros urbanos.

Segundo o Novo dicionário enciclopédico luso-brasileiro, de aproximadamente 1910,

o termo samba (s.f., bras.) significa “bailado popular”, “dança de negros”. Já na edição de

1923 do Dicionário Brasileiro contemporâneo, consta: “s.m. (bras.) Dança cantada, de

origem africana, compasso binário e acompanhamento obrigatoriamente sincopado: música

para essa dança; (fig.) baile agitado; rôlo; conflito”. Seguindo para o Minidicionário Aurélio

da língua portuguesa, edição de 1993, temos: “s.m. Bras. 1. Dança cantada, de origem

africana, compasso binário e acompanhamento sincopado. 2. A música desta dança”.

Por último, vejamos o Michaelis: Dicionário escolar – Língua portuguesa de 2002:

Samba, (quimbundo semba) s.m., Dança popular brasileira, de origem africana, com

variedades urbana e rural, cantada e muito saracoteada. Samba de breque: samba com paradas

súbitas. Samba de partido alto: espécie de samba tradicional do Rio de Janeiro. A partir desta

última data, as definições praticamente se repetem.

Segundo Tinhorão, o primeiro registro escrito da palavra samba na língua portuguesa

consta da edição de 1837 do jornal Carapuceiro, do Padre Lopes Gama, da cidade do Recife.

Assim, entende-se que o conhecimento ao menos do termo samba ocorreu décadas antes de o

ritmo vir a ser conhecido tanto no Sudeste como no Sul do Brasil.

16

Publicado em Esterci, N., P. Fry, et al., orgs. (2001). Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A

editora.

Page 24: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

23

Na edição de 12 de novembro de 1842 do mesmo jornal, novamente se encontra a

palavra samba, em versos ali publicados pelo Padre Lopes Gama, por meio de um

personagem matuto que trazia a memória de um Recife de trinta anos antes, ou seja, um

Recife do “alvorecer” do século XIX, em uma carta-resposta do matuto à carta do seu

compadre doutor Fagundes, acerca do crescimento da cidade do Recife:

Esta palavra de baile

Té era desconhecida,

Muito menos se sabia

O tal soiré, e partida.

Em bodas, e bautizados

He que se dava funcção:

Dansavão se os minuetes,

Coporta, o côco, e o sabão.

Ao som de citra, e violla

Também era muito usado

O dansar às embigadas

O bello landum chorado.

Aqui pelo nosso mato?

Qu’estava então mui tatamba17?

Não se sabia outra coisa?

Senão a dansa do samba.

(GAMA apud TINHORÃO, 2012, p. 88).

Segundo Tinhorão (2012), Lopes da Gama chama a atenção para a importância desse

personagem matuto que, no início dos anos 1800, pertencia à região rural do estado de

Pernambuco, ainda muito distante da cidade, tanto geograficamente como no que se refere ao

acesso à cultura conhecida nas cidades mais urbanizadas. Dessa forma, o que se tinha como

forma de expressão cultural e divertimento do povo pertencente à região rural eram os

“simplórios batuques africanos”.

A origem da palavra samba não é certa. Especula-se que o termo seja uma

derivação da palavra africana semba, de origem bantu18

, que teria o

sentido de “umbigada” (encontrão do umbigo de uma pessoa com o umbigo

de outra, passo típico de danças afro-brasileiras). Essa dança, a umbigada,

surge com o nome semba: Essas danças, tal como pela primeira vez chamou

a atenção Édison Carneiro no início da década de 1960, tinham como

característica coreográfica comum o uso da umbigada (ostensivamente

aplicada, ou apenas insinuada pela aproximação frontal dos corpos dos

bailarinos, que batem ou fazem uma vênia), e muito razoavelmente por isso

as rodas de batuque identificadas por essa marca da semba africana passaram

a ser chamadas de sambas. (TINHORÃO, 2012, p. 85).

17

Tatamba, segundo o vocabulário pernambucano de Pereira da Costa, significava “ignorante, toleirão, ingênuo,

desconfiado”. 18

BAMBI, Ermelindo Francisco. O sagrado nas culturas bantu em Angola. Instituto Teológico Franciscano.

Disponível em:<www.itf.org.br/o-sagrado-nas-culturas-bantu-em-angola.html>. Acesso em: 19 jul. 2016.

Page 25: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

24

O autor ainda enfatiza que o samba, como música urbana, apresentada nas primeiras

décadas do século XX, sofreria algumas modificações no decorrer de sua história. Tinhorão

afirma ainda que faltam documentos e relatos impressos que confirmem quando o samba,

antes considerado “batuque de crioulos” de tradição africana, passa a ser reconhecido como

gênero de música brasileira. Mesmo após essa denominação, o samba, no final do século XIX,

ainda era tido como “selvagem” e de “gente de baixa estirpe”:

Ora, ao estabelecer a oposição entre opostos musicais pelo critério cultural

de classe – o gosto das camadas baixas simbolizado no “samba

d’almocreves”, o das elites na música das óperas italianas –, Lopes da Gama

teve o cuidado de não cair no extremo de opor os batuques de negros às

óperas de Rossini, o que já seria chocante demais. [...]

Assim, a referência a um “samba d’almocreves” revelava-se perfeita

para o caso, porque se a simples referência ao samba já comportava a

ideia de contaminação com a música julgada de selvagem dos batuques

dos negros, a preferência dos brancos por tal tipo de som só podia

explicar-se em gente muito baixa – e os almocreves lidavam com mulas

(TINHORÃO, 2012, p. 87).

Deve-se levar em conta que o jornal Carapuceiro era direcionado a pessoas da cidade,

e que os batuques mais expressivos da época da escravidão haviam se deslocado para a zona

rural, estabelecendo-se assim um maior contraste cultural, com o afastamento da cultura

herdada pelos negros – ou seja, a “cultura baixa” – da “cultura refinada” das elites da cidade.

Isso fortalece a ideia de que os batuques dos negros eram vistos como coisa do mato, de

matuto, “selvagem” e quando migrou para as cidades, passou a ser marginalizado.

Page 26: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

25

2.1.2 Samba como dança dos negros

Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 33 X 55 cm, 1967.

Pode-se entender que nesse momento histórico, ou seja, no final do século XIX, o

samba foi apresentado como uma dança dos negros, que ocorria ao som dos batuques.

Tinhorão se atenta para o fato de que por volta de 1859 houve uma expedição científica pelo

interior do Ceará, realizada pelo botânico Freire Alemão, vindo do Rio de Janeiro. Nessa

expedição o botânico ouviu dizer que havia “um fado, que eles chamam de samba, onde se

dançavam várias danças” (ALEMÃO apud TINHORÃO, 2012, p. 89).

Ainda no século XIX, podemos observar que essas danças trazidas pelos negros saem

dos terreiros e invadem as salas dos brancos, embora a princípio, segundo a expedição do

botânico, houvesse muita repressão policial. O que se constatou por muitos anos após sua

chegada às grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo.

Freire Alemão, ao saber do tal fado, logo quis conhecê-lo, mas foi alertado da

impossibilidade disso: “como quase sempre há bebedeira, os delegados de polícia com

dificuldade os consentem”19

. Porém, abriu-se uma exceção devido à importância do visitante,

e este ficou surpreso com o que presenciou, descrevendo a experiência em seus manuscritos:

Hoje de tardinha (dia 28 de junho de 1859) fui fazer minha visita à família

do Senhor M.G. Valente, com o Capitão Justa; saindo de lá seriam 8 horas, o

Justa me convidou para assistir a um samba de negros na casa do Senhor

19

DAMASCENO, Darcy; CUNHA, Waldir da.(Catalogação e transcrição). “Os manuscritos do botânico Freire

Alemão”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1961, v. 81, p.219.

Page 27: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

26

Crisanto, cunhado do Senhor Antero. Prontamente acedi, cuidando ir assistir

a uma dança de negros em alguma palhoça ou senzala; mas fui surpreendido

quando, chegando a casa do Crisanto, logo fora achar muita gente da

principal de Pacatuba sentados em cadeiras fora da porta como aqui se

acostuma. Entre outros estavam o subdelegado de Polícia Dr. Vitoriano, o

Antero, o Juvenal, dois deputados provinciais filhos do Barão de Icó, que

acabavam de chegar ao sertão naquele momento, e muitos mais outros

senhores, e a sala de dentro estava cheia de senhoras (apud TINHORÃO,

2012, p. 90).

O botânico ainda descreve o quão admirado ficou com a fartura da mesa, tanto de

alimentos como de bebidas, e cita outras surpresas:

No quintal achamos uma grande roda de negros e negras, calculo mais de

100, escravos dessas famílias, e das mais de Pacatuba. Os instrumentos eram

tambores, caquinhos com que atormentavam os ouvidos, e ainda mais com

cantos, algazarras e vivas. As senhoras chegavam muitas vezes para a roda,

assim como os homens, e assistiam com prazer as danças lúbricas dos pretos,

e os saltos grotescos dos negros, que também fizeram jogo de pau, etc.

Saindo dessa roda vinham para a sala tirar sortes, ou para a casa de jantar a

comer, e beber. D. Maria Teófilo era incessante, e tomou grande interesse

fazendo dançar os seus pretos, e designando-os pelos nomes, e esteve por

muito tempo com uma vela na mão para alumiar melhor a cena (apud

TINHORÃO, 2012, p. 90-91).

2.1.3 O Samba e a Literatura

Aqui vale observar a utilização do tambor, pois este é um instrumento que no século

seguinte seria um elemento de identificação do samba. Outro aspecto importante é que nesse

ambiente rural, brancos e negros estão mais próximos e isto ocorre via cultura africana.

Tinhorão enfoca a questão da tatamba e observa que, assim como na zona rural, os pequenos

centros urbanos ainda tinham como maior diversão o batuque dos negros. Na zona rural, os

brancos não só observam como participam do batuque, sem o preconceito das elites dos

grandes centros urbanos da época.

O mesmo autor alerta para o fato de que os antigos batuques de negros ocorriam desde

pelo menos o início do século XVII, mas estavam restritos apenas às áreas rurais. A partir do

século XIX essas manifestações começam a ser tratadas como samba, e surgem várias

descrições dessas danças na literatura brasileira:

De fato, nos vinte anos que medeiam entre o início da década de 1870 e fins

de 1890, nada menos de três romances brasileiros têm capítulos intitulados

“Samba” – Til, de José de Alencar, de 1872; Luizinha, de Araripe Jr., de

1878; A carne, de Júlio Ribeiro, de 1885 –,e em dois outros as descrições

Page 28: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

27

desses batuques da área rural mostram cenas de dança de umbigada: o jongo

do livro O Flor, de Galdino Fernandes Pinheiro, o Galpi, de 1885, e a

“fonção de samba” (em que a toada era de baião à viola e havia improvisos

em décimas como nos cocos) no romance D. Guidinha do Poço, do cearense

Manuel de Oliveira Paiva (TINHORÃO, 2012, p.91-92).

Tinhorão, atenta para a questão da descrição dessas danças nos romances brasileiros,

como reflexo dessa mistura, desse intercâmbio, entre brancos e seus escravos e colonos.

Voltando à descrição da expedição do botânico fluminense, destaca-se a referência ao jongo,

que, assim como a umbigada, é uma dança tipicamente africana, introduzida nos eventos nos

quais o samba também estava presente.

No romance O Flor de Galdino Fernandes Pinheiro descreve como os escravos em

Mangaratiba, Rio de Janeiro, desfrutavam de suas folgas de domingo: “dançando, ao som de

seu rouco tambu, o jongo, dança primitiva e selvática, mas animada e curiosa”(TINHORÃO,

2012, p. 92). Descreve o romancista:

Salta o cantor a voz em nota aguda, percorrendo o espaço em circulo,

fechado pelos dançantes, com passos lentos e pausados; repete variando as

palavras a sua endecha, cuja última, com a toada que lhe deu, é o ponto.

Todos em choro [em coro] repetem-no também batendo palmas. A voz do

cantor domina as outras e ergue o poema.

Já salta ele à esquerda, fazendo trejeitos; sacode o corpo todo com febril

tremor; salta ainda, iludindo, em frente desta dançarina, e vai bater com o

ventre no daquela outra; sobre os ombros desta as mãos repousa, cinge-se

pelas costas e dá-lhe uma embigada!

Sai então esta ao convite; volteia sobre os pés, visando a roda; sacode os

ombros desprezando o primeiro, que a encara e lá vai batendo a coreia dar a

embigada naquel’outro, que grita contente e espaneja-se na alegria da dança

(PINHEIRO, 1885, p. 79-80 apud TINHORÃO, 2012, p. 92).

2.1.4 O samba como Dança

O que se pode entender a partir dessas citações é que no interior do Nordeste, na zona

rural, a troca cultural se dava de maneira mais expressiva, havendo “maior colaboração

branco-mestiça”. Tinhorão descreve essa colaboração apontando a utilização da viola no

samba de terreiro, que desde a Bahia até o sul do país era denominado lundu; a viola é

mencionada no capítulo “O samba” do romance Luizinha, de Tristão de Alencar Araripe Jr.,

de 1878 (mas o instrumento já aparecera seis anos antes, em 1872, no jornal Constituição):

As violas temperaram-se; os cantores entoaram a louvação de costume ao

dono da casa e à dona da casa, e das unhas dos tocadores nasceu um baiano

rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo (ARARIPE

JR., 1979, p. 79 apud TINHORÃO, 2012, p.93).

Page 29: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

28

Atentamo-nos para o fato de que a viola, é um forte elemento da cultura caipira

paulista, também. Aqui o autor chama a atenção para o fato de que, mesmo chamando o

samba de “dança do baiano”, Tristão classificava como sambista aquele que dançava nas

rodas, e ressaltava sempre a presença dos negros e mestiços nessas rodas, no terreiro. Daí

surge o samba de roda nordestino, o baião, o lundu, o samba.

[...] pois havia umbigada (“e parou defronte do camarada”) e até a rasteira ou

pernada própria das futuras rodas de batucada da Bahia e do Rio de Janeiro,

ter comparado a ginga do “Sambista” com a expressão “quebrando o coco”,

que indicava a presença, no sertão cearense, de outra dança saída dos

batuques de negros: o coco de umbigada, comum a Alagoas, Pernambuco e

Paraíba(TINHORÃO, 2012, p.94).

Ao fazermos um passeio pela formação histórica do samba, rapidamente associamos

este com a dança. As danças e os cantos do gênero, herdeiros dos batuques dos séculos XIX e

XX – assim como o lundu, a fofa, e o fado –, já nasceram predestinados a uma ascensão

social, tanto por brancos como por mestiços das baixas camadas. A fofa e o fado foram

transformados em dança e canção “nacionais”, já o lundu chegou como canção nos salões das

elites. Segundo Tinhorão (2012), outros estilos oriundos da cultura africana estiveram por

aqui como expressões de negros e mestiços distribuídos pelo Brasil. De acordo com o autor,

os romances que primeiro se utilizaram da expressão do samba foram os naturalistas, como A

carne, de Júlio Ribeiro (1940), que se passa em uma fazenda de café, mas desta vez na região

sudoeste de São Paulo – onde o autor descreve uma dança de negros “no terreiro varrido, em

frente às senzalas”. Segundo a análise de Tinhorão, essa descrição reforça ade Galpi para a

área do litoral:

Negros e negras, formados em vasto círculo, agitavam-se, palmeavam,

compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no meio,

saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços, contorcia com

pescoço, revolvia os quadris, sapateava em um frenesi indescritível, com

uma tal prodigalidade de movimentos, com um tal desperdício de ação

nervosa muscular, que teria estafado um homem branco (RIBEIRO, 1940, p.

105 apud TINHORÃO, 2012, p. 95).

Júlio Ribeiro (1940) contribui na descrição desses eventos com um registro de versos

apresentados nesses batuques:

Serena pomba, serena;

Não cansa de serená!

O sereno desta pomba

Lumeia que nem metá!

Eh! Pomba! Eh!

Page 30: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

29

E a Turba repetia em côro: Eh! Pomba! Eh!

O autor ainda nos mostra como Júlio Ribeiro reproduzia a cena:

[...] os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, agrupavam-se

aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio enlevados, absortos. Do

solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó,

avermelhada pelo clarão da fogueira (RIBEIRO, 1940, p. 107 apud

TINHORÃO, 2012, p.95-96).

Tinhorão destaca, no centro-sul brasileiro, os batuques dos negros e mestiços que

aconteciam nas fazendas de produção de café, descritos nos romances O Flor, de Galdino

Fernandes Pinheiro e, A carne, de Júlio Ribeiro, ambos de 1885. O autor alerta para o

preconceito de outros escritores, que também descreviam esses fenômenos de origem

africana. Segundo Tinhorão, esses eram incapazes de enxergar tais fenômenos de

“fermentação sociocultural” que aconteciam diante de seus olhos. Para o autor, um dos que

não compreenderam esse processo foi José de Alencar; em 1872, no seu romance Til, no

capítulo “Samba”, ele descreve “brincadeiras” de negros escravos que aconteciam nas

fazendas do interior de São Paulo. De acordo com Tinhorão, Alencar reduziu a realidade a

visões impressionistas, como em: “dançavam os pretos o samba com frenesi que toca ao

delírio” (apud TINHORÃO, 2012, p. 96). Na Bahia corta-jaca era o nome dado ao samba de

roda, que, segundo Tinhorão, jamais poderia ser dançado por alguém que carregasse outro nas

costas.

[...] E o ridículo a que essa concessão ao preconceito expôs José de Alencar

nesse ponto cresce ainda mais quando, além do “rabanar como um peixe em

seco” jamais ter constado de qualquer descrição das danças de batuque, fica-

se ainda sem saber como um pai, levando o filho sobre os ombros, poderia

atirar-se no chão e “rabanar como um peixe” sem atirar a criança longe.

(TINHORÃO, 2012, p. 96-97)

Pode-se concluir então que José de Alencar, em seu romance nacional regionalista,

preocupou-se mais com a ficção do que com a descrição real do samba no interior de São

Paulo, o que foge ao tema deste trabalho.

Deve-se levar em consideração a contribuição desses romances do século XIX, de

grande relevância na história do processo de aculturação afro-brasileira, que, segundo

Tinhorão, observa-se tanto na música como na dança e nas formas de canto. O autor atenta

para uma contribuição fundamental nesse sentido, referente a um romance escrito entre 1891

e 1892, mas que só veio a ser publicado em 1952, sessenta anos depois da morte do seu autor.

Page 31: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

30

O romance é D. Guidinha do Poço, do cearense Manuel de Oliveira Paiva. Na obra, em que o

realismo da narrativa soma-se à utilização da linguagem coloquial, há a descrição de uma

cena de samba de matutos que, para Tinhorão, é de uma precisão raramente alcançada na

literatura brasileira. Trata-se, assim, de uma contribuição documental-ficcional, pois mostra

como ocorreu, no sertão nordestino, esse “fenômeno sociocultural da transformação, do caos

sonoro dos batuques primitivos nas formas de danças de roda com umbigadas e cantos em

coro e, solos que receberam o nome de samba” (TINHORÃO, 2012, p.97).

Ainda tratando da contribuição do romance de Manuel de Oliveira Paiva, Tinhorão

destaca que este descreve o início do baião, além de pormenorizar o “choque o qual foi

verificado no Ceará entre os tipos de danças negro-escrava e crioula, estes criados nos núcleos

populares de predominância negra da Bahia para o sul, assim sendo a realidade cultural da

zona de cantoria mestiço-cabocla da viola sertaneja” (TINHORÃO, 2012, p.97), como se

pode observar no trecho reproduzido a seguir.

Neste fordunço, a cantoria se perde quase toda! – fez-lhe ver o Silveira. Eu

não gostei nunca de cantá em samba pro mó disso mesmo. No pinho, outro

galo me cantava, eu dicidia cá a meu gosto. Mas também, a bem dizê, só

aprecio hoje im dia baião de ponta de unha, bem explicado na negra, como

eu cá sei. Home! Essa fonção de samba só mesmo pa quem qué se metê na

vadiação...(PAIVA, 1952, p. 89 apud TINHORÃO, 2012, p. 98).

2.1.5 O Samba e a Viola

Dando o devido lugar à viola, segundo Tinhorão, o romancista Paiva, apresenta o

violeiro como alguém de tradição mestiça e sertaneja, com uma “cantoria contraponteada

pelos rojões ou baiões às violas”, e que não estava interessado em animar rodas de samba com

cantos melódicos, mas sim ao toque de acompanhamento de cantoria do improviso ou desafio,

e este pelo seu ponteado, que realmente se fazia não no fácil rasgado, mas na “ponta de unha.”

(TINHORÃO, 2012, p.98).

Tinhorão elogia a precisão de detalhes de que o romancista se utiliza na sua descrição,

“mostrando como a dança-cantoria do baião constituía, na verdade, uma forma de samba

sertanejo” (TINHORÃO, 2012, p. 99).

Os cantores largavam a goela no mundo, impregnando no verso a volúpia do

baião:

Todo branco quer ser rico,

Todo mulato é pimpão,

Page 32: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

31

Todo o cabra é feiticeiro,

Todo o caboclo é ladrão!

Viva seá D. Guidinha,

Senhora deste sertão

(PAIVA, 1952, p. 90 apud TINHORÃO, 2012, p. 99).

Ainda nos atendo nessa análise de Tinhorão sobre o romance de Paiva, devido à sua

grande importância na descrição detalhada do samba no nordeste cearense, cabe ressaltar a

“fonção de samba” à qual se refere o personagem Silveira, que, tal como o chamado fado

carioca– esse descrito por outro romancista, Manuel Antônio de Almeida –, não se poderia

classificar “apenas como dança e ritmo determinados, mas uma sequência de diferentes toques

e cantorias, comandadas no caso desse samba sertanejo pela cadência das violas e as batidas

características do baião ou rojão” (ALMEIDA apud TINHORÃO, 2012, p. 99):

Prolongavam muito determinadas sílabas num misto de canto e aboiado, e

principalmente o final do último verso. Às vezes a modulação parecia ir com

aquele pinotear cadenciado do rojão (TINHORÃO, 2012, p. 100):

O fogo nasce da lenha,

A lenha nasce do chão;

O amor nasce dos olhos,

O afeto do coração;

A ira vem de repente,

Mas a raiva vem do cão;

Amizade vem da estima,

Do fervor a gratidão,

O homem dá valimento

Mas só deus dá salvação...

Menina dá-me teus braços,

Que eu te dou meu coração!

Todo letrado é ladino,

Todo o fraude é mandrião...

Viva senhor Secundino

Pessoa de estimação!

(PAIVA, 1952, p. 90 apud TINHORÃO, 2012, p.100).

Na análise dessa passagem do romance de Paiva, Tinhorão afirma que não há mais

dúvida quanto aos caminhos tomados pelo samba:

A esta altura não havia dúvida de que o baião mestiço sertanejo havia

degenerado em samba do tipo negro-brasileiro de inspiração africana, pois

Secundino queixava-se de não conseguir ouvir todos os versos (“mas é uma

zoada dos seiscentos, muita coisa se perde!”) e, em dado momento, aparece a

clássica umbigada indicada pelo emprego, na descrição, do verbo atirar. Atirar em alguém, numa dança de roda, é convocar essa pessoa para o centro

Page 33: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

32

do terreiro com um avanço frontal do corpo, simulando (ou aplicando) uma

umbigada (TINHORÃO, 2012, p.100).

Carolina vem, e atira no Secundino./–Não pode arrecusá! Não faça desfeita!/ a

outra, que era a Mercês de Seu Antonio, atirou no Silveira. Secundino estava

demorando por denguice, que isso de cara de pau ele a tinha bastante./ –

Vom’bora, home! Deixe de custo, que muié tão esperando por nós./ Saiu

enfim Secundino, debaixo de ah! geral de satisfação (PAIVA, 1952, p. 90

apud TINHORÃO, 2012, p. 100-101).

Segundo Tinhorão, após esse se debruçar sobre o romance de Manuel de Oliveira

Paiva, pode-se crer que agora trata-se de um samba no estilo “negro-baiano ou sulista”, ou

seja, os antigos batuques passam a se apresentar no final do século XIX. Isso porque, na

descrição de Paiva, a dançarina já aparece nas rodas de batuque dançando “miudinho”, de

maneira tal que seu “remelexo” era apenas da cintura para baixo, como se observaria daí por

diante nas rodas de samba.

Nesse seu romance D. Guidinha do Poço, Manuel de Oliveira Paiva deixa

perceber claramente, aliás, as diferenças já alcançadas ao final dos oitocentos

pelas danças populares de terreiro (sempre muito presas à sua raiz negro-

africana) e as de salão, dirigidas às expectativas de “modernidade” da

burguesia dos senhores de terra locais e da pequena classe média composta

por profissionais liberais, funcionários públicos e gente do comércio das

pequenas comunidades urbanas, ou vilas. Contava o romancista, referindo-se

às festas das famílias brancas pela época de São João [...] (TINHORÃO,

2012, p. 102).

Bailes e mais bailes. Criara-se um clube, à imitação do da Capital

(Fortaleza). Justo contentamento para Lalinha (a jovem Eulália, fila do juiz

local, namorada de Secundino). Só a Sanção social da dança poderia entregá-

la de seu ao braço do cavalariano tão ebriamente arrochado (vigiado de

perto) pela tirana do Poço da Moita (D. Guidinha, a todo-poderosa

fazendeira) (PAIVA, 1952, p.102 apud TINHORÃO, 2012, p. 102).

Seguindo a análise de Tinhorão a respeito desse romance, o clube citado havia sido

construído no século XVIII e imitava o clube existente em Fortaleza e, para a personagem

Lalinha era como um palácio. Os frequentadores desse clube eram as comunidades urbanas

que tinham origem na área rural, assim “coexistia”, no mesmo momento histórico, com os

sambas de terreiro dos negros e gente das camadas mais baixas. Revelava-se para os

conservadores pais de moças, uma novidade que aceitavam com desconfiança, como também

mostrava o Manuel de Oliveira Paiva. (TINHORÃO, 2012, p. 103).

Assim, quando, pelo despontar do século XX, a aceleração da diversidade

social, decorrente da nova divisão do trabalho estabelecida pela produção

urbano-industrial, aprofundou essas diferenças no campo cultural, a

dicotomia se consolidou: os brancos das camadas média e alta passaram a

contar com formas próprias de lazer (bailes, festas de clubes, teatros,

Page 34: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

33

espetáculos musicados, discos, fitas e vídeos); os negros, mestiços e brancos

das classes mais baixas continuaram herdeiros dos batuques, cultivando até

hoje a batucada, o bate-baú, o lundu, o coco, o caxambu, o jongo, o tambor

de crioula e todas as modalidades surgidas no calor dos sambas. Inclusive o

próprio samba e o velho partido alto, ainda tão populares e tão cheios de

sabor que a própria indústria de massa não hesitaria em revivê-los

comercialmente na década de 1980 sob o nome de pagode (TINHORÃO,

2012, p. 104).

2.1.6 A Diáspora do Samba

Ainda nos atendo à extensa obra de Tinhorão, podemos abordar o samba e a marcha

como produtos urbanos. Segundo o autor, esses gêneros musicais são reconhecidos como

ritmos tipicamente cariocas, pois os dois marcaram presença por aproximadamente sessenta

anos (de 1870 a 1930), após a decadência do café na região do Vale do Paraíba, acarretando

uma liberação de mão de obra escrava que se somou às outras camadas populares do Rio de

Janeiro.

Segundo Tinhorão, esses gêneros musicais são os verdadeiros representantes da

cultura urbana do Rio de Janeiro. É claro que podemos entender que o autor é reconhecido

como um defensor da cultura brasileira e grande crítico da cultura de elite, tanto que, segundo

ele, o samba e a marcha criaram ritmos específicos e capazes de atender a essas necessidades

de representantes da cultura urbana brasileira, que começa a ser representada no início do

carnaval de rua carioca: “das lentas passeatas dos ranchos e à procissão desvairada dos blocos

e cordões carnavalescos” (TINHORÃO, 2012, p. 18).

A marcha e o samba são produtos do carnaval, mas do carnaval dos negros e das

classes mais baixas, assim pode-se entender o porquê desses estilos serem expressões próprias

desses segmentos sociais; foi daí que surgiram, segundo o autor, a primeiras expressões

culturais urbanas do Brasil, até então o que havia culturalmente eram expressões

“importadas”:

Até então, o que havia era a música operística da elite (que eventualmente

cultivava a valsa e a modinha), os gêneros estrangeiros das polcas,

schottisches e quadrilhas, importados para uso das

camadas médias e “populares”, e, finalmente, o batuque, de sabor africano,

exclusivo dos negros que formavam o grosso da camada

mais baixa, mas aos quais não se poderia chamar de povo. (TINHORÃO,

2012, p. 17).

De acordo com Tinhorão, após Mário de Andrade, a música popular brasileira

caminhou de maneira diferente do até então apresentado, sempre com uma conotação

Page 35: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

34

folclórica. No seu primeiro livro, Tinhorão já se dedicava ao estudo sobre o surgimento do

samba e sua relação com a música popular brasileira:

Com a honrosa exceção de Mário de Andrade, e de alguns poucos estudiosos

mais, as manifestações de cultura urbana foram sempre definidas

depreciativamente como “popularescas”, como no caso dos folcloristas (que

se interessam pelo povo com o paternalismo de autênticos senhores feudais

da cultura. (TINHORÃO, 2012, p.13).

Direcionando o olhar para a questão do surgimento do samba e da marcha e, por

consequência, para a origem do carnaval carioca, pode-se utilizar das pesquisas

antropológicas de Tinhorão nos anos 1960. O autor buscou percorrer o caminho trilhado pelo

samba, ora por depoimentos, ora por documentos, também pelos discos gravados desde o

princípio da história do samba, pois antes dessa compilação de dados realizados por Tinhorão,

pouco se tentou construir essa historiografia da música popular brasileira e o samba como o

principal representante da nação Brasil.

[...] A nascente classe média do Segundo Reinado desde meados do século

resolvera o seu problema de participação na festa coletiva com a criação dos

préstitos imitados do carnaval veneziano. As camadas mais baixas,

entretanto, sem recursos financeiros para a armação de carros alegóricos,

tiveram que criar uma forma própria de expressão. E eis como nasceram os

ranchos (TINHORÃO, 2012, p. 18).

Nesse ponto, a história começa a nos fornecer mais detalhes da trajetória do samba

pelo Brasil e suas representações sociais. Convém ressaltar que temos nos valido sempre de

um método comparativo, o que se aplica tanto na imitação europeia do carnaval veneziano

pelas classes mais privilegiadas, como no nascimento dos ranchos como uma forma de

expressão para os menos abastados – desta vez, porém, há uma herança nordestina, mais

precisamente da população baiana que se deslocou para o Rio de Janeiro, e que já tinha

incutido o ritmo dos tambores africanos. Então, o que se compara aqui são as relações do

samba (carnaval) versus o carnaval veneziano, se tratando das classes mais privilegiadas,

enquanto e o nascimento dos ranchos cariocas versus tambores africanos, uma herança dos

negros vindos da Bahia. Assim compara-se a semelhança entre os ranchos cariocas com os

baianos e a semelhança entre o carnaval carioca dos mais abastados com o carnaval

veneziano. Pode-se avaliar que essa é uma máxima da classe média e alta brasileira no

decorrer da história, a imitação do velho mundo.

Os ranchos carnavalescos, que representam a primeira manifestação popular

do Rio de Janeiro, constituíram uma adaptação dos ranchos dos Reis

Page 36: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

35

Nordestinos e devem a sua estilização aos baianos que formavam o grosso

dos moradores da zona da saúde.

A zona da Saúde, ao longo da hoje Rua Sacadura Cabral, além da Praça

Mauá, era o local dos trapiches onde se movimentava a mercadoria de

exportação, principalmente o café do Vale do Paraíba. Para o transporte das

sacas de 73 quilos exigia-se um tipo de trabalhador rijo e musculoso, que era

sempre o trabalhador escravo. Com a decadência da cultura do café no Rio

de Janeiro e a abolição da escravatura, essa mão de obra rural liberada

convergiu para a Corte, onde o trabalho urbano mais compatível com a sua

falta de qualificação e a força dos seus músculos era o trabalho do porto.

Esses trabalhadores baianos – que assim têm explicada sua presença

numerosa no bairro da Saúde – eram os mais habilitados a impor o seu estilo

à crescente massa popular da cidade por uma razão fundamental: eles

procediam do recôncavo baiano, onde a multiplicação dos pequenos portos

permitira sempre uma relação tão dinâmica entre comunidades negras que,

com o correr dos anos, se tornara possível obter nos campos da religião, da

música e dos costumes uma síntese brasileira da cultura africana

(TINHORÃO, 2012, p.18-19).

Um desses costumes citados acima, foram os ranchos carnavalescos cariocas que

foram criados por esses negros baianos por volta de 1870, esses ranchos utilizados no

carnaval carioca teve sua origem nas camadas populares baianas, essa camada de negros ex-

escravisados que trouxeram a sua cultura afrodescendente para o Rio de Janeiro nessa

construção do que seria o samba nacional, mas há que se ressaltar, que esse samba carioca,

veio com os negros da Bahia no apoio a construção do símbolo representante da cultura

nacional inerente do batuque de origem africana.

Ora, nesses ranchos, onde se cantavam em marcha as quadras e as solfas

mais populares entre os negros da Bahia, também se “arrojava o samba”, isto

é, também se incluía um ritmo e um sapateado que nada mais eram do que

uma estilização da vigorosa coreografia do batuque (TINHORÃO, 2012,

p.19).

2.1.7 O Samba como produto Nacional

Entremos, agora, nas primeiras composições artísticas representantes desse gênero

musical, tipicamente reconhecido como produto pertencente à cultura brasileira. Atentando-

nos a questão da escolha dos representantes do samba, e para o fato de que estes

representantes, nem sempre vindos dos morros e, nem sempre negros, se apropriavam do que

ouviam dos negros nas ruas e, assim apresentavam o samba.

Quando a maestrina Chiquinha Gonzaga compôs em 1899 a marcha

“Ô Abre alas”, a pedido dos crioulos componentes do cordão Rosa de Ouro,

nada mais fez que aproveitar – segundo ela mesma confessaria – o ritmo

Page 37: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

36

marchado que os negros imprimiam às músicas bárbaras que cantavam

enquanto avançavam pelas ruas entre volteios, requebros e negaças

(TINHORÃO, 2012, p.19).

O Complementado essa passagem histórica da pesquisa de Tinhorão – pois este

realizou um trabalho de grande relevância no que tange à recuperação e ao detalhamento do

surgimento do samba, assim como à formação da identidade cultural brasileira –, saindo do

século XIX e adentrando o século XX. Além dessa analise deve-se entender que a música, o

samba não pode ser tratado como simples representação artística, pois a música se utiliza de

diversas linguagens verbais e não verbais. Além disso, o samba era um catalisador de povos,

tanto negros como brancos, tanto pobres como a elite, tanto rurais como urbanos.

Essa identificação com o gosto das demais comunidades urbanas do Brasil

era compreensível, pois desde a segunda metade do século XIX o teatro de

revista da Praça Tiradentes, com suas cinco famosas casas, somadas a outras

fora de sua área – o Apolo e o Teatro da Exposição de Aparelhos de Álcool,

na Rua do Lavradio, o Rio Branco e o Chantecler, na Av. Visconde de Rio

Branco, e o Palace Theatre, da Rua do Passeio –, já atraíam todo um público

flutuante de provincianos fascinados pelas “novidades” do Rio de Janeiro.

Assim, nada mais evidente do que, a partir da primeira década do novo

século em diante, a preocupação demonstrada pelos compositores populares

em procurar incluir suas músicas em números de revistas, como primeiro

passo para torná-las nacionalmente conhecidas. [...]

O resultado disso foi que pôde datar de então a alternância de relações entre

a música popular e o teatro de revista: ora a revista lançava

música para o sucesso em todo o país ora o sucesso nacional de uma música

era aproveitado para atrair público para o teatro(TINHORÃO, 2010, p. 249).

A partir de 1911, o empresário Pascoal Segreto estimula o acesso da população ao

teatro, abrangendo um público pagante cada vez mais numeroso e mais eclético: “cobrando

apenas quinhentos réis por lugar na geral” (TINHORÃO, 2010, p. 249). Esse episódio, além

de fomentar o acesso à cultura, também fortaleceu as características dos tipos populares.

[...] na base do aproveitamento de tipos populares como o matuto,

o coronel fazendeiro, o português, a mulata, o guarda, o capadócio (o fadista

português depois chamado de malandro no Brasil), o funcionário público, o

camelô, etc., e fez uma pequena humanidade dançar e

cantar durante meio século ao som das maiores criações musicais e

coreográficas das grandes camadas do povo – o lundu, o maxixe e o samba

(TINHORÃO, 2010, p. 250).

A passagem acima se refere ao início de um processo de divulgação da cultura de

forma mais massificada, alcançando o teatro de revista, em uma manifestação cultural ainda

Page 38: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

37

mais forte e que se tornaria um fenômeno reconhecido mundialmente como tipicamente

brasileiro.

As possibilidades abertas para os compositores pela comunicação direta

entre a revista e o povo, principalmente no que se referia ao aproveitamento

do tema do Carnaval, começaram a aparecer de forma clara inclusive através

de fatos imprevistos, como aconteceu no Carnaval de 1911, quando um fado

composto pelo brasileiro Nicolino Milano para a revista portuguesa ABC

encenada no Rio em 1909, o “Fado Liró”, apareceu cantado pelo povo, nas

ruas, com ritmo de marcha. E o mais curioso é que, no ano seguinte ao desse

Carnaval em que o fado português de um brasileiro se transformara em

marchinha foliona de rua, uma marcha composta pelo português Filipe

Duarte para a revista O país do vinho – estreada no Teatro Recreio em junho

de 1910 e aí reprisada em 1911 – transformar-se-ia, abrasileirada, em um dos

mais constantes sucessos do Carnaval no Brasil a partir daquele ano de 1912:

“A Vassourinha” (TINHORÃO, 2010, p. 250).

Ganham maior visibilidade essas novas formas de expressão artística, com o

surgimento de nomes que entrariam para a história da música popular brasileira.

Ao lado de Costa Júnior e de Chiquinha Gonzaga, outros músicos de teatro

dessa fase pioneira, anterior à ascensão de compositores da própria camada

popular, tentaram esforçadamente adaptar sua formação semierudita ao gosto

das camadas mais amplas da cidade (TINHORÃO, 2010, p.254).

Nesse período histórico houve quebra de paradigmas para a construção da identidade

cultural brasileira. Surgem novas formas artísticas, assim como movimentos culturais

começam a emergir das camadas antes excluídas. As novas manifestações artísticas são

muitas vezes semieruditas – ou seja, de inspiração erudita, mas propondo uma nova

construção –, somando-se a influência europeia às expressões dos negros. É o caso da marcha,

inspirada nos batuques dos negros. Assim, essas culturas distintas imbricam-se uma na outra,

resultando em uma expressão de características tipicamente brasileiras, abrindo caminho para

a construção da identidade nacional.

Com essa conquista final das últimas camadas da população do Rio de

Janeiro (cidade que alcançava seu primeiro milhão de habitantes ao fim da

Primeira Guerra Mundial4), o espírito dos novos espetáculos teria de seguir

mesmo o caminho aberto em 1912 por Luís Peixoto com sua burleta

Forrobodó, e por ele mesmo retomada em 1918 com as revistas Flor de

Catumbi e Saco do Alferes: o do aproveitamento dos tipos populares, que

inclusive subiriam ao palco na figura de artistas saídos do picadeiro (como

Araci Cortês e Francisco Alves), ou se fariam representar por suas músicas

nos espetáculos, como seriam os casos dos compositores negros e mulatos

Sinhô, Caninha, João da Gente, Donga, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres,

Alcebíades Barcelos e tantos outros.

4 O Censo geral de 1920 deu para o Rio de Janeiro 1.147.599 habitantes, 800 mil concentrados no perímetro

urbano e os restantes 300 mil nos subúrbios.

Page 39: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

38

Eis como se poderia explicar que a partir de 1917, quando Henrique Júnior

aproveita o sucesso do primeiro samba lançado em disco, o “Pelo Telefone”,

para sob esse nome estrear sua revista no Teatro Carlos Gomes, não viesse a

passar mais um único ano sem que a música popular – agora produzida para

gravação em disco - deixasse de figurar como atração nos palcos da Praça

Tiradentes (TINHORÃO, 2010, p.256-257).

2.1.8 O Samba e a política

Essas novas expressões artísticas oriundas do samba, por exemplo, as danças, os

cordões, os ranchos, até o carnaval de rua, começam a ter visibilidade, sendo assim,

acabariam por ser utilizadas por Getúlio Vargas no seu projeto nacional. Um “processo de

popularização do samba era iminente, mas certamente a política de Vargas contribuiu para a

sua consolidação no panorama nacional”20

.

É inquestionável a importância histórica dessa atitude política, que fomentou na nação

um novo sentimento: o de pertencimento, seja na arte erudita, seja na arte popular. Dessa

forma, inicia-se o chamado projeto nacional. Esse projeto político foi de grande contribuição

no aproveitamento das potencialidades brasileiras, pois trouxe à luz as representações

culturais das camadas mais baixas, somando-se às outras formas de expressão, o que se deu

principalmente na música e, de forma muito significativa, no samba.

No plano cultural, o espírito de aproveitamento das potencialidades

brasileiras que informava a chamada nova política econômica, lançada pelo

governo Vargas, encontrava correspondente nos campos da música erudita

com o nacionalismo de inspiração folclórica de Villa-Lobos, no da literatura

com o regionalismo pós-modernista do ciclo de romances nordestinos e, no

da música popular, com o acesso de criadores das camadas baixas ao nível

da produção do primeiro gênero de música urbana de aceitação nacional, a

partir do Rio de Janeiro: o samba batucado, herdeiro das chulas e sambas

corridos dos baianos migrados para a capital (TINHORÃO, 2010, p.304).

Aqui se inicia, então, uma nova etapa na construção de uma identidade nacional, o que

se reflete tanto na música lírica como na literatura e na música popular, que tratam em sua

maioria de temas tipicamente nacionais, fazendo com que cada grupo social sinta-se

representado.

De fato, desde que o samba inspirado nos improvisos surgidos entre gente de

partido alto das casas das tias baianas da velha zona portuária e dos antigos

mangues da Cidade Nova surgiu em 1917 como sucesso em toda a cidade,

20

Conta o músico e historiador Magno Bissoli, autor da tese de doutorado “Caixa Preta: samba e identidade

nacional na Era Vargas. Impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945”,

apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Page 40: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

39

divulgado pelos discos, a nova geração de músicos cariocas (vários deles

filhos de baianos, como o próprio Donga), partiram para a produção de

composições do mesmo estilo, desde logo bem aceites pelos editores de

música. [...]

Todos esses sambas já produzidos para gravação em disco nessa primeira

fase que se estenderia de 1917 a 1927 – ano que marca o fim das gravações

mecânicas e o advento do sistema elétrico – guardam entre eles a marca

sonora do seu parentesco com os sambas do partido alto dos baianos, que

soavam ainda como eco de suas origens rurais no Recôncavo. Foi então

preciso que uma nova geração de talentos, já agora saídos das camadas

baixas cariocas, igualmente herdeiras de uma tradição local de sambas de

roda à base de estribilhos (muitos deles com experiência carnavalesca em

ranchos de bairros), fizesse sua entrada no cenário da criação popular no Rio

de Janeiro com a contribuição definitiva para a carreira comercial do gênero:

o samba batucado e marchado do Estácio (TINHORÃO, 2010, p.305).

Assim, segundo o autor, essa população do Estácio, de origem pobre, composta de ex-

escravisados, levados pela reforma urbana a morar nos morros, muitos vindos da Bahia,

outros do Vale do Paraíba, traziam da sua ancestralidade africana uma cultura que se tornaria

representante da cultura nacional.

Assim durante o período do carnaval, os moradores do Bairro do Estácio encorpavam

a concentração dos foliões da Praça Onze, nesta praça, desde os anos 1920, reuniam-se os

foliões com menos recursos, também aos primeiros grupos de pobres que chegam decorrente

das reformas urbanas para morar nos morros, isto por volta de 1928, eles viviam em atrito

com a polícia. Mas desta mistura de povos recém-chegados, na sua maioria descentes

africanos, surge a formação de um bloco para sair no carnaval ao som de sambas, enquanto os

ranchos saíam ao som de marchas.

Page 41: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

40

2.1.9 O Samba, o Racismo e os conflitos sociais

Um racismo muito particular marca o Brasil: negado publicamente, praticado na intimidade.

Das origens coloniais do país aos dias de hoje (...) por trás do mito da convivência pacífica o

da exaltação da miscigenação, na prática, a velha máxima do “quanto mais branco melhor”.

Nunca foi totalmente deixado de lado. (Schwarz, Lilia, 2012)

Lilia Schwarz (2012) trata da questão do branqueamento apontando, inclusive dados

de pesquisas no decorrer da história que indicam que este tema está longe de ter fim. Pontua

os momentos e as dicotomias, desde o inicio da colonização até os dias atuais.

Voltemo-nos ao momento em que o samba, ainda está à margem da sociedade

estabelecida, convém observarmos a análise sociológica de Norbert Elias (2000), em que a

dicotomia acompanha a história da humanidade, pois há sempre, ou quase sempre, um lado se

opondo ao outro e, mais que isso, pode-se dizer que sempre haverá um grupo estabelecido que

sente-se superior e, dessa forma, fechado ao oposto, ao contrário, colocando esse outro à

margem da sociedade estabelecida. Norbert Elias (2000) trata desse conflito na citação a

seguir:

Essa é a auto imagem normal dos grupos que, em termos do seu diferencial

de poder, são seguramente superiores a outros grupos interdependentes. Quer

se trate de quadros sociais, como os senhores feudais em relação aos vilões,

os “brancos” em relação aos “negros”, os gentios em relação aos judeus, os

protestantes em relação aos católicos e vice-versa, os homens em relação às

mulheres (antigamente), os Estados nacionais grandes e poderosos em

relação a seus homólogos pequenos e relativamente impotentes, quer, como

Page 42: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

41

no caso de Winston Parva, de uma povoação da classe trabalhadora,

estabelecida desde longa data, em relação aos membros de uma nova

povoação de trabalhadores em sua vizinhança, os grupos mais poderosos, na

totalidade desses casos, veem-se como pessoas “melhores”, dotadas de uma

espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada

por todos os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda, em todos

esses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os próprios

indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes –

julgando-se humanamente inferiores (ELIAS, 2000, p.19-20).

Nota-se, na citação acima, que os outsiders interiorizaram de tal forma a ideia de

exclusão que havia certo conformismo de que eram realmente inferiores. Já se voltarmos

nossos olhares para 1928, no Rio de Janeiro, percebe-se que nesse caso não havia o mesmo

aceite, pois os moradores do morro haviam trazido sua cultura para o centro urbano da cidade,

mas a exclusão era nítida. Os negros vinham para o Carnaval de rua do Rio de Janeiro, mas

continuavam excluídos, pois os carros alegóricos inspirados no carnaval europeu não eram

acessíveis a certos segmentos sociais. Segundo Tinhorão, os negros, pobres e mestiços saíam

em blocos e faziam ranchos.

Pode-se analisar esses fatos por outra vertente: a da compreensão dessas dicotomias

por meio da noção de configurações, esta elucidada por Elias e Scotson (2000) na obra Os

estabelecidos e os outsiders, pois os Outsiders são os de fora, que estão à margem de uma

sociedade:

As comunidades e bairros são um tipo especifico de configuração.

O estudo mostrou o alcance e as limitações das opções que elas davam aos

indivíduos que as compunham. Podemos imaginar um recém-

-chegado que se instalasse no loteamento ou na “aldeia”. Quer chegasse

sozinho ou com a família, ele certamente disporia de algumas alternativas.

Poderia, como fizeram muitas pessoas do loteamento, “manter sua reserva”.

Poderia seguir a minoria desordeira. Poderia tentar penetrar lentamente na

sociedade da “aldeia”. Poderia decidir rapidamente que nem a “aldeia” nem

o loteamento lhe convinham como bairros e se mudar. Mas, caso

permanecesse, tornando-se um “vizinho”, não teria como deixar de ser

apanhado nos problemas configuracionais existentes. Seus vizinhos

começariam a “situá-lo”. Cedo ou tarde, ele seria afetado pelas tensões entre

os “estabelecidos” e os “outsiders” (ELIAS, 2000, p. 184-185).

Nessa analogia de estabelecidos e outsiders de Winston Parva com o Brasil, o Rio de

Janeiro pretendia mostrar que, quando se modifica uma configuração social, há conflitos entre

os já estabelecidos e os que vêm de fora, ou outsiders, pois nesses dois contextos há questões

como a violência, a discriminação e a exclusão social. Os que ali estavam cultivam valores

como da tradição e da boa sociedade, e os que estão chegando são estigmatizados por toda sua

bagagem associada à anomalia social, como delinquência e violência, além de estarem

Page 43: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

42

desintegrados da nova realidade. Se nos determos aos ex-escravisados, isso fica ainda mais

nítido. Aqui também os outsiders se estabeleceram na exclusão, habitando os morros, que

formam as hoje tão conhecidas favelas.

Convém convidar a este debate o sociólogo inglês Paul Gilroy (2012), que aborda a

questão da música negra e a politica da autenticidade, Gilroy trata dos paradigmas que

permeiam o conceito de nação, povo, raça e etnia. O sociólogo chama a atenção para o fato de

que estes conceitos são importados, aliás, Gilroy mostra a questão de que os negros britânicos,

os líderes e intelectuais negros, conseguiram através da construção de ideias originais sair de

uma condição de subjugo somando ideias e se posicionando perante ideias negras e brancas ,

produzindo intercâmbio de ideias, num mundo globalizado. Se colocar como cidadão

cosmopolita e participar da modernidade, não mais ser um depósito de um passado de

escravidão, ao contrário, deslocar sua identidade para a modernidade globalizada e híbrida.

Assim, pode-se defender a tese de que os tais outsiders, devem sair dessa posição se

colocando como cidadão e não mais como vítima, mesmo esse sendo um movimento difícil de

realizar quando todas as normas pré-estabelecidas tendem a beneficiar os já beneficiados, seja

por raça ou etnia, ou pela condição social ao qual pertence.

2.1.10 O Samba como produto

Este processo iria acontecer de qualquer forma? A música não existe para ser

“consumida”? A transformação do samba em produto era inevitável? Tinhorão sinaliza essa

mercantilização do produto nacional, ou seja, o samba.

Fixada a nova forma urbana de samba produzido nos meios de malandros e

valentes do Estácio e no seu equivalente nas comunidades em formação

pelos morros da cidade (a partir do mais antigo, a Favela, cujo nome passaria

a designar “conjunto de habitações populares”), tal criação passou a

interessar as fabricas de discos como produto capaz de boa colocação no

florescente mercado da música de consumo. Gravadoras como a Odeon, por

exemplo, comercializavam o gênero desde os tempos pioneiros da Casa

Edison (inclusive em sua forma sertaneja, através de conjuntos como o

Turunas da Mauriceia, desde 1924), mas fazendo-o ainda segundo a antiga

fórmula dos sambas amaxixados de Sinhô, muitas vezes fabricados pelos

ecléticos compositores profissionais da classe média, que começavam a

surgir dispostos a experimentar todas as novidades, dos fox-trots às músicas

vagamente “sertanejas”. A partir de 1930 (porém, coincidindo com a

revolução anunciadora da “nova política econômica”, cujo caráter burguês

nacionalista iria incentivar o comércio interno e ao aproveitamento das

potencialidades brasileiras), seria a própria criação das camadas mais baixas

Page 44: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

43

que as fábricas experimentariam vender em discos, como um produto

industrial comum. Para efetivação desse acontecimento inédito do

aproveitamento comercial da arte musical das grandes camadas urbanas,

concorreu um fato também fora do comum: o aparecimento no Rio de

Janeiro, em novembro de 1929, de um concessionário da marca Brunswick,

que se dispunha a explorar o mercado de música tipicamente brasileira:

choros, maxixes, marchas, canções, toadas emboladas e, naturalmente, o

novo estilo samba do Estácio e dos morros, e ainda as mais estrondosas

batucadas reproduzidas em estúdio com os instrumentos originais”

(TINHORÃO, 2010, p. 310-311)

Assim chegamos à industrialização do samba (década de 1930) como mais um dos

produtos tipicamente brasileiros a serem comercializados em grande escala. Segundo o autor,

os melhores compositores, músicos e cantores dessa época tiveram seu espaço nas gravadoras

como a Odeon, que manteve estúdio também em São Paulo sob o selo de Parlophon.

[...] o até hoje não identificado norte-americano concessionário da

Brunswick abriu seu estúdio a iniciantes (alguns depois famosos, como

Carmem Miranda, Silvio Caldas, Gastão Formenti e o grupo Bando da Lua),

e entre os quais se incluíam talentos do povo como o legendário Paulo da

Portela, Heitor dos Prazeres (mais tarde famoso também como pintor

primitivista), e os componentes do conjunto Gente do Morro.

O próprio nome Gente do Morro, escolhido para o grupo pelo compositor

Sinhô (que também gravava na Brunswick), constituía uma indicação do

propósito comercial de “vender” a música das camadas mais baixas do Rio

de Janeiro pelo seu lado “pitoresco”. De fato, seu líder, flautista Benedito

Lacerda, era um fluminense ex-soldado de polícia que tocava em bares da

zona de mulheres, os ritmistas Alcebíades Barcelos, sapateiro, e Juvenal

Lopes, morador do Estácio, e os violinistas Henrique Brito e Jaci Pereira,

jovens da classe média.

A gente realmente de morro, que às vezes figurava nas gravações, seriam os

anônimos tocadores de surdo, tambor, tamborim, reco-reco e cuíca, sempre

convocados para engrossar a percussão e a fricção para garantir o caráter de

autenticidade do acompanhamento rítmico, não apenas nos discos desse

Gente do Morro, mas nos gravados pelo Grupo dos Prazeres, formado em

1930 por Heitor dos Prazeres na mesma gravadora (TINHORÃO, 2010, p.

311).

O samba foi se transformado em produto das classes baixas com o propósito de

vender, tendo como apelo o lado “pitoresco”. No grupo batizado Gente do Morro, por

exemplo, a gente realmente do morro era apenas coadjuvante, mas pode-se analisar por outro

prisma, por exemplo, o Gente do Morro trazia algo novo, original, a comunicação pela

musica, pelo canto, a música como linguagem cultural, corporal.

Bem interpretado, aliás, o que no conjunto Gente do Morro fazia – e isso era

de fato novidade – era realizar a fusão dos velhos grupos de choro à base de

Page 45: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

44

flauta, violão e cavaquinho com a percussão dos sambas populares herdeiros

dos improvisos das rodas de batucada, com base em estribilhos marcados por

palmas. [...] era o casamento da tradição do choro da pequena classe média

com o samba das classes baixas. Um casamento musical que se revelaria por

sinal muito fecundo porque, como ainda naquela virada dos anos 30 se

comprovaria – e desde os tempos do choro se antecipava21

–, pela

valorização da melodia, os conjuntos regionais podiam chegar ao samba-

canção, e pela mistura do fraseado do choro e o apoio rítmico do

acompanhamento do samba, ao samba-choro e ao samba de breque (na

verdade, o samba-choro quebrado a espaços por paradas súbitas, a que se

interpolavam palavras isoladas e até frases inteiras, aproveitando os

intervalos rítmicos) (TINHORÃO, 2010, p.311-312).

Interessante observarmos os caminhos trilhados pelo samba, mas podemos afirmar que

sua construção se dá de forma até poética, trazendo consigo elementos do cotidiano, de

mazelas humanas como a pobreza, as necessidades mais simples. O samba carrega um pouco

de tristeza nas suas letras, mas ao mesmo tempo traz alegria e contagia os povos, pois de certa

forma na dicotomia existem pontos de encontro cultural. Assim, unem-se pelo samba as

classes baixas e a classe média, o morro e o centro, brancos e negros, mas ainda com um

toque de exclusão por parte das elites. Dessa forma, voltando ao método utilizado nesse

estudo, a análise comparativa se faz presente de forma eficaz. Mas, como o foco do estudo em

questão é o samba e sua contribuição na formação da identidade nacional, debrucemo-nos

sobre Getúlio Vargas, que ficou conhecido como o líder que unia as diferenças. Vargas, para

sustentar suas ideias, utilizou-se do samba e de sua dicotomia.

A boa resposta do mercado a essa criação de sons “populares” estimulou as

fábricas de discos estrangeiras e seus concessionários no Brasil à procura de

novidades na área das músicas regionais, que passavam a ser produzidas para

todos os gostos: tanguinhos de Ernesto Nazareth, canções e toadas

“sertanejas” de Marcelo Tupinambá e Hekel Tavares para a classe média

mais refinada; cocos, emboladas, maxixes, batuques, valsas, mazurcas e

quadrilhas de festas de São João, modinhas, sambas e marchas de Carnaval

para a heterogênea massa menos exigente distribuída pelas camadas que

compunham a baixa classe média e o povo de uma maneira geral.22

[...]

arrebanhou tocadores e cantadores de moda de viola de sua região para

gravar no estúdio da Columbia, na capital de São Paulo. Tais caipiras, aliás,

não se limitariam apenas ao gênero dos velhos romances entoados em dupla

ao som da viola – as chamadas modas de viola, cantadas com as vozes em

21

O autor possui em sua coleção uma polca gravada em fins de 1915 pelo Grupo Carioca (disco Odeon, Casa

Edison, n. 121, 104) que soa já como autêntico samba-canção na melodia elaborada pelo trombone solista,

principalmente na terceira parte, contra o fundo de acompanhamento do cavaquinho, fazendo o “centro” com um

ritmo sapecado semelhante ao ritmo ágil e partido dos tamborins. 22

As funções vêm indicadas na cláusula 1ª de contrato assinado entre Pixinguinha e a Companhia Victor em 21

de junho de 1929. A Cláusula 2ª obrigava ainda Pixinguinha a “instrumentar quaisquer músicas destinadas a

gravação em disco pela Victor Company, ou de outros fins quaisquer e para o número de instrumentos e na

forma desejada pela Companhia”. O autor (Tinhorão) possui em seu arquivo o original desse contrato histórico

da música popular brasileira.

Page 46: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

45

intervalo musical de terças –, mas gravariam também valsas, cateretês,

toadas de sambas, de cururu e de mutirão, e até cana-verde

(a viola caipira é a mesma tradicionalmente usada em Portugal desde o

século XVI, o que explica a continuidade de certos gêneros de música

trazidos com ela para o Brasil) (TINHORÃO, 2010, p.313-314).

O que permeia a análise crítica de Tinhorão, além de sua visão histórica e social, é a

questão do caráter popular da música popular brasileira, pois o autor não trata apenas do

samba, com a chegada das tecnologias que está a favor da indústria cultural, transforma a

música popular brasileira em um produto que conecte todas as classes sociais e, este produto

cada vez mais sendo produzido fora do seu ambiente de original de criação. Neste ponto

Tinhorão comunga das mesmas interpretações de Siqueira, pois os dois autores alertam para o

fato de que houve uma apropriação do samba pela indústria cultural e, para tinhorão não foi

apenas o samba, mas a musica popular brasileira, e Siqueira ainda traz à discussão o problema

do embranquecimento do samba após o advento da indústria cultural.

Com a chegada das tecnologias, há uma espécie de “globalização” da cultura. Não foi

diferente com o samba, assim chega-se ao interior de São Paulo, onde a indústria da música

tipicamente brasileira também encontra produtos com potencialidade comercial, além de

diversidade cultural, pois na busca por um gênero – o “sertanejo” – encontram uma variedade

de gêneros, entre estes o samba. Mas o samba paulista será abordado com mais profundidade

no próximo capítulo, dedicado a esse tema.

2.2. CAPÍTULO 2 - O Samba e o Estado Novo de Getúlio Vargas

2.2.1. O samba a Serviço do governo

Ao governo de Getúlio Vargas não escapou, sequer, o papel político que o

produto música popular poderia representar como símbolo

da vitalidade e do otimismo da sociedade em expansão sob o novo projeto

econômico implantado com a Revolução de 1930: ao criar em 1935 o

programa informativo oficial chamado “A Hora do Brasil”,

o governo fez intercalar na propaganda oficial números musicais com os

mais conhecidos cantores, instrumentistas e orquestras populares

da época, antecipando-se, nesse ponto, ao próprio Departamento de Estado

norte-americano e seu programa “A Voz da América” (TINHORÃO, 2010,

p.315).

O rádio foi não apenas meio de divulgação de uma cultura popular, mas também

instrumento a serviço do governo de Getúlio Vargas, para incutir na população a ideia de

Page 47: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

46

identidade nacional. Desta forma, por estar a serviço do governo vê-se obrigatória uns

“reajustes” nesse produto, pois este acaba por se tornar produto de exportação, aí sim, se

observa a globalização cultural correspondendo ao que entende por globalização.

Nesse ano de 1935, aliás, ao ser praticamente obrigado por pressões políticas

e financeiras a assinar com os Estados Unidos um acordo de reciprocidade

econômica desfavorável ao Brasil, Getúlio Vargas procurou contrabalançar a

capitulação com a assinatura de acordo de compensação com a Alemanha,

que lhe permitia obter divisas com a exportação de produtos sem interesse

para os americanos, como arroz, a carne e o algodão. E, então, como parte de

um jogo de astúcias políticas destinado a neutralizar as imposições norte-

americanas com a ameaça de aprofundamento das relações com a Alemanha,

Getúlio autorizou a realização, em 29 de janeiro de 1936, de um programa

em ondas curtas destinado a mostrar aos alemães um pouco da música

popular brasileira. E, assim, com o locutor alemão Rudolph Kleinoschek

anunciando as músicas apresentadas e fazendo as devidas explicações, a

loura Alemanha, que em breve se lançaria à guerra orgulhosa da

superioridade da raça ariana, pôde ouvir durante uma hora os crioulos e

mulatos cariocas malandros do Estácio (como o boxeur Baiano e o vendedor

de jornais Lauro Santos, o Gradim) e os bambas dos morros (como Agenor

de Oliveira, o Cartola, e seu parceiro Carlos Moreira de Castro, o Carlos

Cachaça) cantarem suas dores de amor mestiças, em sambas

caprichosamente ritmados ao som de tamborins feitos com couro de gato

(TINHORÃO, 2010, p. 315-316).

Quem me vê sorrindo

Pensa que estou alegre

O meu sorriso é por consolação

Porque sei conter

Para ninguém ver

O pranto do meu coração23

(CACHAÇA, Carlos. Quem me vê. Intérprete: Cartola. 1974).

Na citação, Tinhorão expõe suas análises de forma rica em detalhes de suma

importância para a compreensão histórica dos fatos, busca em sua pesquisa dados,

documentos e nomes que não deixam dúvidas sobre as informações aqui apresentadas,

portanto, só vem a enriquecer o estudo sobre o tema em questão, a história do samba.

A questão dos alemães e o contexto histórico no qual tiveram acesso à cultura

brasileira – no caso, ao samba – revela que o gênero participou de acordos comerciais

importantes entre Brasil e Estados Unidos, assim como entre Brasil e Alemanha. Assim, o

samba acabou por ser divulgado aos alemães, que em seguida defenderiam a raça ariana (mas

antes ouviram música negra brasileira).

23

“O Bando da Lua convidado a visitar Londres”. In: Cine-Rádio-Jornal do Rio de Janeiro, 2 mar. 1939, p.3-4.

Essa anunciada viagem à Inglaterra acabou não se realizando, pelo fato de o grupo ter viajado para os Estados

Unidos como conjunto acompanhante da cantora Carmen Miranda, em maio de 1939.

Page 48: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

47

Siqueira (2012) aponta que a mercantilização do samba, mesmo no seu auge, não

trouxe consigo a “inclusão” esperada pelos mais pobres, principalmente para os negros, fato

observado num dos principais representantes do samba: o grande Cartola, que morreu pobre.

A concessão de parceria foi uma forma daqueles autores originais

penetrarem no mundo do rádio e do disco. Entretanto, isso não significou

mobilidade social aos sambistas como regra geral. Não resultou em uma

ascensão das comunidades produtoras de samba, nem as retirou da condição

de pobreza. É certo que alguns poucos autores obtiveram uma melhoria de

vida, deixando até de ser favelados e adquirindo bens de consumo.24

Entretanto esse fato marca o momento da profissionalização do sambista,

intensificado na década de 1930 a 1940, período da “época de ouro” do

samba. (SIQUEIRA, 2012, p.162-163).

Nesse movimento dialético, o samba se transforma de marginal a mercadoria, diferentes

sambas vão ter lugar, uns para uns setores, outros para outros, assim atendendo aos setores de

classe determinados. O movimento que estabelecia a relação entre os representantes da

comunidade negra com as casas de espetáculos e outras formas de entretenimento é o

componente que permite que o samba seja absorvido como instrumento de uma política de

Estado, na luta para a efetuação de uma identidade oficial brasileira.

24

Cartola, por exemplo, só saiu da Mangueira por 4 anos (1947-1951), quando viveu em Cascadura. Depois

voltou; sempre viveu na pobreza, apesar de haver criado, nos anos 1960, o famoso Zi-Cartola. Na velhice, morou

em Jacarepaguá, que não era considerado um “bairro nobre”. Sobre a falsa interpretação de uma mobilidade

social global dos sambistas, ver LOPES, N. O samba, na realidade...A utopia da ascensão social do sambista.

Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

Page 49: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

48

Modesto Brocos. Óleo sobre tela, c.i.d. 199.00 X 166.00 cm,

1895

2.2.2 O Samba e o branqueamento a serviço do projeto nacional

Esse processo dialético do qual trata Siqueira (2012) transforma o marginal em

mercadoria. Getúlio Vargas utiliza-se do samba como instrumento de uma política de Estado,

na sua busca pela identidade nacional. Outra questão relevante abordada com veemência por

Siqueira (2012) é o método utilizado para maior aceitação e também como um facilitador para

a exportação do samba, que é o fator de seu embranquecimento; este seria um elemento

unificador das classes, pois tinha como objetivo a inclusão, até mesmo na produção –

colaborando para a construção de um país moderno, no qual o negro sambista, antes marginal,

poderia ser mão de obra para as indústrias, além de produtor de entretenimento e consumidor

do samba, em um só tempo gerando lucro para a indústria fonográfica e servindo como

símbolo de brasilidade.

A questão de por que o samba tem duas respostas. De um lado, é o gênero

musical que de certa maneira unifica as classes, propiciando entretenimento

Page 50: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

49

às camadas média e alta com o trabalho dos negros e gera, ainda, lucros para

a indústria fonográfica e de divertimento. De outro, é um mito idealizado

para cooptar politicamente a grande massa de negros em todo o território

nacional.

[...] O samba acabou por se tornar o símbolo de uma brasilidade que visava

unificar e construir um Estado nacional, ao ser despojado do poder de

rebeldia que até então possuía. Onde quer que exista o samba, este será

apresentado ao negro como o elemento da brasilidade, com a qual o negro irá

se identificar (SIQUEIRA, 2012, p.163).

Portanto pode-se afirmar que mesmo com essa dicotomia citada acima, pois são

formas contrárias e complementares do papel do samba na formação da identidade nacional,

ele é o instrumento utilizado política, econômica e socialmente como o gênero nacional que,

segundo o autor, o negro irá se identificar. Dessa forma, pode-se dizer que o samba gera esse

sentimento de pertencimento no brasileiro das várias camadas sociais urbanas. Ao mesmo

tempo, o negro, que é o criador original do samba, com o projeto nacional de Getúlio passa

pelo mencionado processo de embranquecimento, e o que era uma expressão popular passa a

ser objeto catalizador de fomentos ao governo. E, para isso, segundo o autor, o samba

caminha para um distanciamento do seu criador, tornando-se outro samba diferente daquele

dos terreiros. Há de se ressaltar que este fato último era inevitável, pois agora o samba não

estava mais nas fazendas, mas num ambiente urbano que buscava a modernização.

Através da mediação do Estado, essa cultura que, na origem, era apenas de

negros, fora do mercado se transforma na cultura de toda a sociedade urbana,

autodeclarada sociedade brasileira. Isso ocorre pela necessidade que o

Estado teve, em certo momento, de se identificar com o samba, ou melhor,

identificar o samba com um de seus objetivos, reconhecer o brasileiro como

mito, e o sambista como condição mítica e consumidor de samba. É uma

invenção, naquele estilo que descrevem Hobsbawm e Turner: as tradições

são inventadas. Fabrica-se, repete-se e as pessoas se acostumam com isso,

como à saia do escocês.

Ao ser inventada, passa a ser, porque depois é o que é. Existe uma massa

amorfa que vem de diferentes lugares e há necessidade de retirar-lhe a

amorfia, dando-lhe uma forma que se escolheu. Mas a forma já estava

escolhida; é o Estado ou uma forma de poder que escolhe a forma que

tentativamente será dada à massa. O Estado, por exemplo, diz: “você será

sambista”. A partir daí forja-se um indivíduo sambista. O poder nacional o

cria à sua imagem e semelhança. Quer dizer, à imagem e semelhança dos

mitos que o poder escolhe, ou pode escolher (SIQUEIRA, 2012, p.163-164).

Siqueira concorda com Tinhorão, no que se refere à utilização do samba por Getúlio,

mostrando o papel do Estado no caminho tortuoso do samba ao ser moldado e utilizado na

construção do modelo de Estado Novo. Para tanto, Getúlio utilizou-se de atores sociais, como

músicos, políticos, negros, brancos e mestiços, buscando fomentar a união nacional entre a

indústria, a política e a sociedade, envolvendo todas as camadas da sociedade brasileira.

Page 51: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

50

Nesse contexto, Ary Barroso, de família de políticos mineiros, teve papel

fundamental. [...] Em 1921, entrou para a faculdade e, à noite, frequentava as

rodas boêmias da capital. [...] A estreia de Ary Barroso em disco se deu

também em 1929, com o samba Vou à Penha, gravado por seu colega de

faculdade, Mário Reis. Mas a mais importante contribuição dele foi a criação

do samba-exaltação, de melodia extensa e apoiado em grande aparato

orquestral. Desse estilo o seu samba mais famoso foi Aquarela do Brasil,

gravado originalmente em 1939, por Francisco Alves. Posteriormente, houve

centenas de gravações (MARCONDES, 1997, p.75-78 apud

SIQUEIRA, 2012, p.164). Conscientemente ou não, Ary Barroso é quem constrói o protótipo da música

popular brasileira contemporânea para o Brasil e o mundo. A gravação de

Aquarela do Brasil feita por Francisco Alves, com arranjo orquestral de

Radamés Gnatalli, populariza em definitivo a música, tanto no Brasil como

no exterior. O samba-exaltação de Ary Barroso tornou-se o representante do

Brasil (SIQUEIRA, 2012, p.164).

Ainda a respeito das políticas de Getúlio, pode-se compreender que elas foram além

do samba, pois tiveram abrangência em outros gêneros musicais. Convém ressaltar que

Getúlio não se ateve apenas a acordos com a Alemanha e os Estados Unidos; ele buscou

estreitar relações políticas também com os países da América Latina.

O uso da música popular como arma política de propaganda não ficaria nesse

exemplo. Já um ano antes, quando em 1935 Getúlio Vargas visitaria a

Argentina e o Uruguai, um grupo de artistas brasileiros acompanhava a

comitiva oficial com a missão de reforçar a simpatia do sorriso do

presidente. E entre esses artistas estaria Carmen Miranda e o conjunto Bando

da Lua, definido em reportagem de jornal da época como “um grupo de

rapazes da sociedade, estudantes na quase totalidade”, transformado sem

querer em “elemento de aproximação mais intensa entre povos diferentes”25

(TINHORÃO, 2010, p.316).

Nota-se que Getúlio se utiliza da música popular, do samba de Carmen Miranda, para

compor uma imagem de um presidente que une os povos mestiços do seu país. Tinhorão nos

fornece mais informações sobre esses fatos de grande relevância histórica, para maior

compreensão das representações de Getúlio Vargas:

E a prova de que Getúlio Vargas era quem pessoalmente determinava as

diretrizes para o uso de artistas populares em sua propaganda política estaria

não apenas no fato de ter ordenado a criação de uma Hora do Brasil na

Radio El Mundo, de Buenos Aires, logo no segundo ano de sua gestão como

ditador do Estado Novo (instituído em novembro de 1937), mas no de ter

recebido a mesma Carmen Miranda e os músicos do Bando da Lua na

25

Programação estabelecida pelo Departamento de Propaganda e Cultura da Agência Nacional e reproduzida por

Marília T. Barboza da Silva e Artur L. de Oliveira Filho em seu livro Cartola: os tempos idos, Rio de Janeiro,

Funarte/Instituto Nacional de Música/Divisão de Música popular, 1938, p.59.

Page 52: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

51

estância balneária de Caxambu na penúltima semana de abril de 1939, para

recomendar à cantora que não aceitasse o convite do empresário Lee

Schubert, da Broadway, sem a inclusão dos músicos brasileiros que a

acompanhavam. Carmen Miranda se encarregaria de divulgar, ao declarar ao

repórter Henry C. Pringle, da revista norte-americana Colliers: “O presidente

do Brasil”, disse ela por meio do intérprete, “não acha prudente que eu vá

sem minha própria orquestra” 26

(TINHORÃO, 2010, p.317).

Aqui o autor deixa claro que Getúlio foi o responsável pela ida de Carmen Miranda

para a Broadway e, segundo o autor, achou conveniente que ela fosse com sua própria

orquestra. Assim, ela levou sua banda, palavras de Carmen Miranda na citação acima, por ter

levado consigo sua banda, que acarretou em críticas severas a ela por ter tido essa atitude,

pois é sabido que as elites cariocas criticaram duramente Carmen Miranda por ter levado

negros consigo representando os brasileiros.

Assim, como o “produto” música urbana de origem popular, entregue desde

a década de 1940 à iniciativa de grupos heterogêneos de compositores

profissionais (a esta altura integrados inclusive por médicos como Joubert de

Carvalho e de Alberto Ribeiro, e advogados como Humberto Teixeira e Ari

Barroso), tinha de enfrentar agora, na década de 1950, além das gravações

originais estrangeiras, a avalanche das “versões” com que se acomodavam as

novidades da música internacional ao analfabetismo das grandes camadas,

sua decadência foi inevitável. O samba-canção florescente das décadas de

1930 e 1940 abolerou-se (chegando-se à tentativa de criação de um

hibridismo chamado de sambolero), a produção dos compositores das

camadas mais baixas – considerada “música do morro”– não chegava mais

aos discos (exceção feita aos sambas de enredo das escolas de samba,

beneficiados pela atração dos desfiles carnavalescos junto à classe média) e

as criações baseadas no aproveitamento dos sons rurais diluíram-se de vez

nos arranjos de orquestra (caso do baião), encomendados na tentativa de

torná-los palatáveis para o gosto da classe média (TINHORÃO, 2010,

p.325).

Neste cenário, há um distanciamento do povo de sua cultura originalmente brasileira.

“O samba-canção florescente das décadas de 1930 e 1940 abolerou-se (chegando-se à

tentativa de criação de um hibridismo chamado de sambolero)”(TINHORÃO, 2010, p.325).

Nessa intersecção entre o proibido à expressão nacional e produto de exportação.

Quando tratamos do tema Estado Novo, na Era Vargas, o samba passa a ser apoiado

como expressão popular urbana e utilizado como elemento de construção de uma identidade

nacional. Esse gênero, que até o ano de 1916 era proibido pelo Código Penal e rejeitado

26

Todas as manobras envolvendo a viagem de Carmen Miranda aos Estados Unidos e sua implicação com a

chamada Política da Boa Vizinhança instituída pelo governo de Franklin Roosevelt, para ganhar a simpatia dos

latinos submetidos ao imperialismo norte-americano, estão pormenorizadamente relatadas pelo autor (Tinhorão)

em seu livro O samba agora vai...: a farsa da música popular no Exterior. Rio de Janeiro: JCM, 1969.

Page 53: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

52

socialmente, torna-se elemento primordial de representatividade de um povo que, a partir

dele, passa a sentir-se um “ser brasileiro”, segundo Siqueira.

O ideário da urbanização, como já se referiu, em pleno processo de se

constituir, tomou e abandonou diferentes formas musicais, verificando-se no

período ser o samba a expressão máxima da “ginga”, o contraposto nacional

do “swing” jazzístico. Assumida pelo samba a feição de maioridade,

capacitou-se o mesmo, como se verifica, por exemplo, com Carmen Miranda

e Bando da Lua, a ser instrumento de exportação e de elaboração de

estratégias de boa vizinhança, como se verificou no caso da Segunda Guerra

Mundial. E não por acaso Carmen Miranda foi eleita a “Imperatriz do

Samba”.

Dessa forma, o samba transforma-se de elemento espiritual da etnia negra,

que tem um modo de elaboração próprio, em elemento de reprodução do

capital e da ideologia dominante. Torna-se o seu contrário (SIQUEIRA,

2012, p.164).

Segundo o autor, pode-se observar a dicotomia que envolve toda a questão do governo

de Getúlio Vargas quando este se apropria do samba, pois o tira da marginalidade e o

transforma em elemento catalizador, atendendo à demanda do projeto do Estado nacional,

representando um governo unificador dos povos. Torna-se, assim, o contrário do que era,

passa de marginal a produto do capital e da ideologia dominante. Dessa forma, Siqueira

reafirma as contradições que envolvem a trajetória do samba na Era Vargas.

É curioso lembrar que, originalmente, o samba é uma criação espontânea

para abrilhantar encontros festivos; é o “sujeito” da história no final do

século XX e para atender ao mercado, utilizando formas de sucesso,

transforma-se em “objeto” do capital do século XX. Viu-se que no ambiente

citadino da capital do país, antigos e novos segmentos populares se

confrontaram com a implantação de um processo de proletarização. Como

consequência, este levou homens pobres de diversas etnias ao convívio com

os negros e aqueles puderam, dessa forma, absorver as práticas culturais

destes, influenciando e sendo por eles influenciados (SIQUEIRA, 2012,

p.165).

Nota-se que novamente o samba de alguma forma acaba por unir etnias. Mesmo tendo

origem especificamente africana, traz consigo um quê de união de povos, principalmente no

que tange à grande parte da população das classes mais baixas. Pois, segundo Siqueira, o

samba surgiu como sujeito propagador de alegria e festa, de união étnico-social, mas ao

mesmo tempo há a questão do branqueamento do samba. Getúlio identifica esse “poder” do

samba e o utiliza como elemento unificador dos povos e percebe que pode tirá-lo da

marginalidade e utilizá-lo como catalizador das massas; porém, o samba tem sua dinâmica

própria.

Page 54: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

53

A forma música samba, ao derivar-se, acaba por passar por interessante

processo histórico. Criado dentro de uma comunidade pobre e negra, até

mesmo pelas necessidades de sobrevivência cultural, ao tomar para si as ruas

e praças, acaba por tornar-se parte da vida de camadas pobres, nas gafieiras e

da vida de classes altas nos salões elegantes.

Nesse caminho, passou o samba por um processo de branqueamento

ideológico e físico, no qual um novo mito, o da música popular urbana,

apropria-se dele, que faz sucesso. Ao mesmo tempo, esse novo mito o

imobiliza na “ciência” do folclore, este sim das comunidades negras

(SIQUEIRA, 2012, p.166).

Nesse ponto fica nítido o tom da crítica de Siqueira, pois quanto mais nos

aprofundamos no tema proposto, mas percebe-se que houve uma manobra. Não vem ao caso

se esta foi intencional por parte de todos os envolvidos, mas o fato é que o processo histórico

da construção da identidade nacional, realizada por meio das políticas do governo de Getúlio

Vargas, trouxe muitos questionamentos e possíveis conclusões que podem gerar grande

revolta por parte dos que foram prejudicados historicamente.

Vejam-se alguns exemplos desse embranquecimento premeditado.

Em 1932, Herivelto Martins fora incumbido de produzir e animar para a

Rádio Nacional um programa que reproduzisse, em São Paulo, o clima de

festa do carnaval carioca. Organizou uma miniescola de samba, inspirada em

grupos que havia observado no morro de São Carlos. Não obstante o sucesso

do programa, o diretor artístico da rádio, Sérgio Vasconcelos, moveu-se para

contratar um novo grupo para substituir os artistas negros escolhidos por

Herivelto, que estranhou o fato, uma vez que:

“havia reunido a nata dos artistas do ramo. E os que mantínhamos na reserva

para uma emergência eram tão bons como os titulares. Aos poucos,

entretanto, Sérgio Vasconcelos revelaria a verdade. O que ele queria era

embranquecer o grupo. Foi um choque. Eu vinha de uma família que não se

permitia sequer falar em racismo. Minha primeira namorada fora uma

escurinha meiga lá da Barra do Piraí. Também a primeira esposa, Dalva de

Oliveira, mãe dos meus filhos Ubiratã e Peri Ribeiro, era mulata. [...]

Relutei, insisti, mas os interessados no anúncio começavam a chegar à Rádio

Nacional” (REGO apud SIQUEIRA, 2012, p. 166-167).

É notória a forma como o samba foi “moldado”. Então, pode-se deduzir que houve

uma mudança no percurso. O samba teria seguido uma dinâmica diferente caso Getúlio não

tivesse interferido. Dentro desse processo histórico, no entanto, o samba teve grande

relevância na construção da identidade nacional, ainda que trazendo consigo o estigma da

exclusão dos negros, mas ao mesmo tempo de inclusão do samba as sociedades antes não

acessadas por ele.

O problema do embranquecimento do samba abrange um fator ideológico e

outro econômico. [...] A composição “samba” podia ser apresentada no

Page 55: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

54

Rádio, mas era considerada inconveniente a presença de muitos negros no

estúdio ou no auditório na condição de artistas. Dessa forma, o preconceito

mascarava e servia de biombo tanto para manter o estigma de que

os negros eram incapazes (substrato ideológico) quanto para

eliminar a concorrência de sua mão de obra como artistas (SIQUEIRA,

2012, p.167).

Nesse processo histórico, repleto de adequações do samba aos gostos da indústria

fonográfica. Segundo o autor, o processo se desenvolveu de forma injusta no que tange à

condição do herdeiro desse gênero – o negro – e de sua cultura, que foi distorcida, moldada,

transformada em outra. Tudo isso ocorreu em prol da construção de uma identidade nacional;

algo espontâneo foi destruído para dar lugar a algo intencional, em nome da busca por uma

identidade. Pode-se entender esse processo desta forma:

É fácil compreender que o discurso por uma cultura nacional e, por extensão,

de uma identidade nacional, se pauta pela questão racial. Ao negar o outro,

torna-se dele algo que se transforma em pertencente ao novo modelo. O

outro lado da negação do papel do negro na construção de uma cultura

popular é o embranquecimento da cultura do próprio negro, que se apresenta

então como algo a ele estranha.

[...]

A contradição entre a repressão e a condenação das práticas da cultura negra,

de um lado, e sua exaltação e consumo como produto nacional, do outro,

apresentaram como resultado a apropriação do samba pela cultura

dominante, exigindo-lhe inevitável embranquecimento (SIQUEIRA, 2012,

p.170).

2.2.3 O Samba e a escolha de seus representantes

A seguir, Siqueira lista os brancos e mestiços que foram escolhidos para compor o

elenco, desta vez mais aceitável, para representar o gênero musical tipicamente brasileiro e

instrumento de construção de uma identidade nacional, ou seja, o samba.

Segundo ao autor, houve “preferência” por artistas brancos como os mais geniais

sambistas, pois estes representariam os brasileiros de forma mais “digna”, trazendo da classe

média letrada o verdadeiro artista brasileiro, assim como Carmen Miranda e Ary Barroso.

Visava também o embranquecimento restringir o acesso dos sambistas

negros aos ganhos reais do mercado musical, impossibilitando a mobilidade

social daquele segmento da sociedade. Portanto, o viés ideológico ocultara o

interesse econômico real (SIQUEIRA, 2012, p.172).

Page 56: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

55

Assim, segundo o autor, houve certo boicote ao negro e à sua cultura, de origem

africana, com o intuito de descaracterizá-la e transformar o samba em algo pertencente aos

brancos e mestiços.

Na década de 1931 a 1940, dentro do período conhecido como “época de

ouro” da música popular brasileira, Jairo Severiano encontrou 2.176

gravações de sambas, representando 32,45% do repertório fonográfico.

Somadas às marchinhas, que muitas vezes eram compostas por sambistas

negros, ultrapassava 50% da produção. Isso representava cifras consideráveis

no mundo fonográfico, nos ganhos de impressão de partituras e de direitos

autorais. Quer dizer, embora o samba responsável pela “época de ouro”

tenha surgido no Estácio, criado por sambistas negros e pobres, estes

permaneceram pobres.

[...]

O samba embranqueceu-se para atender à demanda das camadas médias,

obtendo feições mais próprias para o corpo burguês carioca. Em uma

sociedade racista, o samba não poderia ser negro e os dividendos do seu

comércio tampouco poderiam ser divididos com sambistas negros

(SIQUEIRA, 2012, p.172).

Magno Bissoli Siqueira difere de Tinhorão ao analisar o processo histórico o qual o

samba trilhou, pois enfoca o embranquecimento do samba, trazendo à tona a questão do

racismo. Já Tinhorão se atém a documentar a música popular brasileira por meio de uma obra

extensa, investigando as origens do samba, sendo inclusive utilizado nos estudos de Siqueira e

Garramuño.

2.2.4 O Samba e o Tango, uma análise comparativa do processo de construção de

símbolo nacional.

Voltemo-nos ao estudo realizado por Garramuño, partindo de uma análise macro

(Brasil) para uma análise micro (cidade/bairro) e trazendo um estudo comparativo entre a

importância do samba para o Brasil e do tango para a Argentina na construção da identidade

nacional. A autora trata da conversão do tango e do samba em músicas nacionais, tratando da

combinação de sentidos entre o primitivo e o moderno e este paradoxo acaba por fomentar a

canonização desses ritmos.

Durante as décadas de 1920 e 1930, quando o impulso pela construção de

uma modernidade autóctone se torna quase hegemônica, o Tango na

Argentina e o Samba no Brasil começam a ser percebidos como ritmos

nacionais. Em algumas das constelações de sentidos que é possível isolar na

história dessa conversão do tango e do samba em músicas nacionais, há uma

figura que persiste, apesar de seus sentidos se transformarem e proliferarem.

Trata-se de uma paradoxal – num primeiro olhar – combinação de sentidos

entre primitivo e o moderno, já que, nessas décadas de intensa

Page 57: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

56

modernização, são precisamente os traços mais primitivos e exóticos que

serão enfatizados ao se ressaltar as características nacionais do tango e do

samba [...]. Apesar de no final do século 19 ser exatamente essa imagem

primitiva a razão da exclusão de ambos os ritmos da nação, será esse mesmo

primitivismo – que variou em suas significações culturais – o que será

esgrimido como razão para defini-los como símbolos nacionais, quando se

produzem suas respectivas canonizações (GARRAMUÑO, 2009, p.13-14).

Garramuño faz uma análise comparativa entre a importância do samba para o Brasil e

do tango para a Argentina. A autora investiga as redes e os processos culturais que levaram

tanto o tango como o samba a se tornarem, em seus respectivos países, ritmos nacionais nas

primeiras décadas do século XX. Segundo Garramuño, é verdadeira a premissa de que a

cultura é sempre um campo de conflitos, dessa forma ela investiga a dinâmica em que se

deram essas tensões na história do samba e do tango. A autora ainda examina as relações

estabelecidas por esses ritmos, inicialmente entre si e em seguida em outras esferas, como na

moda, no cinema, na pintura, entre outras formas de expressão artística. Estas são ligadas aos

vanguardistas na Argentina, assim como aos modernistas no Brasil, e associadas ao sentido

mais íntimo desse processo da construção de uma identidade nacional. Dessa forma, segundo

a autora, esses ritmos rapidamente tornam-se um palco no qual se apresentam Oswald de

Andrade e Tarsila do Amaral, Carmem Miranda, Carlos Gardel, entre outros.

O paradoxo dessa “modernidade primitiva” não é exclusivo do tango e do

samba. É possível encontrá-lo em Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade,

em Mário de Andrade e Jorge Luis Borges, no grupo Martín Fierro, e na

Revista de Antropofagia, em Oliverio Girondo e Heitor Villa-Lobos ou

Radamés Gnatalli. Como um movimento sinuoso e às vezes aporético, esse

paradoxo define um núcleo de problemas em torno da nacionalização e

modernização de uma cultura latino-americana, na qual o tango e samba

funcionam como figuras de sentidos contraditórios e ambivalentes. Chamo

esse paradoxo de “modernidade primitiva” porque recusa o pensamento

dicotômico que separa os dois conceitos, mas principalmente porque, como

conceito, o primitivismo deve ser pensado juntamente com a modernidade, já

que é esta última que o cria como conceito (GARRAMUÑO, 2009, p. 14).

Nota-se a preocupação da autora em definir os conceitos em que se firma para

discorrer sobre o tema que por si só carrega consigo uma bifurcação, uma dicotomia.

Assim, a “modernidade primitiva” pode ajudar a explicara questão do samba e do

tango argentino como elementos cultuais nacionais.

Por volta de 1937, entretanto, essa paisagem terá se modificado. Carmen

Miranda grava uma canção, “O tango e o samba”, em que cada uma dessas

músicas se assume como caracteristicamente nacional. Não é apenas a letra

desse samba que marca a diferença entre os argentinos que cantam tango e os

Page 58: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

57

brasileiros que cantam samba; a música desliza de forma sinuosa, de uma série

de compassos com sonoridades claramente referentes ao mundo do samba – a

batida do samba no violão, os instrumentos percussivos que marcam o ritmo –

para as sonoridades tangueras, introduzidas pelo bandoneon. Até Carmen

Miranda, é possível perceber uma modulação de voz mais aguda e rápida –

quase “sorridente” – ao cantar o samba, frente a uma modulação de voz mais

grave, com um acentuado alongamento das vogais, para cantar o tango em

espanhol. Se em 1937 esses ritmos já servem para definir identidades

nacionais, cada um deles, porém, se manifesta de forma tão específica e tão

diferenciada do outro que a canção se torna um verdadeiro fandango de

diferenças culturais, especialmente quando, na segunda parte, canta-se tango

em espanhol com um fundo musical feito com a batida do samba

(GARRAMUÑO, 2009, p. 15-16).

2.2.5 O Samba e tango como Gêneros nacionais

Segundo a autora, o hibridismo cultural ultrapassou os limites do território nacional.

Assim, percebe-se que a compreensão do nacional pode dar-se comparativamente, em

princípio, entre culturas distintas.

No caso do tango e do samba, a intervenção do Estado em seu

desenvolvimento é um elemento realmente importante, apesar de posterior ao

processo de sua “formação”, num sentido mais tradicional. Será com Getúlio

Vargas e Domingos Perón no poder – não por acaso ambos são exemplos,

guardadas suas substanciais diferenças, de governos populistas –, durante as

décadas de 1940 e 1950, que os dois ritmos se encontram com o poder estatal

de maneira mais direta.

A nacionalização cultural dessas formas, entretanto, pode ser entendida como

processo finalizado antes da intervenção propriamente dita do Estado na

música; no caso do samba, essa intervenção foi muito mais significativa e

quase simultânea a esse outro processo de nacionalização que prescinde, ou se

concretiza à margem, do Estado, diferentemente do tango, que perderá

celebridade durante o peronismo. Essa nacionalização não deve ser

confundida, apesar de abarcá-lo, com o processo de popularização dessas

músicas (GARRAMUÑO, 2009, p. 22).

O Tango e o samba (Amado Régis)

Chegou a hora!

Chegou!...Chegou!

Meu corpo treme e ginga

Qual pandeiro

A hora é boa

E o samba começou

E fez convite ao tango

Pra parceiro

Hombre, yono sé por qué te quiero

Yo te tengo amor sincero

Diz a muchacha do Pará

Pero, no Brasil é diferente

Yo te quiero simplesmente

Page 59: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

58

Teu amor me desacata

Habla castellano num fandango

Argentino canta tango

Ora lento, ora ligeiro

Eu canto e danço, sempre que possa

Um sambinha cheio de “bossa”

Sou do Rio de Janeiro

(Canta Carmen Miranda, gravação de 1937.) (apud GARRAMUÑO, 2009).

A letra da música, interpretada por Carmen Miranda, traz a ideia de parceria entre o

samba e o tango, pela importância que cada um deles tem culturalmente e socialmente, e por

seu caráter de identidade nacional. Dessa forma esses dois gêneros musicais distintos

representam um papel semelhante, de união nacional, e a música de Carmen Miranda fomenta

o diálogo cultural entre o samba e o tango, o Brasil e a Argentina.

O samba de Amado Régis, cantado por Carmen Miranda, fala de uma

relação entre o tango e o samba que foi, durante os anos de

institucionalização dessas músicas como símbolos nacionais, muito mais

fluida e complexa do que a história recente desses ritmos permite

reconhecer. Não se trata, como a própria música indica, de uma relação de

semelhança e nem mesmo de maiores contatos concretos, apesar do fato de

que, realmente, existiu muito mais contato real do que seria possível supor.

Porém, a confluência do tango e do samba, ou seu antecessor, o maxixe, em

alguns cenários históricos, autoriza pensar num estudo comparativo que se

sustenta não mais sobre a comparação de objetos semelhantes ou nos

contatos e relações que esses objetos historicamente estabelecem entre si,

mas sobre a manifestação, em formas diferenciadas, de uma série de

histórias e operações formais comuns.

Quando em 1913 ocorreu o rumor de que o Papa Pio X pretendia

excomungar o tango, a revista brasileira Cá e Lá publicou os seguintes

quartetos:

Se o Santo Padre soubesse

O gosto que o tango tem

Viria do Vaticano

Dançar maxixe também.

(GARRAMUÑO, 2009, p. 22-23)

Na citação apresentada há uma defesa do tango e, paralelamente, do ritmo brasileiro,

então em evidência, o maxixe.

As duas danças não se encontraram apenas em Paris; é comum encontrar

histórias nas quais aparece uma permanente confusão entre elas. O próprio

Vicente Rossi chega a propor, já nos anos 1930, que foi no Rio de Janeiro

que as “damas” da alta classe argentina, quando viram a elite brasileira

dançar maxixe, resolveram que elas também poderiam dançar o tango. Essas

confluências entre tango e maxixe bem como o processo de nacionalização

do tango e do samba narram uma história possível da nacionalização de uma

cultura latino-americana e periférica, sua constituição como cultura nacional

Page 60: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

59

e moderna ao redor dos anos 1930 do século 20 (GARRAMIUÑO, 2009, p.

23).

Essa confluência tratada pela autora, entre o Brasil e Argentina, encontra-se na busca

por um símbolo nacional, pois este é protagonista na construção de uma identidade nacional.

A comparação entre dois países procura não somente evitar a

excepcionalidade nacional, para encontrar funções semelhantes em outro

espaço nacional, mas permite perceber certos objetos, cuja retenção dentro

de uma tradição poderia obstruir a compreensão: o papel do

internacionalismo na construção de um símbolo nacional, a construção em

trânsito das ideias e propostas estéticas, as funções do olhar do outro na

construção da identidade nacional. [...]

Não somente houve tangos e sambas de diversas conotações ideológicas e

culturais, numa mesma etapa cronológica, mas, além disso, muitas dessas

composições se opuseram explicitamente a outras formas contemporâneas,

constituindo-se em espaços privilegiados de disputas e polêmicas. Em 1930,

por exemplo, ocorre uma documentada polêmica entre Noel Rosa e Wilson

Batista em torno da antítese malandro/otário, ao mesmo tempo que Borges

discutia as diversas teorias acerca da origem do tango, como uma questão de

legitimidade cultural [...] Em algum momento determinado dessa cronologia,

o tango e o samba não somente se constituíram como formas de intervenção

cultural, mas produziram polêmicas maiores que não se limitaram à música,

atravessando suas culturas (GARRAMUÑO, 2009, p. 23-24).

Assim segue a discussão comparativa sobre a qual o estudo em questão tem se

debruçado, pois há muitas confluências entre o tango e o samba.

Há uma ideia bastante difundida, nas histórias dos dois ritmos, que afirma

existir uma progressiva transformação, desde as obscuras origens, nos

subúrbios de suas culturas, até sua canonização nas décadas de 1930 e 1940.

Segundo essas histórias, esse processo só foi possível porque o tango e o

samba, juntamente com as culturas que lhe deram origem, teriam se

“civilizado”. Existe uma teologia, modernista e evolucionista, muito

semelhante na maneira com que tradicionalmente se abordam essas danças e

músicas, que parte de uma pressuposta origem primitiva – mais próxima “em

sua essência” da autenticidade das classes baixas, que produziram esses sons

– e se dirige a uma sofisticação maior, quando de sua apropriação por outras

classes. Vários trabalhos de pesquisa colocaram em xeque essas hipóteses,

desde os estudos de Hermano Viana, que demonstram a participação das

elites na conformação do samba, mesmo antes do seu suposto

branqueamento, até os estudos musicológicos de Carlos Sandroni, que

demonstram que o samba canonizado, depois dos anos 1930, é um samba de

marcadas características associadas à música africana ou negra, pouco

importando a origem étnica ou social de seus compositores

(GARRAMUÑO, 2009, p. 27).

Esse tema abordado por Garramuño foi bem enfatizado anteriormente por Siqueira,

que trata com veemência a forma como se deu o processo histórico de branqueamento do

samba brasileiro. Sua crítica levanta uma forma de racismo cultural que acarretou na posse do

Page 61: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

60

“objeto” samba por parte de uma indústria fonográfica a serviço de uma política que, juntas

(REGO apud SIQUEIRA, 2012, p. 166-167), estavam incumbidos de construir uma

identidade nacional.

Os sentidos construídos pelos diversos discursos elaborados sobre o tango e

o samba também não abonam essa hipótese de seu progressivo e linear

“saneamento”. No trabalho que artistas e intelectuais argentinos e

brasileiros, envolvidos nos processos de modernização e das vanguardas nos

anos 1920 a 1930 (Lima Barreto, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Mário de

Andrade, Manuel Gálvez, Martínez Estrada, Jorge Luis Borges, Oliverio

Girondo), realizaram sobre os dois ritmos, é possível ler uma estratégia

comum, apesar de suas diferentes manifestações: eles tratam de elaborar o

caráter “primitivo” e sensual desses produtos como uma marca diferencial.

Essa mesma característica, que durante os primeiros anos havia servido de

motivo suficiente para a exclusão dessas danças insolentes (como acontece

nos textos de Aluísio Azevedo ou Leopoldo Lugones), é agora ressignificada

como signo de modernidade. É necessário dizer que esse primitivismo já não

é o mesmo, uma vez que nos anos 1930 vai

conotar – por uma série de questões nacionais e internacionais que este livro

buscará discutir –, simultaneamente, o nacional e o moderno

(GARRAMUÑO, 2009, p. 27).

A autora trabalha com o paradoxo das modernidades primitivas, tratando do samba e

do tango. Nota-se que ela chama a atenção para a ressignificação do samba e do tango como

símbolos de modernidade. O que antes tinha conotação de primitivo, no sentido de original,

passa a trazer consigo um tom de modernidade nacional.

A partir da análise do tango e do samba, é possível perceber uma

ambivalente coincidência que os fará aparecer como produtos anfíbios,

assinalando simultaneamente para o nacional, que viria de um passado

“original”, e para o moderno, de modo que alcançará êxito em Paris e nos

ambientes internacionais que ditam moda e propõem as formas da

modernidade. A transformação dos sentidos do primitivo e sua progressiva

associação com traços modernos, o caráter contingente do primitivismo e sua

funcionalidade para uma cultura latino-americana, na construção de uma

modernidade particular, é o que se percebe ao reconstruir a rede de sentidos

culturais que se vinculam ao tango e ao samba (GARRAMUÑO, 2009, p.

28).

A autora faz uma analogia comparando o entre o samba e o tango, classificando-os

como produtos anfíbios, possivelmente devido à metamorfose pela qual passam esses seres no

decorrer de sua vida. Assim, o samba e o tango, vindos de algo primitivo, encontram-se com o

mais moderno no tocante à referência da arte apresentada em Paris.

Nos quadros e desenhos de Emiliano Di Cavalcanti, Emilio Pettoruti ou

Cecília Meireles, é possível perceber uma estranha combinação de

linguagens artísticas vanguardistas e um retorno a visualidades regionalistas.

Operação de distanciamento da representação costumbrista e realista, que

Page 62: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

61

havia predominado durante o século 19, a mistura de elementos

aparentemente contraditórios – uma linguagem moderna de vanguarda e a

insistência na representação de uma forma nacional e primitiva – foi sua

mais clara manifestação (GARRAMUÑO, 2009, p. 28).

A autora aborda essa mistura de elementos, que à primeira vista tem conotação

contraditória, como conceito, ou seja, o primitivismo deve ser pensado em relação constante

com a modernidade. Cabe considerar quão latente é essa questão nas formas artísticas, seja no

samba, nas artes plásticas de Di Cavalcanti, na obra de Cecília Meireles, quando tratam do

tema Brasil, pois a arte moderna representa as formas originais da cultura brasileira.

A indústria cinematográfica terá uma importância decisiva nessa simultânea

associação do tango e do samba com o nacional e o moderno. O primeiro

longa-metragem argentino (Tango!, de Luis Moglia Barth) escolhe como

tema o mundo da periferia e do tango, para estabelecer no cinema – que na

época pode ser considerado como epítome do moderno – uma tradição

nacional do filme de tango. Por seu lado, o samba também passa a ser

protagonista na criação de uma tradição cinematográfica brasileira, a do

filme de carnaval. Muitos dos primeiros filmes argentinos e brasileiros

tomaram o tango e o samba – suas histórias, seus mundos e seus personagens

típicos – como fonte de inspiração. A continuidade entre o mundo da música

popular e do cinema, nesse cinema primitivo, é claramente perceptível:

músicos, cantores e letristas transitam frequentemente entre um mundo e

outro, convertendo-se em atores, cenógrafos, roteiristas ou diretores de

filme. [...] essas problemáticas atravessarão os filmes de Carlos Gardel e

Carmen Miranda. Passo importante na nacionalização do tango e do samba,

essas produções também narram, a sua maneira, uma possível história de

cada um deles (GARRAMUÑO, 2009, p.28-29).

O processo de nacionalização do samba se deu através de algumas formas artísticas de

representação deste. Seja nas artes plásticas, seja no cinema, o samba foi utilizado e

convertido em símbolo de identidade nacional brasileira. A autora aborda essa contraditória

relação entre o primitivo e o moderno estabelecendo uma análise comparativa e ao mesmo

tempo somatória das partes, tratando o samba e o tango como símbolos dos processos

civilizatórios tanto brasileiro como o argentino. O primitivismo e o moderno como síntese na

construção da identidade nacional.

A autora trata da relação tênue entre músicos e atores ou diretores, indicando essa

duplicidade de papéis representados por sambistas, como é o caso dos filmes de Carmen

Miranda. Um exemplo interessante é o de Adoniran Barbosa, que começou no cinema e lá

conheceu O Demônios da Garoa, assim enveredando de forma mais veemente na música.

Assim se deu a história do samba nacional, do século XIX aos anos de 1960. No

próximo capítulo, no qual tratar-se-á do samba paulista, retomaremos essa trajetória da

Page 63: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

62

historiografia do samba e suas peculiaridades políticas, econômicas e sociais, além de

apresentar uma análise sociológica e antropológica do gênero.

3. CAPÍTULO 3 - O SAMBA PAULISTA DO RURAL AO URBANO

3.1 O Samba rural paulista

Das diversas formas de Samba, surgem várias nomenclaturas: Samba Antigo, Samba

Caipira, Samba Campineiro, Samba de Pirapora, Samba de Terreiro, Samba de Umbigada,

Samba Lenço, Samba Paulista, Samba Sertanejo, Batuque, ou, entre seus praticantes,

simplesmente Samba. – Samba de roda/Samba de bumbo/Samba rural.

Quando focamos no interior de São Paulo, Geraldo Filme, afirma que os sambas de

roda realizados pelos negros em Pirapora do Bom Jesus, em 1808, seriam a semente do

gênero por aqui, ao menos é disso que se orgulha a cidade no seu site oficial.

Romeiros fazendeiros levavam os escravos que faziam um batuque a distancia. Após a

abolição da escravatura, os ex-escravizados e seus descendentes continuaram a frequentar

Pirapora durante as Romarias e datas festivas. No começo do século 20, foram construídos

dois barracões para abrigar os romeiros que não tinham onde se hospedar, os negros ficavam

nestes barracões e ali mesmo realizavam o samba.

As formas de samba que praticavam em suas cidades, eles as faziam em Pirapora para

festejar o Santo, eram os sambas de Umbigada, Samba de Lenço jongo, o tambu entre outros.

A forte presença da zabumba (bumbo) que fazia o compasso do ritmo da dança, aos poucos

provocou a fusão da denominação dos sambas que se praticavam nos barracões de Pirapora

como samba de bumbo ou samba de Pirapora que Mario de Andrade preferiu chamar de

“Samba Rural Paulista”.

A partir das décadas de 1910 e 1920, a presença crescente dos batuqueiros em Pirapora

a tornou no reduto do samba paulista, e os batuques dividiam o motivo de atração dos

romeiros com a festa religiosa – um sincretismo, a fusão de diferentes elementos, desde

elementos culturais aos religiosos, trazidos das origens africanas à elementos do catolicismo,

essa mistura de crenças e culturas levaram os padres responsáveis pela igreja de Pirapora

decretarem a demolição dos barracões. Estes eram considerados, o antro das festividades

profanas, tentando desta forma coibir esta manifestação artística/cultural não compreendida na

época. Foi do Samba de Bumbo de Pirapora que originou uma das mais importantes

influências dos primeiros cordões carnavalescos de São Paulo.

Page 64: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

63

3.1.2 O que é o samba paulista?

O apontamento de Mário de Andrade da suposta primeira ocorrência escrita do

termo “samba” em São Paulo (recolhida numa ata da Câmara Municipal de

Avaré, datada de 1889 e assinada por um fiscal municipal)mostra a vagueza de

seu uso antigo: “Não me consta que houvesse jogo de búzio e cateretê ou

fandango em outras casas, nas quais apenas fizeram tocatas, que são

divertimentos próprios da Noite de Natal, havendo nos quartos do capitão

Gabriel um divertimento denominado samba, o qual não me pareceu proibido

pelas posturas” (extraído do Dicionário Musical Brasileiro, de Mário de

Andrade).

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21).

Anexa a esta pergunta temos outras que a completam, por exemplo: O que é o samba

rural paulista? O que é o samba paulista urbano? Em que o samba paulista se difere do

carioca? Essas questões preenchem o universo ao qual esta pesquisa se propõe responder, para

tanto, convém um aprofundamento na sua historiografia, como feito anteriormente quando

tratamos no capítulo da história do Samba. O que essa pesquisa aponta é que o samba rural

paulista se difere do urbano e do carioca, de diversas formas, são elas: o toque caipira o qual

tratou Antônio Cândido(1998), este trazendo como um dos seus principais elementos a viola,

além da utilização do bumbo, e suas características de contar as crenças e o cotidiano, isto no

final do século XIX ao início do século XX, nas plantações de café, na pobreza, a falta de

dinheiro, de reconhecimento da cultura negra, o papel do branco no samba, pois estes

começam a participar dessas romarias e dessa mistura cultural, quem traz esses elementos nas

suas obras, são, principalmente: Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro.

Já quando nos debruçamos sobre o samba urbano de São Paulo, obrigatoriamente

deve-se citar Adoniran Barbosa, este com Demônios da Garoa, Germano Mathias e o zoólogo

da USP Paulo Vanzolini, entendendo que estes são os representantes de grande relevância na

história do samba paulista urbano. Posteriormente, Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro

vieram engrossar o coro do samba paulista na capital, principalmente na Praça da Sé com os

engraxates sambistas. Daí começa uma espécie de fusão entre o urbano e o rural. Neste espaço

urbano com o advento dos rádios e revistas o acesso ao samba carioca, também trouxe suas

contribuições culturais, estas com grande influência na criação e profissionalização do

carnaval paulista.

Osvaldinho da Cuíca conta uma de suas primeiras experiências como músico sambista

em São Paulo quando ainda nos seus vinte anos de idade, mas já um profissional que

acompanhava outros sambistas. Quando ninguém mais que Adoniran Barbosa – já

reconhecido como um grande artista – o chamou para uma conversa.

Page 65: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

64

Adoniran fez um rápido “Psiu! Psiu!” e já foi me perguntando: “e você, rapaz,

o que é que você faz? O que é que você faz?” – repetir tudo o que falava era

uma característica sua. “eu sou do conjunto Acadêmicos da Paulicéia”,

respondi, ao que ele retrucou “Por que Acadêmicos da Paulicéia?”. Tentei

falar-lhe que nós fazíamos samba paulista, mas ele logo me interrompeu

dizendo “Isso é bobagem, isso é bobagem. Não existe essa história de samba

paulista, existe samba brasileiro! Existe samba brasileiro!” Aquela intromissão

me deu raiva, mas preferi não entrar em confusão. Fiz que concordava e deixei

ele falando sozinho. Ainda não tinha sofisticação para argumentar sobre o

samba paulista e, ademais, naquele momento, assim como ele, o que eu fazia,

mesmo, era o samba carioca, o “telecoteco” que se tornou nacional via rádio e

bolachões de 78 rpm. Nem passava pela minha cabeça que as batucadas com

que eu me deleitava nas ruas ou nos cordões carnavalescos tinham algo de

muito valioso e particular. Pesquisar o samba que nasceu em São Paulo no

final do século XIX, então, nem em sonho!

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 20).

Osvaldinho reconhece que assim como Adoniran, acabou por ser envolvido no ritmo

do samba carioca que era visto e reconhecido como o nacional, até então. Tanto é que segue

explicando que após sua releitura que lhe deu embasamento e reconhecimento de algo que ele

era um dos protagonistas.

Ele (Osvaldinho) tinha uma relação interpessoal com Adoniran, criou-se essa relação,

após o primeiro encontro na TV Record. Quando, o ainda menino, Osvaldinho da Cuíca entra

para o cordão carnavalesco Garotos do Tucuruvi, em 1958, já se destacava pela sua habilidade

precoce na confecção e manejo dos instrumentos percussivos, e através dessas habilidades se

tornaria um dos batuqueiros mais virtuosos do país.

Na segunda metade da década de 1960, Osvaldinho conciliava um estilo de vida

tradicional com severas doses de vanguarda, que resultaria em importantes parcerias em sua

carreira. "Em 1967, entrei para o Demônios da Garoa, junto com o Adoniran", recorda com

emoção do sambista paulista por natureza e de nomes saudosos da música brasileira com

quem teve a oportunidade de conviver, como Ataulfo Alves, Ismael Silva, Nelson

Cavaquinho, Clementina de Jesus, Cartola e Geraldo Filme.

Em 1974, Osvaldinho grava seu disco de estreia como intérprete, produzido pelo selo

Marcus Pereira. O músico recorda o episódio em que José Ramos Tinhorão - importante

crítico musical - publica no Jornal do Brasil uma crítica sobre o disco: "Ele começou me

elogiando como profissional, mas 'meteu o pau' no meu trabalho dizendo que eu não

acrescentei nada à cultura paulista regional. Que o meu disco refletia um padrão carioca de

samba e não exaltava o samba rural de São Paulo."

Ao contrário do que se espera, a reação do músico foi inusitada: "Ao invés de eu achar

ruim, me tornei amigo do Tinhorão, agradeci e comecei a militar pela valorização do samba

Page 66: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

65

de São Paulo", conta Osvaldinho, apontando o momento como "importantíssimo" para a sua

carreira.

Antes da consagração nacional do samba carioca nos anos 30, o termo

“samba” em São Paulo (como no resto do Brasil) não designava um gênero

musical especifico, mas apenas uma forma de lazer popular em que se tocava

música, na maioria das vezes de certa ascendência africana. Por esse motivo,

era comum entre os caipiras – São Paulo tinha uma população

majoritariamente interiorana – chamar de ‘samba’ uma parte de suas cantorias

festivas, principalmente aquelas em que os negros tomavam parte de maneira

mais ativa, tais como as que recebiam o nome igualmente genérico de

“batuque”. É verdade que o folclore regional qualificava algumas danças de

“samba”, tais como o “samba-lenço” e o “samba-de-umbigada”, mas também

não há qualquer evidência de que estas seguissem um padrão musical

determinado.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21).

Assim como citado no primeiro capítulo, o samba antes de mais nada surgiu como

uma expressão cultural de ascendência africana, com misturas de ritmos como citado por

Tinhorão: a fofa, o fado, o lundu, com maior enfoque na dança do que no gênero musical, pois

este variava. Já em São Paulo nos interiores, onde habitava a maioria da população paulista, o

que se aponta é para algo caipira, sertanejo. Um ponto importante na historiografia do samba

paulista são os apontamentos de Mário de Andrade, nos quais ele traz à tona a suposta

primeira ocorrência escrita do termo “samba” em São Paulo.

Nesta pesquisa pode-se observar que em São Paulo, assim como no restante do país

onde o samba surgiu, houve semelhança no caminho e na forma que o samba aparece, ou seja,

primeiro no interior da cidade de São Paulo e, posteriormente caminha para os bairros da

cidade de São Paulo, para no inicio do século XX, ter suas primeiras aparições, na região

central da capital, incluindo a esta o bairro do Bixiga, o qual se tornou um dos bairros mais

importantes da cidade, no que tange ao samba. Vamos utilizar dados fornecidos por

pesquisadores que conseguiram o relato de alguns dos atores desta história, a história do

samba paulista.

Aqui vale esclarecer a razão da utilização das obras bibliográficas, as quais nos

debruçaremos a seguir: Um Batuque Memorável no Samba Paulistano – Gomes, 2010 e

Batuqueiros da Paulicéia – Osvaldinho da Cuíca e Domingues, 2009. Essas duas obras trazem

relatos de atores que fizeram parte e que construíram a historiografia do samba paulista.

Quanto a obra de Osvaldinho da Cuíca e Domingues logo nas primeiras páginas encontra-se

sua importância, além de explicar, também mais razões da escolha de José Ramos Tinhorão,

como principal bibliografia de fundamentação teórica desta pesquisa, pois este teve influência

Page 67: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

66

vital nesta obra de Osvaldinho da Cuíca, além de fazer com que Osvaldinho revisse seu

posicionamento como elemento contribuinte do samba paulista e sua história, como veremos a

seguir:

[...] Em 1974, quando já era músico respeitado, Osvaldinho lançou um LP,

“Vamos Sambar – Com Osvaldinho da Cuíca e Grupo Vai-Vai”, e recebeu

uma severa crítica de José Ramos Tinhorão. O texto reconhecia-lhe o

enorme talento, mas afirmava que tal disco tinha pouco valor cultural porque

se limitava a reproduzir o samba feito no rio de Janeiro, ignorando a

produção própria da terra do autor. Osvaldinho não se defendeu, não

ironizou. Pelo contrário. Engoliu a decepção, a vaidade, e mergulhou em

suas memórias e começou a estudar com afinco as manifestações musicais

típicas do estado de São Paulo. Hoje, cerca de 30 anos depois, este livro

oferece ao público a melhor parte dos resultados de tanta dedicação.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 9-10).

Osvaldinho da Cuíca é um dos ícones do samba paulista, pois está intrinsicamente

ligado a ele em todas as formas de relações, pois além de ser músico, sambista e paulista

também tem um papel social no que se refere ao resgate e resistência de uma cultura paulista,

além de ser participante desta história de migração e hibridismo do samba rural com o urbano.

Desta forma, neste livro, Osvaldinho da Cuíca abrange toda a história do samba paulista com

propriedade de quem faz parte dela.

SAMBA DA PAULICÉIA

Na Barra Funda, compadre,

Eu vi a terra tremer

Ouvi no couro dum bode

Uma cuíca gemer

Era quizomba ou pagode,

Ninguém sabia dizer.

Até a lua lá no céu

Brilhava com mais prazer

E o Astro-Rei aparecia

Bem mais cedo pra ver

O samba da Paulicéia nascer.

O samba da Paulicéia nascer.

E viva a alegria do nosso terreiro

E viva a estandarte que glorificou

E verde e branco, Barra Funda, o primeiro,

Que Dionísio Barbosa criou.

(Osvaldinho da Cuíca) (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 13).

Page 68: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

67

Neste samba Osvaldinho mistura em sua letra a história do samba paulista trazendo pra

Barra Funda: “Era quizomba ou pagode, ninguém sabia dizer”.

Junto a essa “diáspora interna” o samba migrou pelo país e depois dentro do Estado de

São Paulo onde, também teve sua polarização até chegar à capital. E esta cultura representada

por este gênero musical, o samba, antes proveniente e representante de uma cultura afro-

brasileira e, além disso, um gênero com característica rural, vinda dos terreiros das fazendas

do interior para a capital onde começa a se tornar um produto urbano, no ambiente hibrido

urbano, vai se transformando em algo novo com influências e misturas com o cotidiano

urbano. Fica fácil perceber que a inspiração de uma composição reflete o meio em que seus

compositores vivem. A inspiração para as composições vem do cotidiano, e refletem a

realidade e o momento histórico em questão, o samba e o samba paulista têm essa

característica, por exemplo, final do século XIX e início do século XX. Os sambas de

Toniquinho Batuqueiro e Geraldo Filme, falam da roça, da falta de condições dignas de

moradia na favela, já em São Paulo, nas periferias, já depois do meio do século XX Adoniran

Barbosa e Paulo Vanzolini falam da fábrica, dos bares do centro, da Boemia e, Geraldo filme

começa a falar do carnaval de São Paulo e os elementos que compunham esse universo.

3.1.3 Uma análise comparativa entre o Samba paulista e o carioca

Nem mesmo o grande sucesso de “Pelo Telefone” no carnaval carioca de

1.917 mudou o significado de samba para os paulistas. Ainda que esta

composição – assinada por Donga e Mauro de Almeida, mas criada coletiva

coletivamente pelos frequentadores das rodas da ilustre casa da tia Ciata –

tenha marcado a apresentação do samba para o grande público do Rio de

Janeiro, não consta que tenha causado alarde em São Paulo. O mesmo se pode

dizer de todo o samba “amaxixado” – como chama os musicólogos, referindo-

se, antes de tudo, às rodas do célebre compositor e pianista Sinhô –, feito até o

final dos anos 20. O sentido mais específico e unívoco da palavra “samba” só

começou a se impor em São Paulo nos anos 30, em função do estrondoso

sucesso da reformulação rítmica elaborada nas escolas de samba cariocas.

Sobretudo na pioneira Deixa Falar, do Estácio de Sá, nascida em 1928. Essa

mudança, levada a todo o país pelo rádio e os então modernos discos de

gravação elétrica, fez do samba praticado no rio de Janeiro a maior expressão

da música brasileira, dando início a uma primazia que dura até hoje.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21-22).

Aqui uma visão paulista do alcance do samba carioca e, ao mesmo tempo do

apontamento a especificidade do samba paulista quando se propõe fazer uma análise

comparativa do samba paulista e o samba carioca – este visto como o samba nacional – e suas

especificidades.

Page 69: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

68

É preciso registrar, porém que o samba carioca não se tornou dominante em

São Paulo da noite para o dia. Durante os anos 30, houve uma sensível divisão

de espaço com o samba que se fazia por aqui, como por exemplo, o samba do

caipira de Raul Torres, que dominou o carnaval paulistano de 1935 com “ A

Cuíca Está Roncando” – essa música voltaria a ter êxito nacional em 1962,

quando regravada pelo magnífico gaúcho Caco Velho. Outra criação bem-

sucedida em São Paulo nos anos 30 foi “Bambas da Barra funda”, de 1931,

gravada por seu compositor, Januário França, e um certo Henrique Costa (que

era, provavelmente, o depois famoso Henricão). Esses sambas, bastante

diferentes entre si e dos feitos no rio de Janeiro, tinham em comum a base

harmônica e rítmica feita por violões e violas caipiras, com raríssimas

intervenções de percussão (só ocasionalmente, ouve-se um pandeirinho ao

fundo).

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 22).

Aqui vale relembrar a contribuição inicial a respeito do samba de Clara Nunes, que

trazia consigo essa característica harmônica e rítmica da utilização da viola e violão e menos

percussão. Assim como podemos observar no samba rural paulista, um samba rural, caipira.

Somente na primeira metade do século XX, quando as manifestações

populares paulistas passaram a ser vistas com maior atenção pelos estudiosos,

os diversos tipos de samba do estado foram reunidos sob o nome “samba-

rural”. Era um avanço, uma vez que pouca gente tinha olhado com seriedade

essas manifestações até então, mas a classificação não foi muito adiante, pois

se constatou uma desconcertante falta de características comuns entre eles. A

palavra “samba”, em, São Paulo, só ganhava sentido comum, entendido por

gente de qualquer parte do estado, quando se falava no samba-de-bumbo das

popularíssimas festas de Bom Jesus de Pirapora. Aquela era, sem dúvida, a

manifestação mais popular que levava o nome de samba por essas bandas.

Antes de comentá-la, porém, é preciso um esclarecimento: aquele samba não

foi a semente do samba paulista, como muita gente diz, visto que seu

surgimento é bem posterior ao aparecimento do samba na maioria das cidades

do estado. Seria bem mais correto dizer que o seu papel foi o de um grande e

generoso balaio, reunindo e combinando diversos tipos de samba trazidos

pelos romeiros.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 23).

Cito a seguir a lenda que explica a importância de Bom Jesus de Pirapora, lenda que é

composta por uma mistura que conta muito sobre o samba paulista e o conflito cultural entre o

povo escravizado que ali chegou e se imbricaram com a religiosidade branca, na cultura

local , cultura caipira e suas crenças.

Diz a história que, em 1725, foi encontrada numa braça do rio Tietê, apoiada

numa pedra, uma bonita imagem de Jesus Cristo, Feita de madeira e medindo,

1,78m, o presente trazido pelo rio poderia ter sido facilmente levado dali para

a igreja de Santana do Parnaíba (município mais próximo) pelo carro de boi

oferecido por um fazendeiro da região, mas um atoleiro da várzea arruinou a

remoção. Aturdidos, os três escravos negros que tentavam transportar a

imagem discutiram por horas uma maneira de resolver o problema, até que um

deles, o carreiro, sugeriu uma mudança na disposição dos eixos do carro e

Page 70: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

69

tudo se resolveu. Foi o primeiro milagre do Bom Jesus, não pelo desencalhe,

mas porque o tal carreiro era surdo e mudo. Extasiados pela sensação de terem

presenciado uma verdadeira revelação divina, os três interpretaram o

desencalhe e a cura como sinais de que a imagem queria permanecer ali – uma

ideia bastante recorrente entre os católicos brasileiros, vale dizer – e que

aquele seria um lugar santificado. O local onde a imagem foi encontrada

(apelidado de “Beco do Rio Santo”) foi marcado com uma cruz e logo passou

a receber romeiros interessados no poder milagroso da estatueta e das águas

do Tietê, enquanto no ponto exato do milagre foi construída uma capela.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 23-24).

Evidentemente e, até de forma natural os negros estavam presentes e, assim houve

uma saudável contaminação da festa cristã pela cultura africana. Esse sincretismo, logo, sob

sua influência, as homenagens ao Bom Jesus tornaram-se também um importantíssimo evento

musical, comparável – guardando-se as devidas proporções – às históricas festas de Nossa

Senhora da Penha, do Rio de Janeiro, onde o samba carioca deu alguns dos seus primeiros

passos, segundo Osvaldinho.

Aqui Osvaldinho faz uma análise comparativa entre o início do samba carioca na

igreja da Penha e o samba paulista com toda a questão religiosa em Bom Jesus de Pirapora. E

o quanto a questão religiosa proporcionou o desenvolvimento de hibridismo cultural e social.

Voltando nossos olhares sobre as características específicas do samba paulista, nos

deparamos com o “samba-de-bumbo”. Este pode-se afirmar que é o samba “tradicional” rural

paulista, pois neste encontra-se os principais elementos da cultura negra africana, com os

batuques dos tambores e danças.

O Samba-de-bumbo, aquele que mais se celebrizou dentre os sambas

paulistas, tem sua criação atribuída a Honorato Missé de quem pouco se sabe.

Nas minhas pesquisas, com o prestativo auxilio da prefeitura de Pirapora do

Bom Jesus, consegui descobrir que Honorato era branco, filho de uma família

de 8 irmãos, e que seu nascimento foi em 22 de dezembro de 1903. Em

Santana do Parnaíba (na época, Pirapora ainda não era um município). Essa

simples informação é suficiente para datar a consolidação do samba-de-bumbo

a partir do final dos anos 10 – o que se reforça pelo testemunho do historiador

Affonso de Freitas, em seu livro Tradições e Reminiscências Paulistanas, que

repudiou a novidade dos bumbos em Pirapora no ano de 1921.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.25).

Assim pode-se recuperar essa informação de suma importância para que se atribua

uma data à historiografia do samba paulista e o seu símbolo, até então mais forte, o samba-de-

bumbo, considerado um ancestral do samba cosmopolita.

Page 71: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

70

O samba-de-bumbo nasceu da inclusão do bumbo (instrumento então usado

pelas popularíssimas bandas marciais) nas cantorias profanas dos devotos, as

quais costumavam ter apenas o acompanhamento de violas, cavaquinhos,

chocalhos e batidas de mãos e pés. Uma vez que os primeiros tambus –

tambores graves escavados em troncos de árvores –, comuns nos batuques

paulistas, não fossem tão frequentes em Pirapora, já que seu tamanho e peso

dificultavam o transporte, coube aos bumbos a função de realçar o caráter

rítmico das canções, favorecendo a expressão dos vigorosos matizes musicais

africanos[...] é evidente que Honorato não foi o primeiro a perceber que se

podia usar o bumbo para batucar – Maria Paes de Barros, nas suas memórias

de infância numa fazenda de Piracicaba, por volta de 1856, já fala numa

zabumba (sinônimo de bumbo em São Paulo) empregada nos batuques. O que

se pode ter certeza, entretanto, é que os testemunhos existentes são

praticamente unânimes na afirmação de que foi somente a partir de Honorato

que os bumbos conquistaram os frequentadores de Pirapora.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.25-26).

3.1.4 O samba, o bumbo e a viola

Convém ressaltar a importância do registro feito sobre o papel desse instrumento

(bumbo) seguido pela viola, concedendo total peculiaridade ao samba rural paulista, pois este

carrega de maneira mais evidente a predomínio da influência dos cantos africanos, segundo

Osvaldinho observa em sua pesquisa empírica.

Ao contrario do samba-de-roda baiano ou o samba carioca, majoritariamente

negros, o samba-de-bumbo trazia uma participação muito representativa de

caboclos e até de brancos – como o próprio Honorato – sobretudo desde as

primeiras décadas de século XX. Era uma combinação previsível, visto que

espelhava a própria estruturação racial da massa trabalhadora das fazendas

paulistas. E seus resultados foram grandiosos. A falta de uma identificação

com um segmento mais específico da sociedade levou-o a receber tipos de

toda a origem e vindos de toda parte, que imprimiram no samba-de-bumbo as

suas marcas culturais, enriquecendo-o com elementos musicais originalmente

dispersos, como o jongo, a catira, caninha verde e a importantíssima folia do

divino.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.26).

E assim vai se formando a historiografia do samba paulista seguindo uma análise

comparativa com o país - com ênfase no samba paulista e o carioca - encontrando nesta,

similitudes e complementos que vem a somar com a história do samba nacional. Pode-se

observar as peculiaridades do samba paulista, com enfoque no diferencial da utilização do

bumbo e violas, e a surpreendente constatação da pouca utilização dada ao pandeiro no samba

paulista rural ao contrário da utilização dada a este no samba carioca, que tinha o samba

chamado “telecoteco” como informado por Osvaldinho da Cuíca, reflexo do seu profundo

estudo legitimado por pesquisa empírica, bibliográfica e história oral, além do embasamento

cientifico do crítico musical e pesquisador André Domingues. Nesta pesquisa Osvaldinho da

Page 72: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

71

Cuíca se atém a explicar e pontua a participação do bumbo e suas relações fortes com os

cantos africanos.

Do ponto de vista da composição, reinava o samba-de-bumbo a improvisação

de versos sobre uma base melódica/harmônica bastante simples em longos

desafios. É verdade que o gosto pelos desafios foi disseminado de norte a sul

do Brasil nos longínquos tempos da colonização, não tendo uma única origem,

visto que tanto os africanos, quanto os ibérios e até mesmo os indígenas o

cultivavam de formas diferentes. No entanto, no caso dos desafios do samba-

de-bumbo, tem-se a impressão de uma certa predominância do canto africano,

pois, somado a influência negra em sua síntese rítmica, costumava trazer

versos improvisados com farto uso de mensagem de duplo sentido,

característicos da comunicação velada desenvolvida pelos escravos para

driblar a vigilância dos senhores. Esse tipo de mensagens é encontrado em

várias manifestações antigas da música negra paulista, sobretudo no jongo.

Um bom exemplo disso são os seguintes versos de jongueiros, inconformados

com trabalhar no engenho de alguém que não move uma palha e que, se

beneficiado lucro sozinho, sem nem lhes deixar provar do café, fruto do seu

esforço:

Engenho novo de Mané Lope

Porque que engenho roda se não tarabaia?

O café bom vai pra cidade

E o carreiro passa de banda.

Outro exemplo é o batuque “Tiá de Junqueira”, ensinado pelo saudoso

Geraldo Filme:

Oi, tiá, tiá, tiá de Junqueira, oi tiá.

Oi, tiá, tiá, tiá de Junqueira, oi tiá.

Moça bonita de lírio, oi tiá.

Veja que coisa indecente, oi tiá.

Deita sem estar casada, oi tiá.

Fazendo vergonha pra gente.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.27-28).

Segundo Osvaldinho da Cuíca, em pouco tempo, o samba de bumbo tornou-se um

atrativo das festas de Pirapora, sobretudo, para os frequentadores mais humildes. Sambistas

que iam lá para orar e pagar promessas, já aproveitavam a viagem para encontrar sambistas de

outras cidades como: Itu, Tietê, Piracicaba, Jacareí, Campinas e São Paulo. Nos barracões de

alvenaria, os bambas paulistas expressavam livremente suas manifestações, longe dos olhos

da igreja de Pirapora, a qual as rejeitava.

[...] Tal cuidado tinha fundamento, pois a poderosa igreja de Pirapora não

escondia sua rejeição por esse tipo de manifestação. Por outro lado o que

parecia ser um “confinamento” – muitos sambistas interpretavam assim –

acabou sendo a garantia da liberdade para sua expressão, pois, sob a proteção

Page 73: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

72

das espessas paredes dos barracões ficou mais fácil o aprofundamento de

certos traços “heterodoxos” da nossa sincrética cultura popular – não é à toa

que muitos pais e mães-de-santo podiam ser frequentemente encontrados por

ali, a exemplo de seu Livinho da Vai-Vai, o maior pai-de-santo do Bixiga na

primeira metade do século XX. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.28-29)

Essa relação de Pirapora com as Escolas de Samba da capital acontece de forma rica

em trocas culturais entre os artistas mais importantes na história do samba paulista, pois os

sambistas da capital encontravam-se com os outros sambistas do estado nesses barracões, os

quais têm muitas histórias e composições feitas nesses encontros. Um desses exemplos é uma

música de Geraldo Filme que abre essa pesquisa (Batuque de Pirapora).

Nos velhos barracões o samba-de-bumbo aprimorou-se, sobretudo nos

lendários desafios entre campineiros e paulistanos. Por aquelas rodas passaram

tanto os célebre Henricão e Geraldo Filme, nomes de primeiríssima linha do

samba paulista, quanto uma série de outros sambistas menos conhecidas, mas

também importantíssimos, como o velho Dionísio Barbosa, fundador do

primeiro cordão paulistano, o Grupo da Barra Funda. Geraldo, aliás, registrou

suas memórias de Pirapora em dois belíssimos sambas: “Tradições e Festas de

Pirapora”, feito para a Unidos da Peruche, e “Batuque de Pirapora”, um samba

de terreiro. Este ultimo, aliás , relata sua visão sobre um acontecimento de

infância:

Page 74: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

73

Falando em Geraldo filme, vale aqui darmos o devido reconhecimento a este artista

paulista e, um dos mais importantes sambistas, além de ser um dos responsáveis pelo

“intercâmbio cultural” do samba rural (de bumbo) e o urbano, pois transitou nesses dois

universos proporcionando esse hibridismo cultural, entre a cidade de São Paulo e o interior

da cidade. Geraldo Filme, também é o autor de um dos sambas mais importantes da Escola de

Samba Vai-Vai, o qual é um dos sambas mais importantes da escola (Tradição - Vai no

Bixiga pra ver).

Voltando a Pirapora e suas manifestações culturais, passemos agora aos conflitos

culturais e religiosos:

A grande mobilização em torno do samba em Pirapora logo passou a

concorrer com os interesses religiosos e o confronto foi inevitável. Em 1936, a

igreja interditou os barracões, alegando falta de segurança, e desarticulou os

sambistas. Também no mesmo ano, foram proibidos os desfiles dos cordões

carnavalescos pelas ruas de Santana do Parnaíba durante a temporada festiva –

cordões como o Camisa Verde e Branco e o Vai-Vai eram presença certa

naqueles dias. Segundo as pesquisas recentes e ainda não publicadas do

antropólogo Marcelo Manzatti, restaram aos sambistas apenas dois redutos

significativos: um sitio afastado, onde ficavam os campineiros (numerosos e

respeitados), e um boteco apelidado de “Bar do Coringão”, quase na saída da

cidade, ponto de encontro dos bambas que vinham de Santana do Parnaíba.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.30-31)

Mas outras razões, mais cotidianas, ou melhor, mais ligadas a anomia social,

contribuíram para que estes festejos minguassem.

As restrições ao samba em Pirapora diminuíram a lotação da cadeia local

naquelas noites frias de agosto, repleta de bêbados e arruaceiros, mas fizeram

com que, gradativamente, o peso cultural da festa de Bom Jesus fosse

diminuindo. Para piorar, ao mesmo tempo, o samba começou a sumir do

interior paulista por conta do grande êxodo rural decorrente da

industrialização desembestada da capital e suas adjacências. Em Itu, por

exemplo, o samba mal passou dos anos 40. Por tudo isso, na década de 50,

quando os barracões dos romeiros foram demolidos, a efervescência já não

eram nem sombras da de outrora, ainda que um bom numero de sambistas

continuasse indo até Pirapora para fazer suas orações. (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.31)

As razões pelas quais essas manifestações culturais perderam o peso estão claras,

contudo, algo permanece vivo. Basta direcionar nossos olhares para este, dentre outros

estudos acadêmicos que buscam a compreensão de um movimento de resgate às culturas

“originais” paulistas, mas este com enfoque no samba paulista.

Sendo assim, quebra-se uma era, o samba de bumbo perde esse espaço de celebração

e, devido a este conflito entre a religião e a cultura de um povo – que em sua maioria eram

Page 75: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

74

negros – há uma quebra nesta forma de representação cultural de uma expressão específica

desta região do Brasil.

Desprezado na maior parte dos meios cultos, o samba-de-bumbo deixou

pouquíssimos registros, o que favoreceu uma rápida substituição de suas

características originais – já nos anos 30 Mário de Andrade (um dos primeiros

pesquisadores a se interessar pelo assunto) acusava mudanças significativas

em seu famoso estudo “O Samba Rural Paulista”. Somente nos anos 70 os

musicólogos e folcloristas passaram a dar alguma atenção para aquela música,

porém já irremediavelmente transformada. Foi por essa época que estive pela

primeira vez em Pirapora e pude conhecer o batuque, encontrando grupos

pequenos, abandonados, usando instrumentos com pele de náilon e

desprezando o réque-réque de chifre de boi, sujeitos a mutações inspiradas nas

modas que se sucediam no rádio e na televisão. Aliás, posso assegurar que, até

o que ouvi naquela época – algo próximo dos batuques de folia do divino

interioranos –, já foi bastante alterado pelas novas gerações.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.31)

3.1.5 O Samba e o hibridismo cultural

Sente-se aqui certo lamento pela “perda” da característica “original” do samba de

bumbo, mas o que diz os estudos culturais (GEERTZ, 2008) não há cultura estática, ou seja,

está em constante movimento em suas teias.

Atualmente, depois de sucessivos esforços de recuperação, o samba de

Pirapora está próximo do samba-de-roda baiano, batucando a síncope típica

das palmas da capoeira. O próprio nome “samba-de-roda” tem sido usado para

qualificar aquela música, o que é um absurdo, pois, mesmo que alguns

sambistas antigos chamassem o batuque assim, sua presente adoção é

evidentemente baseada no conhecidíssimo ritmo da Bahia. Além disso, os

registros dão conta de que o samba de Pirapora não era feito apenas em roda,

mas também em duas fileiras contrapostas em “cobrinhas” – frutos da

influência indígena. Recentemente houve, ainda, a inclusão da zabumba

nordestina, com bacalhau (baqueta fina e comprida de madeira percutida na

pele inferior do instrumento) e tudo, resultado de uma lamentável ignorância

de que os termos “bumbo” e “zabumba” eram utilizados indistintamente pelos

sambistas e estudiosos do passado.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.32)

Novamente é nítido o sentimento de “perda” que envolve o discurso de Osvaldinho,

mas pode-se direcionar o olhar para uma ideia de andamento natural da história, pois durante

conflitos desenvolvem-se novas culturas, em Pirapora e depois levado para a capital e para

outras cidades do interior paulista, desta forma, é quase impossível não haver hibridismo

cultural e, este traz consigo mudanças que atingem diversas áreas, seja cultural ou não.

É preciso ressaltar, também, que tal transformação arbitrária não aconteceu

apenas no samba-de-bumbo de Pirapora, mas também, em maior ou menor

Page 76: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

75

grau, nas demais variedades do samba-rural paulista. Aliás, um sintoma

evidente da perda das características musicais particulares de todos esses

sambas é a escandalosa semelhança que agora ostentam entre si.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.33)

Essa semelhança entre os sambas urbanos, conforme Osvaldinho da Cuíca apresenta, é

notória, acredita-se que houve essa padronização do samba após o advento do rádio e dos

discos, pois chegavam nas gravadoras e eram aceitos um estilo especifico de samba, o

representante nacional, o samba carioca.

É preciso ressaltar, no entanto, que a convivência tão plural ainda não havia

determinado o atual cosmopolitismo da cidade. Ao contrário. Havia uma certa

resistência da elite em aceitar influências dos imigrantes e, mais ainda, dos

negros recém-libertos. O convívio democrático entre pretos e brancos,

brasileiros e europeus, que nos abriria inúmeras perspectivas de máxima

importância, ficava quase restrito aos bairros pobres, como Barra Funda, Brás

e Bixiga – hoje centrais, mas que, na época, formavam uma espécie de

periferia do centro social e econômico da cidade – ou aos então distantes e

semi-rurais Jabaquara, Mooca, Santana e Lapa (citando, apenas, alguns dos

mais importantes) (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.34)

Aqui chegamos a formação dos bairros da cidade de São Paulo, com sua formação já

com característica multicultural, desde de o princípio de sua construção cultural já tinha em

sua composição a diversidade e seus conflitos

Desta forma, musicalmente, prevalecia em São Paulo, acima de tudo, uma

manifestação de elite trazida pelos portugueses; a seresta, especialmente

cultivada pelos estudantes de Direito da renomada escola do Largo São

Francisco. Noite após noite, cantando nas ruas sob a fina garoa que se tornou

símbolo da cidade – e que, graças a poluição, já não é mais comum hoje em

dia –, esses jovens mantinham acesa a chama ancestral lusitana, que nos legou

a principal base melódico-harmônica da nossa música e do inabalável gosto

por temas passionais.

Os imigrantes europeus, acima de tudo, os italianos, logo se identificaram com

a seresta, que, aliás, tinha um largo histórico de influências da produção

operística de sua terra. Um bom exemplo disso era cantor e compositor

Paraguaçu, um filho de italianos batizado Roque Ricciardi (nascido em 1894 e

falecido em 1976), que se tornou o maior nome dessa vertente em São Paulo.

Paraguaçu, inclusive, começou sua carreira com o apelido de “Italianinho do

Brás”, antes de adotar o nome artístico de origem indígena que o consagrou.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.34-35)

Pode-se observar, na citação acima, o reflexo dessa miscigenação, desse hibridismo de

povos e culturas. Estas refletidas em diversos aspectos característicos desses povos que

chegaram ao Brasil, ora escravizado, ora como fugitivos de guerras, dentre outros, os quais se

Page 77: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

76

misturaram aos índios que – pelo o que informa os livros de história – sempre viveram nessas

terras. Voltando as serestas:

A seresta, porém, ainda que bastante assimilada pelos setores mais pobres da

sociedade, não resumia a vida cultural de São Paulo. Os negros também

cultivavam suas próprias formas de expressão musical, em geral, ligadas a

uma religiosidade sincrética, resultante da certa identificação dos orixás

africanos com a divindade e os santos do cânone cristão e, em menor medida,

com seres e conhecimento ocultos da fé indígena. A história registra severas

repressões aos seus cantos e danças, tais como os presentes nas festas de

Nossa Senhora do Rosário, os chamados tambaques (definidos por Tinhorão

como uma “versão paulistana dos reinados de congos dançados em frente à

igreja da padroeira em suas festas”), ou os moçambiques, congadas e

batuques. No entanto, sua musicalidade sobreviveu, dando frutos de valor

incalculável até os nossos dias.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.35)

Neste ponto nos deparamos com as questões religiosas imbricadas às culturais, muitas

vezes devem ter somado e outras devem havido conflito, pois eram povos de crenças e

costumes muito diferentes e ligados de forma intrínseca às culturas de cada povo.

No principio, o carnaval paulistano – como o do Brasil inteiro até meados do

século XIX – era dominado pe3lo festejo desregrado do entrudo. Trazida pelos

portugueses nos primeiros tempos da colonização do país, essa brincadeira

algo violenta se amparava numa espécie de acordo coletivo pela suspensão de

uma série de normas de convivência. Assim, durante os dias de carnaval,

aceitava-se, por exemplo, que uma “moça de família” fosse à janela do seu

sobrado jogar um balde d´água (ou de algum líquido mais ofensivo...)sobre

um rapaz educado que estivesse passando ou vice-versa. Embora de mau-

gosto, o entrudo era um divertimento até democrático, pois todos, inclusive os

escravos, tomavam parte, sujando-se entre si e aos brancos. A diferença social

só se percebia nas “armas” usadas pelos foliões: enquanto os mais nobres

preferiam os limões-de-cheiro (esferas de cera preenchidas com água

perfumada), a chamada “ralé” usava o que tivesse à mão (ovos bons ou

podres, farinha, goma, frutas estragadas, vísceras de animais...). Pode-se dizer

que cada “bloco de sujos”, desses que até hoje saem em algazarra pelas ruas

do Brasil a fora, traz a memória do entrudo.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.35-36)

Assim, pode-se compreender um pouco mais sobre alguns costumes que perduram

desde o descobrimento do Brasil até os dias de hoje, formando, assim a historiografia

brasileira. Trazendo consigo, como numa colcha de retalhos, a junção de partes que vão dando

sentido ao todo e, ainda mais importante no que se refere a este estudo, a participação do

samba nessa construção cultural. Quando observamos o quanto a arte representada, neste caso

através do samba, pode formar uma identidade nacional. Já quando nos debruçamos sobre o

papel do samba paulista na formação da identidade nacional, se faz notória a sua relevância,

Page 78: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

77

pois tem toda uma peculiaridade que se diferencia dos demais, mesmo quando verifica-se que

também há muita similaridade na forma que se construiu a história do samba dentro do

multiculturalismo étnico em outras regiões do pais, além dos atores que participaram deste

contexto.

No decorrer do século XIX, um novo conceito de civilidade adotado pela elite

brasileira fez com que o entrudo passasse a ser cada vez mais reprimido pelas

autoridades. Ao mesmo tempo, ganhou força um carnaval “civilizado”,

inspirado nos bailes de máscaras italianos e nos desfiles de carros alegóricos.

Abria-se a era dos bailes elegantes, que se espalharam após 1840, quando se

realizou com sucesso o primeiro baile no Hotel Itália, no Rio de Janeiro [...]

Em São Paulo, as sociedades tiveram uma história muito particular, a partir da

Sociedade dos Zuavos, fundada em 1857. Conta José Ramos Tinhorão, no

polêmico artigo “A Vocação Caipira de uma cidade Cosmopolita”, que seus

desfiles pelas ruas centrais da cidade também se davam ao som da banda

militar e com carros ricamente enfeitados, puxados por belos cavalos, mas que

exibiam, em figurinos luxuosos e sensuais, as mais cobiçadas prostitutas da

cidade. Tinhorão anota, ainda, que esse apelo erótico das sociedades

carnavalescas paulistanas afastou as “famílias” do carnaval de rua da cidade e

criou condições para verdadeiras orgias, que se estendiam a certos clubes em

festas reservadas. A chamada “gente de bem” só voltaria a frequentar o

carnaval de rua quando, no inicio do século seguinte, difundiu-se a moda do

corso, um desfile em automóveis abertos pelas ruas mais importantes da

cidade, como a Avenida Paulista.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.36-37)

Page 79: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

78

3.1.6 O samba paulista e o carnaval

Foto: Arquivo/ USP Imagens

27

São Paulo- SP- Brasil- Grupo de crianças do Cordão do Camisa Verde e Branco na

romaria a Bom Jesus de Pirapora em 1925. Havia uma ligação muito grande dos

cordões carnavalescos paulistanos e a Festa de Bom Jesus de Pirapora.

Nesta parte da historiografia do samba paulista, assim como o samba nacional, pode-se

perceber o samba como um componente do carnaval, pois não se tem carnaval sem samba.

[...] Os corsos tiveram especial sucesso em São Paulo, vicejando até o início

dos anos 40, quando as restrições decorrentes da II Guerra mundial (que

fizeram cair drasticamente as importações de novos veículos, peças e gasolina)

reduziram bastante o uso de automóveis no Brasil. Depois da Guerra, a

indústria automobilística apostou suas fichas nos carros “fechados” – aqueles

com capotas fixas – e os corsos minguaram definitivamente.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.37)

A importância dada a estes detalhes se fará notória para uma visão geral do

entendimento do papel do samba paulista e , por que não dizer? De São Paulo na construção

da identidade nacional, pois esta cidade cosmopolita é o retrato da diversidade que constrói de

forma multicultural sua identidade frente ao mundo.

Continuemos dar a devida atenção à pesquisa de Osvaldinho da Cuíca e Domingues:

Também é digna de nota uma outra manifestação antiga do carnaval paulista,

surgida em meados dos 1800: os caiapós, aparentados dos cucumbis cariocas,

dos caboclinhos pernambucanos e das tribos carnavalescas paraibanas.

Tratava-se de pequenos grupos de populares (em geral, compostos por pretos,

27

http://fotospublicas.com/acervo-historico/imagens-historicas-carnaval-de-sao-paulo/

Page 80: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

79

mestiços e brancos empobrecidos) que saíam pelos bairros da cidade

fantasiados de índios, recriando danças dos nativos brasileiros e cantando ao

som de chocalhos e outras peças leves e improvisadas de percussão vez por

outra, apareciam também instrumentos harmônicos, a exemplo de violas

caipiras ou cavaquinhos. Acusados, às vezes, de “artificiosos” e “pouco

espontâneo” por sua evidente inspiração no deslumbramento nativista da

primeira fase do nosso romantismo literário – que tinha o seu maior herói em

Peri, o “bom selvagem” de José de Alencar –, os caiapós resistiram ao tempo e

ainda existem em cidades como São José do Rio Pardo, comprovando uma

inegável representatividade. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.37-38)

3.2 DO SAMBA RURAL AO CARNAVAL E ÀS RODAS DE SAMBA DA

CAPITAL

3.2.1 O samba paulista urbano nas ruas e nos cordões

Pretende-se nesse subcapitulo descrever para que nesta desconstrução possa-se

reconstruir essa “diáspora” do samba paulista que sai do interior paulista, depois volta com

mais elementos para Pirapora e, com o fechamento dos barracões migra para a cidade e

começam as manifestações populares de rua, sendo elas: rodas de samba, cordões, estes em

escolas de samba e na contemporaneidade, vemos o retorno expressivo dos blocos de rua em

São Paulo. Muitas dessas manifestações sobreviveram, com destaque para o carnaval, pois

apresenta sua grandiosidade em todo o país, tendo o carnaval carioca como a maior festa do

país. Todavia, São Paulo não deixa de ter sua importância, pois mantem viva escolas como

Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde...

Ainda nos debruçando sobre a obra rica de Osvaldinho da Cuíca e André Domingues,

na qual pode-se observar essa historiografia do samba paulista ao sair do ambiente rural e

transformar-se em movimentos culturais populares e nessa fusão com o urbano passar por

uma espécie de “metamorfose”.

A formação de grupos carnavalescos nas camadas populares da cidade já se

ensaiava há algum tempo, quando, em 12 de março de 1914, foi fundado o

Grupo da Barra Funda, o primeiro cordão de São Paulo. No próprio bairro da

Barra Funda, inclusive, teria se formado em 1913[...]. O grande responsável

pelo surgimento do Grupo da Barra Funda foi Dionísio Barbosa, um negro de

grande liderança, presumidamente nascido no ano de 1891, em Itirapina,

próximo a Rio Claro – município onde o compositor erudito Alexandre Levy

colheu os exemplos de samba que remodelou na 4ªparte de sua “Suíte

Brésilienne”, editada em 1890. Filho de uma professora autodidata e de um

diácono que também era músico amador, Dionísio chegou à Barra Funda

ainda na infância, deparando-se com um bairro de gente humilde, dividido,

principalmente, entre imigrantes europeus e negros vindos de fazendas do

interior. Na adolescência, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde conheceu os

Page 81: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

80

ranchos e cordões, grandes sensações do carnaval popular local, desfilou em

alguns deles e ficou tão fascinado que, de volta a São Paulo, no começo dos

anos 10, resolveu convidar amigos e parentes Para fazer algo semelhante.

Inicialmente, era um conjunto de choro semi-profissional, e, pouco adiante, se

transformaria no famoso Grupo Barra Funda. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.42)

Esta é uma das fases mais importantes da história, pois traz um pouco da vida de um

dos atores mais importantes na história do samba paulista no ambiente urbano. Dionísio

Barbosa é uma das peças fundamentais para a formação das escolas do samba paulista.

Dionísio, que além de compositor era um bom pandeirista, aprendeu as

marchas do carnaval carioca e as remodelou ao seu estilo no cordão, mas sem

se descuidar de conservar os batuques paulistas no repertório. Acontece que,

sendo filho de um homem diretamente ligado à igreja, sua formação tinha

grande influência das festas religiosas, sobretudo daquelas em que os negros

tomavam parte mais ativamente, como as de São Benedito, de Nossa Senhora

do Rosário, Nossa Senhora do Carmo e Bom Jesus de Pirapora – ele

costumava contar que carregou o andor da procissão de Pirapora aos 7 anos de

idade –, nas quais a música de viés africano era muito presente. Como os

colegas de cordão, dm maioria pretos e mulatos interioranos, também

partilhavam dos mesmos gostos musicais, suas opções estavam plenamente

respaldadas. Aliás, Marcelão, o tocador de bumbo, se tornaria um dos mais

famosos batuqueiros de Pirapora. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.42).

Pode-se notar que o carnaval carioca, de alguma maneira, sempre esteve presente

nesse início da formação do samba paulista urbano, seja nos cordões, seja nas escolas de

samba, ora como parâmetro para fortalecer o samba rural paulista, ora para nivelar as escolas

paulistas às cariocas.

Embora Dionísio Barbosa tenha morado quando criança na rua Tupi, as

primeiras saídas do Grupo da Barra Funda já partiram da casa que morou na

esquina da rua Vitorino Camilo (n. 114) com a Conselheiro Brotero, depois

trocada por uma série de outros endereços no bairro. Em seu desfile inaugural,

foi entoada uma singela e eficientíssima marcha-sambada que, mesmo pouco

conhecida, equivale simbolicamente ao “Ó Abre Alas”, de Chiquinha

Gonzaga, para o carnaval paulistano. Seus versos eram assim:

Minha gente saia fora

Da janela, venha ver

O Grupo da Barra Funda

Tá querendo aparecer

Cantamos todos com voz aguda

Trazendo Vivas ao Grupo Da Barra Funda!

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.42-43)

Page 82: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

81

Como o método utilizado nesse estudo, assim também se faz para analisar o samba

paulista, nos utilizando do samba e do carnaval carioca como contraponto na análise

comparativa.

Já nessa primeira aparição pública, os integrantes do Grupo Barra Funda se

apresentaram vestidos de calça branca e camisa verde, o que motivou do

apelido Camisas Verdes. Seria com esse apelido que, em pouco tempo, o

grupo ficaria conhecido na cidade, levando Dionísio a rebatizar o cordão como

Camisa Verde. O nome, porém, não duraria muito. O risco de que os

sambistas fossem confundidos com simpatizantes do Partido Integralista

(cujos membros eram conhecidos como “camisas verdes” ), que foi duramente

perseguido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, teria levado um delegado a

“sugerir” uma nova mudança. Sabendo da conveniência de evitar choques com

o poder público, o grupo cunhou, então, seu terceiro e definitivo nome:

Camisa Verde e Branco. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.43)

Assim como no Rio de Janeiro o Estado Novo de Getúlio teve sua “participação”, no

caso do Rio de Janeiro, se apropriando do samba como elemento catalizador, já em São Paulo

dando algumas “sugestões” para melhor sua aceitação.

[...] o Grupo da Barra Funda/ Camisa Verde e Branco foi o cordão mais

importante de toda a história de São Paulo. Seu aparecimento motivou a

fundação de outros tantos que acabaram por determinar a cara dos primeiros

50 anos dos festejos momescos da cidade. Dionísio, contudo, pouco desfrutou

das glórias de sua iniciativa. Em 1939, cansado das intrigas e pouco

reconhecimento do carnaval de rua paulistano, decidiu se afastar da função de

comandante do grupo, levando-o a encerrar suas atividades.

Somente em 1952 o Camisa Verde e Branco voltou a se reunir e, em 4 de

setembro de 1953, foi re-fundado oficialmente. O principal responsável pela

sobrevida do Camisa foi Inocêncio Tobias (também conhecido como

Inocêncio Mulata), amigo de Dionísio e morador do bairro. Junto com os

amigos Colombina, Feijó e Bagdá, Inocêncio reorganizou o Samba na Barra

Funda e preparou os alicerces para a grandeza que o Camisa Verde e Branco

ostenta até hoje. Dionísio Barbosa, contudo, só voltaria a vestir um figurino

alviverde em 1975, dois anos antes de seu falecimento.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.43-44)

Assim compreendemos um pouco o início dessas manifestações culturais paulistas.

Pode-se notar a importância de Dionísio Barbosa e a famosa: Camisa Verde e Branco, escola

que traz a história das escolas de samba de São Paulo.

Uma ficção comum no imaginário popular – e, até, em artigos de estudiosos – é a de

que os cordões paulistanos do inicio do século fossem grupos grandes e bem

organizados na sua apresentação (fantasias, danças e alegorias) ou na sua música. Na

realidade, porém, não passavam de pequenas turmas de familiares, vizinhos e amigos

que saíam às ruas com figurinos simples, feitos em casa, e com formação musical

muito reduzida e improvisada. Deve-se sempre desconfiar daqueles que descrevem

um cordão como uma multidão de encher as ruas, vestida em trajes esplendorosos e

dançando ao som de uma música ensurdecedora. Mesmo sendo verdade que, com o

tempo, os cordões cresceram e se sofisticaram bastante, esse tipo de descrição baseia-

Page 83: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

82

se muito mais nas cenas dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro,

grandiosos desde os anos 40, do que na realidade local paulistana. Outro equívoco

frequente é tratar os cordões como meros embriões das escolas de samba, esquecendo

que tiveram uma organização própria, original e auto-suficiente por muitas décadas

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.44).

Esses questionamentos da citação acima são de suma importância para que se possa

vislumbrar a compreensão do real papel do samba paulista na formação da identidade

nacional. Desta forma, poder-se-á construir uma imagem daquele tempo histórico, pois falsas

informações podem distorcer a realidade e dificultar a compreensão dos fatos. Para tanto,

Osvaldinho da Cuíca descreve como acontecia um cordão que, segundo ele, saíam no final da

tarde, de uma das ruas estreitas do centro de São Paulo e perambulavam pelas ruas do centro

até a manhã do dia seguinte, isso acontecia na metade do século XX.

Numa daquelas ruas estreitas e escuras do centro de São Paulo, cheia de gente

a espera dos desfiles, ouve-se o toque de clarins e surge uma movimentação

diferente. O povo, ansioso, começa a se comprimir, rumando em direção à

calçada, e já pode ver os balizas, girando e arremessando seus bastões (feitos

cuidadosamente com o dobro da medida do antebraço de se usuário0, abrindo

caminho para o resto do cordão. Os balizas vêm vestidos com sapato branco,

meias da mesma cor que vão até o joelho, calça de elástico bufante presa no

joelho, camisa tingida com as cores do cordão, adornada com bordados ou

lantejoulas, boné e uma capa vistosa com um belo desenho. São dois tipos de

balizas: os que encantam o público com seu malabarismo, inspirados

diretamente nos balizas da fanfarra do regimento de Fuzileiros Navais carioca

– eu, como meu pai, fui um deles! –, e os que têm apenas a função de afastar

os curiosos que dificultam a passagem do cordão, inclusive, usando o muque,

se necessário. Aliás, os primeiros também colaboram nessa função e têm até

um truque para abrir caminho: passando por ruas mal iluminadas – como as

históricas Rua São Bento e Rua do Comércio –, eles ameaçam jogar baliza pra

cima e, que nem mágicos, a escondem na capa. As pessoas, supondo que o

bastão foi jogado tão alto, que se perdeu na escuridão, saem estabanadas para

os lados, com medo de que lhes caia na cabeça. Subitamente, o bastão

reaparece na mão do baliza e o cordão consegue passar. Vale dizer, contudo,

que isso só funciona porque, de vez em quando, alguém joga de fato o bastão e

deixa cair de propósito em cima da multidão...(CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.45).

E assim seguem as descrições detalhadas de quem conhece a história de forma

empírica. E realmente, dificilmente alguém que não viveu saberia fornecer dados tão ricos de

detalhes. Convém prosseguir com a citação de Osvaldinho sobre os cordões. Reconhecendo

aqui a relevância histórica dessa pesquisa de Osvaldinho e Domingues, pois sem ela pouco

teríamos a respeito como bibliografia.

Na frente, junto aos balizas, se pode ver a porta-estandarte, que carrega o

estimado estandarte do cordão. No inicio, essa função era exercida por homens

Page 84: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

83

travestidos – em geral, de baiana –, como o pioneiro Torquato, do Grupo

Barra Funda. Somente em 1922 o Cordão dos Desprezados, da Alameda

Glete, ousou lançar uma porta-estandarte. Desde então, as mulheres passaram

a disputar essa função com os homens. Aliás, as mulheres penaram para

conseguir maior espaço nos cordões, e uma comprovação disso é que a

primeira baliza (então chamada de “contra-baliza”), Dona Sinhá, do Vai-Vai,

só apareceu nos anos 30. Nunca foi comum ter muita mulher em cordão. As

que tomam parte da brincadeira, ou são parentes, esposas e namoradas dos

líderes do grupo, ou são daquelas que não se preocupavam muito com um

“boa reputação”, pois o preconceito é fortíssimo. Menos que mulheres

corajosas dispostas a derrubar os tabus sociais vigentes, essas ultimas

costumam ser pobres coitadas, que, frequentemente, trazem sua marginalidade

marcada na face, em finos riscos de navalha (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.45-46).

O papel da mulher no samba é algo a ser discutido, mas isso já contemplará outra

pesquisa. O que nos move nesse estudo é o samba paulista e os elementos que o compuseram,

não se pode deixar de lado informações que contam não só a historicidade do samba, mas

fatos presentes na história e na arte, principalmente nas letras dos sambas. As letras dos

sambas trazem consigo muito do momento histórico e neles seus padrões vigentes.

[...] logo adiante aparece a arraiá-miúda do cordão, vestida de baianas e

rumbeiras – alguns cordões preferem outros personagens que povoam o

imaginário popular, como índios e marinheiros. [...]. a dança dessas pessoas

também é algo espontâneo, até anárquico, pois, sem ter de cumprir requisito

nenhum, cada folião pode criar seu estilo pessoal.

Finalmente, e lugar de destaque, chega a corte, com rei, rainha, príncipe,

princesa, lorde, duque, ministro e embaixador. Só não tem bobo da corte. As

roupas de todos são uma livre criação sobre as figuras reais da Europa

medieval. Pode-se distinguir facilmente o rei e a rainha por usarem coroa,

cetro e um bonito manto, carregado com cuidado por crianças. Trata-se, pois,

de um grupo bem organizado, uma vez que somente os bons cordões têm uma

corte completa. A realeza, centro das atenções, Dança em “cobrinha” – um

provável legado do samba-rural –, fazendo seu zigue-zague sem pressa ou

espalhafato, representando orgulhosamente a função nobre que desempenham

naqueles dias de festa (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.46-47).

São muitos detalhes na descrição de como se comportavam esses cordões, sendo assim

acredito na importância de fornecer mais algumas peculiaridades desta prática que ocorreria

no carnaval paulista na metade do século XX.

Depois da corte vem, então, uma rumbeira, de fantasia caprichada,

saracoteando na frente do pessoal do batuque, que encerra o desfile, tal qual

uma madrinha de bateria dos tempos modernos. Provavelmente, trata-se de um

travesti de verdade, já que os homossexuais têm uma especial atração pela

figura da rumbeira. Aliás, a presença de travestis no carnaval paulista foi

sempre marcante. Eram, em geral, homens valentes, bons brigadores, que

passavam a se travesti após passagens pela cadeia. Ninguém se metia com

eles. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.47).

Page 85: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

84

Mais um elemento importante destacado por Osvaldinho, o travesti tinha seu papel

social definido através do carnaval, através do samba, assim o samba se transforma num

espaço de aceitação das diversidades.

Ao contrário das atuais baterias de escolas de samba, os batuques (era assim

que as seções rítmicas eram chamadas) dos cordões dos primeiros tempos não

tinham muita percussão. Além do bumbo, onipresente no carnaval paulistano,

o que se podia encontrar mais facilmente eram instrumentos improvisados,

como ganzás e chocalhos de pau com tampinhas de garrafa pregadas. Os

agrupamentos mais desenvolvidos musicalmente costumavam ter também

pandeiros e uma caixa. Somente os grandes cordões tinham cuíca – se não me

engano, o corcunda Zé da Rita, grande cuiqueiro do Henricão, havia sido

componente do Campos Elísios. No mais, o que se podia escutar era o som de

metais, principalmente trombone e saxofone, e cordas, como violões, violas

caipiras e cavaquinhos. Essa presença relativamente grande de instrumentos

melódicos explica, em parte, o pouco uso de percussão, pois o volumoso som

desta fatalmente encobriria os demais. Com o tempo, porém, o tamanho e a

importância da percussão nos batuques foram aumentando, deixando os

demais instrumentos em segundo plano. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.47-48).

Aqui se deve observar o detalhe do bumbo, este como um elemento característico do

samba-rural, que segundo os autores, era onipresente neste ambiente. Outro ponto em que se

deve demorar um pouco é a presença dos metais e dos instrumentos de corda, pois estes são

instrumentos mais melódicos, carregam mais melodia em suas notas, o que diferencia o samba

paulista dos outros sambas brasileiros, pode-se dizer que é essa diferença melódica e o

trabalho das vozes, que veremos com Demônios da Garoa, mas já falaremos mais disso. Neste

ponto ainda tem algo a se observar no que tange aos bumbos.

Ser batuqueiro era algo engraçado. Eu me lembro bem que, durante cada

desfile, furavam-se muitos surdos e bumbos por conta do contato direto das

peles com a madeira das baquetas. Além disso, havia a necessidade de se

esquentar o couro repetidas vezes, a fim de que esticasse e possibilitasse um

som mais claro e forte. Tal necessidade fazia com que os batuqueiros fossem

catando e guardando folhas de papel pelas ruas, pois sabiam que precisariam

acender não uma, mas muitas fogueiras ao longo da noite. Parecia que, a cada

vez que a pele esfriava, ficava mais murcha do que estava antes. Se tivesse

sereno, então, pior: tinha de fazer fogo ainda mais vezes e com papel úmido!

As fogueiras só diminuíam depois de algumas horas, quando o pessoal,

bêbado de cachaça, deixava de ligar para a qualidade do som. (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.48).

A cada informação de como se dava o samba em São Paulo, se pode começar a

construir um desenho, no imaginário, de como era e quão distante se chegou para começar

olhar para o passado e reconstruir através das memórias

Page 86: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

85

Havia no batuque uma figura maior, um grande comandante, que era o

apitador, tido como o “dono” do samba. Além de coordenar os demais, ele

tinha de bolar criativos breques do pessoal, em que entrava solando melodias

improvisadas ou conhecidas – estas podiam ser, desde toques militares até

trechos de composições famosas, como “Danúbio Azul”. A qualidade dos

breques era fundamental para o renome do apitador e do cordão, pois, nos

concursos esparsos que ocorriam pela cidade os batuques não eram avaliados

pela competência dos músicos e, sim, pela inventividade do apitador. Vale

notar que os apitos da época eram maiores e mais graves do que os que se

usam hoje nas escolas de samba, por isso permitiam que se atingisse um

extenso leque de notas. Mas para que estas notas saíssem afinadas, os

apitadores precisavam ter enorme habilidade nos dedos e nos lábios (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.48-49).

Mais um elemento presente no samba, mas aqui acredito que mais utilizado no cordão

e posteriormente, nos carnavais modernos – mais agudo e menor no seu tamanho –, o apito

marcou a história do samba paulista e seu maior apitador, pelo que dizem os sambistas e uma

linda canção, visto sua história de sambista boêmio e mulherengo: Pato N´Água.

O maior apitador da história paulista foi, provavelmente, o Pato N’Água

(Walter Gomes de Oliveira), do Vai-Vai, um batuqueiro brilhante e um líder

nato, capaz de impor sua autoridade a todos os batuqueiros do cordão. Sob o

seu comando, o batuque do Vai-Vai teve dias gloriosos e se tornou o mais

respeitado da cidade. Pato, negro alto, forte, ossudo e muito ágil, era também

um valente convicto que criava inimigos com a mesma facilidade que

imaginava suas evoluções no apito. Numa manhã de 1969, porém, foi

encontrado morto num córrego de Suzano. A versão oficial era de que ele teria

sofrido um enfarte e se afogado, mas isso não convenceu ninguém, pois a

jaqueta que vestia tinha furos muito suspeitos. O dramaturgo Plínio Marcos,

amigo dele, arriscou uma outra versão, dizendo que sua morte se deu por obra

do Esquadrão da Morte. Geraldo Filme, amigo de longa data de Pato N’Água,

autor da bela homenagem “Silêncio no Bixiga”, afirmava que ele saiu de táxi

para ver umas “comadrinhas”(como chamava suas amantes) e que o chofer,

estranhando a corrida que já durava um dia inteiro, o teria entregue a policiais

de uma delegacia, onde foi visto com vida pela última vez. O certo é que

muita gente podia querer matar Pato, inclusive os eventuais maridos e amantes

das “comadrinhas”, e a aparência de uma vingança se reforça pela ironia de

terem jogado seu cadáver na água (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.49).

E como é fato recorrente no samba, essa história triste e cheia de nuvens encobrindo a

verdade, daí surge um samba lindíssimo e comovente. Além de ser um dos mais conhecidos

dentre os sambas de Geraldo filme.

Page 87: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

86

FOTO: Arquivo/USP Imagens

São Paulo- SP- Brasil- Carnaval na década de 1950. Pato

N’água, grande sambista e apitador no Cordão da Camisa

Verde e Branco no Vale do Anhangabaú.

Silencio no Bixiga

Silencio, o sambista está dormindo.

Ele foi, mas foi sorrindo.

A noticia chegou quando anoiteceu.

Escolas, eu peço o silencio de um minuto.

O Bixiga está em luto:

O apito de Pato N’Água emudeceu.

Partiu, não tem placa de bronze,

Não fica na história,

Sambista de rua morre sem glória

Depois de tanta alegria que ele nos deu. Assim, um fato repete de novo:

Sambista de rua, artista do povo,

É mais um que se foi sem dizer adeus

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.49-50).

Pode-se ver além nesse samba, crítica social, que imortaliza o seu protagonista. Pato

N’Água ficou conhecido e é cantado até os dias de hoje nas rodas de samba de São Paulo.

Para encerrarmos esse assunto que são os cordões, convêm mais alguns detalhes como,

por exemplo, o repertório utilizado.

A música dos cordões era tão livre quanto sua apresentação. A variedade

rítmica usada pelos cordões paulistas das primeiras décadas de 1900 era

tamanha, que documentos da época dão conta de que alguns até valseavam em

seus desfiles, contrariando a máxima de que a música carnavalesca deva ser,

Page 88: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

87

necessariamente, alegre e agitada [...]. Havia, porém, um ritmo que se

destacava frente aos demais no repertório dos cordões: a marcha-sambada.

Tratava-se de uma derivação mais acelerada, brejeira e sincopada das marchas

militares. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.50-51).

Esse repertório variado denota a criatividade e a quantidade de elementos que

compunham essas expressões culturais populares representadas pelo samba, este cheio de

variações em vários aspectos, desde instrumentos utilizados a andamentos, uns mais e outros

com menos influencias europeias, como a valsa.

Embora tivessem bastante contato com o samba-de-bumbo, os cordões

pioneiros não tinham esse samba – nem nenhum outro – como “prato

principal” dos seus desfiles. O motivo disso é, provavelmente, o fato de o

samba-de-bumbo ser mais lento e ficar um pouco ofuscado pela vibração das

marchas-sambadas. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52).

Essas variações do samba paulista, existem comparativamente, principalmente com o

samba carioca, mas a de se analisar bem esses dois sambas.

[...] Nos anos 30, com a maior popularização do radio, entraram no repertório

dos cordões os sucessos radiofônicos, desde os sambas acaipirados de Raul

Torres – notoriamente inspirados nos sambas de Pirapora –, até os sambas de

gente como Noel Rosa, Ismael Silva, Bide e Marçal, aclamados no Rio de

Janeiro (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52).

Essa nova fase em que se inicia a instalação da indústria cultural no Brasil, pode-se

afirmar que o “intercâmbio” cultural se instalou, pois a facilidade de acesso ao outro, se faz

mais eficiente e rápida.

Aos poucos, com a consolidação do samba carioca no gosto paulista, os

compositores daqui começaram a compor nesse estilo, mas, acostumados com

as velozes marchas-sambadas, acabaram acelerando bastante o seu andamento.

Essa inovação lhes valeu o apelido de “canelas duras” dado pelos sambistas do

Rio, pois, naquela velocidade, ficavam muito difíceis os requebros samba, só

restando aos foliões marchar. Curiosamente, em meados dos anos 60, os

cariocas também passaram a fazer sambas-enredo em andamento bem mais

rápidos e se aproximaram mito das marchas-sambadas. Hoje, os sambas que as

escolas do Rio levam para a Avenida estão mais rápidos do que os de São

Paulo (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52). .

Então, segundo Osvaldinho confirma-se, até certo ponto, a troca de influencias do

samba paulista numa análise comparativa com o samba carioca. Não foi unilateral, neste caso

das marchas-sambadas paulistas, influenciando o andamento do sambas-enredo carioca.

Page 89: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

88

Outra característica do samba de São Paulo que prevaleceu até os anos 60 era

o maior peso do batuque, feito com muito surdo e bumbo e pouca miudeza

(pandeiro, cuíca, frigideira, chi-chique...). A influência dos batuques caboclos

de Pirapora e do interior do estado era, evidentemente, a razão desse peso.

Atualmente, porém, houve uma padronização – burra, é bom dizer – das

baterias, o que eliminou boa parte dos traços regionais dos diversos desfiles

que ocorrem pelo Brasil. Uma perda recente que eu lamento muito é a bateria

da Vai-Vai ter deixado de fazer uma evolução criada pelo Pato N’Água, uma

simulação de uma briga entre os batuqueiros que transformava a bateria numa

grande bagunça por alguns instantes, mas que, assim que soasse o apito,

voltava à mais perfeita harmonia. Era algo bonito e bem original. (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.52).

Essa questão do Brasil não preservar suas memórias é incômoda. O que poderia ser a

marca, como as cores da Mangueira, a águia da Portela... tirar a evolução criada por Pato

N’Água é uma perda para a memória da escola. A Vai-Vai tem muito da formação do perfil

cultural do samba da cidade de São Paulo, assim o que a escola preservar de sua história, a

cidade de São Paulo, também terá preservada uma parte importante da sua história cultural.

O Vai-Vai foi o único dos grandes cordões paulistanos que começou com

evidente maioria negra. Formado no Bixiga, pedaço mais baixo da Bela Vista,

no final dos anos 20 (a data oficial da fundação é de 30, mas conheço

composições de 28 e 29 feitas por Henricão para o grupo), o cordão logo se

tornou o principal reduto dos batuqueiros de Pirapora na capital. Também

pudera. A maior parte de seus fundadores frequentava as festas de Bom Jesus

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.55).

Este estudo não tem como foco o carnaval, nem as escolas de samba, mas na crença de

que essas informações venham a desenhar o papel do samba paulista em meio a formação da

identidade nacional em suas imbricações.

Com a chegada dos italianos à Bela Vista e com seu notável entendimento

com os antigos moradores do local – Adoniran Barbosa dizia: “no Bixiga, até

os crioulinhos têm sotaque italiano...” –, a agremiação cresceu bastante,

diversificou suas referências e se tornou anda mais democrático. Funcionando

como escola de samba desde 1972, o Vai-Vai é o maior detentor de títulos do

carnaval paulista. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.56).

Adoniran dispensa apresentações, pois é o nome mais forte quando se fala em

representante paulista no samba. Além do seu sotaque italiano num português “errado”,

inclusive samba em italiano: Pióve! Este era um dos brancos do samba, além de Paulo

Vanzolini que era zoólogo da USP – autor de Ronda, Um Homem de Moral, dentre outros.

No inicio de 1940 o antigo Teatro Santana recebeu a espetacular escola de

samba da Portela em seu grito de carnaval – uma espécie de show com vários

artistas que marcavam informalmente a abertura das festividades

carnavalescas. Na plateia, o ritmista Nenê do Pandeiro (apelido pelo qual era

Page 90: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

89

conhecido Alberto Alves da Silva, um mineiro criado na zona leste de

paulistana) ficou de queixo caído com o que ouviu. Os cordões e escolas de

São Paulo não tinha nada que se comparasse àquilo em termos de organização,

qualidade sonora e impacto visual. Isso, sem falar no samba, que os

portelenses dominavam como poucos [...]. Os primeiros anos da Nenê da Vila

Matilde marcaram uma mudança de rumos no carnaval paulista, pois, embora

fosse bastante semelhante aos cordões da cidade, a escola foi a primeira a se

empenhar em seguir o modelo carioca com fidelidade. Um fruto relevante

desse esforço foi sua tentativa de implantar o samba-enredo em São Paulo em

1956. Nesse ano, narrando as relações entre brancos e negros durante a

escravidão, a nenê se aproximaria bastante do padrão consagrado de samba-

enredo com seu “Casa Grande e Senzala”, que seria melhor definido como

“samba-tema, uma vez que tinha apenas 10 linhas e não chegava a ,

propriamente, desenvolver o tem,a proposto, limitando-se a ilustrá-lo (CUÍCA

e DOMINGUES, 2009, p.62-63).

O marco no carnaval paulista, lamentado pela maioria dos sambistas deste tempo

histórico, foi a “adaptação” do carnaval paulista ao carioca, como representante dessa

mudança temos um mineiro, Seu Nenê. A razão pelo lamento é que a partir daí inicia-se um

processo de profissionalização do Carnaval paulista, e este tendo como modelo principal a

Portela.

A influência das escolas de samba cariocas no carnaval paulistano consolidou-

se, apenas, em meados dos 50, sobretudo em virtude dos esforços da Nenê da

Vila Matilde. É preciso dizer, porém, que a intervenção da Nenê não foi o

único fator envolvido nesse processo. Além do ininterrupto intercambio entre

os sambistas de São Paulo e do Rio, colaboraram decisivamente os filmes

nacionais, que, algumas vezes, traziam músicas e imagens de escolas de

samba, e as apresentações ocasionais que as grandes agremiações cariocas

faziam nos teatros e boates paulistanos. Algo que também ajudou nesse

sentido foi a frequente presença na capital das boas escolas de samba de

Santos, que aderiram ao estilo do Rio de Janeiro ainda na década de 40, [...]

um momento significativo da divulgação das escolas de samba cariocas em

São Paulo foi o das comemorações do quarto centenário da cidade, em 1954,

quando Portela, campeã do Rio de Janeiro no ano anterior, esteve se

apresentando por aqui. Foi nessa ocasião que eu e muitos outros batuqueiros

vimos, pela primeira vez, uma bateria daquele tipo. Ficamos maravilhados.

Depois, lembro que, nos carnavais, todo o pessoal ficava esperando a Nenê da

Vila Matilde passar para ouvir algo similar (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.62-63).

O tom dos comentários dentre os sambistas, às vezes, é que o Seu Nenê era o

“culpado” pela “contaminação” do samba paulista, ou melhor, do carnaval paulista, pelo

carioca. Segundo Osvaldinho da Cuíca, houveram outros fatores que somaram a este

movimento da Escola de samba Nenê da Vila Matilde.

Page 91: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

90

Por certo tempo, as tradições paulista e carioca conviviam harmoniosamente

em São Paulo. Prova disso é que, mesmo depois de a Nenê ter obtido sucesso

com sua adesão ao modelo de bateria das escolas de samba do Rio de Janeiro

– no que logo foi seguida por agremiações como a Unidos do Peruche e a

Império do Cambuci –, São Paulo continuou fazendo música carnavalesca à

sua maneira. Porém, nos anos 60, quando os desfiles do Rio passaram a ser

televisionados e os sambas-enredo comercializados em disco com grande

êxito, o modelo carioca se tornou predominante em São Paulo. Surgiu, então,

um forte movimento em favor da adequação do carnaval da cidade àquele

formato de sucesso [...] Em 1968, quando, enfim, foi oficializado o carnaval

de São Paulo, o destaque dado ao desfile das escolas de samba já foi bem

maior do que o dado aos cordões. Quatro anos depois, em 1972, os três

últimos cordões deixaram de existir: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Fio de

ouro viraram escolas de samba (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.68-69).

Na citação acima chega-se a outro marco na historiografia do samba paulista, pois

houveram rituais de passagem importantes, e a indústria cultural com relevante participação

nisso. Acaba-se a era dos cordões e abre-se para o novo, o novo tempo dos carnavais das

escolas de samba.

Por conta do desaparecimento dos cordões, o ano de 1972 marca o fim

simbólico do samba autenticamente paulista. Dali em diante, sobraram,

apenas, uns poucos grupos pequenos e desorganizados, mas que não

demoraram a desaparecer [...] Atualmente, o processo de aprendizado e

adoção do samba carioca no carnaval de São Paulo já está completa e me

parece irreversível. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.69).

Nota-se certo lamento na citação de Osvaldinho, mas ao mesmo tempo ele mesmo

quem foi convidado para fazer todas as adaptações – do carnaval paulista ao carioca – na

bateria da Vai-Vai. Além da falta de verba que se tinha para o carnaval paulista, daí a

necessidade de se adaptar as normas cabíveis as quais legitimariam investimentos no carnaval

paulista, que antes disso, não passava credibilidade pela desorganização geral.

Eram receios pertinentes, mas os sambistas souberam contorná-los. A

desacreditada Coligação das Escolas de Samba foi esvaziada em prol da

criação da Federação das Escolas de Samba e Cordões Carnavalescos de São

Paulo, em que estavam envolvidos os prestigiosos jornalistas Rubens Moraes

Sarmento , Vicente Leporace e Evaristo Carvalho, alem de todos os grandes

líderes das escolas e cordões da época: Inocêncio Mulata, do Camisa Verde e

Branco, Seu Nenê, da Nenê da Vila Matilde; Pé Rachado, do Vai-Vai; Carlão,

da Unidos do Peruche; Madrinha Eunice, da Lavapés; Xangô, da Unidos da

Vila Maria; Zezinho do Banjo, da Morro da Casa Verde; Vitucha, do

Paulistano da Glória; Rômulo, do Fio de Ouro. A nova entidade deu

credibilidade aos sambistas e, não só conseguiu a criação de um desfile oficial

em São Paulo, como ganhou autonomia para comandá-lo. O primeiro carnaval

oficial das escolas de samba e cordões, em 1968, foi realizado no vale do

Anhangabaú. Em 1972, passou para avenida São João, e, em 1977, para a

Page 92: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

91

avenida Tiradentes, antes de chegar ao sambódromo do Pólo Cultural do

Anhembi, em 1991. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.71-72).

Assim, percebe-se que seria praticamente impossível falar do samba paulista sem falar

do carnaval, pois estão intrinsecamente ligados, mas será que este samba-rural paulista se

perdeu nesses novos carnavais absorvidos dos cariocas?

O samba, que desde sua origem mais remota esteve ligado a festividades, não

ficava de fora das celebrações juninas. Aliás, o fato de o samba paulista mais

típico ter sido cunhado, em boa medida, num ambiente rural ou semi-rural

colaborou decisivamente para que se adequasse bem ao caráter interiorano

dessas festas, conhecidas como “festas caipiras” – até hoje, as variantes do

samba rural paulista encontram abrigo em festas juninas, identificando-se mais

com estas do que com o carnaval. [...] o samba foi, pouco a pouco, sumindo

das festas juninas de São Paulo. Até os anos 50, por exemplo, eu me recordo

de dançar muito samba nas animadas frestas de São João da rua Ponte Pensa,

no Tucuruvi, apelidadas de “poeirinhas” por conta da poeira que levantava do

chão de terra [...] no antigo Parque Xangai, o pessoal da Lavapés fazia uma

grande festa junina em que o samba não só estava presente, como reinava

soberano! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.82).

Um dado de grande relevância, quando o que se procura é descobrir o porquê dessa

denominação: samba rural paulista, já ficou claro, até aqui que este tipo de samba possuía

variações e atingia e instiga muitos estudiosos e admiradores deste tipo de arte. Suas

peculiaridades e proximidade com a musica caipira, ou sertaneja tradicional, ou sambas mais

melódicos, seja como for, é específico e abrangente ao mesmo tempo, pois é de fácil

percepção pelos temas das letras, pelo instrumentos percussivos ou não que se utiliza, o que se

nota é na especificidade paulista nesse tipo de gênero musical.

[...] Na realidade, a maior parte das datas festivas em que se fazia samba em

São Paulo – geralmente, dias sagrados para a fé e a história dos afro-

descendentes brasileiros – estava fora dos períodos carnavalescos e pré-

carnavalescos: o dia 13 de maio, que marca a abolição da escravatura do país:

os dias 16 de julho de 7 de outubro, que correspondem, respectivamente, a

Nossa Senhora do Carmo e a Nossa Senhora do Rosário, duas das

manifestações da Virgem Maria mais prezadas pelos negros; o dia 5 de

outubro, dedicado a São Benedito, o mais conhecido santo de pele negra. Isso,

sem falar nos finais de semana do mês de agosto, em que ocorriam as já

descritas comemorações de bom Jesus de Pirapora.

A relação do samba com as festas de negros, porém, não era a única possível.

Recordo-me bem que, até nas festas de Nossa Senhora de Achiropita,

tradicionalmente comandadas pelos italianos no Bixiga, costumava sair samba

– ainda que aquelas noites frias de agosto tivessem como principais atrações

os conjuntos de choro. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.82-83).

Page 93: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

92

Ainda, nos atendo mais um instante nessa brilhante pesquisa e depoimentos de

Osvaldinho da Cuíca, convém voltarmos para o samba de rua, as famosas rodas de samba.

Havia vários pontos de encontro de sambistas na Barra Funda – a casa de

Dionísio, na rua Tupy, era dos mais frequentados –, mas um deles se tornou o

principal: o lendário Largo da Banana, situado atrás da antiga estação

ferroviária da Barra Funda. Ali, onde a carga de bananas e produtos

desembarcados no porto de Santos (vinda da ferrovia Santos-Jundiaí) era

descarregada e eventualmente transferida para os trens que seguiam para o

interior do estado, havia as mais famosas rodas de samba de São Paulo.

O largo era pouco convidativo para a chamada “gente de bem”. Entre pilhas

de bananas e caixotes espalhados por todo lado, misturava-se uma multidão de

ensacadores e carregadores com a malandragem local. Ninguém “civilizado”

se metia ali. Contudo, justamente por isso, aquele era um lugar muito propício

para o florescimento do nascente samba paulistano (CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.84).

Esses fatos ocorrendo nas primeiras décadas do século XX, e, assim como no Rio de

Janeiro, o samba começa suas formas de expressão na marginalidade, essas características são

semelhantes, pra não dizer, idênticas nos dois casos.

São Paulo tem, novamente, em suas construções elementos enriquecedores de sua

cultura e, com a cara da formação identitária da cidade.

Tanto os trabalhadores, quanto os malandros de lá, costumavam ser gente sem

estudo que garantia a sobrevivência apenas com os próprios braços e pernas:

fosse pela força, ensacando e carregando bananas nos trens; fosse pela

habilidade ou pela a valentia, batendo carteiras, enganando no carteado ou

tentando qualquer da vasta série de pequenos golpes que assustava a sociedade

paulistana da época. Nos dois casos, sua carência era tamanha, que o lazer

ficava restrito às ocasionais noitadas dos botequins e prostíbulos de baixa

categoria da região – quando se tinha algum dinheiro – e às rodas de samba do

Largo, gratuitas, animadas, enriquecedoras e muito democráticas (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.85).

Além do samba que ocorria nessas rodas, o autor ainda cita a tiririca (derivada da

capoeira), também acontecia em rodas e, movida a sambas conhecidos e divulgados no rádio

ou composições específicas como uma cantada por Geraldo Filme:

“É tumba, moleque, é tumba

É tumba pra derrubar,

Tiririca, faca de ponta,

Capoeira quer te pegar,

Dona Rita do tabuleiro

Quem derrubou meu companheiro”

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.86).

Page 94: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

93

Segundo Osvaldinho, a tiririca também sumiu, por volta dos anos 50 e 60. Outro fato

lamentado. Assim, vamos percebendo o quanto da cultura vai se deixando de lado e se

perdendo nas memórias não resgatadas.

Uma tradição que persiste em Santos e São Paulo, como em todos os pontos

do pais,é a ligação do samba com a vida social e religiosa das roças de

umbanda e candomblé. Samba-de-roda, por exemplo, tido como a principal

matriz do samba carioca, é uma parte indissociável das celebrações do

candomblé da Bahia, em que exerce o papel de comunhão dos fiéis após os

cultos. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.89).

Essa ligação do samba com a questão social e a religiosidade, já abordados neste

estudo, como citado por Osvaldinho, é indissociável, pois estão intrinsecamente ligados desde

seu surgimento em Terra Brasilis. O fato é que se até agora o que não se tem dúvida é que o

samba é de origem afro-brasileira, vem da ancestralidade africana, com suas crenças e

tradições. Assim segue mais algumas informações de suma importância para a construção

desse estudo.

No próprio berço do samba paulistano, a Barra Funda, os terreiros tiveram

suma importância, sobretudo, graças a mãe-de-santo Tia Olympia, que

costumava receber e incentivar o pessoal do Dionísio Barbosa em sua roça [...]

Outro terreiro que teve grande relevância nos primeiros tempos, muito

comentado por Geraldo Filme, foi o do campineiro Zé Soldado, situado no

Jabaquara, um bairro então distante e semi-rural da zona sul da capital. Negro,

Grandalhão, forte e intelectualizado, o pai-de-santo Zé Soldado mantinha a

convicção da necessidade da conservação da cultura negra. [...] Apenas Mario

de Andrade, no citado estudo “O samba rural paulista”, anotou alguns

improvisos de Zé Soldado, recolhidos em Pirapora, em 1937 (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.90).

Muito importante às contribuições de Mario de Andrade no samba rural paulista, pois

pouco se tem de registros, o que se tem são testemunhos como é o caso de Osvaldinho da

Cuíca, Geraldo Filme, Germano Matias, Toniquinho Batuqueiro que foi resgatado por Renato

Dias e T-Kaçula, além desses dois últimos com trabalhos magníficos nas suas rodas de samba

no século XXI trazendo à luz esse samba rural paulista do inicio do século XX.

Ainda que o samba estivesse espalhado por toda a São Paulo da primeira

metade do século passado, havia apenas um lugar onde era seguro encontrar

batucada em qualquer um dos 365 dias do ano: o centro da cidade. Era o

samba dos engraxates, tão divertido e tão legítimo, que hoje sobrevive apenas

nas mãos e vozes de uns poucos, como o velho Gilson Bahia (Hermenegildo

Francisco dos Santos), que tem sua cadeira na Praça da República, onde

organiza uma animada roda de samba 2 ou 3 vezes por semana. Nos áureos

tempos, era uma multidão de engraxates que se reunia em lugares como a

Praça da Sé e Praça João Mendes (as Praças da República, Patriarca e Clóvis

Page 95: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

94

Beviláqua, também tinham núcleos fortes) para, nos intervalos entre um

serviço e outro, fazer sua batucada (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.91).

Esses engraxates foram os nossos principais nomes do samba paulista. Dentre eles os

nomes como Osvaldinho da Cuíca, Germano Matias, Toniquinho Batuqueiro e Geraldo Filme.

Ser engraxate era um dos caminhos mais atraentes para um jovem de origem

humilde – como eu fui –, obrigado a ganhar a vida sem instrução escolar, mas

ainda desejoso de liberdade. No agitado dia-a-dia das calçadas era possível

sentir-se o senhor de seu próprio destino, respirando a brisa que a própria

cidade respirava, a brisa do progresso desembestado, das levas de migrantes e

imigrantes que chegavam sem parar, dos automóveis tomando as ruas; enfim,

do mundo que se construía e derrubava, minuto a minuto, diante dos seus

olhos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.92).

Esse ambiente do centro da cidade de São Paulo, acaba por se tornar um “laboratório”

cultural, pois o que parece é que esse espaço público se torna favorável para novas

construções que se dá pela forma cosmopolita com que a cidade vai se transformando e o

samba é protagonista neste espaço com características multiculturais.

O trabalho nas ruas colaborava para desenvolvimento do gosto pelo batuque,

pois juntava um monte de jovens de mesmo perfil – e que, portanto, também

partilhavam da cultura mestiça e marginal que gerou o nosso samba – e era

cheio de intervalos de ócio, passíveis de serem preenchidos como bem

entendesse. Alem disso deve-se ressaltar que a atividade de engraxate, em si

mesma, já é bastante musical, com seus movimentos repetitivos e ritmados. Eu

me lembro, inclusive, que, nas mãos de meninos mais habilidosos, os panos

umedecidos, próprios para dar brilhos aos sapatos, viravam um instrumento e

tanto, alternando a fricção contra o couro e os estalos usados para eliminar

excessos de água.

A imagem dos engraxates era uma cena fácil de ver na região central de São Paulo.

Aliás, essa forma criativa de se engraxar acaba por ser um atrativo para os clientes potenciais.

[...] mas de pouco volume sonoro para uma roda de samba, os engraxates

imaginaram muitas outras adaptações musicais do seu material de trabalho, o

que tornava o eventual “auxílio luxuoso” de um pandeiro ou surdo um mero

acessório para a batucada. Ao experimentar com criatividade as caixas de

madeira, por exemplo, perceberam que, batendo na lateral inferior com os

calcanhares, conseguiam uma frequência sonora mais grave, semelhante a do

surdo. Batucando com as palmas das mãos na parte superior da lateral, faziam

um som médio, de caixa. Da mesma lateral, ainda depois de usada para

limpara a graxa das mãos, era possível tira um gemido grave da cuíca, através

de um hábil movimento de fricção dos dedos. As escovas também tinham

grande utilidade: as grandes, percutidas uma nas outras, davam um som

vigoroso de palmas, enquanto as pequenas eram usadas como baquetas do

principal “instrumento” daquelas batucadas: as tampas das latinhas de graxa.

Essas tampas, feitas de ferro (ao contrário das atuais, de alumínio, que,

embora mais leves e resistentes, não têm um timbre tão bonito), tiniam como

ágeis frigideiras. As possibilidades musicais da tampinha da lata de graxa

Page 96: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

95

eram tais, que acabaram consagradas nacionalmente após sua adoção pelo

grande Germano Mathias nos anos 50 (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.92-

93).

Germano Mathias me indicou sua biografia: Samba Explícito, que assim como

Osvaldinho da Cuíca conta sua história e a história do samba paulista.

O brejeiro batuque dos engraxates atraía os sambistas paulistanos, mas

também todo o meio que os cercava. Dos bêbados aos malandros famosos da

cidade. Não é à toa que uma das maiores concentrações de engraxates foi

também o endereço da mais disputada roda de tiririca do centro de São Paulo:

a Prainha, um trecho de calçada larga da Avenida São João, em frente à Praça

do Correio. Ali, ao lado das inúmeras mesas esparramadas pelos bares da

avenida, os valentes se encontravam para dar provas de força e agilidade,

agravando ainda mais a má fama do local, tido como ponto de malandragem e

da boemia paulistana. Eu mesmo, embora trabalhasse como engraxate no

Tucuruvi, ia muito lá para batucar, jogar tiririca e tomar umas cachacinhas

com o pessoal na extinta Salsicharia Dois Porquinhos (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.93-94).

Esse poder catalisador das rodas de samba do centro de São Paulo foi de suma

importância para o enriquecimento deste, pois, pode-se crer que essa contribuição do samba

rural e das periferias paulistanas, dá o tom do samba Paulista urbano, ou urbanizado. Além de

alimentar a memória da cidade ao citar nomes de ruas, avenidas, praças e comércios locais da

época, assim fortalecendo e conservando a história, a memória da cidade.

[...] Há, porém, um nome que não pode ser esquecido de maneira nenhuma

quando se fala em samba dos engraxates: Toniquinho Batuqueiro, um negro

nascido em Piracicaba, em 1922, e radicado em São Paulo desde a juventude.

[...] na verdade, ele gostava de participar de tudo o que acontecia por lá e era

um dos pouquíssimos engraxates que podia trabalhar (e fazer batucada, é

claro!) em pontos alheios sem ser incomodado, devido à forte liderança que

exercia sobre seus colegas (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.94-95)

Toniquinho Batuqueiro é um dos principais atores deste samba rural paulista e sua

transição as rodas de samba da capital. Se deve ressaltar a importância dada a sua obra por

Renato Dias do Kolombolo de Diá Piratininga e T-Kaçula do Samba Autêntico. Gravando

suas músicas e revisitando todo seu repertório, no Projeto Memória do Samba Paulista, além

de filmes documentários, nos quais os dois têm forte participação. Na contemporaneidade do

samba paulista esses dois nomes são de suma importância no que se refere ao resgate da

memória do samba paulista.

Page 97: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

96

Mas, voltemo-nos para este nome, Toniquinho Batuqueiro, como citado

anteriormente, um negro de Piracicaba, com talento respeitado desde os engraxates até os dias

atuais.

Toniquinho tentou inúmeras vezes partir para a carreira artística, mas não

obteve sucesso, embora tenha se apresentado bastante na noite paulistana e

trabalhado com alguns nomes de muito valor, como Geraldo Filme (num

célebre trio também integrado por Zeca da Casa Verde, formado por sugestão

do dramaturgo Plínio Marcos) e seu amigo Germano Mathias. Toniquinho

também alçou vôo pelo mundo das escolas se samba, tendo certo destaque por

fundar a mencionada Brasil Novo e assinar alguns sambas-enredo históricos, a

exemplo de “História de Vila Brasilândia”, feito com Carioca para o primeiro

desfile da Rosas de Ouro. Por tudo isso, mesmo que não tenha consolidado

uma carreira estável, Toniquinho criou várias amizades entre o pessoal das

escolas de samba, os músicos profissionais e os radialistas paulistanos ( seu

talento para as relações públicas era impressionante!), passando a ser o

principal – e, talvez, o único – canal de comunicação entre os anônimos

engraxates-sambistas e o meio musical profissional (CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.95).

Incrível que quanto mais se conhece, mais se percebe o quão próximos todos os atores

que formaram o samba paulista “tradicional”, próximos geograficamente e suas histórias de

vida se cruzando e, esses cruzamentos resultam da criatividade artística, muitas vezes, por

falta de instrumentos e falta de condições financeiras para tê-los, surge os truques, as saídas

criativas, através de descobertas como engraxates e o ócio que e este papel social os dava, no

espaço público à criação, além de certa cumplicidade entre eles, como também, uma parceria

amigável, onde os sambistas se aproximavam independente das condições sociais.

.

Eu pessoalmente, chamei Toniquinho Batuqueiro para tocar comigo sempre

que pude. Uma amostra do nosso trabalho em parceria é “Ditado Antigo”, que

fiz a partir de duas estrofes de um samba com o mesmo nome composto por

ele há quase 30 anos, mostrando sua influência interiorana, temperada nos

batuques de Pirapora.

Ditado Antigo

Ê lae lae lae...

Mandei preparar o terreiro, que já vem chegando o dia.

Encourar o meu pandeiro pra entrar na folia.

E quando começar o pagode

Pego o pandeiro e caio na orgia.

Meu avô, preto de Angola, me ensinava cantoria.

Foi herança de um passado, quando fez a travessia.

Na bagagem, a esperança, consciência e valentia.

Capoeira quilombola derrubava e não caía.

Page 98: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

97

Ah, jongueiro,

Bate no couro, que tem festa no terreiro!

No dizer de minha avó, sambador não tem valia.

“Samba nunca deu camisa”, minha vó sempre dizia,

“Sambador não ganha nada, vive na calçada e

Não cuida da família”.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.95-96).

Esta música de parceria de Toniquinho Batuqueiro e Osvaldinho da Cuíca, também foi

gravada no projeto Memória do Samba Paulista, com Renato Dias e T-Kaçula.

A cidade de São Paulo no inicio do século XX, momento histórico em que o meio de

transporte era o trem, e este era o responsável pela fusão da cidade com suas zonas rurais,

semi-rurais , bairros mais afastados com a região central, onde tudo se fundia.

Assim como no Rio de Janeiro, pode-se crer em toda a região do Brasil em que o

samba se fez presente, os seus representantes eram negros, mestiços, brancos pobres, as

classes baixas, mais marginalizadas, menos privilegiadas de bens materiais.

Uma eficiente via de contato de parte da periferia como centro de São Paulo

era o transporte ferroviário, símbolo por excelência da modernidade no inicio

do século XX. Chacoalhando ao balanço moroso das maria-fumaça, sempre

preocupados com as brasinhas que saíam da fornalha e chamuscavam a roupa

e os cabelos, iam e vinham milhares de paulistanos, cujo deslocamento físico

também implicava num deslocamento cultural, na medida em que punha em

contato as ainda díspares referencias da cidade e dos subúrbios. Como não

poderia deixar de ser, o samba, filho ilustre da classe baixa, viajava junto

sobre os trilhos, criando intersecções entre sambistas de todos os cantos. Aliás,

é bom ressaltar que o samba, desde seus primeiros anos, tem uma história em

comum com os trens, a começar pelas rodas das estações Barra Funda (vizinha

ao Largo da Banana) e Valongo, pontas paulistanas e santista da ferrovia

Santos-Jundiaí, e da estação de Barueri – os antigos, como o Toniquinho

Batuqueiro, pronunciavam “Bariri” –, ponto de encontro dos bambas que iam

para Pirapora (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.96-97).

Na citação acima nota-se que a cidade de São Paulo, desde o início do século XX

estava intrinsicamente ligada ao interior e, principalmente a Pirapora do Bom Jesus. Esse

intercâmbio cultural era contínuo, segundo os relatos levantados nessa pesquisa, assim no

momento em que a igreja começa a desaprovar os festejos nos barracões e nas ruas, essa

confluência cultural, assim como seus representantes, buscam outros espaços de celebração

de sua cultura. Com essa rejeição da igreja de Pirapora, o samba de bumbo desloca-se para o

espaço urbano, numa intersecção, fusão, com o samba urbano, encontrando outros espaços,

como os vagões dos trens da cidade.

Page 99: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

98

Assim como os sambistas escolhiam os vagões em que andavam, escolhiam as

estações em que se reuniam para batucar. Na linha da antiga Central do Brasil

(ligação ferroviária de São Paulo com o Rio de Janeiro, por exemplo, a

periferia era a estação Brás, provavelmente por centralizar o fluxo de entrada e

saída do bairro homônimo, um dos mais musicais de São Paulo [...] Pouco

antes da metade do século passado, com a crescente chegada de afro-

descendentes ao Brás, houve um duplo movimento de assimilação cultural em

que os negros incorporaram aquela musicalidade de raízes européias, inclusive

tomando dianteira em muitas serenatas, mas, em contrapartida, seduziram os

antigos habitantes do local com o vigor rítmico dos seus tambores, que podiam

ser ouvidos, tanto na estação ferroviária, quanto no largo da igreja Matriz de

Bom Jesus do Brás, onde havia um verdadeiro enxame de engraxates

batuqueiros. Essa combinação foi tão boa, que deu ao Brás o melhor carnaval

de bairro de São Paulo, com suas ruas fervilhantes e as concorridíssimas

“batalhas de confete”disputadas por blocos e cordões (CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.97-98).

.

Esses bairros da cidade de São Paulo como o Brás, era outro reduto de sambistas e

europeus recém chegados ao Brasil. Claro, que assim que se houve essa relação do trem

com samba, se espera saber a história da música de Adoniran Barbosa “Trem das Onze”-

uma das músicas mais gravadas no Brasil e no mundo.

No Trenzinho da Cantareira, as duas estações que mais tinham

sambistas eram a do Tucuruvi e a do Jaçanã (parada final da linha).

Muitas vezes, quando o batuque estava bom, quem tinha que descer

antes deixava passar sua estação para ir com o pessoal até Jaçanã, onde

o samba continuava em algum boteco até que fosse cada um para o seu

canto. Da mesma forma, os batuqueiros que ficassem no Tucuruvi,

onde havia um reduto bem forte, sempre havia quem descesse antes da

sua parada para acompanhá-los. Uma curiosidade: no clássico “Trem

das Onze”, provavelmente para não ferir a métrica da canção, Adoniran

Barbosa inventou um horário de partida para o Jaçanã que não existia,

pois a última saída do Trenzinho da Cantareira nunca foi tão tarde (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.99).

Que Adoniran inventava as histórias das músicas dele, já era sabido, pois o Ernesto

passou a vida dizendo que não houve nada daquilo que diz “O Samba do Ernesto” o qual ele

conta que o Ernesto furou com ele e com uns amigos. Iracema é outra música que segundo

amigos dele contam, foi uma moça que o esnobou e ele fez a música matando a Iracema

atropelada.

[...] veio morar na capital paulista apenas aos 22 anos de idade, depois de

passar por Valinhos (onde nasceu), Jundiaí e Santo André. Trata-se de

Adoniran Barbosa, o filho de italianos no interior que radicalizou a pronúncia

caipira-italianada da capital paulista em suas composições e representou a

cidade, seu dia-a-dia e seus habitantes com muita sutileza, explorando até a

Page 100: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

99

sua singular maneira de encadear palavras na fala. Com enorme sensibilidade,

conseguiu fazer (e encarnar, quando cantava) o retrato mais perfeito de São

Paulo de que se tem noticia na música brasileira. Para Paulo Vanzolini, outro

dos maiores expoentes da nossa história musical, seu samba “Apaga o Fogo,

Mané” diz mais sobre São Paulo do que quaisquer sete volumes de

enciclopédias (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.124).

Há de se concordar com Paulo Vanzolini, pois como cantora eu sempre que possível

interpreto essa música, pois sua importância histórica é valorosa. Esta música conta o seu

tempo, ou seja, o tempo do lampião, o tempo em que se ascendia o fogão a lenha, o tempo

em que se escrevia bilhetes num papel...

Apaga o Fogo, Mané

Inês saiu, dizendo que ia comprar pavio pro lampião,

“Pode esperar, Mané, eu já volto já”

Acendi o fogão, botei água pra esquentar

E fui pro portão, só pra ver Inês chegar.

Anoiteceu e ela não voltou

Fui pra rua como um louco pra saber o que aconteceu.

Procurei na Central, procurei no hospital e no xadrez,

Rodei a cidade inteira e não encontrei Inês.

Voltei pra casa triste demais, o que Inês me fez não se faz.

E no chão, bem perto do fogão,

Encontrei um papel escrito assim:

“Pode apagar o fogo, Mané, eu não volto mais”.

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.124).

Convém ressaltar que o samba paulista tem esse detalhe a ser observado, essas letras

tristes, melancólicas, de questionamentos de condições sociais, falando do racismo, de

religiosidade, de escravidão e, Adoniran Barbosa, com característica única, deu uma cara ao

samba paulista urbano e, quando nos debruçamos para falar dos maiores interpretes do

samba de Adoniran, o Demônios da Garoa, fica ainda mais nítida a diferença do samba

paulista, se comparado ao carioca e, mais ainda se comparado ao samba do nordeste, pois a

sutileza com que se trabalham as vozes, é única, além de ser o grupo mais antigo em

atividade segundo o Guinness Book .

Adoniran nasceu João Rubinato, em 1910. No início dos anos 30, ainda sem

ter um rumo certo na vida – saltando de emprego em emprego e colecionando

ofícios, como os de entregador de Marmitas, varredor, mascate e encanador –,

começou a se apresentar em programas de calouros das rádios de São Paulo.

Achou por bem escolher um nome artístico, já que o seu nome de batismo lhe

parecia incompatível com um sambista. Acabou escolhendo uma combinação

do primeiro nome de um companheiro de boemia, carteiro de profissão, e o

Page 101: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

100

sobrenome de seu ídolo da música, Luis Barbosa (CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.124). .

Nota-se que a variedade de funções exercidas por Adoniran contribuiu para um

repertório vasto sobre o cotidiano dos trabalhadores e, o dia-a-dia desses tipos que o próprio

Adoniran observava e criava histórias com esses personagens reais da vida comum de São

Paulo nos meados do século XX.

A acolhida nas rádios, porém, não foi como Adoniran imaginava, sendo

gongado em vários programas. Passado um ano de tentativas, conseguiu ser

aprovado no programa de Jorge Amaral, na Rádio Cruzeiro do Sul, cantando

“Filosofia” (de Noel Rosa). “O rapaz do gongo devia estar dormindo”, dizia,

anos depois, com muito humo. Surgiu-lhe, então, um convite de Paraguaçu

para ir cantar semanalmente na Rádio São Paulo, mas mediante cachês que

mal pagavam a condução de ida e volta (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.125).

Essas histórias de vida, explicam muito de quem é aquele sambista, pois está explícita

em suas letras e melodias, pois estas carregam estas histórias, aqui de Adoniran, ali de

Toniquinho, acolá de Osvaldinho e assim por diante. Esses atores que protagonizaram a

história do samba paulista urbano, em suas realidades trazem muito de semelhanças.

No final de 1934, Adoniran colocou letra em uma marchinha de J. Aimberê,

intitulada “Dona Boa”, e, para sua surpresa, venceu o concurso de músicas

carnavalescas organizado pela prefeitura de São Paulo no ano seguinte. A

composição, que obteve sucesso regional (inclusive pela gravação de Raul

Torres) e rendeu-lhe algum dinheiro [...], porém, Adoniran foi repetidamente

demitido da radio e teve que procurar outro emprego. Decepcionado, ficou

um ano não longe dos microfones e, só então, voltou a perambular de emissora

em emissora atrás de uma nova chance. [...] em 1941, Adoniran Barbosa foi

contratado como locutor, discotecário e rádio-ator da Rádio Record, fato que

mudou sua carreira (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.125).

Siqueira (2012) discorre, no primeiro capítulo desta pesquisa, sobre o conceito de

branqueamento do samba, mas aqui, no caso de Adoniran , não se deve apenas ao fato da

questão de ser branco ou não, pois Adoniran era um artista versátil, pois era locutor, ator,

compositor e cantor, um cronista social de valor reconhecido, o que não se deve apenas a sua

cor da pele.

[...] teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o dramaturgo Oswaldo

Molles, que o ensinaria a tirar o melhor de si mesmo. Dito assim, parece

exagero, mas veja-se alguns trechos do depoimento dado por Raul Duarte ( o

mesmo “Bico Doce” de Isaurinha) ao pesquisador Francisco rocha sobre a

Page 102: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

101

relação de Molles e Adoniran: “Ele via no Adoniran Barbosa uma outra faceta

que o próprio Adoniran não via”.

Na verdade, Adoniran tinha um espírito aventureiro, assim, aberto ao novo, percebe-se

isso quando se vê as suas atuações profissionais antes de se tornar artista e, após se tornar

artista atuou em diferentes papéis, ora como rádio-ator , ora como compositor de personagens,

ora como compositor, ora como cantor e seU maior papel que foi o maior representante do

samba paulista.

[...] Orientado por Molles, Adoniran passou a valorizar sua já aguda

observação dos tipos comuns que encontrava pelas ruas e se tornou um rádio-

ator aclamado, com personagens popularíssimos, tais como o taxista italiano

Pernafina, o galã de cinema francês Jean Rubnet, o comerciante judeu

Moisés Rabinovich e o inesquecível Charutinho, malandro crioulo do Morro

do Piolho . Molles também foi o parceiro fundamental da segunda e mais

importante fase da obra de Adoniran, iniciada no final dos anos 40, depois de

uma longa temporada de baixa produtividade. Com ele, criou sambas geniais,

como “Pafunça”, “O casamento do Moacir”, “Tiro ao Álvaro” e “Mulher ,

Patrão e Cachaça”, entre outras joias do cancioneiro nacional. Molles soube

aproveitar o bom melodista que era Adoniran e enriquecer-lhe as letras,

estimulando o nascimento de um compositor que em nada lembrava o autor

mediano de “Dona Boa”, um verdadeiro cronista da cidade de São Paulo,

capaz de combinar crítica social e graciosidade nos versos das canções como

poucos. Por tudo isso, quando Molles se suicidou, em 1964, Adoniran ficou

absolutamente inconsolável (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.126-127).

É notória a riqueza de detalhes em que envolvem lutas, incertezas, decepções, mortes,

etc. E, essas tragédias humanas que parecem refletir em mais riqueza criativa.

Eu e Adoniran fomos grandes amigos e compartilhamos algumas experiências

de vida muito importante. Quando ele lançou com repercussão estrondosa a

marcha-rancho “Vila Esperança”, Por exemplo, fui convidado para, ao seu

lado e dos Demônios da Garoa, subir num caminhão e tocar a música no meio

do animadíssimo carnaval de rua da vila homenageada. Embora estivesse

chovendo demais – meu bumbo estava com a pele toda encharcada e frouxa –,

as ruas estavam tomadas por uma multidão, e, por mais que ele repetisse a

música, o pessoal não se cansava de ouvir e nem queria saber de deixar a

gente ir embora. Ali, apesar do desconforto da situação, pude comprovar o

quanto as músicas de Adoniran eram capazes de tocar a alma e os desejos do

povo paulistano (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.127).

Indiscutivelmente Adoniran soube contar o cotidiano do povo, daquelas pessoas das

suas músicas, pois ele pegava tipos reais, não enfeitados pela mídia, não mascarava a

realidade paulistana dessas décadas, que permeiam os anos 50. Adoniran vivia e viveu muitas

daquelas realidades ou presenciou muitas delas. Daí , segundo Osvaldinho, Molles o ajudou

a aprimorar seu lado de cronista social e, a junção dessas experiências aos seus talentos de

Page 103: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

102

sambista, ator, radialista, resultou no nome de Adoniran Barbosa, um representante de peso do

samba paulista.

Quando Adoniran morreu, em 1982, resolvi prestar um tributo à sua memória

com um disco. Lembro bem que, na ocasião, fui falar com a mulher dele,

Matilde, e perguntei-lhe se havia músicas inéditas guardadas, ao que ela me

mostrou quatro composições (algumas inacabadas), mas que não lembravam

os seus melhores dias. Acabei gravando com meu grupo, o Velhos Amigos,

um compacto simples pela continental com uma música de minha autoria e

uma bela homenagem a Adoniran feita por Bráulio de Castro e Paulo Elias,

“Véio Mestre”, repleta de citações de sua obra. Nos últimos tempos, volta e

meia aparece um antigo amigo dele com um punhado de novas composições

recém-descobertas, mas eu tenho minhas dúvidas sobre a real origem –

Toninho, ex-integrante do Demônios da Garoa, também tinha. Acontece que é

estranho o fato de ninguém ter mostrado nada no falecimento do Adoniran,

quando a memória estava mais fresca. Além disso, em sua esmagadora

maioria, essas músicas rabiscadas em papéis ordinários são muito inferiores

ao que se conhece da obra do genial João Rubinato (CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.127-128).

Essas questões das amizades de Adoniran é uma história a parte, pois o que consta é

que ele morreu sem dinheiro, pois emprestava , pagava contas dos amigos, gastava muito,

sendo assim, não tinha uma situação financeira estável. Convém ressaltar que essa é uma

máxima entre os sambistas, na sua maioria, principalmente os negros, poucos conseguiram

progredir de forma estável, inclusive os cariocas como Cartola, ou mesmo Noel Rosa. No

filme que conta sua biografia, mostra ele sempre numa situação de instabilidade financeira.

Nos atendo ao samba paulista, é comum em relatos de muitos sambistas, essa questão de

dificuldades financeiras, novamente segundo relatos, os negros eram os menos favorecidos,

não que Adoniran não tivesse tido dificuldades, pois como citado anteriormente, ele teve

muitas portas fechadas. Mas há de se convir que ele era um homem com multitalentos, o que

lhe deu mais possibilidades de tentativas até chegar ao sucesso.

Com muita justiça, Adoniran é lembrado entre os maiores sambistas

brasileiros, sendo gravado por astros de todos os tempos, como Elis Regina,

Marlene, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Roberto Ribeiro e Djavan. Vale

lembrar, entretanto, que ele só começou a ter projeção como intérprete de suas

próprias músicas nos anos 70, depois que gravou seus primeiros LPs. Antes

disso, sua voz grave e rouca era desprezada e, para que suas músicas ficassem

conhecidas, precisava da interpretação de outros intérpretes, sobretudo de um

grupo que ele conheceu nos estúdios da Record em meados dos anos 40, o

Demônios da Garoa (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.128).

Esse encontro foi perfeito e resultou numa cara do samba paulista urbano e, fez com

que a imagem de Adoniran e Demônios da Garoa ficassem associadas para sempre. Pois até

Page 104: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

103

hoje Demônios da Garoa é convidado por serem os intérpretes das músicas de Adoniran

Barbosa, como já dito anteriormente, o grupo musical com mais tempo em atividade.

Entre xingos e afagos, Adoniran e Demônios criaram uma relação de simbiose

musical perfeita a partir do início dos anos 50, quando reinaram no carnaval

paulista por dois anos seguidos com o samba “Malvina” (de1955) e “Joga a

Chave”(de 1952, parceria com Oswaldo Molles). O Demônios era a voz de

que Adoniran tanto precisava, enquanto ele era o compositor que podia fazê-

los ultrapassar o “arroz-com-feijão)dos muitos conjuntos vocais da época. Em

1955 esse casamento se consumaria definitivamente com as gravações de

“Saudosa Maloca” e “Samba do Arnesto”. Nestas, o grupo mostrou

compreender perfeitamente a intenção do linguajar popular de Adoniran, que,

com seus erros gramaticais, trazia verossimilhança e comicidade às música

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.128).

Esse casamento bem-sucedido de Adoniran e Demônios da Garoa, tornou-se um

símbolo característico e, por que não dizer, identitário, do samba paulistano, pois trazia

consigo o trabalho de vocalização que se encaixou perfeitamente às músicas de Adoniran

Barbosa.

O maior êxito das carreiras de Adoniran e do grupo Demônios da Garoa foi

“Trem das Onze”’, samba que, sem nenhum grande plano de divulgação,

arrebatou os carnavais de São Paulo e do Rio em 1965 – os cariocas

festejavam o IV Centenário da cidade naquele ano. Foi também o maior

exemplo de sua fértil colaboração. A criação original de Adoniran era

interessante, mas sem concisão e excessivamente longas em suas vinte e

poucas linhas. Foram os Demônios que a dilapidaram e reduziram à perfeição

dos 9 versos conhecidos, sem nunca terem (nem cobrarem!) reconhecimento

por isso (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.129).

Nessa busca pelo conhecimento historiográfico a respeito de uma criação identitária

que foi construída e, para que através dela possa-se ir construindo uma ideia do papel do

samba paulista na construção da identidade nacional. Como já mencionado anteriormente essa

música, Trem das Onze foi um das músicas mais gravadas tanto no Brasil como no exterior. É

uma obra prima de Adoniran Barbosa e, segundo Osvaldinho da Cuíca, aprimorado pelo

Demônios da Garoa.

Trem das Onze

Não posso ficar nem mais um minuto com você,

Sinto muito, amor, mas não pode ser.

Moro em Jaçanã,

Se eu perder esse trem que sai agora às onze horas,

Só amanhã de manhã.

E além disso, mulher, tem outras coisas:

Page 105: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

104

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.

Sou filho único,

Tenho minha casa pra olhar

(Adoniran Barbosa)

Os Demônios da Garoa também enriqueceram as obras de Adoniran com

algumas introduções interessantíssimas – os célebres “cãs, cãs, cãs” e “quais,

quais, quais” – criadas, geralmente, por Claudio Rosa, o principal responsável

pela distribuição das vozes do conjunto. Vale ressaltar, porém, que o conjunto

não se limitou a ser um porta-voz de Adoniran, tendo boa receptividade com

algumas obras de outros autores, a exemplo de “Ói Nóis Aqui travêis” (de

Geraldo Blota e Joseval Peixoto) “Quatro Velas”(de Sereno e Ubaldo Silva)

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.129).

Pode-se afirmar que independente das histórias de cada um (Demônios da Garoa e

Adoniran), o que se pode avaliar é que essa parceria foi de grande relevância na carreiras

artísticas, tanto de Adoniran como dos Demônios da Garoa.

A historia dos Demônios da Garoa é cheia de glórias e lacunas. Nem o site

oficial do grupo, nem a Enciclopédia da Música Brasileira, nem mesmo o

Livro Guinness dos Recordes (no artigo que lista conjunto paulistano como o

que está há mais tempo em atividade ininterrupta no mundo) foram capazes

de contar corretamente a sua origem. Os erros são muitos – desde a data de

fundação, até a formação original, passando pelo local onde se formou e pela

autoria do nome que consagrou o grupo – e exigem uma descrição mais

detalhada dos fatos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.130).

Há que se lamentar essas perdas de informações e documentos que legitimariam ainda

mais a importância da história do grupo Demônios da Garoa, mas nos atendo aos Demônios

da Garoa, por um instante, notamos o quão legítima é sua contribuição no samba paulista,

assim como, na identidade nacional, pois destes vieram uma nova forma de expressão do

samba, caracterizando como única a forma de representar o samba paulista para o Brasil.

Em 1939, quando foi formado o grupo semi-profissionais Regional Brasil, seu

fundador, o jovem filho de italianos, Waldemar Pezzuol, era um misto de

talento e apetite musical irrefreáveis. Apesar de seus 17 anos, já tinha claro

para si que queria ser artista profissional e que a única forma de ultrapassar o

amadorismo das apresentações em festas e serenatas seria investir para valer

na exposição de sua musica no radio, e assim fez, ainda que não tenha

conseguido grande resultado. Três anos mais tarde, desfeito o Regional Brasil,

Waldemar resolveu formar outro grupo, mas agora um conjunto vocal,

seguindo a bem sucedida linha de Bando da Lua, Anjos do Inferno, Quatro

Ases e um Coringa e o paulistano Grupo Xis, entre outros conjuntos famosos

da época. O grupo foi montado com músicos amigos seus e amigos de amigos

seus? Os irmãos Benedito e Antônio Espanha (afoxé e tantan,

respectivamente), Bruno Palestrinha (pandeiro) e3 o crooner Mulata, que ficou

pouco tempo. Nascia, assim, o Grupo do Luar, embrião do Demônios da

Garoa. Seus ensaios eram realizados na casa do pai de Waldemar, uma

construção simples situada na esquina das ruas Irmã Carolina e Saturnino de

Page 106: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

105

Brito, na extremidade oeste do bairro do Tatuapé, próximo ao Belém, onde

formaram seu repertório, centrado em composições do próprio Waldemar, e

planejaram seus primeiros vôos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.130).

Diploma do Guinness Book Retirado do site:

http://www.portaldamooca.com.br/demonios-da-garoa - Visto em 20/12/2016

Essa historiografia se faz de extrema importância para que se fomente a informação,

destas construções historiográficas, pois através dos dados vão se formando uma identidade

da cultura de um povo paulista, paulistano e, que contribui culturalmente para o nacional.

Demônios da Garoa não é um conjunto local, regional, apesar de sê-lo, mas se tornou nacional

e, além disso, hoje é um grupo internacional. Ainda nos atendo, por mais alguns parágrafos

sobre Demônios da Garoa:

Embora poucos saibam, o ano de 1944 foi capital para a história dos

Demônios da Garoa. Foi quando o conjunto recebeu um menino magrinho,

mas que tinha uma voz maravilhosa, chamado Arnaldo Rosa. Com ele, o

Page 107: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

106

grupo conquistou o primeiro lugar num programa da Rádio Bandeirantes que

valeu um contrato com o pool Emissoras Unidas (Bandeirantes, Record,

Panamericana e São Paulo). Veio, então, o primeiro sucesso na cidade, o

singelo samba “Favela”, de Waldemar Pezzuol – “A favela criou/ Batucada e

amor/ a tristeza foi embora/ e a alegria ficou...” (CUÍCA e DOMINGUES, 2009,

p.131).

Uma das primeiras formações do grupo

Arquivo: Demônios da Garoa

Retirado do site:

http://www.portaldamooca.com.br/dem

onios-da-garoa - Visto em 20/12/2016

Foi também no final de 1944 que se deu a história da apresentação do

conjunto no programa A Hora da Bomba, de Vicente Leporace, que acabou

resultando numa mudança de nome, de Grupo do Luar para Demônios da

Garoa. Aconteceu que Leporace, entusiasmadíssimo com o que ouviu dos

rapazes, sentiu que tinham uma carreira muito promissora pela frente, mas que

o nome, parecido com o do Vagalumes do Luar, poderia atrapalhar. Sugeriu,

então, a troca. Waldemar saiu da emissora ruminando essa idéia e, naquela

mesma noite, ao chegar à casa de sua namorada, Helvetia Ciampi, contou-lhe

o caso e ouviu algo despretensioso e genial, semelhante a “Ué, não dizem que

vocês são endiabrados? Então por quê não põe ‘Demônios’ e mais alguma

coisa como `de São Paulo` ou, sei lá, ‘da Garoa’ ?”. Em fevereiro de 1945, a

cidade já podia ouvir os Demônios da Garoa, com Waldemar, os irmãos

Espanha, Bruno, Arnaldo e o recém-chegado José Roseira, no violão tenor

(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131).

Mas, segundo Osvaldinho da Cuíca, há controvérsias, pois tanto no Guinness como na

Enciclopédia, o grupo surgiu na Mooca em 1943, além de divergências quanto aos seus

componentes, pois nestas duas fontes, consta que o grupo era composto por: Arnaldo Rosa,

Toninho, Claudio Rosa, Artur Bernardo e Francisco Paulo Galo, além da afirmação que o

nome do grupo foi dado por Vicente Leporace. Mas a família de Waldemar Pezzuol e fotos

Page 108: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

107

afirmam sua participação na formação do grupo e, sua esposa (aquela que sugeriu o nome)

foi quem o fez sair do grupo. O seu reconhecimento só aconteceu em 1990 quando Arnaldo

Rosa parou o show para homenagear quem estava na plateia que era o primeiro violão dos

Demônios da Garoa, segundo o autor, ele se emocionou muito. Segundo Osvaldinho há

muitas informações desencontradas nessas histórias propagadas a respeito do samba paulista

e, principalmente sobre Demônios da Garoa e Adoniran Barbosa, por exemplo, “Saudosa

Maloca” e o “Samba do Arnesto” não teve como inspiração para a forma peculiar de cantá-

los, os engraxates do centro da cidade de São Paulo, mas foi inspirado pelo próprio Adoniran,

ele inspirou a forma de interpretar dos Demônios da Garoa, além de não ter nenhuma

referência de que os Demônios da Garoa frequentassem as batucadas dos engraxates (CUÍCA

e DOMINGUES, 2009, p.132).

No que tange aos engraxates, quem se inspirou e frequentou essas rodas de samba dos

engraxates do centro da cidade de São Paulo é Germano Mathias, esse, segundo o autor,

conviveu intensamente com os engraxates, batuqueiros e jogadores de tiririca. Contudo,

nascido em família branca, lusitana e de classe média do Pari, apreciava as batucadas dos

negros, desde sua infância. Além de na sua adolescência ter participado dos cordões

marginalizados.

Foi numa roda de samba no centro da cidade que, certa vez, o onipresente

Toniquinho Batuqueiro, sabendo do seu talento incomum, encaminhou-o ao

rádio. Germano, passou a frequentar, então, os bares da Avenida Ipiranga,

onde se reunia boa parte dos radialistas, sobretudo os da Rádio Nacional, e

logo começou a cantar em programas de calouros. Já no primeiro deles, o “Aí

vem o Pato”, de Jayme Moreira Filho e Odilon Araújo, foi eleito o melhor

calouro, entoando corajosamente um samba de sua autoria chamado “Na Barra

Funda”. O sucesso se repetiu nos programas seguintes, pois, inteligentemente,

Germano elaborou uma fórmula infalível: escolhia músicas alegres e de sua

autoria, o que já causava boa impressão, tocava a inusitada e suingadíssima

tampinha de lata de graxa e criava divertidos jogos cênicos para incrementar

as interpretações, sempre repletas de mímica, caretas, trejeitos e samba no pé –

o que, obviamente, só podia ser visto pelo auditório e pelos jurados

presentes.[...] em 1955, seguiu essa mesma linha, apresentado sua parceria

com Doca (João Firmo Jordão) “Minha Nêga na Janela”. O resultado foi uma

vitória ainda mais brilhante do que as anteriores, pois, dessa vez, eram nada

menos que 300 concorrentes! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131). [...]

Já em 1956, Germano Mathias teve ótima repercussão com a gravação de

“Minha Nêga na Janela”, editada pela Polydor, e, no ano seguinte, conquistou

a critica especializada com seu LP Germano Mathias, Um Sambista Diferente,

vencedor dos prêmios Roquete Pinto e Guarany [...] em 1958, com o

lançamento do samba “ Guarde a Sandália Dela”, parceria sua com o também

paulistano Sereno – esse samba, aliás, voltaria a fazer grande sucesso em

Page 109: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

108

meados dos anos 60, numa gravação de Elis Regina e Jair Rodrigues(CUÍCA e

DOMINGUES, 2009, p.131).

Germano Mathias tem papel de relevância histórica na composição do samba paulista

urbano e na composição do samba nacional. Seu papel traz, assim como Adoniran, uma

genialidade peculiar do artista nato, único.

Na foto que ilustra a capa do livro, o mulato Padeirinho da Mangueira e

Germano Mathias são os ilustres convidados para o samba na casa de

Osvaldinho da Cuíca (à direita), há cinquenta anos.

http://mestreananias.blogspot.com.br/2009/05/batuqueiros-da-

pauliceia-resgata.html - visto em 20/12/2016

Germano Mathias, mesmo fazendo parte da identidade do samba paulista, pois

sambava no gingado da tiririca, também atentava para os artistas “nacionais”, mas mantinha

suas caminhadas pelas ruas de São Paulo, seguindo as batucadas dos sambistas anônimos da

cidade. Através das rádios pode ter acesso ao que acontecia pelo Brasil, no que se refere a

música brasileira, ao samba. Uma das suas principais influencia, foi Caco Velho, este

apelidado de “O Sambista Infernal” título inspirado de um samba de Ary Barroso. A partir de

Page 110: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

109

Caco Velho, Germano Mathias traça seu progresso da complexidade rítmica que tornou

Germano Mathias numa referência obrigatória do samba, sui generis do samba-sincopado.

Devido a sua convivência com Caco Velho no período em que ele morou em São Paulo,

Germano, absorveu e alcançou um ponto de divisões tão ricas, que, na música brasileira, só

pode ser equiparado ao do “Rei do Ritmo”, Jackson do Pandeiro (CUÍCA e DOMINGUES,

2009, p.135-136).

Aqui pode-se observar o quão um artista de um estado está ligado a outro e a

importância dos meios de comunicação, ainda restrito nos meados do século XX, mas deve-se

observar que de alguma forma cada artista traz consigo referências da sua originalidade

regional, mas na troca, na soma, cria-se algo novo, “novas identidades”, estas novas

identidades podemos observar nas definições dadas por Stuart Hall (1992) na sua obra “a

Modernidade cultural na Pós-modernidade”, ele conclui que a sociedade moderna traduz-se

em constante mudança, principalmente no que tange ao processo de globalização e sua

repercussão na formação da identidade cultural. Stuart Hall, classifica essa modernidade como

tardia. Ainda Hall, trata que: “Dentro da cultura, na marginalidade, embora permaneça

periférico em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e

isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de

fora”. (HALL, 2013, p.375-376)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa acadêmica se deu, desde o momento em que me reconheço como

paulistana – mesmo tendo nascido no estado do Paraná – por ser cantora popular pela Ordem

dos Músicos do Brasil, apresentando-me há mais de vinte anos em casas paulistanas e

paulistas. Tenho em meu repertório músicas brasileiras, entre elas o samba em suas diversas

variações rítmicas. Neste cenário, o interesse pelo samba paulista foi amadurecendo, as

leituras foram aguçando esse interesse, levando a busca do conhecimento histórico e social

deste gênero, o samba. Após uma vasta leitura bibliográfica, aprofundadas com os autores:

José Ramos Tinhorão, Florência Garramuño, Magno Siqueira Bissoli e, Mario de Andrade.

Desde o capítulo: A História do Samba, buscou-se a historiografia deste, respondendo

algumas questões relevantes, por exemplo, o que é o samba? A partir daí as perguntas foram

respondidas, na maioria das vezes por Tinhorão, pois este tem uma vasta obra que busca o

conhecimento da formação cultural brasileira. Por ser jornalista teve acesso a informações e

Page 111: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

110

documentos valorosos que responderam os questionamentos dessa pesquisa. Desta forma, as

respostas coletadas bibliograficamente foram, por exemplo, que samba é uma manifestação

popular de descendência africana, que é composta por batuques, danças, ritmos e crenças.

Destes elementos surgiram os cordões, os ranchos e o carnaval de rua, principalmente no Rio

de Janeiro, este último influenciando totalmente o carnaval paulista . Portanto, o samba é uma

forma de representação popular de massa, além de ser a maior festa popular do país.

O que esse estudo conclui é que o samba tem seu papel politico, social, cultural e,

estes papéis são os que movem este trabalho. A incumbência de ser o símbolo utilizado como

catalisador de povos para formação da identidade nacional, não deixando de ser primitivo e

moderno, coexistindo esses dois elementos, não podemos nos esquecer de como a vida

cultural, e todo o contexto no Ocidente, foi sendo transformado pelas vozes das margens, dos

antes marginais. Portanto, o samba paulista, tem-se mostrado dinamizador de povos e

culturas, além de etnias e raças. As vozes das margens têm sido forte na representatividade do

povo de um país, pois normalmente são a maioria, principalmente nos países menos

desenvolvidos economicamente como é o caso do Brasil. O samba tem uma função social que

o colocou como símbolo de identidade de um povo, pois através deste símbolo o povo pode

sentir-se parte de um todo, de uma nação, identidade formada através do sentimento de

pertencimento.

Assim nomes que protagonizaram esse cenário deram voz aos antes excluídos

politicamente e socialmente, nomes como Clara Nunes, compondo o samba brasileiro em

dialogo com os regionais, e por que não dizer, com mais afinidades com o Samba paulista,

exemplo, Clara Nunes (descendente de negros e índios brasileiros) e Adoniran Barbosa,

celebrando o hibridismo cultural brasileiro. Convém ressaltar a importância de Clara Nunes

neste cenário, aproximou-se de Carmem Miranda, no tocante a representação do Brasil para o

mundo. As duas morreram jovens, Carmem explorada pelo mercado artístico estadunidense, e

Clara vítima da vaidade moderna. Estes detalhes poderão ser desenvolvidos em pesquisa.

Um dado de grande relevância, é descobrir o porquê dessa denominação: samba rural

paulista. Suas peculiaridades e proximidade com a musica caipira, ou sertaneja tradicional,

ou sambas mais melódicos, é específico e abrangente ao mesmo tempo, pois é de fácil

percepção pelos temas das letras, pelo instrumentos percussivos que se utiliza, o que se nota é

na especificidade paulista nesse tipo de gênero musical.

A principal pergunta que essa pesquisa bibliográfica se propôs a responder é: Qual a

relação do samba paulista na formação da identidade nacional? O desenvolvimento da

pesquisa permitiu a criação de um subtítulo, sendo ele: O Samba Paulista: do rural ao urbano.

Page 112: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

111

As contribuições nasceram nos interiores paulistas com as tradições caipiras somadas as dos

imigrantes europeus. Essas tradições em Pirapora se fundiram umas as outras, as crenças

religiosas africanas com as ocidentais, além das expressões culturais incrementadas com

batuques dos bumbos dos sambistas, sendo observados, inicialmente, no início do século XX

por Mario de Andrade, que o denominou Samba rural paulista. Essas misturas étnicas

culturais deslocam-se para a capital de São Paulo, somando-se ao urbano, transformando o

samba. Sendo assim, o samba de bumbo perde esse espaço de celebração e, devido ao conflito

entre a religião e a cultura de um povo – que em sua maioria eram negros – há uma mudança

na forma de representação cultural de uma expressão específica desta região do Brasil, o

interior paulista.

Quando o samba rural chega ao espaço urbano, no inicio do século XX, se apresenta

nas rodas de samba na Praça da Sé, onde com os engraxates se reuniam para fazer samba,

dentre estes engraxates surgiram nomes que ficariam gravados na história do Samba Paulista

urbano, estes engraxates na sua grande maioria eram pobres de descendência negra.

Quando nos atemos aos grandes nomes da história do samba paulista, encontramos

Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Demônios da Garoa, Toniquinho

Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, dentre muitos outros nomes, que são a prova que o samba

paulista tem identidade própria, esta demonstrada através dos seus músicos e intérpretes.

Pode-se concluir que essa é a relação do samba paulista com a formação da identidade

nacional, pois músicas como Trem das Onze, Um homem de Moral, Ronda , Tradição, etc. é o

retrato da contribuição paulista à cultura brasileira. Além do fato intrínseco na cultura

brasileira que é a mistura, a miscigenação, o hibridismo cultual, características estas desde a

colonização do Brasil, com o recebimento das contribuições dos portugueses, holandeses,

ingleses, italianos, espanhóis, japoneses. Mas o foco desta pesquisa foi a análise do samba

rural paulista e o urbano, a partir daí, pode-se fomentar a comparação deste samba paulista

urbano com o samba urbano carioca.

O objetivo proposto foi atingido nesta pesquisa acadêmica e, apontou o movimento de

resgate do samba rural “tradicional” paulista abordando a criação de grupos formados com a

intencionalidade de pesquisar e mostrar compositores paulistas, músicos sambistas, em um

movimento de recuperação desse samba rural paulista e o urbano, constituídos por sambistas

na sua maioria de descendência negra. Nestes movimentos sociais culturais citamos: o

Kolombolo, fundado por Renato Dias; Samba autêntico , fundado por T-Kaçula e o Samba da

Vela, há mais de 15 anos, uma roda mantém acesa a chama do samba, em Santo Amaro, na

Zona Sul de São Paulo.

Page 113: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

112

Desta forma, a conclusão a qual este trabalho chegou foi de que há um samba rural

paulista, que já vem sendo pesquisado por outros acadêmicos e músicos, mas o que trazemos

de novo é a observação deste resgate ao samba rural paulista; o samba de bumbo de Pirapora,

em um movimento híbrido, formando o samba Paulista urbano. Com este resgate também

recuperou-se as manifestações religiosas de descendência africana, que foi de onde o samba

surgiu, no Kolombolo, tem-se respeito aos Orixás, aos Santos, além de imagens e velas. Tanto

no Kolombolo como no Samba Autêntico, como no Samba da Vela, as reuniões são em

círculo, formando as rodas de samba. No Kolombolo só se canta samba paulista tradicional e

modernos também. Já no Samba Autêntico canta-se sambas de todas as regiões do Brasil e

com enfoque no samba paulista, enquanto o Samba da Vela canta-se apenas músicas

compostas por compositores que fazem parte deste grupo, e o samba só acaba quando a vela

apaga. A continuidade desta pesquisa com ênfase aos grupos de resgaste ao samba paulista se

dará no Doutorado.

Page 114: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

113

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Castro. O navio negreiro e outros poemas. São Paulo: Melhoramentos, 2015.

BAMBI, Ermelindo Francisco. O sagrado nas culturas bantu em Angola. Instituto Teológico

Franciscano.Disponível em: <www.itf.org.br/o-sagrado-nas-culturas-bantu-em-angola.html>.

Acesso em: 19 jul. 2016.

ANDERSON. Benedict R. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão

do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

BITARÃES NETO, Adriano. Antropofagia Oswaldiana: um receituário estético e cientifico.

São Paulo: Annablume, 2004.

BOAS, Franz. As limitações do método comparativo da antropologia: 1896. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar Editor, 2014.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2013.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade.

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

CANDIDO, Antônio. Os parceiros do rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a

transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1998.

CUÍCA, OSVALDINHO e DOMINGUES, André. Batuqueiros da Pauliceia. São Paulo:

Editora Bracarolla, 2009.

DAMASCENO, Darcy; CUNHA, Waldir da. (Catalogação e transcrição). “Os manuscritos do

botânico Freire Alemão”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1961, v. 81, p.

219.

DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Editora, 2014.

ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

_______. Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma

pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

_______. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difesão Européia de

livro, 1972.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:

Paz e Terra, 2011.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global, 2013.

GARRAMUÑO, Florencia. Modernidades primitivas: tango, samba e nação. Belo Horizonte:

UFMG, 2009.

Page 115: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

114

GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34,

2012.

GOMES, Carlos Antônio Moreira. Um batuque memorável no samba paulistano. São Paulo:

Gráfica Crisan, 2010.

HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,

1992.

_______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2013.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

MENDES, Lenita Waldige. A lanterna mágica e o burrico de pau: Memórias e histórias de

Carlos Gomes. Campinas: Unicamp, 2013.

OLMEDO, Mayki Fabiani. Heitor Villa-Lobos: Suíte popular brasileira. São Paulo:

Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2013.

RAMOS, Caio Silveira. Sambexplícito: As vidas desvairadas de Germano Mathias. São Paulo,

2008.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo,

Companhia das Letras, 1995.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial

no Brasil, 1870 a 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

_______. Nem preto nem branco muito pelo contr3.s.ckenzie, 2013.a sociabilidade brasileira -

1tra - 1t3.a sociabilidade brasileira - 1

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos

frementes anos 20. São Paulo: Companhia da Letras, 1992.

SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: As origens à Era Vargas. São

Paulo: Editora Unesp, 2012.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora

34, 2010.

_______. Música popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34, 2012.

_______. Os sons dos negros no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012.

WISNIK, José Miguel. Sem receita. São Paulo: Publifolha, 2004.

WOORTMANN, E. Método comparativo, família e parentesco: Algumas discussões e

perspectivas. Revista Anthropológicas, 2011.

http://www.piraporadobomjesus.sp.gov.br/historia/o-samba-paulista-nasceu-empirapora

Page 116: O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA

115

https://dicionarioegramatica.com.br/2016/04/file:///C:/Users/Admin/Downloads/2012_ArielFe

ldman.pdf Acesso em: 19 jul. 2016