O sertão vai virar mar

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Livro: O serto vai virar mar Autor: Moacyr Scliar Editora: tica 1 edio Ano: 2003 Transcrito por: Anair Meirelles Michele Corra Ilustrado por: Tanara Bandeira Livro dividido em 3 volumes Uso exclusivo dos alunos do Instituto Santa Luzia Aps um sculo, um retorno aos sertes. A semana de Cultura no colgio de Gui est prxima e a turma no sabe que trabalho faz er. At que o professor de histria lhes apresenta Os sertes, que descreve a trgica Gu erra de Canudos, ocorrida h pouco mais de um sculo, bem prxima cidade onde os garot os moram. O clssico de Euclides da Cunha denunciava, na poca, a morte de aproximad amente 25 mil sertanejos, incluindo mulheres, idosos e crianas, todos seguidores de beato Antonio Conselheiro. Gui e sua turma se empolgam com a literatura do livro e tm uma idia: promover um a espcie de julgamento dos diferentes pontos de vista que envolveram a tragdia, av aliando os atos de conselheiro, o personagem principal do conflito. Enquanto se preparam para o evento, Gui, Martinha, G e Queco ganham um novo col ega: o misterioso Z, vindo do serto alagado por uma represa, do "serto que virou ma r" -- profecia do lder espiritual de Canudos que se cumpriu. Pouco depois, surge uma figura ainda mais misteriosa, que deixa apreensiva toda a cidade: um novo be ato, Jesuno Pregador, est atraindo uma multido de seguidores fanticos para o Buraco, a vila mais pobre da regio. Depois de um sculo da campanha de Canudos, poderia a tragdia histrica se repetir? A chegada de Z e Jesuno, num mesmo momento, vindos de u ma mesma regio, seria mera coincidncia? Em O serto vai virar mar, Moacyr Scliar, um dos mais importantes escritores da atualidade, oferece ao leitor a oportunidade de conhecer um grande clssico de nos sa literatura e saber um pouco mais sobre uma das maiores tragdias ocorridas no B rasil em todos os tempos. Na histria de um grupo de amigos que no se rende aos pre conceitos, a percepo de que na solidariedade, aliada perseverana, pode estar a poss ibilidade de vitria sobre as injustias sociais. (O Editor) (p. 9) 1. Bem-vindos a Sertozinho de Baixo, o lugar onde tudo comeou J faz um tempo que esta histria aconteceu, alguns anos, para dizer a verdade, ma s s agora resolvi cont-la. Escrever uma coisa que gosto de fazer; uma forma de pre servar a nossa memria e, at mesmo, de entender as coisas. Quando a gente pe no pape l aquilo que nos aconteceu, como se estivssemos vivenciando de novo os acontecime

ntos, descobrindo coisas que antes no nos haviam ocorrido. O que, no caso da pres ente histria, um prazer e uma fonte de emoes. Aqui vai, pois. Moro numa cidade chamada Sertozinho de Baixo. Estranha, a denominao? Pois . Muita gente achava isso, inclusive, e principalmente, na prpria cidade. Gente que no gos tava do "Sertozinho" e no gostava do "de Baixo". Polticos e empresrios at promoveram uma campanha para mudar o nome. Por que "de Baixo", indagavam, se no h um Sertozinh o de Cima? Mas houve, sim, uma vila com esse nome -- s que desapareceu quando a re a em que ficava foi inundada para a construo da grande represa de Mar-de-Dentro. Q uanto a "Sertozinho", a razo da implicncia era dupla: primeiro, o diminutivo, lembr ando lugar pequeno; depois, e mais importante: de maneira geral, serto alude a um lugar agreste, distante, de gente pobre e inculta. E a nossa cidade, diziam, j t inha deixado essa situao para trs. (p. 10) Ainda no ramos uma metrpole, mas estvamos crescendo, progredindo. Propunham para e la o nome de Fernando Nogueira, o fundador do shopping, que havia falecido pouco s anos antes. Um plebiscito foi feito e a maioria dos votantes optou por manter a denominao tradicional. Continuamos o Sertozinho de Baixo. Mas com um ttulo adicion al: "Novo Serto", expresso criada por uma agncia de publicidade contratada pelo pre feito de ento, Felisberto de Assis, um poltico veterano e de no poucas ambies. Na apr esentao da campanha, que inclua prospectos, cartazes coloridos e at filmetes para a tev, explicou o publicitrio encarregado, um carioca chamado Josino Albuquerque ("d escendente de baianos, e com muito orgulho"): -- O objetivo desta campanha transformar o limo em limonada: o que era a imagem do atraso, hoje pode ser o comeo de uma riqueza. Serto, sim. Geograficamente fala ndo, serto. Mas um outro serto, o serto que vai em frente, o serto gerador de riquez as. Enfim: o Novo Serto! O que provocou mais uma discusso. Muita gente achou aquela histria de "O Novo Se rto" frescura, coisa para impressionar ingnuos. No jornal s vezes aparece a expresso , s vezes no. O nome da cidade que ficou. Polmicas e campanhas parte, Sertozinho de Baixo era, e , um lugar bom de morar. M eu pai, por exemplo, sempre gostou daqui. Agora aposentado por doena (tem uma art rite rebelde e incapacitante), foi, durante muitos anos, o delegado de polcia. Er a respeitado, mas no temido; ao contrrio, as pessoas o admiravam, consideravam-no um homem sbio. Para ele, manter a ordem no queria dizer meter medo s pessoas. Acred itava muito mais no dilogo -- mesmo com delinqentes. Uma vez uma assaltante entrou numa agncia bancria. (p. 11) Cercado, e muito nervoso, disse que s sairia de l morto. Meu pai, sozinho e desa rmado, entrou no lugar. Conversou por mais de uma hora com o assaltante e por fi m saiu trazendo-o pelo brao. O homem chorava como uma criana e declarou ao jornal que fora convencido pelo delegado, "homem de corao de ouro". Meu pai tem razo: a cidade agradvel, pacfica. E antiga: tem mais de trezentos ano s, como se constata pela bela igreja e pelo casario colonial. Antiga, mas no atra sada: nos ltimos anos, surgiram tambm fbricas -- uma delas muito grande, a Indstria Txtil Coroado --, novas lojas, o shopping Nogueira... E tambm prdios de apartamento s e at algumas manses. Mas h muita pobreza. Sempre houve. No lugar chamado Buraco -- uma enorme vila p opular que tem mais de trinta anos --, as casinhas at hoje so humildes, as condies d e vida, muito duras. Em outras cidades, bairros assim so o reduto de traficantes, de criminosos. No em Sertozinho de Baixo. Na nossa cidade, pobreza sempre esteve mais associada resignao do que violncia. "O que se vai fazer, a vontade de Deus" er a uma frase que se ouvia comumente. Esse tipo de atitude deixava meu amigo Geraldo Camargo, o G, muito irritado. Pa ra ele, os pobres deveriam se voltar, mostrar sua inconformidade, lutar por seus direitos. Escreveu at um poema intitulado "A resignao o pio do povo". Ge era o pres idente do grmio estudantil -- e um lder muito combativo. Volta e meia brigava com

a direo do colgio, para grande consternao do pai, Henrique Camargo, dono de uma loja de roupas no shopping. "No entendo meu filho", queixava-se a meu pai, que era seu confidente -- alis, confidente de muitas outras pessoas tambm. O colgio Horizonte, a escola particular em que estudvamos, era melhor da cidade. Na poca, no tinha muitos alunos, cerca de quinhentos, de modo que quase todo o mu ndo se conhecia. G - que hoje vereador, o vereador mais jovem da cidade - comeou a mostrar sua vocao poltica. (p. 12) Quando criamos nosso time de futebol, imediatamente assumiu a liderana, ainda q ue no fosse o melhor jogador - o melhor jogador, modstia parte, era este que vos f ala. Nos trabalhos em grupo tomava a iniciativa e distribua as tarefas. Nunca hes itou em brigar por aquilo que considerava certo. E nunca desistiu de me envolver em poltica. Tentava motivar-me, emprestando-me livros e folhetos, mas a mim tal tipo de literatura no interessava muito. O que deixava o G muito irritado: -- A gente precisava ter idias! A gente precisa mudar o mundo, Gui! Gui - Guilherme Galvo - sou eu. At hoje o pessoal me trata por esse apelido. Dou tor Gui - formei-me em medicina no ano passado -, mas Gui, de qualquer jeito. G e Gui: os apelidos eram parecidos, mas fisicamente ramos bem diferentes. Eu era al to; ele, baixinho. Eu era um garoto calmo, coisa que deixava minha me intrigada: -- No campo de futebol voc corre de um lado para o outro -- observava --, em ca sa voc um molenga. E acrescentava, irnica: -- Pelo menos na hora de arrumar o seu quarto. G, eltrico, no parava quieto. Gostava de falar - e falar bem; discurso era com el e mesmo. Queria ser advogado e chegou a entrar numa faculdade em juazeiro, que f ica a algumas dezenas de quilmetros de Sertozinho. Mas interrompeu os estudos para se candidatar Cmara de Vereadores. Exatamente como o professor Armando tinha pre visto: -- O G ainda vai ser um lder poltico nesta cidade. O Armando era o nosso professor de histria. Excelente professor. Para ele, histr ia no era s decorar datas de batalhas ou nomes de generais e de presidentes. "Histr ia", dizia, " extrair do passado e aplic-las ao presente". (p. 13)

Como professor, era extremamente criativo. Por exemplo, quando estudamos escra vatura, organizou uma encanao que serviu de ponto de partida para um debate: de um lado, um fazendeiro argumentado que, sem a mo-de-obra escrava, no tinha condies de produzir; de outro lado, um industrial da cidade defendendo idias abolicionistas. Atualmente, Armando no apenas lecionava como tambm apresenta um programa de rdio, chamado "A histria hoje", em que se fala de acontecimentos do passado - a Guerra do Paraguai, por exemplo - como estivessem acontecendo no presente: "Na minha f rente, os navios imperiais...". bom nisso. Enfim, um cara animado, divertido, alm de inteligente, culto, ponderado. No acredito muito em gurus, mas, se acreditass e, diria que ele foi, para ns, um guru. Contudo, no era uma unanimidade, em Sertozinho de Baixo. Havia quem no gostasse d ele, como o Fernando Nogueira, dono do shopping e, na poca, presidente da Cmara de Comrcio da cidade. Para ele, o Armando no passava de um esquerdista cujo objetivo era "confundir as mentes dos nossos jovens". Na Associao de Pais e Mestres, da qu al era tambm presidente, Fernando chegou a pedir que os professores fosse desliga do da escola. Mais uma vez meu pai, que estava na reunio, salvou a ptria. Mostrou que o Armando no estava doutrinando ningum, estava ensinando os alunos a dialogar: -- E dilogo nunca fez mal a ningum. Ao contrrio: o dilogo a ginstica da inteligncia Se ginstica para o corpo importante, por que no fazer ginstica para a mente? Todo o mundo riu, e at o prprio Fernando reconheceu que havia exagerado. "Sou me io preconceituoso", disse. No era o nico. Preconceito, infelizmente, existia no chamado Novo Serto. Havia qu em no gostasse de sertanejo, de nordestino em geral.

(p. 14) A cidade fica na entrada do serto da Bahia, mas muita gente achava que estvamos mais para Sudeste do que para Nordeste. O horizonte era, porm, um colgio democrtico. A diretora, professora Arlete, veter ana no cargo, no se cansava de enfatizar: -- Aqui somos todos iguais, no importa a cor da pele, no importa a procedncia, no importa a religio. Nunca tivemos problemas a esse respeito. At que ocorreu um incidente. E esse in cidente - assim como seus desdobramentos - foi como que um desgnio para que tentss emos nossa capacidade de tolerncia. E com ele comeou tambm a minha histria. (p. 15) 2. Algum chega para nos lembrar que o velho serto ainda existe Um dia, a diretora entrou na nossa sala de aula acompanhada de um garoto magri nho, franzino, meio desengonado. Apresentou-o: -- Gente, este aqui o novo colega de vocs, o Jos Gonalves. Ele acaba d se mudar p ara a cidade. Peo que vocs o recebam bem, e que o ajudem no que for necessrio. Normalmente um pedido como aquele teria sido at desnecessrio. Em geral, acolhamos com prazer o pessoal que vinha de fora, o que no era muito freqente; foi, por exe mplo, o caso do Peter, filho de um engenheiro ingls que veio para c contratado pel a usina hidreltrica e decidiu ficar na cidade com a esposa e os filhos, Peter e E rnest. O Peter aprendeu a falar portugus e logo se integrou na turma da escola. F ormou-se em economia. Hoje um brasileiro cem por cento - sabe at preparar vatap e acaraj. Quem prova os seus pratos diz que autntica cozinha baiana. Mas havia qualquer coisa no Z Gonalves, ou Z, como logo veio a ser chamado, que n os perturbava. Ele era feio, o coitadinho, e a voz dele, fanhosa, trmula, parecia um balido de cabrito - alis, alguns o chamavam de Z Cabrito. Mas isso, claro, no s eria um problema - afinal, ningum precisa ser gal, ningum precisa ter voz de tenor. (p. 16) O problema real era outro: Z representava, para ns, um mistrio. Um mistrio complet o. Para comear, era, como logo constatamos, um garoto reservado, calado. Nunca fal tava s aulas, nunca chegava atrasado, nunca deixava de entregar os trabalhos. E q uase sempre permanecia em silncio. Falava s quando tinha de falar -- respondendo s perguntas dos professores. Nessas ocasies saa-se bem, mostrava um conhecimento que nos impressionava; sem dvida, era inteligente e estudioso. No recreio, ficava sozinho em um canto, comendo a merenda - um sanduche que tra zia de casa - e lendo um livro. Era um grande leitor. Logo se tornou o maior fre qentador da biblioteca, para grande alegria de dona Alcvia, a bibliotecria, que ado rava leitores dedicados. Como o Z. Da vida dele, sabamos muito pouco. A irrequieta Martinha, nossa colega, que tin ha, como dizia o Armando, "uma grande vocao para o jornalismo investigativo", anda ra fazendo perguntas por conta prpria. Descobria que o Z era da regio de Sertozinho de Cima, aquela que fora inundada. Na ausncia da me - ausncia inexplicada -, o pai criara, mas, a certa altura, e por razes no bem esclarecidas, sumira tambm. Depois de algumas andanas, viera morar com uma velha tia em nossa cidade. -- E a tia? - indaguei. -- O que diz a tia? -- Pelo que me informam, uma mulher velha e esquisita, que no fala com estranho s. A ela no d para perguntar nada. Os professores notavam o isolamento de Z e sugeriam que o procurssemos, mas era intil. Enfim, parecia um caso para psiclogo. Essas coisas eu comentava com meu pai, na mesa do almoo. Em geral ele ouvia sem dizer nada: meu pai tambm no era de falar muito. Uma vez, porm, sugeriu:

(p. 17) -- Por que voc no traz esse garoto para almoar aqui em casa? Olhei-o, surpreso. Tanto papai como mame sempre foram pessoas colhedoras. Mame, a propsito, at hoje enfermeira-chefe de nosso pequeno hospital, tem uma vocao natura l para cuidar de gente. Volta e meia tnhamos convidados para o almoo ou para a jan ta. Mas confesso que a sugesto do papai me soou um tanto estranha. Eu no conseguia imaginar o Z sentado ali, junto conosco, batendo papo. Notando minha indeciso, pa pai insistiu: -- Meu palpite que esse garoto precisa de companhia, de amigos. S isso. Assim, no dia seguinte, na escola, procurei o Z. Era a hora do recreio e l estav a ele, sob uma rvore, comendo seu sanduche, o livro sobre os joelhos - mas o olhar longe, perdido. Aproximei-me, toquei-lhe o brao. Sua reao foi inusitada. Levou um susto to grande que deixou cair o sanduche. Chateado, pedi-lhe desculpas. "No foi n ada", murmurou, "essas coisas acontecem". Achando que iria me reabilitar, convid ei-o para almoar em nossa casa. Olhou-me com ar de dolorosa surpresa: -- Almoar? - repetiu. -- Almoar em sua casa? -- . Almoar. A gente ia gostar muito, eu, meu pai e minha me. Ele baixou os olhos e ficou uns instantes sem dizer nada. Depois me olhou com uma expresso de tristeza que me surpreendeu - e impressionou: -- Desculpe, Gui. Eu agradeo muito o convite de vocs, mas no posso aceitar. -- No pode aceitar? Por que no? -- Por que no. Desculpe. Insisti: -- Escute: se tem algum alimento que voc no pode comer, s dizer, no h problema. (p. 18)

-- No. No tem nada a ver com comida. quela altura, eu estava francamente intrigado. Queria continuar a conversa, des cobrir o que estava havendo. Mas a campainha j soava: era o fim do intervalo. Sem uma palavra, ele se levantou e voltou para a sala de aula. No fim da tarde fui at a lanchonete do Alfredo, onde a nossa turma costumava se reunir. Ali j estavam, como de hbito, o G, a Martinha, mais o gordinho Queco. Filh o do dono do shopping - de uma famlia endinheirada, portanto -, vestia-se bem e e ra bom de conversa, o que no quer dizer que tivesse muitos amigos: no raro era mei o irnico, agressivo at, coisa de que muita gente no gostava. Mas Martinha, G e eu co nvivamos com ele desde o jardim-de-infncia. Acabamos nos acostumando, e, apesar de sua agressividade, ele continuava ligado ao grupo, ao menos naqueles papos de f im de tarde. Vendo-me chegar, Martinha foi logo perguntando: -- O que que voc estava conversando com o Z no intervalo? Hesitei um instante, mas acabei contando o que tinha acontecido. Quando termin ei, todo o mundo fiou em silncio, num surpreso silncio. -- Sei no - disse Martinha, por fim, sacudindo a cabea. -- Para mim o cara parec e meio esquisito, meio misterioso. -- Misterioso coisa nenhuma - disse o Queco, com aquele seu sorrisinho debocha do. -- Essa gente assim mesmo. -- Que gente? -- perguntou o G, testa franzida. -- Essa gente que vem l das gotas, l do serto. Tudo ignorante, tudo grosso. -- Espere um pouco - protestei. -- Voc no vai dizer que o cara recusou o meu con vite porque grosso. -- No? E por que foi, ento? Porque vocs no tm mordomo, por isso? No. O Z Cabrito rosso. Aposto que o pai dele era cangaceiro. (p. 19) -- Acho que voc est sendo injusto - eu disse. E G acrescentou: -- No s injusto: preconceituoso.

-- Meu Deus, que palavra complicada -- ironizou o Queco. -- E poderia o caro c olega dizer-me como descobriu que sou preconceituoso? -- Por sua linguagem. "Essa gente"! Quem "essa gente"? - perguntou G. -- Voc sabe. Essa gente do interiorzo. Das grotas. Do serto -- respondeu Queco. -- Ah! A gente do serto. E em que eles so diferentes de ns? - desafiou G. -- Em muita coisa, cara. Voc tem um exemplo nessa histria do Gui: voc acha que al gum de ns recusaria um convite para almoar? - E, rindo, acrescentou: -- Na casa do delegado? -- Mas espere um pouco - ponderou Martinha. -- Quem sabe o rapaz tem algum mot ivo... -- Motivo nenhum, Martinha. O motivo eu j disse qual : grossura, s isso -concluiu Queco. A essa altura, o ambiente j estava ficando tenso. que, embora colegas, e amigos , G e Queco eram tambm rivais. Os dois haviam disputado a presidncia do grmio estuda ntil. Queco, derrotado (e por larga margem de votos, como era de esperar), no se conformara, e de vez em quando alfinetava o G, cuja tolerncia para essas coisas no era muito grande. De modo que a discusso poderia at acabar em briga, o que infeliz mente no aconteceu: nesse momento chegaram o Armando e sua mulher, Cntia, tambm pro fessora, de literatura. Os dois eram freqentadores do Alfredo, cujo sanduche muito bom. -- Ouvi os gritos l da esquina - disse Armando. -- O que vocs esto discutindo? (p. 20) Contei o que tinha acontecido com o Z e sobre a discusso que havamos tido. Armand o e Cntia escutavam, comendo o sanduche que, nesse meio tempo, o Alfredo tinha tra zido. -- Qual sua opinio? - perguntei, quando Armando acabou de comer. Ele ia responder, mas Cntia o interrompeu: -- Desculpe, Armando, mas eu conheo voc e sei que se comear a falar a conversa va i longe. Acontece que temos de voltar para casa, estou esperando um telefonema d e minha me, que vai ligar de So Paulo. Por que vocs no continuam essa conversa l em c asa? -- Boa idia - disse Armando. -- Mesmo porque h uma coisa que quero mostrar a vocs . (p. 21) 3. Tentando entender o serto Armando morava a uns trs quarteires dali, numa casa modesta, mas muito bonita, c om um jardim na frente - jardim que era o orgulho de Cntia. Entramos, sentamos na sala de visitas, que no era muito grande. Nas quatro pare des, prateleiras com livros. Livro, alis, era coisa que no faltava naquela casa. A rmando extraiu um livro de um das prateleiras: -- Acho que vocs conhecem, no ? Claro que conhecamos: Os sertes, de Euclides da Cunha. Para comear, o prprio nome do autor nos era familiar: Euclides da Cunha o nome de uma cidade prxima nossa, e m homenagem ao grande escritor. Alm disso, a campanha de Canudos ocorreu a cento e poucos quilmetros de Sertozinho de Baixo; tanto que meu bisav, j falecido, lembrav a de ter ouvido relatos a respeito, de testemunhas oculares. Sem contar que o prp rio Armando nos falar vrias vezes daquela obra - essencial, segundo ele, para ente nder o Brasil. Agora: isso no significava que muitos alunos tivessem lido Os serte s. A maioria achava-o um livro difcil, principalmente por causa da linguagem. O q ue explica a apreenso do Queco: -- Voc no vai ler esse livro para ns agora, vai? (p. 22) -- No se assuste - disse Armando, com um sorriso. -- um trecho pequeno.

Folheto o livro, encontrou a pgina que procurava e leu: -- "O sertanejo , antes de tudo, um forte. No tem o raquitismo exaustivo dos mes tios, neurastnicos, do litoral". "A sua aparncia, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrrio. Falt a-lhe a plstica impecvel, o desempeno, a estrutura corretssima das organizaes atlticas ". " desgracioso, desengonado, torto. Hrcules-Quasmodo, reflete no aspecto a fealdade tpica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigantes e sinuoso apar enta a translao de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicncia que lhe d um carter de humildade deprimente." Fez uma pausa e perguntou: -- O que que vocs acham? -- Para o meu gosto, complicado - disse Martinha. -- Estilo meio rebuscado.. O uvi dizer que esse livro nasceu de uma reportagem, no isso? -- . Euclides da Cunha foi enviado para Canudos pelo jornal O Estado de S. Paul o para fazer a cobertura da campanha militar contra Antnio Conselheiro. -- Ento? Se o cara foi l como jornalista, eu esperava que ele escrevesse uma coi sa mais direta, mais... objetiva - comentou Martinha. Cntia, que escutava a conversa, observou: -- Desculpem, mas quero dar a minha contribuio. Jornalstico, como voc diz, o texto no . Na verdade o livro foi escrito depois que Euclides retornou de Canudos. Ele passou os anos de 1898 a 1901 no interior de So Paulo, em So Jos do Rio Cardo - est ava l como engenheiro, supervisionando a reconstruo de uma ponte. Foi nesses trs ano s que l escreveu o livro, que foi publicado em 1902, alis com grande sucesso. No s r elato da campanha; Euclides contou o que viu - e contou muitssimo bem -, mas acre scentou, ao que viu, seus prprios comentrios, suas prprias reflexes. (p. 23) -- Que so importantes - acrescentou Armando. -- Euclides era um homem muito cul to, familiarizado com as coisas da cincia; no esqueam que era engenheiro de formao, e que cincia, sobretudo naquela poca, era sinnimo de progresso, o antdoto da crendice . -- Eu acho - observou G - que a primeira frase genial. Olhem s: "O sertanejo , an tes de tudo, um forte". Quer dizer: ser forte a primeira e grande qualidade do s ertanejo. Do sertanejo s, no: do brasileiro. O que o nosso povo agenta no mole, gent e. pobreza, doena, desemprego, desigualdade social... Tem de ser forte mesmo. -- Qual , cara? V se nos popa do comcio! - disse Queco. -- Para voc comcio - respondeu G, desabrido. -- Para os pobres no . Pergunta para a quela gente do Buraco se isso que eu falei comcio. -- Calma, pessoal - era a Martinha. -- Vamos deixar a briga de lado e voltar a o nosso assunto. Posso ver o livro, Armando? Armando deu-lhe o livro. Ela procurou o trecho lido: -- No entendo muita coisa do que est escrito aqui. O que "desempeno"? -- ser gil, elegante - disse Cntia. -- Ah... E que histria essa de "Hrcules-Quasmodo"? - quis saber Martinha. -- Hrcules era aquele heri da mitologia grega, fortssimo, corajoso. J Quasmodo um p ersonagem feio e disforme que aparece em O corcunda de Notre Dame, do escritor f rancs Victor Hugo. Quer dizer, o sertanejo a combinao dessas duas figuras. -- Mas afinal - perguntei -- o Euclides da Cunha est ou no elogiando o sertanejo ? (p. 24) -- Est. Mas est generalizando tambm. A gente v isso quando ele diz que o mestio -filho de branco com ndio, de branco com negro - raqutico. O raquitismo na verdade uma doena dos ossos, causada pela falta de clcio. Mas usa-se a palavra raqutico com o sinnimo de magro, mido, fraco. Ah, sim, e dizia que o mestio era neurastnico. Neur astenia era um termo da moda, muito usado por mdicos e tambm pelas pessoas em gera l. Neurastenia quer dizer "fraqueza dos nervos". Achava-se, naquela poca, que a m

estiagem resulta em seres humanos inferiores, tanto do ponto de vista fsico como p sicolgico; eram, para usar o termo de ento, "degenerados". O prprio Euclides diz qu e a mistura de raas muito diferentes prejudicial, que a mestiagem um retrocesso. -- Ele diz isso? -- G, testa franzida. -- Mas que coisa mais atrasada! Eu estav a achando o cara um gnio... -- Vamos com calma - disse Armando. -- O Euclides da Cunha era um homem de seu tempo, refletia as idias de sua poca. E, de fato, raa era um conceito muito usado ento. O que eles achavam ruim era a mistura das raas. Agora, lendo o livro, vocs ob servam que o autor vai mudando de idia. Vocs sabem que se trata de uma campanha mi litar contra os seguidores de Antnio conselheiro. Muita gente, naquela poca, achav a que aqueles "fanticos", como eram chamados, deveriam ser exterminados. Euclides , como eu disse, era um homem de cincia e tambm se posicionava contra essas seitas . Mas a frase que termina o livro muito reveladora: " que ainda no existe um Mauds ley a que se refere Euclides Henry Maudsley, um psiquiatra ingls da poca que ficou famoso por ter sustentado que doentes mentais deveriam ser tratados como seres humanos, o que raramente acontecia: para a loucura, usava-se a violncia, a camisa -de-fora, essas coisas. Mas, voltando ao sertanejo: vocs viram que pela descrio do E uclides, no se tratava de nenhum tipo fsico maravilhoso, nenhum gal de cinema. Isso apenas na aparncia, como ele mostra a seguir". (p. 25) Leu: -- "Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relev os, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabea firma-se-lhe, alta, sobre os o mbros possantes, aclarada pelo olhar desassombrando e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantnea, todos os efeitos do relaxamento habitu al dos rgos; e da figura vulgar do tabaru canhestro, reponta, inesperadamente, o as pecto dominador surpreendente de fora e agilidade extraordinrias." -- Voc no quer traduzir para ns, Cntia? - perguntou Martinha. -- Com prazer - disse a professora, rindo. -- Euclides est dizendo que, havendo um incidente - um boi foge, algum o provoca para uma briga -, o sertanejo transf orma-se por completo. A aparncia dele muda, Lee j no parece um "tabaru canhestro", q uer dizer, um sujeito incompetente, que no sabe fazer as coisas; agora ele um tit. .. -- O que isso? - quis saber G. -- Tit? Era um gigante da mitologia grega, um ser muito grande e muito poderoso - respondeu Cntia. -- Ou seja: o sertanejo aparenta uma coisa, mas outra - concluiu Martinha. -- S se for para o Euclides - disse Queco. -- Eu no mudei de opinio. Acho essa ge nte do nosso interior um atraso. E acho que esse Z Cabrito um exemplo disso. Ele igual quela descrio que o Armando leu primeiro. Com uma diferena: para mim, no tem ne nhuma energia escondida nele. Alis, acho que no tem nada escondido nele. O cara oc o. Bota aquela pinta de bom aluno, mas a mim no engana. (p. 26) -- Pois eu penso diferente - retrucou G. -- Acho que o Z um ser humano como a ge nte, e acho que ele tem um problema. Um problema que ns no saberemos qual . Mas tem os de descobrir, para poder ajudar o cara. -- E como que voc vai ajudar um cara que recusa um convite para almoar na casa d o filho do delegado? -- Queco, debochado. -- Esse cara no quer ser ajudado, G. E no quer ser ajudado porque esquisito. -- Ou quem sabe ele esquisito porque no ajustado? -- G, irnico. -- Quem sabe voc p recisa de umas aulas com esse Maud... Maud o qu, Armando? -- Maudsley - completou Armando, rindo. A discusso poderia se prolongar indefinidamente, mas, olhando o relgio, vi que j era tarde. -- Vamos deixar os nossos professores descansarem - sugeri. -- Outro dia a gen

te continua esse papo. E fomos embora. Eu ia levando comigo Os sertes, que Armando tinha me emprestado - felizmente, para mim, ele tinha outro exemplar. Sempre gostei de ler - minha me conta que, se eu gostava de um livro a mais. No imaginava o papel que, nas sema nas seguintes, a obra de Euclides desempenharia em minha vida. Na vida de todos ns. (p. 27) 4. Descobrindo Euclides Nos dias que seguiram, dediquei-me a ler Os sertes. No era, como j tnhamos constat ado, uma leitura fcil. Euclides da Cunha foi um homem de grande cultura e escrevi a para leitores cultos como ele, num vocabulrio erudito, sem fazer muitas concesse s. Mas a verdade que se trata de um grande narrador. Mesmo querendo descreve uma paisagem, por exemplo, est contando uma histria: a histria de como surgiram os rio s, os montes. E ele conhece muita coisa. At mapas fez, para ilustrar o seu texto. Pelo ndice, constatamos que o livro est dividido em trs partes: "A terra", "O hom em", "A luta". Assim, eu j sabia na primeira parte Euclides descrevia o cenrio em que ocorreu a campanha de Canudos; na segunda, falaria do tipo humano que habita essa regio, o sertanejo - ali estava o trecho que Armando nos lera; na terceira parte, abordaria a campanha contra Antnio Conselheiro e seus seguidores. Com esse plano em mente, fui lendo e, medida que lia, meu interesse aumentava. Decidi copiar no meu dirio os trechos que achei mais interessantes. Vocs talvez e stranhem o fato de eu ter um dirio, mas isso vem desde a infncia. Para no me deixar sozinho em casa (sou filho nico), mame levava-me consigo s rondas que fazia no hos pital. Eu ficava no (p. 28) posto de enfermagem, enquanto ela visitava os doentes. Quando ela voltava,escr evia num grande caderno de capa azul as suas observaes. "Estes caderno conta boa p arte da minha vida", costumava dizer. Quando aprendi a ler, mostrou-me algumas d e suas observaes: "Este paciente precisa ser mudado de posio de hora em hora", ou "E sta paciente precisa receber mais lquidos, seno vai ficar desidratada". Tempos dep ois, j no colgio, encontrei numa livraria um caderno idntico. Comprei-o imediatamen te e, imitando mame, comecei a fazer anotaes: coisas que estavam acontecendo, probl emas que enfrentava, comentrios sobre livros, filmes, programas de tev. Era uma es pcie de dilogo que mantinha comigo prprio. E o hbito ficou. Com a leitura de Os serte s, enchi vrias pginas de meu dirio com trechos do Euclides da Cunha, colocando entr e parnteses o significado das palavras que achava difcil (na presente narrativa, t ranscrevo esses trechos). Anotava tambm comentrios e dvidas, para depois discuti-lo s com o Armando, a Cntia e outros professores. O que me fascinava em Euclides era a maneira como ele correlacionava a geograf ia com a histria, o lugar em que as pessoas viviam com o modo de vida que levavam nesse lugar. Claro, olhando para uma casa, a gente pode deduzir o tipo de pesso a que mora ali; mas fazer isso em relao a um pai, que bem maior e bem mais complic ado do que uma casa... Quando samos do litoral e avanamos pelo interior brasileiro, o que a gente v no mu ito animador: "Quebra-se o encanto de iluso belssima. A natureza empobrece-se, des pe-se das grandes matas; abdica o fastgio [a elevao] das montanhas; erma-se [fica d eserta] e deprime-se - transmudando-se nos sertes, exsicados [ressecados] e brbaro s, onde correm rios efmeros [que desaparecem na seca], e desatam-se chapadas nuas , sucedendo-se, indefinidas, formando o palco desmedido [grande demais] para os quadros dolorosos das secas". (p. 29) J no serto o que vemos "o martrio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variveis, distribudos por todas as modalidades climticas. De um lado, a extrema sec

ura dos ares, no estio, [facilitando pela irradiao noturna a perda instantnea do ca lor mais intenso do sol], impe-lhes a alternativa de alturas e quedas termomtricas repentinas; e da um jogar de dilataes e contraes que as disjunje [separa], abrindo-a s segundo os planos de menor resistncia. De outros, as chuvas que fecham, de impr oviso, os ciclos adurentes [abrasadores] das secas, precipitam estas reaes demolid oras". Ou seja: o serto seco e, durante o dia, muito quente. O calor faz com que as ro chas se dilatem. De noite, a temperatura baixa, as pedras se contraem - e a se ro mpem. Depois vem a chuva torrencial e completa a "demolio" da qual fala o Euclides . Ele at compara a paisagem ao deserto do Saara, por seus estranhos, fantsticos ef eitos. Como o que provocou no cadver de um soldado: "Estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traos fisionmicos, d e modo a incutir a iluso exata de um lutador cansado, retemperando-se [refazendose] em tranqilo sono." Quer dizer: o calor e a secura haviam transformando o cadver do pobre soldado e m uma mmia, como aquelas msicas egpcias que a gente v em museus. Fiquei imaginando o susto do cara que passasse por ali e desse de repente com aquele corpo seco, ai nda vestindo a farda rasgada... Atravessas a caatinga do serto, garante Euclides, ainda mais difcil do que atrav essar o deserto ou uma estepe: "Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspect iva das planuras francas. "Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaa-o na trama espinescente [com espinhos] e no o atrai; repulsa-o com as folha s urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanas; e desdobra-se lh e na frente lguas, imutvel no aspecto desolado: rvores sem folhas, de galhos estorc idos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espao..." (p. 30) Eu conhecia a caatinga: ela comeava a alguns quilmetros de nossa cidade. s vezes meu pai tinha de viajar por ali, e me levava. Eu ficava impressionado olhando aq ueles arbustos com espinhos, aquelas rvores subdesenvolvidas. Mas para mim aquilo era s uma paisagem, nada mais. Quando li o Euclides, tive a viso da caatinga como uma armadilha -- no para os sertanejos, que so do lugar, mas para os soldados que viriam combat-los. A caatinga limita a viso da pessoa, dificulta o seu deslocamen to; fere-o com os espinhos e com as "folhas urticantes", isto , folhas que, como a urtiga, produzem um lquido que queima a pele (isso eu sei agora; na ocasio, tive de perguntar ao professor de cincias). Euclides compara a caatinga com a floresta. Na floresta, diz Euclides, "h uma t endncia irreprimvel para a luz" - os cips sobem pelos troncos das rvores porque esto, por assim dizer, em busca dos raios do sol. Na caatinga, ao contrrio, o sol " o i nimigo que foroso evitar, iludir". As plantas procuram, como ele diz, enterrar-se no solo; s que o solo no deixa, seco, duro. Resultado: os vegetais ali no se desen volvem como na floresta. Plantas que so "altaneiras noutros lugares, ali se torna m ans". Euclides fala de um "martrio secular" da terra, que, por sua vez, resulta em ma rtrio para os seres humanos que ali vivem. esse ser humano que ele descreve na se gunda parte do livro. Que comea tentando responder a uma pergunta: quem , afinal, o brasileiro? Como ele se caracteriza fisicamente? Questo difcil, por causa da mes tiagem entre os trs principais grupos que formaram a nossa gente, os ndios, os negr os os brancos. O brasileiro surge assim de "um entrelaamento consideravelmente co mplexo", diz Euclides. (p. 31) Conta-nos ento como surgiu o sertanejo. O serto foi o ponto de encontro de vrios grupos: dos paulistas que vinham do sul, seguindo o rio So Francisco, e dos "baia nos" que vinham do norte. Dessa "mistura" provm o sertanejo. E de que vivem os se rtanejos? A agricultura s possvel nas margens de uns poucos rios; eles, ento, criam

gado. No para si prprios, no para suas famlias, mas para os donos das fazendas, que moram longe, "no litoral, longe dos dilatados domnios... Herdaram velho vcio histr ico. Como os opulentos sesmeiros [proprietrios de sesmerias, de terras] da colnia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisa fixas. Os vaq ueiros so-lhes servos submissos". Quando comentei esse trecho com Armando, ele disse: -- A voc v como Euclides tinha o senso da histria. Para explicar o latifndio em nos so pas, ele volta aos tempos do Brasil colnia, quando as terras forma divididas em sesmarias no trabalhavam, simplesmente viviam do arrendamento da terra. A mesma coisa acontece com os fazendeiros: eles do para os vaqueiros um quarto das reses, e estamos conversando. Isso, meu caro, a origem do problema agrrio no pas: a terr a no pertence a quem trabalha. E a voc entende tambm por que a tanta gente foi embor a do Nordeste: simplesmente no tinham como sobreviver. E com a seca, ento, a desgr aa muito maior. Euclides mostra o sertanejo diante a seca: "A princpio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo f religiosa . Sobraando os santos milagreiros, cruzes aladas [levantadas], andores erguidos, b andeiras do Divino ruflando [agitando], l se vo, descampados em fora, famlia inteir as - no j os fortes e sadios seno os prprios velhos combalidos [enfraquecidos] e enf ermos claudicantes [de passo vacilante], carregando aos ombros e cabea as pedras do caminho , mudando os santos de uns para outros lugares. (p. 32) "O sertanejo resiste o quanto pode, cavando a terra em busca de gua, tenta busc ar nas folhas e razes das plantas um pouco de lquido. A seca continua, inclemente. No h outro jeito, seno ir embora. Como outros. "Passa certo dia, sua porta, a primeira turma de 'retirantes'. V-a, assombrando , atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. o serto que se esvazia. "No resiste mais. Amatula-se [junta-se] num daqueles bandos, que l se vo caminho em fora, debruando de ossadas as veredas e l se vai ele no xodo [na fuga] penosssim o para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares." Mas volta, diz Euclides. Passada a seca, o sertanejo volta, para a mesma vida, para as mesmas privaes -- at que oura seca o expulse de novo. Ou ento at que alguma coisa acontea. (p. 33) 5. Alguma coisa acontece

-- Alguma coisa est acontecendo l no Buraco - disse meu pai. Estvamos mesa do almoo, e at ento eu estivera falando sobre o livro de Euclides. E le escutava, mas distrado, como se estivesse absorto em seus pensamentos. -- Voc est meio distante, Jorge - observou mame. Ele nos olhou e foi a que disse a frase, "alguma coisa est acontecendo l no Burac o". Uma frase que depois recordaramos como o comeo de um episdio que mexeu com a ci dade inteira. -- E o que est acontecendo? - perguntei. -- No sei exatamente - disse meu pai. -- Parece que tem um cara estranho por l. -- Um bandido? Um traficante? Ele sorriu: -- No. Traficante, no. Voc sabe que traficante coisa rara por aqui. Bateu na mesa com os ns dos dedos, como para afastar o azar: -- E esperamos que continue assim. No, no um traficante. E tambm no um bandido. u pregador. -- Um pregador? E de que religio? (p. 34)

-- No sei. Mas parece que ele no pertence a nenhuma religio organizada. Pelo jeit o est agindo por conta prpria. -- Talvez queira fundar sua prpria Igreja - sugeriu mame. -- Talvez queira ganha r dinheiro custa da credulidade dos outros. -- No sei - suspirou meu pai. -- Francamente no sei. -- Mas eu no entendo sua preocupao - continuou mame, servindo-lhe a salada. -- O q ue que tem a ver um delegado com pregadores? Pregar no crime, ? -- No. Mas... -- Mas, o qu? Fale, homem! -- Deixa pra l - disse meu pai, com um suspiro. -- que a coisa me parece um pou co estranha, s isso. E voc sabe que os meus pressentimentos funcionam. Disso sabamos. Foi o caso com a manso do Diogo Siqueira, por exemplo, um empreit eiro que tinha enriquecido com a construo da usina e que morava numa casa enorme, espalhafatosa. "O Siqueira est pedindo um assalto", dizia papai. E no deu outra. M eses depois, um bando de assaltantes que passava pela cidade, vindo do norte, as saltou uma casa - qual? A do Siqueira, claro. Foi uma coisa to fulminante que pap ai no pde fazer nada. Mas se recriminava: "Eu deveria ter prevenido o Siqueira..." . O caso agora, porm, era diferente: "Um pregador no um assaltante", dissera mame. No momento, ao menos, no havia perigo. Mudamos de assunto e logo esqueci aquela h istria. Mesmo porque tinha outra preocupao: a Semana de Cultura do colgio, um evento no qual alunos apresentavam sua prpria produo artstica e cultural (peas de teatro, c onjuntos musicais, pinturas, esculturas...), estava se aproximando, e eu queria promover alguma coisa sobre Os sertes. Mas que coisa? Uma mesa-redonda? No, a idia no me agradava, eu queria algo mais vivo, mais animado. Resolvi consultar o Arman do. (p. 35) -- Por que voc no promove uma, digamos, "avaliao histrica" sobre Canudos? - sugeriu ele. -- Como assim? Um debate? - perguntei. -- , mas um debate incrementado, uma espcie de julgamento, ou um confronto de po ntos de vista diferentes. Achei boa idia e naquela tarde, no Alfredo, submetia-a turma. Todo o mundo gost ou, inclusive Queco. Que se ofereceu para fazer o papel de acusador: -- No gosto desse tal de Antnio Conselheiro. Esse cara foi um desastre para a no ssa regio. Por causa dele, at hoje serto sinnimo de fanatismo. Essa imagem deve ter afastado muito investidor. o que diz o meu pai, e estou com ele. -- Bom, se voc vai atacar o Antnio Conselheiro - disse G, meio na gozao -, eu vou t er de me encarregar da defesa dele. -- Era o que eu esperava - retrucou o Queco, desafiador. -- Alis, voc meio parec ido com o Antnio conselheiro. S que a barba dele era comprida e a sua curta, ralin ha. Barba de aprendiz de fantico. isso que voc : um aprendiz de fantico G, irritado, j ia se levantar e partir para a agresso, mas Martinha e eu consegui mos acalm-lo. -- Vamos voltar ao assunto - props Martinha. -- Esse debate uma boa idia. Mas ex ige algumas providncias. Como que a gente vai proceder, na prtica? Discutimos longamente e por fim chegamos a algumas concluses. Alm do "promotor" Queco e do "advogado de defesa" G, precisaramos de um juiz, a quem caberia sobretu do manter a ordem no debate: Armando, claro. E, em vez de jurados, o "veredito" seria decidido por votao do pessoal que assistisse atividade. -- Falta um detalhe - disse Martinha. -- Quem vai apresentar o "caso" Antnio Co nselheiro? (p. 36) -- S pode ser o Gui - disse Queco. -- Esse cara agora passa o tempo todo Os ser tes. Garanto que ele sabe mais do assunto do que o prprio Euclides sabia. -- Mas o Gui no pode fazer isso sozinho - disse Martinha. -- Precisa de ajuda.

Porque temos de botar a coisa no papel, no ? Nisso voc pode contar comigo, Gui. Qua ndo se trata de escrever, sempre topo. Mas acho que a gente ainda vai precisar d e mais algum. Ou seja: a coisa toda daria trabalho. Mas eu estava entusiasmado: tinha a espe rana de ganhar o prmio de Melhor Realizao Cultural - uma coleo de clssicos brasileiros de CDs. Mas quem poderia nos ajudar com o resumo do texto Cheguei a comentar o assunto com meus pais, no jantar. Papai tinha uma proposta: -- Convide o garoto novo. -- O Z? - perguntei, espantado. -- Ele mesmo. a oportunidade de vocs se aproximarem dele. No ? -- Talvez... Talvez: eu no sabia como Z receberia o convite. E no tinha idia de como ele sentir ia num grupo do qual fazia parte o Queco - o Queco que, eu tinha certeza, no poup aria o garoto de uma outra fase irnica. Mas valia a pena tentar. No dia seguinte, procurei o Z no intervalo. Ali estava ele, sob a sua rvore, com endo o seu sanduche e lendo seu livro. Aproximei-me: -- Tudo bem, Z? Estremeceu, como se estivesse sido atacado. Depois sorriu: -- Ah, voc, Gui. Voc me deu um susto, cara. -- Desculpe, no foi minha inteno. Seguinte: tenho um convite para voc (p. 37) -- Um convite? -- A expresso dele era mais de temor do que de surpresa. -- Conv ite para qu? Expliquei-lhe o nosso projeto, disse que queria sua ajuda. Relutou: -- No sei, Gui... Acho que no funciono muito bem em grupo... -- Mas por isso que estou convidando voc, cara. Voc no acha que est na hora de sai r desse isolamento? E tenho certeza de que sua contribuio ser importante. Pediu um tempo para pensar. Concordei: -- Mas no pense muito, cara. Temos de comear a trabalhar logo. E queremos voc, no esquea. Mais tarde, quando j estvamos sado do colgio, ele se aproximou de mim. Olhou-me: -- Topo. Pode contar comigo. Aquilo era uma grande notcia - e provava que meu pai realmente sabia das coisas . Resolvi aproveitar a deixa e convidar o Z para sair comigo at o Alfredo: -- A gente se rene l todos os fins de tarde. Vamos aproveitar e conversar sobre o trabalho. De novo, ele hesitou: -- No sei... que moro longe... -- Deixa disso, cara. Vamos at l. Fomos. Meu nico temor era que o Queco resolvesse fazer graa custa do rapaz. Mas Queco no tinha vindo. Naquela tarde, seu pai estava dando um coquetel para empresr ios e exigira a presena dele. G e Martinha, mal certamente teria mil perguntas a fazer ao Z, sobre sua vida, s obre o lugar de onde ele vinha, sobre seus pais... Mas se contiveram, os dois. C ontei, ento, que o Z iria participar do nosso trabalho, ajudando a fazer o resumo da obra de Euclides. G ergueu o copo: (p. 38) -- Isto merece um brinde. Ao novo membro do nosso grupo! Z sorriu, ainda meio contrafeito, e eu tive medo de que ele se chateasse com aq uelas efuses todas. De modo que optei por mudar de assunto: -- Temos de discutir como vamos fazer esse resumo. Proponho que a gente leia o livro, seguindo um roteiro de perguntas sobre Antnio Conselheiro. Quem era? Por que se rebelou? Qual o seu papel na rebelio? Coisas assim. Que tal? -- Acho muito bom - disse Martinha. -- Mas vai exigir tempo e trabalho. Para c omear, a gente tem de ler Os sertes. Que alis eu nem tenho. Mas j sei que posso enco

ntr-lo na livraria. Amanh mesmo vou l. -- E voc, Z? -- perguntei. Ele vacilou: -- Bem... Eu j li o livro. Aquela era incrvel. -- Voc l leu Os sertes? -- G, boquiaberto. -- . -- Mexeu-se na cadeira, contrafeito, e continuou, como que se desculpando. -- Voc sabe, eu sou daquela regio que Euclides da Cunha descreve no livro. Ento, s empre tive curiosidade pela obra... -- Ah, verdade - disse G. -- Voc de l... Do serto. Fale um pouco para a gente: com o era a sua vida l? Z comeava a ficar inquieto. Olhou o relgio: -- Desculpem. Isso vai ter de ficar para outro dia. Agora tenho de ir. Estou a trasado, acreditem. Levantou-se, apanhou a mochila. -- Quem sabe ns vamos na mesma direo - disse G. -- Onde que voc mora? Uma pergunta inocente, mas que fez Z baixar a cabea. E respondeu, depois de uma longa pausa: -- No Buraco - disse, por fim. (p. 39) Aquilo era surpresa. Uma constrangedora surpresa, para dizer a verdade. Todos ns ali, G inclusive, ramos garotos de classe mdia. Nenhum de ns morava no Buraco. Nen hum aluno de nossa escola morava no Buraco. Z, pelo visto, era exceo. Mas tivemos t odos o bom senso de no demonstrarmos nossa estranheza. -- Tudo bem - eu disse. -- Amanh a gente se v na escola. E eu gostaria de marcar a nossa primeira reunio. Vamos fazer isso na semana que vem, assim a Martinha te r tempo de ler Os sertes. A gente poderia se encontrar na tera-feira de manh, ba min ha casa. Trabalhamos um pouco, depois almoamos e vamos para a escola. Temi que Z fizesse alguma objeo - afinal j tinha recusado um convite para almoar -, mas no, ele aceitou. Voltei para casa muito contente. Parecia que estava tudo bem. (p. 40) 6. Mas no, no estava tudo bem Durante o jantar, contei a novidade: o Z tinha se reunido coma gente. Pensei qu e meu pai iria ficar muito contente - afinal, ele tinha insistido tanto para que o convidssemos - e, de fato, ele manifestou sua satisfao, mas logo em seguida volt ou a ficar silencioso. O que me deixou preocupado. Eu sabia muito bem que o trabalho de um delegado d e polcia no fcil. Embora a cidade fosse pacata e meu pai gozasse de muito prestgio, tinha alguns inimigos: gente que ele prendera e que jurara vingana, por exemplo. Mame temia particularmente um sujeito conhecido com Manuel Tranca-Ps, que ficara vr ios anos na cadeia por homicdio. Todos os anos, no Natal, esse Manuel Tranca-Ps ma ndava uma carta para meu pai: "Este o seu ltimo Natal". Mame entrava em pnico, papa i gracejava: -- No se preocupe, eu conheo o Manuel, essa a forma que ele encontrou de me dese jar Boas Festas. Uma ou duas vezes tivera tambm problemas polticos. Uma ocasio, prendera um recept or de coisas roubadas. Acontece que esse receptador trabalhava de comum acordo c om um conhecido comerciante da cidade - um cunhado do prefeito. As presses sobre papai foram muito grandes, mas ele no se intimidou e levou o cara a julgamento. (p. 41) Estaria papai enfrentando alguma situao desse tipo, alguma ameaa? Foi o que pergu ntei, um tanto receoso. Mame encarregou-se de responder:

-- No. Ameaa, no. Mas seu pai est preocupado com a situao no Buraco. -- Que situao? -- quela altura eu j tinha at esquecido a conversa de dias atrs. -- O pregador - disse meu pai. -- Ele est atraindo cada vez mais gente para c. H oje mesmo chegou um caminho cheio de gente. E todas essas pessoas esto se instalan do no Buraco. Montam barracas com lona plstica e l ficam. -- Mas escute - eu disse - este um pas livre. As pessoas podem morar onde quise rem, no podem? -- Podem - disse meu pai. -- A questo saber por que escolheram um lugar to precri o como o Buraco. E a questo tambm saber o que pretende o Jesuno Pregador - esse o a pelido que lhe deram. -- E no d para perguntar o que ele pretende? -- J perguntaram. O pessoal da rdio. Ele no responde. Diz que sua misso secreta, e sagrada, e que s fala com seus discpulos de confiana. Ou com Deus. Sorriu: -- O que no o meu caso, evidentemente. Mudou de assunto, comeou a falar do jogo daquela noite: o time da cidade, o Ser tozinho, enfrentaria o seu grande rival, o Guaxup. Era o grande clssico da regio. -- Voc quer ir comigo? Claro que eu queria. Em primeiro lugar, eu era - sou - louco por futebol. Mais importante, senti que papai precisava de minha companhia, da companhia de seu f ilho. De modo que, naquela noite, resolvi deixar Euclides da Cunha de lado. Fomo s ao jogo, no estdio do Sertozinho - cheio, naquela noite -, torcemos bastante, vi bramos com a vitria do nosso time, e eu fiquei contente de ver papai alegre, desc ontrado, conversando com amigos, recebendo cumprimentos e abraos. Voltou para casa feliz. Eu tambm. (p. 42) No fim de semana fomos, o G, o Queco, a Martinha, sua irm Rafaela e eu, acampar nas margens do Mar-de-Dentro, a grande represa. Aquela era um programa habitual para os moradores da regio. Afinal, estamos na boca do serto, muito longe do litor al: oceano Atlntico, para ns, s de vez em quando. Mas, nas margens da represa, havi a uma espcie de praia, um lugar de areia fina e onde a companhia construtora da r epresa tinha plantado coqueiros, numa tentativa de imitar o litoral. Tinha at nom e o lugar - Praia do Serto -, o que pode parecer meio contraditrio, mas acabou peg ando. Havia ali hotis, restaurantes e um ancoradouro onde se podia alugar barcos e pedalinhos. Para l seguimos de nibus. Acampamos, jogamos futebol, nadamos, andamos de barco - mas a Martinha no deixou de ler o livro do Euclides, que tinha trazido. Voltamo s domingo noite. Para meu desgosto, encontrei papai de novo preocupado: naquela tarde, Jesuno Pr egador tinha organizado um enorme encontro de crentes. Falava-se, disse meu pai, de mil pessoas, de duas mil pessoas, de cinco mil at. Enfim, a coisa estava cres cendo. Eu queria saber mais sobre o assunto, mas estava cansado demais para perguntar . Fui dormir e, naquela noite, tive um sonho muito estranho. Sonhei que estava b eira da represa, como estivera durante o dia, mas completamente sozinho. De repe nte, das guas comeavam a emergir esttuas, milhares de esttuas de cangaceiros, todos com aquelas vestimentas caractersticas, todos de faco na mo. Acordei suando frio e no consegui mais dormir. Lembro-me que cheguei at a maldioar o livro do Euclides: e ssa coisa est me dando pesadelos. A verdade, porm, que estava fascinado pela leitura - entusiasmado com o evento que estvamos organizando, o debate sobre Antnio Conselheiro. Na tera-feira, como co mbinado, Martinha apareceu l em casa entusiasmada, j tinha lido boa parte do livro : (p. 43) -- Fiquei acordada at de madrugada. S espero no adormecer em cima da mesa. Ah, sim, e tinha preparado as anotaes, que me mostrou com orgulho:

-- Fiz o meu dever de casa direitinho. Voc viu como sou boa aluna? Faltava o Z, que j estava atrasado uma boa meia hora. -- Ser que o cara esqueceu? - perguntou Martinha, intrigada. Uma coisa me ocorreu: fui at a janela da frente, espiei por ali. No deu outra: l estava o cara, parado, evidentemente indeciso se deveria ou no entrar. Que sujeit o complicado, pensei. E, abrindo a porta, chamei-o: -- Entra logo, Z. Estamos s esperando por voc. Olhou para os lados - como se esperasse socorro de algum - e finalmente entrou, meio intimidado. "Muito bonita, a sua casa", disse, com sincera admirao. O que me deu o que pensar. Nossa casa absolutamente comum, modesta, mesmo. Mas muito mai s modesto deveria ser o lugar em que ele morava. Sentamo-nos mesa. -- Como que vamos fazer? - perguntei. -- Agora que j sei alguma coisa do livro, cheguei concluso de que temos de nos d eter em trs pontos - disse Martinha. -- Primeiro, quem foi Antnio Conselheiro; seg undo, o que era Canudos; terceiro, qual foi a reao das autoridades. Que tal? A idia era boa. Agora tnhamos de colocar aquilo no papel, sob a forma de um resu mo. -- Isso significa - continuou Martinha - que teremos de ser neutros, isentos. Mais isento que o Euclides, at. A pergunta seguinte era: por onde comear? Z j tinha lido o livro. Martinha e eu c onhecamos a primeira e a segunda partes; decidimos ir direto ao trecho em que Antn io Conselheiro aparece pela primeira vez no livro. E ele aparece num momento crucial. (p. 44) Euclides acabava de comentar os horrores da seca. No por coincidncia, a parte se guinte trata das crenas do sertanejo, que ele descreve como "misticismo extravaga nte, em que se debate o fetichismo do ndio e do africano. E o homem primitivo, au dacioso e forte, mas ao mesmo tempo crdulo, deixando-se facilmente arrebatar pela s supersties mais absurdas. Uma anlise destas revelaria a fuso de estados emocionais distintos. A sua religio , como ele, mestia". Em seguida, Euclides cita personagen s de lendas brasileiras: o Caapora, o Saci, o Lobisomem, a Mula-sem-cabea... Mantinha fez urna observao: -- Euclides diz que o misticismo do sertanejo extravagante. Mas isso, eu acho, opinio dele. O que extravagante para uma pessoa no extravagante para outra. Eu ac ho comida chinesa extravagante, mas os chineses devem achar extravagante a nossa comida brasileira. Alm disso, como ele mesmo diz, existe a questo da seca, da pob reza, da fome. Eu, se vivesse numa situao assim, acreditaria em qualquer coisa. Vo cs no? Discutimos um pouco o assunto - na verdade Martinha e eu discutimos, porque Z c ontinuava calado. Fizemos algumas anotaes e fomos adiante. Depois de falar das crenas do sertanejo, Euclides aborda um tema importante: o messianismo. Ele mostra como, em meio ao sofrimento, surge a esperana de um Messi as capaz de salvar as pessoas da catstrofe. Isso j existia em Portugal; Euclides f ala no sebastianismo e nas profecias de Bandarra. Sebastianismo? Bandarra? O que era aquilo? Nem eu, nem Martinha sabamos. Ela su geriu que olhssemos na enciclopdia. No foi preciso. Z sabia do que se tratava. Com seu jeito modesto, foi explicando : sebastianismo referia-se esperana de que Dom Sebastio, o jovem rei de Portugal d esaparecido numa batalha contra os mouros no sculo XVI, reaparecesse para trazer de volta ao pas sua antiga glria. J Bandarra era um sapateiro de Trancoso, Portugal , cujas trovas profticas mantinham viva a esperana desse futuro glorioso. (p. 45) Martinha e eu nos olhamos, surpresos. O quietinho Z estava se revelando um verd adeiro professor. -- De onde que voc sabe essas coisas? - perguntei.

Ele meio que desconversou: tinha lido a respeito num velho livro que pertencia sua famlia. Passado o assombro, continuamos. Euclides conta como a esperana messinica chegou ao Brasil: "Trouxeram-na as gentes impressionveis que afluram para a nossa terra" . E, no Brasil, ocorreram mesmo movimentos messinicos, como o da Pedra Bonita, em 1837. Dizia-se que, quando essa pedra (que fica na Serra Talhada, em Pernambuco ) se quebrasse, dela emergiria o rei Dom Sebastio. Originou-se, no lugar, um gran de movimento mstico no qual se faziam at sacrifcios humanos, para que a pedra se qu ebrasse. Em 1850, no serto do Cariri, surgiu um outro movimento messinico, o dos S erenos. Acreditando que o fim do mundo estava prximo, "foram pelos sertes em fora, esmolando, chorando, rezando... e como a caridade pblica no os podia satisfazer a todos, acabaram roubando". Por que Euclides fala dessas coisas? Ele compara o trabalho do historiador ao de um gelogo. Da mesma forma que o gelogo, estudando as rochas, pode dizer o que a conteceu no passado, o historiador s pode avaliar uma figura histrica "considerand o a psicologia da sociedade que o criou". E, em matria de psicologia, Euclides no tem nenhuma dvida: para ele, Antnio Conselheiro era maluco. Dvida tnhamos ns, porm: -- Se o cara era maluco, como tinha tantos seguidores? - perguntou Martinha. - Ser que eram todos malucos tambm? Sobre isso Euclides no fala. Mas ele nos conta a histria do Conselheiro, cujo no me completo era Antnio Vicente Mendes Maciel. Era do Cear. Sua origem: "Os Maciis, que formavam, nos sertes entre Quixeramobim e Tamboril, uma famlia numerosa de hom ens vlidos, geis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criao". Os Maciis eram rivais dos Arajos, "que formavam uma famlia rica, filiada a outras das mais antigas do norte da provncia. Esta rivalidade no raro se transformava em luta sangrenta". Euclides descreve como um tio de Antnio, Miguel Carlos, mesmo cercad o por membros da famlia rival, consegue escapar, matando vrios inimigos. (p. 46) No parece que o pai de Antnio Conselheiro, Vicente Mendes Maciel, tenha particip ado dessas lutas. Era dono de uma casa de comrcio em Quixeramobim. Ali trabalhava Antnio, como caixeiro. Euclides se vale de testemunhos para retrat-lo como um "ad olescente tranqilo e tmido, retrado, avesso troa". Tinha trs irms, das quais cuidava uito. Tanto que s depois do casamento delas procurou urna esposa para si prprio. " Um enlace que lhe foi nefasto", diz Euclides: "A mulher foi a sobrecarga adicion ada tremenda tara hereditria que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhore s auspcios [expectativas]". Tropeamos naquela "tara hereditria". O que queria aquilo dizer? De novo o Z tinha uma resposta: -- Tara era como eles chamavam certos tipo de doena mental, que deixavam a pess oa retardada. Ou ento pessoas com problemas sexuais... -- Os tarados... - comentei. -- E. O pessoal acreditava que as taras fossem hereditrias: passavam dos pais p ara os filhos. -- Voc sabe um bocado - comentei, sinceramente admirado. -- Nem tanto, Gosto de ler, s isso... Continuamos a leitura. Euclides diz que, depois de casado, Antnio Maciel comeou a trocar de cidade e de emprego: foi para Sobral, como caixeiro; depois para Cam po Grande, como escrivo no juizado; depois Ipu, onde trabalhou no frum. -- No frum? - admirou-se Martinha. -- Mas ento o cara no era to inculto assim. -- At latim ele sabia - informou o Z. (p. 47) Mas Euclides no tem ota-se em tudo isto um vez menos a constncia Segundo ele, Antnio rtinha indignada: grande considerao para com esse tipo de trabalho. Diz ele: "N crescendo para profisses menos trabalhosas, exigindo cada do esforo". estava descambando para a vadiagem franca". O que deixou Ma

-- Espera a, gente! Trabalhar no frum vadiagem? Meu tio trabalha l e no nenhum vad io! E o G, que quer ser advogado? Ele vadio, tambm? -- Talvez fosse esse o conceito naquela poca - ponderei. -- Ou talvez fosse o p onto de vista pessoal do Euclides. Resolvemos: no nosso resumo simplesmente colocaramos que Antnio havia mudado de cidade e de emprego, sem fazer nenhuma observao sobre isso. E ai, novo incidente, que, para Euclides, foi decisivo: "Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertes, paragens desconhecidas, ond e no lhe saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade. "Desce para o sul do Cear. "Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere, com mpeto de alucinado, noite, um parente, que o hospedara. Fazem-se breves inquiries policiais, tolhidas logo pela prpria vtima, reconhecendo a no culpabilidade do agressor. Salva-se da pr iso. Prossegue depois para o sul, toa. na direo do Crato. E desaparece... "Passaram-se dez anos. O moo infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido (. ..) Morrera, por assim dizer. "... E surgia na Bahia o anacoreta [religioso solitrio] sombrio, cabelos cresci dos at aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; mon struoso, dentro de um hbito azul de brim americano; abordoado [apoiado] ao clssico basto, em que se apia o passo tardo dos peregrinos..." E peregrino Antnio Conselheiro era: dos sertes de Pernambuco, passou aos de Serg ipe e de l chegou Bahia. "Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava os pousos solitrios. No aceitava leito algum alm de uma tbua nua, e, na falta desta, o cho duro (p. 48) Sua fama foi se espalhando. Surgiram os primeiros fiis, pelos quais Euclides no tem muita admirao: trata-se de "gente intima [muito inferior] e suspeita, avessa a o trabalho... vencidos da vida". Mas reconhece que os fiis o seguiam, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provaes e misrias". Em breve o movimento comeava a chamar a ateno em outros lugares do Brasil, como m ostra um documento publicado em 1876 no Rio de Janeiro (na poca a capital do pas) e transcrito por Euclides: "Apareceu no serto do Norte um indivduo que se diz chamar Antnio Conselheiro, e q ue exerce grande influncia no esprito das classes populares, servindo-se de seu ex terior misterioso e costumes ascticos, com que se impe ignorncia e simplicidade... vive a rezar teros e ladainhas e a pregar e a dar conselhos s multides que rene onde lhe permitem os procos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o po vo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura." Comeavam a surgir as primeiras lendas a respeito do Conselheiro. Contava-se que certa vez, numa capela de Monte Santo, duas lgrimas sangrentas correram dos olho s da imagem da Virgem assim que ele entrou. E havia tambm suas numerosas profecia s - que eram cuidadosamente anotadas pelos discpulos. Eram frases misteriosas com o esta: "Em 1896 ho de rebanhos mil correr da praia para o serto; ento o serto virar praia e a praia virar serto." -- Mas essa eu conheo - disse Martinha. -- S que com palavras um pouco diferente s: "o serto vai virar mar e o mar vai virar serto". at a letra de uma msica... Continuei a ler outras profecias: "H de chover uma grande chuva de estrelas e a ser o fim do mundo." (p. 49) "Em verdade vos digo, quando as naes brigam com as naes, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prssia com a Prssia, das ondas do mar Dom Sebastio s air com todo o seu exrcito." -- E a est Dom Sebastio de novo - disse Martinha. -Mas no entendi essa histria de o Brasil brigar com o Brasil. Que briga era essa?

-- Acho - disse Z - que ele se referia luta entre monarquistas e republicanos. O Antnio Conselheiro era contra a repblica, proclamada poucos anos antes. Por uma srie de razes: a Igreja e o governo estavam agora separados; o casamento reconheci do passava a ser o civil, casar s no religioso no chegava; e o governo federal cob rava impostos, coisa que o deixava revoltado. -- Isso mesmo - acrescentei. -- Euclides at conta que o Conselheiro fez uns ato s de protesto poltico. Em 1893, quando os municpios passaram a cobrar impostos, el e queimou os editais da cobrana numa fogueira. E a, pela primeira vez, a polcia foi atrs dele. Queriam prend-lo. Mas os jagunos dele botaram os soldados pra correr. F oi ento que o Conselheiro decidiu ir para Canudos. -- O que que vocs esto fazendo a? Era meu pai, que acabara de chegar. To absortos estvamos, eu lendo, Martinha e Z escutando, que nem tnhamos dado pela presena dele. Reclamei: -- Que isso, papai? Voc nos assustou! -- No foi minha inteno - disse ele. E continuou: -- Voc no vai me apresentar aos se us amigos? Fiz as apresentaes: -- Esta a Martinha, que voc j deve conhecer... Este o Z, colega novo... Ele fitou o rapaz com ateno, mas nada disse, no fez perguntas: tato era coisa que no faltava a papai. Perguntou sobre o nosso trabalho, comentou que havia lido Os sertes na Faculdade de Direito: (p. 50) -- J faz tempo, mas lembro ainda que fiquei muito impressionado com esse livro. Mais: ajudou-me bastante no meu trabalho como delegado. O Euclides me ensinou a ver transgresso de outra maneira. Porque ele -Interrompeu-se com um gesto: -- Deixa pra l. Leiam e tirem concluses, vocs prprios. Esperamos mame chegar e fomos almoar. mesa, continuei a falar, animado, sobre o nosso trabalho: -- Essa histria do Antnio conselheiro fantstica, mame. Voc deveria ler. -- Mal consigo ler os livros da minha profisso - suspirou ela. -- Mas, se tives se tempo, claro que eu leria. Ainda que disfaradamente, papai continuava olhando o Z. A certa altura perguntou -lhe, em tom casual, onde morava. Z hesitou. -- No buraco - respondeu, por fim. Por um instante, receei que papai comeasse a lhe fazer perguntas sobre o que es tava acontecendo no lugar, aquela histria do Jesuno Pregador. Mas papai revelou-se hbil, mais uma vez. Rapidamente mudou de assunto: para o futebol, um tema sobre o qual gostava de falar e no qual sabia envolver o interlocutor. Mesmo assim eu estava preocupado: eu sabia que o Z era um jeito sensvel, complicado mesmo. No esta ria ele se sentindo pouco vontade, ali? Com muita surpresa, constatei que minha preocupao no tinha razo de ser. Papai e ma me talvez intimidassem o Z, mas ele no estava prestando ateno neles: no tirava os olho s de Martinha. No tirava os olhos modo de dizer, por que ele em geral ficava de c abea baixa, fitando o prato. Mas quando erguia os olhos era para mirar Martinha. E mirar com enlevo: o cara estava apaixonado, foi o que logo deduzi. E eu o compreendia. Embora no chegasse a ser bonita - era uma moreninha mida, co m uns olhos muito arregalados e uma boca, para meu gosto, um tanto grande -, Mar tinha era simptica, exuberante. Fazia amigos com facilidade mas h tempos estava se m namorado. (p. 51) Agora: ser que ela se dava conta da atrao que exercia sobre o Z? E como receberia uma tentativa de aproximao dele, se tal tentativa viesse a ocorrer, o que eu, alis, achava difcil? Pensei em falar com ela, alert-la a respeito. Mas Martinha era esp erta. Provavelmente se dera conta dos sentimentos de Z muito tempo antes de mim. E, se no quisesse nada com ele, saberia como dizer-lhe. Sem ferir o rapaz muito,

em todo o caso. Terminamos de almoar, papai deu-nos uma carona de carro at o colgio. Na entrada, encontrei o G. Quis saber como havia sido a reunio da manh. -- tima - eu disse. Estava ansioso para lhe contar sobre a suposta paixo do Z, mas me contive. Afina l, eu tinha direito de fazer especulaes sobre a vida alheia. G me disse que estava lendo Os sertes. -- Quero star bem preparado para esse debate - disse. O Queco vai levar a lio qu e ele h tempo est merecendo. Queco, que encontrei logo depois, tambm me perguntou sobre a reunio. Ficou surpr eso ao saber que o Z Tinha aparecido: -- Eu jurava que o Z Cabrito no iria sua casa. Aquilo bicho do mato, cara. Sabe o que me disseram? Que ele mora no Buraco. Voc acredita nisso? No Buraco, cara. A propsito: voc viu no jornal de hoje a reportagem sobre esse sujeito que est fundan do uma nova religio l no Buraco? Um tal de Jesuno Pregador? Tome nota do que estou lhe dizendo, Gui: esse homem ainda vai ar trabalho para seu pai. A primeira aula era com o Armando, e, quando terminou, fui falar com ele. Cont ei que j tnhamos nos reunido e que estvamos preparando o resumo para apresentar o p essoal que iria debater Antnio Conselheiro. Ficou muito satisfeito ao saber que o Z tinha participado. Pensou um pouco e depois disse: (p. 52) -- Tem uma coisa que pouca gente sabe e que, no meu modo de ver, no deve ser co mentada. Vou lhe contar, por que vejo que voc est ajudando Z. -- Fez uma pausa e continuou: -- Ele bolsista do colgio. E foi aceito como bolsista por vrias razes. Em primeir o lugar, realmente precisa de bolsa de estudos: muito pobre. Merece a bolsa: tr ata-se de um garoto inteligente e estudioso, como voc j deve ter constatado. Mas t ambm ganhou o auxlio porque o padre Lucas, que conhece um pouco da vida dele, veio falar com a direo e pediu que fosse aceito no colgio: o garoto tem problemas pesso ais bastante srios. Mais do que isso no posso lhe dizer, mas lhe peo: continue dand o uma fora para o garoto. Ele precisa dessa fora. E a voc far bem ajudando-o. Eu disse que alguma coisa j sabia do Z; por exemplo, que ele era esforado, que li a muito e sabia de muita coisa. E que certamente era muito pobre, pis morava no Buraco. A me lembrei: -- Falando em Buraco, o que voc me diz desse cara que apareceu por l? -- O Jesuno Pregador? - ele suspirou. -- No sei. Para dizer a verdade, ainda no s ei muito sobre isso. Mas acho que logo vamos ficar sabendo. E acho que logo esta remos falando sobre esse assunto. Sorriu: -- Espero que a gente no tenha um Canudos aqui em Sertozinho. (p. 53) 7. Entramos em canudos Na manh seguinte, fizemos nova reunio, desta vez no apartamento em que Maninha m orava com a me e a irm -o pai deixara a famlia h tempos, indo para Salvador. Sentamo s na sala de visitas. Meio sem jeito, Maninha disse que no pudera continuar a lei tura: -- No tive tempo, acreditem. Desculpem, mas hoje tudo com vocs. -- Com voc, Gui - corrigiu Z. Sorriu, tmido: -- Gosto mais de ouvir que de falar Mas de vez em quando dou meus palpites... Peguei o livro e o dirio onde, como de costume, tinha feito as anotaes: -- Bem, ento vamos l. -- Espera a. Onde que a gente estava mesmo? - perguntou Martinha. -- O Antnio Conselheiro estava chegando em Canudos - respondi. -- Ah, verdade. Alis, que nome esquisito, o desse lugar! De onde que saiu? -- O Euclides explica. Era uma antiga fazenda margem do rio Vaza-Barris. Antes

de Conselheiro e seus discpulos, outras pessoas haviam ocupado o lugar. E esse p essoal fumava uns cachimbos feitos com o caule oco de urna planta da beira do ri o chamada canudo-de-pito - da o nome. (p. 54) Canudos tinha uma localizao estratgica: o lugar era cercado de serras e morros, C ambaio, Cocorob, Angico e outros, o que dificultava o acesso de possveis inimigos. Mas essa Localizado no impediu a chegada de peregrinos, que vinham cada vez em m aior nmero. Ali surgiu ento um arraial, o arraial de Canudos, onde as pessoas vivi am numa "pobreza repugnante", nas palavras de Euclides, 'traduzindo, mais do que a misria do homem, a decrepitude [decadncia] da raa". -- O cara era invocado com esse negcio de raa - observou Martinha. -- Era mesmo. Nesse arraial, havia de tudo, desde o crente at o bandido. Ao che gar, entregavam ao Conselheiro praticamente tudo o que possuam. Ele dominava o ar raial, ele era a lei, ele era o lder moral. E o que ele pregava era a renncia a to dos os bens, todos os confortos. Ensinava que o sofrimento era benfico para a mor al. Beber no era permitido. Mas o amor livre era... -- Quer dizer: o cara tirava de um lado, mas dava de outro. - comentou Martinh a. -- Parece, n? Outra coisa: em Canudos, o Conselheiro mantinha a ordem, mas, diz Euclides, volta e meia os caras saam dali para assaltar localidades ao redor. -- Mas espera um pouco - Martinha, intrigada. -- E a religio? Aquilo no era um g rupo religioso? -- Era. E eles tinham suas cerimnias. Todas as tardes se reuniam para rezas hom ens de um lado, mulheres de outro. -- A os sexos ficavam separados... - riu Martinha. -- Primeiro amor livre; depo is mulher para um lado, homem para outro. -- Pois . E tambm havia uma cerimnia em que todos tinham de beijar a mesma imagem de Cristo ou de um santo. (p. 55) L pelas tantas o Conselheiro resolveu construir uma grande igreja em Canudos, " uma catedral", nas palavras de Euclides. -- O Conselheiro era um construtor de igrejas acrescentou Z. -- Ele tinha prome tido construir 25 delas na sua vida... -- Pois . E foi a construo desse templo que precipitou a luta. Conselheiro tinha encomendado em Juazeiro, mediante pagamento adiantado, uma certa quantidade de m adeira, que no foi entregue. Segundo Euclides, de propsito: quem impediu a entrega foi um juiz, Arlindo Leone, que os homens do Conselheiro tinham expulsado do mu nicpio de Bom Conselho e que assim estava se vingando. Antnio Conselheiro ento ameao u: ou entregavam a madeira ou ele invadiria Juazeiro. Houve pnico na cidade, e o governador da Bahia mandou reforar a fora policial com cem soldados. Eles recebera m a ordem de atacar Canudos - e foi o que fizeram. -- Mas tiveram uma surpresa - disse Z. Surpresa foi a nossa: j era a segunda vez que o Z falava! Estava participando ma is do que espervamos. O que era timo. S que depois de ter dito a frase, ele ficou e m silncio, como que arrependido de ter falado. De modo que resolvi estimul-lo: Vamos l, Z, conte. Mais uma pequena vacilao e ele contou: -- A tropa se deslocou at Uau, onde tambm moravam adeptos do Conselheiro. E, quan do os soldados chegaram, a populao fugiu em massa para Canudos. Naquela noite, os soldados dormiram no local. No dia seguinte, quando acordaram, viram diante de s i uma multido que avanava ao som de cnticos religiosos. Comeou a luta. Os soldados e ram em nmero muito menor, mas tinham armas automticas, enquanto os sertanejos s dis punham de faces, foices e armas de fogo simples. Muitos morreram, mas mesmo assim os soldados acabaram batendo em retirada. (p. 56)

Nesse momento fomos interrompidos: chegava a Rafaela. Vinha aborrecida, furios a mesmo: -- Levei uma hora para chegar at aqui, gente. Vocs acreditam? Numa cidade deste tamanhinho, o trnsito de repente fica congestionado, e pronto, ningum se mexe. Congestionamento? Aquilo era novidade. Congestionamento ocorria em Sertozinho d e Baixo s em caso de temporais que inundavam a rua, ou quando a prefeitura realiz ava alguma obra muito grande. Mas o cu estava azul e obra nenhuma estava sendo fe ita naquele momento. -- Foi aquele pessoal do Jesuno Pregador - explicou Rafaela. -- Esto fazendo uma procisso pela cidade. Enorme procisso, com cruzes, imagens de santos e tudo. A to da hora repetem que o fim est prximo, que o seno vai virar praia... O serto vai virar praia? Mas aquilo ns conhecamos! -- E a mesma frase do Antnio Conselheiro! - disse Martinha. -- Antnio, quem? - perguntou Rafaela, sem entender. -- Se voc tivesse lido Os sertes, voc saberia. Mas como voc no l nada... -- Martinha no perdia uma oportunidade para espicaar a irm. -- Eu no leio nada - respondeu Rafaela, irnica. -- E voc no arranja namorado algum . Quem est pior? -- Est pior - retrucou Martinha - quem no sabe que uma coisa no tem nada a ver co m a outra. Voc -- Parem de bater boca e venham ver uma coisa aqui na tev - era a me de Martinha , do quarto ao lado. Fomos. Era uma transmisso, ao vivo, da procisso de que Rafaela nos falara. A pri meira coisa que me chamou a ateno foi a quantidade de pessoas: eu no lembrava de um cortejo to grande na cidade. Nem no Carnaval, quando as ruas ficam cheias, h tant a gente. Gente humilde, alguns usando uma espcie de tnica escura. Como dissera Raf aela, carregavam cruzes, imagens e uma faixa: "Arrependei-vos agora, amanh ser tar de". (p. 57) O reprter, da rua, explicava que o lder da seita, Jesuno Pregador, no se encontrav a ali: -- Ele comandou a sada da procisso, no Buraco, mas ficou l. Procurado por nossa r eportagem, recusou-se a dar entrevista, dizendo que televiso coisa do diabo. Virei-me para comentar alguma coisa, mas me detive. E me detive por causa da e xpresso de Z. O sofrimento, a angstia que transpareciam em seu rosto eram impressio nantes, comovedores. Por qu? Teria ele reconhecido nos devotos alguns de seus viz inhos do Buraco? Era uma coisa que eu no poderia perguntar sem correr o risco de mago-lo. Maninha tambm se deu conta disso: -- Escuta aqui, gente, est quase na hora de ir para o colgio. Quem sabe deixamos o trabalho para amanh? O encontro combinado, passei em casa para comer alguma coisa e pegar o meu mat erial para o colgio. Mame no estava, s papai - sentado, olhando a tev. Com ar visivel mente preocupado. Perguntei-lhe se tinha havido alguma desordem durante a procis so. -- No. Ainda no. -- O que voc quer dizer com "ainda no"? Voc acha que pode haver violncia? - pergun tei, assustado. -- No sei. O que eu sei que tem cada vez mais gente no Buraco. Olhe ali. Nesse momento a cmera, do alto de um prdio, mostrava em zoom a procisso voltando ao Buraco. E a fiquei de queixo cado. Eu conhecia pouco o Buraco, raramente ia l, m as realmente o lugar tinha mudado. Alm das casinholas, havia tendas de lona preta por toda parte, inclusive subindo pela encosta do morro ao p do qual ficava o Bu raco. E gente, muita gente, um enxame de gente, ali. (p. 58) Dava para entender a apreenso de papai. Mas tentei minimiz-la: aquilo era uma co

isa passageira, amanh ou depois o Jesuno Pregador iria embora e eles iriam junto. -- O cara meio nmade, no ? Certamente ele vai continuar a peregrinao. Como o Antnio Conselheiro... -- S que o Antnio Conselheiro acabou se fixando em Canudos - suspirou papai. -Se esse pregador seguir o exemplo e se fixar aqui, seguramente teremos problemas . Olhou o relgio, levantou-se: -- Vou indo, filho. Tenho de voltar para a delegacia. -- Vou com voc. Samos, a p - em Sertozinho tudo era, e continua sendo, perto. Acompanhei-o at a de legacia -- ele falando pouco, o que mostrava a sua apreenso -- e depois segui par a o colgio. L, claro, o assunto era um s: a procisso dos Pregadores, como os seguido res de Jesuno j estavam sendo chamados. No meio do ptio, Queco fazia um comcio: -- E uma cambada de vagabundos, de fanticos. Se a gente deixar, esses caras vo t omar conta da cidade. Viu-me chegar: -- Ento, Gui? O seu pai no vai fazer nada? Afinal, ele o delegado de polcia, n? el e o encarregado de manter a ordem... O tom era de gozao, mas olhei bem e percebi: o Queco estava assustado. Como muit os outros ali. Evidentemente queriam que eu dissesse alguma coisa, mas, como mame sempre repetia, eu no deveria falar sobre o trabalho do meu pai; no era apropriad o e poderia at criar problemas. De modo que respondi qualquer coisa, no mesmo tom gozador de Queco, e segui para a aula. No corredor, encontrei o professor Arman do. Perguntei-lhe se tinha visto a televiso. Sim, tinha visto. -- E ento? - insisti. (p. 59) -- Ento? No sei - sorriu, melanclico. -- Historiadores estudam o passado, no prevem o futuro. Importante entender o que est acontecendo. Esse debate que vocs vo fazer ajudar bastante nesse sentido. -- Espere um pouco: voc est me dizendo que estamos vendo uma situao igual do Antnio Conselheiro? -- Exatamente igual, no, porque a histria nunca se repete. Mas acho que h coisas em comum nos dois movimentos. Agora, voltando ao debate. No meu entender, a perg unta para a qual vocs precisam encontrar uma resposta : por que as pessoas aderem a movimentos desse tipo? O que oferecem tais movimentos s pessoas? Boa questo. Fiquei pensando nela o resto do dia. tarde, depois da escola, fui j ogar futebol. Quando cheguei, s oito horas, encontrei mame preocupada: papai ainda no tinha voltado. -- Voc sabe que ele no tem hora para chegar - ponderei. -- Sei. Mas liguei para a delegacia e me disseram que ele tinha ido at o Buraco . S ele e o Pedro. Pedro era o delegado auxiliar. -- Ora, mame. No vai acontecer nada. Mas a verdade que eu tambm estava preocupado. Foi com um suspiro de alvio que vi papai chegar, quase uma hora depois. -- Ento? - perguntei. -- Ento, o qu? -- Voc no foi l no Buraco? -- Fui. -- E da? Ele no respondeu. Tirou o casaco, jogou-o numa cadeira, deixou-se cair na poltr ona. Pelo jeito, estava cansado. E talvez deprimido. Mas cansado, certamente. -- Voc falou com o homem? - insistiu mame. -- Com o Jesuno Pregador? (p. 60) -- No. No falei com ele. Cheguei at onde ele mora, mas no falei com ele. Ou melhor : ele no quis falar comigo. Disse que no tinha qualquer assunto a tratar com o del

egado. -- Que ousadia! - mame, irritada. -- Onde que se viu um homem que nem daqui, qu e ningum sabe quem , recusar-se a falar com o delegado da cidade? -- Estava no direito dele, Teresa. Eu no tinha mandado judicial que o obrigasse a me receber. De modo que optei por no forar a barra. -- E como a casa? - perguntei. -- diferente das outras. L todo o mundo mora em barracos de taipa ou ento naquel as barracas de lona plstica. A casa dele de tijolo. Foi construda h pouco, v-se logo , nem est bem terminada. Mas rodeada por um muro alto. H um porto, guardado por doi s homens, acho que armados. Ficou um instante calado, e continuou: -- No falei com o Pregador, mas descobri muita coisa a seu respeito. Como no pod ia entrar na casa, caminhei pelo Buraco, conversando com um, conversando com out ro. Inclusive com gente que veio de outros municpios. E fiquei espantado. Aquilo mudou. Antigamente o Buraco era um lugar de gente humilde, gente sem muita esper ana, sem recursos. Agora, no. Por exemplo: o Pregador criou uma escola. uma escola religiosa, ensina as profecias deles e outras coisas, mas tambm ensina as crianas a ler, a escrever. E criou tambm um tribunal. -- Tribunal? - estranhei. -- E. Uma espcie de tribunal, organizado e dirigido pelo prprio Pregador. Se doi s vizinhos tm uma disputa qualquer, eles levam o caso ao Pregador; se h briga entr e marido e mulher, o Pregador quem resolve. E uma mulher me contou que os jovens que querem casar pedem-lhe aprovao. Existe uma espcie de templo, um grande barraco de madeira, onde o pessoal se rene para rezas junto com o Pregador. (p. 61) Eu estava absolutamente assombrado com aquilo. Entre outras razes, porque o rel ato de papai coincidia com o que tnhamos lido a respeito do Antnio Conselheiro. E foi o que eu lhe disse: -- Papai, isso parece a histria que o Euclides da Cunha conta em Os sertes... Ele me olhou, srio: -- Sei disso. Como no haveria de saber? Quem nasceu nesta regio, como eu, ouviu falar do Antnio Conselheiro. E a pergunta que eu me fao, que voc se faz, que todos se fazem : ser que esta histria vai terminar como a do Conselheiro? -- O que que voc acha? -- Se depender de mim, no - respondeu, taxativo. --Vou fazer o possvel para evit ar qualquer violncia. Olhou o relgio: -- Bem, acho que vou dormir. Estou um bocado cansado. Mame insistiu para que comesse alguma coisa, mas ele recusou, e entrou no quart o. Ela sacudiu a cabea, com um suspiro: -- Seu pai um bom garfo. E a primeira vez, nestes dezoito anos de casados, que eu o vejo ir para a cama sem jantar. Ele deve estar preocupado mesmo. Eu agora comeava a ficar preocupado tambm. E mais motivado a ler o livro. (p. 62) 8. Amplia-se a guerra contra o Conselheiro... Na manh seguinte, quando nos encontramos - de novo no apartamento da Martinha, a pedido dela -, tivemos de resolver uma questo: deveramos ou no incluir as campanh as contra o Conselheiro no resumo que faramos sobre ele? Martinha achava que no: -- Uma coisa o homem, outra coisa a guerra que moveram contra ele. No me parece necessrio falar das expedies militares. Eu, ao contrrio, achava que s poderamos compreender bem a figura que estvamos estu dando se descrevssemos a maneira pela qual ele se portara na luta. O voto decisiv o foi de Z. Achei que iria apoiar Martinha - cada vez que olhava para ela era com o se estivesse olhando para uma deusa -, mas no, estava de acordo comigo. Maninha at estranhou. Mas no se deixou perturbar. Gracejou:

-- Voc me surpreendeu, cara. Pensei que podia contar com voc... Ele riu, meio sem graa, e ela acariciou-lhe o rosto com a mo. Um gesto casual, comum entre amigos -- mas era de ver o brilho de felicidade q ue surgiu nos olhos do Z. Ele estava derretido mesmo. Eu s esperava que Martinha no estivesse brincando com os sentimentos dele. Mas logo voltamos ao nosso assunto : (p. 63) -- Muito bem - disse ela. -- Ento, quem que fala? Confesso que parei de ler o l ivro: essa coisa de combates no me interessa. -- Voc no sabe o que est perdendo - repliquei. -- O Euclides no est descrevendo uma briga entre mocinho e bandido. No faroeste. O que ele faz tentar entender os par ticipantes da campanha atravs da maneira como eles lutaram. -- Bem, se voc est por dentro, vamos l -- comandou Martinha. Ela era a minha inte rlocutora, porque o Z, naturalmente, no falava. -- Ns tnhamos parado naquela batalha de Uau, que terminou com a derrota dos solda dos. A foi preparada uma segunda expedio pelo governo da Bahia, comandada pelo majo r Febrnio de Pinto. Mais soldados, agora, cerca de quinhentos, e mais armamento, incluindo quatro metralhadoras e dois canhes. Os sertanejos - ou jagunos, que so os sertanejos que viram bandidos - eram em maior nmero, mas as armas que tinham era m simples, armas de carregar pela boca do cano: primeiro tinham de colocar a plvo ra, socar bem, colocar a bala... Levava tempo. Agora: tinham a seu favor um elem ento muito importante, que o terreno. Diz aqui o Euclides: "As caatingas so um al iado incorruptvel do sertanejo em revolta". Nelas, o jaguno transforma-se em guerr ilheiro: ataca e some no meio da vegetao, que, por sua vez, dificulta o movimento dos soldados. Para Euclides, "Canudos era a nossa Vendia". -- Vendia? O que isso? - quis saber Martinha. -- Eu tambm no sabia. Tive de olhar na enciclopdia. um episdio da Revoluo Francesa de 1789, que derrubou a realeza. A avenida era uma regio da Frana onde os camponeses, defendendo a monarquia, enfrentaram as tropas do governo, numa guerra de guerrilhas, atacando e fugindo, atacando e fugindo. E nfim, Euclides quer dizer que os sertanejos deram muito trabalho. (p. 64) -- Mas os comandantes decerto nem pensavam na possibilidade de uma resistncia d esse tipo... - sugeriu Martinha. -- De jeito nenhum. Euclides escreve que eles pensavam que "os rebeldes seriam destrudos a ferro e fogo". O comandante da expedio estava to confiante que mandou d eixar, num lugar chamado Queimadas, parte das munies, para que assim os soldados a ndassem mais depressa. A batalha ocorreu na serra do Cambaio. Por ali passava a estrada para Canudos. Por essa estrada iam subindo os soldados, vagarosamente e a, de repente, saindo dos seus esconderijos, apareceram os jagunos. Alguns se in filtravam entre a tropa do governo; outros, do alto da serra, atiravam. Cada ati rador tinha a ajuda de trs ou quatro companheiros, que se encarregavam de colocar a munio nas armas, de modo que eles podiam disparar sem cessar. Se por acaso o at irador era atingido, aparecia outro para substitu-lo. Conta Euclides: "Os soldado s viam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o mesmo busto, apontando-lhes a espingarda. Alvejavam-no de novo. Viam-no outra vez cair, de b ruos, baleado. Mas viam outra vez erguer-se, invulnervel, assombroso, terrvel". Ape sar de tudo isso, os soldados levaram a melhor e os sertanejos fugiram na direo de Canudos. -- E a tropa foi atrs... - sups Martinha. -- Isso mesmo. Mas foram atacados de novo, e j estavam com pouca munio. Decidiram -se ento pela retirada. Agora, um detalhe interessante: nesse meio tempo havia ch egado a Canudos a notcia de que as tropas do governo vinham vindo. Os fiis entrara m em pnico. Antnio Conselheiro subiu aos andaimes da igreja em construo, talvez espe rando o fim. E a os atacantes bateram em retirada.

(p. 65) -- Os caras acharam que era milagre do Conselheiro... - disse Martinha. -- Isso mesmo. J a tropa em retirada estava em ms condies. Os soldados no comiam h d ois dias, estavam esgotados, tinham de carregar os feridos. Ento os jagunos, coman dados por Paje -- "mestio de bravura inexcedvel [insupervel] e ferocidade rara", seg undo Euclides --, atacaram os soldados naquela mesma serra do Cambaio. Provocara m inclusive avalanches que deixaram os pobres homens apavorados. Finalmente, os soldados conseguiram escapar e chegar a Monte Santo. Conta Euclides: No havia um homem vlido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam , a cada passo, com os ps sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns, tragicamente r idculos, mal velando [cobrindo] a nudez com os capotes em pedaos, mal alinhando-se em simulacro [imitao grotesca] de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes". -- Mas isso incrvel - disse Martinha. -- Como que pode uma tropa, bem equipada, como voc falou, ser derrotada por sertanejos mal armados? -- Euclides bota a culpa na sociedade brasileira como um todo, que estava chei a de "elementos revolucionrios e dispersivos", segundo ele diz. -- Pelo jeito, em matria de disciplina, ele era linha-dura... - comentou Martin ha. -- Ah, . Se voc l a biografia dele, aqui no livro, voc tem uma explicao: o Euclides estudou numa escola militar, fez carreira, chegou ao posto de tenente - ou seja, estava habituado com disciplina, com ordem. E isso, naquele ano de 1897, era um a coisa que ele no via no pas. A Repblica j havia sido proclamada h oito anos e os br asileiros, segundo ele, ainda viviam no "marasmo monrquico". (p.