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O território e a comunidade Kalunga: quilombolas em diversos olhares

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Page 1: O território e a comunidade Kalunga: quilombolas em diversos olhares

O TERRITÓRIO E A COMUNIDADE KALUNGAquilombolas em diversos olhares

Maria Geralda de Almeida (org.)

Adegmar José Ferreira · Elaine Fernandes da Cunha Mesquita · Estelamaris

Tronco Monego · Iara Lucia Gomes Brasileiro · Ismar Borges de Lima · Karine

Anusca Martins · Luana Nunes Martins de Lima · Luiz Carlos Spiller Pena ·

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega · Maria Geralda de Almeida · Mariana

de Morais Cordeiro · Paola Rúbia Camargo Santos Silva · Peter Kumble

· Rangel Donizete Franco · Rodolfo Nunes Franco · Rosiane Dias Mota ·

Tatiana Oliveira Novais · Thais Alves Marinho · Wilma Melhorim Amorim

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O TERRITÓRIO E A COMUNIDADE KALUNGAquilombolas em diversos olhares

Maria Geralda de Almeida (org.)

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© 2015, Maria Geralda de Almeida

Universidade Federal de Goiás ReitorProf. Dr. Orlando Afonso Valle do Amaral

Diretora do Instituto de Estudos SocioambientaisCelene Cunha Monteiro Antunes Barreira

Coordenador do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia Prof. Dr. Manuel Eduardo Ferreira

Coordenação e organizaçãoMaria Geralda de Almeida

AutoresAdegmar José FerreiraElaine Fernandes da Cunha MesquitaEstelamaris Tronco MonegoIara Lucia Gomes BrasileiroIsmar Borges de LimaKarine Anusca MartinsLuana Nunes Martins de LimaLuiz Carlos Spiller PenaMaria Cristina Vidotte Blanco TarregaMaria Geralda de AlmeidaMariana de Morais CordeiroPaola Rúbia Camargo Santos SilvaPeter KumbleRangel Donizete FrancoRodolfo Nunes FrancoRosiane Dias MotaTatiana Oliveira NovaisThais Alves MarinhoWilma Melhorim Amorim

RevisãoLívia MesquitaBento Alves Araújo Jayme Fleury Curado

Projeto gráfico e editoração eletrônicaHugo Assunção

Projeto de capa e folha de rostoAndré Barcellos Carlos de Souza

Fotos da capa e folha de rostoRicardo Teles

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(Elaboração: Filipe Reis Dias de Jesus)

T327 O território e a comunidade Kalunga: quilombolas em diversos olhares. - - Maria Geralda Almeida (org.). – Goiânia : GRÁFICA UFG, 2015. 329 p. : il.

ISBN: 978-85-68359-39-6

1. Território. 2. Povo Kalunga. 3. Quilombolas. I. Almeida, Maria Geralda.

CDU: 17.023.32(=414/=45)

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AGRADECIMENTOS

Não existiria este livro sem as horas de compartilhamento de conversas sobre problemas e sonhos de mudanças, de caminhadas nas trilhas, de participação em animadas festas nos vãos, e da atenção hospitaleira e generosa por parte dos Kalunga ao concederem seu tempo, sua confiança ao revelar seus temores e suas histórias aos pesquisadores, entre os quais eu faço parte.

Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e Fapeg (A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) UnB Universidade de Brasília e UFG (Universidade Federal de Goiás) que apoiaram projetos de pesquisa e de extensão e colaboraram na publicação.

A Alice Castro e Thayza Neves, iniciantes na pesquisa de Geografia, pela colaboração na organização dos artigos.

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SUMÁRIO

7 APRESENTAÇÃO

12 ALÉM DO CULTURALISMO:

uma discussão teórica sobre cultura e etnia para quilombolas

Thais Alves Marinho

45 TERRITORIOS E IDENTIDADES DOS KALUNGA DE GOIÁS

Maria Geralda de Almeida

69 KALUNGA:

o difícil trajeto pela posse da terra

Wilma Melhorim Amorim

91 A ODISSÉIA JURÍDICA RUMO À PROTEÇÃO

DO TERRITÓRIO KALUNGA

Rangel Donizete Franco

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

113 ÁGUAS KALUNGA:

uma perspectiva ribeirinha na comunidade ribeirão dos Bois

Paola Camargo Santos

139 A REDE QUE CARREGA O DOENTE

saúde da população negra: comunidade kalunga

Tatiana Oliveira Novais

Elaine Fernandes da Cunha Mesquita

171 QUILOMBOLAS DE GOIÁS:

a invisibilidade da insegurança alimentar aliada ao excesso de peso

Estelamaris Tronco Monego

Karine Anusca Martins

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191 INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS:

os avanços no desenvolvimento comunitário kalunga com o (eco)turismo

Ismar Borges de Lima

Peter Kumble

230 DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS:

Kalungas da Chapada dos Veadeiros

Iara Lucia Gomes Brasileiro

Luiz Carlos Spiller Pena

253 ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS E PROPRIEDADE INTELECTUAL:

a possibilidade do uso da denominação de origem para

o reconhecimento do gado curraleiro Kalunga

Adegmar José Ferreira

Rodolfo Nunes Franco

279 ENCONTROS E DISTANCIAMENTOS ENTRE A RELIGIOSIDADE

KALUNGA E O CATOLICISMO OFICIAL:

um olhar para as singularidades do lugar na festa de Nossa Senhora Aparecida

Luana Nunes Martins de Lima

Maria Geralda de Almeida

305 PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

da comunidade Quilombola Kalunga – Goiás –Brasil

Rosiane Dias Mota

326 SOBRE OS AUTORES

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APRESENTAÇÃO

Os Quilombolas no Estado de Goiás se autodenominaram de Kalunga e, desde a década dos anos 1980 a Universidade Federal de Goiás interessa-se em aproximar deste povo. Atualmente, pesquisadores de diversas áreas de conhecimento investigam o substrato espacial, buscam compreender as práticas culturais e os impactos da modernidade explicando os proces-sos atuantes no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. O labor e a curiosidade científica de diversos pesquisadores ampliam as informações e contribuem para darem maior visibilidade aquele grupo étnico.

Faltava, todavia, um livro reunindo as mais recentes produções e, com este intuito, esta coletânea especificamente sobre os Kalunga, soma-se àquelas que se dedicam a evidenciar a diversidade cultural e estudar os quilombolas.

A diversidade cultural sempre foi objeto de reflexão dos cientistas sociais preocupados com a interpretação dos fenômenos étnicos. Atualmente, em um contexto de emergência de grupos diversos reivindicando seu lugar na sociedade, como a comunidade Kalunga, novas teorias da etnicidade sur-giram, deixando de lado a raça e a cultura como elementos explicativos. Um dos principais autores responsável por tal ruptura é Frederik Barth. O artigo de Thais Marinho objetiva fazer uma reflexão sobre tais teorias com o intuito de produzir um arcabouço teórico-metodológico que se adapte à realidade do grupo étnico-quilombola Kalunga. Ela se propõe a buscar aquela teoria que seja capaz de explicar tanto sua organização social quan-to a estrutura social e recorre ao conceito de habitus de Pierre Bourdieu e “configuração” de Nobert Elias.

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Nesta linha de abordagem, Maria Geralda de Almeida questiona como Território, Sítio e Patrimônio se entrelaçam na criação do Sitio Histórico e Patrimônio Cultural dos Kalunga em Goiás, o que a leva a investigar as afinidades e aproximações existentes entre estas categorias. A proposta da autora é realizar esta interpretação e, a ela agregar a leitura das identida-des. Para isso baseou-se em dados empíricos, leituras de teses e disserta-ções. Conclui-se que as relações sociais nas dimensões política, econômi-ca e cultural são determinantes para produzir o território e na vastidão do Sitio é possível distinguir territórios. As identidades vinculam-se à diversi-dade territorial.

O artigo de Wilma Melhorim Amorim trata da situação fundiária do territó-rio ocupado por remanescentes quilombolas Kalunga na região Nordeste do Estado de Goiás. Sua preocupação é discutir a situação de conflitos envol-vendo questões ligadas à posse e uso da terra. Tais conflitos são configurados pelo processo de invasões, grilagens e pela dificuldade do cumprimento do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição em vigor. A autora quer evidenciar os aspectos constitucionais que garantem aos remanescentes quilombolas o direito sobre o território que ocupam.

Rangel Donizete Franco e Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega têm como tema a discussão sobre a proteção do território kalunga, com base na teoria da proteção dos bens culturais. Eles explicam a concepção do conceito de patrimônio cultural no Direito brasileiro. Os autores apresentam uma ra-diografia do instituto jurídico do tombamento enquanto técnica jurídica de garantia do direito ao patrimônio cultural, destacando-se a caso do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Por fim, os autores narram como se tem operacionalizado juridicamente a regularização do território kalunga.

No artigo sobre “Águas kalunga: uma perspectiva ribeirinha na comuni-dade ribeirão dos bois”, Paola Rúbia Camargo Santos Silva considera que estudos relativos ao uso da água abarcam inúmeros objetos de reflexão. A água, muitas vezes, é observada como um “recurso” mercantilizado. Quando reduz-se a água à “algo” que se vende e se compra, a ideia que se tem sobre seu uso passa por significações conflituosas. Surgem então, duas perspectivas: aquela que apresa e a utiliza em torneiras e aquela que a permite circular atribuindo-lhe significados. A autora conclui que ambas as perspectivas remetem a certeza que a água não é de igual importância para todos aqueles que a utilizam.

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Tatiana Oliveira Novais e Elaine Fernandes da Cunha Mesquita se preocu-pam em discutir o acesso à saúde da comunidade Kalunga e retratam algu-mas ações institucionais, em parceria entre a UFG, Secretaria de Estado da Saúde de Goiás e Prefeitura de Cavalcante. A dificuldade de acesso à saú-de deve-se pelas características geográficas, culturais, de infraestrutura, à organização dos serviços de saúde e à concepção biomédica dos mesmos. As autoras afirmam que a vulnerabilidade não está associada apenas ao isolamento, mas a uma série de fatores. Elas apontam algumas reflexões para a construção de uma rede de cuidado em saúde que considere e res-peite as especificidades desta população. Concluem que deve-se repensar o conceito de saúde e em políticas públicas específicas.

Por meio de estudo transversal com estudantes quilombolas de 13 municí-pios goianos, Estelamaris Tronco Monego, Mariana de Morais Cordeiro e Karine Anusca Martins buscam caracterizar seu estado nutricional e a se-gurança alimentar nos seus domicílios. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás. Houve participa-ção de 226 estudantes, de seis a 19 anos e seus familiares. Observou-se que a insegurança alimentar esteve presente em 73,8% das famílias quilombo-las aliada a uma maior frequência de excesso de peso (17,2%), em compa-ração ao baixo peso (1,3%), entre os estudantes. Essa informação permite inferir que a urbanização destas comunidades pode ser um fator de in-fluencia nesta correlação.

No artigo sobre intervenções etnoterritoriais os autores Ismar Borges de Lima e Peter Kumble investigaram a importância das atividades turísticas para o fortalecimento dos Kalunga como um grupo étnico de particulari-dades cultural e identitária. A pesquisa tem uma orientação metodológica qualitativa e quantitativa com análise de dados feita por triangulação. Por meio dela os autores buscaram a relevância do (eco)turismo Kalunga como vetor de ‘desenvolvimento comunitário’. Eles concluem que políticas públi-cas de âmbito etnoterritorial e social são necessárias para se obter avan-ços na formação de um significativo ‘capital humano’ nos quilombos. Nesse sentido, o ordenamento e o planejamento territorial são importantes com a definição de áreas de importâncias e vocações específicas para o turismo.

Já Luiz Carlos Spiller Pena e Iara Lucia Gomes Brasileiro traçam suas refle-xões com base nos desafios para o ecoturismo. O ecoturismo é entendido como um fenômeno em que se conjugam benefícios sociais e ambientais.

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No entanto, os ambientes natural e cultural nem sempre possuem impor-tância semelhante na composição da oferta turística. Na realidade do tu-rismo em Alto Paraíso de Goiás/GO e região nota-se que, em geral, os ele-mentos da natureza sobressaem aos aspectos culturais. Dados empíricos coletados na experiência de concepção e construção do Memorial Kalunga Casa de Lió, na Comunidade de Emas/Teresina de Goiás, permitem ao au-tor concluir que há referências culturais locais/regionais capazes de ga-rantir a inteireza do sentido do ecoturismo em sua prática.

Adegmar José Ferreira e Rodolfo Nunes Franco discutem a possibilidade de se utilizar um instrumento oferecido pelo Direito para consolidar um modelo de desenvolvimento para a comunidade quilombola Kalunga por meio da expansão da criação do gado curraleiro Kalunga. A ideia dos auto-res é demonstrar que a junção entre arranjos produtivos locais e proprie-dade intelectual gera desenvolvimento, com base no uso da denominação de origem enquanto modalidade da indicação geográfica. Para eles esse mecanismo oferecido pelo Direito possibilita atestar a qualidade de deter-minado produto e o tornará reconhecido no mercado consumidor.

A espiritualidade e religiosidade dos Kalunga são evidenciadas por meio de dois artigos, No primeiro, Luana Nunes Martins Lima aponta para as singularidades de um lugar, tomando como objeto empírico, a festa de Nossa Senhora Aparecida das comunidades Kalunga Diadema e Ribeirão, em Teresina de Goiás. Ela conclui que há entrelaçamentos entre natureza, trabalho agrícola, família e religiosidade. A natureza é dotada de um valor não só material, mas também simbólico. E na visão de mundo dos Kalunga, a festa não é algo separado desta natureza.

No segundo artigo, Rosiane Dias Mota tem como objetivo analisar a in-fluência do protestantismo na produção do espaço sagrado protestan-te e a ressignificação das práticas territoriais e identitárias do kalun-ga convertido. Os procedimentos teórico-metodológicos dividem-se em distintas fases que são a Pesquisa Bibliográfica e Documental; e a Pesquisa de Campo. Tem-se como recorte geográfico o Sitio Histórico do Patrimônio Cultural e os municípios de Teresina de Goiás, Cavalcante, e Monte Alegre. Conclui-se com uma análise da relação das igrejas protes-tantes com a ressignificação das identidades territoriais da Comunidade Kalunga.

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Pela pluralidade de temas tratados e pela origem plural de seus autores seja de sua formação, seja de sua instituição, o leitor encontrará neste livro material para refletir sobre o contexto territorial Kalunga. A diversidade de artigos contribuirá para o leitor concordar, discordar, se indignar, deslum-brar-se, sugerir, enfim, realizar o movimento que o pensamento efetua, quando provocado. Foi esta, também, a nossa intenção, com O Território e a Comunidade Kalunga-Quilombolas em diversos olhares...

Maria Geralda de Almeida

Janeiro de 2015

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ALÉM DO CULTURALISMO:uma discussão teórica sobre cultura e etnia para quilombolas1

Thais Alves Marinho

1 - Introdução

Este artigo objetiva identificar os limites e possibilidades das teorias da et-nicidade, com o intuito de produzir um arcabouço teórico-metodológico capaz de abarcar a complexidade tanto da organização social, quanto da estrutura social da comunidade remanescente de quilombo Kalunga, loca-lizado no nordeste do estado de Goiás.

Para tanto, faço uma reflexão sobre as principais teorias da etnicidade, es-pecialmente a partir de Fredrik Barth e Abner Cohen, considerados “pai” dessas teorias, reiterando considerações de alguns antropólogos brasilei-ros tais como: Roberto Cardoso de Oliveira (2003a, 2003b), Pacheco de Oliveira (1999), Manuela Carneiro da Cunha (1985, 1992).

Além desse fato, para dar conta das especificidades do grupo em questão, proponho adicionar a esse arcabouço explicativo dois autores da socio-logia contemporânea, Pierre Bourdieu e Nobert Elias, que ao refletirem

1 EntidadeFinanciadora:ConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico–CNPQ.

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sobre as relações e interações entre indivíduo e sociedade contribuem para fundamentar a compreensão do habitus2, nos fornecendo elementos suficientes para uma leitura mais ampla de grupos étnicos.

A proposta, portanto, é gerar, por meio de um diálogo entre as teorias da etnicidade e as teorias sociológicas contemporâneas, uma leitura mais completa sobre a realidade dos remanescentes de quilombos brasileiros, por meio de um estudo de caso da comunidade Kalunga.

Os dados sobre a comunidade foram obtidos por meio da observação participante realizada entre 2004 e 2012, no Vão do Moleque, no municí-pio de Cavalcante, e no Vão de Almas, no município de Teresina de Goiás, dois dos três agrupamentos que constituem a comunidade Kalunga atualmente.

Por meio dos pressupostos bourdiesianos buscarei compreender o sis-tema completo de relações nas quais e pelas quais as ações se reali-zam a partir das posições ocupadas pelos agentes dentro do campo étnico-quilombola.

Para este autor, é na interação entre os agentes e as instituições que po-demos encontrar uma estrutura histórica que se impõe sobre os pensa-mentos e as ações dos indivíduos. Por outro lado, a compreensão des-sa conformação da condição humana pelos nexos histórico-societais e biopsíquicos; ocorrerá por meio das acepções eliasianas. Esse autor nos elucida acerca das conexões entre memória e conhecimento, apreendi-das pela linguagem, que é dotada de significado e norteadora de sentidos para outras práticas.

2 Segundo Casanova (1995), a noção de habituséintroduzidanareflexãofilosóficaporBoécioeSaõ

Tomás de Aquino, na tradução latina do equivalente grego hexis de Aristóteles, utilizado para designar

então características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem. Para os esco-

lásticos, a noção de habitusestáassociadaàideiadequeasaçõesencerramumaintençãoobjetiva,

queultrapassaasintençõesconscientes.BemmaistardefoitambémutilizadaporÉmileDurkheim,

no livro A evolução Pedagógica (1995), adquirindo sentido semelhante, mas bem mais explícito. Ou

seja, Durkheim faz uso do conceito para designar um estado geral dos indivíduos, estado interior e

profundo,queorientasuasaçõesdeformadurável(Dubar,2000;Bourdieu,1983a;Lahire,1999).Mas

é com Marcel Mauss que a noção de habitus, ganha foros de instância sociológica e antropológica. A

noção de habitusaparecetambémnasproposiçõesdeWeber(2001,p.270)nosestudosdegrupos

étnicos. Ficou popular nos escritos de Bourdieu, que utiliza tal conceito para fundamentar sua teoria

da Prática, como veremos.

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ALÉM DO CULTURALISMO

2 - Os grupos étnicos e a cultura

As teorias da etnicidade ganharam fôlego a partir do que Wieviorka (2003) chama de lógica da produção da diferença. Tal fenômeno fora observado mundialmente, desde o final dos anos sessenta, quando houve a emergên-cia de confrontações culturais novas ou renovadas que demandam, em di-versos domínios, o reconhecimento de uma identidade particular.

Outros autores, como Liv Sovik (2007), apontam que a ascensão do tema da identidade ocorreu, na realidade, a partir da II Guerra Mundial, sobretudo, no processo de descolonização das antigas colônias europeias, tanto na África, quanto na Ásia.

Nesse cenário, muitos movimentos antes suprimidos, como lembra Wievi-orka (2003), agora, aparecem ou reaparecem reivindicando um lugar em um mundo multicultural, onde alguns “comienzam - si me permiten esta expresión provocadora - etnizarse, a devenir visibles en el espacio público” (p.19).

No Brasil esse processo se torna mais evidente a partir da redemocrati-zação. Tal advento ampliou os espaços de vocalização de grupos, antes, suprimidos ou abafados pela ditadura militar. Tal abertura culminou na reformulação da Constituição Brasileira em 1988, que, como consequên-cia, passa a introduzir o reconhecimento a novos sujeitos políticos, como as comunidades remanescentes de quilombos. No artigo 68 dos Atos dos Dispositivos Constitucionais Transitórios está descrito que: “Aos rema-nescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos”.

Por meio do movimento negro e da academia, que participaram ativa-mente na formulação do texto constitucional, os grupos de negros rurais, agora identificados como quilombolas, intensificaram as iniciativas para o reconhecimento. Reivindicam uma identidade étnica, fundamentada no argumento das diferenças de usos e costumes, que delineiam os limites da comunidade étnica e estabelecem os parâmetros da sua condição social.

A comunidade Kalunga se insere oficialmente nesse processo, a partir de 1991, com o “Projeto Kalunga: Povo da Terra” idealizado e coordenado

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pela antropóloga Mari Baiocchi3, envolvida com a comunidade Kalunga desde 1982.

Esse grupo negro rural goiano se constituiu enquanto sujeito político etni-camente diferenciado pela adoção do etnônimo Kalunga. Tal luta iniciou-se por meio dos direitos à terra, o que recolocou em pauta a preocupação com a desocupação das terras invadidas e a titulação das mesmas; além de outros direitos básicos.

A inauguração do artigo constitucional delimita um aparato comum de diá-logo entre os agentes envolvidos e pertencentes às questões étnicas, e de-lineia o que denomino campo étnico-quilombola, nos termos de Bourdieu (1989). No entanto, como afirma Arruti (2006), o reconhecimento trouxe novas questões, diversas interpretações, leituras e metaforizações do ter-mo “remanescentes dos quilombos” promovendo discussões e pressões de variados níveis da sociedade civil sobre tais comunidades.

O embate ocorre, primordialmente, devido à precariedade do texto do arti-go que suscita dúvidas acerca de quem seriam os remanescentes de quilom-bos e como reconhecê-los legalmente para fins de aplicação do artigo 68. Isso porque tal advento jurídico implicou numa inovação no plano do direito fundiário, do imaginário social, da historiografia, dos estudos antropológi-cos e sociológicos sobre populações camponesas e no plano das políticas lo-cais, estaduais e federais que envolvem esses grupos, e que demandou certo preparo por parte dos políticos e agentes sociais envolvidos (ARRUTI, 2006).

Turistas, pesquisadores, políticos, jornalistas, fotógrafos, entre outros, passaram a visitar tais comunidades e imputar-lhes seus anseios e curiosi-dades. Inspirados pelo conceito de quilombos à época da escravidão, mui-tos esperam encontrar comunidades atualizadas dos antigos quilombos, presas a relações arcaicas de produção e reprodução social, misticismos; geralmente relacionados à cultura africana, associando tais comunidades a um símbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um mode-lo de luta e militância negra.

3 Esse é um subprojeto do Resgate Histórico dos Quilombos ligado à Universidade Federal de Goiás, que

deu inicio à longa caminhada em busca do reconhecimento e dos benefícios garantidos por lei à co-

munidade Kalunga, ao qual se baseia a lei estadual nº11.409/91. O Projeto Kalunga é de 1991 e tornou-se

público no II Seminário Nacional “Sítios Históricos e Monumentos Negros” em 1992.

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Essas pressões, em muitos casos, serviram para que uma definição prag-mática e essencialista de identidade fossem adotadas, em que a aparente conservação da cultura de origem (africana/quilombola) daria um status de legitimidade na consecução do projeto de sobrevida e os traços cultu-rais exaltariam a etnicidade com vistas a adequar o passado ao presente.

Tal fato quer dizer que, quanto mais sinais diacríticos os remanescentes possuírem relacionados ao passado de quilombo e/ou africano, mais legi-timidade para acessar os benefícios garantidos pelo artigo 68 eles teriam (ARRUTI, 2006).

Esse tipo de argumento é o que inspirou o que venho chamando de “etni-cização” Kalunga, um processo de homogeneização de identificação com o ícone quilombola (nos termos essencialistas) e com o etnônimo Kalunga, antes marginalizada4 na comunidade. É a reivindicação de uma identida-de cultural específica, observada pela fórmula de categorização das prá-ticas Kalunga, que agora assumem publicamente o “ser quilombola, ser Kalunga”, ao deslocar seu campo de significação anterior e institucionali-zando o grupo.

3 - Teorias da etnicidade: da cultura à fronteira étnica

Essa exigência culturalista como requisito étnico, no entanto, foi abando-nada ainda na década de 1960, com Fredrik Barth (1969) e Abner Cohen (1969). Esses pesquisadores foram inspirados pelo ressurgimento (ou pela visibilidade) de grupos étnicos na Europa. E provocam uma ruptura episte-mológica na Antropologia, ao procurar analisar esses grupos pela dinâmica incessante de conformação e reestruturação de suas fronteiras, ao focar a análise nos limites e negociações desses contornos e não na cultura do grupo em questão; como parece ainda ocorrer no Brasil.

4 A antiga estratégia de conservação do grupo era antes calcada no “embranquecimento”, onde tais in-

divíduosnegavamacornegra,comotentativadefugadoconflitoecomoestratégiadeascensãona

estrutura social Kalunga. Essa estratégia foi informada ao longo da constituição histórico brasileira pela

estrutura social, traduzida no habitus Kalunga. Agora, no entanto, esses mesmos indivíduos reiteram

o passado quilombola se assumindo enquanto Kalunga, portanto, remanescentes de quilombo, ado-

tando um teor essencialista/construtivista para se ampararem no artigo 68 da CFB, demonstrando a

“etnicização”.

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O abandono do paradigma tribal que interpreta a cultura apenas como um conjunto de traços objetivos, observados de fora, dobrado sobre si mesmo, funcionando em regime fechado, em isolamento, é uma crítica à “definição de tipo ideal” de grupo étnico, apreendido e analisado pelo conteúdo cul-tural (BARTH, 1969, p. 11).

Nessa perspectiva não seria o inventário indutivo de uma série de repre-sentações coletivas como territórios, línguas, costumes ou valores comuns os definidores da etnia. Esta visão culturalista pressupõe segundo Barth (op.cit.), primeiro, uma equação errônea: uma raça = uma cultura = uma lingua-gem = uma sociedade; segundo, supõe que essa formação discreta (a cultu-ra) seja o “sujeito” ou o “ator” social, responsável por aceitar, recusar ou dis-criminar outras formações similares, como se houvesse autonomia cultural.

Barth (1969), então, destaca a impossibilidade de grupos étnicos serem apreendidos por meio de um conjunto de traços culturais, já que a diver-sidade étnica pode existir na ausência de traços comuns, como ele mesmo observa entre os Basseri5.

Além disso, o conteúdo cultural se modifica no tempo e varia de acordo com ajustamentos ecológicos e demográficos, ou seja, de acordo com a competição com outros grupos e com o trânsito nos limites e fronteiras. Assim, os grupos étnicos se definiriam a partir de critérios de pertenci-mento e exclusão e pela tentativa de normatização da interação entre os membros do grupo e as pessoas de fora. Nesta concepção, a homogenei-dade cultural seria uma resultante do processo de criação coletiva, não a causa, condição e menos ainda a explicação da etnicidade.

Com esse pressuposto, os estudos sobre comunidades étnicas deixaram de ter como preocupação a cultura, e passaram a focalizar a forma como a diversidade étnica é socialmente articulada e mantida. Desse modo, os critérios de reconhecimento, bem como os conteúdos culturais podem se modificar ao longo do tempo, mas a diferenciação entre “nós” e os “outros” deve persistir.

5 Fredrik Barth estudou o grupo nômade Basseri descrito como Árabe e Persa no livro “Nomads of South

Persia:TheBasseritribeofKhamsehConfederacy”.(UniversitetetsEtnografiskeMuseum,Oslo.Bulletin

No. 8, 159 pp.: Oslo University Press, 1961.

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O ponto focal da análise de Barth (1969) está nas fronteiras étnicas, que definiria a organização grupal, e não na matéria cultural que ela abrange. Embora reconheça o aspecto territorial das fronteiras, considera que elas são prioritariamente sociais, e é por seu meio que se expressa e se validam as diferenças entre os grupos em interação, pois é no processo de relações interétnicas, e não de isolamento, que as fronteiras são mantidas.

Como observamos no caso dos Kalunga; mesmo ocupando papel central, as querelas territoriais não esgotam o seu processo de identificação, nem sua organização social, que, também, está submetida à adequação e ajusta-mentos de suas fronteiras.

Logo, a etnicidade conseguiria assegurar uma unidade grupal, na medida, que ela formaliza o caráter organizacional, visualizadas pela definição en-tre membro e não-membro, entre Kalunga e não-Kalunga, entre “os daqui” “e os de fora”.

Para Barth, essas diferenciações étnicas seriam uma “forma de organiza-ção social”, termo que ele entende como a situação na qual “os atores uti-lizam as identidades étnicas para categorizar a si próprios e a outros, no propósito de uma interação” (1969, p.15). A auto-inclusão e a inclusão por parte dos outros seriam os elementos fundamentais, já que não se decifra um catálogo de diferenças objetivas, “mas somente aquelas que os próprios atores consideram significativas” (1969, p.15) em cada contexto específico.

Tampouco se deve procurar uma lista imutável de traços ou se pode dizer quais as características que serão sublinhadas e quais não o serão. Algumas serão utilizadas como sinais e emblemas de diferença como os diacríticos manifestos, entre os Kalunga poderíamos citar: os festejos6, que abrigam

6 Osfestejosque,geralmente,têmumadataelocalfixossãofrequentadospormoradoresdediversas

partes do Sítio, segundo depoimentos, desde o período da escravidão, até os dias atuais. Cada região

tem um festejo típico, por exemplo, no Vão de Almas existe o festejo de Nossa Senhora da Abadia co-

memorado dia 15 de Agosto, onde ocorrem os casamentos, enquanto que no Vão do Moleque esse

festejo não é comemorado, e os casamentos ocorrem no Festejo de Nossa Senhora do Livramento no

dia 17 de Setembro, os dois festejos atraem pessoas de toda a redondeza, Kalunga ou não. Esses festejos

simbolizam o fechamento de um ciclo, acaba a seca e inicia as chuvas, consequentemente, o plantio. É

omomentoderealizarnegócioscomosdeforaetambémreverosparentesderegiõesdistantese/ou

que migraram para as cidades. Faz parte desses dois festejos a coroação da rainha e do imperador, que

saem de cortejo por todo o centro de interação, local destinado ao evento, levando consigo comida,

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diversos rituais7; também a lida com a terra baseada numa agricultura de subsistência, a troca e a venda como sistemas de câmbio e de sustentação dos vínculos sociais8, além do seu sistema de parentesco que coincide com a definição de Wolf (1989) de modelo corporativo de descendência de pou-ca profundidade9, o sotaque acanhado e marcado de camponeses negros, muitas vezes interpretados como dialeto (BAIOCCHI, 2002); a confecção e utilização de produtos e materiais específicos, como farinha de mandioca, melaço de rapadura e rapadura, botija de barro, bruaca de couro, utiliza-da, também, como instrumento musical, artifício de fogo feito de chifre de vaca, algodão e um pedaço de metal resistente etc; ou como “orienta-ções de valores básicos”, como as normas de moralidade e excelência pe-las quais se julga a ação, no caso dos Kalunga empreendidos por meio das reputações10.

materialparacomercialização,eletrodomésticos,comogeladeiras,fogões,utensíliosdecozinha,rou-

pas, e materiais de necessidades íntimas, como sabonete, shampoo, escova de dente, entre outros. Faz

parte do festejo a coroação da rainha e do imperador, que saem de cortejo por todo o pátio, seguidos

pela população. Depois recepcionam a todos servindo bebidas, biscoitos e bolos.

7 Como o levantamento dos mastros de Sâo Gonçalo, de São Sebastião e de Nossa Senhora do

Livramento, as novenas em ladainha, as folias, os casamentos e batismos, a sussa e curraleira, o forró

Kalunga, o comércio e trocas, organização e concretização de “matulas” (abate de gado) etc.

8 Fica evidente esse teor funcional da família quando algum Kalunga decide matar um boi (fazer a “matu-

la”). Um boi é muita carne para ser consumida por uma família nuclear, por maior que ela seja mesmo

salgando a carne e deixando-a secar, sua preservação pode ser comprometida já que não existe gela-

deira, por não existir luz elétrica na região, até então. Nesse caso, vários pedaços de carne já são sepa-

rados para distribuição entre os familiares e vizinhos mais próximos (afetivamente e consequentemente

localmente). O que a família considera excedente, para além das partes doadas à familiares, é vendido

avisitantesqueficamsabendoda“matula”ecomparecemnodiadamatançaparagarantirumpedaço

de carne, quando já não há mais excedente para ser vendido, a família dona da “matula”, geralmente doa

um pedaço simbólico ao visitante para ele não perder a viagem. Os compradores que vão à “matula” em

buscadecarne,ficamsabendodoacontecidojustamentepelosfamiliarespróximosaodonodamatula,

exercendo uma função intermediária na comercialização da carne. Essa característica aproxima tal soli-

dariedade ao que Antônio Cândido (1979) chama de sistema de “parceiros” ao analisar o caipira paulista

eastransformaçõesemseusmeiosdevidaem“ParceirosdoRioBonito”.

9 Esse modelo é empregado em grupos com um patrimônio a defender e onde os interesses associados

a essa defesa podem ser mais bem servidos pela manutenção de uma coalizão, como ocorreu com esta

comunidadeaolongodesuaexistência.Assim,oslaçosdeafinidadesãorestringidosecontroladosde

modo a diminuir o número de pessoas que podem ter acesso por herança ao patrimônio, a coalizão via

parentescotemcomofunçãotambémanularquaisqueroutrascoalizõesqueoindivíduoqueiraformar,

opondo,assim,oslaçosconsanguíneosaosdeafinidade.

10 EntreosKalungaasaçõesnoâmbitodomésticoindicamareputaçãodecadafamília,osjulgamentos

variamemrelaçãoaoasseiodeseusvizinhos,sobresuasrotinasdetrabalho,suasorganizações,suas

situaçõesfinanceiras,suascapacidadessolidáriascomosamigos,vizinhosecomafamília,analisamse

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Logo, o que vai orientar o pertencimento étnico Kalunga e à terra que ocu-pam é o compartilhamento desses diacríticos manifestos e das orientações de valores básicos para a comunidade, que foram constituídos a partir da configuração estabelecida pelos laços de parentesco que constituem a no-ção de família Kalunga desses indivíduos.

A atribuição ao etnônimo Kalunga ou a uma cor específica ou ainda o culti-vo de uma cultura africana teriam valor secundário no sentimento de per-tencimento étnico, já que não são esses os critérios utilizados para identi-ficar quem é “daqui” e quem é “de fora”.

Quando indagados sobre a diferença na vida dos Vãos e da vida dos citadi-nos afirmam: “É tudo igual (...) [mas] a gente mora aqui e faz as coisa dife-rente, do nosso gosto, né!”. Outra moradora do Curriola nos elucida sobre esse jeito tradicional e particular de fazer as coisas: “aqui bolo, nóis faiz no fogão à lenha mesmo, (risos) é só por a massa na panela e botar brasa em cima da tampa, só isso”. E continua ela, “mas bom mesmo é feijão verde, feijão de corda, aff... feito na panela de ferro, aqui no fogão, (risos)”.

Em outra ocasião, outra moradora de Diadema de 29 anos afirma que ser Kalunga “é acordar e fazer café no fogão à lenha, é cuidar da roça, periquitan-do atrás de passarinho...” [sic]. Enquanto alguns negam a identidade Kalunga quando indagadas sobre ela. Uma depoente quando indagada se era Kalunga foi taxativa de uma formação reativa11: “Eu não sou Kalunga, não sou preta! Eu que não sou bicho para ter nome. O nome pode ser do lugar, mas não meu”, ou ainda: “Aqui pra essas banda não tem essa besteirada de escravidão naum, desde esse projeto Kalunga, que fica nessa danação de escravidão” [sic].

são bons de negócio, preguiçosos, enrolados, bons pagadores, ou sobre o que comem, o que cultivam,

oquecaçam.Essescrivosdeterminamoscritériosdeseleçãosobrequemsepodeconfiar,comerciali-

zar,contratarserviços,venderfiado,compraralimentos,oumesmoapadrinharecasar.

11 A formação reativa é um dos mecanismos de defesa psicológicos descritos por Freud (1996), típico do

subconscientenatural,éutilizadoporindivíduosquequeremcamuflareprotegerseusdesejosousuas

sensibilidades. As pessoas que utilizam desse mecanismo são vistas como orgulhosas ou agressivas,

mas ao contrário do orgulho, que refere-se a uma autonegação da ajuda de outrem e sentimento de

autossuficiência,a formaçãoreativaéasimulaçãoda indiferençaoudaaversãoaoseudesejooua

qualquer tipo de ofensa ou ataque, que exponha sua sensibilidade. Na realidade o indivíduo sofre com

medo de ser rejeitado ou magoado. É a hipocrisia desesperada do consciente mediante o sofrimento e

vulnerabilidade do subconsciente, frente a qualquer tipo de ataque ou difamação. Tal reação alija o so-

frimento, já que a pessoa não demonstrou tal sentimento, sustentando a ilusão de que nada a afetou.

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A identificação da identidade que hoje chamamos de Kalunga a um modo de vida simples, relativo à vida no sertão do centro-oeste goiano, marcado pela dureza da vida de campesinato e criação de gado, pode ser constatado mesmo antes do reconhecimento formal brasileiro a essas comunidades negras a partir da Constituição de 1988. Os indivíduos Kalunga, por exem-plo, orientavam sua permanência no território a partir de elementos exter-nos contrastivos12 que organizaram internamente um sentimento comum entre os membros desse grupo, a partir do pertencimento ao território.

Num primeiro momento, tais disposições que orientaram a organização desses negros goianos se baseiam na lembrança de uma vida dura e sofri-da típica de agricultores do centro-oeste goiano, que buscavam sobrevi-ver em um local marcado pela decadência econômica após o período de glória do Ouro.

À medida que o tempo passava, foram condensando uma crença grupal, formalizando uma mesma origem, a partir das identificações com o ter-ritório, objetivada por diversas denominações tais como: “povo do ser-tão” ou “povo do Vão” ou “molequeiros” ou ainda “pretos da chapada”, “Kalungueiros” e por fim, “Kalunga”.

Assim, como salienta Max Weber (1991), em sua obra Economia e Sociedade, onde dedicou seus pensamentos às relações comunitárias étnicas, a iden-tidade étnica se fundamenta numa construção histórica e coletiva de um sentimento que os indivíduos de um agrupamento nutrem e que expressa uma pertença a uma procedência comum.

Logo, na perspectiva teórica de Barth (1969), que retoma os principais pres-supostos weberianos, pouco importaria a associação com um quilombo ou

12 Os “kalungueiros” sãovelhos conhecidosdas regiõesvizinhas, desde a épocada escravidão, e fre-

quentavam os municípios de São Domingos, Alto Paraíso (antigo Veadeiros), sobretudo as cidades de

Cavalcante, Arraias (hoje Tocantins) e Monte Alegre de Goiás (antigo Chapéu) e terras da Bahia, aonde

viajavam de mula para vender polvilho e farinha de mandioca. Segundo Silva (2003) esses produtos

eram disputados pela população, em razão do asseio com que eram preparados. Nessas idas às cidades

aproveitavam para comprar e trocar seus produtos por outros que não dispunham e/ou não fabrica-

vam. Embora tenham passado por períodos de isolamento, os Kalunga sempre foram conhecidos onde

vivem,comoafirmaosmoradosdoVãodoMoleque.NemsempreadenominaçãoKalungaérecrutada

para indicá-los, mas outros nomes fazem referencias a eles como: o povo do sertão, do Vão, os mole-

queiros, os preto da chapada, os Kalungueiros.

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com uma suposta cultura africana, já que o caráter contrastivo da identi-dade Kalunga é delimitado pelos seus critérios de pertencimento, inscri-tos em sua organização social, delimitados pelos diacríticos manifestos e pelas normas de moralidade e excelência Kalunga, ou seja, a cor negra não é a condição para o pertencimento, tampouco a origem africana, por esse motivo, encontramos alguns poucos indivíduos de cor “branca” e muitos que negam sua origem africana sendo reconhecidos como Kalunga, já que apresentam os critérios étnicos reconhecidos.

A organização social, nessa perspectiva, encontra-se ligada aos processos de identificação étnica, e estes não derivam da psicologia dos indivíduos, não são por si só conscientes ou inconscientes, dependem da constitui-ção de espaços de visibilidade e das formas de interação com o “mundo externo” (BARTH, 1969).

Por esse motivo, quando falamos de reconhecimento quilombola entre os Kalunga, estamos falando de um momento histórico específico13, de aber-tura para as demandas identitárias observadas mundialmente. O que jus-tifica a associação de outros atores a esses movimentos identitários, tais como o movimento negro/quilombola e representantes da academia, como no caso do envolvimento da antropóloga Mari Baiocchi na confor-mação da etnogênese Kalunga.

Desse modo, mesmo que a cultura transpareça muito pouco sobre a di-nâmica de conformação étnica, a dificuldade de compreensão desse fe-nômeno e as carências metodológicas de como empreender essa aná-lise fazem com que, nos espaços de interação, os atributos culturais adquiram expressividade, tornando-se estereotipados e seletivos; não como reveladores de uma realidade subjetiva ou inefável, mas como se-leção, como reivindicação pública que necessita ser validada no momen-to do contato. Esse equívoco justificaria a “etnicização” Kalunga, acima descrita como exigência ou requisito do reconhecimento pelo campo étnico-quilombola.

13 Esse momento histórico é datado de diferentes formas, em contextos diversos, para variados grupos

sociais, por exemplo, no Brasil, ocorre a partir da redemocratização, para remanescentes de qui-

lombos a partir do advento do artigo 68 da Constituição Federal Brasileira, em 1988, enfatizados em

2002, com a entrada do governo Lula, enquanto que na Europa e Estados Unidos, ocorre a partir da

década de 60.

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4 - As lacunas e falhas das teorias da etnicidade

A compreensão da organização social dos grupos étnicos nas acepções de Fredrik Barth (1969) se resume aos momentos de contato étnico; quando poderíamos, a partir da análise das representações coletivas, tidas como propriedades do processo social, apreender a organização do grupo. Isso porque, segundo Barth, os indivíduos deixam visíveis aquelas característi-cas que eles consideram significantes no momento da interação.

O consenso grupal a respeito de códigos e valores, portanto, não se es-tenderia além das ocasiões específicas nas quais se interage com o “ou-tro”. Em algumas interações concretas os diacríticos às vezes se acen-tuam, em outras sua manutenção pode se mostrar “inconveniente”. Esta questão, a de saber o que é conveniente ou não e a quem cabe julgá-lo é o problema capital das teorias da etnicidade; a que Barth (1969) não se ocupa em resolver.

Essa carência do postulado barthiniano leva a crer que os indivíduos cal-culam e racionalizam custos e benefícios a cada ação. Tal constatação con-traria o postulado weberiano sobre a impossibilidade de encontrar um ator que oriente sua conduta exclusivamente por um cálculo racional de meios e fins, já que as expectativas, metas e motivações individuais se encontram coletivamente condicionadas (VILLAR, 2004).

Logo, o objetivo que se almeja não seria consciente ao agente como pos-tula também Bourdieu (1989), que entende que as relações sociais seriam demasiadamente complexas, estruturadas de modo racional, mas opacas à percepção imediata. Logo, as relações sociais teriam primazia sobre as consciências individuais; ainda que estas (as consciências) não possam ser reduzidas àquelas (às relações sociais).

Apesar dessa constatação, a compreensão da dinâmica incessante de con-formação e reestruturação identitária (étnica) sob a perspectiva intera-cionista de Barth (1969) enfatiza uma autonomia dos indivíduos frente às escolhas da vida.

Tais escolhas seriam avaliadas, calculadas, maximizadas, sempre optan-do e escolhendo, negociando os custos e benefícios de cada um de seus atos, sem se preocupar com os condicionamentos sociais ou estruturais.

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Nessa acepção, a sociedade estaria na mente dos indivíduos de forma concreta, na forma de objetivos, metas, valores, necessidades, expectati-vas, seria a própria organização social a causa da estrutura social.

Esse postulado do interacionismo simbólico demonstra que a preocupação dessa corrente teórica é com a análise do processo de socialização, enten-dido como uma negociação constante que não se limita ao vínculo social. As pessoas agiriam a partir do sentido que elas atribuem às situações, às outras pessoas e aos objetos, sendo a interação o processo de construção formador de ambientes entre as pessoas.

O ator social seria um agente ativo da elaboração de esquemas interpreta-tivos, análises e categorias que não seriam definitivos, nem apriorísticas. O significado dado pelo participante não seria um dado em si, mas seria sim, negociado em função do evento, do contexto e da situação. Os contextos sociais pela perspectiva do interacionismo simbólico, não são estáticos, eles contém sua história, seus valores, seus riscos e seus limites.

No entanto, tal gnosiologia quando transposta para a análise da conforma-ção da identidade pela constituição das fronteiras étnicas, como proposto por Barth (1969) se mostraria limitada, se levarmos em consideração que o estabelecimento da identidade étnica se dá por meio da interpretação das impressões dos sinais diacríticos pelos agentes em interação.

Tal fato quer dizer que embora Barth (1969) aponte que a compreensão dos grupos étnicos deva ocorrer pela constituição de suas fronteiras, o que vai tornar a análise sociológica possível é a compreensão de que as percep-ções e as impressões dos agentes têm um referente social que extrapolam os momentos de contato com o “outro”, tendo significação enquanto existe como uma “representação coletiva”.

Essa representação coletiva não é somente comum entre um determinado conjunto de pessoas, mas é também partilhado por elas de forma que tais percepções possam se tornar a base de um entendimento entre o gru-po em suas relações sociais. Isso ocorre quando os sinais diacríticos ét-nicos formam as construções de senso comum ultrapassando a noção de idiossincrasias para tratá-las como parte da cultura do povo em questão (MITCHEL apud OLIVEIRA, 2003a).

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Além do mais, o fato de a “etnicidade” ser negociada como diz Barth (1969) não a impede de poder se voltar contra os agentes, justamente por serem esses regidos por uma “não-consciência”, como postula Bourdieu (1989). Tal fato quer dizer que mesmo que haja consenso grupal a cerca dos có-digos e valores, pode ser que exista a possibilidade de certos traços dia-críticos que não beneficie o grupo se sedimentarem como requisitos do pertencimento grupal (VILLAR, 2004).

Oliveira (2003 b), como Barth (1969), também concorda que existe uma manipulação consciente dos diacríticos. Mas, ele delimita essa manipula-ção para situações de ambiguidade, ou seja, quando é possível ao indivíduo ou ao grupo certas alternativas para a “escolha” (de identidade étnicas) à base de critérios de “ganhos e perdas” (critérios de valor e não como meca-nismos de aculturação) na situação de contato.

Para Oliveira (2003b) a teoria dos jogos defendida por Barth (1969), que se apoia na ideia de que numa relação interétnica ambos os grupos tentam assegurar que o valor ganho seja sempre maior (ou pelo menos igual: jogo de soma zero) ao valor perdido, não consegue “transcender o plano empí-rico e questionar a estrutura da identificação étnica, além de sua manifes-tação em tal ou qual sociedade ou situação de contato” (p. 129).

Desse modo, devemos considerar que a etnicidade é um processo ancora-do em condições históricas concretas. E a investigação sobre a identida-de étnica (ou etnicidade) deve contemplar também o processo de “institu-cionalização” dos limites étnicos. Já que para Cardoso de Oliveira (2003b); o que define a identidade étnica é a situação de contato interétnico e “a conscientização dessa situação pelos indivíduos inseridos na conjunção interétnica é que seria o alvo preliminar” do cientista social durante a in-vestigação; tal consciência etnocêntrica estaria pautada por valores e se assumiria como ideologia.

Em outras palavras, deve-se compreender a “função latente” da institui-ção, para além de seu conteúdo cultural, ou ainda, para além dos “níveis epidérmicos” da realidade, para assim, despir os fatos de sua aparência para serem revelados em toda a sua significação (R. C. OLIVEIRA, 2003a).

Tal fato porque, “tanto a cognição étnica (i.e., do “fato” étnico) quanto o comportamento interétnico (i.e. o que emerge das relações étnicas) são

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orientados para valores que frequentemente escapam do horizonte per-ceptivo dos agentes” (op. cit., p. 144), embora tais valores estejam contidos em ideologias (o que torna a análise sociológica possível) ao contrário do que propõe Mitchel (MITCHEL apud OLIVEIRA, 2003a) e que Barth (1969) falha em considerar.

5 - Do nível micro ao nível macro

A partir da reflexão realizada é preciso considerar que os grupos sociais estão imersos em um mesmo ambiente de competição que nem sempre são complementares; muitas vezes, até se amparam em traços culturais emblemáticos diversos, e entre eles há desigualdades de poder impossíveis de serem ignorados caso se pretenda revelar como se fixam suas respec-tivas identidades. Por esse motivo, a análise sobre etnicidade não pode se restringir apenas ao nível micro da interação, a saber, aos diacríticos e va-lores expressos durante a fricção étnica, deve contemplar também o nível macro da interação, como bem salienta Pacheco Oliveira (1999).

Para Pacheco Oliveira (1999, p. 35) “o contexto inter-societário no qual se constituem os grupos étnicos” não é um contexto abstrato e genérico, mas sim um contexto no qual o quadro político é definido pelos parâmetros do Estado-nação. O território nessa situação seria a dimensão estratégica para se pensar a incorporação de populações etnicamente diferenciadas.

De fato, o território agrega a acepção de formação social e a produção coletiva do espaço, a partir dos quais se torna produto de práticas sociais e políticas e é constituído por um conjunto de regras e códigos, normas e disposições instituídas pelo sistema de representação vigente no gru-po, que dinamiza e fornece um status específico para a população que o habita como nas acepções de Correia de Andrade (1994) e Deleuze & Guatarri (1997).

No entanto, a regulamentação desse território evoca articulações insti-tucionais e políticas, acessando discursos e ideologias de vários setores, entre eles, o sociológico, o antropológico, o jurídico, o administrativo e o político. Nesse sentido, o governo e seus órgãos exercem um papel fun-damental na orientação étnica desses grupos, não só como árbitros, me-diadores e financiadores de políticas e ações, não só para a demarcação

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de terras, mas também como definidor de nexos e valores que orientam o reconhecimento étnico, a valorização étnica e cultural, a conscientização do valor da terra, da educação, da integração etc.

Por essas razões procuro extrapolar a análise sobre etnicidade para além dos termos dos antropólogos estudados, já que eles tendem a enfatizar a análise apenas da organização social (via fronteiras interétnicas), em detri-mento da estrutura social14, pois compreendo que os agentes sociais, são históricos, determinados socialmente, imersos em um universo social fora de seus controles. Não existe, então, uma unicidade do ser, constante no tempo e espaço, capaz de garantir uma ordenação dos acontecimentos e de dar um sentido racional e consciente às ações individuais.

As ações não seguem uma linearidade progressiva e de causalidade, que se concentre e dê sentido a todas as “escolhas” de uma pessoa, não há um todo coerente, coeso e atado por uma cadeia de interrelações. Tal cons-trução é realizada a posteriori (pelo pesquisador ou pelo próprio indivíduo) por meio da observação das trajetórias individuais onde é possível a obje-tivação do habitus, que, por sua vez, se configura como resultado estável, mas não imutável do processo de interiorização social e de incorporação de identidade.

Nesse sentido, para compor o rol explicativo para os dados colhidos ado-to a postura de que a noção de identidade pode ser entendida, prévia e genericamente, como um tipo de mediação da relação entre indivíduo e sociedade.

É uma construção que passa necessariamente pelas malhas da individua-lidade, é elaborada sempre na originalidade de trajetórias individuais, mas tem um sentido eminentemente social, ou seja, é mobilizada pelos indiví-duos em suas relações sociais (BOURDIEU, 1983). É por meio de sua iden-tidade que o indivíduo se apresenta ao mundo social, mas é, também, no processo de construção de sua identidade que a conformação social dos indivíduos se explicita.

14 Entendendo a estrutura social como o sistema de constrangimentos institucionais, simbólicos e de

condutaquelimitamasopçõesdoindivíduo,enquantoqueaorganizaçãosocialseriaoresultadodas

“escolhas”feitaspelosagentes,deacordocomtaislimitações.

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Desse modo, proponho abandonar a gnosiologia do interacionismo sim-bólico adotado por Barth (1969), por este levar em consideração apenas o nível micro da interação, baseado no enquadre analítico das interações face a face, formulado por Goffman (1974), presente nos trabalhos microet-nográficos de Erickson (1992), entre outros.

Proponho uma gnosiologia que insira em seu arcabouço explicativo o nível macro da interação baseado no enquadre descritivo-analítico de descrição densa apresentada por Geertz (1989), ou de longa duração apresentado por Elias (1994). Tal fato porque, tais análises, procuram compreender de ma-neira mais ampla e qualitativa, o universo a ser pesquisado; sem perder de vista a complexidade das relações de poder.

Proponho, por essas razões, adicionar ao arcabouço explicativo sobre et-nicidade dois autores da sociologia contemporânea, Pierre Bourdieu e Norbert Elias. Na perspectiva aqui desenvolvida esses sociólogos ao re-fletirem sobre as relações e interações entre indivíduo e sociedade con-tribuem para fundamentar a compreensão do habitus, nos fornecendo elementos suficientes para uma leitura mais ampla da realidade da comu-nidade Kalunga.

Tal análise permitirá a compreensão da constituição da organização social Kalunga frente os constrangimentos e possibilidades da estrutura social, relacionados ao embate étnico entre os “daqui” e os de “fora”, e às impres-sões que os Kalunga detêm sobre o curso do reconhecimento étnico.

A utilização desses dois autores permitirá o aperfeiçoamento de uma aná-lise que pretende dar conta tanto do nível macro, quanto micro do obje-to, tanto da sincronia quanto da diacronia, aliando estruturalismo cons-trutivista de Bourdieu (1983), que reflete sobre uma sociologia do poder simbólico, ou seja, de como o poder é constituído e desigualmente repar-tido entre os grupos sociais, com a sociologia processual de Elias, que bus-ca compreender a partir das relações entre indivíduos e grupos, o devir histórico.

Ambos os autores, portanto, elucubram a respeito de uma espécie de jogo relacional entre os agentes sociais, um enfatizando a disputa entre os par-ticipantes no interior e no decorrer dos jogos, e o outro, o que é prevale-cente a partir da dinâmica social.

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O que há em comum nestas distintas perspectivas é a assertiva de que as distinções fornecem a base conceitual da etnicidade, vista como uma construção social de pertença, sendo a identidade étnica extremamente significativa para a construção das dualidades ou diferenças sociais.

No caso do ponto de vista interacionista de Barth, praxiológico de Bourdieu e processual de Elias, as controvérsias surgem sobre o relacionamento do sujeito com a estrutura social, ou seja, entre a relação dos seres-humanos e sua vida em sociedade. Essa “bifurcação de posturas”, como diz Roberto Cardoso de Oliveira (2003) são dimensões constitutivas da análise de tal fenômeno, “sem as quais a etnicidade não poderia ser pensada”, muito me-nos as ciências sociais.

6 - Bourdieu e Elias: habitus

A principal contribuição que tanto Elias, quanto Bourdieu trazem para análise de grupos étnicos é a constatação de que o compartilhamento dos diacríticos manifestos e das orientações de valores básicos para a comu-nidade, não se expressam de forma consciente. São saberes incorporados, são dispositivos duradouros que podem ser identificados nos três níveis do habitus Kalunga, a saber ethos, eidos e hexis15 (BOURDIEU, 1989).

Ademais, a configuração de longa duração (ELIAS, 1994) criada pelos laços de parentesco que constituem a noção de família Kalunga e que compõem o habitus desses indivíduos, orientam o pertencimento tanto à identidade Kalunga, quanto à terra que ocupam.

15 O ethos é a dimensão ética que designa um conjunto sistemático de princípios práticos, não necessa-

riamenteconscientes,podendoserconsideradocomoumaéticaprática.Opõe-seàéticaqueécons-

tituída por um sistema coerente de princípios explicativos. Por conseguinte, o habitus desperta, nos

agentes, a necessidade de respeitar as normas e valores sociais, o que lhes possibilita uma convivência

adequada às exigências da sociedade. O eidosé a dimensão que corresponde a um sistema de esque-

maslógicosecognitivosdeclassificaçãodosobjetosdomundosocial,portanto,levaohabitus a tra-

duzir-se em estilos de vida, julgamentos morais e estéticos. A hexis é a dimensão que possibilita a inter-

nalização das conseqüências das práticas sociais e, também, a sua exteriorização corporal, por meio do

mododefalar,gesticular,olhareandardosagentessociais.Comtaisdimensões,ohabitus viabiliza-se

enquanto produto de uma situação concreta com a qual estabelece uma relação dialética, de onde se

originam certas práticas sociais.

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Assim o fenômeno da etnicidade, como qualquer outro fenômeno social, não seria unicamente produto das ações individuais. Como afirma Norbert Elias (1994) a dinâmica das relações humanas não podem ser reduzidas nem à liberdade individual, nem apenas ao constrangimento coletivo.

Desse modo, percebemos que a motivação ou a lógica das ações indivi-duais não podem ser encontradas racionalmente nos atores (como defen-de o postulado do individualismo metodológico, que Barth reitera). Em ambas as acepções, a formação das ideias e práticas está condicionada ao habitus e a esquemas generativos que orientam e determinam a escolha dos atores. Desse modo, como pontua Elias a relação entre a “identidade--eu” e a “identidade-nós” está configurada e sujeita a constantes transfor-mações relativas ao ambiente (também chamado por ele de natureza) e a aprendizagem social.

Tal fato significa que, para compreender as “escolhas” dos indivíduos, como a “escolha” pela manutenção de uma identidade étnica e de seus dia-críticos; temos que levar em consideração o processo coletivo de longa duração que delineia as teias de interdependências entre as pessoas, como na postura weberiana.

Nessa acepção, portanto as decisões dos agentes decorrem do embate en-tre o âmbito psíquico-biológico, ou psicogenético, e o âmbito sócio-histó-rico, ou sociogenético, de acordo com os recursos e aspectos significativos que se encontram disponíveis e que são valorizados dentro do contexto vigente.

A análise configuracional e histórico processsual da etnicidade devem contemplar não só a compreensão social cotidiana dos agentes em relação à organização social, que orienta inclusive a fricção étnica, como também a rede na qual se inscrevem os agentes, ao longo do tempo e do espaço. Seria a síntese sócio-histórica advinda dessas categorias que orientariam padrões e modelos de comportamento humano constituindo, por conse-guinte, estimas, auto-imagens e identidades.

Dessa forma, embora à primeira vista a cor, a origem africana e/ou qui-lombola (na compreensão colonial, vista como um reduto de escravos fu-gidos) não seja fundamental na constituição da identidade étnica Kalunga; já que os diacríticos exaltados durante a fricção referem-se aos valores

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básicos da comunidade e ao estilo de vida simples baseado na agricultura de subsistência e na criação de gado, e não na cor ou afrodescendencia ou o pertencimento a um quilombo histórico, as escolhas feitas pelos agentes dessa comunidade estiveram atravessadas pela configuração escravista e racista específicas da formação sócio-histórica brasileira.

Essa “ordem invisível” (baseada no escravismo racista, que perdurou mes-mo num ambiente pós-abolição, transfigurando-se do racismo, à ideologia do embranquecimento, ao mito da democracia racial), embora não esteja presente no discurso Kalunga, é que teria estruturado os acordos cumu-lativos e a “rede de funções” estabelecendo um contrato social a partir da associação entre pessoas de uma mesma filiação.

Esta ordem oculta que não é perceptível pelos sentidos dos indivíduos “não pode ser diretamente percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e modos de comportamentos possíveis” (p. 21) que possibilita os intercâmbios.

Tais transformações sofridas por meio da relação indivíduo/sociedade refletem a maneira como os indivíduos têm compreendido a si mesmos e a sociedade. É a essa formação da consciência, construída através de um longo exercício de controle e auto-regulação concernente à auto--imagem e à composição da própria sociedade, que Elias dá o nome de habitus16.

Norbert Elias (1997) apresenta uma ideia de habitus em A sociedade dos Indivíduos, de 1939, anterior à de Bourdieu, porém bastante semelhan-te, considerando o processo de individualização do sujeito a partir de fatores sociais. Para o autor, o habitus é “a auto-imagem e a composi-ção social (...) dos indivíduos” e, ainda, se “expressa no conceito funda-mental da balança “nós-eu”, o qual indica que a relação da “identidade--eu” com a “identidade-nós” do indivíduo não se estabelece de uma vez por todas, mas está sujeita a transformações muito específicas” (Elias, 1997, p. 9).

16 Elias refere-se tanto ao habitus individual como ao social, este último referindo-se a noção de “segun-

da natureza” ou “saber social incorporado”, seria o âmbito de crescimento das características pessoais

dos indivíduos.

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Logo, o conceito de habitus em Elias teve forte influência em Bourdieu, apresenta-se como um autoconhecimento do agente e sua posição no meio social, a que Bourdieu chama de campo. Essa posição, que, para ser conquistada, implica necessariamente luta e poder, como nos pressupos-tos bourdieusianos, é “naturalizada” por Elias, na medida em que prevê uma existência não-finalista dos indivíduos em sociedade. Nesse caso, o conceito de habitus significa uma “natureza profundamente arraigada das características distintivas e a consciência da identidade-nós” (1994, p. 172), denotando, assim a própria ideia de identidade e individualidade.

Embora Elias rompa com o anti-humanismo do estruturalismo, já que os indivíduos são vistos como “personalidades abertas”, que formam e cons-tituem a rede de interdependências propiciando a ela alternâncias, varia-bilidade e ambivalência. A compreensão que tem sobre a objetividade das redes de interdependência sobre a psicogênese dos indivíduos, nos permi-tecriar uma ponte com a ideia desenvolvida por Bourdieu, de que embora existam estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, como no estruturalismo, tais estruturas seriam produto de uma gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação, que ele chama de habitus.

Essa ideia de que as estruturas, as representações e as práticas constituem os indivíduos e são constituídas continuamente por eles, também rompe com o estruturalismo clássico, ao possibilitar que Bourdieu seja apontado como um estruturalista construtivista.

Assim, em ambas as posturas o habitus refere-se a disposiçõesinterioriza-das pelos agentes sociais, que as atualizam e as produzem em processos históricos-sociais. Tal fato significa dizer que o grupo social deixa visível os aspectos de dinamicidade e permanência de sua ação. O empenho em ocultar a escravidão e a negritude por parte dos Kalunga, como vimos em alguns discursos acima, demonstra que esses elementos são centrais na formulação de sua identidade.

A forma como incorporaram esses elementos constituintes de sua reali-dade, a partir de diretrizes racistas e embranquecedoras, justificam a for-ma como buscam exteriorizar esse conteúdo simbólico, pela negação. Por isso, em suas acepções sobre grupos étnicos, Bourdieu (1989) enten-de que os agentes necessitariam de reconhecimento político e jurídico

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para validação da diferença, como tem ocorrido a partir do advento da Constituição de 1988 e das políticas de reconhecimento implementadas a partir de 2004, durante o governo de Lula.

A partir de então, como argumenta ainda Bourdieu, os grupos étnicos pas-sariam a inserir estratégias interessadas de manipulação simbólica tendo em vista determinar a representação mental que os outros podem ter do grupo étnico em questão, utilizando para tanto atos ou coisas emblemáti-cas da identidade.

A associação ao etnônimo Kalunga na atualidade e gradativamente o au-mento da auto-atribuição à categoria negro, demonstram tais estraté-gias, num processo que venho chamando de etnicização, seguindo uma ideologia culturalista e essencialista. A compreensão do fenômeno étni-co, portanto, poderia ser empreendida por meio do conceito de habitus e das lutas travadas dentro do campo, que estrutura o habitus de comu-nidades negro-rurais, que venho chamando de campo (ou subcampo17) étnico-quilombola.

O campo étnico-quilombola, como outros campos, nas acepções de Bourdieu (1989), vive o conflito entre os agentes que o dominam e os de-mais, entre os agentes que monopolizam o capital específico (saber) do campo, pela via da violência simbólica (autoridade) contra os agentes com pretensão à dominação.

Tal campo é caracterizado pelas relações de força resultantes das lutas in-ternas, pelas estratégias em uso e por pressões externas, é um espaço onde os objetos sociais compartilhados são disputados por agentes investidos

17 O campo étnico-quilombola seria um subcampo do campo étnico, que por sua vez, compreenderia as

instâncias de poder responsáveis pelas demandas étnicas (quilombolas, indígenas, entre outras), pe-

lasaçõesafirmativas,pelaspolíticasdeerradicaçãodepobrezaededesigualdadessociaiseraciais,o

movimento negro, movimento indígena, movimento agrário, as comunidades quilombolas e indígenas,

e outros grupos da sociedade civil que exercem poder dentro do campo como a mídia e a academia.

Envolveorganismos internacionaisenacionais,estatais,privadoefilantrópico,queexerceminteres-

seepodernasarregimentaçõesquedelineiamasaçõesdosintegrantesdegruposétnicos.Ocampo

pode ser subdividido em subcampos: campo étnico-quilombola, campo étnico-índigena... e interage

com outros campos o cultural, o político, o econômico, etc. Assim, a estrutura do campo é dada pelas

relaçõesdeforçaentreosagentes(indivíduosegrupos)easinstituiçõesquelutampelahegemoniano

interior do campo, isto é, o monopólio da autoridade que outorga o poder de ditar as regras, de repartir

ocapitalespecíficodecadacampo.

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de saber específico, títulos, privilégios, esforços, que permitem acesso aos vários lugares em seu interior, bem como aos diferentes jogos de conflito.

Os campos com autonomia têm a capacidade de traduzir em linguagem própria os problemas relativos ao grupo, bem como os frutos e lucros ob-tidos coletivamente são distribuídos pelas posições, mesmo que de forma diferenciada.

O campo, então, se organiza, por meio da reprodução e da produção da memória coletiva, apreendidas tanto pelo sistema de constrangimentos institucionais, simbólico e de conduta que limitam as opções do indivíduo (a estrutura social), quanto pelo resultado das “escolhas” feitas pelos agen-tes, de acordo com tais limitações (a organização social).

O resultado dessas “escolhas”, ou seja, as práticas e as ações cotidianas apreendidas por meio das diversas representações sociais da comunida-de, tais como rituais religiosos, festejos, formas de comunicação e orga-nização, técnicas de plantio, pelas escolhas dos bens consumidos, que são traduzidos nos gostos, nas relações maritais e redes sociais de interação, confirmam tal estratégia (1989).

Nesse sentido, é pela compreensão de como se estrutura a memória (clas-sificações) dentro do campo, é por meio de como é institucionalizado o que lembrar e o que esquecer, que se estabelecem os parâmetros do que saber, do que consumir, de como se reconhecer e se diferenciar.

Do mesmo modo, é preciso definir o arranjo de forças que estabelece um comando nessa regulação. Em outras palavras é preciso compreender como se dá a inculcação das regras dentro do campo social, ou seja, como ocorre o aprendizado e a transmissão da estrutura de saber, a partir do sis-tema de percepção mimético dos indivíduos e por meio de qual artefato a significação é transmitida.

Por meio da compreensão de como tal estrutura de saberes mobiliza a vo-lição dos indivíduos é que podemos compreender como se estabelece a continuidade do jogo social e a própria orientação da identidade étnica. Tal voluntariedade em dividir, alcançar e reproduzir os símbolos do campo é o que Bourdieu (1989) chama de illusio.

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7 - Motivação, illusio e redes de interdependência

A teia de conhecimentos, planos, receitas, regras e instruções inculcados por meio do contato com outros agentes, a que Bourdieu (1989) chama de illusio, irão plantar os padrões de comportamento cultural de cada coleti-vidade, em cada novo membro que emerge em um mundo sócio-histórico específico.

Esses símbolos, como nas acepções de Elias (2002), são considerados meios apreendidos de comunicação, via síntese e integração, contidos no desenvolvimento social humano. São apreendidos e aprendidos por meio do desenvolvimento da linguagem, que ativa a disponibilidade biológica de aprendizagem e cessa os dualismos e cisões presentes nas ciências so-ciais sobre “cultura” e “natureza”, “corpo” e “mente”, “sujeito” e “objeto”, entre outros.

Para Elias (1994), a linguagem é vista como conhecimento, é “um processo contínuo, despojado de início e fim, sem rupturas abruptas ou residuais”. Nessa habilidade humana habita um fluxo incessante de comunicação e de orientação de pensamentos e condutas, que são mantidos por técnicas padronizadas.

Tais conjuntos de símbolos sociais são adquiridos por cada indivíduo du-rante o desenvolvimento ontogenético, a partir do contato com os ante-passados especialmente por meio da família, da escola e da mídia. A me-dida em que ocorre esse contato social, cada indivíduo adquire e elabora fantasias, imagens e símbolos aos quais se prende, transformando-os nos princípios orientadores de sua conduta e comportamento. Seria a illussio, a responsável pela mobilização da volição humana, sem a qual o sistema mimético, não se deflagraria.

Essa mobilização da illusio de cada indivíduo pelas ideologias presentes nas técnicas e saberesocorre por que a entrada no mundo social implica que o agente deve abandonar a fantasia originária de centralidade narcísi-ca, tornando possível o reconhecimento da alteridade, do outro.

Esse processo é fundamental na construção de identidade do agente que é transitiva e dialógica, já que se dá em conformidade com o outro, com algo fora de mim. Logo, qualquer concepção moral, temporal ou sobre a

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natureza é aprendida e apreendida de outros indivíduos, ou seja, social-mente. Não corresponde, portanto, a uma mera “escolha” em termos de consciência racional.

No entanto, a experiência de si e, consequentemente, a individualização são parte do processo social pelo qual passam as configurações, como nos pressupostos elisianos. Tal fato porque, a psique18 do indivíduo após o pro-cesso de socialização deve substituir seus próprios objetos de investimen-to por outros suportados pelas instituições sociais, onde o público, a cole-tividade, o social constantemente invade e constitui o privado, o individual, o agente.

Para Castoriadis (1982), o processo de socialização deve tornar o agente capaz de elaborar representações sociais que são para ele fonte de prazer. Assim, ele estabelece alvos com os quais se identifica e que são socialmen-te reconhecidos e sancionados, logo o pensamento e fantasias se baseiam nos valores típicos de um momento sócio-histórico particular (1982).

Dentro dessa acepção é possível compreender melhor o campo étnico-qui-lombola e os termos da fricção étnica Kalunga. Os alvos e prêmios estabe-lecidos, ou seja, o reconhecimento e um pacote de direitos, especialmente o direito aterra, são almejados por essa população desde sua constituição, o que permite que o preço de se jogar esse jogo (illusio), a “etnicização”, seja realizável e até mesmo desejável, já que ao recrutar o passado de es-cravidão transforma um estigma, um fardo, em símbolo identitário e fonte de orgulho e aceitação, propiciando segurança ontológica e coesão social a essa coletividade.

No entanto, isso não significa que a “etnicização” não é meramente uma escolha racional. Isso porque, mesmo distante da realidade prática e dis-cursiva desses agentes, a matriz culturalista e essencialista ressaltada no aparato institucional de reconhecimento quilombola da atualidade, sem-pre esteve inscrita em seu habitus. Já que, os traços da identidade grupal

18 A psique é a instância que intermedeia a relação entre o corpo e a estrutura social e nela se joga todo

omistériohumano,poismediaofluxodesignificantesdaculturasimbólicaemíticacomosubstrato

biológicoinevitáveleconcreto,fazendorefluirumnooutroemumcontínuoprocessodeimbricamento,

necessário e fundamental para todos os agentes humanos. Pela capacidade essencial de fazer surgirem

representações(CASTORIADIS1982,p.324).

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constituem uma camada do habitus social encravada muito profunda e firmemente na estrutura de personalidade do indivíduo, operando como uma “ordem invisível”.

Elias (1998) afirma que as pessoas estão ligadas a sentimentos de identida-de em unidades de sobrevivência específicas, como a identidade Kalunga, e apresentam uma grande propensão para projetar nelas parte de suas autoestimas.

Isso quer dizer que, a relação de interdependência entre a sociedade in-clusiva e o contingente negro brasileiro, desde o período colonial, influen-cia a auto-imagem e a auto-representação dos indivíduos Kalunga, consti-tuindo disposições importantes de seu habitus, que podem ser percebidas, entre outros, pelo discurso do embranquecimento, presente ainda em vá-rios indivíduos que se acham mais claros e por isso mais qualificados que os ditos “negros de verdade”.

Os “superiores”, escravizadores colonos incutiam nos “inferiores” negros escravizados uma sensação de inferioridade e de falta de virtudes e assim alimentavam em si uma auto-imagem de superioridade, reafirmando sua identidade como melhores, assim, como faz o grupo que se auto-intitulam “mais qualificados” por serem “mais brancos” (pardos).

Esse antagonismo de padrões entre “brancos e negros” reflete uma con-juntura social, que supostamente findaria com a abolição. No entanto, posteriormente ao período colonial, podemos compreender que a falta de políticas de reconhecimento e de integração da população negra à so-ciedade inclusiva, somada à ideia de democracia racial, é um continuísmo dessa relação “superior x inferior”, que perpetuou o discurso do embran-quecimento entre os Kalunga. Como nos lembra Schwarcz (1999) refletin-do sobre o preconceito não-oficial brasileiro, o mito da democracia racial antes de ser uma “falsa consciência”, é um conjunto de valores que tem efeitos concretos nas práticas dos indivíduos.

Assim, a percepção de uma rede da qual estavam excluídos permitiu que, a partir dela, novas configurações fossem elaboradas, como a atual configuração identitária Kalunga pautada na “etnicização”. A reiteração da afrodescendência, seja pela origem africana, seja pela associação a um quilombo histórico, seja admitindo a negritude, além de justificar a

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perpetuação de um modo próprio de ser e de se organizar, justifica tam-bém a reivindicação de lugar na sociedade, a partir dessa organização identitária.

A coesão do grupo ao longo de gerações de indivíduos pela passagem de um processo grupal é proveniente do acúmulo de um “estoque” de lem-branças, histórias, simpatias e aversões comuns. Dessa forma, a opinião de indivíduos coesos – como as lideranças Kalunga19 e mesmo dos do-minantes do campo étnico-quilombola, tais como acadêmicos, pesquisa-dores, juristas, políticos, entre outros – influencia os próprios membros desse grupo e é capaz de orientar sensações, sentimentos e atitudes.

Segundo Elias (2000), essa opinião funciona como a consciência da própria pessoa. A auto-imagem e a auto-estima de um indivíduo estão ligadas ao que os outros membros do grupo pensam dele. Tanto o crédito quanto o descrédito coletivo têm alicerces profundos na estrutura de personalidade e, portanto, na identidade.

Logo, o indivíduo Kalunga é compreendido necessariamente vinculado às cadeias de interdependência das quais ele faz parte, que inclui, como vi-mos, disposições duradouras relacionadas a situação do negro na socieda-de brasileira desde os tempos da escravidão. As configurações, ou seja, os indivíduos e as teias de interdependência que eles formam entre si, então, são uma pré-condição para a autopercepção.

19 A criação da Associação da Comunidade Quilombola de Cavalcante há cerca de seis anos demonstra

a organização das lideranças Kalunga. Por meio dela é possível angariar recursos e projetos junto à

Universidades,Organizaçõesnãogovernamentaiseórgãosestatais.Diversosprojetosnaáreadede-

senvolvimento sustentável e de promoção da identidade Kalunga estão sendo implementados graças

à mediação da Associação e dos líderes da comunidade. Os membros da diretoria da Associação par-

ticipam com frequência de seminários de âmbito regional e nacional sobre a temática dos remanes-

centesdequilomboemovimentonegro,nessesespaçoselestêmacessoàinformaçõesrelativasàs

discussõesqueocorremnessecampoeinternalizamanovaestratégiaedemaisdiretrizes.Procuram

estabelecer alianças de apoio com outras lideranças de outras comunidades para garantir maior aces-

so e visibilidade de legisladores e políticos. De volta à comunidade, transferem o conhecimento ad-

quirido ao maior número de pessoas possível, promovendo uma conscientização da comunidade nos

assuntos relativos ao reconhecimento e titulação da terra. Participam ativamente dos rituais Kalunga,

promovendoainserçãodeoutrosmembrosnoprocessoparaquetaisrepresentaçõessejamperpe-

tuadasnaspróximasgerações,sãoresponsáveisemlidarcomo outro, durante eventuais visitas, se

certificamsobreoquepodeservistoeoquenãopode,estabelecendoassimumlimiteétnicoentre

os Kalunga e “os de fora”.

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“O sentido que cada um tem de sua identidade está estreitamente rela-cionado com as relações de ‘nós e de eles’ no nosso próprio grupo e com a nossa posição dentro dessas unidades que designamos ‘nós e eles’” (ELIAS, 1994, p. 139). Assim, é preciso entender o desenvolvimento do indiví-duo como um processo sequencial que, sem a memória, não poderia ter continuidade.

Considerações finais

O dilema metodológico proposto, ou seja, o de realizar uma investigação em um grupo étnico a partir tanto da organização social quanto da estru-tura social, ao explorar os níveis micro e macro do objeto, pode ser feito por meio de uma investigação sobre o habitus da comunidade em questão, já que este, ao contrário do conteúdo cultural que se modifica no tempo e varia de acordo com ajustamentos ecológicos, como nos diz Barth, é com-posto de disposições duradouras para certas percepções e práticas que acabam por se tornar parte do sentido de identidade individual e obedece ao princípio de não-consciência.

Para Elias (2002), a formação dessa natureza profundamente arraigada, construída através de um longo exercício de controle e auto-regulação re-lativas a auto-imagem propicia a produção de características distintivas e constitui a consciência da “identidade-nós”, pela alteridade e diálogo.

Para Bourdieu esse conceito permite diferenciar expressões culturais su-perficiais daquelas estruturais e profundas, de forma que, enquanto es-truturas profundas do habitus fornecem a base para o reconhecimento da identidade, essas estruturas produzem uma grande variedade de expres-sões culturais de superfície, que variam de acordo com o contexto e estra-tégias escolhidas pelo grupo étnico.

Desse modo, a investigação sobre o habitus Kalunga se deu pela observa-ção e análise de trajetórias dos Kalunga e pelo universo de nomes e sabe-res compartilhados, adotando um método estruturalista, mas que também parte de certo construtivismo fenomenológico, presentes nos pressupos-tos de Bourdieu aliados a processualidade configuracional presente no método eliasiano.

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As dimensões do habitus: ethos, eidos e hexis, de acordo com Bourdieu (1983), não podem ser vistas como instâncias separadas. O ethos é a dimen-são ética que designa um conjunto sistemático de princípios práticos, não necessariamente conscientes, podendo ser considerado como uma éti-ca prática. Opõe-se à ética que é constituída por um sistema coerente de princípios explicativos.

Por conseguinte, o habitus desperta, nos agentes, a necessidade de respei-tar as normas e valores sociais, o que lhes possibilita uma convivência ade-quada às exigências da sociedade. O eidosé a dimensão que corresponde a um sistema de esquemas lógicos e cognitivos de classificação dos objetos do mundo social, portanto, leva o habitus a traduzir-se em estilos de vida, julgamentos morais e estéticos.

Enquanto, a hexis é a dimensão que possibilita a internalização das conse-quências das práticas sociais e, também, a sua exteriorização corporal, por meio do modo de falar, gesticular, olhar e andar dos agentes sociais. Com tais dimensões, o habitus viabiliza-se enquanto produto de uma situação concreta com a qual estabelece uma relação dialética, de onde se originam certas práticas sociais.

Logo, na interação com os diferentes espaços sociais, o habitus pode ser apreendido sob a forma de capitais (linguístico, corporal, material, social e outros). Por exemplo, falar de acordo com as normas hegemônicas, ter um corpo adequado aos padrões estéticos mais valorizados, são capitais que materializam os esquemas de determinados habitus, assegurando uma in-serção social diferenciada aos agentes que os detêm.

Nessa perspectiva, ao se estudar a comunidade Kalunga deve-se vislum-brar que os diferentes habitus não existem em estado puro, mas enquanto síntese de outros habitus presentes nos indivíduos, como um resultado de suas pertenças a diversos grupos, ocorridas ao longo de suas trajetórias de vida. Assim, o habitus da comunidade Kalunga, é construído enquanto síntese do habitus negro, rural, religioso e de campesinato específico da construção histórico-social brasileira.

Já o procedimento analítico de Elias, pressupõe um fato concreto, no nos-so caso, a identidade e o consumo Kalunga, que requer uma elucubra-ção epistemológica e observações específicas para um levantamento e

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problematização de como se estabelece e se formula o consenso do fenô-meno em questão.

No caso do objeto proposto, tais discussões cercearam temas diversos como: identidade, reconhecimento, multiculturalismo, globalização, es-tética, alteridade e etnicidade, entre outras, buscando compreender a formação de nexos identitários orientadores das identificações Kalunga, que retomam a historiografia brasileira relativa à escravidão e ao ar-cabouço político jurídico relativo ao negro nessa sociedade, desde os tempos da colonização até as recentes políticas de reconhecimento e multiculturalismo.

Também, abordou as formas organizacionais Kalunga produzidas ao longo desse período, da estratégia do “embranquecimento” até a “etnicização”. Esse estabelecimento de nexos, baseados na relação entre a investigação histórico-empírica com o aprofundamento teórico, proporcionou a com-preensão da autonomia relativa20 dos fenômenos.

Em seguida, como sintetiza Farias (2009), Elias defende o retorno às in-terrelações entrelaçadas das figurações como rede de movimentos, com-preendendo o fenômeno “na cadeia das séries distintas de níveis de inte-gração e os efeitos que podem daí sucederem”.

Portanto, faz parte do objeto sociológico as “estruturas de personalidade e sua expressão em distintas figurações, na medida em que a proposição fundamental é a de que a personalidade depende de outras no escopo de processos de interdependências. Assim, se torna incontornável o recurso a psicogênese e a sociogênese” (p. 193)

20 Segundo Farias (2009) “com o recurso à categoria de “autonomia relativa” obedece a uma dupla

intenção. Ou seja, tanto acessar a maneira pela qual a produção e produtos do conhecer humano

galgaram independência dos seus artífices diretos quantovislumbrar a trajetória das instituições

que,aoseespecializarem,consagramposiçãofuncionalauto-suficientecomadelimitaçãodosseus

raios de alcance no bojo complexo das sociedades modernas. . Sobretudo, porém, a ideia de auto-

nomiarelativalhepermitetomarasespecíficasdisciplinascomoangulaçõesdeummesmoprisma,

na medida em que as compreende desde o quadro sinóptico da interdependência em graus varia-

dosdeintegraçãodosprocessos,relaçõeseestruturassociais.Nóduloscentraisdoseuesquema,

síntese e integração são os dispositivos conceituais chamados para a abordagem multimodal reali-

zada pelo autor” (p.195).

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Logo, por meio dos pressupostos bourdiesianos, poderemos compreender o sistema completo de relações nas quais e pelas quais as ações se realizam a partir das posições ocupadas pelos agentes dentro do campo, para ele, é na interação entre os agentes e as instituições que podemos encontrar uma estrutura histórica que se impõe sobre os pensamentos e as ações, enquanto, que a compreensão dessa conformação da condição humana pelos nexos histórico-societais e biopsíquicos, pode ocorrer por meio das acepções eliasianas, que busca as conexões entre memória e conhecimen-to, apreendidas pela linguagem, que é dotada de significado e norteadora de sentidos para outras práticas.

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TERRITORIOS E IDENTIDADES DOS KALUNGA DE GOIÁS1

Maria Geralda de Almeida

Iniciando

A criação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural, no Norte e nordeste de Goiás, no inicio dos anos noventa colocou em evidencia três categorias que refletem espacialidades: o Sítio Histórico, o Patrimônio e o territó-rio. O território é o espaço apropriado por um grupo social para assegurar sua reprodução e a satisfação de suas necessidades materiais e simbóli-cas. A apropriação é uma maneira de efetivar o poder. O Patrimônio cultu-ral, qualquer que seja, precisa ser preservado, guardado, por ser algo que corre o risco de ser destruído. Ora, ao ser patrimonializado, preservado e mantido, a identidade e a territorialidade se “congelam”?

A outra vertente a ser abordada é sobre as identidades territoriais dos Kalunga. As territorialidades dos Kalunga têm outros contextos que inter-ferem em sua dinâmica como os conflitos pelo uso das terras e o turismo emergente. Ambos estão gradativamente presentes e afetam a dinâmica

1 Reflexões vinculadas ao projeto de pesquisaVisões Contemporâneas do Cerrado e intersecção de

politicas sociais e ambientais- Reserva da Biosfera do Cerrado do Norte e Nordeste de Goiás.CNPq .

Edital14/2011 e Projeto “Identidades territoriais e políticas de desenvolvimento territorial e ambiental na

Reserva da Biosfera Cerrado Goiás.”CNPq.

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identitária. A existência e resistência do território dos mesmos instigam a buscar explicações que considerem a relação do Kalunga com a terra, as identidades territoriais e, também, os processos de construção destas identidades.

Norteou-se este estudo pela complexidade de categorias espaciais envol-vidas no espaço dos Kalunga. Decifrar as relações, compreendê-las sig-nificou aprofundar na observação do local, analisar as entrevistas feitas com os moradores, os visitantes e as lideranças. Como pesquisa qualitati-va, priorizou-se estes procedimentos e as informações obtidas na espon-taneidade das conversas.

A singularidade deste território Kalunga será abordada pela compreen-são do tríduo sitio, patrimônio e território superpostos no mesmo espa-ço; um aprofundamento será dado aos aspectos materiais e imateriais do Sitio para o entendimento de como as relações de poder se estabelecem e como as evidências culturais são dimensões da identidade Kalunga. Esta identidade, face ao turismo e ao território patrimonializado adquire sin-gularidade. Finaliza-se, pois sinalizando os territórios emergentes com as dimensões: econômica e política e culturais dos Kalunga.

1. Sitio e Patrimônio: também um território?

A despeito de termos afirmado (ALMEIDA, 2010b), que o território Kalunga é, antes de tudo, uma convivialidade, uma espécie de relação social, políti-ca e simbólica que liga o homem à sua terra e, ao mesmo tempo, constrói sua identidade cultural, gostaríamos de “renovar” esta concepção diante de recentes reflexões.

Com efeito, nossas frequentes observações no/do Sitio Histórico e Patrimônio Cultural nos fizeram constar a força do uso do Sitio como di-mensão política. Como bem destaca Raffestin (1980), o território define-se pelas relações de poder e, Souza (2009, p.65) pondera que o território é um campo de forças, isto é, “relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial”, e, neste caso, o Sitio Histórico Patrimônio Cultural Kalunga é o substrato, imprescindível para que o poder possa ser exercido.

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O poder é uma dimensão das relações sociais, assim como a economia e a cultura constituindo uma geometria complexa na qual o território é a ex-pressão espacial dela.

As práticas dos Kalunga para manterem-se em suas terras são práticas so-ciais e de territorialização e, envolvem dimensões culturais, econômicas e políticas. Por esse motivo, cabe pensar que o território contemple tam-bém, uma dimensão entendida como “um meio de subsistência, uma fonte de recursos, uma área geopoliticamente estratégica, como uma unidade político- administrativa etc”; (GIMENEZ, 2000, p. 94).

Nessas condições, é possível compreender a maneira pela qual o signifi-cado político do território traduz para o Kalunga uma força da comuni-dade, um modo de recorte e de controle do espaço, considerado como Sítio Kalunga. Tal território garante a especificidade desse grupo, serve-se como instrumento ou argumento para a permanência e a reprodução dos quilombolas que o ocupam. Por isso, repetimos Almeida (2010 a) que ter-ritório é, para aqueles que têm uma identidade territorial com ele; o resul-tado de uma apropriação simbólico-expressiva do espaço, sendo portador de significados e relações simbólicas.

Entretanto, cabe, ainda, uma discussão nos interstícios da intencionalida-de da denominação de Sítio Histórico e Patrimônio Cultural das terras dos Kalunga, popularmente conhecido como Sítio Kalunga ou comunidade de Quilombolas.

Antigamente, o patrimônio referia-se aos bens herdados dos pais para preservar a linhagem da família. Ora, mediante as discussões feitas pela UNESCO (2000, p.7) e sua definição de patrimônio como “o conjunto de elementos naturais e culturais, tangíveis e intangíveis, que são herdados do passado ou criados recentemente” os grupos sociais se reconhecem em uma identidade coletiva, consideram-se depositários desse patrimônio e responsáveis para transmiti-lo para as gerações futuras.

O artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil define pa-trimônio cultural a partir de suas formas de expressão; de seus modos de criar, fazer e viver; das obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e sítios de valor histórico (grifo nosso), paisagístico, artístico, ecológico e científico.

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Em seus artigos 215 e 216, a Constituição reconhece a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares como mer-cados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas.

É o caso do Sítio das terras dos Kalunga. Sitio e Patrimônio ele constitui um legado cultural pela sua história e todo o conjunto de elementos sim-bólicos que ajudam a configurar a identidade cultural dos quilombolas na-quele território no qual se acham legitimados socialmente.

Convém repetir que o desejo ou a necessidade de defender o território tem relação com a manutenção de recursos como a terra e água, com a manutenção de modos de vida e do controle sobre “símbolos materiais de uma identidade {...} e dos objetos geográficos visíveis e tangíveis.” (SOUZA, 2009, p. 64).

Nessa mesma concepção, Bonnemaison e Cambrezy (1997, p. 10) conside-ram que “o vigor do laço territorial revela que o espaço é investido de va-lores não somente materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos”.

Além disso, a representação está presente quando as terras dos Kalunga foram designadas Sitio Histórico e Patrimônio Cultural. Considerando que são detentores de um patrimônio, após a formalização de identidade como Sitio por meio da Lei Estadual nº 11.409-91; desde então, os Kalunga bus-cam o reconhecimento e o apoio nacional, conforme já foi dito. Patrimônio, para eles significa ter a propriedade das terras.

O sentido da terra para os Kalunga resulta, portanto, da persistência desse grupo junto aos órgãos governamentais, de vários embates contra invasões de garimpeiros, e de fazendeiros, tornando-a, sobretudo, simbólica. É na terra, reafirmamos (ALMEIDA, 2010 a e b), que se produz e reproduz a cul-tura desse povo.

Desse modo, ela constitui uma forma de atrair e garantir a permanência dos kalunga no território que é de luta, de resistência, de pertencimento e de enraizamento. A terra é um símbolo utilizado para se comunicar com o

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exterior. Enquanto patrimônio, a terra é usada para simbolizar, represen-tar ou comunicar. Como ressalta Gonçalves (2009, p.31), “é bom para agir”.

Reafirma-se que a institucionalização como Sitio e como Patrimônio le-gitimam o poder presente e exercido naquele espaço e, sabiamente apro-priado pelos Kalunga. Assim feito, há uma geometria de poder refletida espacialmente, simultaneamente, no patrimônio, no sitio; sendo estes, também, território.

2. Delineando o substrato referencial

dos territórios Kalunga

No Norte e no Nordeste do Estado de Goiás, distando cerca de 400 km de Brasília-DF, e 600 Km de Goiânia, ambas regiões metropolitanas, explo-sões urbanas em pleno Cerrado, encontra-se um espaço geográfico sin-gular. O espaço ali tem vãos, serras e morros, depressões e vales estreitos, rios encaixados, uma vegetação variada de cerrado, que se espraiam pelo espaço é conhecido como Vãos da Serra Geral; parte ocupada pela bacia e vale do Rio Paranã e seus afluentes, às bordas da Chapada dos Veadeiros, na qual se encontra o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

As denominações para as serras variam com uma toponímia que exprime a natureza, o imaginário, a religiosidade e a família dominante no local: Serras do Mendes, do Mocambo, do Bom Jardim, da Areia, de São Pedro, do Moleque, Boa Vista, Contenda, Bom Despacho, Maquiné, da Ursa entre outras, e o Morro da Mangabeira.

As bacias do Rio Paranã e do Rio das Almas irrigam essas áreas do Norte e do Nordeste Goiano. De menor porte, mas, também, banhando o Nordeste, têm-se o Rio Corrente e seus afluentes Correntinha, Curriola e Areias.

Particular pela presença de uma natureza cerradeira dominante, essa re-gião também se destaca por constituir-se, na trijunção dos municípios Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, que ocupa uma área de 263,2 mil hectares. A maior parte do Sítio, isto é, 71% encontram-se em Cavalcante, mas ocupa apenas 26% da área total do município; em Monte Alegre, ele representa 13% da área total,

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ocupando 10% da área total do município. Já em Teresina de Goiás, a des-peito de ser somente 15% do Sítio, ele ocupa 50% da área total do município.

Em relação à população do Sítio, o Laudo Histórico sobre a Comunidade Kalunga (1998) estimava em 4.200 pessoas; essa população era maior que aquela apresentada nos dados de 2004, do “Perfil das Comunidades Quilombolas; Alcântara, Ivapurudunva e Kalunga”, descritos por Marinho (2008), cuja estimativa era de 3.752 habitantes, isto é, 958 famílias, distri-buídas em 884 domicílios, esparramadas por povoados, agrupamentos de famílias como Vão de Alma, Vão Contenda, Riachão, Engenho I e Engenho II, Vão do Moleque, Sucuri, Curriola, Ema, Taboca, Areia, Maiadinha, o de Capela, para citar alguns.

A rica toponímia, que designa as serras, os rios, os vãos e os agrupamentos de casas, constitui uma construção subjetiva, a um dado símbolo natural ou cultural do lugar em questão. O Sítio configura-se, de acordo com a con-cepção do Bonnemaison (1981, p. 256), como um geossímbolo, “um lugar, um itinerário, um acidente geográfico, que por razões políticas, religiosas, his-tóricas ou culturais possui aos olhos de certos grupos sociais ou povos uma dimensão simbólica que alimenta e conforta sua identidade”. Essa constru-ção da identidade territorial decorre, também, de interferências externas.

Conforme Rosa (2009), os trabalhos de identificação dos Kalunga inicia-ram-se em 1982, por antropólogos da Universidade Federal de Goiás (UFG). No ano de 1988, a Constituição Estadual, em seu artigo 16, já previa a deli-mitação da reserva Kalunga com a conclusão dos estudos realizados pela UFG. Pouco depois, a Lei Estadual Complementar 11.409, em 1991, criou o Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga, que foi posteriormente ra-tificada pela Lei Complementar 19, no ano de 1995.

Essa Lei prevê, em seu texto, a propriedade exclusiva, a posse e a integri-dade territorial, a demarcação, a desapropriação e a titulação a favor da comunidade. Entretanto, no restante década de 1990 houve uma lentidão no trato da regularização.

Em 2000, também de acordo com Rosa (2009), a Fundação Cultural Palmares, por meio da Portaria Interna nº 40, emite o título de reconheci-mento nº 004; no qual, outorga o domínio do perímetro demarcado a favor da Associação Quilombo dos Kalunga.

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Essa medida permaneceu inócua pela falta do arcabouço jurídico e dos recursos orçamentários necessários para a indenização dos imóveis ru-rais particulares e sua desintrusão do Sítio. Todos os trabalhos e discus-sões acerca da regularização fundiária somente foram retomados após o Decreto 4.887/2003, tendo como marco inicial a Ação Integrada Kalunga; o que culminou com um evento de cunho político em 2004, no Sítio Kalunga, com a presença do presidente da República. No que diz respeito à ação da Fundação Cultural Palmares, em publicação no Diário Oficial da União de 19 de abril de 2005, esta legalizou sua certidão de auto-reconhecimento de comunidade de remanescentes dos quilombos dos Kalunga.

Considerando que são detentores de um patrimônio, após a formalização de identidade territorial por meio da Lei Estadual nº 11.409-91, desde en-tão, os Kalunga buscam o reconhecimento e o apoio nacional. Um avanço ocorreu em 2009, em 20 de novembro, dia dedicado à Consciência Negra; quando foram assinados pelo presidente da República 30 decretos de re-gularização de territórios quilombolas, num total de 335 mil hectares de terra, distribuídos em 14 estados.

Destes, 263,2 mil ha foram para os Kalunga. Esse foi o primeiro passo para declarar de interesse social as áreas ocupadas. Com isso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pode avaliar os imóveis que, após a indenização dos proprietários, devem passar para as comuni-dades, assegurando o direito a terra, previsto na Constituição.

Porém, até ano de 2014 não ocorreu nenhuma desapropriação dos “fazen-deiros ilegais” naquele Sítio. Nota-se, portanto, relações dissimétricas no que tange à posse da terra e ao seu uso naquele território. Convém ressal-tar que os aspectos jurídicos e as ações políticas não bastam para defini-rem uma territorialidade, como será explicado.

A dispersão territorial em pequenas unidades produtoras, chamadas de roçados, é uma das características da economia local (MARINHO, 2008). As limitações topográficas e a escassez de terras férteis levam os Kalunga do Engenho II a explorar as faixas de terras marginais como encostas, topos de morros, às vezes em áreas de fazendeiros.

Além disso, devido à distância, eles são obrigados a caminhar no mínimo duas horas para chegarem aos seus roçados. Ali, com o uso da enxada e

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da foice, eles plantam mandioca, milho, arroz, batata doce, abóbora, fei-jão, fumo e algodão, sem fertilizantes e agrotóxicos, fato comentado por eles com bastante orgulho. Próximos à comunidade de Ribeirão, alguns Kalunga também cultivam o gergelim, vendido nas padarias de Teresina de Goiás. O costume é permanecer cinco anos plantando na mesma área e, quando a terra pertence a um fazendeiro, o contrato é para devolvê-la no segundo ou terceiro ano com pastagens.

De produtos produzidos pelos Kalunga, o que tem maior valor comercial é a farinha, reputada pela qualidade no Norte e Nordeste Goiano, e a ca-chaça “Maquiné”, de fabrico artesanal e vendida por um kalungueiro, em Engenho II.

De acordo com Almeida (2010b), um projeto da Universidade Federal de Goiás, em parceria com a EMBRAPA, em 2006, distribuiu entre os Kalunga, cabeças de gado curraleiro. Esse gado, de porte menor, rústico, resiste bem aos terrenos íngremes. Ele era frequente nas terras mais altas do Nordeste Goiano, e, provavelmente, fora criado pelos Kalunga em épocas pretéritas. O experimento das 1000 cabeças foi uma tentativa de testar a capacidade de readaptação do animal à região e, também, uma tentativa de os Kalunga serem criadores dessa espécie para melhoria de renda.

O gado curraleiro tem causado, contudo, estragos nos roçados, até en-tão sem cercas e provocado alguns conflitos entre os próprios Kalunga. Até então, ali era território do domínio do cerrado e dos roçados e, com o gado curraleiro, sinalizaram-se outros territórios: o território dos que têm o gado, isto é, daqueles que aceitaram serem parceiros da Universidade no projeto, e o território daqueles que não têm gado. A presença de um bem econômico, associada à possibilidade de ser um bem diferenciado, cria uma fissura e um desprestígio entre os plantadores de roçado, cuja atividade, até o momento, reinava entre os Kalunga.

Nas bordas do Sitio, encontram-se os fazendeiros _e alguns deles como territórios-ilhas no interior do Sitio_ economicamente dotados de maior poder que alegam direitos e indenizações para deixarem as terras. Vários deles cedem suas terras aos Kalunga procedimento já explicado.

Em pequena escala, os Kalunga extraem do cerrado frutos como o pequi, o buriti, o jatobá, o cajuzinho, dependendo da estação do ano. Todavia, ainda

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hoje, as matas, os pastos naturais, os recursos hídricos são explorados de forma comunal. A construção de espaços que contemplam estratégias de pluriatividades de uso da terra garantiu uma base alimentar e a consolida-ção da identidade étnica e cultural da comunidade Kalunga.

3. Identidade Quilombola e Kalunga

O termo quilombo merece uma discussão. O Decreto 4.887, de 20 de no-vembro de 2003, em seu artigo 2º, considera remanescentes das comu-nidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações ter-ritoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra, relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Este entendimento pode respaldar-se em Guimarães (1983) para quem o que constitui o traço marcante para definir quilombo é a negação do siste-ma escravista. O autor adere às correntes de pensamento segundo as quais existiria quilombo onde houvesse negros fugidos e às teorias de caráter marxista em que o quilombo é a negação do poder constituído.

A noção de quilombo adotada por esse autor baseia-se numa premissa da busca da liberdade por meio da negação de um sistema opressivo e, no seu entendimento, os quilombos passam a ocupar o locus de resistência das classes oprimidas.

Almeida (2002) aprofunda essas reflexões principalmente, porque na sua visão: “[...] o quilombo já surge como sobrevivência, como ‘remanescente’. Reconhece-se o que sobrou, o que é visto como residual, aquilo que res-tou, ou seja, aceita-se o que já foi” (ALMEIDA, 2002, p. 53-54).

O autor defende que se deveria buscar um conceito de quilombo conside-rando o que ele é no presente, discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente. Para se pensar a questão do quilombo, não se pode continuar a usar uma categoria histórica acrítica.

Quilombo, na visão agora ressignificada, não é apenas uma tipologia de dimensões, atividades econômicas, localização geográfica, quantidade de membros e sítio de artefatos de importância histórica. É uma comunidade

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e, como tal, passa a ser uma unidade viva, um locus de produção material e simbólica. Institui-se como um sistema político, econômico, de parentesco e religioso, que margeia ou pode ser alternativo à sociedade abrangente.

No mesmo sentido, Carvalho (2006) afirma que não é possível reduzir a ideia de quilombo às definições históricas, às ideias de isolamento, fuga ou mesmo a uma suposta unicidade entre os quilombos, mas que eles devem ser considerados em suas especificidades, cada grupo com suas caracte-rísticas próprias:

É preciso considerar a diversidade histórica e a especificidade de cada

grupo e, ao mesmo tempo, o papel político desempenhado pelos grupos

que reivindicam o reconhecimento como “remanescente de quilombo”

(CARVALHO, 2006, p. 1).

Carvalho comunga da concepção da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que, em 1996, manifesta-se criticamente em relação a uma visão es-tática do quilombo e insiste no seu aspecto contemporâneo, relacional, or-ganizacional e dinâmico, bem como a variabilidade de experiências capaz de ser amplamente abarcada pela ressemantizaçao do quilombo na atualidade.

Para Leite (2005), o quilombo deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente situada na formação social brasi-leira. Este entendimento prevalece nessa discussão.

O território Kalunga, já o afirmamos (ALMEIDA, 2010a) é uma convivialida-de, uma dimensão de relação social, política e simbólica que liga o homem à sua terra e, ao mesmo tempo, constrói sua identidade cultural. Também, é no território que se revela o modo como os homens criam uma identi-dade e “enraízam-se” no território. Giménez,( 2000, p.94) considera que o território, pelas relações sociais, possui uma dimensão afetiva sendo, “como objeto de apego afetivo, a terra natal, como lugar de inscrição de um passado histórico e de uma memória coletiva.

Nessas condições, é possível compreender a maneira pela qual o significa-do político do território traduz para o Kalunga um modo de recorte e de controle do espaço, tido como Sítio Kalunga. Tal território garante a espe-cificidade desse grupo, serve-se como instrumento ou argumento para a permanência e a reprodução dos quilombolas que o ocupam.

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Os Kalunga, induzidos, sobretudo, pelas externalidades, assumiram a de-nominação de Kalunga2. Há singularidades nessa construção da identidade territorial. Com a presença da Fundação Cultural Palmares, houve o inte-resse em se identificar como quilombola. No início rejeitado, o autorre-conhecimento como kalunga é, atualmente, valorizado graças às políticas governamentais. Os Kalunga, com essas políticas valorativas, conscienti-zam-se da importância de suas raízes africanas para as políticas assisten-cialistas, do valor atribuído à sua coletividade, se autoidentificam como quilombolas e já procuram propiciar visibilidade de um saber que só detém quem tem a vivência, a identidade com o Sítio.

Com base nisso, pode-se afirmar que a representação que tem as pessoas da sua posição no espaço social e de sua relação com outros atores que ocupam a mesma posição ou posições diferenciadas no mesmo espaço é fundamental para definir a identidade (ALMEIDA, 2010 a e b).

4. As implicações da patrimonialização

para a identidade Kalunga

A comunidade está apoiada institucionalmente pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Fundação Cultural Palmares (FCP), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Esse Ministério lançou a comunidade Kalunga como plano piloto para a regularização fun-diária na Agenda do Governo Lula, em 2002, e de fato, embora ainda não tenha ocorrido, o processo iniciou-se recentemente, conforme menciona-do. Mesmo sem regularização, a terra é tradicionalmente explorada para assegurar a sobrevivência dos Kalunga.

Uma questão suscita dúvidas: que motivos levaram o governo do Estado de Goiás a instituir na década de 1990, um Sítio Histórico e Patrimônio

2 Aorigemdonomeéambígua.NoLaudoHistóricosobreaComunidadeCalunga(grafiatambémaceita),

Kalunga é a denominação de um riacho local originário de sua comunidade e generalizado para referir-

seaquemmoravanaregião;outrosjáafirmamqueonomeadvémdagrandequantidadedeumaplanta

que eles conheciam como Calunga e passou a nomear o povo também. São comuns as referências ao

povodovão,povodoEngenhoparaespecificaralocalizaçãodentrodoSítio.

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Cultural dos Kalunga, quando essa discussão não tinha ainda uma densi-dade como a atual? É de se supor que, para os órgãos governamentais, o que prevalecia era a noção historicista, arqueológica e objetificadora de preservação cultural, particularmente no tocante ao patrimônio de ca-racterística material (um lugar definido externamente, geograficamente determinado, historicamente construído e talvez documentado). Ocorre que essa visão não poderia ser aplicada aos Quilombolas; eles próprios são exemplo de patrimônio tangível e intangível.3

O Sítio é patrimônio no sentido da palavra. Patrimônio que inclui o termo histórico e remete às condições e ao tempo de sua construção; e, também, patrimônio no qual prevalece o entendimento da propriedade e, ainda, de patrimônio cultural a partir da dinâmica dos valores que o constituem4. Pode-se, pois, afirmar que a identidade cultural Kalunga vai propiciar sentido ao território e definir as territorialidades. A territorialidade defi-ne uma relação individual ou coletiva com o território e se apoia sobre as paisagens.

Almeida já o disse anteriormente (2010a) que o patrimônio e território têm, assim, o duplo papel de mediador interpessoal e de cimento identitário na sociedade. Os elementos materiais como construções, vegetação, proprie-dades, por exemplo, e os bens imateriais como imagens, cultura, símbolos etc, são valores patrimoniais. O patrimônio, de certo modo, como nos lem-bra Gonçalves (2009), constrói e forma as pessoas.

Contudo, o território, como forma e referência identitária de um grupo social se aproxima do patrimônio e adquire um valor patrimonial. Assim, a interpretação do sentido de patrimônio leva em conta a base espacial con-quistada, territorializada. Além disso, atribui-se a um bem o valor patrimo-nial ao se procurar compreender o território em sua dimensão fenomeno-lógica e simbólica. Resumidamente, nesta análise do Sítio dos Kalunga são contemplados tanto o patrimônio edificado, o material, quanto os aspectos

3 Após a Constituição Federal de 1988, o patrimônio cultural passa a ser formado tanto por seus bens,

tanto os de natureza material quanto os de natureza imaterial.

4 Patrimônio cultural é uma noção para além da questão do que é “nacional”: o reconhecimento dos di-

reitos culturais, ao acesso à cultura e à liberdade de criar, como também o reconhecimento de que pro-

duzir e consumir cultura contribuem para a ampliação do conceito de cidadania.

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valorativos da vida social e cultural postos no âmbito do “patrimônio intan-gível”, territorializados pelos Kalunga.

De acordo com Fabre (1994), apesar de nossas sociedades se definirem como modernas, ou seja, engajadas em um processo contínuo de trans-formação histórica, elas são também sociedades de conservação. A febre patrimonial crescente é a forma presente desse apego com o passado.

Em outras palavras, o patrimônio constitui-se uma nova base para reafir-mar a identidade, conforme já foi dito, e a patrimonialização é um recurso para a conservação de símbolos e signos culturais. Na sociedade contem-porânea, renova-se o interesse pelo patrimônio cultural, face às atuais dis-cussões sobre as identidades e alteridades no mundo globalizado.

O patrimônio cultural convive com a concepção de contemporaneidade e seu uso e desfrute atual está muito vinculado ao turismo. A atual tu-ristificação do patrimônio, tanto o cultural quanto o natural, favorece sua mercantilização. O valor que os bens culturais possuem, por um lado, é o que a sociedade por suas práticas sociais lhe atribui e, por outro lado, é o definido pelos interesses da lógica do mercado. O turismo, nesse processo, reinventa o patrimônio cultural, como tem ocorrido com os Kalunga.

4.Turismo e novos territórios no Sitio Histórico

Conforme já foi dito (ALMEIDA, 2012) há um súbito e crescente interesse pe-los bens culturais, pelos saberes, pelos grupos étnicos, o que pode explicar o fato de o sítio dos Kalunga ter se transformado em um dos atrativos turís-ticos mais visitados no Estado de Goiás pela população do Distrito Federal. Ao adentrarem-se no Sítio, os visitantes procuram as cachoeiras e alguns se interessam pelos conhecimentos sobre o cerrado, os saberes dos Kalunga.

Com olhares curiosos, observam o agrupamento de casas sem arruamen-tos, as “casas kalungas”, construídas pelo governo, portando placas indi-cativas de serem protótipos desse povo e outros se aventuram mesmo a encomendar uma refeição caseira para o retorno da visita às cachoeiras.

O turismo é um fenômeno social que manifesta um crescimento constan-te, considerado como uma importante fonte de riqueza econômica e como

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oportunidade para impulsionar áreas deprimidas nos aspectos econômico e social. Por isso, ele foi introduzido no território Kalunga com o apoio do Sebrae, parceiro da Goiás Turismo no fomento desta atividade.

Os técnicos do Sebrae encontraram em Engenho II, um líder comunitário Kalunga, que se interessou pela proposta e implantou, na Comunidade, a prática do turismo na lógica da mercantilização: acessos controlados e pa-gos, visita guiada para as cachoeiras por um kalunga.

O turismo contribui para assumir a identidade Kalunga e, ao mesmo tem-po, transformá-la em um slogan para as conquistas e lutas pela terra e em mercadoria para atrair os visitantes.

Embora ainda careçam de inventários aprofundados, pode-se afirmar que se delineiam três territórios de turismo no Sítio: território do Engenho II, território do Vão de Almas e do Vão do Moleque e, o território de Teresina de Goiás-Monte Alegre, ao longo da GO 118. (Figuras 1) A apresentação de-les está na sequência.

FIGURA 1 - Localização de comunidades e territorios turisticos no sitio kalunga.

Fonte: Bruno Abdala, 2012.

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O território do Engenho II contempla a comunidade de Engenho II, situa-da a cerca de 20 Km da cidade de Cavalcante , tem a facilidade do aces-so, uma infraestrutura que se consolida e os atrativos naturais mais visi-tados: Mirante Serra da Nova Aurora e Cachoeira Ave Maria no trecho de Cavalcante que dá acesso ao Engenho II; a Cachoeira Kandaru, Cachoeira Capivara e a Cachoeira Santa Barbara, considerada como a mais bela queda d’água do Sitio Histórico e do Norte Goiano; superando mesmo aquelas do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

Por esse motivo, o turismo surge como uma fonte de renda e de trabalho muito desejável no inicio da década de 2000. Conforme já mencionado, in-troduzido com o apoio do Sebrae, em Engenho II. Ali, um líder comunitário Kalunga, se interessou pela proposta e implantou, na Comunidade, a prá-tica do turismo na lógica da mercantilização: acessos controlados e pagos, visita guiada para as cachoeiras por um Kalunga.

Progressivamente, no Engenho II incluiu-se a hospedagem, camping rús-ticos, refeições possível em três casas; sendo uma delas do próprio líder comunitário. Este, desde o final de 2013, tornou-se um empresário melhor sucedido entre os Kalunga, com um restaurante privado, de porte médio e a posse de uma área para camping.

Este território destaca-se ainda pela ocorrência de um expressivo evento festivo, a Folia de Santo Antônio, convenientemente deslocada de junho para 13 de julho para possibilitar um público maior devido às férias. Neste dia tem o arremate da folia, uma “janta” farta e ainda um forró; sendo os dois últimos os atrativos para um afluxo de visitantes que supera 200 pes-soas naquele dia. Os Kalunga se aproveitam para “bons negócios” com a venda de bebidas alcoólicas, de comida junina, de rapadura e de água.

Pode-se afirmar que o poder político e econômico consolida-se no terri-tório do Engenho II, pelas razões já apresentadas. O fortalecimento deste território em detrimento dos demais, estabelece relações sociais dessimé-tricas no Sitio Histórico.

O território do Vão de Alma (60 Km de Cavalcante) e do Vão do Moleque (120 Km) tem dificuldades de acesso, de infraestrutura e ausência de um inventário de atrativos naturais.Este território consegue ter destaque com folias e festas religiosas, com visitantes deslocando de várias localidades

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e, durante um tempo, alojam-se em ranchos precários nos lugares festi-vos, para celebrarem seus santos, fazerem seus rituais, reforçarem os laços identitários e territoriais.

O calendário festivo é rico destacando-se algumas festas: em janeiro, Folia de Reis e festa de São Sebastião; em junho, a festa de Santo Antônio na Maiadinha, folias em algumas comunidades e a festa de São João, com matinas, império, levante de mastros que se encerram com a festa de São Pedro.

Porém, os grandes festejos dos Vãos são duas romarias: Em agosto, a Romaria de Vão de Almas com o Império do Divino Espírito Santo e no-vena a Nossa Senhora da Abadia. E, em setembro, a Romaria do Vão do Moleque com novenas a Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora das Neves e São Gonçalo. Nesta, acontece o Império e a Coroação man-tendo as tradições de festejar os imperadores dos Kalunga. Estas festas, com forte presença das tradições, constituem o diferencial no turismo desse território.

As relações de poder estabelecem-se com base nas celebrações festivas, poderosas no reforço da identidade cultural e territorial dos Kalunga.

O território de Teresina de Goiás-Monte Alegre, ao longo da GO-118 apre-senta-se com atrativos turísticos mais diversificados, comparando-se com os Vãos do Moleque e de Almas. Em novembro de 2000, foi realizado pelo Grupo Nativa, em parceria com o Sebrae/GO, o Inventário da Oferta Turística de Teresina de Goiás.

Segundo os resultados desse trabalho, existem 27 atrativos turísticos na região, porém, somente as corredeiras do Funil constam nesse in-ventário como atrativos situados nas comunidades Ribeirão e Diadema de Quilombolas. Além desse fato, o estudo reiterou que a presença da Comunidade Kalunga em grande parte do seu território, conformaria a identidade turística do município, um diferencial em relação aos demais municípios da Chapada dos Veadeiros. Contudo, quase 12 anos após não se implementa ainda o turismo naquele território.

Em inventário mais recente Lima e Almeida (2011), constataram que o terri-tório dessas comunidades é dotado de elementos que podem ser atrativos

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para o turismo rural, para o turismo de pesca, o turismo de natureza, eco-turismo e turismo cultural. Estas pesquisadoras identificam cinco locais potencialmente turísticos, com a colaboração dos próprios Kalunga das comunidades:

1) Ribeirão dos Bois: potencialidades de atrativos turísticos, especial-mente por propiciar no verão banhos, e, a prática de canoagem e de bóia-cross em partes mais acidentadas do córrego.

2) Rio Paranã: nasce no Planalto Central e deságua no rio Maranhão no estado do Tocantins. Possui corredeiras em alguns locais, profundidade e aspecto caudaloso em outros. Na jusante, o rio se alarga, alcançando um extenso horizonte. Na confluência do Ribeirão dos Bois com o rio Paranã, a Serra da Contenda, ao fundo, forma uma paisagem propícia para a con-templação. O rio é favorável para atividades como canoagem, passeios de barco, banho, pescaria, e possibilita a implantação de tirolesas.

3) Trilhas pelo cerrado: As trilhas pelas matas da região constituem-se um atrativo turístico, para observações da vegetação, das espécies de animais , e das espécies vegetais como frutíferas e medicinais. Além dis-so, elas permitem o acesso dos conhecimentos sobre as espécies, os sa-bores e tradições locais dos Kalunga.

4) Funil: denominação dada por ser o local que o rio Paranã afunila-se ao “pé” da Serra do Vão de Almas. Esse é o lugar preferido para a pesca por Turistas/pescadores, vindos principalmente de Brasília, deslocan-do uma distância aproximada de cinco quilômetros a partir da escola de Diadema. A paisagem compõe-se do rio encaixado e a intensa corrente-za das águas. O percurso final feito a pé, cerca de mil metros enfrenta quantidade de grandes blocos de rochas no caminho, o que exige muito esforço físico.

5) Casa de Farinha: criada pelo governo municipal de Teresina de Goiás por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf) do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, com maquinários ne-cessários para fazer farinha. Localiza-se próxima à escola de Diadema. A Casa é pouco usada; embora seja o espaço onde as comunidades, espe-cialmente as mulheres, exercitam práticas tradicionais do preparo deste alimento, o convívio e a sociabilidade.

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Muitos Kalunga preferem as formas tradicionais de fazer farinha, utilizan-do pau de angico para ralar a mandioca, em suas próprias casas. Para a Casa de Farinha se constituir um atrativo cultural, torna-se necessário que as mulheres procurem utilizar com mais frequência e regularidade aquele espaço, sobretudo porque o plantio de mandioca e a produção de farinha acontecem o ano inteiro.

Para induzir ao turismo desde setembro de 2011, o Centro de Excelência do Turismo-CET de Brasilia, anuncia em seu site,a inauguração do Memorial Kalunga Casa de Dona Lió - Fazenda Ema Teresina de Goiás/GO. Dona Lió é uma personagem respeitada pelos Kalunga devido aos seus conhecimentos, à sabedoria e à autoridade na Comunidade Ema. A construção do Memorial, no mesmo local onde era sua casa de adobe, pretende tornar-se um museu com seus objetos pessoais. Embora haja quase um ano que as obras tenham sido paralisadas, ainda não oferece condições para ser visitada por faltar organizar os objetos e os espaços .O filho de D.Lió, morador no local, recebe os ocasionais visitantes.

Cabe ressaltar que nestes três territórios aquele de Engenho II destaca-se por ter uma Associação de Guias e Condutores que, desempenha um papel importante na geração de trabalho e renda para os jovens daquela comu-nidade. Cada “guiagem” custa 60,00 para o grupo de visitantes no qual o número máximo é seis.

Em 2008, havia aproximadamente 21 condutores inscritos na Associação e, curiosamente, 11 eram da família Maia, 5 da família Rosa, 2 da família Silva e o restante de diversas outras famílias. Estes dados são reveladores do em-poderamento de algumas famílias, do abandono total das atividades tradi-cionais por parte de famílias ao terem um número tão elevado de membros na atividade turística (ALMEIDA, 2012).

Em 2012, o número de condutores já alcançava 70, embora alguns estives-sem em Brasília, Goiânia e Cavalcanti para estudos e exerçam a prática de condução esporadicamente, nas férias e feriados. Em fevereiro de 2014, de acordo com informações no próprio CAT de Engenho II, os moradores que realmente trabalham como condutores são 30.

Destes, 10 ali ficam no CAT diariamente. O restante tem a atividade turís-tica como complementar, pois se dedicam a cuidar do roçado, do quintal,

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ajuda ao vizinho no seu roçado. A agricultura é, ainda, uma importante fonte de sobrevivência para os moradores.

Cabe ressaltar que o turismo propicia a melhoria de renda aos três pro-prietários de campings, de 4 “restaurantes” e daqueles condutores de tu-ristas. As relações sociais são esgarçadas e, pode-se considerar como de-terminante de limitado poder disseminado entre vários interesses. Tal fato impede ações mais contundentes que conduzam ao fortalecimento territorial.

Como desafios para o turismo naquele Sítio, três outros ainda se destacam: primeiramente, a Associação dos Quilombolas, não consegue ser uma in-terlocutora para discutir e implementar um plano de desenvolvimento do turismo no Sitio como um todo.

Prevalecem os interesses particulares de comunidades e, mesmo de cada Kalunga, dificultando aceder a uma economia social; segundo, são as ope-radoras, agências de turismo com atividades turísticas que já consolidam uma regularidade de visitas turísticas no Sítio Kalunga. Algumas são indi-cadas aos turistas no CAT – Cavalcante e operam a partir daquela cidade. Outras têm sites, e sedes em Brasília e em Alto Paraíso, operando com um público diversificado.

O pouco envolvimento dos Kalunga com as atividades das operadoras res-tringe um projeto de interesse dos Kalunga que se sujeitam nestas condi-ções ao mercado; terceiro, é a pouca valorização do turismo nas gestões municipais de Monte Alegre, Teresina de Goiás e Cavalcante. Tal fato re-flete na pouca articulação e envolvimento municipal com os Kalunga na promoção desta atividade.

É muito recente o tímido controle exercido pelos Kalunga na atividade tu-rística como processo econômico. As etapas para transformar um potencial em produto turístico, implantar uma infraestrutura, fazer um marketing de seus produtos, do seu território, comercializar e re-investir esbarra na fal-ta de capacitação dos membros da organização para cobrir cada uma des-sas fases e a incapacidade de controlar os fatores externos desfavoráveis. A economia social, popular depende das formas de organização e, a associa-ção dos Kalunga não é suficientemente unida para agregar os Kalunga no coletivo em torno dos mesmos ideias e valores.

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Arremates

Nesse texto, por diversas vezes, enfatizou-se que o Sítio é, por excelên-cia, um patrimônio cultural conferido pelos Kalunga, embora seja esta uma categoria institucionalizada. Adotou-se a compreensão que o patrimônio material e patrimônio imaterial, são como face da mesma moeda: a do pa-trimônio cultural. Procurou-se aqui considerar a cultura no sentido adota-do por Geertz (1978, p. 58): “a cultura acumulada de padrões não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela, a principal base de sua especificidade”.

O poder da cultura Kalunga, inscreve-se no espaço e deixa marcas pela sua história e pelo seu trabalho produzindo o território kalunga. As marcas são os diferentes processos de apropriação, sítios potenciais de resistên-cias, de intervenção e de tradução decorrentes das estratégias de dife-renças na apropriação daquele espaço. O território é, pois, dotado de uma historicidade caracterizada pelos seus ritmos específicos.

Nota-se, que o campo do patrimônio, apresenta-se como um espaço de conflitos e de interesses contraditórios nos quais estão presentes o Estado (Fundação Cultural Palmares, Ministérios, Prefeituras), a Sociedade civil (os Kalunga e associações não governamentais) e as instituições de pesqui-sa e empreendedorismo (UFG, UnB, Embrapa, Sebrae).

Essa presença institucional, tutelar, assistencialista, com interesses que divergem até das demandas locais fortaleceu-se localmente na última dé-cada e tornou-se a diferença principal, para os Kalunga, do significado de viver em um território patrimônio quilombola.

O território é, portanto, um espaço fundamentalmente multidimensional no qual se criam e recriam as condições de sobrevivência dos Kalunga, os valores e as práticas culturais, econômicas e sociais que lhes são próprios e os embates institucionais. Território e identidade Kalunga se entrelaçam.

Duas questões foram consideradas como dimensões que envolvem as iden-tidades territoriais como estratégias: o acesso a terra e o turismo. Ambos contribuem para assumir a identidade Kalunga e, ao mesmo tempo, trans-formá-la em um slogan para as conquistas e lutas pela terra e em mercado-ria para atrair os visitantes.

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Nesse contexto, as dinâmicas que se instauram sinalizam para uma duali-dade entre criar e manter os traços que exotizam a comunidade face aos olhos dos visitantes, e buscar se inserir no mundo moderno. Os Kalunga podem, entretanto, optarem pela hibridização das alternativas.

Enfim, neste artigo tratou-se de um território dotado de uma historicida-de caracterizada pelos seus ritmos específicos. Ele é, assim, uma forma de apresentar as políticas e ingerências em patrimônios e culturas singulares. Essa apropriação do patrimônio cultural pelo turismo é uma decisão estra-tégica, vinculada a um processo socioeconômico mundial que é, segundo expressão de Vallbona e Costa (2003), a turistização5: o turismo enquanto se integra profundamente na economia local, convertendo-se na principal atividade econômica, potencializa e revaloriza o patrimônio cultural espe-tacularizado para tal propósito.

Convém ressaltar que o turismo cria potenciais para fortalecer a identida-de territorial. de modo a contribuir para o aumento da competitividade da economia e cultura locais ou regionais, num contexto de mundialização dos mercados de bens e, com otimismo. Ele poderá ser a chave para o vi-gor de laços territoriais; uma vez que os Kalunga consigam terem autono-mia sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organização social e sua cultura.

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5 Essetermoequivaleàturistificação,processoquejádiscutiemtextosanteriores.

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KALUNGA:o difícil trajeto pela posse da terra

Wilma Melhorim Amorim

1 - Introdução

O artigo trata da situação fundiária do território ocupado por rema-nescentes quilombolas Kalunga na região nordeste do Estado de Goiás. Visa discutir a situação de conflitos envolvendo questões ligadas à posse e uso da terra. Tais conflitos são configurados pelo processo de inva-sões, grilagens e pela dificuldade do cumprimento do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição em vigor, que garante aos remanescentes quilombolas o direito sobre o território que ocupam.

Um exemplo dessas dificuldades aparece no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3.239 que se encontra em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação foi impetrada pelo Partido da Frente Liberal (PFL) e tenta impugnar a efetivação do artigo 68 da Constituição de 19881 se opondo entre outros, ao critério de identifica-ção dos remanescentes de quilombos pela autodefinição.

1 Franco (2012) desenvolve pesquisa e faz uma análise jurídica da constituição de 1988, da ADI n. 3.239

e do sistema de grilagens referentes às terras de remanescentes quilombolas focando as comunidades

Kalunga no contexto.

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O território em questão é hoje reconhecido como ‘Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga’ e se organiza mediante alguns núcleos que abrigam vários povoados. Marinho (2008) fala em quatro núcleos princi-pais: Ribeirão dos Bois, Vão de Almas, Vão do Moleque e Engenho II. A par-tir de dados da SEPPIR (2004), destacamos alguns dos povoados que se dis-tribuem pelos núcleos Kalunga: Sucuriú, Riachão, Contenda, Barra, Areia, Olho D’agua, Tinguizal, Vão de Almas, Mochila, Congonha, Ema, Maiadinha, Morro, Choco, Ribeirão, Sicury, Soledad, Funil, Prata, Capela, Maquiné, Engenho II e Diadema.

Foram nestes espaços que os povos Kalunga territorializaram e desenvol-veram ações de resistência frente aqueles que buscam privá-los do acesso ao território ancestral.

A insegurança jurídica aliada à violência, inclusive física, a que são subme-tidos os povos Kalunga são fatores que dificultam o desenvolvimento terri-torial e afetam negativamente a qualidade de vida dessas pessoas.

O método de apreensão usado para estudo das comunidades Kalunga foi fenomenológico. Procuramos unir as bases teóricas e empíricas com a va-lorização dos sujeitos da pesquisa; para tanto, reconhecemos na pesquisa qualitativa a oportunidade de compreender os sujeitos envolvidos, além de valorizar os aspectos descritivos e as percepções pessoais de tais sujeitos e, partindo daí, avaliar o contexto em que se desenvolve seu modo de vida.

Embora destaquemos a importância da fonte documental e aporte teórico atribuimos ao trabalho de campo a importância maior e mais significativa nessa produção. Os trabalhos de campo levados a efeito no local iniciaram em 2009 no âmbito de dois projetos de pesquisas2 e prosseguiram pelos três anos subsequentes. No período, desenvolvemos, também, pesquisas para nossa tese. Parte do quarto capítulo da referida tese serviu como sub-sidio para o artigo aqui apresentado3.

2 Projeto de Pesquisa “Apropriação do Território e Dinâmicas Sócio Ambientais no Cerrado: biodiversida-

de e saberes locais (BIOTEK)” e projeto de pesquisa e extensão “Troca de Saberes no Cerrado: ecologia,

valorização dos quintais, segurança alimentar e cidadania nas comunidades Kalunga em Terezina de

Goiás”. Ambos foram coordenados pela professora Maria Geralda de Almeida.

3 Tese defendida em março de 2014 com o título: “Kalunga” Identidades Territoriais de Um Gênero de Vida

em transição nas Terras do Nordeste Goiano”.

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KALUNGA

2 - O negro e a terra

A história do homem pobre na relação com a terra no Brasil é de exclu-são, violência e abandono. Esta situação se faz presente desde os primeiros momentos da colonização e vem sendo reproduzida, entre outras, pelas políticas e legislações fundiárias que foram legitimadas nos vários momen-tos históricos.

Neste contexto, chama a atenção a questão dos negros que historicamente foram excluídos de qualquer possibilidade de acesso jurídico à terra.

O período escravista e pós-escravista no Brasil se caracterizou por uma di-versidade de situações decorrentes da reorganização da economia de base agrária. E não se pode falar em história agrária do país sem dimensionar a situação do negro, quer na sua condição de escravo, de aquilombado, li-berto ou como sujeito de direito.

A visão do negro como sujeito de direito surge a partir da Constituição de 1988 quando o governo incorpora, como instrumento legal, o concei-to de povos e comunidades tradicionais. A partir de então, o termo ganha dimensão política com a ressemantização das antigas ‘terras de uso co-mum’4, a exemplo das terras de preto, para a denominação jurídica de ‘ter-ras tradicionalmente ocupadas’.

É assim que, por meio da denominação de terras tradicionalmente ocu-padas, buscou-se aproximar as diferentes situações fundiárias do Brasil e inseri-las no contexto das lutas territoriais atuais. Entende-se, então, que a contemporaneidade abriga um novo padrão de relacionamento entre os setores sociopolíticos, econômicos e os povos tradicionais. Nestes pon-tos as mudanças são significativas e se manifestam principalmente naquilo que diz respeito às questões ligadas à posse do território.

Existe certa unanimidade entre vários autores, a exemplo de Almeida (2008) e Leite (2000), de que o elemento impulsionador desta nova realidade são

4 Essamodalidadedeusodaterra,queémantidaàmargemdaaçãooficial,prescindedafiguradepro-

priedade privada individual. Foca nas formas de apropriação familiar cujas normas são regidas pelos

membros do mesmo grupo, com usufruto comum dos recursos naturais fundamentados na tradição e

memória coletiva.

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os movimentos sociais contemporâneos, como os representados pelos re-manescentes quilombolas. Tais movimentos, embora tenham origem his-tórica, consolidam-se fora do âmbito tradicional do controle estatal e têm como marco a Constituição de 1988.

A afirmativa dá sentido à ideia de Alfredo Wagner Berno de Almeida quan-do este diz que a noção de tradicional “[...] não se reduz à história e incor-pora as identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobili-zação continuada, assinalando que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização.” (ALMEIDA, 2004, p. 10).

Entende-se, então, que a contemporaneidade abriga um novo padrão de relacionamento entre os setores sociopolíticos, econômicos e os povos tradicionais. Nestes pontos, as mudanças são significativas e se manifes-tam principalmente naquilo que diz respeito às questões ligadas à posse do território. È nesse contexto que os Kalunga se colocam como remanescen-tes quilombolas frente à demanda pelas terras que tradicionalmente ocu-pam, fazendo frente a um passado de exclusão e desrespeito.

3 - A terra era de todos, depois veio a cerca

Para os povos Kalunga, o direito ao território se firma, na maioria das ve-zes, fora da titulação cartorial. Estas pessoas reconhecem o seu direito so-bre o território com base em uma ocupação contínua e secular, por terem recebido as terras de seus antepassados; bem como por estabelecer uma relação histórica de pertencimento e por nela trabalhar e construir um modo de vida particular.

É este mesmo território que nas últimas décadas passou a ser objeto de cobiça, fruto dos diversos interesses econômicos, dos quais se destacam atores como políticos, fazendeiros criadores de gado e empresários, além da especulação imobiliária. Esta cobiça se manifesta através de grilagens e muitas outras formas de ilicitudes.

A situação de insegurança e violência que passam os Kalunga foipor nós conferida através dos diversos depoimentos que colhemos durante os

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trabalhos de campo na região5. Muitos deles são demonstrativos das di-ficuldades e da forma conflitiva que permeiam as relações quando o que está em jogo é a posse do território. No Engenho II, um descendente de família tradicional Kalunga nos contou que, na roça plantavam de tudo, do cerrado coletavam grande parte dos produtos por eles utilizados.

A vida era muito sofrida, mas, a terra era de todos e quase não existia con-

flito até que na era de 70 veio o arame. O prefeito de Cavalcante, na época,

começou a se apossar do território e gradativamente foi estendendo as

cercas pelas terras Kalunga. Tornou-se o maior criador da região. A área

continuou sendo fechada, continuou a perseguição. As terras foi sendo

vendida. Pra todo lado foi aparecendo dono das nossa terra, fomos ficando

sem ter como respirar, proibidos de entrar no lugar que antes era nosso.

Foi muitos caso de morador que assinou, com o dedo, a venda do seu peda-

ço de chão sem saber o que estava fazendo. Uns fugiu amedrontado com as

ameaça de morte. Outros, de fora, foi chegando com documento de nossas

terras conseguidos no cartório de Cavalcante6.

Este relato nos mostra que a histórica precariedade de acesso à terra no Brasil serve perfeitamente para Goiás e, em especial, para o território Kalunga. As falas de vários habitantes moradores da região nos dão con-ta de que há algumas décadas passaram a sofrer, de forma mais intensa, o assédio de pessoas que, valendo-se de seu poder político e econômico e contando com o fato de os Kalunga não terem a posse efetiva do território procuram dele se apoderar.

A presença de fazendeiros e grileiros no lugar acabou por restringir dras-ticamente a área necessária para a sobrevivência dessas pessoas, já que di-minuiu a possibilidade de uso dos recursos naturais, incluindo a terra, fato que mudou e limitou suas oportunidades de trabalho e alimentação.

No ano de 2012 visitamos, na comunidade de Diadema, em Ribeirão dos Bois, uma família composta por uma mulher e dois homens, todos com mais de 55 anos. Moravam em uma casa de alvenaria, construída com

5 Com exceção das lideranças Kalunga que tivemos autorização para publicação de seus nomes, comprome-

temo-noscomosdemaisanãofazê-lonaíntegra.Serãoidentificadospelolugardeorigem,sexoeidade.

6 Depoimento dado por um senhor de 54 anos, morador do Engenho II. Colhido em julho de 2010.

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recursos governamentais. Esta se encontrava totalmente cercada por ara-me farpado. Foi-nos dito que os jagunços de um tal fazendeiro cercaram toda a propriedade alegando ser seu patrão o real proprietário. A partir de então não permitiram que eles plantassem, caçassem, criassem animais, pescassem e nem sequer colhessem os frutos do quintal. Estes procedi-mentos demonstram a pressão extrema para que esses moradores, sem terem como reproduzirem suas vidas, abandonem o local.

Em Ribeirão dos Bois um senhor nos relatou que foi obrigado a deixar suas terras em Vão de Almas após sofrer seguidas ameaças de morte por parte de um invasor (paulista) que alegava possuir a documentação daquelas ter-ras. Tal pessoa contou o seguinte: “[...] eles correu comigo e toda a minha família de lá, falano que aquela terra onde eu nasci e sempre vivi e onde nasceu e morreu meus criadores não era minha, eles tinha documento que provava que era deles, foi isso que eles falô” 7.

Não nos admiramos que estes invasores surjam, de uma hora pra outra, portando documentação das terras Kalunga. Em trabalho de campo, no decorrer dos anos de 2011 e 2012, visitamos o cartório de Cavalcante e ve-rificamos o estado deplorável em que o mesmo se encontrava: livros de re-gistro empoeirados, rasgados, documentos empilhados, desorganizados, falta de funcionários e outras mazelas. Indícios de fraudes apareciam por todos os lados.

Nossas observações foram confirmadas por uma advogada, funcionária do cartório, que nos afirmou que havia pouquíssimas cadeias dominiais fe-chadas, muitos documentos com informações divergentes, livros com pá-ginas arrancadas, várias pessoas requerendo a mesma área, enfim, a con-fusão era total8.

Lembramos que as desapropriações são necessárias para a titulação das terras de remanescentes quilombolas, podendo elas, serem realizadas tan-to pelo governo federal quanto pelo estadual.

7 Depoimento de um senhor de 67 anos, originário de Vão de Almase vivendo em Ribeirão dos Bois.

Colhido em julho de 2011.

8 A situação irregular do cartório de Cavalcante o colocou sob apreciação judicial (sub judice), não nos

sendo possível, assim, realizar pesquisa documental no local.

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Desconfianças os Kalunga também nutrem perante o Estado; principal-mente quanto ao seu papel de fazer cumprir a lei. Estes medos se justifi-cam frente à história de grilagem de suas terras, fato que foi muito comum em período de apenas poucas décadas e que reverbera ainda hoje, afetan-do a vida dessas pessoas.

No final de 2012 voltamos uma vez mais ao cartório de Cavalcante. Ouvimos vários depoimentos e, entre eles, o de uma pessoa que nos afirmou que a questão do reconhecimento das terras Kalunga, até o momento, mostra-se como algo sem solução.

Estamos na prensa, as terras possuem tantos registros que não temos nem

como indenizar, não saberíamos a quem pagar. Até agora poucos fazen-

deiros receberam a indenização, um dos poucos exemplos foi a fazenda

larga da Boa Vista dos Caiados. A corrupção, inclusive com a conivência

do pessoal deste cartório, foi muito grande. Hoje existem várias pessoas

requerendo a mesma área. Muitos documentos possuem informações di-

vergentes. Então eu pergunto: pagar a quem? A questão parece insolúvel9.

Durante todo o tempo que permanecemos no cartório conversando com as diversas pessoas que por ali transitavam, verificamos um desânimo mui-to grande no sentido de que um dia essa questão seja solucionada. Um dos funcionários do cartório disse que a delimitação das terras Kalunga só existe in loco, no cartório não existe nada. São mais de 20 ações tramitan-do na comarca.

Indagamos sobre uma equipe do INCRA que trabalhava no local tentando estabelecer a cadeia dominial da área. Informaram-nos que nem mesmo eles sabem o que fazer. “A desapropriação é considerada efetivada quando há acordo entre o Incra e o proprietário ou quando a respectiva ação de desapropriação é ajuizada.” (ANDRADE, 2011, p. 11).

Em entrevista a nós concedida em 2012, um funcionário do INCRA, de Brasília, reafirmou o que foi dito por nós sobre a situação do cartório de Cavalcante. Ao mesmo tempo, esclareceu que, apesar de os municípios de

9 Depoimento de uma advogada de 37 anos, funcionária do cartório de fazenda pública de Cavalcante.

Colhido em outubro de 2012.

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Teresina de Goiás e de Monte Alegre de Goiás possuírem seus próprios cartórios, Cavalcante é o município mais antigo; portanto, todos os imó-veis situados tanto em Monte Alegre quanto em Teresina de Goiás, em al-gum momento, estiveram ligados ao cartório de Cavalcante.

Conhecedores que somos da situação do cartório de Cavalcante, pode-mos melhor entender as dificuldades enfrentadas pelos funcionários do INCRA no árduo trabalho de regularização deste território, haja vista que a situação de descontrole que se encontra o referido cartório com-promete até mesmo a confiabilidade da documentação guardada sob sua responsabilidade.

Algumas lideranças Kalunga sugerem que se desconsidere tudo que já foi feito e comece a partir do zero. Entendem que esta é a única maneira possível para resolver tal situação. No momento o que podemos afirmar é que existe uma grande indefinição quanto à titulação das terras do Sítio Histórico e Patrimônio cultural Kalunga.

Esta indefinição tem sido motivo de desânimo para os Kalunga, que querem ter sua situação fundiária regularizada, para os fazendeiros, que aguardam indenizações de suas propriedades, e para os representantes de órgãos envolvidos no processo, como é o caso INCRA que, até o momento não vis-lumbrou meios legais para solucionar o problema que deveria, de uma vez por todas, encerrar as disputas na região.

Enquanto a situação não se define, é possível continuar ouvindo depoimen-tos como o que nos foi dado por um morador de Diadema, oriundo dos ser-tões de Vão de Almas. Ele contou que um parente teria vendido a parte que ocupava nas terras da família. O comprador, não se contentando com a par-te adquirida, foi estendendo as cercas sobre o restante das terras da família.

[...] naquele tempo a cerca era de pau, meu primo vendeu uma parte e eles

pegou a minha também, correu comigo de lá, tive que deixar minha roça

formadinha, eles meteram o trator, derrubô tudo. Nois ficô numa pobreza

de fazê dó10.

10 Depoimento de um senhor de 69 anos, morador de povoado de Diadema, Ribeirão dos Bois. Colhido

em julho de 2011.

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O que vemos aqui é a reprodução da situação caótica que há mais de sé-culo permeia a questão da propriedade da terra em Goiás. É isto o que de-monstra a atualidade da descrição referente à primeira metade do século XIX, quando o Estado era ainda uma província.

Quem se apossava para fazer negócio com a terra não se preocupava se um

mesmo quinhão era vendido para mais de um comprador, nem em demarcar

com segurança os limites dessas terras. Além disso, o fato de não haver me-

dição precisa das áreas gerava dúvidas e má fé. O confrontante podia avan-

çar propositadamente, ou não, sobre a parte vizinha. (SILVA, 2004, p. 120).

Neste caso específico, a legislação atual que trata da questão territorial dos remanescentes quilombolas, se permanecer inalterada e não se tor-nar letra morta, poderá amenizar este tipo tão comum de conflito. Reza a legislação que o título definitivo das terras só será concedido coletiva-mente e expedido em nome das associações quilombolas das respectivas comunidades e atestada mediante autodefinição da comunidade que será certificada.

O Presidente do INCRA realizará a titulação mediante a outorga de título

coletivo e pró-indiviso à comunidade, em nome de sua associação legal-

mente constituída, sem nenhum ônus financeiro, com obrigatória inserção

de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilida-

de, devidamente registrada no Serviço Registral da Comarca de localização

das áreas. (BRASIL, 2008, p. 18).

No entanto, mesmo que a titulação da terra contenha como cláusula a ina-lienabilidade, é possível que a propriedade seja transmitida pela associa-ção. Mas, sem divisão, ou seja, na sua totalidade, e somente mediante a sucessão por morte ou por abandono da terra por algum de seus membros. Nestes casos, a terra deverá ser retomada e redistribuída a membros da comunidade quilombola (MONTEIRO; GARCIA, 2011).

Pelo que pudemos perceber, é o grupo representado pela associação, e não o indivíduo, que deverá identificar e beneficiar os novos sujeitos de direito. Assim, o que seria contemplado nas ações seria o modo de vida coletivo. Frente ao exposto, acreditamos que a possibilidade de pessoas da comuni-dade disporem, individualmente, mesmo que de forma ilegal, de parte do território que julgam ter direito, seja mais difícil de acontecer.

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Até mesmo porque com a questão jurídica definida, passa a ser desinte-ressante a aquisição do mesmo por aventureiros. Lembramos que a maio-ria destes são indivíduos mal intencionados que ao adquirir um pedaço de terra já trazem, como no passado centenário, a intenção de estender indefinidamente as cercas sobre os territórios fronteiriços. Reafirmamos que as regularizações definitivas das terras quilombolas pleiteadas deve-rão ser formalizadas pela associação em nome do grupo.

Obedecendo tais cláusulas, foi criada, em 1999, a Associação Quilombola Kalunga (AQK), também conhecida como Associação Mãe, compos-ta por moradores do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Ela tem como princípio defender e representar o povo Kalunga e congre-ga as comunidades Kalunga nos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás. Seus representantes assim se expressam: “Esta associação é destinada a promover a defesa dos interesses de to-dos nós, os quilombolas Kalunga, e representar nossa comunidade em todas as instâncias legais e administrativas”. (ASSOCIAÇÃO QUILOMBO KALUNGA, 1999).

O território Kalunga abriga várias outras associações menores11, como as que representam localmente os Kalunga dos municípios de Cavalcante, de Teresina de Goiás e de Monte Alegre. Dentre as mais antigas citamos a Associação do Povo da Terra, criada em 1992, apontada por Talarico (2011) como sendo o embrião da associação Kalunga de hoje. Foi esta úl-tima a que deu início à luta contra o processo de injustiças e violências que há décadas vinham trazendo medo e intranquilidade aos habitantes do território.

Foram muitos os relatos que dão conta dos mais variados tipos de vio-lências: expulsão por meio de ameaças, surras, assassinatos, emboscadas sofridas pelos Kalunga, levadas a efeito por agentes públicos, fazendeiros e seus jagunços. É difícil de acreditar que em pleno século XXI, há ape-nas alguns quilômetros da capital do País, aconteçam casos como os que ocorrem com os Kalunga.

11 Abordagem detalhada obre a constituição das associações, em especial daAssociação Kalunga de

Cavalcante, poderá ser encontrada em Siqueira (2012).

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4 - O território kalunga no contexto da constituição

do sítio histórico e patrimônio cultural

Ao considerar que a constituição de uma associação é um dos passos fun-damentais para a titulação de territórios remanescentes quilombolas, re-metemo-nos à figura da professora, antropóloga e pesquisadora Mari de Nazaré Baiocchi. A pesquisadora, com sua equipe, andava por terras Kalunga desde 1981. Em artigo publicado em 1995, com o título ‘Kalunga - a sagrada terra’, a autora já chamava a atenção para as inúmeras reclamações de invasões e violências feitas pelos moradores da região e colocava a im-prescindibilidade de sua urgente demarcação.

As primeiras denúncias de invasões e grilagens teriam partido do povoa-do Kalunga de Contenda. A gravidade das denúncias serviu como alavan-ca para o que, de início, era apenas um projeto de pesquisa, o ‘Projeto Kalunga povo da terra’12, fosse ampliado, partindo para a criação de uma associação, a Associação Povo da Terra (APT). Esta tinha como propósito resgatar a memória histórica desses povos, ao propiciar, assim, suporte para a afirmação de sua identidade, para exercitar as pessoas para a li-derança fora de seu território e para “[...] o confronto com a sociedade circundante; isto é, autoridades sociais, políticas e jurídicas.” (BAIOCCHI, 1995/1996, p. 117).

Com esta pretensão, a partir de 1992 foi montado o estatuto da associação.

Para a organização da APT (1992) e montagem do seu estatuto, recorri a

estudos e levantamentos realizados em dez anos (1982-1992). A partir da

estrutura sócio-política dos Kalunga e contando com a colaboração de

representantes dos cinco “municípios” e de membros do Projeto Kalunga

Povo da Terra, realizo a redação final do estatuto que, após ser discuti-

do em reuniões realizadas no Sucuri (junho de 1992) com a presença do

Ibama-Go, CNPT, Projeto Povo da Terra Kalunga-UFG, entre outros, é

aprovado e publicado (Diário Oficial-17/07/1992), outorgado aos Kalunga

representação jurídica. (BAIOCCHI, 1995/1996, p. 117).

12 O Projeto Kalunga - povo da terra teve a referida antropóloga como coordenadora e se estendeu entre

os anos de 1981 e 1995.

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Como vimos anteriormente, esta associação teria dado início ao que hoje se transformou na Associação Quilombola Kalunga (AQK), que atua à frente de todo o processo de titulação do território, além de trabalhar na defesa dos demais interesses desta comunidade tradicional. No decorrer deste processo foi feito também o primeiro mapeamento da região.

A partir de dados de campo, de folhas aerofotogramétricas de uma carta

geográfica do Estado de Goiás, e após 45 dias percorrendo a região (1982-

1983) a pé ou usando o muar, conseguimos organizar um mapa da região

dos Kalunga com as localidades conhecidas na época. O mapa foi entre-

gue ao Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago) motivando

a primeira titulação de terras, na gestão Aldo Asevedo Soares (1983-1988).

(BAIOCCHI, 2006, p. 31).

Segundo Baiocchi (1995/1996), o mesmo mapa teria subsidiado a lei que transforma a área Kalunga em Sítio Histórico e Patrimônio Cultural. Como nos informa esta autora, a primeira titulação coletiva para o domínio das terras saiu em 1985 e abrangeu a margem direita do Rio Paranã. No en-tanto, apesar das providências tomadas, estes remanescentes quilombo-las, continuaram perdendo territórios ancestrais, principalmente aqueles usados para o manejo do gado em épocas de seca.

Como conta a citada autora, a partir dos anos de 1970 e de 1974 os gri-leiros já penetravam o Vão do Moleque e depois o Vão de Almas. Em 1978 já eram presença marcante em Ribeirão dos Bois (BAIOCCHI, 1995,1996). A partir de então, os relatos de violência se multiplicaram não só espa-cialmente mais ganharam contornos dramáticos, envolvendo assassina-tos, queimas de ranchos, destruição de roças, sevícias e outras muitas atrocidades.

Foi neste contexto que, em 1991 foi decretada e sancionada pela Assem-bleia Legislativa do Estado de Goiás, a lei que constitui como patrimônio cultural e sítio de valor histórico as áreas de terras nos vãos das serras do Moleque, Vão de Almas, Córrego Ribeirão dos Bois e Contenda Kalunga, conforme estabelece “[...] o art. 216 da Constituição Federal e o art. 163, itens I e IV, § 2º da Constituição do Estado de Goiás.” (GOIÁS, 1991).

As reações a esta lei junto às pessoas que de alguma forma foram por ela atingidas podem ser melhores avaliadas a partir da descrição de uma

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reunião realizada para apresentação da referida lei em Ribeirão dos Bois, município de Teresina de Goiás, em julho de 199113.

Desta, destacamos passagens ilustrativas sobre o ‘clima’ da reunião e o ponto de vista dos diversos atores sociais ali presentes. Para dar uma ideia geral de qual era a situação de conflito na região no momento em que a re-ferida lei foi apresentada, destacamos algumas das muitas questões envol-vendo questionamentos e depoimentos manifestados neste evento.

A reunião iniciou-se com a leitura da Lei 11. 409, feita pelo presidente do Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago). A seguir, os demais representantes se manifestaram e, em clima tenso, iniciaram-se os deba-tes, com perguntas dirigidas aos componentes da mesa. Aqui ressaltamos algumas por serem elucidativas da situação na região.

Um dos primeiros a fazer uso da palavra foi um representante dos fazen-deiros, que afirmou estar ali apenas para averiguar como teriam sido fei-tas as divisas das terras que constavam no mapa feito pela equipe da Mari Baiocchi. Segundo ele, parecia haver distorções e pedia aos ‘donos do pro-jeto’ que olhassem com carinho, com cuidado para não prejudicar os fa-zendeiros, “[...] pois estamos decididos a não sair das terras, vamos até as últimas circunstâncias”. Lembramos aqui que o referido mapa teria servido de subsídio para à demarcação da área do sítio.

Grande parte dos questionamentos e da reclamação de políticos e fazen-deiros não se deu, pelo menos abertamente, contrária a instalação do sítio, mas sim à extensão do mesmo, que julgavam exageradas. Durante a referi-da reunião, algumas pessoas, principalmente políticos da região, tentavam dissuadir os presentes, em especial os Kalunga, da luta por tal delimitação.

Usavam, para tanto, argumentos às vezes inusitados: afirmavam que se os fazendeiros fossem embora eles não teriam mais caronas, não teriam como carregar seus fardos de farinha para a cidade, não encontrariam mais tra-balho, na seca não teriam a quem vender sua mão de obra e até que as pre-feituras deixariam de investir em estradas e pontes.

13 A referida reunião aparece como anexo na dissertação de Martins (1997). A mesma foi por nós discutida

com uma líder Kalunga e com uma vereadora em Teresina de Goiás que participaram da referida reunião.

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Ao mesmo tempo, enalteciam o papel dos fazendeiros, a quem, em alguns momentos, denominavam de ‘desbravadores da terra’. Em outros momen-tos incitavam os Kalunga a buscar ajuda de toda ordem, como saúde, edu-cação, morada e outros, junto ao Estado.

Parece que estou vendo o senhor Santiago aí. Cadê ele que foi enforcado e

interrado numa cova de bananeira, se lembra dessa situação. Vocês tem que

ser respeitados terem as suas posses, com documentos definitivos [...] quem

não tem a terra tem que pegar um pedaço de terra para si é isso que a gente

pretende, só que tem uma coisa, [...] o tamanho da área, vocês vão inviabilizar

o município, vão inviabilizar a própria vida de vocês [...]. O que a gente quer é

que cada um tenha seu pedaço pequeninho de terra. (MARTINS, 1997, p. 119).

Do fragmento do texto citado, uma única frase exprime toda uma intenção da fala, ‘pedaço pequeninho de terra’. Era tudo o que achava que os Kalunga podiam almejar. Mas, a legislação determina que o direito às terras tradi-cionalmente ocupadas vai além da moradia; abrange, também, todo o es-paço de vivência, o que inclui áreas destinadas às atividades econômicas, caminhos e percursos, uso dos recursos naturais, realização dos cultos re-ligiosos e festividades, entre outras.

Ameaças, veladas ou não, nota-se que uma das preocupações do prefeito, que também perpassa por outros participantes, consistia no fato de que o governo não teria verba suficiente para o pagamento, em dinheiro e a pre-ço de mercado, aliás, como determina a própria legislação, para as indeni-zações previstas.

Alguns setores da sociedade, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), são contrários às indenizações dos fazendeiros em terras Kalunga. Alegam que aqueles que lá estão, quando fizeram as ocupações, sabiam se tratar de território Kalunga. (ARCHIVIO AFROAMERICA, 2005).

Políticos da região, que se autodenominam autoridades maiores dos mu-nicípios, e fazendeiros ressentem-se, ainda, do fato de as demarcações te-rem sido feitas à sua revelia. Mas grande parte dos embates se deu mesmo em relação à extensão das terras delimitadas. De todos que se pronuncia-ram na ocasião, destacamos a fala de um dos representantes dos fazendei-ros da região. Este, de nome Nonato, teve a fala mais agressiva e ameaça-dora, hostilizando principalmente a professora Mari Baiocchi:

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A Dra. aí, que não sei nem o nome dela direito [...] espero que ela dá ao pes-

soal que precisa, o que é dela, não o que é dos outros. [...] ela nunca foi na

minha casa para saber o quanto eu tô gastando. Eu pergunto à professora,

a senhora sabe quanto custa uma carreta de pó de calcário? A senhora não

sabe o que é isso né [...] não é de pôr no rosto não [...] eu não quero ofender

vocês, mas olhe o que tô dizendo. Vocês estão assinando às vezes uma coi-

sa que está levando vocês para o perigo. Vocês sabem o que é essa mulher,

no meu modo de pensar ela é uma construtora de assassinatos, ela tá arru-

mando uma guerra para nós. (MARTINS, 1997, p. 108-109).

Esta pessoa alegava, em sua fala, que a professora deveria buscar ajuda para os Kalunga junto aos governos, aos ministérios. Estes é que deveriam levar saúde, educação e cursos profissionalizantes. Voltando-se para os Kalunga, afirmou que eles não têm condição de cuidar das terras por se-rem os solos pobres, necessitando de correção.

Após estas colocações outros participantes do evento se desculparam com a professora, ao atribuir a agressividade ao nervosismo do fazendeiro. Uma rápida análise do contexto nos dá uma ideia das dificuldades e até dos ris-cos que a referida professora e sua equipe enfrentaram para ajudar estas pessoas. Fato que justifica as referências respeitosas que ouvimos sempre que o nome da mesma fora pronunciado.

Ainda se referindo às falas ocorridas na reunião, um advogado se mani-festou pedindo ao representante do IDAGO e da Procuradoria Geral da República que definissem o que é patrimônio histórico, o que é desapro-priação, o que é reforma agrária e porque não foi feito uma reunião com os fazendeiros e prefeitos antes da publicação da lei.

Segundo ele, estaria havendo uma confusão entre patrimônio histórico, que é o lugar onde estão implantados os negros Kalunga, e o lugar em que estão trabalhando os fazendeiros. Indaga se o que está sendo feito seria uma desapropriação ou seria a criação de uma reserva agrária que, no se-gundo caso, não seria competência do Estado e sim do governo federal.

Nota-se que a discriminação está fortemente presente no próprio ques-tionamento feito pelo advogado quando ele se refere aos negros como es-tando ‘implantados no lugar’, enquanto os fazendeiros estão ali ‘trabalhan-do’. Alega estar existindo uma intercitação na elaboração da lei, pois, se os

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fazendeiros trabalham na área, ela é produtiva, ela deixa de ser patrimônio histórico. Percebe-se que o advogado tem em mente as diretrizes usadas para efeitos da reforma agrária e não aquelas específicas para os remanes-centes de quilombolas.

As respostas às arguições desta pessoa foram no sentido de deixar claro que os fazendeiros ainda teriam tempo e oportunidade de manifestar, já que a legislação poderia ser alterada, além de que outras reuniões envol-vendo todos os interessados iriam acontecer. O procurador da República usou da palavra para esclarecer que a Constituição Federal estabelece que a identidade histórica e cultural dos povos com reminiscência de quilom-bos, como os Kalunga, tem que ser preservada.

Frisou, no entanto, que o Estado não tomaria terra de ninguém sem que eles fossem indenizados através do pagamento em dinheiro e a preço de mercado. As respostas dadas pelos agentes públicos denotava cautela ao tratar o tema. No contexto, fica evidente o silêncio dos Kalunga, que du-rante quase toda a reunião não ousaram se manifestar livremente, mos-trando, assim, sua fragilidade diante da situação. Prosseguindo, o procura-dor respondeu que patrimônio cultural diz respeito ao conjunto da cultura de um povo, às suas realizações.

Já a desapropriação é, segundo o agente público, um meio através do qual o poder público, quando precisa fazer uma obra que é de interesse de to-dos, desapropria com finalidade social, procedendo à indenização para quem de direito for. Sobre a pergunta referente à indenização e sobre re-forma agrária, a resposta foi dada pelo representante do IDAGO e veio da seguinte forma:

Eu acho que não deveria misturar a questão não viu. A palavra desapro-

priação é correlacionada com a Reforma Agrária porque quando se pre-

tende obter uma área que não cumpre a sua função social especificada na

Constituição Federal, então há uma desapropriação [...], mas o que esta-

mos falando é de indenização em função de uma desapropriação, mas com

a finalidade de criar um patrimônio cultural-histórico e não para fins de

Reforma Agrária. (Martins, 1997, p. 129).

O representante do IDAGO completou sua fala afirmando querer deixar muito claro que o que estava acontecendo ali não se tratava de reforma

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agrária. Na sequência das perguntas apareceu, uma vez mais, o questiona-mento sobre a razão de terem feito uma lei antes de fazer uma reunião com todos. Pergunta esta que, além de recorrente, era sempre dirigida à pro-fessora Mari Baiocchi que, por sua vez, deu a seguinte resposta: “A ques-tão não é minha, eu não sou governo, não sou IDAGO, não sou Assembleia Legislativa. Não sou política, sou professora, sou antropóloga que apren-deu a conhecer os Kalunga.” (MARTINS, 1997, p. 32).

Baiocchi continuou afirmando que os Kalunga não são apenas mão de obra barata, que eles possuem uma cultura muito original toda relacionada com o agrário, com seus ritos e que têm direito às suas terras. Falou das denún-cias que, há tempos, vinha ouvindo dos Kalunga, gente com bala no corpo, outros arranchados na beira do asfalto, muitos não podiam mais tirar sua sobrevivência da terra, sobrando a eles apenas a opção de trabalhar com conserto de cercas nas fazendas, não ganhando o suficiente para matar a fome dos filhos.

Prosseguiu fazendo um apelo aos fazendeiros no sentido de que enquan-to esta questão não fosse resolvida definitivamente, que eles deixassem os Kalunga plantarem suas roças. Por fim, lançou outro apelo, este aos Kalunga, pedindo a eles que, se pronunciassem. Em resposta a este apelo-várias pessoas criam coragem e passaram a dar seus depoimentos. Estes, não raro eram complementados por observações da antropóloga, como ilustra o texto abaixo.

- Kalunga: eu estava trabalhando, quando me pegaram e derrubaram, tava

conversando com outro aqui particular e o outro chegou esquisitado e

derrubou eu p/ lá. Fui pegado pelo assento e socado como mão de pilão,

não é? ai eu larguei as coisas p/ lá e fiquei adoentado, não é. Então trabalho

p/ um, trabalho p/ outro mesmo sem aguentar, para poder conservar por-

que são 6 filhos que eu tenho. É o que quero falar.

- Professora: Fizeram dele mão de pilão, viraram para baixo e tiraram san-

gue do ouvido dele. Só isso que aconteceu. (MARTINS, 1997, p. 131).

Outras vezes foi estabelecido um diálogo entre a professora Mari Baiocchi e os depoentes, em que a antropóloga lançava perguntas, estimulando-os a falar.

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- Kalunga: Trabalho na fazenda Ozena. Então ele tá correndo comigo por

que diz que já sou fraco, estou com 75 anos. Esse pouco que eu fiz tá lá na

roça, que eu panhe ele de qualquer jeito daqui p/ mês de agosto. Se não

apanhar ele vai botar fogo. Tem umas mandioquinhas o que dá para apro-

veitar eu aproveito e a outra é p/ arrancar e jogar em cima da terra é p/

mim morrer de fome.

- Professora: quem é que está fazendo isso?

- Kalunga: é o Galei que é dono.

-Professora: quanto tempo o senhor mora em Diadema?

- Kalunga: eu tô aqui desde 51 e tô aqui até hoje.

- Professora: e chamava sempre Diadema?

- Kalunga: Não professora.

- Professora: e como era o nome?

- Kalunga: Ribeirão dos Bois. Professora, esse é que é o problema, a articu-

lação foi feita mudando o nome. (MARTINS, 1997, p. 132).

Mudaram o nome da localidade para em seguida expulsar os moradores e registrarem, em seus próprios nomes, as terras tradicionalmente ocu-padas pelos Kalunga. Esta foi mais uma das estratégias usadas pelos inva-sores para se apossarem do território. Como podemos perceber, também nestes sertões, como nos de Guimarães Rosa, viver é muito perigoso.

Foi nos relatado, em diversas ocasiões, que as providencias até aqui to-madas já serviram para diminuir bastante os conflitos locais. No entanto, vários outros problemas persistem. Na atualidade, face às dificuldades de regulamentação, a lei não tem como ser aplicada na sua plenitude.

Como resultado, agora a tentativa de apossamento do local, por parte de estranhos, se dá visando usufruir do territórioenquanto a situação não se defina e, sobretudo, na esperança de receber algumas indenizações pelas poucas benfeitorias ali realizadas. A isto se somam os impasses decorrentes

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dos muitos entraves apresentados para se chegar à titulação das terras, in-cluindo,como nos lembra Marinho (2013), manobras políticas, desvios de verbas, concessão de lavras, projeto de construção de hidrelétricas.

Hoje, os Kalunga vivem entre conquistas importantes, embora muitas delas parciais, e o temor causado pelas incertezas trazidas pelo fato de não te-rem, pelo menos na maioria dos casos, a titulação definitiva de suas terras.

Conclusão

A luta dos remanescentes quilombolas pela posse definitiva do território faz parte de um processo de exclusão que se confunde com a história do Brasil. Esses territórios de exclusão se expressavam, de acordo com as di-ferentes formações históricas, numa diversidade de tipos de existências coletivas que, no caso dos negros, deram origem às denominadas terras de preto.

Estes, até recentemente, não possuíam suporte jurídico nem seus ocupan-tes eram reconhecidos como grupos identitários. Tal suporte e reconhe-cimento principiaram com o texto constitucional de 1988, no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (ADCT), e visa garantir a preservação de valores históricos e culturais de remanescentes quilombolas, tidos como contribuintes no processo de for-mação histórica brasileira.

O texto constitucional, por meio de seus dispositivos infraconstitucionais − constituições estaduais, legislações municipais e convênios internacio-nais, veio anunciar um período de mudanças cujo signo se funda na trans-formação das antigas ‘terras de preto’ em sua equivalência atual, as chama-das ‘terras tradicionalmente ocupadas’.

A lógica agrária, agora reestruturada, considera o caráter pluriétnico de populações, portadoras de gêneros de vida e identidades diferenciadas. Estas encontraram, na possibilidade jurídica de autorreconhecimento, o alicerce para o fortalecimento organizacional dos movimentos sociais que, apoiados por parcela das organizações governamentais, não-governamen-tais, instituições associativas dentre outros, espaços de atuação política.

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Mas, foi a emergência de uma consciência negra, como parte de um pro-cesso de organização política que se intensificou nas últimas décadas, a principal responsável pela maior visibilidade e intensidade das lutas por direitos e cidadania.

Os remanescentes quilombolas, como os Kalunga têm a territorialidade como lócus material e simbólico, no qual se assenta sua visão de mundo. Assim sendo, faz-se necessário, por parte de todos os atores envolvidos, e em especial, dos próprios remanescentes de quilombos, uma conscienti-zação das suas identidades, de direitos básicos e de que constituem hoje uma importante força política.

Tal força poderá ser usada a seu favor mediante uma resistência firme, organizada, atuante e mobilizadora, que lhes dará visibilidade como sujei-tos de direito, de conhecimento e, sobretudo, de voto. Estes fatores po-derão fazer frente às forças contrárias e poderosas que ainda ameaçam as conquistas históricas conseguidas a duras penas em seu favor e das futu-ras gerações. Conquistas estas que vão além da posse do território, alcan-çando também o reconhecimento como grupo étnico específico, que hoje constitui uma importante força política em favor da busca por justiça e direitos, que são, antes de tudo, direitos humanos.

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A ODISSÉIA JURÍDICA RUMO À PROTEÇÃO DO TERRITÓRIO KALUNGA

Rangel Donizete FrancoMaria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

1 - Introdução

Historicamente, os espaços territoriais em que viviam indígenas ou qui-lombolas foram e ainda são sistematicamente violados. Exemplos não fal-tam, bastando se pensar no genocídio dos povos indígenas e na sujeição dos africanose seus descendentes à escravidão.

Em perspectiva histórica, com Mir (2004, p. 71), de se recordar que “o terri-tório do país foi recortado, primeiro para fins de colonização e, posterior-mente, na independência e abolição, para impedir que índios, africanos e mestiços se aperfeiçoassem e formassem um novo mapa étnico e geográfi-co, do qual essas populações passassem a fazer parte”.

É com as mudanças no processo histórico que aparecem ou se constroem instrumentos que tentam protegê-lo da reprodução dessa engrenagem perversa de apropriação territorial desigual e excludente, montada histo-ricamente, em detrimento de grupos minoritários, como o são as comuni-dades quilombolas no Brasil, inclusive no Direito, que aqui, neste artigo, é compreendidocomo instrumento normativo de transformação social e não de manutenção do status quo.

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É nesse contexto que se enfrentará a problemática-objeto deste artigo, ex-pressa pelas seguintes questões: como proteger o patrimônio cultural dos kalungas? Basta a promulgação da lei instituindo um Sítio Histórico na re-gião? Ou seria necessário o uso da desapropriação para garantir à comuni-dade o pleno gozo do direito ao território?

A importância do tema da proteção do território kalunga é notória, vez que traz a público como o Direito, notadamente o agrário, pode ser uti-lizado para a proteção das comunidades tradicionais no Brasil, nelas in-clusas as comunidades quilombolas, com demanda concreta de acesso e permanência ao/no território como mecanismo de concreção de direitos fundamentais.

No Brasil, é muito recente a preocupação normativa com a proteção de es-paços territoriais para quilombolas. Divisa-se, na verdade, na Constituição Federal de 1988, essa pretensão de cunho normativo. O desafio que con-tinua é desenvolver ou aperfeiçoar os meios existentes para garantir as condições de aplicação da previsão formal nos textos jurídicos de direitos territoriais e culturais quilombolas.

Nessa tarefa, ao Direito se atribui um papel fundamental enquanto discur-so linguístico, consistente em evitar o efetivo esquecimento dessas comu-nidades minoritárias, que opera “por apagamento dos rastros” (RICOEUR, 2007, p. 3), conceito que permite compreender a situação de exclusão das comunidades quilombolas do tratamento como sujeitos de direitos.

É nesse campo da juridicidade que se vislumbra o delineamento de uma teoria da proteção dos bens culturais, a partir do pensamento de Souza Filho (2009, p. 20), que configuraa base teórica de reflexão sobre como efetivar a proteção do patrimônio cultural, a exemplo do Sítio Histórico Kalunga.

2 - Uma compreensão jurídica

ressemantizada do patrimônio cultural

Pensar a questão do Sítio Histórico Kalunga pressupõe ter uma noção so-bre a configuração da ideia de patrimônio cultural no Direito.

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Atualmente, no campo jurídico, a noção de patrimônio cultural não se res-tringe ao conjunto de bens tombados, isto é, inscritos separada ou agru-padamente num dos quatro Livros do Tombo (Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Histórico; das Belas Artes; das Artes Aplicadas), tal como tra-dicionalmente disposto no art. 1º, §1º, combinado com o art. 4º do Decreto-Lei n. 25/37.

Para Souza Filho (2009, p. 47), o patrimônio cultural refere-se ao “[...] con-junto de bens materiais e imateriais que garantem ou revelam uma cultura [...]” e é compreendido no âmbito jurídico como tradutor dos chamados “direitos culturais”.

A dificuldade que se apresenta, nesse conceito, é a diferença entre os bens materiais e os imateriais.

Diferenciando-os, e, de consequência, superando a dificuldade aparente, Souza Filho (2009, p. 50) anota que o Direito sempre entendeu como bens materiais “[...] as coisas concretas, registráveis ou palpáveis ou documentá-veis [...]”. Já os bens intangíveis “[...] são manifestações de arte, formas e pro-cessos de conhecimento, hábitos, usos, ritmos, danças, processos de trans-formação e aproveitamento de alimentos [...]” (SOUZA FILHO, 2009, p. 50).

Em linha de pensamento semelhante, de se destacar a construção teórica de Marchesan (2007, p. 49-50), para quem o patrimônio cultural traduz

o conjunto de bens, práticas sociais, criações, materiais ou imateriais de

determinada nação e que, por sua peculiar condição de estabelecer diá-

logos temporais e espaciais relacionados àquela cultura, servindo de tes-

temunho e de referência às gerações presentes e futuras, constitui valor

de pertença pública, merecedor de proteção jurídica e fática por parte do

Estado.

Essas apreensões teóricas desenvolvidas no Direito estão conforme a pres-crição constitucional acerca da extensão semântica do conceito de patri-mônio cultural, incluindo as diversas formas “de criar, fazer e viver” (art. 216, II da Constituição Federal de 1988).

No caso, o patrimônio cultural engloba tudo aquilo pertinente à cultura de um povo ou de vários povos, como uma das bases estruturantes da vida

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humana, no passado, no presente e no futuro e nas suas mais diferentes for-mas de atribuição de sentidos à esta, desde as festas e cerimônias religiosas, passando pelas culinárias, até a construção cultural de regras e princípios jurídicos para a fixação de parâmetros de condutas desejáveis, na estrutu-ração dos convívios humanos os mais diferentes possíveis. Em assim sendo, o próprio Direito enquanto ordem jurídica integra o patrimônio cultural.

Em termos jurídicos estritos, enquanto dimensão do meio ambiente (art. 225 e seguintes da Constituição Federal de 1988), o patrimônio cultural está sob a égide da cláusula do dever constitucionalde proteção, que se expres-sa pelo preceito inscrito no art. 216, §1º, da Constituição Federal de 1988.

Nessa linha, com Sarlet (2011, p. 229), seu regime jurídico fixa aos Poderes Públicos (em todas as esferas e em todos os seus tipos) e aos particulares (sejam pessoas naturais ou jurídicas) deveres fundamentais prestacionais.

E tal fato autoriza a afastar, quando incidente sobre o direito de proprie-dade, o individualismo liberal exacerbado traduzido nas faculdades indivi-duais tradicionalmente asseguradas pela condição jurídica de proprietário (usar, fruir e dispor – art. 1.228 do Código Civil de 2002), em prol de um in-teresse/direito difuso, de terceira dimensão, expresso pelo dever de pro-teção do patrimônio cultural – aqui tida como uma obrigação de fazer -, que confere contornos a essas faculdades dominiais, constituindolimite ao exercício concreto delas, na linha de análise reconstrutiva da teoria geral dos direitos reais vista por Gatti (1984, p. 272 e 275).

Um conceito assim, de significação ampla, apresenta uma vantagem evi-dente, que é a de permitir o aumento do leque de possibilidades de prote-ção de bens que se qualificam pelas valorações culturais, destacando-se as formas jurídicas do tombamento e da desapropriação.

3 - O tombamento do Sítio Histórico

e Patrimônio Cultural Kalunga

O instituto do tombamento se manifestou primariamente no Direito bra-sileiro pelo Decreto-Lei n.º 25/37 e figura na Constituição Federal de 1988 (art. 216, §1º) como um dos instrumentos de proteção do patrimônio

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cultural. Texto constitucional este que hoje é parâmetro de conformação daquele texto primeiro no tempo, o que implica que validade do Decreto-Lei depende de sua conformidade à Constituição Federal.

Desde a perspectiva de Marchesan (2007, p. 226), vislumbra-se o tomba-mento como traduzindo um ato administrativo dotado de eficácias múlti-plas: declaratória (pela qual a agregação de valor cultural a um bem inde-pende de qualquer pronunciamento prévio do Poder Público), constitutiva (pela qual a integração do bem ao patrimônio cultural só se daria com o efetivo tombamento) e mandamental (pela determinação de registro do bem no Livro do Tombo respectivo).

Tomando como referência a caracterização que Souza Filho (2009, p. 35-43) faz dos bens culturais, pode-se qualificar juridicamente o Sítio Histórico Kalunga como bem imóvel, de titularidade eminentemente pri-vada (por conta de boa parte dos imóveis rurais nele situados estarem sob domínio ou posse privada), infungível, inconsumível, principal (com as li-mitações do entorno configurando o acessório), não estando fora de co-mércio; salvo se forem de domínio público, emboraa alienação sujeite-se a restrições, ante a positivação do dever da preservação do patrimônio cultural.

Nessa linha de compreensão, os kalungas receberam menção específica no Ato das Disposições Transitórias daConstituição do Estado de Goiás, assim:

Art. 16 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o

Estado emitir-lhes os respectivos títulos.

§ 1º - Lei complementar criará a reserva Calunga, localizada nos Municípios

de Cavalcante e Monte Alegre, nos vãos das Serras da Contenda, das Almas

e do Moleque.

§ 2º - A delimitação da reserva será feita, ouvida uma comissão com-

posta de oito autoridades no assunto, sendo uma do movimento negro,

duas da comunidade Calunga, duas do órgão de desenvolvimento agrário

do Estado, uma da Universidade Católica de Goiás, uma da Universidade

Federal de Goiás e uma do Comitê Calunga (GOIÁS, 1989).

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A partir daí, e ainda com base no art. 216, §5º, da Constituição Federal de 1988 e no art. 163, §2º, I e IV da Constituição do Estado de Goiás, foi pro-mulgada a LeiEstadual n.º 11.409, de 21 de janeiro de 1991, constituindo-se o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

A Lei Complementar a que se refere o §1º, do artigo 16, supra, foi sanciona-da pelo Governador do Estado em 05 de janeiro de 1996, dispondo sobre o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Ela entrou em vigor na data de sua publicação, vale dizer, em 10 de janeiro de 1996, retroagindo os seus efeitos a 28 de janeiro de 1991; quando fora publicada a Lei Estadual n.º 11.409, de 21 de janeiro de 1991; que declarou constituir patrimônio cul-tural e sítio de valor histórico a área de terras ocupada pelos Kalungas, si-tuada nos vãos das Serras do Moleque, de Almas, da Contenda-Kalunga e Córrego Ribeirão dos Bois, nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás.

Essa Lei tem muita relevância para o problema de que trata o presente es-crito, por dispor que

[...] Art. 4º - As glebas de terras compreendidas na área delimitada no pará-

grafo único do art. 1º que não pertencerem às pessoas mencionadas no art.

2º serão desapropriadas e, em seguida, emitidos os títulos definitivos em

favor dos habitantes do sítio histórico com cláusula de inalienabilidade vi-

talícia, só transferíveis por sucessão hereditária. Parágrafo único - Quanto

às posses, observar-se-á o seguinte:

I - se estiverem as glebas ocupadas pelas pessoas mencionadas no art. 2º,

serão elas regularizadas em favor destas e expedidos os respectivos títulos;

II - as glebas de terras devolutas, ocupadas a qualquer título por pessoas

que não se enquadrem na definição do art. 2º, serão arrecadadas e desocu-

padas, depois de indenizados os seus ocupantes pelas benfeitorias úteis e

necessárias, [...]. (GOIÁS, 1991).

O art. 2º, a que faz remissão o artigo 4º, I refere-se aos beneficiários da Lei, que são os“[...] habitantes do sítio histórico, a serem beneficiados por esta lei, são as pessoas que nasceram na área delimitada no parágrafo único do artigo anterior, descendentes de africanos que integraram o quilombo que ali se formou no Século XVIII [...]”.

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Veja-se que a regulamentação é clara e objetiva. Inicialmente, ainda quan-do da redação da Constituição Estadual, valeu-se de uma nomenclatura muito próxima daquela usada para referir-se às terras indígenas, qual seja, “reserva” e “demarcação”, de modo que deveria ser demarcada uma reserva para os Kalugas.

Em suma, assim está organizada a lei: no artigo primeiro definem-se os limites da área objeto de proteção; no art. 2º se diz quem são os beneficiá-rios da lei; no art. 3º especificam-se os deveres do Estado de Goiás atinen-tes ao Sítio Histórico.

Muito dessa lei, seja na forma ou no conteúdo, se deve à atuação da an-tropóloga Mari de Nasaré Baiocchi, que, em setembro de 1990, apresen-tou o Relatório Técnico Científico para a Demarcação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, dotado dos dados necessários (ambientais, antropológicos e socioculturais), inclusive do tamanho da área do Sítio Histórico na ordem 206.100 hectares, que subsidiaram a promulgação da lei referida (SOARES, 1993).

No caso específico do Sítio Histórico Kalunga, adota-se a posição teórica de Souza Filho (2009), por compatível com a Constituição Federal de 1988, segundo a qual o tombamento é mero ato declaratório, a despeito de o art. 1º, §1º, do Decreto-Lei n. 25/37 (anterior à Constituição Federal de 1988) prescrever a inscrição dos bens num dos quatro livros do Tombo como condição de se reconhecer aos mesmos a status de integrantes do patri-mônio histórico e artístico nacional.

Em assim sendo, a Lei Estadual n.º 11.409/91, que instituiu o Sítio, apenas reconheceu expressamente aquilo que já era ínsito ao mesmo, seu valor cultural, que se exprime na referência à plural formação étnica da socie-dade brasileira, da qual participaram as etnias de origem africana, a partir dos quilombos. Daí, o valor de Sítio Histórico, tombado por Lei,como inte-grante do patrimônio cultural, independentemente de inscrição no Livro do Tombo.

Ainda que se reconheça a existência de alguma doutrina jurídica que adote a compreensão de ser o ato de tombamento “da competência do Executivo e, por isso, há de ser materializado por ato administrativo” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 799), não se vê impossibilidade jurídica de reconhecimento

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do valor cultural de um bem, como o Sítio Histórico Kalunga, por ato legis-lativo editado dentro de um processo legislativo estadual. Isso não só pela natureza declaratória do ato de tombamento, mas principalmente pela própria Constituição Federal de 1988, por seu art. 216, §5º, dispor que fi-cam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscên-cias históricas dos antigos quilombos, como é o caso dos kalungas.

Ante tanto, podia restar a seguinte dúvida: ora, se o valor cultural é ineren-te ao bem correlato, dispensada era a promulgação da Lei Estadual para a Instituição do Sítio Histórico Kalunga? Não é a resposta, porque, com a promulgação da lei, se fortalece a arsenal jurídico disponível para adefesa do bem (território) clausulado pelo valor cultural, principalmente pela fixa-ção dos limites do Sítio e sua respectiva publicidade para os interessados naquelas terras, inclusive em termos de educação patrimonial.

E, o principal, fixa referência normativa para eventual atuação do Ministério Público, seja Federal e ou Estadual, no caso de sujeição do bem a risco de sofrer danos ou mesmo preveni-los. Atuação essa, materializável pela ins-tauração de inquérito civil público, que pode resultar, não sendo o caso de promoção de arquivamento dos autos respectivos: no ajuizamento de ação civil pública; na celebração de compromisso de ajustamento de conduta ou na expedição de recomendação, nos termos da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), no intuito de se proteger o patrimônio cultural.

Além de ser referência para a atuação ministerial, também o é para a cida-dania, que, pretendendo promover a defesa judicial dos bens culturais, po-derá se valer da Ação Popular, nos termos da Lei n. 4.717/65 (SOUZA FILHO, 2009, p. 74).

Aqui, desde uma visão da necessidade de se separar direito de sua técni-ca de garantia, tal como coloca Ferrajoli (2011, p. 114), esses instrumentos (inquérito civil, termo de ajustamento de conduta, expedição de recomen-dação, ação civil pública e ação popular) afiguram-se como garantias para buscar a concreção dos direitos culturais.

Por evidente, não bastam os textos prevendo direitos, os quais, na gramática de Ferrajoli (2011, p. 102), são chamados de “normas de atuação”. Necessário, ainda, instrumentos processuais (técnicas de garantia) a ser aplicados por juristas comprometidos e engajados na efetivação dos direitos dispostos

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em textos jurídico-normativos, a partir de uma perspectiva hermenêutica constitutiva de sentidos normativos no Direito (TARREGA, 2010).

Outra vantagem da Lei, ao tratar aquela região como patrimônio cultu-ral, é favorecer a incidência de textos normativos penais, não por crimi-nalizar condutas (matéria imune à incidência de leis estaduais, segundo o disposto na Constituição Federal); mas por viabilizar o preenchimento do sentido semântico das palavras inscritas nos tipos penais previstos-na Lei n.º 9.605/98, viabilizando formalmente, em tese, a instauração da Persecução Penal (na forma preliminar do Inquérito Policial, do Termo Circunstanciado de Ocorrência ou de outra forma adequada e na forma principal do Processo Penal), com foco na proteção do bem jurídico tran-sindividual “patrimônio cultural”.

Agora, para além dessa descrição conceitual, importante é indicar algu-mas outras consequências restritivasque o tombamento implica no direito de propriedade sobre um bem, como os imóveis rurais situados no Sítio Histórico Kalunga.

Primeiro tem-se as restrições à alienabilidade (transferência) dos bens (art. 11 e seguintes do Decreto-Lei 25/37). Em segundo tem-se a constituição do entorno, o que “promove o conhecimento da vizinhança sobre as limita-ções, comprometendo-a na proteção do bem” (SOUZA FILHO, 2009, p. 102).

Contudo, a principal implicação do tombamento, nos termos do art. 17 do mesmo Decreto, é a proibição de destruição, demolição e mutilação daqui-lo que traduz o patrimônio cultural, que, no caso dos kalungas, é constituí-do, entre os outros, por

cemitérios antigos e vestígios de um antigo Engenho, como material ar-

queológico e alicerces de uma edificação. Também registraram dois muros

de pedra, situados na Grota do Leite e no Morro de Santo Antônio, um for-

no de pedras, na Grota do Leite, uma estrada antiga, que cruza o Morro de

Santo Antônio e um rego d’água, situado neste mesmo morro.1

1 A citação foi retirada da informação elaborada pela antropóloga Ângela Maria Baptista, com assistên-

cia de Rogério Shmidt Campos, em nome do Ministério Público Federal (6ª Câmara de Coordenação e

Revisão),equeconstaàsfls.269/306dosautosdoprocessoadministrativon.º1.00.000.009377/2003-

20, em trâmite na Procuradoria da República do Estado de Goiás (Ofício Formosa) como apenso aos

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Assim, mesmo que esses cemitérios, vestígios de engenho, muros de pe-dras, rego d’agua estejam em imóvel de domínio particular, os proprietá-rios estão proibidos de destruí-los, demoli-los e mutila-los, vez que grava-da a propriedade com o dever de preservação cultural.

Apesar de todos esses efeitos, o tombamento “não altera a dominialidade e a disponibilidade de bem, o proprietário continua como dono e entre os seus poderes está o de transferi-lo, vendendo, doando, cedendo” (SOUZA FILHO, 2009, p. 38).

Embora útil, o tombamento é insuficiente para a completa tutela do patri-mônio cultural, notadamente por não permitir que se retirem do território aqueles que não são quilombolas e ou cujo agir despreza o dever de pro-teção desse patrimônio, preocupados que estão apenas com a obtenção de vantagens individuais a partir do exercício das prerrogativas dominiais.

Assim, um limite evidente é que o tombamento não implica mutação na ti-tularidade do bem, apenas limitações ao exercício do direito do titular, seja público ou privado. Daí que, ainda que o bem seja reconhecido como dota-do de valor cultural, fica no patrimônio do titular respectivo. É um limite, que pode ser superado pela desapropriação.

4 - A desapropriação no itinerário histórico

da regularização do território Kalunga

A evidência da insuficiência do tombamento para proteção do território kalunga revela-se pelo discurso de Manuel Edeltrudes Moreira e Ester Fernandes de Castro, assim:

O que queremos, em primeiro lugar, é a regularização das terras que nos

pertencem e que estão na dependência da indenização dos fazendeiros

(proprietários e posseiros). Somente como (sic) essa medida é que eles

desocuparão a área do Sítio Histórico, já definido por Lei, e deixaram

autos do processo administrativo n.º 1.16.000.002766/2010-93, cujo objeto deste é a regularização do

território quilombola kalunga.

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asfamílias calungas trabalharem em paz. Com eles dentro da nossa área o

calunga nunca erá pra (sic) frente.2

Dessa manifestação se deduz a concepção prevalecente na Comunidade Quilombola Kalunga de que a realização pacífica do trabalho por seus membros na área que lhes pertencem pressupõe a desocupação dessa área pelos fazendeiros e posseiros.

Outro critério indicativo da insuficiência daquele mecanismo jurídico foia celebração de convênio entre o INCRA e a Secretaria da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Estado de Goiás, em 24 de junho de 2004, em cuja cláusula primeira se referiu ao Sítio Histórico Kalunga como referên-cia do local em que será feita a identificação, reconhecimento, delimita-ção, demarcação, regularização, desobstrução (desintrusão) e titulação das terras em favor da comunidade quilombola; bem assim especificou que a obtenção de terras deverá ser feita nos termos do art. 13 e 14 do Decreto n.º 4.887/2003, onde inclusa está a possibilidade do emprego da desapro-priação para tal.

Daí a utilidade da desapropriação, a se aplicar naquele território, com evi-dentes vantagens, notadamente por permitir a desocupação do território mediante pagamento de indenização, cujas modulações foram expressa e amplamente discutidas em obra específica (FRANCO, 2014).

No Brasil, no campo legislativo, não há uma definição de desapropriação. A construção conceitual é feita no campo doutrinário.

Pontes de Miranda (1956, p. 145), afirma que “[...] desapropriação é o ato de direito público, mediante o qual o Estado subtrai direito, ou subtrai direito de outrem, a favor de si mesmo, ou de outrem, por necessidade ou utilida-de pública, ou por interesse social, ou simplesmente o extingue [...]”.

2 Esse desabafo consta do ofício n.º 02, de 12 de junho de 2002, subscrito pelos dirigentes da Associação

QuilombodoKalunga,endereçadoaoGovernadordoEstadodeGoiás,cujacópiaencontra-seàfl.97

dos autos do procedimento administrativo n. º 1.00.000.009377/2003-20 – cujo objeto é a apuração

da notícia da construção de uma estrada, sem licenciamento dos órgãos competentes, dentro do Sítio

Kalunga no Município de Cavalcante-GO, que constitui anexo dos autos do procedimento adminis-

trativo 1.16.000.002766/2010-93, do Ministério Público Federal/Procuradoria da República em Goiás

(Ofício Formosa).

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Em termos conceituais, Cretella Júnior (1998, p. 22) afirma que

[...] em sentido amplo, [...], desapropriação é o ato de direito público pelo

qual a Administração, fundamentada na necessidade pública, ou no inte-

resse social subtrai (em benefício próprio ou de terceiros) direitos do pro-

prietário sobre esse bem, mediante indenização. Em sentido restrito, de-

sapropriação é o ato pelo qual o Estado, necessitando de um bem para fins

de interesse público, subtrai (em benefício próprio ou de terceiros) direitos

do proprietário sobre esse bem, mediante prévia e justa indenização em

dinheiro [...].

No âmbito do direito civil, tem-se, como exemplo de conceito, aquele de Gomes (1998, p. 186), para quem “[...] a desapropriação é, sem dúvida, modo de perda da propriedade, visto que o dono da coisa se vê compelido a transmiti-la ao expropriante. A extinção é involuntária. O proprietário do bem não pode impedi-la [...]”.

Nos conceitos acima referidos ainda se nota uma perspectiva de análise privatista, pela construção de um sentido negativo da desapropriação em face da propriedade privada, como se o instituto implicasse automatica-mente na violação do direito de propriedade individual.

Esse tipo de análise, excessivamente individualista, não serve para com-preender a desapropriação em casos envolvendo a regularização de terri-tórios quilombolas. É que a conceituação de base privada ofusca o fato de a indenização, enquanto garantia ao expropriado, constituir forma de tutela da propriedade privada e não violadora dela.

Além do que, no caso quilombola, a desapropriação é feita para tutelar a propriedade quilombola. Assim, em nenhuma das situações referidas, há violação de propriedade, pelo contrário, há evidente tutela de suas dife-rentes formas (tanto a privada quanto a especial quilombola).

Quanto à situação específica dos Kalungas, em trabalho anterior (FRANCO E TARREGA, 2010, p. 4.755) anotou-se que

Relativamente à questão da regularização da posse e da propriedade da

terra na comunidade Kalunga, houve, de fato, titulação apenas na área

de 50.000 hectares, situada no município de Monte Alegre de Goiás, a

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partir da legitimação de posses, em 1985, operacionalizada via discrimi-

natória administrativa pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás

(IDAGO) com fundamento na Lei Federal nº 6.383/66 e na Lei Estadual nº

9.541, de 27 de setembro de 1984. Nessa área, o IDAGO concretizou a titula-

ção em condomínio, fazendo as doações das terras rurais, com reserva de

domínio, ou seja, a cláusula da inalienabilidade até a morte do donatário,

como consta da Lei Estadual nº 9.717, de 22 de maio de 1985. As matrículas

foram feitas no Cartório de Registro de Imóveis e Tabelionato de Notas de

Monte Alegre de Goiás.

Esses dados concretos constam do amplo e fundamentado trabalho disser-

tativo de Soares (1993), pessoa que -em trabalho pioneiro no Brasil, na área

quilombola, ainda mesmo antes da Constituição Federal de 1988 - conduziu

o Processo de Regularização da Posse das Terras na área Kalunga em Monte

Alegre de Goiás, do que resultou na titulação de 220 famílias kalungas em

1985, passando da condição jurídica de posseiros para a de proprietários.

Posteriormente, já no início da década de 1990, também com o sentido de proteger o território e a cultura dos kalungas, foi constituído o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga com área de 206.100 hectares pela promulgação dalei estadual de 1991.

E, em 14 de julho de 2000,a União Federal, através da Fundação Cultural Palmares, outorgou um Título de Reconhecimento de Domínio aos por ela chamados Remanescentes da Comunidade Kalunga, representados pela Associação do Quilombo Kalunga, a incidir numa área de 253.191,720 hectares.

Ocorre que essas estratégias adotadas pela Poder Público não foram ple-namente eficazes. Isso porque, no primeiro caso, o da constituição do Sítio Histório e Patrimônio Cultural Kalunga por Lei promulgada pelo Governo do Estado de Goiás, apenas uma desapropriação foi concretizada e isso só 14 anos depois da promulgação.

Essa desapropriação foi feita pelo Estado de Goiás com fundamento na uti-lidade pública, cuja declaração restou evidenciada no Decreto Estadual n.º 4.781, de 11 de abril de 1997, para incorporação do imóvel ao Sítio Histórico e Patrimônio Cultural kalunga. Esse decreto explicitou a declaração de “utilidade pública”, relativa ao imóvel “Fazenda Corrente de Cima ou Pé do

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Morro”, localizada no Vão do Moleque, no município de Cavalcante-GO, com área de 2.753.90.60 hectares, foi explicitada no Decreto Estadual n.º 4.781, de 11 de abril de 1997.

A escritura particular de Transferência Gratuita de Direitos de Posse, ad-vinda dessa desapropriação, só foi entregue em 12 de março de 2004, ou seja, quase 7 (sete) anos depois do decreto, por ocasião do lançamento do Programa Brasil Quilombola, no Engenho II, Cavalcante, num contexto de propaganda política de que os governos federal, estadual e municipal esta-riam empenhados na resolução do problema da falta de titulação das ter-ras pertencentes aos kalungas (GOIÁS, 2004).

No segundo caso, o da outorga do título de Reconhecimento de Domínio à Asso ciação do Quilombo Kalunga pela União, através da Fundação Cultural, também não se mostrou eficaz para a plena proteção da cultura e territó-rio kalunga; vez que o título não atendia plenamente aos requisitos legais,o que impediu o formal registro dele nos Cartórios de Registros de Imóveis da região.

Assim, o problema fundamental, que é a presença de fazendeiros e possei-ros no território Kalunga, não foi solucionado, o que ensejou a instauração de novo processo de regularização na região, agora com base no Decreto n.º 4.887/03, com o INCRA na condução e com previsão expressão de uti-lização da desapropriação (art. 13) de imóveis rurais situados numa área de 261.999,69,87 (duzentos e sessenta e um mil, novecentos e noventa e nove hectares, sessenta e nove ares e oitenta e sete centiares).

Daí que muito há a ser feito, para a completa regularização do território quilombola Kalunga.

E o principal instrumento jurídico que se propõe o INCRA a aplicar é a desapropriação.

Na fundamentação da desapropriação, a proposta compreensiva deste escri-to é de se ler o direito ao território como interesse social e coletivo indispo-nível, enquanto pressuposto da defesa do patrimônio cultural, de que são ti-tulares os quilombolas. Além de se aplicar efetivamente a concepção teórica segundo a qual as comunidades quilombolas são sujeitos de direitos, se foca na questão deles, e não dos outros, como se fossem patrimônio nacional.

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Sustenta-se, neste escrito, que a hipótese em que se poderia invocar a ver-tente cultural, para fundamentar as desapropriações em favor do reco-nhecimento dos direitos territoriais quilombolas, seria aquela que postula o acesso ao território como forma de se garantir o exercício dos direitos culturais pelos quilombolas, traduzidos esses direitos “[...] nos modos de ser, fazer e viver, politicamente mobilizados nos territórios [...]” (SANTANA, 2008, p. 99).

É que, nessa perspectiva, resta assegurada a concepção de que as comunida-des quilombolas são sujeitos de direitos, inclusive os culturais, cuja eficácia depende evidentemente da posse, uso e fruição dos territórios que ocupam ou dos quais são titulares. É nos espaços territoriais construídos e garan-tidos que poderão, efetivamente, exercer e efetivar seus direitos culturais.

Nesse contexto, é interessante referir o caso dos kalungas, mais uma vez. O substrato da Lei n.º 10.409/91, que criou o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, é a concepção da tutela do patrimônio cultural.

Segundo Baptista (2005, p. 24), como visto, essa lei registrou vários sítios arqueológicos no território kalunga como

cemitérios antigos e vestígios de um antigo Engenho, como material ar-

queológico e alicerces de uma edificação. Também registraram dois muros

de pedra, situados na Grota do Leite e no Morro de Santo Antônio, um for-

no de pedras, na Grota do Leite, uma estrada antiga, que cruza o Morro de

Santo Antônio e um rego d’água, situado neste mesmo morro.

Evidentemente que os sítios referidos incluem-se na categoria de bens culturais materiais, por concretizarem vestígios da cultura dos kalungas. Mas a concepção de patrimônio cultural não se restringe à materialidade, engloba também os bens intangíveis, de que são exemplos, no caso dos kalungas, a sussa, dança típica deles, a evocar a matriz africana da cultura dessa comunidade, e as festas populares de cunho religioso.

Nesse itinerário histórico, face à manifesta ineficácia dos instrumentos usa-dos (tombamento como Sítio Histórico e Patrimôno Cultural e outorga de título de Reconhecimento de Domínio), e considerando a edição do Decreto n.º 3.887/2003 - que atribui ao INCRA e não mais à Fundação Cultural Palmares o papel de regularizar os territórios quilombolas - reiniciaram-se

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os trabalhos para a regularização do território kalunga, agora com a con-creta perspectiva de desocupação da área, notadamente pela via da desapropriação.

Atualmente, tramitam no INCRA, na Superintendência Regional 28, diver-sos processos administrativos relativos às desapropriações que tratam da regularização do território kalunga. Alguns deles já permitiram inclu-sive a propositura de Ações de Desapropriação perante a Justiça Federal (Subseção Judiciária de Formosa), com deferimento de medidas liminares de imissão na posse.3

Porém, longe está de se atingir o ideal, que é a completa regularização do território, com área de 261.999,69,87 (duzentos e sessenta e um mil, no-vecentos e noventa e nove hectares, sessenta e nove ares e oitenta e sete centiares).

A vantagem específica da desapropriação é permitir que o bem, no caso o imóvel rural, saia da esfera de disponibilidade do proprietário em nome de quem está registrado, passando para a posse do INCRA, mediante con-cessão de medida liminar de Imissão na Posse em favor dessa Autarquia, a qual cabe realizar a posterior destinação específica do imóvel, no caso qui-lombola, às comunidades respectivas, para uso e fruição, vedada a disposi-ção jurídica. Tudo sem lesar o direito de propriedade dos verdadeiramente proprietários, vez que indenizados, dentro do devido processo legal, são por valor de mercado da terra e das benfeitorias.

Nesse deferimento da passagem da posse para a Comunidade terá con-dições efetivas de concretizar a defesa do patrimônio cultural que lhes identificam.

A desvantagem é que isso demanda bastante tempo, notadamente na fase administrativa (quando se faz vistoria e avaliação dos bens) e na judicial

3 Ver, entre outros, osautos do processo nº 1120-17.2013.4.01.3506, relativo à Fazenda Círculo C, n.º 1119-

32.2013.4.01.35066, que diz da Fazenda Vão dos Bois ou Felicidade, os de n.º 1117-62.2013.4.01.3506, que

trata da Fazenda Vão dos Bois/Capão da Onça e os autos do processo n.º 1070-88.2013.4.01.3506, ati-

nenteàFazendaPastim.Emtodasessasautuações,foideferidaemfavordoINCRA,autordasaçõesde

desapropriação correlatas, a medida liminar de Imissão na Posse, com base no Decreto-Lei n.º 3.365/41

(art.15,§1º).Issonofinaldoanode2013.

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(quando há possibilidade de discussão, por exemplo, do preço atribuído aos bens pela avaliação correlata).

Tempo que, evidentemente, corre contra os quilombolas, que aguardam pela sonhada regularização e pleno domínio das terras que lhes pertencem e das quais necessitam, cuja perda ao longo da história não se fez seguida de qualquer devido processo legal, mas à custa, não raras vezes, de violên-cia real e simbólica (ver, nesse sentido, a denúncias de sujeição dos kalun-gas à prática de grilagem de suas terras, feitas por Soares (1993).

Só para se ter uma ideia da demora do processo todo, já vão para quase dez anos desde que se fizeram as audiências públicas nos Municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, em que que expôs, entre outros aspectos, como seria o trabalho inicial de regularização (fi-xação do perímetro da área) e previu-se como fim de tudo o ano de 2006.

Porém, o tempo passou, mas o título não chegou. Tudo está em processamento.

A esperança que se tem no horizonte é a de se concretizar o art. 68 do ADCT e o art. 13 do Decreto Presidencial n.º 3.887/03, a partir inclusive da técnica de garantia de direitos da desapropriação para regularização dos territórios quilombolas, de se aplicar veloz e plenamente no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

Ocorre que há risco concreto de ser declarada a inconstitucionalidade do Decreto Executivo Federal n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, que trata do procedimento para regularização dos territórios quilombolas. É que tramita perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 3.239/DF, proposta pelo antigo PFL (atual Democratas), contra o citado decreto, alegando, entre outros argumentos, a inconstitucionalidade da previsão, no artigo 13, da possibilidade do uso da desapropriação para regularizar os territórios quilombolas. O ministro relator já emitiu voto pela procedência da ação no mês de abril de 2012. O julgamento encontra-se suspenso por pedido de vista.

De qualquer forma, o argumento do DEM, no tocante à desapropriação, não leva em conta a particularidade das ocupações quilombolas que, de fato, dispensam a desapropriação, vez que, por força constitucional, se

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reconhece a ocupação como meio de aquisição da propriedade, no caso quilombola (art. 68 do ADCT).

Também não reconhece a invalidade ou ineficácia de títulos de proprie-dade ilícitos (v.g. grilagem), omitindo a história violenta da constituição da propriedade privada da terra no Brasil, que também dispensam o uso da desapropriação. Muito menos o argumento se atenta que a desapropria-ção é possível, sim, ainda que residualmente (depois de reconhecidas as ocupações quilombolas ou a invalidade ou ineficácia dos títulos de terra que padeçam desses vícios), no caso de os quilombolas não ocuparem efe-tivamente determinado território que lhes é necessário para a reprodução física, econômica, social e cultural e, sobre esse território, haver título vá-lido e eficaz.

A solução da Ação Direta de Inconstitucionalidade não é difícil, desde a perspectiva da dogmática jurídica. Basta fazer interpretação conforme à Constituição do artigo 13 da Decreto n.º 4.887/03, para julgar improceden-te a ação, mantendo uma base normativa mínima para o enfrentamento do problema da falta de regularização dos territórios quilombolas, inclusive dos Kalungas.

Resta saber se o STF está disposto a tanto. Espera-se que sim, vez que compete a ele a guarda da Constituição, inclusive do texto que assegura a condição de sujeito de direito proprietário das terras que ocupam àqueles historicamente descendem de escravos, os quais jamais foram vistos como sujeitos, mas autênticos objetos de direito de propriedade.

Conclusão

Da análise feita, tem-se como resultados da reflexão realizada que:

Apresenta-se insuficiente, para a preservação cultural da comunidade kalunga, o tombamento da área do Sítio Histórico, dado não viabilizar a re-tirada dos proprietários não quilombolas da área.

Para suprir essa insuficiência, é necessário recorrer-se ao instrumento da desapropriação, desde que aplicada rápida e eficazmente e tendo por base, no caso dos quilombolas, a concepção de que não implica violação do

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direito de propriedade individual sobre o imóvel rural (já que paga a inde-nização pela perda dele), mas serve para viabilizar a concreção dos direitos territoriais e culturais quilombolas.

Tem-se como adequada a invocação da proteção do patrimônio cultural para fundamentar os decretos declaratórios para fins de desapropriação, não apenas pelo status constitucional dele, mas também pela potencialida-de significativa da noção de patrimônio cultural.

A garantia da validade dos processos administrativos e judiciais em curso para a titulação dos territórios quilombolas, inclusive o dos kalungas, de-pendente da manutenção em vigor do Decreto n.º 4.887/03, o que pode se dar julgando-se improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239/DF.

Em assim sendo decidido pelo Supremo Tribunal Federal, estará garanti-da a possibilidade de se continuar usado tranquilamente o instrumento da desapropriação para titularizar os territórios quilombolas, sonho das co-munidades quilombolas no Brasil.

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A ODISSÉIA JURÍDICA RUMO À PROTEÇÃO DO TERRITÓRIO KALUNGA

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ÁGUAS KALUNGA:uma perspectiva ribeirinha na comunidade ribeirão dos Bois

Paola Camargo Santos

1 - Introdução

Esse artigo é uma síntese de minha dissertação de mestrado em Antro-pologia Social na UFG. Construído partir de narrativas ribeirinhas, o artigo versa sobre a relação dos moradores que vivem às margens do ribeirão dos Bois com a água. Tais narrativas puderam ser documentadas em um perío-do compreendido entre os meses de março de 2010 a outubro de 2014 por meio de quatro visitas de campo de 10 a 15 dias na comunidade.

A comunidade Ribeirão dos Bois possui cerca de 50 casas e é uma das comunidades Kalunga existentes entre os municípios de Monte Alegre, Teresina de Goiás e Cavalcante. A ocupação dos grupos Kalunga durante e após o ciclo do ouro na região do vale do rio das Almas e rio Paranã a partir do século XVIII permitiria a ressignificação cultural dos grupos que se es-tabeleceram nas margens dos rios da região. Nesse sentido, abordaremos os principais aspectos sobre a importância dessas águas para a comunida-de a partir de suas práticas cotidianas e de seu uso.

Para a melhor visualização do Ethos coletivo, versaremos a respeito de um espaço comum (e seus lugares) onde as narrativas ribeirinhas asseguram sua

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autonomia. Levamos em consideração a percepção cultural dos agentes lo-cais e de que forma estes sujeitos sociais dialogam sobre os significados atri-buídos ao rio, com a proposta de apresentar uma parcela de seu modo de vida.

Neste caso, esta pesquisa procura compreender, apoiada em pesquisa de campo, narrativas e histórias da comunidade Ribeirão dos Bois, localizada á nordeste de Goiás, próxima ao município de Teresina de Goiás.

Pretende-se avaliar a relevância da água, porém vista não a partir dos pro-cedimentos jurídicos institucionais, mas apreendido diretamente com o grupo ribeirinho estudado. Baseia-se em uma compreensão de que cada cultura tem a água como elemento fundamental à sua existência, e cada uma a seu modo, preza sua importância, ou não.

Porém, no Ribeirão dos Bois ela está relacionada à própria vida, à família, ao trabalho, assim como a valorização e preservação para as gerações fu-turas no sentido da permanência.

2 - A comunidade ribeirão dos bois e suas margens

As comunidades que se organizam tradicionalmente empregam costumes onde o espaço é sociabilizado e a tradição constantemente reafirmada en-tre seus membros. Sabemos que elas expressam diversas formas de repre-sentações coletivas que têm estreita relação com os bens naturais. Embora a percepção que se tem de água assuma diversas formas, o sistema de uso e saberes são estabelecidos e reafirmados a partir dos critérios conferidos pelos grupos que a apreende enquanto bem compartilhado.

As comunidades Kalunga são consideradas comunidades tradicionais por cultivarem valores e práticas específicas, baseadas na agricultura de sub-sistência e possuírem fortes vínculos entre seus parentes. O uso do ter-mo tradicional está também associado à autonomia sobre os locais onde habitam, constituídos pela dinâmica temporal e coletividade dos usos e costumes relativos aos bens naturais. Essa característica observada nas comunidades tradicionais, na qual se enquadra o Ribeirão dos Bois, avalia o território como terra de trabalho e de famílias. Conforme Woortmann (1990, p. 23, grifo nosso) afirma a terra “é pensada em função da família e do trabalho e não em si mesma, como uma coisa ou mercadoria”.

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A cosmovisão da comunidade pesquisada é ambientada em um determina-do lugar que tem o ribeirão concebido como espaço vivido. A partir de seus costumes os moradores subjetivam seus espaços beira rio e o manejo da água de maneiras distintas. O espaço ocupado por este grupo está locali-zado em áreas de Cerrado, nos arredores do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, que apresenta uma rede hídrica repleta de nascentes, gran-des rios e afluentes.

Porém, veremos que neste artigo o conceito de cerrado será na maioria das vezes referenciado por sertão. Abrimos um parêntese para essa ques-tão, justamente por haver uma forte identidade sertaneja no centro-oeste brasileiro pelo qual estamos descrevendo. O sertão abriga essa identidade que vivenciamos e não há, de fato, ninguém melhor que Guimarães Rosa (1994) para descrevê-lo:

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode

torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde crimi-

noso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia

vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões

de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas

que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas

lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada

um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

O sertão está em toda a parte. (ROSA, 1994).

O percurso entre a Serra da Aboboreira e a Serra da Boa Vista, abriga a comunidade Ribeirão dos Bois que se referencia pelo nome de seu rio. O modo de ocupação da região do vale do rio das Almas e rio Paranã é um dos fatores que nos revela a proximidade dos grupos que ali permaneceram com seus rios.

Além disso, a apropriação dos grupos à vida do sertão, ao trabalho nas la-vouras de subsistência ou de latifundiários nas redondezas de suas terri-nhas, foi um fator importante para a identificação dos Kalunga. A identida-de do sertanejo esteve associada ao espaço vivido do sertão, com terrenos planos e férteis de matas abertas entre as serras, denominadas por eles de “vãos”, propícios à criação do gado e produção de pequenas lavouras desti-nadas à subsistência das famílias.

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Os rios do sertão tornaram-se a base dessas organizações sociais, uma vez que é a partir deles que assimilam e transformam o espaço que vivem e as-seguram suas relações e vínculos sociais. Embora a dinâmica organizacio-nal dos moradores do Ribeirão dos Bois nos revele que sua cultura possui formas distintas de fabricação da sua tradição e crenças,vê-se ainda, que transformam seu meio de acordo com suas necessidades físicas, culturais e religiosas.

Mas, para além dos quintais e pastagens, geralmente utilizam técnicas de manejo específicas. Em sua cosmovisão a vegetação local é fonte de re-médios utilizados nos cuidados com a saúde e algumas dessas plantas são consideradas poderosos instrumentos para afastar os “males” do corpo.

Nesse sentido, o reconhecimento da vegetação circundante, as reuniões dos parentes nos festejos beira-rio e o plantio compartilhado da mandioca o feitio da farinha, o trabalho de vaqueiro e a prática da pesca são ativida-des que coadunaram para a permanência dos Kalunga em seus territórios e garantiram a forte marca de sua identidade e tradição.

Podemos refletir então que processo de territorialização, que Pacheco de Oliveira (1998) propõe como emergência de novas identidades mediante mecanismos políticos e controle social sobre os bens naturais. Pacheco de Oliveira chama atenção ao fato de que esse processo deve ocorrer a partir da análise das próprias representações coletivas que atribuem o sentido de identidade do grupo e de pertencimento ao espaço, atualmente assegura-do e formalizado como território.

Nesse contexto, o processo organizacional contínuo das comunidades Kalunga nos leva a crer que os próprios indivíduos elegem e assinalam seus territórios como espaço vivido. Seu pertencimento consiste no comparti-lhamento dos valores que foram construídos através da configuração esta-belecida pelas relações sociais que institui a ideia de família, de trabalho e de espaço transformado, identificado e significado.

Essa característica, sobretudo, pode ser verificada mesmo antes do reco-nhecimento formal de seus territórios a partir da constituição de 1988, que detalharemos a seguir. Isso porque o território é delimitado processual-mente pelos próprios critérios do grupo que são coadunados com suas es-pecificidades organizacionais.

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Para tanto, é relevante ressaltar que o processo de territorialização dos grupos, hoje denominados quilombolas, que habitam a região possui uma conjuntura histórica carregada de símbolos, conquistas e dificulda-des. Em Goiás ela se inicia a partir da corrida pelo ouro nas terras do sertão com a chegada de homens e mulheres, ainda no período colonial escravista.

Logo, a ocupação da região nordeste de Goiás ocorreria pela descober-ta do ouro, nas “Minas de Goyases” (Goyases era o nome de um povoado indígena que habitava a região) e pela busca de mão de obra escrava in-dígena. Assim, desencadeia-se um processo de povoamento para o cen-tro-oeste de senhores e escravos (negros e indígenas) em busca de ouro e liberdade, respectivamente (MONTEIRO, 1994).

A busca por locais de reprodução dos grupos que se opunham à escravi-dão estava inteiramente vinculada a terra e à água como base primordial da reorganização dos seus costumes. Tais reorganizações se fundamen-tariam nos princípios do “trabalho, família e liberdade” que Woortmann (1990) propõe.

Portanto, a matas do interior (o sertão) foram os espaços que ampliaram as expectativas de locais longínquos onde nativos (indígenas) e negros pudessem conquistar sua autonomia. Mais que isso, o sertão ofereceria as bases para configurarem os espaços onde pudessem reafirmar seus próprios meios de produção e utilizar por si e pelos seus sua força de tra-balho. Desse modo, se tal projeto insurgente fosse sublimemente alcan-çado, teríamos de concordar com a ditosa análise de Monteiro (1994), “os colonos teriam de arar a terra com as próprias mãos”.

Sabemos que o acesso a ascensão nos negros no que se refere à terra e à cidadania sempre foi uma conquista árdua. A Lei de Terras de 1850 no Brasil que reinstitui o sistema de sesmarias com o princípio da proprie-dade privada é um exemplo notável do processo de exclusão dos negros.

Ao mercantilizar os produtos da natureza e fomentar o aumento da pro-dução, o sistema permitia a posse de produtores que possuíssem capi-tal. Isso gerou um grande desequilíbrio no acesso à terra e aos bens na-turais, ocasionando a exclusão massiva de negros, indígenas e pequenos produtores.

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A situação em Goiás foi um pouco diferente, as terras do sertão nessa épo-ca, por serem “afastadas dos centros administrativos portugueses do li-toral”, como afirma Karash (1996:241) eram pouco habitadas. Por estarem distantes das forças coloniais, podia-se encontrar indígenas, negros liber-tos, fugidios e “torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador” (ROSA, 1994).

Por esse fato, após a escravidão e a decadência da fase aurífera, resta-vam em Goiás apenas alguns fazendeiros e muitas terras “devolutas” (sob o ponto de vista do Estado), que foram ocupadas por indígenas e negros. Mas, como não sabemos ao certo (pois não queremos) o destino dos al-gozes, continuamos a reiterar os destinos que nos interessam: o daqueles que não se deixam subalternizar.

O processo de ocupação espacial do sertão ocorreria entre as brechas de diversos tipos de exclusão social e territorial desses grupos. Contudo, a caracterização do espaço vivido dos Kalunga como território negro se faria mais evidente a partir da constituição de 1988.

Com o advento do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias há a formalização do território Kalunga pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás em 1991 que reconhece como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga por meio da Lei Estadual n˚11.409 os locais onde vivem.

O Sítio Histórico integra três regiões: a do Vão da Contenda ao extremo norte, a do Vão do Moleque à noroeste e a do Vão das Almas à nordeste do Estado de Goiás, situados entre os municípios de Monte Alegre, Cavalcante e Teresina de Goiás. A comunidade do Ribeirão dos Bois está localizada a pouco mais de 30 km da cidade de Teresina de Goiás, na região do Vão de Almas.

Bem sabemos que a inclusão dos negros à condição de cidadãos, é um con-tinuum, que eles próprios buscaram (e ainda o fazem) por si mesmos. Na realidade não se extinguiram as lutas e reivindicações, o movimento das comunidades negras agora/também caracterizadas nos quilombos rurais tornam-se novas mobilizações a lutarem por seus territórios historicamen-te ocupados. Por diversos grupos, em diferentes contextos. Partem de uma conquista, ao ganhar espaço no direito constitucional, como resultado da

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agencia dos grupos que por longos anos ficaram apagados e relegados ao esquecimento pela nação. À invisibilidade respondem alguns avanços, dos quais Arruti (2005, p. 66) descreve muito bem, sendo um deles: “Resultado do acúmulo das lutas sociais que, com a redemocratização, puderam vir à tona e ganhar espaço no plano legislativo e na própria ocupação dos apa-relhos de Estado”.

Em contrapartida, importa-nos assinalar neste momento, ocasiões que reproduzem os mesmos modos de exclusão seculares das comunidades negras. Consequentes a isso vários grupos que se auto-determinam qui-lombolas prosseguem sem seus territórios titulados enfrentando invasões de fazendeiros, expulsões e ameaças de morte, que dificultam sua perma-nência. Sobretudo, impera o não comprometimento político do governo referente às suas demandas.

Por um lado a identidade desses grupos é atravessada por umprocessohis-tórico de exclusão ocasionado pelo distanciamento cultural e social que é bem evidente nas comunidades negras na atualidade. A construção dessa desigualdade ocorre também no descaso com o qual as políticas de di-versas instituições atuam. Impedidos de perpetuarem sua cultura, mui-tos desses grupos não encontram meios para continuarem afirmando sua identidade quilombola, faltam-lhes terras, águas, matas e seus significados (concretos e simbólicos) e que nesses territórios são difundidos.

Por outro lado a conduta de permanência é uma expressão coletiva das co-munidades quilombolas que encaram numerosas tentativas para impedir a continuidade das famílias em seus espaços escolhidos.

No caso das comunidades Kalunga sabe-se que enfrentam ainda inúmeras tentativas de invasão de suas terras, devido a grande incidência de solos planos e com vasta rede hídrica no sertão, propícios ao desenvolvimento da agropecuária mercantil. Tais invasões, que puderam ser documentadas na década de 90 por Baiocchi, iniciaram-se em meados dos anos de 1970 quando grileiros adentravam o Vão do Moleque e depois o Vão de Almas (BAIOCCHI, 1995/1996). A autora afirma que em 1978 era presença mar-cante em Ribeirão dos Bois e entre os anos de 1978 a 1990 o território era invadido constantemente por empresários rurais, fazendeiros e grileiros (BAIOCCHI, 1999, p. 89).

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Neste novo tempo, as cercas de arame farpado começaram a aparecer com grande frequência, e muitas ameaças foram feitas para que os mora-dores do Ribeirão dos Bois e outras comunidades abandonassem as ter-ras habitadas que forneciam suporte para suas atividades produtivas e simbólicas.

É nesse contexto histórico recorreriam aos meios institucionalizados para efetivar seus territórios. Agora, sob o ponto de vista estatal e como produ-to de um conflito, os moradores da região sistematizariam suas terrinhas, em um conceito político-administrativo, denominando-as território qui-lombola Kalunga sob a égide do artigo 68 da constituição.

No entanto, a situação ainda é problemática. Hoje após o reconhecimento da comunidade Ribeirão dos Bois, vê-se fazendeiros no interior do territó-rio demarcado e que ainda não foram retirados, nem indenizados.

Outras comunidades como Vão do Moleque, da qual tivemos conhecimen-to, também enfrentam invasões de grileiros. O problema persiste, tanto lá quanto no Ribeirão, como observamos em campo. Isso porque não foi feita a desintrusão e indenização dos ocupantes não quilombolas do território Kalunga. A comunidade Vão do Moleque vivenciou esse tipo de situação em sua área, conforme nota da Fundação Cultural Palmares (2006):

Lideranças quilombolas reiteraram a denúncia contra ameaças e intimi-

dações que a comunidade do Vão do Moleque vem sofrendo por pessoas

ligadas à Fazenda Bonito, instalada dentro do Sítio Histórico Kalunga, e à

empresa de empreendimentos imobiliários que vem demarcando as terras

da Fazenda [...] O conflito agrário tem origem no fato de o suposto pro-

prietário da Fazenda Bonito ter demarcado sua reserva legal na área onde

residem alguns quilombolas, que assim ficam impedidos de plantar, colher

e criar animais para sua subsistência. Com isso se estabeleceu um clima de

tensão e insegurança geral, pois a construção da cerca limita as áreas que

os Kalunga exploram há várias gerações, com sua agricultura tradicional e

criação de pequenos rebanhos e animais domésticos.1

1 Kalunga do Vão do Moleque: uma comunidade amedrontada. Fundação Cultural Palmares 02/06/2009.

Disponível em http://www.palmares.gov.br/?p=3590&lang=en. Acessado em: 07/06/2014

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O processo de grilagem na área Kalunga é acirrado e é possível visualizar fazendas que moradores dizem pertencer a políticos e deputados residen-tes em Brasília no interior da comunidade Ribeirão dos Bois. Quando ques-tionamos o processo de reconhecimento territorial do governo e a perma-nência dos fazendeiros no local, uma moradora assim disse-nos: “Diz que tem umas indenizações saindo aí, vamos ver, né. Só sei que desse lugar eu não saio. Por que aqui é meu. Meu povo tá todo aqui. Minha família, minhas coisas e os nossos costumes. Sempre teve, desde antes desses aí”.

Entretanto, existem muitos elementos que necessitam ser reavaliados para que entendamos suas reivindicações e conquistas que possuem diferen-tes significados. Atribui-se ao território configurações de pertencimento que como vimos ainda não se resolveram como devido. E as cercas ainda continuam, e como muitos ali sabem, costumam transitar. Essa nova expe-riência foi magistralmente descrita por nosso anfitrião Seu Patrício, e aqui deixo sua fala que resume todo esse capítulo, segundo ele:

Minha criadora (mãe) vivia dizendo que ia chegar o dia que o mundo ia encher

de espinhos, por causa da maldade dos homens. E eu naquela inocência, não en-

tendia o que ela queria falar. Mas aquilo nunca saia da minha cabeça, eu ficava

matutando, matutando. Bem depois que ela morreu, eu ainda pensava. Eu não

esquecia daquilo que ela falava, por que eu queria entender, né. Aí chegou um

dia que eu entendi o que ela sempre falava. Do mundo se encher de espinhos.

Agora eu entendo que os espinhos que ela falava são as cercas. As cercas de ara-

me farpado, que inda hoje todo mundo coloca separando tudo. Essas aí que cê

vê pra todo lado. Os espinhos eram as cercas. (Seu Patrício- Ribeirão dos Bois).

Sua análise trate-se de uma experiência vivida, compartilhada entre o grupo e dificilmente solucionável se tomarmos como referência os desígnios polí-ticos pelos quais vivenciamos hoje. Essa experiência está atravessada por di-versas questões que podemos associar às cercas que Seu Patrício menciona. A construção da hidrelétrica Serra da Mesa em 1996, no alto rio Tocantins represado pela UHE Serra da Mesa, formou um reservatório deaproximada-mente 1700 km2 de área que constitui o maior em volume d’água da América do Sul. (Albrecht, 2005). Rios represados, segundo a autora, são experimen-tos de larga escala que provocam transformações ecológicas expressivas.

Contudo, o problema certamente não é local, pois as interações ambien-tais sofrem um tipo de quebra. E ocorre tanto na história evolutiva das

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espécies, quanto no rio características dos ambientes que o compõe. Acarretando assim, alterações climáticas, alteração dos regimes dos rios e consequentemente, da ictiofauna.

A bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia compreende numerosos rios e córregos que se encontram em território Kalunga. De acordo com alguns moradores, há os rios perenes principais como: o rio Prata, o rio Bezerra, o rio das Almas (também chamado rio branco), o ribeirão dos Bois, o rio Corrente e o rio Paranã.

Ainda, existem vários córregos e riachos temporários que costumam secar em época de estiagem, são eles o Riachão, o Alminha e o Sucuiú. Nos do-mínios da comunidade Ribeirão dos Bois incluem o Córrego das pedras, o Limoeiro, o Boqueirão, o Ouro fino, entre outros. O complexo hídrico que abrange o rio Almas, os ribeirões e córregos da região deságuam no gran-de Paranã que é atualmente interrompido pela Hidrelétrica Serra da Mesa.

Os projetos administrados e incentivados pelo Estado e políticas de de-senvolvimento não param por aí. Em 2009 pudemos acompanhar uma au-diência pública no ministério público de Goiânia que tratava do processo de construção de outra hidrelétrica, só que agora em território Kalunga.

A pequena central hidrelétrica de Santa Mônica que seria construída no rio Tocantinzinho, gerou polêmica entre políticos, estudiosos, moradores Kalunga e cidadãos contra e em favor de seu licenciamento. E que devida grande repercussão continua até hoje embargado. Segundo Marinho (2013, p. 291, grifo nosso):

A Pequena Central Hidrelétrica Santa Mônica, que seria licenciada, pela

Rialma Elétrica, cujo dono é irmão de Ronaldo Caiado [...] ocuparia parte das

terras Kalunga, que segundo os Caiados, não são utilizadas, uma vez que sua

visão etnocêntrica impede a compreensão de como se estrutura a vida e a

organização territorial desses camponeses negros [...] visando a obtenção

de privilégios econômicos para si e não o bem–estar de todos e todas.

Nessa perspectiva, podemos avaliar que a organização territorial desses camponeses negros se estrutura para além das fronteiras pensadas pelo projeto hegemônico estatal. A bacia Tocantins-Araguaia encontra-se, 76% dela (ALBRECHT, 2005), em área de cerrado que possui estações sazonais

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bem definidas que poderão estar ameaçadas por estas alterações ecológi-cas. Tantos estas, quanto àquelas ocasionadas pelo agronegócio, que ocupa e desmata grandes espaços de matas na região e utiliza agrotóxico discri-minadamente que durante as precipitações poluem os rios e a terra. Bem como empresas mineradoras que poluem, desse modo, o solo e os rios.

Vê-se que essas cercas que menciona Seu Patrício podem constituir-se de diversas formas. E suas ameaças são produto de um descaso ou de um desentendimento sobre as formas de ordenamento das comunidades Kalunga que utilizam seus bens naturais de forma direta, uma vez que es-tão associados à própria vida e costumes locais.

O território e os rios da região orientam diversos aspectos da vida dos mo-radores dessas comunidades. Eles transformam seu ambiente e definem seus espaços dando-lhe a característica de lugar. Porém, familiarizado, simbolizado, sendo ele a imprescindível base de sua cultura.

É por meio das vozes e narrativas dos ribeirinhos que poderemos encontrar as armas que poderão impedir que outras barbáries como essa possam prosperar. Elas estão nos lugares e falam a partir dele (e não somente dele). Estes são os interstícios que nos interessam e essas são as vozes que deverão ser ouvidas.

Os discursos produzidos por uma linguagem específica, observa seu lugar a partir de aspectos históricos dinâmicos e concêntricos. Eles são cultu-ralmente construídos entre as margens e os rumores das águas, que por ventura não possuem cercas que barrem seu fluxo.

Estas cercas espinhosas, no entanto, costumam vir de outros tempos (com suas leis totalitárias) que de tão duros produzem suas barreiras, mas ao observar a autenticidade do grupo que pesquisamos, ouve-se rumores que nos levam a acreditar nos interstícios.

3 - Das águas e experiências: o lugar e seus lugares

A comunidade pesquisada assume especificidades de uso e produção de saberes que visam garantir a reprodução social do grupo através da ex-periência construída com o espaço habitado. Existem formas particulares de organização que baseiam-se na prática e na experiência construída.

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Elas estão diretamente ligadas ao manejo dos rios e da terra que comple-mentam suas relações com o espaço que vivem.

Tal aspecto que, sobretudo é relativo ao espaço que habitam é refletido pela existência coletiva que adquire fortes vínculos com o lugar. O lugar tem o desempenho de reforçar afinidades, tanto com o espaço quanto com os sujeitos que o compartilham. É no lugar que constrói-se a vida, onde estabelecem suas relações e criam laços de pertencimento e identidade (TUAN, 1983).

O autor afirma ainda que, “somente determinamos o espaço de acordo com nossa ordem de conhecimento e percepção sobre o mesmo.” (Idem, 1983:42) Nesse sentido, ele somente se transforma em lugar à medida que vem adquirindo significado, pois a experiência e o sentido de pertenci-mento o caracterizam.

Os moradores que vivem nas margens do ribeirão dos Bois consegue, a partir dele, manejar o espaço e estabelecerem suas definições e significa-dos dando-lhe a característica de lugar. O vínculo com o ribeirão também construiu meios para que os moradores se identificassem com esse lugar.

Com isso, seus símbolos foram acrescentados a ele dando-lhe do mesmo modo uma identidade. Os anciãos, as lavadeiras, os pescadores, os can-tos em suas margens as rezas e os mitos que associam suas águas como benção divina e as brincadeiras diárias das crianças são elementos que o denotam identidade. Vê-se, todavia, que a partir dessas características o espaço se define e mostra-nos seus lugares. E neste caso específico pelo qual fez-se a pesquisa veremos que está nitidamente associado ao ribeirão.

3.1 - Das Águas fundas: as crianças e lendas para/de adultos

O ribeirão é o lugar de trabalho, de lazer e é a principal fonte de alimento da comunidade, i.e, de peixes e de água. O lugar preferido das crianças e sempre que nos aproximamos dele é possível escutar suas risadas entre os mergulhos e brincadeiras. As mães, enquanto esfregam com sabão e batem roupas nas pedras, vigiam seus filhos, sobrinhos e netos. Ele é o ponto de encontro dos moradores, e a água em questão é utilizada de diferentes for-mas: para pescar, lavar as louças, as roupas, tomar banho, para o cuidado dos quintais e dos plantios.

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Logo, é também um espaço de conversas, e um espaço para reunir os mo-radores e falar sobre a vida. Mais que isso, é base material e simbólica da comunidade, uma vez que os festejos Kalunga, somente são organizados nas beiradas dos rios. O rio de águas fundas, como aqui será chamado é um lugar proibido para as crianças. Alguns símbolos e nomes são vividos na experiência cotidiana e mesmo que nunca os tenham visto, são construí-dos no imaginário infantil e, sobretudo permanecem.

Muitos adultos afirmam que seus avós, ou algum parente já viu a piratinga (muito falam “o piratinga” também). Eles contam que ele é um peixe grande que de vez em quando aparece ao anoitecer para comer suas presas. Seu Florentino que mora na comunidade do Engenho II, confirmou que:

A piratinga é um peixe grande que come os bichos no lugar mais fundo do rio

Paranã. Esse que eu fiquei sabendo teve lá na barra do Bezerra. Teve um dia

que eles pegaram um aí no anzol, mas o anzol sumiu com ele, do tanto que

era grande.

Sabemos que a piratinga é um peixe grande que realmente existe. E que ele come cavalos e meninos, acaba de ser-nos revelado, mas, certamente não poderíamos desacreditar o fato. Lévi-Strauss (1978, p. 9) afirma que “o modo como pensam nossos colegas abre diferentes perspectivas, todas igualmen-te válidas [...] elas têm um significado que tem uma verdade e que pode ser explicada”. Para todos os adultos, velhos e crianças em que a história do pi-ratinga foi questionada, tivemos respostas afirmativas sobre sua existência.

São significados concedidos acerca dos rios que são por eles consideradas verdadeiras, uma vez que ouviram de seus avós, de seus pais, eles contam para seus filhos e netos. Assim traduzem-nas da forma como ouviram e reproduzem-na a partir da linguagem local e da própria dimensão sensível da experiência.

Outra história que pudemos registrar diz respeito à mãe d’água, também chamada por eles de “mãe de ouro”. Trata-se de uma mulher que habi-ta os rios tem seus adornos, sua pele e seu espelho da cor do ouro. Seu Florentino nos contou e depois pudemos confirmar com Seu Patrício e ou-tros moradores mais velhos que a mãe de ouro é também associada a um peixe reluzente. Esse seria como disseram, o peixe elétrico. Seu Florentino revela que viu e muitos outros também já viram. Assim:

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Você sabe o que é o peixe elétrico né? Pois é. Ele saiu da água do Vão de Almas

(rio Almas) e atravessou lá para o Vão do Moleque para a água de lá.E tinha

dois peixinhos pequenos assim bem do lado dele. Todo mundo viu. Uma bele-

za de ver brilhando assim que nem fogo. Atravessando assim no céu. A gente

não sabe o que é, mas a gente viu e chama de peixe elétrico, a mãe do ouro. É

assim que a gente fala.

Esses causos são a forma de tradução de uma experiência vivida que atua na produção da realidade. É segundo Lévi-Strauss (1978, p. 15) a informa-ção traduzida numa linguagem diferente e o significado da palavra, em um nível diferente. Não obstante, o fato desses homens, mulheres e crianças viverem próximos aos rios, seus significados estarão quase sempre asso-ciados a ele.

A mãe de ouro nos remete ao garimpo, à mineração, formas de trabalho muito recorrentes em sua cultura e ela toma a forma de um peixe que vive e sobrevoa entre rios. Para muitos, a mãe de ouro é uma linda mulher que vive dentro de uma das montanhas existentes por lá, e, muitas vezes, es-cutam seu canto. No entanto, asseguram que ninguém sabe qual é a mon-tanha que ela habita e guarda o ouro (e mesmo que soubessem não diriam, creio eu). Ouvimos um deles afirmar que ela se encontra nas proximidades da cidade de Cavalcante.

Sendo assim, os significados que podem ser considerados mitos (para eles diz-se lendas), são os meios que essas pessoas encontraram para traduzir a natureza e os símbolos que os cercam, essa tradução relacionada ao ponto de vista local, é uma linguagem.

O mito é o modo como veem e criam a sua própria cosmologia e são, de acordo com Lévi-Strauss (1978), as suas próprias regras de tradução. Porém, são regras criadas a partir da própria experiência do grupo, em uma expressão e linguagem que segue seus próprios parâmetros de repro-dução de conhecimento.

A partir desses relatos percebe-se que o rio intermeia os causos na maioria das vezes. Mesmo que seja para afirmar uma percepção de espaço. O es-paço tanto do imaginário, quanto da memória é avaliado de acordo com os rios e córregos que participa o causo contado.

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Por esse fato, podemos refletir que o espaço construído é historicamente e socialmente contextualizado. O hábito de sair à noite, os animais que ofe-recem perigo, os perigos das águas fundas, ou as águas escuras na noite, são cautelas que contadas para as crianças, constroem-se culturalmente nas sociedades rurais.

Entretanto, são suas próprias concepções acerca da natureza, um ponto de vista, quiçá, elaborado em seus costumes e sua cosmologia. Como vi-mos, o rio de águas fundas é um lugar proibido para as crianças, que geral-mente ficam com suas mães e avós nas águas rasas do rio.

3.2 - Das Águas rasas e água boa

As mulheres e as crianças (mães, avós, filhas e filhos) reúnem-se nas beiras do ribeirão para iniciarem suas atividades domésticas. Lavam os vasilha-mes, as roupas, dão banho nas crianças para irem à escola, pescam alguns peixes pequenos para o almoço e conversam sobre assuntos diversos.

Essas reuniões ocorrem em variados lugares, geralmente cada casa pos-sui uma trilha que intercepta os lugares onde desenvolvem essas tarefas. Como as casas são divididas em núcleos familiares, cada conjunto de casas, que são algumas vezes distanciadas umas das outras, possui uma trilha de acesso ao ribeirão em diferentes locais.

Porém, o que nos comprova que os quintais são extensões do ribeirão, é o fato de que as casas geralmente ficam de costas para o rio. Diferente de outras formas de organização que as constroem à frente dos rios, destina-das somente ao lazer.

Por meio da observação dessas atividades, é possível entender muitos as-pectos de da cultura dos moradores do Ribeirão dos Bois. O tempo de re-unir as mulheres e crianças é quando os homens praticamente não apare-cem nos locais. Não é uma regra, mas, na maioria das vezes pela manhã e ao final da tarde, esse é o espaço delas e eles não se aproximam. Quando o fazem logo gritam: “Lá vai homem!”.

Nesses locais dificilmente se vê gados, e consequentemente homens, os terrenos são acidentados com pedras e quando não, possuem cercas para que o gado não se aproxime. O gado é levado pelos homens para locais

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propícios para a desedentação. Todavia, está para homens e é atividade dos homens, como veremos adiante.

Águas rasas são lugares onde as mulheres trabalham. Costumam ter com pedras planas e espaçosas nas margens para que assim elas possam sentar e apoiar suas bacias, o sabão e os baldes. Existe nas pedras os locais onde apoiam as panelas para lavá-las, de forma que se sentem com os pés na água.

O lugar na pedra onde batem as roupas com o sabão para retirar-lhe a su-jeira o lugar onde apóiam-se na pedra plana para esfregarem com a escova. São elementos que preenchem o espaço e os sons do rio modificando-lhe a paisagem.

Todas essas características são apreendidas e passadas para as crianças. As meninas, desde cedo (cerca de 6 anos) aprendem a lavar as suas próprias roupas, que obviamente não são muitas. E os meninos fazem o serviço mais pesado que consista em encher as garrafas, pegar areia para as mães area-rem suas panelas, pegar alguns peixes ou tocar um gado que se aproxima. Mas, esse momento é visivelmente transmitido para as meninas, uma vez que esse lugar de trabalho é reservado às mulheres, o trabalho doméstico.

Desse modo, as águas rasas e mais próximas das casas possibilitam que as mães façam suas atividades sem se preocuparem tanto com as “crias”. De acordo com Seu Patrício o rio é um lugar de mulheres, ele diz que: “mulher é igual a pato, toda horinha está procurando um jeito de ir ao rio com a me-ninada atrás. Já homem não, fica que nem as galinhas e o galo aí ó, bebe uma aguinha, cisca um pocinho e logo arranja o que fazer pra lá”.

As águas rasas são divididas em locais onde se tomam os banhos, onde se lavam as roupas e vasilhames, e onde se recolhe a água para beber. A água de beber é por elas considerada a água boa e fica armazenada em garra-fas pet ou galões de cinco litros na geladeira. A água boa é retirada an-tes de qualquer atividade e em lugares acima de todas elas. Galizoni (et.al., 2003:138, grifo nosso) descreve a água boa como a “água fina que colocada na boca tem o sentido leve.”

Para os moradores a água de beber é aquela que está limpa e que deve ser fresca e livre de resíduos como o sabão e sujeira. Ela é coletada em lo-cais distanciados das atividades que a tornam turva, i.e, longe e acima dos

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locais onde se banham e levantam a poeira do fundo do rio, bem como aci-ma de onde se lava as roupas e vasilhames. Muitas vezes, a coleta da água boa é feita pela manhã, momento em que o ribeirão está mais limpo, devido ter passado a noite toda se autodepurando dessas atividades corriqueiras.

Vê-se claramente que os lugares se dividem de acordo com as tarefas, ve-jamos: a lavagem das roupas é a primeira atividade, logo após elas lavam os vasilhames de cozinha. Isso ocorre, pelo fato de que objetos de cozinha tornam a água oleosa, portanto preferem organizarem-se dessa maneira.

Por questão de higiene, os banhos sempre são tomados acima e afastados de onde se lavam as roupas e os utensílios de cozinha. O encontro diário no ribeirão ocorre para que essas atividades sejam feitas e que serão, logo após, transportadas para as casas. Por isso, a importância da água carrega-da que veremos a seguir.

3.3 - Da Água carregada

Posterior aos afazeres que mencionamos, as mulheres levam seus baldes e as crianças levam as garrafas com água que são carregadas e muitas vezes equilibradas em suas cabeças. As meninas menores aprendem logo cedo essa técnica, já os meninos não se interessam muito, uma vez que tais ati-vidades não estão direcionadas a eles, futuros homens.

Portanto, a “água carregada” para as residências é utilizada nas atividades domésticas, isto é, para cozinhar, para limpar a casa e aguar as ervas dos quintais (condimentos, plantas ornamentais e medicinais). Transportada nos baldes e vasilhames maiores é muito bem regrada e são restritas às ati-vidades domésticas, por que água carregada, “não tem tanto que chegue” (GALIZONI, et.al., 2003). Após ser recolhida ela é despejada em galões de 50 ou 100 litros que costumam ficar armazenados na cozinha ou nos quin-tais adjacentes a ela e evitam a todo custo o seu desperdício.

Em toda casa pode se perceber que em nenhum momento se desperdiça água. Utilizam-na com parcimônia e a destinam para as atividades espe-cíficas. Quando por algum motivo se lava algum vasilhame ou roupa nas residências, o que geralmente ocorre na residência de Dona Paula com 94 anos, a água utilizada será reaproveitada para aguar sua pequena horta de mandioca, abóbora e outras plantas ou para as galinhas beberem.

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É possível perceber esse costume, água alguma é inutilizada, sempre há outra atividade que poderá ser complementada com ela. Isso acontece pela dificuldade de se obter água carregada, devido à distancia das casas em re-ferência ao ribeirão, o trabalho que demanda e ao peso dos baldes. Que se dependerem das águas que viriam das torneiras, continuarão vazios.

3.4 - Da água presa

Atualmente, a dificuldade de obter água também tem relação com água encanada que chamaremos de água presa. A água encanada é obtida de um poço artesiano, localizado dentro da comunidade. O poço foi perfurado pela prefeitura de Teresina de Goiás na época em que o território foi reco-nhecido pelo governo. O projeto enviaria a água para uma caixa d’água no centro da comunidade do Ribeirão dos Bois que seria distribuída, logo após, para as casas. Mas, não são todas as casas que receberam tal benefício.

Essa água, como os moradores relatam “mais falta do que tem”. Pelo fato dela ser compartilhada entre algumas residências do Ribeirão dos Bois, Diadema e a escola, o pequeno plano da prefeitura não alcançou muito sucesso. O poço segundo eles é bom (possui muita água boa para beber), mas a bomba que a prefeitura disponibilizou para retirar essa água é de má qualidade e não suporta a grande carga despendida pra distribuir essa água. Por isso, ela não está funcionando. Os moradores revelam que raras vezes o funcionário da prefeitura aparece para restaurar a bomba. Mas, no passo de uma sema-na, ela se estraga novamente, e deixa outra vez as caixas d’águas vazias.

O consumo da água presa é de certa forma mais individualizado, questão que acarretaria um menor fluxo de reuniões no ribeirão. Mas, percebe-se “que essa condição costuma implicar numa abundancia ou escassez par-tilhada ou comunitarizada” (GALIZONI, et al., 2003, p. 136). Porque, mes-mo que houvesse água diariamente nas residências, saberiam utilizá-la de modo consensual, pois até mesmo a água do poço é compartilhada entre todos. Além disso, saberiam pela própria experiência sobre a dificuldade de se obter água.

Na penúltima visita à comunidade, presenciamos um momento onde a bomba funcionava, mas as mulheres ainda assim, se reuniam no ribeirão. Alegava-se que o trabalho é mais rápido, dando-nos provas claras de que a relação com a água corrente está inserida em seus costumes.

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A água presa, nesse caso, servia para amenizar o grande fluxo de água car-regada, uma vez que a utilizavam para encher os mesmos galões e garrafas para colocar na geladeira. A água presa era também armazenada de modo que assegurassem sua disponibilidade. Pareceu-nos que para eles águas que não correm constantes, são propensas à finitude.

Há casos em que os moradores optam por comprarem bombas e man-gueiras para abastecerem suas casas. É bastante usual comprarem-nas de forma compartilhada e distribuir água entre os parentes nas residências mais próximas. A esse esquema Marinho (2008) denominou “água de re-gra”, onde os moradores puxam a água do ribeirão ou fontes mais próximas e jogam nas caixas d’água. Porém, é um benefício caro, uma vez que os mo-radores arcam pela obra, compra e instalação dos materiais.

Por esse motivo, quase não se vê. Muitos não possuem caixas d’água nas residências e reservam essa água em galões ou a deixam cair diretamente no “jirau”. Segundo Marinho (2008, p. 144) “a água forma um pequeno cór-rego até desaparecer na terra seca, pois não há torneiras para regular o fluxo de água”. O que pudemos perceber na comunidade é que essa água não é desperdiçada, pois utilizam a técnica de regado, i.e, as plantas pre-sentes nos quintais geralmente são colocadas nesses locais onde correm as águas, ou em pequenos poços no chão de terra para as galinhas cisca-rem. Sejam elas já utilizadas em alguma tarefa ou não, “cumprem o seu destino de circular” (GALIZONI, et al., 2003, p. 138).

3.5 - Das águas fundas e perigosas: de homens e bois

Se o destino das águas é circular, retonaremos às águas seus lugares no ribeirão dos Bois. O ribeirão de águas perigosas (fundas) é o lugar dos ho-mens e onde pescam peixes grandes ou médios em maior quantidade para o consumo doméstico. Quando se pesca muito, os peixes são divididos en-tre os parentes.

Entretanto, esses lugares do ribeirão não podem ser frequentados por crianças pequenas e por isso é “um lugar de homens e meninos homem”, como eles mesmos dizem. Como as mães dedicam seu tempo a cuidar das casas e dos filhos, pouquíssimas vezes elas podem acompanhar os homens nessas jornadas mais distantes.

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Os homens desempenham seus trabalhos nas roças, cuidam do gado e muitos deles sempre trabalharam fora em fazendas e nas cidades. Quando trabalham próximos à comunidade retornam aos finais de semana, de outro modo passam até meses fora. Os homens que permanecem na comunidade utilizam o ribeirão em raros momentos, e quando ocorre vão para locais mais fundos para pescar.

Todos os Kalungas homens que moram na região dos vãos, tem fama se se-rem bons vaqueiros e viajantes e eles valorizam-na. O trabalho principal dos homens associa-se à criação de gado, visto que no sertão, existem muitos pastos, ou seja, terras planas com muitas gramíneas para o gado se alimentar.

Geralmente, são criados em regime de solta, no meio da mata e ao se des-sedentarem os homens tocam o gado para pontos específicos na beira do ribeirão onde há terra plana. Digamos pelo fato de muitos lugares do ribei-rão ser margeado por pedras, possuindo, assim, um relevo bem acidentado.

O gado também é criado em currais um pouco mais além dos quintais, fei-tos com cercamento de madeiras muito bem posicionadas uma em cima das outras. Mas, devido à dificuldade de transporte de água para os currais, os homens preferem deixá-los soltos. Por esse motivo, costumam colocar cercas de madeira, ou (raras vezes, hoje um pouco mais) de arame farpado ao redor dos quintais, para que o gado não se aproxime das plantações.

O gado é para os moradores um dos maiores investimentos, uma vez que se reproduzem facilmente. Sendo assim eles os comercializam e utilizam sua carne durante os festejos ou, vez em quando, vendem para a cidade. Contudo, o consumo da carne é quase sempre destinado à subsistência lo-cal e é comumente compartilhada entre os parentes.

Seu Patrício conta que anteriormente as coisas eram mais difíceis, fato que levava os homens se aventurarem em grandes viagens pelas águas peri-gosas. Evento que está, também, associado ao consumo da carne bovina. Nosso anfitrião relata que por muitos anos viajaram para obterem sal uti-lizado na conserva da carne. De acordo com ele “o barco descia o Paranã, alcançava o rio Tocantins até chegar ao topo do mundo, lá em Belém até”.

Essas expedições eram realizadas em pequenas embarcações que subiam o Paranã, o rio Tocantins e chegavam à cidade de Barreiras na Bahiae mui-tas vezes seguia do rio Tocantins ao rio Amazonas e desembarcavam em

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Belém do Pará. Eram expedições que duravam de meses a um ano e os Kalungas de várias comunidades levavam o couro de seus bois para troca-rem por sal e querosene para os lampiões.

Levavam, ainda, outros mantimentos produzidos nas comunidades, como: arroz, feijão, farinha de mandioca, sabão de Tingui2 feito pelas mulheres e gordura animal para trocar por aquilo que necessitavam. Em viagens feitas no chão, todo o mantimento era transportado no “lombo do burro” e levado no interior de uma caixa feita de couro de boi denominada por eles, bruaca.

Vimos que as águas fundas são lugares dos homens, sertanejos e explora-dores dos rios, criadores de gado e bons produtores de lavouras. Devemos saber, porém, que existe uma água que orienta todos estes aspectos da vida do ribeirinho, do pescador, da lavadeira e das crianças que estão a aprender com os seus. A água que vem do céu.

3.6 - Da Água de chuva

Uma das características importantes para a compreensão das atividades de pesca, plantio e coleta de frutos no Ribeirão dos Bois são apreendidos pela influencia do clima. A forma como o grupo percebe o clima, como se organizam em trabalho e os símbolos que situam esses ordenamentos so-ciais, são imprescindíveis para o entendimento de seu modo de vida.

A região do sertão, onde se encontra a comunidade, apresenta sazonalida-des bem definidas ao longo do ano. Um período chuvoso, que se inicia em meados de outubro e tem seu fim durante o mês de março, e um período de estiagem entre os meses de abril e setembro. O clima determina todas as atividades da comunidade como, festejos (que frequentemente ocorre antes e após as chuvas) o preparo da roça de toco3 para o plantio, a troca de sementes e mudas para os quintais e até mesmo a vida em comunidade.

2 Semente de árvore típica do cerrado, que produz uma goma análoga ao óleo que é muito utilizada pelas

mulheres para produzir sabão.

3 Roça de toco é como os Kalunga denominam o costume de retirar algumas árvores em um pequeno

espaço no quintal, segundo eles é o processo de “limpar o terreno para plantar”. Retirar o mato espalhar

as folhas e cinzas que restaram da queimada do local para adubar o solo. Esse é o preparo da terra que

ocorre com total controle sobre as queimadas. Pois, como suas casas geralmente são feitas de palhoça

e o cerrado utilizado como fonte de alimento e remédio, esse aspecto é relevante em seus costumes.

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O tempo de preparo para o plantio ocorre logo no início das chuvas, nos meses de outubro a março. Toda a organização social elabora-se em fun-ção da chuva, que concebe o momento de trabalho e a premissa de fartura. Já a temporada de seca, que caracteriza-se pela total supressão das chu-vas, demanda uma organização social intensificada. O tempo “derradeiro” das chuvas, no mês de abril a setembro marca o inicio da colheita, o prepa-ro para o feitio da farinha e anuncia uma época de fartura.

Entretanto, nos meses posteriores a abril ainda se mantém alguns quintais plantados, porém inicia-se a estação da seca que prolonga, sobretudo nos úl-timos anos. Pudemos observar, devido às queixas dos moradores acerca da di-minuição das chuvas, que muitas plantações tem se perdido pela falta de água de chuva. Em períodos como esse, o trato do gado e das criações, bem como dos quintais e plantações exige muito trabalho. De acordo com os moradores mais velhos “muitos gados adoecem e morrem, por falta do capim que seca”.

O espaço da comunidade e os eventos que nele ocorrem, além de ser parte dos costumes construídos, estão relacionados com as crenças e as formas autônomas de entender os ciclos das atividades da comunidade. A organi-zação do grupo em decorrência dos movimentos naturais, geralmente está associada à devoção. Muitos moradores aferem a falta de chuva e a fartura de alimentos e água às suas crenças. É costume realizar festejos para de-marcar a passagem do tempo, bem como o começo das chuvas e o período de estiagem. As festas são cíclicas e por isso marcam o momento das co-lheitas, da divisão do trabalho e o início do tempo de fartura.

Os festejos e a devoção à padroeira da comunidade Nossa Senhora Aparecida são reuniões que costumam ocorrer logo após as chuvas que marcam o início das colheitas. Porém, pudemos ver que, além da mudança de clima, algumas situações transformam os hábitos e costumes do grupo que passam por constantes ressignificações.

A atitude do padre que raramente visita a comunidade, após intensas dis-cussões com o grupo e que ainda hoje não encerrou em total aceitação, foi a de alterar a data do festejo de Nossa Senhora Aparecida que ocorria dia 13 de maio para o dia 12 de outubro. Embora alguns moradores façam críti-cas sobre a comemoração que atualmente encontra-se fragmentada, vê-se que a folia do levantamento do mastro de Nossa Senhora no espaço central das comunidades continua a acontecer no dia 13 de maio.

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Assim, os moradores fazem o “giro da folia” ao saírem em cantoria pelas casas das comunidades levando a bandeira da santa e sua benção. Já o fes-tejo maior, “o Império”, hoje acontece em outubro. O Império consiste na reverência ao Rei e à Rainha representados por moradores que são esco-lhidos anualmente para essa homenagem.

Mas, devido à mudança das datas eles organizam o levantamento do mas-tro para Nossa Senhora e uma folia menor, i.e., que não circula todas as ca-sas e fica restrita apenas aos locais mais próximos ao festejo. Assim, a festa de devoção a Nossa Senhora Aparecida faz-se oficialmente (como dita o padre) na data de 12 de outubro que é quando o padre vem e reza a missa para a santa.

Se houve um acordo entre os moradores sobre a mudança da data dos fes-tejos, não sabemos ao certo, por isso continuam a realizá-lo, agora, duas vezes ao ano. Segundo o padre que reside em Cavalcante e coordena igreja uma vez ao mês, essa é a data oficial católica da santa padroeira local. Uma moradora que nesse caso não se identificou, relata que:

Aqui toda vida foi em 13 de maio, porque Nossa Senhora Aparecida é padroei-

ra daqui. Aí deu da gente fazer essa outra data, mas sempre foi assim, d’agora

mudou por que o padre falou que é dia 12 de outubro.

A questão que nos chamou atenção, é que na data de 12 de outubro já estão se organizando para o período chuvoso. É o momento em que as roças es-tão vazias e necessitam ser preparadas para o próximo plantio. Esse aspec-to revela algo que o padre não observou: o sistema social se organiza pri-meiramente pelas relações no tempo, ou melhor, nos tempos; da chuva, do plantio, da colheita, da fartura de alimento e das trocas entre os parentes. Portanto, são festas cíclicas e políticas que devido às mudanças, poderão tornar-se incompletas, pela inversão dos tempos da comunidade.

Embora a falta de chuva ocorra devido ao aumento da seca nos últimos anos, tais eventos podem ser analisados de acordo com as narrativas dos moradores mais velhos, que apresentam relatos sobre as transformações observadas no local. Dona Maria, esposa de Seu Sérgio conta que houvera “O tempo das águas, da fartura de água né, fartura de peixes, de plantações, de mata densa, cheia de remédios...” Os mais velhos dizem que os tempos mudaram e para Dona Cinésia “O mundo virou”.

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A fé dos Kalunga é constantemente observada, quando dizem que o que deus faz pode ser notado na natureza. Se chover muito é por que deus quer, e se chover pouco é também da vontade dele. Os festejos de devoção estão relacionados à dádiva de gratidão e do mesmo modo pelo pedido da fartura, como se pode observar nas músicas cantadas na Sussa, dança tra-dicional Kalunga, por exemplo. Assim, canta-se uma delas:

Chove chuva hoje, pra meu boi beber, chove chuva hoje pra meu boi beber. Pra

nascer capim morena pra meu boi comer, pra nascer capim morena pra meu

boi comer. Boi, boi, boi sinhá. Boi, boi, boi sinhá.

4 - Considerações finais: “eta água boa de meu deus”

Analisamos neste artigo um grupo que utiliza a água como um bem comum e compartilhado e que, neste caso, não a observa apenas como um “recur-so”. A perspectiva que foi-nos apreendida através das narrativas dos mo-radores da comunidade é a de que a água é um bem que deve ser utilizado por todos.

Com esse pressuposto, ela torna-se rio, córrego, ribeirão, chuva e nas-centes, onde se abastecem famílias que edificam a partir dela o trabalho e sua cultura. Mais que isso, ela deve ser recíproca, uma vez que é dádiva de Deus. A água para o ribeirinho vem do céu como chuva, corre em rios que enchem-se de peixes, molha a mata, evapora-se para permitir o tempo de plantio, colheita e logo após retorna em forma de chuva. A chuva preenche os rios que, para a comunidade, é o espaço cotidiano de trabalho, sociabili-dade e lazer, e proporciona um novo ciclo de manejo da terra.

Conclui-se então, que mesmo que alguns eventos tentem transformar al-gumas situações relativas às suas crenças, costumes e cultura vê-se um grau de ordem na tradição do grupo. Que se reorganiza na interminável sucessão de eventos sociais e naturais.

Talvez devamos aprender a pensar essas comunidades como um rio de forte correnteza, que não pára nem morre. Assim, um contínuo, que quan-do tentam interrompê-lo por um instante foge-lhe pelas fendas. Pois que, o destino das águas é circular.

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A REDE QUE CARREGA O DOENTEsaúde da população negra: comunidade kalunga

Tatiana Oliveira NovaisElaine Fernandes da Cunha Mesquita

1 - Introdução

É inconcebível que, ainda nos dias de hoje, pessoas carreguem doentes em uma rede até a cidade, como se fossem liteiras1 (NEIVA et al, 2008). Porém, esta situação é descrita por alguns membros da comunidade Kalunga, que fica a nordeste do Estado de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, a aproxi-madamente a 600 km de Goiânia e a 400 km de Brasília, capital Federal (MARINHO, 2009).

Na década de 1980, a antropóloga Mari Baiocchi realizou um estudo nes-ta comunidade, bastante oportuna para os habitantes da região, pois es-tavam sendo ameaçados por grileiros e fazendeiros. Tal estudo contri-buiu para que fosse concedido o título de Sítio Histórico e Patrimônio

1 Que a comunidade chama de leiteira, e esta rede também substitui o caixão, quando é um óbito infantil,

a criança é enterrada em um caixão feito do caule do buriti.

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A REDE QUE CARREGA O DOENTE

Cultural Kalunga (SHPCK), em 1991 (BAIOCCHI, 2006; SILVA, 2007; ANJOS e CYPRIANO, 2007). O SHPCK integra três municípios: Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás.

Este artigo busca discutir o acesso à saúde desta comunidade. E nesta in-trodução apresentará o referencial teórico de saúde escolhido para subsi-diar a reflexão e discussão do acesso à saúde dessa população.

A Constituição Federal considera saúde como direito social e univer-sal (BRASIL, 1988). E na Lei Orgânica da Saúde afirma-se que os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País; tendo como determinantes e condicionantes da saúde: alimentação, moradia, sanea-mento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, atividade física, transporte, lazer, e o acesso aos bens e serviços essenciais, entre outros (BRASIL, 1990).

Estes direitos contemplados no Sistema Único de Saúde (SUS) foram cons-truídos de maneira democrática durante a Oitava Conferência Nacional de Saúde, em 1986, no período de redemocratização do país, a qual pela pri-meira vez contou com ampla participação da sociedade civil organizada (as-sociações, movimentos sociais, sindicatos, políticos e professores) que vol-taram do exílio imposto no período da ditadura militar (SILVA et al., 2010).

Desde então, vem crescendo o número de movimentos sociais e institui-ções em defesa dos direitos dos negros e das populações tradicionais qui-lombolas. Pode-se citar o Movimento Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas; Fundação Cultural Palmares; as Associações das Comunidades Negras Rurais; Movimentos Quilombolas; Movimentos de Mulheres Negras entre outros (BATISTA, WERNECK, LOPES, 2012).

O conceito de saúde colocado na Constituição é considerado amplo e avan-çado, porém vai mais além, no discurso de abertura da Oitava Conferência proferido por Sérgio Arouca. Incluindo como determinantes: o acesso e a posse de terra; acesso às informações; sistema político que respeite a livre opinião e ausência do medo (“medo da violência resultante da miséria, ou do governo contra seu próprio povo”) (OITAVA CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1986). Estes determinantes não estão na Constituição. Desta for-ma, pautamos, neste artigo, que o conceito de saúde contemple também tais determinantes.

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Nesta mesma Constituição, no artigo 68, foi garantida pelo Estado a pro-priedade definitiva aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras. Este artigo constitucional foi escrito com o auxílio da Antropóloga Mari Baiocchi, que, também, foi responsá-vel pela garantia do título de SHPCK (BAIOCCHI, 2012).

Porém mesmo com estas e outras garantias, é notória a grande desigual-dade social em relação à raça, etnia e cor2. A desigualdade se dá no aces-so: à saúde, à seus determinantes sociais e aos serviços essenciais, como: saneamento básico; nos índices de mortalidade; nas relações de traba-lho e renda; na baixa escolaridade; nas condições de moradia; sem contar que o racismo, que os negros sofrem desde criança, afetam a saúde e a autoestima.

Estudos apontam que pessoas negras ou pardas têm maiores riscos as-sociadas ao sofrimento mental, mortalidades por tuberculose, malária, doença de Chagas, AIDS, alcoolismo, morte materna, morte sem assis-tência, morte por causas mal definidas e causas externas por violên-cia; e sendo a população negra aquela que possui as piores condições de vida, em especial aquelas que vivem em comunidades rurais quilom-bolas, portanto sendo mais vulneráveis (BATISTA, 2005; BRASIL, 2010; ONU-BR, 2014).

Apesar da Constituição determinar a igualdade; as diferenças culturais e de cor da pele foram transformadas em desigualdades historicamente construídas pela condição da diferença, mascarando através expressão raça e cor, a condição de segregação dos negros dentro da sociedade. Deste modo, os termos raça, cor e etnicidade são cate gorias sociais, refe-rente a grupos que têm em comum uma herança cultural, um histórico de opressão e discriminação (DEMO, 2001).

O Brasil possui o maior sistema de saúde público do mundo, o SUS, que garante acesso universal e integral, e, além disso, tem como princípio a

2 O objetivo deste artigo não é aprofundar o conceito de “raça”, “etnia” e “cor”. Estes termos assim são ci-

tados na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Considera-se o quesito cor como va-

riável importante na epidemiologia e nos prontuários de saúde (BRASIL, 2010). Ao visitar a comunidade

e perguntar a um senhor de mais de 70 anos sobre a sua cor, ele respondeu: “Diz que é preta. Mas preta

é a cor do capeta”. Denotando o preconceito que a população negra sofre por séculos.

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equidade, como forma de promover a inclusão social, redução das desi-gualdades (SISSON, 2007).

Foram debatidas com os movimentos sociais e elaboradas portarias que instituíram as Políticas Nacionais: Saúde Integral da População Negra, em 2009; Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, em 2011. Estas políticas integradas a outras são chamadas de Políticas de Promoção da Equidade, que têm como objetivo de reduzir as vulnerabilidades.

Existem várias políticas afirmativas em prol da população negra, porém a maioria destas políticas é recente, escritas a partir da primeira década deste século. A implementação destas ainda ocorrem de forma lenta e en-contram várias barreiras, como o racismo, que não é declarado no Brasil. E que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o racismo é estru-tural e institucionalizado, permeando todas as áreas da vida. Contrapondo o mito de que no Brasil há democracia racial (ONU-BR, 2013).

A comunidade quilombola Kalunga é a maior do Brasil, com uma área de cerca de 250 mil hectares, cercada por serras e vãos, locais de di-fícil acesso. Compostas pela maioria de negros que buscaram a liber-dade, fugindo dos castigos impostos durante a exploração das “Minas dos Goyazes”, há mais de 200 anos (BAIOCCHI, 1986; BAIOCCHI, 2006; BAIOCCHI, 2012).

Em um estudo recente na comunidade Kalunga, verificou-se a persistência de fragilidades relacionadas às questões sociais e de saúde, e sua vulnera-bilidade bem como a dificuldade de promoção dos processos inclusivos de universalidade e equidade em saúde (VIEIRA, MONTEIRO, 2013).

O acesso aos serviços de saúde é uma das principais queixas, junta-mente com a questão fundiária, acesso: ao transporte, emprego e ren-da, lazer, saneamento básico e educação (NEIVA, 2009; PROJETO ETNODESENVOLVIMENTO E ECONOMIA SOLIDÁRIA, 2013).

No capítulo seguinte apresentaremos os caminhos percorridos para a dis-cussão do acesso à saúde daqueles, que ainda carregam seus doentes na rede até a cidade. Salientando também sobre suas especificidades cultu-rais, de um acesso à saúde que respeite o modo de ser, suas práticas e conhecimentos.

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2 - Desenvolvimento: Caminhos

entre serras, vãos e diálogos

A Universidade Federal de Goiás (UFG) desenvolve vários projetos de pesquisa, ensino e extensão na comunidade Kalunga. O primeiro destes foi “Kalunga, povo da terra”, coordenado pela professora Mari de Nazaré Baiocchi, seu projeto tinha como eixos: a Saúde, Educação e Terra. Por meio deste projeto foi possível desenvolver a primeira vacinação na região que se deu de avião por meio da Organização de Saúde do Estado de Goiás (OSEGO) (BAIOCCHI, 2002).

Muitos projetos institucionais e de universidades, em especial Universidade de Brasília (UnB) e UFG, são desenvolvidos na comunidade, provas disso são as muitas publicações a respeito da comunidade Kalunga, com mais de 130 trabalhos científicos, entre eles: teses, dissertações, monografias e artigos, alguns reunidos por uma das autoras no sítio da internet, da Faculdade de Odontologia da UFG – <http://odonto.ufg.br/pages/45140-trabalhos-acade-micos-sobre-a-comunidade-kalunga>, acessados em 17 de setembro de 2014.

2.2 - Entre caminhos: O método se faz ao caminhar

Este artigo retratara algumas ações de dois projetos institucionais, com parceria da UFG e da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES): 1) pro-jeto de extensão - Saúde População Negra - Comunidade Kalunga e 2) pro-jeto de pesquisa: O uso de álcool e outras drogas e suas redes de atenção na comunidade Kalunga; este último financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), edital 06/2012.

Para discutir o acesso à saúde desta comunidade, serão analisados três relatórios técnicos: 1) Visita de representantes e da superintendente da Superintendência de Políticas de Atenção Integral à Saúde (SPAIS) na co-munidade; 2) 1º módulo do Curso de Extensão: Promoção da equidade e ra-cismo institucional e 3) 6º módulo do Curso: Práticas Populares em Saúde.

Além disso, os dois anos de observação participante na comunidade, e pes-quisa em base de dados do Sistema Único de Saúde (SUS), o DATASUS e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com ênfase no muni-cípio de Cavalcante, onde está situada a maior parte do SHPCK.

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2.3 - Diálogos institucionais

Em 2013, houve uma parceria da UFG com a SES, com aproximação maior da Coordenação de Promoção da Equidade, que está na Gerência de Programas Especiais, na SPAIS. Em julho deste mesmo ano a superinten-dente e sua equipe visitaram a comunidade Kalunga, indo às localidades do Engenho II, Vão do Moleque (Salinas, Taboca, Redenção, Altamira, Saco, Congonhas, Pé do Morro), Vão de Almas, reunindo-se com lideranças, re-presentantes do poder executivo e legislativo municipal (prefeito, verea-dores, secretários municipais), ACS e equipes de saúde. A superintenden-te e sua equipe Tiveram a oportunidade de visitar várias casas Kalunga, acampar em seu território e vivenciar a dificuldade de acesso à água, ener-gia elétrica, falta de banheiros e dificuldade de acesso à Saúde.

2.4 - O curso com mediador do diálogo entre os ACS e os serviços de saúde

A partir dos problemas de saúde levantados e da necessidade de forma-ção com demandas específicas desta comunidade foi criado o Curso de Extensão em Saúde da População Negra (cadastrado como projeto de ex-tensão na UFG, com número de cadastro FO-116), resultado concreto desta parceria, e permitindo uma aproximação dos serviços de saúde de Cavalcante. Curso com duração de um ano, de novembro de 2013 a no-vembro de 2014, com encontros mensais, e facilitados por técnicos das ge-rências e coordenações da SPAIS e da Superintendência de Vigilância em Saúde (SUVISA); por professores e pesquisadores da UFG, que estudam a temática de saúde da população negra.

Este curso acontece em Cavalcante, município com maior extensão do SHPCK. Vale considerar que nem toda a extensão territorial rural des-tes três municípios é SHPCK, com localidades rurais, como: Vila São José, Vão do Rio Claro, Vão das Caldas, Povoado Rio Preto, Horta do Carmo, Limoeiro, entre outras, com ACS que participam do curso e que cobrem estas regiões.

Durante o curso notou-se semelhanças das necessidades em saúde destas outras localidades, como a dificuldade de acesso aos serviços e condições de morbimortalidade, devido às condições geográficas, sociais e de cor/raça semelhantes.

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Participaram deste curso, cerca de 40 pessoas, sendo 30 participantes de Cavalcante, cinco de Teresina e cinco de Monte Alegre de Goiás. Sendo a maio-ria de ACS, e parte é de enfermeiras, técnicas de enfermagem e fisioterapeuta. No total, 29 são ACS, 22 são homens e sete mulheres, e doze deles são do SHPCK, sendo apenas uma mulher. A questão de gênero impacta nas ações de saúde desenvolvidas pelos ACS; visto que muitas mulheres sentem constrangidas ao procurá-los. Durante este ano de convivência, pode-se notar o grande interes-se de todos no curso, mas principalmente a assiduidade dos ACS do SHPCK.

A metodologia utilizada nos módulos/encontros do curso foi a Educação Popular, inspirados nos ensinamentos de Paulo Freire, onde os participan-tes de modo coletivo apresentavam e discutiam os problemas vivenciados e possibilidades de ação.

Foram usadas técnicas projetivas3, Teatro do Oprimido, Círculos de Cultura, sistematizações criativas, técnicas de autocuidado e integração, entre ou-tras. Um recurso, importante para estas atividades, foi um mapa gigante do território Kalunga, nos reunindo sempre em torno dele, se constituindo em um elemento de mística4 para o curso.

O mapa identifica os principais rios, riachos e localidades descritas no Relatório Técnico Científico do SHPCK coordenado pela professora Mari Baiocchi (BAIOCCHI, 2012). Como todo mapa é bidimensional, e não re-trata suas serras e vãos. Por meio deste mapa foram trazidas reflexões a respeito da territorialidade e da realidade. O mapa ao longo o processo do curso foi sendo transformado, ganhando novos limites e localidades, de modo a retratar o território de todos os participantes do curso.

Os municípios, onde está localizado o SHPCK, foram uns dos primeiros a serem contemplados pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde em 1997. Enquanto os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) de todo o país recebiam bicicletas como transporte de trabalho, os Kalunga recebiam burros e mulas para sua locomoção (O Popular, 1998).

3 Proporcionam um amplo campo de interpretação no que trata do resgate do inconsciente do indivíduo

(FORMIGA;MELLO,2000).

4 A mística é inserida como pedagogia dos gestos, onde são trazido os principais elementos que repre-

sentamaquelegrupo,comoformadesocializaçãoemobilização(COMILO;BRANDÃO,2010).

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Em 2008 e 2009 foi realizado um curso para os ACS pela Escola de Saúde Pública do Estado de Goiás, por meio de metodologias ativas, para facili-tar a aprendizagem, visto que a maioria dos ACS tem baixa escolaridade, as metodologias ativas permitem a participação e o diálogo, como forma de conhecer a realidade e valorizando o conhecimento dos participantes (SANTOS, 2012). Estes ACS continuam a trabalhar ainda nos dias de hoje, alguns com quase 20 anos de profissão.

Geralmente nas grandes cidades, a maioria dos ACS são mulheres (FRAGA, 2011), pois procuram empregos flexíveis e próximos ao trabalho, que pos-sam conciliar as atividades domésticas, visto que o ACS deve morar na sua microárea de abrangência.

Porém, em regiões onde há a escassez de emprego, o trabalho de ACS, ge-ralmente, é masculino, sem contar que por trabalharem na zona rural, e em que as casas são, na maioria, afastadas uma das outras, tem que andar mui-tos quilômetros, seja a pé, de moto, ou no lombo da mula ou cavalo.

Um dos ACS Kalunga, participante do curso, relatou a Revista Brasileira de Saúde da Família que seu cavalo morreu afogado atravessando um dos rios da região (RBSF, 2008). As motos utilizadas pelos ACS Kalunga são pró-prias, de modo que o município não pode arcar com a manutenção.

Por conta disto, e da realidade verificada pela Superintendente da SPAIS, está correndo um processo para que sejam licitadas e compradas motos que atendam as necessidades da região, visto que as motos devem ser mais robustas, para enfrentarem a precariedade das estradas. Mas, ainda há en-traves burocráticos. E como contrapartida, o município deverá contribuir com os ACS no processo de aquisição de carteira de motorista.

3 - Resultados e discussão: os Kalunga e a Rede

3.1 - Um pouco sobre os Kalunga

Os Kalunga são camponeses de roçados para consumo próprio, e venda dos excedentes nas cidades próximas, ou para os vizinhos e parentes. Seu isolamento era tão grande, que eram raros os relatos de casamento en-tre brancos e negros, com conservação da mistura dos traços dos índios

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nômades que viviam na região (BAIOCCHI, 2006; SILVA 2007). Hoje ser qui-lombola Kalunga os confere uma série de direitos. Inclusive acesso a vários projetos e benefícios em relação à população não Kalunga, também rural com dificuldades semelhantes e menor visibilidade.

Na época da chuva muitas destas localidades ficam isoladas. Dificultando mais ainda o acesso à região e o trabalho do ACS. O mapa abaixo mostra a dimensão do SHPCK, com seus rios. Alguns dos seus riachos são sazonais.

Para tentar entender sobre as dificuldades do acesso à região e das loca-lidades, tentaremos descrever as diferenças geradas por especificidades geográficas. Além de haver uma divisão entre ser Kalunga e não Kalunga; há a divisão interna dos Kalunga por localidade, como por exemplo: Kalunga do Vão de Almas, ou do Vão do Moleque, ou do Engenho, ou do Ribeirão dos Bois, ou de Diadema, por exemplo.

A comunidade Kalunga está dividida em quatro núcleos principais: Vão do Moleque, o Vão de Almas, Ribeirão dos Bois (antigo Ribeirão dos Negros) e Engenho II (MARINHO, 2009), cada um com sua especificidade e caracte-rísticas próprias.

3.2 - Raça, cor e etnia?

Atualmente a miscigenação com os brancos é maior, e ser da cor preta/ne-gra/parda, minimamente, não é condição para não ser Kalunga, por isso, encontram-se alguns poucos indivíduos de cor “branca” e muitos que ne-gam sua origem africana, mesmo sendo reconhecidos como Kalunga, pois apresentam os critérios étnicos reconhecidos (MARINHO, 2014).

Segundo um Relatório com o Perfil das Comunidades Quilombolas: Alcân-tara, Ivapurunduva e Kalunga (2004, apud MARINHO, 2009) a popula-ção provável é de 3.752 pessoas, sendo 959 famílias, distribuídas em 884 domicílios.

Ao consultar as principais bases de dados como o IBGE e DataSUS, não é possível fazer a distinção entre grupos étnicos, como no caso dos Kalunga, nem considerá-los todos como habitantes da zona rural, visto que muitos moram na cidade, especialmente os jovens para estudar, e nem toda zona rural é SHPCK.

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FIGURA 1 - Sítio histórico Kalunga: comunidades por município

Fonte: BAIOCCHI, 2009.

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Há uma mobilidade entre o meio urbano e rural, os Kalunga vão até a ci-dade para pegarem sua aposentadoria, acompanhar os filhos que estudam, e fazerem tratamento de saúde. Outro problema, é que muitas pessoas se autorreferem pardas sendo pretas. Nesta região há a presença de outros étnicos como: ciganos e indígenas (um dos pequenos grupos remanescen-tes do massacre dos índios Avá-canoeiros, nas décadas de 70 a 90).

GRÁFICO 1 - Características segundo raça/cor dos três municípios do SHPCK

CavalcanteIndígena - 1%

Preta27%

Branca13%

Parda59%

Monte Alegre de GoiásIndígena - 0%

Preta20%

Branca15%

Parda65%

Teresina de GoiásIndígena - 0%

Preta22%

Branca15%

Parda63%

Fonte: IBGE, 2010.

A proporção de raça/cor parda, preta, branca, amarela e indígena é seme-lhante nos três municípios do SHPCK. Mesmo não tendo dados específi-cos sobre a comunidade Kalunga, adotaremos o critério cor/raça/preta e parda (adotado pelo IBGE) e zona rural, para discutir sobre o acesso à saúde.

3.3 - Desigualdades sociais

Em Cavalcante, os dados sobre a distribuição de renda mostram a desi-gualdade social. 88,5% da população, de raça/cor preta maior de 10 anos, tem a renda menor que um salário mínimo. São municípios de baixa renda, mas as piores condições de renda se concentram na população autodecla-rada preta e parda. Pode-se perceber, em vídeos antigos, que na década de 90 alguns Kalunga andavam descalços. Ainda hoje muitos dormem em colchões de palha, ou estrados de madeira.

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TABELA 1 - Renda de pessoas de 10 ou mais anos de idade de acordo com critério raça/cor de Cavalcante

Renda (Salário Mínimo)

Preta % Pardo % Brancos % Total

Até 1/8 809 36,5 1.247 56,5 159 7 2215

1/8 a 1/4 425 39 552 50,7 110 10,2 1087

1/4 a 1/2 610 25,8 1.513 64 240 10,2 2363

1/2 a 1 509 30,3 953 56,6 220 13,1 1682

1 a 2 164 21,6 401 52,8 195 25,6 760

2 a 3 11 5,6 95 48,5 90 45,9 196

3 a 5 17 20,5 56 67,5 10 12 83

5 a 10 5 5,4 51 54,8 37 39,8 93

Mais de 10 0 0 4 9,8 37 90,2 41

Sem rendimento/benefícios 111 22,9 284 58,9 88 18,2 483

Total 2.661 29,5 5.156 57,3 1.186 13,2 9.003

Fonte: IBGE, 2010.

O Governo Federal realiza um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, este programa garante a transferência de renda di-retamente às famílias em condição de pobreza e extrema pobreza. Cerca de 60% das famílias dos municípios do SHPCK recebem este benefício do Programa Bolsa Família (IBGE, 2010; PORTAL DA TRANSPARÊNCIA, 2014).

TABELA 2 -FamíliasbeneficiáriasdoProgramaBolsaFamília

Cavalcante Monte Alegre Teresina

Número de famílias 2290 1995 755

Famílias beneficiárias 1380 1252 488

Famílias Bolsa Família (%) 60,3 62,8 64,6

Incidência de pobreza 2003 (%) 49,18 61,73 61,15

Fonte: IBGE, 2010; Portal Transparência, 2014.

Reflexos das baixas condições socioeconômicas são os IDH municipais destes municípios.

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TABELA 3 - IDH dos Municípios do SHPCK.

Cavalcante Monte Alegre Teresina

Classificação - Brasil 4540 º 3796 º 2870 º

Classificação - Goiás 246 º 241 º 205 º

IDH Municipal 0.584 0.615 0.661

IDH Renda 0.595 0.592 0.626

IDH Longevidade 0.808 0.816 0.817

IDH Educação 0.415 0.481 0.707

Fonte: Atlas do desenvolvimento Humano no Brasil, ranking municipal, 2010.

Legenda do IDH

Classificação Valor

Muito Alto 0,800 - 1,000

Alto 0,700 - 0,799

Médio 0,600 - 0,699

Baixo 0,500 - 0,599

Muito Baixo 0,000 - 0,499

O estado de Goiás tem 246 municípios, Cavalcante é o que tem menor IDH, Monte Alegre é o sexto pior, e Teresina de Goiás está entre os 50 piores IDH do estado. O IDH de Cavalcante é 1025º pior IDH do país. Destaque para a longevidade, que é considerada muito alta nos três municípios, po-rém os piores indicadores estão na educação e na renda (PNUD, 2010).

Grande parte dos Kalunga encontra-se abaixo da linha da pobreza e alguns abaixo da linha de indigência (TIBURCIO; VALENTE, 2007). Alguns poucos conseguem alguma renda com o turismo, na comunidade do Engenho II, como guias de turismo ou como vendedores comida aos turistas. Os re-cursos do Programa Bolsa Família são muito importantes para a comuni-dade, bem como as aposentadorias e benefícios da Previdência Social.

Em 2010 os dados do IBGE apontam a taxa de alfabetização é de 76,3% de pessoas de 10 anos ou mais de idade (IBGE, 2010). Porém, na comunidade, pode-se verificar que poucos idosos sabem ler e escrever, ou ao menos es-crever seu próprio nome.

A educação é uma condição que impacta na saúde e no trabalho. Muitas jovens Kalunga saem da comunidade, com esperança de uma vida me-lhor, e por sua baixa escolaridade submetem-se a empregos análogos ao escravo.

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Nas décadas de 90, era comum famílias, de Brasília e Goiânia, procurarem moças para trabalharem sem carteira assinada, com jornadas acima de oito horas, dormindo no próprio emprego, com promessas para estudar na ci-dade. Acontecem seminários anuais sobre o trabalho escravo no município de Cavalcante.

A ausência do medo resultante da miséria descrito por Sérgio Arouca nos remete a uma história, que confirma a vulnerabilidade deste povo, tam-bém fora de seu território. Vários projetos institucionais chegam até a co-munidade; um destes possibilitou o ingresso de uma moça de 19 anos no Instituto Federal Goiano, em 2013, porém a mesma antes de começar o ano letivo, foi a Brasília, onde trabalhava. Lá se envolveu com um sujeito, que por ciúmes, a matou e depois queimou seu corpo.

Há relatos que jovens Kalunga vão trabalhar em outras cidades vizinhas e se envolvem com drogas. Expressão da violência no país é o verda-deiro genocídio de jovens pobres, sobretudo da cor preta. Estudos re-centes têm identificado à existência de uma concentração de mortes violentas nesta população. Assim, são as pessoas pretas e pardas, entre elas, as mais jovens, as vítimas preferenciais da violência letal (RAMOS, LEMGRUBER, 2004).

3.4 - Rural e urbano: Serras e Vãos

Segundo os dados do IBGE (2014), praticamente metade da população de Cavalcante mora na zona rural, com uma maioria de pessoas acima de 50 anos, sendo cerca de 60%, em relação à população da mesma idade re-sidente na zona urbana. Informação importante, visto que há condições de morbimortalidade relacionadas com esta faixa etária. Nas demais faixas etárias há um equilíbrio na quantidade de pessoas, variando para mais para os moradores da zona urbana.

No estado de Goiás 91% da população vive na zona urbana, e apenas 9% na zona rural. Nos municípios de Cavalcante e Monte Alegre cerca de metade de população vive na zona rural, e em Teresina, 29%.

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FIGURA 2 -PirâmidedemográficadeacordocomlocaldemoradiadosMunicípiosdo SHPCK e de Goiás

177188342531631345400571617524416

237309464476581313309419553497492

Mais 70

50 a 59

30 a 39

20 a 24

10 a 14

0 a 4

-800 -600 -400 -200 0 200 400 600 800

Cavalcante

143173263443445229271337359253252

236267382480600400375388451461525

Monte Alegre de Goiás

-800 -600 -400 -200 0 200 400 600 800

Mais 70

50 a 59

30 a 39

20 a 24

10 a 14

0 a 4

-350 -300 -250 -200 200-150 150-100 100-50 500

Mais 70

50 a 59

30 a 39

20 a 24

10 a 14

0 a 4

Teresina de Goiás91

136161198

305187177

252243203182

352665967958103759999140

Urbana Rural

Fonte: IBGE, 2014.

TABELA 4 - Habitantes dos municípios do SHPCK por local de moradia.

Cavalcante Monte Alegre Teresina Goiás

Habitantes 9392 7730 3016 6.003.788

Zona Urbana (%) 50,5 40,9 70,8 91,0

Zona Rural (%) 49,5 59,1 29,2 9,0

Fonte: IBGE, 2010.

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Porém estes dados divergem no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), este sistema é atualizado por fichas preenchidas, mensalmente, pelos ACS.

TABELA 5 - Famílias cadastradas pela ESF por local de moradia, no mês de julho de 2014 em Cavalcante.

Zona Nº Famílias Nº %

Urbana 889 2817 37

Rural 1746 5280 65

Total 2635 8097

Fonte: Ministério da Saúde, SIAB, 2014.

Segundo o SIAB, em julho de 2014, 65% população de Cavalcante resi-de na zona rural. Com 1296 pessoas a menos (-13,8%) que na contagem do IBGE de 2010. A justificativa pela diferença nos dados neste período (2010 a 2013) pode-se dever: pela mobilidade entre o rural e urbano; pos-sível migração para outras cidades; mortalidade de 109 pessoas residen-tes em Cavalcante (SIM, 2014); e/ou pela cobertura da Atenção Básica declara pelo município de 95,45%, em dezembro de 2013, no Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) (SIAB, 2013). Vale ressaltar a hi-pótese de que o censo do IBGE talvez não chegue a todos os domicílios Kalunga.

3.5 - Serviços e Redes de Atenção em Saúde

Sendo assim, o município aponta para 4,5% de pessoas que não estão sen-do cobertas pelas equipes de Saúde da Família, no total de 422 pessoas. Porém esta cobertura, muitas vezes não garante o acesso.

Prova disso, é a cobertura vacinal (multivacinação) declarada pelo municí-pio de Cavalcante de 59,66% até julho de 2014, sendo que a meta para este indicador é de pelo menos 70% (SIAB, 2014).

Cada município do SHPCK tem uma unidade de saúde na zona rural. Em Cavalcante há duas unidades de saúde, e um hospital, e apenas uma uni-dade de saúde na zona rural, com atendimentos médicos e de enfermagem inconstantes, na localidade de mais fácil acesso, no Engenho II, há 22 km da cidade.

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A Unidade do Engenho II foi construída através de recursos de uma Organização não-Governamental Inglesa, e equipada pelo Instituto HSBC Solidariedade, e Banco Itaú (CAMPOS, 2011). Nos três municípios há uma unidade de saúde na zona rural (Tabela 02), porém deve ser levada em con-sideração a grande extensão territorial destes municípios, especificidades geográficas do acesso e densidade demográfica.

TABELA 6 - Serviços de saúde dos Municípios SHPCK.

Cavalcante Monte Alegre Teresina

Hospital Municipal 1 1 0

Centro ou Unidade de Saúde da Família (UBSF)

2 2 2

UBSF – Zona Rural 1 (Engenho II) 1 (Prata) 1 (Diadema)

Unidade móvel odontológica 0 1 (Prata) 1

Fonte: CNES, 2014

Nas Romarias para as festas do Vão de Almas e do Vão do Moleque há aten-dimento da Secretaria Municipal de Saúde de Cavalcante. E em 2014, con-tou com o atendimento de um médico cubano do Programa “Mais Médicos”, uma enfermeira e técnica de enfermagem. Atualmente, em Cavalcante, há uma técnica de enfermagem que percorre a região para fazer as vacina-ções, e fica numa localidade rural não Kalunga e muito carente5.

O SUS tem como um dos principais modelos de atenção para a atenção bá-sica a Estratégia Saúde da Família (ESF). Este modelo em Cavalcante, não tem conseguido chegar até a população, como mostra reportagem do jor-nal O Globo de 07 de setembro de 2014. Reportagem com o título: “Em Goiás, os Mais Médicos não chegam aos Quilombolas”.

Esta reportagem refere-se ao fato que mesmo com três médicos do pro-grama Mais Médicos, o acesso à atenção em saúde não chega aos Kalunga, e para uma gestante fazer o pré-natal na cidade, gasta 50 reais, sendo 25 para cada trecho, e 100 reais quando tem a companhia do marido, em um caminhão, tipo pau de arara, espremida entre muitas pessoas. Além desta denúncia, um ACS Kalunga relatou a reportagem, que costumam falar que

5 Observação participante.

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a “pessoa só vai ao hospital quando já é para levar o defunto” (O GLOBO, 2014). Dois médicos do referido programa são cubanos e uma é brasileira.

O SUS tem como princípio a universalidade, em que todos têm direito à saúde. A organização de seus serviços na Atenção Básica atende a terri-torialidade, isto é cada ACS é responsável por uma microárea, com apro-ximadamente de 100 a 750 pessoas (mais ou menos 180 famílias), este ACS está ligado a uma Estratégia Saúde da Família (ESF), com uma enfermeira, médico, técnicos de enfermagem e de saúde bucal, e cirurgião-dentista.

Cada equipe é responsável por uma área, que abrange zona rural e urbana, cuidam no total, 1100 famílias aproximadamente (SIAB, 2014). Os municí-pios com comunidade quilombola e assentamentos possuem 50% a mais do valor repassado pelo Ministério da Saúde.

Mas, no caso Kalunga, como há especificidades territoriais, alguns ACS tem o número de famílias reduzidos, um ACS Kalunga tem cerca de 24 famílias em sua área de abrangência. Os dados apontam que os serviços de saú-de precisam ser organizados diferentemente do que é preconizado pela ESF, como a realidade em que os serviços de saúde se concentram na zona urbana.

Quando os problemas de saúde de maior complexidade chegam à cidade, são regulados no sistema e encaminhados para a Rede, através do Sistema de Regulação (SISREG) para hospitais e serviços em Goiânia e Campos Belos, geralmente.

Quando não conseguem ser regulados no sistema (encaminhados), algu-mas famílias, que têm parentes em Brasília ou Goiânia, tentam atendimen-to para seus familiares, que moram na comunidade, no município que re-sidem, como se fossem moradores destes municípios. Contam com uma Casa de Apoio em Goiânia, que recebe os pacientes, que estão em trata-mento, e seus acompanhantes. Os vários serviços de saúde dentro e fora do município formam uma Rede de Atenção em Saúde (RAS). Diferentemente da rede usada para carregar os doentes, a palavra rede vai adquirindo ou-tro significado.

A palavra rede é bastante utilizada no setor saúde. As RAS constituem-se em arranjos organizativos formados por ações e serviços de saúde com

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diferentes configurações tecnológicas e missões assistenciais, articulados de forma complementar e com base territorial, e têm diversos atributos; destacando a atenção básica, entendida como primeira e principal porta do SUS. A atenção básica é constituída de equipe multidisciplinar integra-da, coordenadora do cuidado, e atendendo as suas necessidades de saúde (BRASIL, 2011).

A ESF parece atender bem a realidade urbana, com adensamento demo-gráfico, e não uma zona rural tão populosa, porém com uma baixa den-sidade demográfica, como é destacado na tabela a seguir, que mostra a extensão territorial dos três municípios, e a extensão que o SHPCK ocu-pa em cada um deles. O SHPCK tem uma área de cerca de 2.650 km2

(BAIOCCHI, 2009).

TABELA 7 -DensidadedemográficadosmunicípioseextensãoterritorialdoSHPCK.

Cavalcante Monte Alegre Teresina

Área territorial (km2) 6.953 3.119 774

Densidade demográfica 1,35 2,48 3,89

Área territorial relativa à Cavalcante 1 1/2 1/9

Extensão territorial SHPCK (km2) 1.833 427 387

Área do SHPCK por município (%) 69,2 16,2 14,6

Fonte: IBGE, 2010 e BAIOCCHI, 2009.

Cavalcante possui a segunda menor densidade demográfica do estado, Teresina de Goiás e Monte Alegre apresentam também uma baixa densida-de demográfica.

O acesso e posse da terra afetam diretamente esta população, visto que a territorialidade é fortemente ligada à busca das plantas medicinais, é seu patrimônio, faz parte de sua raiz e identidade cultural. Porém, a luta pela regularização fundiária das terras dos Kalunga não está sendo um processo fácil, visto que muitos Kalunga são ameaçados por grileiros, pistoleiros, algumas famílias já tiveram suas casas destruídas (CORREIO BRASILIENSE, 2000), sem contar que no começo da década de 90 há um relato de morte.

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4 - Reinvindicações6

Durante as visitas e o curso, algumas propostas foram formuladas e discuti-das para a melhoria do acesso à saúde, sendo divididas em reorganização dos serviços de saúde, transporte e infraestrutura e recursos humanos. São elas:

a. Reorganização dos serviços de saúde

• Tratamento com a rapidez necessária nas situações de picadas de cobra;

• Atendimento das equipes de saúde e dos Médicos ao

menos uma vez ao mês em cada localidade. Atendimento

itinerante da equipe de saúde em unidade móvel;

• Enfermeira da ESF acompanhando o trabalho dos agentes

pelo menos uma vez ao mês, na comunidade;

• Aumentar o número de ACS;

• Ampliar o acesso à informação sobre as doenças;

• Realização de ações em saúde trimestralmente,

em forma de mutirões nas localidades;

• Plano de ação a ser desenvolvido por equipe

multiprofissional e intersetorial;

• Disponibilizar um dia por mês para as equipes se reunirem e

desenvolverem atividades voltadas à equipe, com apoio multiprofissional;

• Apoio de programação das ações, desenvolver cronograma de atividade;

• Participação da equipe na tomada de decisões.

b. Transporte e Infraestrutura – Acessibilidade e acesso

• Ter uma ambulância rural e veículo próprio para cada

localidade, específico para ações da saúde, que permaneça

no local sendo responsabilidade de uma pessoa da

comunidade, com manutenção periódica;

• Manutenção das estradas e construção de pontes;

6 Sistematização a partir dos relatórios do 1º módulo do Curso de Extensão: promoção da equidade e

racismo institucional e Visita de representantes e da superintendente SPAIS na comunidade.

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• Acessibilidade às consultas médicas, vacinação e a exames na cidade de

Cavalcante. Sendo que atualmente, apenas um caminhão faz o transporte

destas pessoas custeado pela prefeitura de Cavalcante uma vez ao mês;

• Na zona rural não há rede de telefonia, nem sinal de celular. Em

algumas serras, algumas pessoas conseguem falar na cidade com seus

celulares. É uma reinvindicação da comunidade a ampliação da rede

de telefonia, com a instalação de torres ou pela aquisição de antenas

captadoras de sinal via satélite e aparelhos celulares para os ACS.

c. Recursos humanos

• Necessidade de formação para atender as especificidades da

comunidade, tanto de nível superior, quanto técnico e fundamental;

• Sensibilizar o gestor municipal para a realização de

projetos, requerendo recursos financeiros;

• Melhorar a escolaridade do ACS em parceria com o município;

• Aquisição de equipamentos de proteção para trabalhar

(capa de chuva, botina, galocha, uniforme);

• Reclamação sobre a baixa remuneração e muito trabalho. Há a

participação dos ACS no sindicato, com viagens à Brasília para

lutarem pelos seus direitos, como Piso Salarial e insalubridade);

Os Kalunga vêm se organizando em associações para lutarem pelos seus direitos, como a Associação do Quilombo Kalunga (que abrange os três municípios e é chamada de Associação mãe), e associações específicas de cada município do SHPCK. Recentemente foi realizado um encontro de pesquisadores Kalunga na comunidade de Diadema, em Teresina de Goiás, para discutir a formação de um comitê para avaliar as futuras pesquisas que chegarão à comunidade.

E tem representantes Kalunga no poder legislativo, sendo 3 vereado-res em Cavalcante e 1 em Monte Alegre, sendo este ACS e participante do curso, em Monte Alegre o vice-prefeito também é Kalunga, no pleito de 2012 a 2016. Em agosto de 2014, foi realizada o 1o Encontro de Pesquisa do Território Kalunga e Comunidades Rurais desafia seus envolvidos a com-preender o papel que a pesquisa tem na construção de suas lutas, buscan-do ampliar e qualificar através dela sua ação política e pedagógica na edu-cação do campo.

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4. 1 - Algumas especificidades culturais em saúde7

Outro aspecto que merece especial atenção são as especificidades cultu-rais, em relação às práticas populares de saúde. Importante para se re-construir uma nova lógica de saúde, que compreenda a complexidade des-ta população.

No módulo do curso sobre Práticas Populares de Saúde, a metodologia uti-lizada foi a dos círculos de cultura, criada por Paulo Freire. Esta metodolo-gia permitiu a sistematização das práticas populares mais comuns, sendo elas: a) parteiras; b) rezadeiras, benzedeiras, curandeiros; c) plantas medi-cinais e raizadas e d) festejos e folias.

a) Parteiras

As parteiras por muito tempo foi a única opção para as gestantes da re-gião, hoje as que conseguem ter o parto hospitalar, são encaminhadas para Campos Belos, cidade sede da Regional Nordeste, ou quando tem boas condições financeiras, moram por um tempo na casa de parentes em Goiânia ou Brasília para terem seus filhos.

Provavelmente, a maioria dos Kalunga acima de 20 anos nasceu em casa, com ajuda de uma parteira, que por vezes era sua avó, mãe ou sua tia. No módulo do curso a pergunta que problematizou esta questão foi: como as parteiras podem contribuir o meu trabalho na ESF? Porém, foi um ponto que causou muita polêmica no grupo. Como já foi citato, os Kalunga são muito pesquisados e alvo de projetos institucionais diversos. Um deles fez um levantamento de todas as parteiras da região com a promessa destas ganharem um salário mínimo.

Outro projeto favoreceu algumas parteiras e raizeiros com uma bolsa, não atingindo a todos, levantando uma quebra de expectativa na região. Para agravar a situação, alguns ACS respaldados por profissionais de nível supe-rior, disseram que “parto normal é anormal”.

Uma questão chama a atenção para esta afirmação, é sobre a formação do trabalhador de nível superior para lidar com aspectos do saber imaterial

7 Sistematização a partir do relatório do 6º módulo do Curso: Práticas Populares em Saúde.

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do povo Kalunga, sem contar que a própria formação do profissional em saúde estimula para este tipo de pensamento.

Sabe-se que o Brasil tem a triste estatística de mais de 80% de partos ce-sáreos, na contramão do mundo, que vem aumentando os partos normais, e uma forte corrente pelos partos domiciliares (FOLHA DE SÃO PAULO, 2011). E ainda as equipes de saúde, juntamente com os médicos, parecem não estar preparadas para lidar com as plantas medicinais.

O assunto, sobre o parto, levou a outra polêmica, que é sobre o direito sexual e reprodutivo. Visto que os profissionais parecem ter um ponto de vista negativo em relação ao número de filhos e a idade de reprodução das mulheres Kalunga. A inclusão de um antropólogo na equipe seria funda-mental para não se perceber estas especificidades culturais de modo ne-gativo e/ou com preconceito.

b) Rezadeiras, benzedeiras e curandeiros

As rezadeiras estão presentes nos festejos das comunidades junto aos pa-dres auxiliando de certa forma no processo de saúde da população. Em muitas partes do Brasil, rezadeira e benzedeira se assemelham, porém na comunidade a reza é uma prática distinta, como por exemplo, o das reza-deiras que são responsáveis pelas rezas e ladainhas nos festejos. A benze-ção é uma prática comum, em que poucas pessoas possuem o dom para fazê-la. São comuns as benzeções de quebranto, mal olhado, cobreiro, es-pinhela caída, para afastar cobras.

Os curandeiros para o grupo são pessoas que “cobram” para cuidar dos doentes, uma mistura de rezas, de chás e raizadas. É como se fosse um mé-dico tradicional. Estas questões ao serem levadas em discussão, de como estas pessoas importantes para a comunidade poderiam contribuir no tra-balho, veio à tona mais uma vez os projetos que acontecem na região, e que privilegiam algumas pessoas. E muitas vezes são projetos descontextuali-zados dos serviços de saúde.

c) Plantas medicinais e raizadas

Uma grande quantidade de pessoas do Engenho II se utiliza de plantas medicinais cotidianamente, tem um horto medicinal e uma agroindús-tria que beneficia algumas plantas medicinais para a geração de renda na comunidade.

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Os Kalunga se mantiveram por séculos entre serras e vãos com remédios extraídos da natureza, parte do conhecimento do cerrado e saber adquiri-do pelos índios, sua territorialidade como componente básico para a cura de muitos males. As raizadas são partes de várias plantas medicinais em bebida alcoólica, geralmente cachaça ou vinho. Segundo eles, o compo-nente medicinal corta metade da ação do álcool no organismo.

d) Festejos e folias

Discutiu-se a respeito da perda da tradição de algumas festas realizadas na comunidade Kalunga, visto que muitas pessoas frequentam essas festas não apenas pela questão cultural e religiosa, mas por motivos mais relacionados ao profano que ao sagrado, como as bebidas, dançar a noite, e para paquerar.

A respeito deste tema, foi proposta uma atuação no sentido de resgatar os significados das festas. Além disso, há que se fazer uma delimitação duran-te o festejo, onde um local seria destinado para as tradições e outro para o local das barracas que vendem bebidas. A festa também é um momento de pagar promessas de saúde, fazer pedidos aos santos de devoção, e encon-tros políticos com as lideranças e instituições que comumente participam das romarias.

A religiosidade da comunidade Kalunga tem como base o Catolicismo Popular. Considerando o sincretismo, com muitas festas e pagamento de promessas. As religiões de matriz africana não são declaradas na região (IBGE, 2010), inclusive é repudiada pela comunidade.

Porém sob um olhar mais atento, pode-se notar práticas terapêuticas onde o modelo de prática curativa “médicos das mazelas do corpo e da alma” se dá através de curandeiros, raizeiros, feiticeiros e benzedeiras, bem como a prática de simpatias ou feitiços para cura de suas doenças.

E pode-se afirmar que estas religiões, juntamente com o conhecimento e práticas indígenas constituem hoje uma medicina popular. Estes represen-tantes da medicina popular são mestres do saberes populares importantes culturalmente, e são imprescindíveis quando é difícil o acesso ao modelo vigente de assistência à saúde.

No contexto da medicina oficial e da racionalidade científica estas práti-cas são consideradas subalternas e ilegítimas (MONTEIRO, 1985; PORTO,

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2007). E vem sendo reprimidas, como fez o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro proibindo a presença de parteiras no hospital (CREMERJ, 2012). E as barreiras criadas para a venda de plantas medici-nais, pois não se pode referir o nome do problema que aquela planta po-deria agir, causando perseguição a alguns raizeiros acusados de realizar um Ato Médico.

A negação e a supressão de uma cultura e de uma história levam a re-fletir sobre a ideia de preconceito e da invisibilidade da população negra. Compreendida a partir do silêncio discursivo e da repressão que determi-nados grupos são submetidos (BRAGA, CAMPOS, 2012) e da ausência de sua perceptiva no discurso oficial, com a sobreposição de um ponto de vista de um grupo opressor, o qual o escravizou e reprime ainda nos dias de hoje (PORTO, 2007).

5 - Considerações: por uma outra

rede de cuidado em saúde

O curso de extensão permitiu uma aproximação e diálogo com as equipes de saúde dos três municípios, facilitando também a convivência na comu-nidade, bem como a observação participante.

Muitas são as vulnerabilidades da comunidade Kalunga, exemplo disso é a dificuldade do acesso à saúde, parte devido às características geográficas e de infraestrutura, e outra parte, devido à forma como os serviços de saúde são organizados e à concepção biomédica dos mesmos.

São pessoas que viveram ou vivem isoladas, muitas ainda sem acesso à energia elétrica e televisão. Assim, são vulneráveis quando migram para os centros urbanos, potenciais vítimas de violência. E, além disso, devido à baixa escolaridade, trabalham em subempregos, migram para regiões peri-féricas, sem muita infraestrutura.

A vulnerabilidade não está associada apenas ao isolamento, mas a uma sé-rie de fatores, determinantes sociais, privação de direitos humanos. Visto que é um direito ocuparem suas terras e terem acesso aos serviços básicos próximos a eles.

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São portadores de um saber imaterial, se constituindo em uma ciência própria. É outra lógica de saúde, em relação ao modelo biomédico vigente. Seria preciso refletir sobre um modelo de saúde específico que atenda às demandas, e que respeite e dialogue com a cultura local.

Com a concepção biomédica impregnada nas ações dos profissionais de saúde por sua formação, a ESF pode comprometer a cultura desta comuni-dade, sendo uma grande promotora da medicalização e desmotivadora dos partos normais.

Seria necessária a aproximação das equipes de saúde com os mestres do saber tradicional, como parceiros reais na promoção da saúde desta po-pulação. Uma possível forma para mediar estes saberes, seria a inclusão de um antropólogo assessorando as equipes de saúde e a gestão destes municípios, ao facilitar o diálogo intercultural, com os mestres dos saberes tradicionais como colaboradores e parceiros das equipes de saúde.

As parcerias das várias universidades, que atuam na comunidade, entre as prefeituras destes municípios também podem contribuir para uma nova construção de uma rede de saúde. Se constituindo em uma parceria de mão dupla, em que as universidades se beneficiam com um lócus privile-giado de formação em saúde e de pesquisa, refletindo também sobre a seu processo de formação.

Outra preocupação é na formação em saúde. O tecnicismo presente nos cursos podem levar os ACS Kalunga a desvalorizar o saber tradicional. E deve se lutar por uma formação técnica e superior que efetive a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, com os conhecimen-tos tradicionais sobre plantas medicinais. E, futuramente, a ESF como pro-motora da prática segura do uso destas plantas, e também incentivadora e promotora dos partos normais e domiciliares.

A busca da escolaridade, por empregos e pela saúde são motivos para mi-gração, funcionando muitas vezes como pressão para desocuparem suas terras. Apresar de esta população ter várias políticas específicas, porém não efetivadas, chama a atenção a o exemplo da educação e saúde indígenas.

Mesmo sendo clara a diferença cultural entre indígenas e comunidade Kalunga, esta poderia se beneficiar dos avanços das políticas para os Povos

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Indígenas, como o direito a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, e atendimento constante com unidades de saúde próximas às suas casas, com atendimento mínimo com um técnico de enfermagem e visitas periódicas de enfermeiros, dentistas e médicos.

Prova do avanço em relação às políticas de saúde para os indígenas, em relação aos quilombolas, é que no caderno de diretrizes do SUS tem como observância as práticas de saúde e as medicinas tradicionais, com controle social, e garantia do respeito às especificidades culturais.

Este artigo não pretende esgotar este assunto devido a sua complexidade, porém tenta contribuir com uma reflexão sobre o acesso à saúde da comu-nidade Kalunga e por uma construção de uma rede de atenção em saúde diferente da precariedade da rede que funciona como liteira.

Esta grande extensão territorial, com uma população com especificidades culturais e necessidades de saúde são desafios, que merecem reflexões e ações para efetivar as políticas públicas, os direitos individuais e coletivos desta importante comunidade tradicional.

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QUILOMBOLAS DE GOIÁS:a invisibilidade da insegurança alimentar aliada ao excesso de peso

Estelamaris Tronco MonegoMariana de Morais CordeiroKarine Anusca Martins

1- Introdução

1.1 - Quilombos e quilombolas: aspectos gerais

Historicamente, a denominação quilombo esteve associada a grupos so-ciais afrodescendentes, trazidos para o Brasil durante o período colonial, marcados pela resistência à condição de escravo. Por meio das fugas em busca de liberdade, constituíram territórios independentes e formas parti-culares de organização social. O quilombo dos Palmares foi o mais impor-tante que existiu no Brasil, organizado por volta de 1597 e resistiu por qua-se 100 anos (KENT, 1981; LEITE, 2008; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2014).

Mesmo com a abolição do sistema escravista colonial realizada em 1888, para alguns quilombolas a organização em quilombos ainda era a única for-ma de viver em liberdade e manter a sobrevivência física e cultural, preser-vando a dignidade. Desde então o quilombo esteve associado à luta contra racismo e a favor das políticas de reconhecimento da população afro-bra-sileira e à luta política pela garantia de acesso às terras tradicionalmente ocupadas (LEITE, 2008; SECRETARIA ESPECIAL..., 2005).

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QUILOMBOLAS DE GOIÁS

O Decreto Presidencial nº 4.887/2003, faz alusão a grupos étnicos ra-ciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica pró-pria, e, caracterizados por suas relações territoriais específicas (BRASIL, 2003).

Segundo a Associação Brasileira de Antropologia, os remanescentes de quilombos representam toda comunidade negra que agrupa descenden-tes de escravos que vivem da cultura de subsistência e com manifestações culturais com forte vínculo com o passado (ASSOCIAÇÃO..., 1994).

O reconhecimento legal destas comunidades foi estabelecido a partir da Constituição Brasileira de 1988, no artigo 68 das disposições constitucio-nais transitórias, que garante aos remanescentes das comunidades de qui-lombos o direito à propriedade de suas terras. Além desse fato, são con-siderados patrimônio cultural brasileiro por serem detentores de direitos culturais históricos, conforme orienta os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que tratam da preservação dos valores culturais da população negra (BRASIL, 1988).

Atualmente são reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) 2394 comunidades quilombolas, localizadas em quase todo o território brasilei-ro (com exceção dos estados de Roraima e Acre, que ainda não possuem registros de comunidades remanescentes de quilombos). Em Goiás, exis-tem 28 comunidades quilombolas reconhecidas pela FCP e apenas uma (01) encontra-se devidamente titulada (INSTITUTO NACIONAL..., 2014; MINISTÉRIO DA CULTURA, 2014).

1.2 - Saúde e nutrição dos remanescentes de quilombos

A estreita relação com a terra é uma das características mais marcantes nos quilombos, sendo sua titulação a segurança do domínio e posse da ter-ra, condição fundamental para a garantia da alimentação e sobrevivência. No entanto, as comunidades quilombolas enfrentam dificuldades em re-lação à titulação, o que resulta também em entraves quanto ao acesso às políticas para essa população (SECRETARIA ESPECIAL..., 2005).

A atividade econômica nestas comunidades volta-se basicamente para a subsistência, com uma pequena parte dos produtos cultivados comercia-lizada por preços muito baixos, o que gera, portanto, pouca renda para as

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QUILOMBOLAS DE GOIÁS

famílias. A forma de produção mais frequente é a agricultura (94,0%), se-guida da criação de animais (56,0%) e da pesca (32,0%) (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008; SILVA et al., 2008).

Na comunidade quilombola Kalunga, tem-se um exemplo dessa pobre co-mercialização na farinha de mandioca, um dos poucos produtos exceden-tes com potencial para o mercado nos municípios mais próximos ou na própria comunidade. A falta de compradores e a desvalorização dos seus produtos, porém, são fatores que desestimulam os agricultores a intensifi-car sua produção (TIBURCIO; VALENTE, 2007).

Embora o cultivo seja uma atividade frequente, fatores ambientais como tempestades ou secas intensas podem comprometer toda a plantação, o que resulta em famílias com dificuldades de acesso ao alimento e interfe-rência negativa na saúde da população (SILVA, 2007a).

Precariedades quanto aos aspectos socioeconômicos, estruturais e de sa-neamento básico também podem trazer impactos importantes na saú-de desses indivíduos. A Chamada Nutricional Quilombola, realizada em 2006, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) identificou que apenas 29,0% das comunidades possuíam coleta de lixo, 24,0% esgotamento sanitário e 56,0% água encanada (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008).

Outros estudos também comprovam a frequente situação de desabasteci-mento de água e/ou não acesso à água tratada, ao esgotamento sanitário e à coleta de lixo (CABRAL-MIRANDA; DATTOLI; DIAS-LIMA, 2010; NEIVA, 2009; SILVA et al., 2008; SILVA, 2007b).

Por sua vez, a situação econômica também é um agravante, uma vez que 57,5% das famílias quilombolas brasileiras encontram-se inseridas na clas-se E (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008). Em Goiás, a renda per capita familiar destas comunidades também é muito baixa, em alguns casos, inferior a um quarto do salário mínimo, resultando em famílias cuja condição socioeconômica situa-se abaixo da linha de pobreza (TIBURCIO; VALENTE, 2007). Tais condições se assemelham àquelas vivenciadas por famílias quilombolas baianas (CABRAL-MIRANDA; DATTOLI; DIAS-LIMA, 2010) e cearenses (SÁ, 2010).

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A falta de posse da terra, ausência de renda monetária, fatores ambien-tais, ausência de tecnologia para produção de alimentos, marginalidade e analfabetismo, são fatores que podem comprometer o acesso da popula-ção a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficientes para sa-tisfazer suas necessidades, prazeres, hábitos e costumes, que contribuem para um precário estado nutricional e de saúde dos indivíduos (SILVA et al., 2008).

Devido à vulnerabilidade das crianças e a qualidade de vida precária, são elevadas as taxas de mortalidade infantil em algumas comunidades qui-lombolas (38,6 óbitos por mil nascidos vivos), superando os índices esti-mados para o Brasil (27,1 por mil nascimentos) (GUERRERO et al., 2007). A Chamada Nutricional Quilombola, também identificou que são pre-valentes as mortes infantis entre os quilombolas por causas preveníveis (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008).

A ausência de unidades de saúde em grande parte das comunidades, a falta de transporte para o deslocamento das pessoas associado à longa distân-cia entre os domicílios e o local de atendimento, torna-se ainda mais grave e preocupante as condições de saúde da população quilombola.

Dessa forma, muitas vezes o agente comunitário de saúde é o principal responsável pelo acesso à saúde para essas comunidades, no entanto, as mesmas dificuldades de deslocamento para as visitas domiciliares são en-frentadas (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008; NEIVA, 2009; SILVA et al., 2011).

O estado nutricional, das crianças quilombolas brasileiras, menores de cinco anos, também é preocupante, uma vez que aponta um retardo no crescimento de 15,0% das crianças devido à desnutrição crônica segundo o parâmetro altura para idade (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008). Crianças quilombolas de Alagoas apresentaram perfil semelhan-te, com 11,5% de desnutrição crônica e 7,1% de sobrepeso. Tal panorama representa possibilidade de carência nutricional, justificada pela presen-ça de anemia nas crianças, comprometendo o seu desenvolvimento, es-tado nutricional e saúde. Apesar da desnutrição, percebe-se já a presen-ça de doenças crônicas não transmissíveis nas comunidades quilombolas (FERREIRA, 2011; SILVA, 2007b).

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A escolaridade da mãe é fator que contribui para as condições de vida e so-brevivência na primeira infância, uma vez que a baixa escolaridade dos pais pode influenciar negativamente na aprendizagem dos seus filhos, além dos cuidados para com estes.

O analfabetismo e a baixa escolaridade são frequentes entre as famílias qui-lombolas; uma vez que em 60 comunidades quilombolas, 43,6% das mães de crianças menores de cinco anos tinham até quatro anos de escolaridade completos e 47,0% dos chefes de famílias estudaram até o quarto ano do ensino fundamental e 15,8% destes não tinham estudo (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008).

Em uma comunidade quilombola de Goiás, 38,9% dos adultos entrevista-dos eram analfabetos e 61,1% possuíam o ensino fundamental incompleto. A distância entre as escolas e os domicílios, a ausência de escolas de en-sino fundamental e/ou médio nas comunidades e a má qualidade do en-sino são alguns fatores que contribuem para esse panorama da educação (NEIVA, 2009).

A presença de desnutrição entre os quilombolas parece estar localizada entre os menores de cinco anos, ocorrendo uma mudança no perfil nutri-cional com o avançar da idade. Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009, a prevalência de déficit de altura entre as crianças de cinco a nove anos foi de 6,8% tendendo a diminuir com a ida-de, chegando a 3,4% entre os adolescentes. Já a prevalência de excesso de peso aumentou ao longo do tempo (INSTITUTO BRASILEIRO..., 2010).

Estudo realizado com quilombolas maiores de 17 anos apontou para uma frequência de sobrepeso e obesidade, entre as mulheres, em 52,0% e 17,5%, respectivamente, enquanto que 2,7% dos homens eram obesos e 17,5% tinham sobrepeso.

Os entrevistados relataram a facilidade para adquirir alimentos industriali-zados (de consumo recente pela comunidade), como açúcar refinado, óleo, refrigerantes, bebidas alcóolicas e massas, devido à melhoria de acesso e do transporte às cidades. Dessa forma, os hábitos alimentares desses in-divíduos se aproximaram da população urbana e de baixa renda e pode ser um fator que influencia o excesso de peso (ANGELI, 2008).

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Esse perfil encontrado é resultante do processo de transição nutricional, que apresenta uma tendência de diminuição da desnutrição e aumento da obesidade em vários grupos sociais, em quase todos os países do mundo (POPKIN, 2001).

Sabe-se que algumas mudanças de hábitos alimentares entre crianças e adolescentes podem contribuir para o excesso de peso da população (CREVELARO, 2009; INSTITUTO BRASILEIRO..., 2009; PELEGRINI et al., 2010; UNGARELLI, 2009). O aumento do consumo de alimentos de alta densidade energética, ricos em açúcar e gordura e baixo teor de vitami-nas e minerais, associado ao aumento do sedentarismo contribuem para o aumento do excesso de peso na população e, consequentemente, o desen-volvimento das doenças crônicas não transmissíveis (WHO, 2013).

Estudos com populações urbanas que vivenciam o processo de transição nutricional, evidenciam ainda a obesidade como uma provável sequela da desnutrição na infância; podendo as crianças desnutridas terem uma maior propensão de desenvolvimento de doenças cardiovasculares na ida-de adulta (FERREIRA, 2006; SAWAYA, 2006).

Apesar dos indícios de desnutrição entre crianças quilombolas, é possível identificar a presença de doenças crônicas não transmissíveis entre os in-divíduos adultos. Estudo realizado com 148 pessoas de uma comunidade quilombola da Paraíba encontrou 5,8% das mulheres e 3,5% dos homens com hipertensão arterial, a partir de informações autodeclaradas pelos entrevistados. O autor sugere ainda uma possível subnotificação desses dados (SILVA, 2007b).

Poucos são os estudos acerca do estado nutricional e perfil de saúde de crianças a partir de seis anos de idade e adolescentes quilombolas, no en-tanto, sugere-se um perfil preocupante com a alimentação desse grupo, uma vez que 7,5% da população de 11 anos e mais consomem menos do que três refeições por dia e 32,5% das crianças de três a 11 anos fazem, no máximo, três refeições por dia (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008).

Por ser frequente nas comunidades a ausência de escolas com o ensino médio, muitos jovens são obrigados a sair de suas casas em busca da conti-nuação dos estudos, de um trabalho, de melhor renda e qualidade de vida.

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Essa aproximação com o meio urbano e consequentemente com outra cul-tura, associada à suscetibilidade característica dessa fase às influências ambientais, podem refletir em mudanças de comportamentos e hábitos alimentares, causando consequências negativas para o estado nutricio-nal dessas crianças e adolescentes (MIRANDA, 2012; NEIVA, 2009; PARÉ; OLIVEIRA; VELLOSO, 2007; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2009).

Essa mudança do perfil nutricional nas comunidades quilombolas parece ser um contrassenso quando se observam a frequente dificuldade de aces-so ao alimento e à fome, característicos da situação de insegurança alimen-tar, vivenciada por essas famílias (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008; MONEGO, 2010). Percebe-se, portanto, mudanças do paradigma da fome para além dos fatores associados à desnutrição, que pode ser uma consequência para o excesso de peso (KEPPLE; SEGALL-CORRÊA, 2011).

1.3 - Segurança Alimentar e Nutricional e (in)segurança alimentar em quilombolas

O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) remete à garantia do direito de todos os cidadãos à alimentação de qualidade, de forma sus-tentável, com respeito ao hábito alimentar, diversidade cultural, em seu aspecto social e ambiental, preconizando o “acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o aces-so a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares saudáveis, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômi-ca e ambientalmente sustentáveis” (BRASIL, 2006, p.1).

No Brasil, a insegurança alimentar (IA) pode ser identificada quando a ren-da per capita é inferior ao mínimo necessário para o consumo alimentar e acesso às demais necessidades básicas (saúde, educação, transporte, ves-tuário, lazer) (KEPPLE; SEGALL-CORRÊA, 2011).

A falta de saneamento básico, sub-habitações, baixa escolaridade, maior densidade por dormitório, maior número de pessoas na casa, menor renda, presença de crianças no domicílio e a raça/cor preta ou parda foram caracte-rísticas mais presentes nos domicílios em situação de insegurança alimentar.

Tais determinantes reforçam a vulnerabilidade das famílias quilombo-las quanto ao risco de IA e fome, uma vez que se trata de características

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comuns nestes grupos (INSTITUTO BRASILEIRO..., 2010; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009; MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO..., 2008).

Estudo realizado com comunidades quilombolas do Tocantins reitera a vulnerabilidade desse grupo social, uma vez que identificou 85,1% das fa-mílias investigadas em situação de insegurança alimentar, das quais 37,3% IA leve e 32,9% IA moderada (MONEGO et al., 2010).

Mais recentemente, é possível vislumbrar um processo de aumento da vi-sibilidade dos quilombolas, seu contexto e dificuldades, estando presente nas agendas governamentais, com a inserção da temática nas políticas pú-blicas, embora o retrato dessa população remeta a uma situação de esque-cimento e abandono por parte do Estado.

Diante desse contexto duradouro de isolamento e invisibilidade quanto às ações de promoção da qualidade de vida, saúde e renda em prol das comu-nidades quilombolas, oficina de trabalho realizada com algumas lideran-ças quilombolas de Goiás, evidenciou alguns aspectos necessários de ser estudados: (1) condições de saúde e nutrição dos estudantes e demais in-divíduos das comunidades; (2) infraestrutura das escolas; (3) execução do PNAE quilombola; (4) controle social; (5) agricultura familiar; (6) alimentos e alimentação escolar; (7) educação permanente; (8) mundo do trabalho e geração de renda (SOUSA et al., 2013). O estudo Alimentação, saúde e qua-lidade de vida de escolares quilombolas de Goiás, no qual se insere a presen-te pesquisa, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFG sob o Protocolo nº263/2011.

2 - Desvelando a invisibilidade

dos quilombolas de Goiás

O estudo foi realizado em 13 municípios goianos. Nestes, estão inseridas 12 (42,9%) das 28 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares em Goiás (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2014), incluí-das a partir do interesse das lideranças locais em participar da pesqui-sa. Em uma delas realizou-se o estudo piloto, o que significa que os da-dos do presente estudo referem-se a 12 municípios e 11 comunidades quilombolas.

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Tal fato se deve ao fato da comunidade Kalunga estar localizada em três municípios (Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás) e por existir duas comunidades quilombolas (Antônio Borges e Fazenda Santo Antônio da Laguna) na região de Barro Alto.

A população alvo, constituída por crianças (de seis a nove anos de idade, classificados como escolares) e adolescentes (de 10 a 19 anos) (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2007) quilombolas foi identificada a partir da estimativa prevista no Censo Escolar de 2011 (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2012), posteriormente complementada devido à existência de divergências entre a informação do censo escolar e os dados preliminares coletados nas escolas no que se refere à quantidade de alunos quilombolas nessa faixa etária. Foram incluídos estudantes quilombolas (crianças e adolescentes), do sexo feminino e masculino, matriculados nos ensinos fundamental ou médio, tanto da rede de ensino municipal, quanto da estadual.

O trabalho de campo foi realizado no período de março a agosto de 2012. Foram encaminhados ofícios às Secretarias de Educação do estado e dos municípios inseridos no estudo, com esclarecimentos sobre a pesquisa. Todos os gestores dos respectivos municípios e estado emitiram um termo de consentimento favorável à realização do estudo.

Os estudantes foram abordados na própria escola. Iniciava-se a entre-vista com o esclarecimento acerca da pesquisa e, para aqueles com mais de 18 anos que concordassem em participar do estudo, lia-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e coletava-se a assinatura em duas vias, sendo uma do pesquisador e outra do participante. No caso das crianças e adolescentes menores de 18 anos, o TCLE era lido e assinado pelo diretor e/ou coordenador pedagógico da escola, como responsável pelo aluno.

Após a realização da entrevista com os estudantes, visitavam-se seus res-pectivos domicílios e apresentava-se a pesquisa aos seus pais e/ou res-ponsáveis. A segurança/insegurança alimentar (SA/IA) nos domicílios dos estudantes quilombolas foi medida por meio de entrevistas realizadas com os pais/responsáveis dos estudantes, entrevistados na etapa anterior. Utilizou-se a Escala Brasileira de Inseguranca Alimentar (EBIA), por tratar-se de instrumento validado, de baixo custo e de fácil aplicação para identi-ficação de famílias sob risco de IA.

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A EBIA dispõe de 15 perguntas centrais fechadas, com referência dos úl-timos três meses, com resposta do tipo [sim], [não] ou [não sabe]. Cada resposta afirmativa representa um ponto e a somatória dos pontos ava-lia a segurança e insegurança alimentar na família em diferentes níveis de intensidade.

Considerou-se insegurança alimentar leve a condição em que as famílias convivem com a preocupação com a falta do alimento em um futuro próxi-mo e/ou possuem uma alimentação cuja qualidade é ruim; a IA moderada, quando a família vivencia a redução quantitativa pela dificuldade de acesso ao alimento e a IA grave aquela caracterizada pela sensação de fome vi-venciada de forma coletiva por adultos e crianças de uma mesma família (SEGALL-CORRÊA et al., 2004).

A avaliação antropométrica foi realizada a partir da coleta de peso (kg) e altura (cm), segundo padrões técnicos estabelecidos pela World Health Organization (WHO, 1995) em balança digital solar com capacidade de 150kg, precisão 0,1kg da marca Tanita e estadiômetro compacto da marca Seca com medição de 0 a 210cm, precisão 0,1cm.

A classificação do estado nutricional foi realizada com base nos critérios estabelecidos pela WHO, de acordo com o escore-Z, para os parâmetros estatura para idade e Índice de Massa Corporal (IMC) para idade(WHO, 2007).

Dos 226 estudantes avaliados, 51,8% (n=117) eram do sexo feminino, com média de idade de 10,5 anos (±3,3) e a maioria (52,2%; n=118) estava matri-culada nas escolas situadas na zona urbana. Apenas os adolescentes (n=3) foram classificados com déficit estatural e 1,3% (n=3) dos estudantes esta-vam com magreza, sendo mais presente entre as crianças (66,7%; n=2) em comparação aos adolescentes (33,3%; n=1). Ressalta-se a ocorrência de ex-cesso de peso (sobrepeso e obesidade) em 17,2% (n=39) dos entrevistados (Tabela 1).

Foram entrevistadas 214 famílias dos alunos avaliados a fim de obter infor-mações sobre o acesso ao alimento em nível domiciliar, classificado em se-gurança/insegurança alimentar. Este número inferior à amostra de alunos deve-se ao fato de alguns estudantes residirem em um mesmo domicílio.

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TABELA 1 - Distribuição do estado nutricional das crianças e adolescentes quilombolassegundovariáveissociodemográficas.Goiás,2012.(n=226)

CaracterísticasSem excesso de peso Com excesso de peso

¹pn % n %

Sexo

Feminino 94 80,4 23 19,70,294

Masculino 93 85,3 16 14,7

Idade

6 a 9 anos 86 82,7 18 17,30,888

10 a 19 anos 101 82,8 21 17,2

Local da escola

Rural 103 95,4 05 4,60,000

Urbano 84 71,8 33 28,2

(In)segurança Alimentar

Segurança alimentar 45 80,4 11 19,60,69

Insegurança alimentar 142 83,6 28 16,5

¹Teste qui-quadrado.

A situação de insegurança alimentar esteve presente em 73,8% (n=158) das famílias quilombolas, sendo mais frequentes a insegurança alimentar leve (44,4%) e a moderada (21,5%).

Observou-se valores aproximados de insegurança alimentar entre os se-xos feminino (74,4%) e masculino (76,1%), crianças (73,1%) e adolescen-tes (77,0%) e entre aqueles alunos matriculados nas escolas da zona rural (78,7%) em comparação àqueles da zona urbana (72,0%). Não houve asso-ciação estatística (p>0,05) entre essas variáveis sociodemográficas e a in-segurança alimentar.

2.1 - Como compreender esses resultados?

Os resultados apontaram para uma maior frequência de sobrepeso e obe-sidade em comparação ao baixo peso e/ou déficit estatural entre as crian-ças e adolescentes quilombolas e uma elevada frequência de insegurança alimentar em suas famílias.

O reduzido número de estudos sobre o perfil nutricional de quilombolas entre seis e 19 anos de idade é um fator limitante para a discussão dos dados obtidos, fato que justifica a comparação com outros grupos populacionais cuja trajetória sociocultural se aproxime do universo amostral estudado.

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O aumento de peso entre as populações tradicionais já foi observado na população Xavante, no Mato Grosso, onde ocorreu uma prevalência de 27,5% de sobrepeso entre os adolescentes, e no Alto Xingu onde os adoles-centes tiveram valores de IMC maiores que a média da população nacional, sugestivo também de alta frequência de sobrepeso.

Escolares de instituições públicas de Juiz de Fora (MG), com idade média de 10,8 anos, também apresentaram perfil semelhante aos jovens quilom-bolas do presente estudo, uma vez que 7,5% e 10,4% das mulheres estavam com sobrepeso e obesidade, respectivamente, e 13,5% dos homens com sobrepeso e 7,6% com obesidade (LEITE et al., 2006; SAMPEI et al., 2007; RODRIGUES et al., 2011).

Resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2008-2009) apontam que o excesso de peso de crianças brasileiras com idade de cinco a nove anos atingiu mais de 30,0% e cerca de 20,0% entre os adolescentes. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) apontou para o excesso de peso em 23% dos estudantes de 11 a 19 anos de instituições de ensino pú-blicas e privadas das capitais brasileiras (INSTITUTO BRASILEIRO..., 2010; ARAÚJO et al., 2010).

Há evidências de uma transição nutricional nas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (São Paulo), com provável influência da aproximação com o meio urbano. Nesse estudo foi observado que adultos pertencentes às co-munidades situadas mais próximas da rodovia e aqueles menos envolvidos com a agricultura de subsistência tinham parâmetros antropométricos in-dicativos de excesso de peso, diferente daqueles moradores mais distantes da rodovia e que tinham agricultura de subsistência (CREVELARO, 2009).

Percebe-se que a aproximação com o meio urbano pode ser um fator de influencia negativa no hábito alimentar nas comunidades quilombolas, o que pode justificar o aumento do excesso de peso encontrado nessa po-pulação. Um exemplo dessa alteração do padrão alimentar são os Kalunga, que relataram preferência por alimentos produzidos na própria comuni-dade por serem mais saborosos e saudáveis e mencionaram de forma ne-gativa a inserção do comércio no lugar do cultivo, ao alegar que alguns alimentos antes produzidos na comunidade estão sendo adquiridos nos mercados da cidade próxima à comunidade, provocando mudanças nos hábitos alimentares locais (UNGARELLI, 2009).

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Apesar da frequência de excesso de peso encontrada no presente estudo, também foi elevado o número de famílias em situação de insegurança ali-mentar. Esse resultado reafirma as evidências de alguns estudos acerca da quebra do paradigma da IA como sinônimo da desnutrição, trazendo um novo conceito da fome aliado ao excesso de peso (ADAMS; GRUMMER-STRAWN; CHAVEZ, 2003; CABALLERO, 2005; JYOT; FRONGILLO; JONES, 2005). Não houve, porém, no presente estudo, associação significativa en-tre o estado nutricional dos indivíduos e a IA da família quilombolas.

A presença de IA identificada reforça a situação de vulnerabilidade a qual sobrevivem as famílias quilombolas e corrobora com trabalho realizado em comunidades quilombolas do Tocantins, quando se identificou IA em 85,1% das famílias, sendo 70,2% leve e moderada(MONEGO et al., 2010).

Diante do perfil de saúde dos jovens quilombolas identificado e da im-portância das políticas públicas em prol da melhor qualidade de vida dos mesmos, faz-se necessário investigar as lacunas para a aplicabilidade e o efetivo impacto destas políticas, a fim de que o proposto seja de fato re-vertido em melhoria da qualidade de vida dos moradores das comunidades quilombolas.

3 - Conclusão: agenda para um (re)começo

A realização da presente pesquisa nos permitiu adquirir uma experiência de trabalho com comunidades quilombolas que envolveram desafios, per-sistência, parcerias e troca de saberes. O desafio se iniciou já na etapa de construção do projeto, devido à dificuldade de contato com as lideranças quilombolas e da conquista de sua confiança para a realização do estudo.

A persistência desse grupo de pesquisa permitiu que laços de confiança e parceria fossem criados, e a partir da troca dos saberes científico e popu-lar, a elaboração de uma proposta de estudo que de fato atendesse as de-mandas dessa população, que se queixa da forma de tratamento recebido desde então.

Os desafios permearam, também, durante a realização da pesquisa, quan-do os dados controversos entre o censo escolar e o identificado in loco em relação à quantidade de estudantes quilombolas nos município goianos

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pesquisados, nos mostrou a necessidade de se fazer um levantamento pré-vio à coleta de dados. Dessa forma, foi possível identificar as escolas que matriculam estudantes quilombolas nos municípios goianos inseridos na pesquisa, bem como a respectiva quantidade desses escolares.

A falta de identificação no censo escolar pelos gestores locais dessas es-colas que matriculam estudantes quilombolas resulta em não recebimento de um recurso financeiro diferenciado para a oferta da alimentação es-colar conforme previsto pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); o que pode limitar a qualidade da alimentação ofertada e conse-quentemente, contribuir negativamente para o perfil de saúde desses es-colares quilombolas.

A escassez de estudos sobre o perfil nutricional dessas crianças e adoles-centes também foi um dificultador devido à limitação de parâmetros de comparação para o estudo, bem como discussão dos resultados.

Devido algumas evidências de desnutrição entre as crianças quilombolas menores de cinco anos; as precárias condições de saneamento básico e de assistência à saúde nas comunidades remanescentes de quilombos; e a elevada frequência de insegurança alimentar entre as famílias, indicativo da falta de alimento, esperava-se uma maior frequência de déficit estatu-ral e baixo peso entre as crianças e adolescentes, além de uma associação positiva entre o estado nutricional e a insegurança alimentar das famílias, o que não foi identificado.

A presença do excesso de peso encontrado, não exclui, no entanto, a possi-bilidade da presença de carência nutricional nessa população, uma vez que a alimentação destes pode estar baseada em alimentos com maior aporte energético, a fim de suprir a fome, porém que não atendem às necessida-des nutricionais dos indivíduos.

Sugere-se, também, uma maior aproximação das comunidades quilom-bolas com a cultura alimentar do meio urbano; fato que as aproxima dos alimentos industrializados, em geral não correspondentes ao hábito ali-mentar local, mas que podem contribuir para o sobrepeso e obesidade. Dessa forma, são necessários estudos sobre o perfil nutricional de crian-ças em idade escolar e adolescentes quilombolas, bem como seus fatores determinantes.

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Sabe-se da alta prevalência de insegurança alimentar das famílias quilom-bolas, desde 2006, com a Chamada Nutricional Quilombola. Apesar disso, e das comunidades quilombolas estarem inseridas nas políticas públicas de garantia da Segurança Alimentar e Nutricional, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os estudos atuais, como a re-ferente pesquisa, não apontam para grandes mudanças deste panorama. Diante disso, faz-se necessário investigar as lacunas para a aplicabilidade e o efetivo impacto destas políticas, a fim de que o proposto seja de fato re-vertido em melhora da qualidade de vida para as comunidades quilombolas.

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS:os avanços no desenvolvimento comunitário kalunga com o (eco)turismo

Ismar Borges de LimaPeter Kumble

1 - Introdução: a história e o contexto da

formação do quilombo Kalunga em Goiás

Este Capítulo busca mostrar evidências dessas intervenções etnoterrito-riais e sociais positivas e a soma de esforços contemplando as atividades produtivas desenvolvidas pelos Kalunga, entre elas, o (eco)turismo. A in-vestigação centra-se na importância das atividades turísticas para o forta-lecimento dos Kalunga como um grupo étnico de particularidades cultural e identitária.

A pesquisa busca saber também a relevância do (eco)turismo Kalunga como vetor de ‘desenvolvimento comunitário’, pois o engajamento no mesmo de-manda de capacitação do grupo, bem como a preservação e conservação de seus recursos naturais, faunísticos, e paisagísticos. Entende-se que o (eco)turismo fez aumentar o fluxo e trânsito de pessoas não-Kalunga que vão em busca de experiências e vivências únicas em terras Quilombolas, e isso teve todo um impacto nas dinâmicas e rotinas da comunidade.

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

A cultura e identidade Kalunga ganham destaque e visibilidade, há uma autovalorização por parte do grupo e um reconhecimento geral de sua importância como patrimônio histórico vivo, principalmente no meio acadêmico.

Entretanto, observa-se que o fortalecimento e a valorização continuados dos Kalunga e dos Quilombolas do país em geral, bem como de seus terri-tórios e de suas atividades produtivas e culturais, incluindo os saberes tra-dicionais, depende sobremaneira de ações e incentivos governamentais.

Políticas públicas de âmbito etnoterritorial e social são necessárias para se obter avanços na formação de um significativo ‘capital humano’ nos qui-lombos, um contingente que vem somar esforços na materialização e con-solidação de um modelo etnodesenvolvimentista quilombola.

Nesse sentido, o ordenamento e o planejamento territorial são importan-tes com a definição de áreas de importâncias e vocações específicas para o turismo. Ancilares a essas políticas públicas e ordenamento territorial são as ações - não menos importantes e cruciais – de organizações e ins-tituições que têm atuado junto às comunidade Quilombolas, na promoção de seu bem-estar, da autogestão, da autodeterminação, e na busca de uma emancipada existência econômica, laboral e política dessas comunidades étnicas no Brasil.

A pergunta principal a ser respondida é: como as intervenções governa-mentais e organizacionais têm afetado as dinâmicas comunitárias dos Kalunga e como isso tem beneficiado a atividade turística em suas terras?

A história das comunidades Kalunga está entrelaçada com a formação do Estado de Goiás em razão de sua trajetória histórica e do papel na coloni-zação da região, ainda que por vias de um sistema escravagista opressor e cruel, em que seus pais e avós foram trazidos de solos africanos, especial-mente de Ângola, Costa do Marfim, Congo, Golfo da Guiné, e do Sudão, e foram forçados a integrar um novo tecido social brasileiro no centro-oeste do Brasil.

Muitos deles escaparam de áreas de mineração e de garimpo, onde eram escravos, e se refugiaram em áreas isoladas, formando grupos específi-cos, com relativa homogeneidade étnica, as comunidades Quilombolas.

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

Como explicado por Brito-Neto (2002), as comunidades Kalunga consis-tiam de descendentes de escravos, residentes de Quilombo (p. 6) que fu-giram de minas de exploração do ouro no final do Século XVIII, criando os Quilombos (SOARES, 1995) em áreas de Cerrado.

Munanga e Gomes (2006) reforçam que ‘Quilombo’ pode ser classificado como um tipo de organização sócio-comunitária [e etnocomunitária], que simbolicamente representava “uma sociedade livre”, emancipada, pois era composta de escravos fugitivos, alforriados ou libertados, uma emancipa-ção chamada de “manumissão” (BRITO-NETO, 2006).

O Quilombo representou, na prática, uma diáspora do “Afro” e dos “Afro-descen dentes” em solo brasileiro, com a formação de enclaves etnocultu-rais, deixando um legado de significados históricos que dura mais de 200 anos. Mas nem todos os afro-brasileiros fizeram parte desta diáspora; no final do Século XIX muitos descendentes de escravos se tornaram vaquei-ros e, ou plantadores de lavouras de subsistência em áreas outras que não de Quilombo, e com o passar do tempo se tornaram prósperos fazendeiros (SIRICO, 2008).

Atualmente, alguns dos Kalunga têm duas casas alternando suas roti-nas na zona rural e urbana. Em Cavalcante, há uma casa comunitária de apoio coletivo, a Casa Kalunga, um tipo de ramificação urbana Kalunga, cujos residentes se fixam em caráter temporário. O êxodo Kalunga e suas migrações intermunicipais, do Quilombo para as cidades, são assuntos que merecem ser objeto de investigações acadêmicas para se compreen-der as novas dinâmicas, interações e socializações resultantes dessas mobilidades.

Os pressupostos e evidências iniciais são de que tal migração - apesar de não ser em massa - é resultado de uma busca por melhores oportu-nidades para os adultos em fase produtiva, por exemplo, emprego e me-lhor remuneração, bem como oportunidades de uma educação diferen-ciada para seus filhos? É um êxodo rural, pois os Kalunga se sentem mais seguros e melhor acomodados na sociedade atual devido ao um inten-so combate ao racismo e ao preconceito? Quais são as principais razões da saída de residentes dos Quilombos para outras localidades, inclusive para as cidades? Como essa mobilidade afeta a organização comunitária e as já relações sociais estabelecidas no Sítio Kalunga? São mobilidades

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com fatores positivos para a comunidade ou elas terminam por enfra-quecer as tentativas de se construir um modelo de etnodesenvolvimento in situ?

Apesar dessas indagações, a pesquisa aqui desenvolvida teve como foco analisar as práticas (eco)turísticas realizadas no território Kalunga como uma atividade confortavelmente situada no etnodesenvolvimento, bem como uma ferramenta de auxílio na gestão etnoterritorial. Para se evi-tar confusões conceituais, neste Capítulo o termo ‘território(s)’ é usa-do em correspondência com ‘terra(s)’ quando se referir ao espaço geo-graficamente ocupado pelas comunidades Kalunga. ‘Território’ neste Capítulo, não denota a qualidade referencial de unidade administrativa ou político-administrativa.

As Terras Kalunga, são referidas nos documentos oficiais como “Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga” (Território), pertencente à ma-cro área ecológica chamada de Reserva da Biosfera Goyaz. O Sítio tem aproximadamente 6.000 habitantes, ocupando uma área de 237.000 hec-tares (FGV, 2010). Criado pela Lei Complementar 19, de 5 de janeiro de 1996. O Sítio Kalunga (Território/Terra) se estende por uma área de 237.000 hectares (FGV, 2010). Como proposto por Marihno (2008), as comunidades estão divididas em quatro principais grupos no Sítio: ‘Engenho-2’, ‘Vão do Moleque’, ‘Vão de Almas’, e ‘Ribeirão dos Negros’, posteriormente chamado de ‘Ribeirão dos Bois’ (ver Fig. 2).

O Sítio Kalunga está situado próximo a três tipos de Unidades de Conservação, e isso demonstra a importância do Sítio como uma área a ser adicionalmente preservada por se encontrar no entorno ou próxima às uni-dades. As três unidades de conservação são: i) Parque Nacional Chapada dos Veadeiros, criado em 1961, tem uma área total de 65.514 hectares prote-gendo o bioma Cerrado de altitude, segundo informações do Portal ICMBio. A Chapada é uma reserva de proteção integral e, por ter esse status na le-gislação brasileira, a presença antrópica para residência/moradia não é permitida. A Chapa dos Veadeiros ocupa 60% do município de Cavalcante e 40% do município de Alto Paraíso de Goiás; ii) a Área de Proteção Ambiental (APA) Pouso Alto, criada pelo Decreto 5.419, em 7 de maio de 2001, com uma área de 872.000 hectares; um extensão territorial cerca de 13 vezes maior do que a Chapada dos Veadeiros; iii) a existência de sete Reservas do Patrimônio Particular Natural – RPPNs (refira-se às Figs. 3, 4, e 5).

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A APA é um tipo de ‘Unidade de Conservação’ classificada como de ‘uso sustentável’; portanto, permite a presença e intervenções antropogênicas conforme estabelecidas na legislação e normas.

Pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação, SNUC, a categoria APA pode ter até 30% de sua área para atividades diversas, entre elas: plan-tio (inclusive de monoculturas), instalação de indústria(s), desmatamen-to(s), e pecuária extensiva em larga escala, conforme o Plano Diretor e o zoneamento de ocupação e uso do município.

Certas atividades – além de atenderem às especificações legais e normas – também demandam de autorização do IBAMA e ICMBio e devem estar em sintonia com o ‘plano de manejo dos recursos naturais’ do(s) municí-pio(s). O Plano Diretor Municipal é uma lei de elaboração obrigatória para todos os municípios que tenham mais de 20 mil habitantes, e o Plano é uma ferramenta de desenvolvimento local a partir da gestão e zoneamento de áreas urbanas, um instrumento de gestão territorial urbana, e está previs-to na Constituição Federal, como forma de planejar as funções sociais na busca de uma nova realidade sustentável urbana e para complementar ou-tras legislações em nível estadual e federal.

Com relação ao Parque Nacional, ele se estende nos limites de seis mu-nicípios, incluindo Cavalcante, Teresina e Monte Alegre, e trechos do Território Kalunga estão dentro dos limites da APA Pouso Alto e, portanto, igualmente sujeitas às restrições específicas de uso antrópico.

A Terra Indígena dos Avá-Canoeiro é uma área circunvizinha a dos Kalunga e ao Parque, situada na parte oriental do município Colinas do Sul, totali-zando 19.148 hectares para apenas seis residentes deste grupo indígena. Esta população indígena enxuta é resultado de uma redução dramática do povo Avá-Canoeiro ao longo das décadas, estando eles – como etnia espe-cífica – sob o risco de desaparecer (BEGNINI, 2003).

Em suma, há um mosaico territorial no norte de Goiás com terras pertencen-tes a dois grupos étnicos de especial status na Constituição do país: os indí-genas, e os afrodescendentes de Quilombo. As terras deles são normatizadas e reguladas distintamente quanto ao seu uso e presença humana; elementos que configuram uma notória particularidade e dinâmica para a região devi-do à complexidade fundiária, aos agrupamentos humanos, e às unidades de

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conservação. Elementos que devem ser considerados em qualquer pesquisa sobre a presença e historicidade dos Kalunga, bem como dos indígenas.

A Tabela 1 apresenta dados fundiários e das unidades de conservação nos municípios goianos que compartilham ou circundam o Sítio Kalunga, e a Tabela 2 detalha o processo de reconhecimento das terras de Quilombo pelo INCRA cujos títulos emitidos são caracterizados como ‘propriedade coletiva’.

TABELA 1 - Kalunga, situação fundiária e unidades de conservaçãono nordeste de Goiás

MunicípioArea Total(em hectares)

Área KalungaArea de Proteção Ambiental

Cavalcante 695,400 ha. 153,248 ha. 427, 349 ha.

Monte Alegre 312,000 ha. 42,546 ha. –––

Colinas do Sul 170,800 ha. 19.148 ha. 134,496 ha.

Teresina de Goiás 75,500 ha. 41,205 ha. 34,300 ha.

Fonte: Ismar Lima, 2011, com informações disponíveis na Agência Goiana de Desen-

volvimento Rural e Agrário.

TABELA 2 - Etapas da Regularização de Terras de Quilombo pelo INCRA* A Fase anterior obrigatória para a abertura de abertura no INCRA: Lista das comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares

FASES Descrição Documentos

1 Fase Inicial- Abertura de processo no Incra para reconhecimento de Territórios Quilombolas

-Lista de processos;-Total de processos abertos.

2 Elaboração de RTID- Início do estudo de área, visando à confecção do Relatório Técnico de Indentificação Delimitação (RTID).

-RITDs em elaboração;- RITDs publicados.

3Análise e julgamento de recursos ao RTID

-Após a publicação do RTID, o processo é abertoPara contraditório.

- Em análise de recurso;- Processos julgados.

4Portaria de reconhecimento

-Portaria que declara os limites do Território

- Portarias em fase de publicação;- Portarias publicadas.

5Decretação/ Encaminhamento

- Decreto presidencial que autoriza a desapropriação privadas/encaminha-mentos a entes públicos que tenham a posse.

- Decreto em fasede publicação;- Decretos publicados.

6 Desintrusão - Notificação e retirada dos ocupantes- Processos em fase de desintrusão.

7 Titulação- Emissão de título de propriedade coletiva para a comunidade.

- Territórios titulados.

Fonte: Adaptado do Portal INCRA online, 2014.

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A noção de uma uniformidade e homogeneidade cultural africana no Brasil e críticas a respeito, particularmente considerando-se os Quilombos, é largamente discutida na Literatura pertinente (BRITO-NETO, 2002, 2006; ALMEIDA, 2010; MARINHO, 2008; PARE e VELLOSO, 2007; SILVA, 2004; CORDEIRO, 1995), autores que são especializados em estudos e temas et-noculturais e, ou, sobre os afro-brasileiros.

A percepção homogênea da sociedade sobre um determinado grupo ét-nico, no caso em questão, os Kalunga, pode ser ilustrada pela ideia este-reotipada que todos os residentes dos Quilombos sejam de origem negra ou africana, com crenças e costumes específicos, de tradição Católica e, ou, praticantes de cultos afro-brasileiros que sintetizam um sincretismo religioso.

Contudo, tal noção e percepção de homogeneidade não podem se vali-dadas em plenitude, pois apesar de ser um grupo, predominantemen-te da raça negra, descendente de africanos; nem todos os residentes dos Quilombos são negros, pois há casamentos inter-raciais e pessoas não afrodescendentes que são aceitas pela comunidade e passam a morar nos Quilombos.

Outras diferenças no tecido social e comunitário também desqualificam a defesa por uma uniformidade Kalunga. Há predominância da fé Católica em essência, ou seja, sem um sincretismo perceptível, mas nem todos são católicos.

Há evangélicos e os sem religião específica como apurado nas conversas informais com os residentes durante trabalho de campo. Para Cordeiro (1995), há inquestionavelmente uma cultura africana no Brasil, mas isso é na verdade parte da nossa ‘cultura nacional’ que é permeada e constituída de tradições e crenças africanas,

Tradicionalmente [são] chamados de Kalungueiros os que habitam a re-

gião... eles guardam apenas alguns traços da cultura e costumes de seus

ancestrais da África; na verdade, os próprios antepassados deles já tinham

uma cultura misturada [aculturada] com outras culturas [por exemplo, os

indígenas, e os europeus portugueses], formando o que Artur Ramos pre-

goava como uma ‘cultura afro-brasileira’ ou simplesmente uma ‘cultura na-

cional’. (CORDEIRO, 1995, p. 73).

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2 - Etnodesenvolvimento e os Quilombolas:

abordagens conceituais

Os Kalunga têm se empenhado para fortalecer a cultura, bem como para alcançar uma relativa autonomia econômica e financeira por meio de ati-vidades geridas por eles próprios, um etnoempreendedorismo Kalunga. Portanto, muitos residentes anseiam por desenvolver atividades que pro-piciem a consolidação de um modelo de etnodesenvolvimento sustentado por processos endógenos de autogestão com tomadas de decisão de base participativa (FARIA, 2005; SILVA E CARVALHO, 2010).

Para Stavenhagen (1985), o termo ‘etnodesenvolvimento’ tem duas abor-dagens principais na literatura, sendo explicado como “o desenvolvimen-to econômico de um grupo étnico” ou descrito como “o desenvolvimento da etnicidade de um grupo social” (tradução própria). Little (2002, p. 39-40, tradução própria) advoga que esses dois significados não se excluem, e são fronteiras dialéticas, pois o “desenvolvimento de etnicidade” sem uma “sintonia com avanços econômicos” pode acabar resultando na produção de um grupo étnico periférico.

Bonfil Batalla (1981; 1985), seguido por Stavanhangen (1996), tornaram-se uns dos grandes contribuidores para o tema etnodesenvolvimento na Américana Latina. Bonfil Batalla como militante dedicado aos assuntos in-digenistas teve um papel relevante nas décadas de 1970 e 1980 com críticas às políticas desenvolvimentistas; muitas de caráter integracionistas, e daí passou a formular várias teorias e ideias sobre etnodesenvolvimento como alternativa tanto às teorias desenvolvimentistas etnocidas, que situavam os povos indígenas como obstáculos ao desenvolvimento, quanto às no-ções de modernização e progresso nos moldes ocidentais.

Tal fato levou Souza (1996, p. 8) a fazer o seguinte questionamento sobre o ‘projeto de modernidade’, “a denúncia da heteronomia, da desumanização e da agressão à natureza virtualmente contida, desde o começo, no projeto da modernidade, ameaça, entretanto, deixar na sombra a sequínte interro-gação: seria o Ocidente apenas um “mal”, ou mesmo o Mal?”.

Além de Bonfil Batalla e Stavanhangen, outros pensadores e estudiosos la-tinoamericanos podem ser citados como referência no tema, entre eles:

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Enrique Valencia e Salomón Nahmad (México), Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira (Brasil), bem como Stefano Varese (Peru), e Diego Iturralde (Equador).

Para Stavenhagen (1996, p. 90) etnodesenvolvimento não significa a rejei-ção dos modelos contemporâneos de desenvolvimento; um posicionamen-to que é compartilhado por Sahlins (1999, p. 40) que entende que os grupos não-ocidentais, ou seja, de cultura e visão de mundo não-ocidental, bus-cam de fato a “indigenização da modernidade” de modo que tenham espa-ço para sua cultura nos esquemas globais das coisas.

Stavenhagen (1986, p. 2) define etnodesenvolvimento como “‘programas de desenvolvimento’ que possam propiciar o desenvolvimento de grupos ét-nicosdentro de um contexto societário mais amplo”, compreendendo-se “a natureza e as características dos conflitos existentes entre os grupos étnicos no processo de [auto]desenvolvimento” (STAVENHAGEN, 1996, ix).

Muitos autores consideram que ‘etnodesenvolvimento’ seja um dos mode-los mais ambiciosos já apresentados, ou desejados, em termos de rompi-mento de paradigma, como modelo alternativo de desenvolvimento (FONG, 2008), pois mesmo sendo uma das representações das estratégias de de-senvolvimento pós-Truman, centrado nas questões do hemisfério sul, re-conhecendo-se o direito dos povos ali existentes decidirem por si seu des-tino concernente ao desenvolvimento social; a abordagem proposta por Stavenhagen é tida como uma crítica ao projeto modernista de construção sob a perspectiva e ponto de vista ocidental ou americano.

Schroeder (2011) ressalta, contudo, que atualmente projetos autogerencia-dos por minorias étnicas são tipificados como práticas de etnodesenvolvi-mento. Os estudos de caso apresentados nesta obra sobre as ações, inser-ções, e inclusões das comunidades quilombolas e indígenas em atividades produtivas feitas e gerenciadas por eles próprios, um protagonismo étnico na cadeia produtiva comunitária local, ilustrando exemplos de materiali-zação de um etnodesenvolvimento, apesar de que tal asserção é alvo de críticas de Schroder (2011, p. 10).

Inicialmente, o conceito de etnodesenvolvimento teve uma repercussão ampla, sobretudo, no meio indigenista não governamental, mas na década de 1990 já fazia parte de diversos discursos indigenistas governamentais.

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No entanto, sua popularização não foi tão grande que hoje em dia todo e qualquer projeto local autogerenciado por indígenas receba o rótulo ‘etno-desenvolvimento’. Embora ele, hipoteticamente, não precise ficar restrito às situações de povos indígenas como minorias étnicas dentro de estados nacionais, sendo que grupos não indígenas também podem elaborar seus projetos de um futuro melhor, com base em seus próprios valores e prá-ticas culturais, de fato experiências de projetos elaborados com base no conceito de etnodesenvolvimento foram realizadas quase exclusivamen-te com povos indígenas, ficando as comunidades de Quilombo ainda sem uma investigação mais completa com relação ao tema.

Stavenhagen (1985) considera que fatores e conjunturas institucionais – assimetrias [e dissimetrias] sociais e políticas - tal como presenciadas no Brasil – devem ser objeto de atenção no momento de formulação de mo-delos etnodesenvolvimentistas, haja vista a característica universalista de ‘desenvolvimento’ e “ao sistema de crenças que subjaz a esta ideia”.

Segundo Stavenhgaen (1985), tais premissas (antecedentes) para se avançar rumo a um modelo de etnodesenvolvimentista são citadas abaixo. Apesar de que tais elementos são analisados no contexto das ‘comunidades indígenas’, não há impedimentos para que sejam também aplicados na realidade dos Quilombolas.

• a necessidade das populações se adequarem às regras do jogo

de fomento para acessar os “recursos técnicos e financeiros”

disponibilizados para a promoção do seu desenvolvimento;

• a mercantilização da natureza e dos conhecimentos indígenas

e sua inserção nos circuitos econômicos de mercado;

• a objetivação da cultura para fins de planejamento e

de definição de “bens” e “serviços” adequados;

• a imposição de formas organizativas particulares (tipo sindical

ou associativa) como forma de representação e requisito

básico de acesso às instâncias de “participação” oficiais;

• a inserção de expoentes (“lideranças”), na condição de intermediários

legitimados pela origem étnica e pela rede de apoio que consegue

estabelecer dentro e fora da “comunidade”, em sentido amplo,

nas estruturas de Estado (burocracias) constituídas para

administrar o processo de “desenvolvimento com identidade”.

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Portanto, os avanços econômicos de um grupo étnico são condições intrín-secas de um etnodesenvolvimento. E, um turismo etnocultural e ecológico parece servir como uma das atividades propícias para um modelo alterna-tivo de desenvolvimento endógeno cujas premissas seriam a autossusten-tação, autodeterminação, autonomia empreendedora, e autocapacitação, ou seja, a formação e qualificação de recursos humanos na própria comu-nidade. Esse tipo de turismo com uma tríplice inferência autóctone com base no ‘eco’, ‘etno’ e no ‘cultural’, parece preencher uma lacuna em termos de atividade-meta servindo de ‘elo’ entre três dimensões (cultura, etnia e empreendedorismo) que podem vir a coexistir conciliando interesses co-munitários e étnicos dando todo um novo significado para o etnoturismo como atividade ‘etnoemancipatória’ no contexto do etnodesenvolvimento.

Faria (2005) relata que tudo que é produzido por um indivíduo – de va-lor material ou imaterial – é parte de uma herança cultural, e os “elemen-tos étnicos” fazem parte dessa herança. Ainda sobre o elemento ‘cultura’, McKercher e Cros (2002, p. 7, tradução própria) defendem que “os elemen-tos culturais ou tradicionais [imateriais] podem vir a servir a vários pro-pósitos de um grande grupo de usuários [beneficiários], incluindo visitan-tes [...] mas, podem igualmente servir aos ‘proprietários tradicionais’ tais como os indígenas ou as comunidades étnicas, pois são eles os detentores [de facto] da propriedade cultural e intelectual, e dos direitos sobre a terra”.

Quando se fala sobre os vínculos entre ‘tradição’, ‘etnicidade’ e ‘cultura’ em relação ao turismo, a definição que prevalece é a de um ‘turismo cultural’ e ‘etnoturismo’, pois “o universo da cultura tem sido historicamente criado, e os significados, valores e visões que o constituem devem ser explicados” (MENESES, 2002, p. 92).

O etnoturismo é um tipo de ‘turismo cultural’ cujo apelo é a identidade e a cultura de um grupo étnico particular. E, turismo étnico e turismo indí-gena podem ser considerados um tipo de etnoturismo (FARIA, 2005, p. 73).

Quanto ao ‘turismo cultural’, o mesmo é sucintamente e claramente de-finido pela Organização Mundial de Turismo, OMT, como ‘mobilidade de pessoas em busca de atrativos culturais localizados em cidades ou em paí-ses, que não sejam os lugares rotineiros de residência e trabalho com a in-tenção de obter novos conhecimentos e experiências a fim de satisfazer as necessidades culturais delas.

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Desta forma, o papel da cultura é contextual e está relacionado à expe-riência cultural em geral do visitante sem um foco em particular sobre unicidade de uma identidade cultural específica (WOOD, 1984, p. 361). Isso pode vir a demonstrar que os visitantes quando vão ao território Kalunga não devem se centrar em um aspecto único da cultura deles, mas buscar uma experiência mais ampla sobre a cultura afro-brasileira remanescente em um Quilombo; os visitantes, maiormente vão às Terras Kalunga para desfrutar e contemplar a natureza, as belezas paisagísticas e seus atrativos como forma de autossatisfação reservando uma parce-la pequena da estada para uma interação e diálogos com a comunidade a fim de conhecer sua história, realidade, identidade e peculiaridades como grupo étnico.

A comunidade Kalunga teve um papel muito importante no processo histó-rico de formar a vasta diversidade cultural do Brasil (BRITO-NETO, 2006). No relativo isolamento, as comunidades Kalunga se empenhavam para ter melhores condições de moradia e de vida em geral, e para manter as tradi-ções, identidade e cultura deles (ALMEIDA, 2009).

Na década passada, houve um rápido crescimento no contato e na aproxi-mação dos Kalunga com o “mundo externo”, particularmente em razão dos Programas Sociais do Governo, dos interesses acadêmicos e de pesquisa, e por causa do aumento do fluxo e interesse de visitantes na busca de expe-riências com o turismo etnocultural e ecoturismo.

Tudo isso faz com que os Kalunga sejam colocados no centro das aten-ções, o foco, com um interesse especial por parte da sociedade. Esta si-tuação inquestionavelmente revela duas situações e contextos se contras-tada com a experiência e importância recebidas por seus antepassados por uma sociedade regida e sustentada pelo despropósito de um sistema escravocrata.

Durante esse período, os africanos escravizados no Brasil tinham suas tra-dições, costumes e valores oprimidos, desrespeitados, sufocados, e o co-lonizador europeu – apesar de das várias diferenças culturais, étnicas dos africanos vindos de diferentes lugares daquele continente – os percebia apenas como um grupo etnicamente homogêneo (racialmente negros) que foram trazidos (escravizados) para servir a seus senhores e serem explora-dos da mais variadas formas.

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No Sítio Kalunga, o turismo cultural ou etnoturismo combinado com o ‘tu-rismo de natureza’ ou ecoturismo está em plena demanda pelos visitantes, e o interesse é crescente, em particular, com consideráveis fluxos de visi-tação à Comunidade Kalunga Engenho-2, por causa dos atrativos naturais – trilhas nas matas e banho nas cachoeiras.

3 - Capital humano, turismo, e comunidades Kalunga

Muitos pesquisadores que investigam o “capital humano”, nas áreas de ges-tão, recursos humanos, economia do trabalho, educação e economia, o de-finem como o resultado das relações entre os “indivíduos” e “qualidades adquiridas”, e defendem que este tipo de estoque cognitivo humano é fun-damental para o desenvolvimento social e econômico (BOXALL; PURCELL, 2008).

Palavras-chave como “habilidades, renda, conhecimento, trabalho, educa-ção, formação, educação, e cuidados com a saúde” foram definidos como traços indiscutíveis (evidências concretas) de capital humano, e alguns têm usado o “capital humano” como sinônimo de “recursos humanos” e “con-fiança social” (DASGUPTA; SERAGELDIN, 2000).

Os métodos quantitativos e descritivos de pesquisa focados em ‘capital hu-mano’ não fornecem uma definição clara sobre tal ‘capital’, nem fornecem ferramentas precisas para medir (mensurar) esse capital. Conforme apon-tado por Lozano et al. (2006, p. 394), tal fato resultou em “falhas na inves-tigação sobre capital humano no domínio do turismo”. A literatura sobre as relações entre o turismo e “capital humano” está principalmente preocu-pada com um segmento específico do setor.

Os economistas defendem que o investimento em treinamento e educa-ção faz avançar o capital humano por meio da adição de valores, habilida-des, e bem-estar que não podem ser tirados das pessoas (BECKER, 2002; WOESSMANN, 2002).

O capital humano está, portanto, ligado ao desenvolvimento e conheci-mento coletivo e social como “produtos conjuntos”, muito embora concei-tualmente distintos em sua mensuração (STROOMBERGEN et al., 2002).

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O ‘capital humano’ é centrado, logicamente, no ‘indivíduo humano’ como ‘unidade referência’,objeto de investimentos e de qualificação para sua melhoria e progresso, primeiramente, com benefícios individuais com ex-tensões ao grupo o qual pertence; os trabalhos empíricos sugerem a sua importância da qualificação individual-coletiva para a economia (HUANG, 2003); é um “fator explicativo de crescimento... acumulação de capital hu-mano como força motriz do desenvolvimento econômico” (LOZANO et al. 2006, p. 379).

Para eles, o papel do capital humano no setor do turismo é indispensável porque liga trabalho à produtividade e à qualidade dos produtos turísticos (p.380-381), bem como para o envolvimento das comunidades em ações de preservação e conservação, o aumento do capital humano, ligando os mo-radores a projetos ecológicos pode contribuir amplamente para a gestão eficaz dos recursos naturais (BOVARNICK; GUPTA, 2003, p. 449).

4 - Políticas públicas sociais, planejamento e

ordenamento territorial: Quilombolas e o (eco)turismo

Com a missão de melhorar a qualidade de vida da população de Quilombos no Brasil, o governo federal tem implementado políticas públicas, progra-mas e planos com metas econômicas, sociais e de saúde. Uma dessas ações é o ‘Programa Brasil Quilombola’ (PBQ), em execução, composto por cinco subprogramas principais (planos de ação), que tem como objetivo melho-rar as condições de moradia de 743 comunidades étnicas (SEPPIR, 2010; Ministério da Cultura, 2010).

O PBQ engloba 23 Ministérios e Agências governamentais a fim de se ga-rantir o acesso à terra, saúde, e à educação, bem como implementar a construção de habitações, promover a eletrificação e uma recuperação ambiental; a meta é buscar avanços no desenvolvimento local ao propiciar assistência às famílias por meio de programas sociais, tais como o Bolsa Família - de viés assistencialista e realizado a longo termo.

Contudo, o Bolsa Família tem sido alvo de várias críticas pela mídia e opo-sicionistas partidários por supostamente levar indivíduos e famílias a um grau de dependência dos recursos e benefícios repassados.

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No caso das políticas públicas seguidas de programas governamentais assistencialistas nas comunidades quilombolas, os críticos alegam que o ‘Quilombo’ tem se tornado uma arena para ações políticas ao longo dos anos, levando a um nível de comodismo, ao invés de se promover a eman-cipação social e econômica dessas minorias étnicas de particularidades culturais e identitárias.

Os níveis de dependência criados fazem com que tais programas acabem por apresentar resultados adversos dos esperados, pois tais políticas e vi-são assistencialista interferem na constituição e renovação de uma força de trabalho produtiva.

Para Américo (2010), há uma relação de interdependência no que diz res-peito aos programas de bem-estar social, os projetos de algumas ONGs, e até mesmo por projetos de pesquisa de Instituições acadêmicas:

Sob este cenário, as comunidades afrodescendentes têm sido estrategica-

mente usadas por indivíduos e organizações como argumento para se ob-

ter recursos financeiros em Instituições de fomento e em editais públicos

com chamadas para projetos sociais ou estudos acadêmicos (AMÉRICO,

2010, p. 71- 72).

Para muitos, a dependência em programas e políticas públicas assisten-cialistas denota um tipo de “escravidão do bem-estar”. É claro que os mo-radores quilombolas, afrodescendentes sem privilégios - como os Kalunga - querem apoio externo, mas eles também querem fazer parte de uma ci-dadania estruturada, um direito que foi negado a seus antepassados es-cravizados, e os Programas Assistencialistas de caráter mais perpetual e implementados sem perspectivas de ações que levem a uma emancipação econômico-financeira dos indivíduos, revela-se uma antítese ao modelo de etnodesenvolvimetno.

Um modelo que demanda garantias de existência e exercício de uma et-no-cidadania, criando-se condições e mecanismos para que os sujeitos lo-cais possam tomar posse sobre suas próprias questões, e engajar-se em todo o processo de tomada de decisão com legitimidade e por meio de uma gestão democrática de base participativa. A etno-cidadania pode ser considerada a textura mais visível de um protagonismo emancipatório dos Kalunga. Brito-Neto (2006, p. 57) destaca que,

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a cidadania ainda não chegou à sua dimensão universal por causa de uma

falta de organização da sociedade e devido à falta de controles democrá-

ticos ...considerando-se este contexto tem havido um alto grau de inter-

ferência do Estado (regulamentação), proteção e promoção do bem-estar.

É importante salientar que as políticas públicas que visam ao desenvolvi-mento do turismo podem ser concebidas por diferentes esferas de gover-no: municipal, regional, estadual, nacional e internacional (AGETUR, 2008). Dessa forma, o planejamento do turismo e intervenções implementadas por órgãos públicos distintos podem levar a resultados com níveis de efi-ciência contrastantes.

No Brasil, as políticas nacionais para o turismo tornaram-se mais perceptíveis após os anos 90 à medida que os principais programas foram revistos para promover o desenvolvimento regional e a melhoria da qualidade de vida da população periférica ao engajar esta população de áreas não-urbanas, a duas modalidades de turismo: o rural e o ecoturismo, como é o caso dos Kalunga. Os principais objetivos eram aumentar os níveis de renda das famílias eco-nomicamente desprivilegiadas, melhorar a estrutura e infraestrutura local, e fornecer os meios para uma capacitação ampla e a integração territorial.

No que diz respeito às políticas públicas e turismo, o governo brasileiro em níveis municipal, estadual e federal têm tomado algumas iniciativas para definir uma série de condições, tais como estruturas institucionais, aloca-ção de recursos, estratégias e diretrizes para se ter um turismo sustentá-vel como caminho para um desenvolvimento regional de múltiplos ganhos também ambiental, particularmente em áreas rurais e remotas do país.

Com este ponto de vista, o governo implementou 23 programas, com uma associação direta ou indireta com o turismo rural e agroturismo. Alguns deles ainda estão em andamento e outros programas foram interrompidos devido a baixos resultados, má-gestão de projetos, falta de recursos financeiros ou humanos, falhas de políticas públicas ou institucionais; bem como pela falta de vontade política para mantê-los funcionando. Isso acontece, pois em tais programas a temporalidade deles muitas vezes não coincide com a tempora-lidade de uma gestão pública, por conseguinte, não havendo interesse de uma nova gestão em dar continuidade a tais ações de um governo anterior. Há, no caso de mudança de gestão, uma patente incompatibilidade ‘temporal’ resi-dente entre ‘realização da administração pública’ e ‘resultados alcançados’.

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Nas duas últimas décadas, algumas políticas direcionadas ao turismo pelo governo federal tiveram grande repercussão, mas muitas se mostraram com resultados tacanhos pelo tamanho das propostas, entre elas: o Programa Nacional de Ecoturismo (PROECOTUR), lançado em 1995, concebido para fomentar diretrizes para o ecoturismo na região amazônica, mas foi aban-donado em 2006. Em 2004, um ano após a criação do Ministério do Turismo, foi lançado o Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil, ainda em execução, visando a instalar uma gestão participativa do Turismo com um olhar para políticas públicas para o desenvolvimento regional; o Programa de Formação Profissional em Turismo; Programa de Iniciação para o Turismo na Escola; Programa de Pesca Esportiva; Programa do Artesanato Brasileiro; Programa de Municipalização do Turismo (PNMT); e o Programa Brasileiro de Turismo Rural (SILVA; CAMPANHOLA, 1999).

Em Goiás, o governo do Estado por meio de sua Agência de Turismo, AGETUR, e seu Instituto de Pesquisa em Turismo (IPTUR), criado pela Lei 16.82, de 11/12/2009, têm proposto políticas estaduais para o desenvolvi-mento do turismo.

O IPTUR tem um papel multidisciplinar e multi-institucional, com a tarefa de fornecer dados qualitativos e quantitativos precisos, bem como esta-tísticas em uma infinidade de áreas desde o negócio empresaria em si às questões sociológicas, além de estabelecer parcerias com a transferência de conhecimento, apoio e formação específica, ao promover palestras so-bre temas-chave para os atores locais envolvidos em atividades turísticas, incluindo as comunidades Kalunga. O trabalho institucional é fazer com que o turismo seja uma ferramenta de desenvolvimento eficaz. Os diag-nósticos turísticos têm servido como subsídios para o planejamento e avanços do setor.

Quanto a Goiás, como ‘território para o turismo’, em 2007 a AGETUR e o IPTUR fizeram uso de sete critérios de forma inovativa para avaliar e clas-sificar os 246 municípios do estado de Goiás de acordo com a sua situação turística atual e o potencial para o futuro do setor. Além de considerar os valores cênicos, e o patrimônio natural e cultural, a Agência e o Instituto usaram seis critérios para classificar os municípios em três categorias con-siderando seu nível de desenvolvimento turístico corrente: Cristal (Básico), Esmeralda (intermediário) e Diamante (Avançado).

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Para se fazer a classificação, a existência das seguintes estruturas e elemen-tos em nível municipal foram levados em consideração: Conselho Municipal de Turismo (COMTUR); Centro de Assistência ao Turista (CAT); Fundo Municipal para o Turismo (FUMTUR); e a existência de um Plano Municipal de Gestão do Turismo (Plano Turístico Municipal) aprovado/sanciona-do; o Boletim de Ocupação Hoteleira (BOH); e por último, a filiação oficial ao IPTUR. O município de Cavalcante, onde a maioria das comunidades Kalunga se localiza foi classificado na categoria Esmeralda de desenvolvi-mento turístico, portanto, com um nível intermediário de desenvolvimento.

Atualmente, a percepção de desenvolvimento com seus avanços e incorpo-rações de novos elementos, transforma-o detentor de várias implicações. Considerando-se isso, referir-se a desenvolvimento remete a pontuações acerca de ‘autossustentação’, ‘visão endógena’, ‘suprimento das necessida-des básicas’, ‘empoderamento’, ‘arranjos participativos’, ‘usos sustentável dos recursos naturais’, bem como um debate mais holístico sobre tomadas de decisões, poder político e mecanismos participativos, tudo voltado para se otimizar e, ou, ampliar os benefícios para as comunidades e os povos, em particular, as minorias étnicas.

Apesar das abordagens e análises oferecidas pelos autores, ainda assim - em termos operacionais - a construção de um modelo de etnodesenvolvi-mento exequível demanda de metodologia, métodos, ferramentas, instru-mentos, e estratégias que vão além da operacionalidade já sugerida.

Um modelo executável demandaria de instrumentos de gestão territorial contextualizada de tal forma que fatores exógenos, bem como aspectos culturais, sociais, e econômicos, sejam observados e analisados sob o pris-ma dos princípios do etnodesenvolvimento para melhor se compreender uma realidade territorial local, compreender as variantes que possam for-talecer, enfraquecer, ou interferir em projeto de desenvolvimento com tais particularidades aqui examinadas.

A AGETUR e o IPTUR também usaram os mesmos critérios e dados quali-tativos para definir uma macro divisão regional de turismo de Goiás (não jurisdicional). As divisões proporcionaram a ordenação de um leque de serviços: eles forneceram ‘uma visão geral do contexto e do cenário tu-rístico estadual’, dos seus destinos e locais em Goiás, que são de extrema relevância para os visitantes, ao oferecer dados e informações de extrema

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relevância para o setor empresarial, ao estabelecer as áreas com priorida-de e necessidade de alocação de recursos financeiros públicos e privados, e alvo de investimentos diversos. Nove regiões foram identificadas e clas-sificadas de acordo com os seus pontos fortes, destaques ou excelências em turismo, por exemplo, o tipo de especialização turística e os atrativos naturais, culturais, e, ou, históricos.

As regiões foram assim classificadas: a Região Agroecológica, uma área com cerrado nativo, mas com produção em larga escala ea pecuária; Região do Vale do Araguaia, um dos destinos turísticos fluviais mais visita-dos; a Região do Vale da Serra da Mesa, uma enorme área alagada resulta-do da formação do lago da Usina Serra da Mesa; a Região da Chapada dos Veadeiros, a maior e mais bem preservada área de Cerrado nativo; a Região das Grutas e Cavernas; a Região das Águas; a Região dos Lagos; a Região do Ouro; a Região dos Negócios e Tradições; e a Região dos Lagos e Cristais.

Com esse ordenamento territorial de Goiás por meio do estabelecimento de ‘regiões turísticas’ tendo como critério os pontos fortes de vocação de cada uma delas, o Sítio Kalunga ficou na ‘Região Chapada dos Veadeiros’.

Esse zoneamento é muito útil, pois racionaliza o pensar e as ações em ní-vel de Estado, contribuindo sobremodo para o planejamento turístico em subzonas com ênfase em seus atrativos e nos grupos humanos existentes, dinamizando, consequentemente, a formatação e divulgação de produtos, inclusive o produto turístico Kalunga, fazendo-se uso aqui de linguagem de marketing.

5 - O Programa de Fortalecimento da Agricultura

Familiar e Turismo Rural (PRONAF Turismo) e

Rede de Turismo Rural na Agricultura Familiar

(Rede TRAF): um caminho institucional para

se reforçar o (eco)turismo Kalunga?

O aumento do turismo em unidades de agricultura familiar rural promove a manutenção e reprodução das formas tradicionais de produção familiar socioeconômica destas regiões. As propriedades do pequeno agricultor

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têm um grande potencial para o desenvolvimento de sistemas de produ-ção orgânica, onde são montadas atividades novas para integrar projetos exequíveis objetivando resultados em termos de sustentabilidade local, tal como ‘geração de renda e de emprego’ em áreas rurais.

A conexão entre a agricultura familiar e turismo rural tem despertado tan-to interesse que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) criou uma linha de crédito especial para ele no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Mais recentemente, o PRONAF para o Turismo Rural foi criado para apoiar projetos voltados para a agricultura familiar. Esses projetos incluem cafés coloniais, hotéis rurais, restaurantes típicos e estabelecimentos rurais que oferecem pesca esportiva comercial, entre outros.

O turismo rural e ecoturismo na área de Kalunga são duas atividades que podem se beneficiar em grande parte do ‘PRONAF Turismo Rural’ caso esse Programa permaneça ativo no âmbito do Ministério. As ferramentas oferecidas eram: créditos de investimento, treinamento, e assistência téc-nica e extensão rural.

Outra ação relevante para o setor foi a criação de uma rede rural de turis-mo, intitulado Rede de Turismo Rural na Agricultura Familiar – Rede TRAF, um conjunto de ações em nível nacional com mais de 100 instituições en-volvidas, a Rede teve apoio do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura e do Ministério da Agricultura.

Para Cruz e Valente (2005, p 797), embora a terra Kalunga esteja locali-zada em uma área com alto potencial turístico devido às suas paisagens conservadas e devido aos ativos naturais, não foi tomada nenhuma ação do governo para abordar suficientemente a questão. Algumas iniciativas para impulsionar o turismo têm sido feitas pelos próprios Kalunga com o apoio de ONGs socioambientais, movimentos sociais, e operadoras de ecoturismo.

Cruz e Valente (2005), alertam para a necessidade de se propor um plano de turismo estruturado que leve em conta as dinâmicas territoriais do Sítio Kalunga e de seu entorno. Tal plano, em sua concretitude, ajudaria sobre-maneira as comunidades Kalunga a terem as credenciais necessárias para a alocação oficial de recursos e treinamento(s).

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Todas essas políticas, programas, e ações que visem ao desenvolvimento de atividades relativas ao turismo étnico-cultural e ecológico, em terras Kalunga, trazem consigo um elemento implícito que vai além das noções de melhoria de vida, preservação do meio ambiente e da manutenção de estilos de vida e tradições. Treinamento e capacitação são bens duradou-ros, porque eles são investimentos na formação de um ‘capital humano’ com qualificação e conhecimentos para que os indivíduos se tornem há-beis o suficiente de modo a lhes propiciar uma independência econômi-co-financeira e política. ‘Recursos humanos qualificados’ é o resultado de investimentos sistemáticos, especialização, politização, e de transferência de conhecimento em áreas-chave para o desenvolvimento comunitário.

6 - Ecoturismo Kalunga: compreendendo o

contexto, a comunidade, e os recursos naturais.

Sobre o turismo no Sítio Kalunga pode-se afirmar que é uma atividade re-lativamente incipiente, mas com enorme potencial devido ao fluxo cres-cente de visitantes para gerar renda de maneira perene com possibilidades de benefícios estendidos para a comunidade em geral, caso se criem me-canismos para uma distribuição mais equitativa dos recursos que entram e de taxas cobradas.

Dos quatro principais agrupamentos Kalunga no Sítio, ‘Engenho-21 tem se mostrado melhor equipado em termos de infraestrutura e melhor qualifica-do em termos de recursos humanos para lidar com o turismo e suas deman-das. Conforme Almeida (2009), a existência do território Kalunga tem sido um importante fator de preservação ambiental e conservação da paisagem.

A região tem uma vultosa coleção de atrativos naturais com apelos cênicos para o lazer, contemplação, e aventura, entre eles: cachoeiras com que-das ímpares, cavernas, riachos, rios, lagos, formações rochosas exóticas, serras, morros, e fauna e flora com espécies endêmicas. O tipo de turismo realizado pelos Kalunga contempla uma atividade de baixo impacto, prin-cipalmente nas áreas das cachoeiras do Sítio.

Alguns membros da comunidade participantes do processo como guias, por exemplo, acabam tendo renda adicional. Portanto, pode-se afirmar

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que existem práticas turísticas no local que podem ser consideradas como ‘práticas ecoturísticas’. Para se evitar disputas conceituais, pode-se tam-bém afirmar que há no Sítio Kalunga a prática de um ‘turismo de natureza’ com alguma preocupação para se conservar os atrativos naturais.

O Engenho-2 é a comunidade em que a atividade turística acontece de maneira mais constante, e isso ocorre em razão do próprio interesse e ini-ciativas dos membros da comunidade, e por ser ela a mais próxima de área urbana, a cidade de Cavalcante e Alto Paraíso, uma situação que coloca a comunidade em vantagem relações às demais do Sítio devido ao acesso mais rápido pelos visitantes e pelas agências e operadoras de turismo.

Apesar de existir quatro comunidades Kalunga espalhadas pelo Sítio, elas não possuem uma demarcação interna, uma espécie de territorialização interna. Na realidade, as divisões, limites e separações inter-territorial (ou interespacial comunitária) são marcadas apenas por elementos da nature-za – os chamados acidentes geográficos -, tais como morros, rios, riachos, cachoeiras, etc., sem que tal fato faça com esses agrupamentos percam o sentido comunal-coletivo presente no Sítio como um todo. Todos se con-sideram Kalunga demonstrando significativa coesão identitária mesmo es-tando as comunidades dispersas e longínquas no território.

O turismo mostra-se ser mais uma atividade para a geração de renda para as famílias Kalunga além das atividades produtivas já praticadas por eles, entre elas: o cultivo de roças de subsistência, hortas, bem como vi-vem da pescaria, do extrativismo de produtos não-madeireiros, da criação de pequenos rebanhos de gado, porcos, e de aves domésticas para abate (VELLOSO, 2007; BAICHHI, 1999; UNGARELLI, 2009).

São esses os meios de sobrevivência dos grupos que lá residem. Mas no Engenho-2, os residentes kalunga têm perdido parte de suas terras para fazendeiros, e isso tem levado a disputas pela posse da terra e a confli-tos fundiários, com acirramentos nessas tensões desde 1980 em virtude de grilagem de terras por indivíduos não-Kalunga, em geral, fazendeiros e garimpeiros que têm uma visão capitalista predatória sobre as terras de Quilombo (VELLOSO, 2007; UNGARELLI, 2009, p. 26), uma percepção capitalista que largamente contrasta com a visão de mundo mais comu-nal dos Kalunga em relação às suas terras e os recursos naturais que elas ostentam.

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O Engenho-2 possui 85 famílias e aproximadamente 20 delas atuam dire-tamente nas atividades de turismo de natureza, maiormente atuando como guias. Contudo, o sítio Kalunga como um todo, considerando-se todas as comunidades, tem cerca de 80 famílias engajadas em atividades vinculadas ao turismo, e elas passaram ouestão passando por capacitação com cursos e treinamentos de aperfeiçoamento, tais como ‘interpretação ambiental’ nas trilhas e nas áreas de cachoeiras, bem como ‘primeiros socorros’, e o desen-volvimento de habilidades em comunicação interpessoal e hospitalidade.

Os cursos de capacitação são parte de projetos de desenvolvimento pes-soal e de inclusão, cuja execução é de responsabilidade de ONGs, de opera-dora de turismo, e de Instituições educacionais e profissionais, entre elas: o Centro de Excelência de Turismo da Universidade de Brasília, UnB, SESI/SESC, a Travessia Ecoturismo, e as secretarias municipais de governo.

Durante entrevista com Isabel, na época presidente da Associação Kalunga de Guias, a comunidade tem tido uma postura bem otimista se envolvendo completamente nas etapas de desenvolvimento do turismo. Ela esclarece que os Kalunga têm apreciado lidar com visitantes, e uma enorme satisfa-ção em mostrar o meio ambiente, as paisagens, a natureza, e os atrativos naturais, as cachoeiras.

Entretanto, é desejo dos residentes do Sítio conquistar uma maior inde-pendência na gestão da atividade; e, para tanto, obterem habilidades téc-nicas para gerenciamento de negócios e empreendedorismo, tal como no-ção de administração, contabilidade, etc.

Isabel adiciona que o ‘ecoturismo’ é apenas um tipo de ‘produto’ que tem sido oferecido e está em visibilidade, particularmente no Engenho-2. Segundo ela, os líderes Kalunga querem um equilíbrio mais presente en-tre ‘cultura’ e ‘atrativos naturais’, ou seja, um maior entrelaçamento entre ‘etnoturismo’ e ‘ecoturismo’ de modo que a grandeza cultural e identitária dos Kalunga sejam promovidas e divulgadas aos visitantes, não implicando – logicamente – uma ‘espetacularização’ Kalunga.

Além de ter um papel de fortalecer a cultura e identidade Kalunga, Isabel alerta que o turismo deve ter um papel ‘universalizante’ abrangendo outras áreas das Terras Kalunga de maneira que os benefícios chegam de forma mais igualitária e mais democrática às famílias do Sítio.

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Com relação ao tema ‘democratização de benefícios’, observou-se no tra-balho de campo que algumas famílias e líderes comunitários têm maior participação e controle sobre o fluxo de turistas e os recursos que entram, justamente por terem negócios no Sítio diretamente ligados ao turismo e, ou, por estarem em uma situação que dá mais oportunidades a eles. O ar-ranjo comunitário para o turismo deve ser revisto e mecanismos de distri-buição mais equitativa devem ser criados.

6.1 - Recursos Paisagísticos como Atrativos

Além dos aspectos culturais e gastronômicos, as principais atrações na-turais do Engenho-2 têm sido as populares cachoeiras Santa Bárbara e Capivara. Eles são as mais visitadas. Os turistas podem chegar até à Cachoeira Santa Bárbara caminhando, pedalando, ou, se preferirem, po-dem ir dirigindo até à trilha de entrada, mas a estrada não pavimentada é bem acidentada e estreita. Após se chegar ao início da trilha na mata, per-corre-se adicionalmente mais 1.2 km a pé até finalmente poder chegar ao lugar da cachoeira e desfrutar de suas quedas d´água com banhos ou mer-gulhos em sua ‘piscina natural’ de cor esmeralda. Opcionalmente, pode-se apenas ficar ali para contemplação da natureza e descansar.

A caminhada até a trilha tem um nível médio de dificuldade no acesso. A trilha é rodeada por uma vegetação razoavelmente preservada, com a pre-sença de várias espécies de pássaros, fazendo dali um lugar espetacular para ‘observação de aves’, o birdwatching, em voga em muitos lugares do mundo, e uma modalidade turística em franco crescimento. Como aponta-do por Dias e Figueira (2010, p. 1), os “recursos endógenos na promoção do desenvolvimento local, com especial destaque para a biodiversidade vin-culada ao turismo, constituindo assim uma atividade econômica dinâmica e com grande potencial em termos de sustentabilidade, um segmento al-ternativo de base faunística endêmica”.

A Cachoeira Capivara 1 é também de grande apelo entre os visitantes, e se encontra mais próxima do núcleo comunitário Kalunga, distante uns 800 metros, mas a trilha de acesso requer mais preparo e condições físicas da-queles que querem conhecê-la e desfrutá-la. Há ladeiras bem íngremes e rochosas.

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A – Trilha Inicial no Cerrado rumo à Cachoeira Santa Bárbara na companhia de um

guia Kalunga.

B – Trilha em meio à mata para se chegarà Cachoeira Santa Bárbara com o

acompanhamento do guia Kalunga.

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Devido ao grau de dificuldade, alguns visitantes portadores de necessidade especial e, ou, pessoas da terceira idade podem preferir nadar e usufruir alguns lagos e poços e a paisagem natural ao longo da trilha, preferivel-mente a ir até à base da Cachoeira Capivara 1 em si. Aos visitantes não é permitido fazer a trilha por conta própria. Eles devem pagar uma taxa comunitária de entrada, e adicionalmente contratar um guia comunitário Kalunga.

Os guias geralmente cobram uma taxa de guiamento por grupo de até 10 pessoas, sendo que grupos maiores são divididos em grupos menores por razões de segurança, controle e eficácia na comunicação interpessoal, por exemplo, para fins de apresentação de elementos paisagísticos, da fauna e flora, do relevo e solo do lugar, etc. (Fotos a, b).

Os guias não-Kalunga de agências e operadoras não são impedidos de entrar com visitantes no Sítio, mas os Kalunga esperam que as taxas co-munitárias sejam pagas e que ao chegarem no local, os guias das agên-cias passem o guiamento para o guias comunitários, algo que algu-mas agências e guias urbanos insistem não respeitar ou simplesmente desprezam.

Quanto às atividades ecoturísticas, o relatório da FGV reforça a importân-cia de se pavimentar as rodovias estratégicas que levam ao território dos Kalunga e aos municípios adjacentes, tais como a GO-239 e, também, re-pavimentar trechos da GO-118.

Além disso, foi observado que há escassez de sinalização e de orientação turísticas, bem como a necessidade de gerenciamento do lixo doméstico, a promoção de iniciativas de reciclagem, a instalação ou melhoria da distri-buição de água potável, e a construção de sistemas de esgoto.

As ações são necessárias como esforço adicional no desenvolvimento de um turismo de alta qualidade, atendendo aos princípios da sustentabi-lidade, e, ao mesmo tempo, propiciar níveis de conforto aos visitantes e melhoria da qualidade de vida dos residentes locais. O desenvolvimento turístico não pode ter como foco apenas o bem-estar do visitante, nem pode igualmente contemplar apenas o lado comercial e o lucro que a ati-vidade possa vir a produzir para o trade turístico.

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A Seção a seguir tem a missão de revelar o que os Kalunga pensam sobre si mesmos e sobre o ecoturismo por meio de informações obtidas por ques-tionários, entrevistas e conversas informais com os membros da comuni-dade Engenho 2.

7 - Questionário Ecossocial: o perfil, visões, e

percepções da Comunidade Kalunga sobre si

mesma, suas terras, e sobre o (eco)turismo.

O questionário ecossocial foi respondido por 20 indivíduos; pessoas di-retamente envolvidas e afetadas pela atividade turística no Engenho-2. Quatorze entrevistados eram do sexo masculino e seis do sexo femini-no, todos com idades variadas, entre jovens, adultos, e pessoas mais se-nis, na casa dos 60 anos ou mais. Do total geral, dois residentes atua-vam também pelo Centro de Assistência ao Turista - CAT, da cidade de Cavalcante.

O questionário teve como objetivo verificar o tipo de impacto que o (eco)turismo tem provocado na comunidade. O questionário também serviu para se traçar o perfil dos indivíduos Kalunga que trabalham com o turis-mo. As respostas ajudaram ainda a identificar elementos-chave do ‘pensar’ Kalunga sobre si mesmos como grupo, bem como suas percepções sobre território, a paisagem, e visitantes.

As principais questões foram elaboradas para tentar se identificar evidên-cias de uma crescente consciência ambiental, construção de autoestima, e a percepção deles como grupos culturalmente e racialmente distintos, a autovalorização cultural, e evidências de formação de um capital humano por meio da capacitação.

Os questionários foram distribuídos durante trabalho de campo para co-leta de dados durante período de final de semana. Os respondentes fo-ram convidados aleatoriamente a participar, dispensando aqueles que estavam desenvolvendo alguma atividade laboral ou cuidando dos filhos pequenos. As lideranças Kalunga igualmente responderam aos ques-tionários, mas também participaram de entrevistas semiestruturadas individuais.

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O povo Kalunga se mostrou muito cooperativo com o questionário; uma participação ativa no fornecimento de informações e detalhes que pudes-sem a ajudar a reunir dados sobre o perfil comunitário e do turismo,bem como que pudessem desfazer ambiguidades na compreensão do contexto deles, etc.

Alguns deles precisaram de assistência na leitura do questionário e para escrever suas respostas devido ao seu baixo nível de escolaridade. A equi-pe de pesquisa ajudou-os, lendo as perguntas, muitas vezes refazendo-as com outras palavras de uso mais popular; alguns alunos da comunidade para anotar as respostas dos participantes no questionário para os que não sabiam escrever. Foram tomadas precauções para se evitar a influência e interferência de terceiros no teor das respostas, primando-se por opiniões autênticas de fonte individual única.

Quase todos os entrevistados trabalham ou trabalharam como guias de tu-rismo comunitário e, ou, tiveram alguma participação mais direta com a atividade turística. Para cada pergunta, comentários, e interpretações são fornecidos de forma dissertativa e, ou, para esclarecimentos pontuais; as questões foram elaboradas buscando-se cruzar uma ou mais fontes de in-formação, por exemplo, o questionário e a entrevista; bem como os fa-tos relatados e observados durante o trabalho de campo, com pesquisa de orientação metodológica quali-quantitativa, caracterizada pelo cruza-mento de informações por triangulação.

Q1 - Idade por Grupo: Percentual

Faixa Etária 16 – 20 21-30 31-40 41-50 41-60 60 ou mais

Guias Kalunga

15% 55% 10% 5% 15% –––

Q2 - Situação civil

Solteiro Casado Separado Viúvo(a) Outro Status

40% 50% - - 10%

Q3 -Númerodefilhos

Filhos Nenhum 1 2 3 4 6 10+

( % ) 20% 20% 10% 10% 15% 10% 15%

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Q4 - Formação Educacional

LevelNunca foi à Escola

Escola Primária

Escola Secundária

Ensino Médio

Superior Incompleto

Superior Completo

( % ) 5% 40% 30% 10% 5% 5%

Q5 - Atividades Laborais ou Produtivas Desenvolvidas

TipoGuia Turístico

Membro da Associação Kalunga

Lavoura/Plantio Hortaliças

EstudanteVendedor Local

Empregado do Governo Local

( % ) 100% 10% 60% 10% 10% 10%

Q6 - Faixa Salarial (por família)

R$ (Mensal)

1 (um) Salário Mínimo.R$ 724,00 (aprox. US$ 309)

Recebe metade ou menos da metade do Salário Mínimo.< R$ 362,00 (< US$ 154,00)

Entre R$ 724 - 1448(US$ 309 - 618)

Entre R$ 1448 - 2172(US$ 618 - 924)

Acima de + R$ 2.172(+ US$ 924)

( % ) 80% 15% ––– ––– 5%

Q7 - Fonte de renda e seu percentual de contribuição para a renda familiar (não incluso a taxa de Guiamento recebida de visitantes).

Tip

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Res

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na

Com

unid

ade

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rego

púb

lico

Ap

osen

tad

oria

( %) 70% 20% 10% 45% 60% 5% 5% 5% 5%

Q8 - Geração de Renda Oriunda do (Eco)Turismo

Sua renda vem toda do turismo?

Sim Não Respostas em Branco

––– 100% –––

Q9 - Quanto em percentual os recursos obtidos com o Turismo contribuem para a renda familiar?

Muito Poucoaté - 20%

Pouco21% - 30%

Razoavelmente31% - 40%

Consideravelmente41% - 60%

Bastante+60%

Respostas em Branco

45% 25% 20% 5% ------- 5%

Q10 - Qual é sua opinião sobre ter turismo no seu lugar de moradia, aqui no Sítio Kalunga, e o que você acha da presença e permanência de pessoas de fora no Sítio?

Nível de Aceitação Excelente Muito Bom Bom Indiferente

( % ) 30% 30% 25% 15%

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

Q11 - Qual era sua opinião sobre a implementação de Turismo no Sítio quando era ainda uma proposta?

Opinião dos Guias Kalunga*Alguns respondentes marcaram mais de uma alternativa.

Porcentagem

a) Completamente aprovou o turismo 40%

b)Eu não concordei com o turismo no Sítio Kalunga 5%

c)Eu não queria turismo no Sítio, pois eu achava que isso poderia causar conflitos entre os residentes daqui.

15%

d) Eu tinha dúvidas sobre as vantagens reais e concretas do turismo para a comunidade

35%

e) Eu tinha dúvidas sobre as vantagens que o turismo poderia proporcionar, mas mesmo assim eu apoiei para ver os resultados.

10%

f) Resposta em branco. 5%

Q12 - O que você acha de visitantes virem para conhecer e visitar a comunidade e desfrutar as cachoeiras, das paisagens?

Respostas

Os visitantes são muito bem-aceitos por toda a comunidade 60%

Somente as pessoas e famílias que se beneficiam diretamente do turismo apoiam a vinda dos visitantes sem nenhuma contrariedade.

20%

Apenas metade da comunidade apoia a vinda de visitantes. 20%

Tem aumentado em meio à comunidade a rejeição ao turismo e á vinda de visitantes ao Sítio Kalunga

–––

Respostas em branco –––

Q13 - Você acredita que a sua vida e de seus familiars melhorou com o Turismo na comunidade?

Sim Não Eu não sei dizer se melhorou ou não Em branco

75% 5% 10 % 10%

Q14 - A comunidade toda tem ganhos e vantagens com o turismo?

Sim 65% Eu não sei -------

Não 35% Em branco -------

Q15 -Quemnacomunidadesãoosmaioresbeneficiadoscomoturismo?

Guias 45%

Os donos dos restaurantes 35%

Prefeitura municipal de Cavalcante 5%

Presidente da Associação Kalunga 5%

Líderes comunitários 5%

Em branco 5%

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

Q16 - Quais os tipos de problemas o turismo têm provocado na comunidade?

Alcoolismo 5% Ciúmes entre os residentes 20%

Drogas 5% Em branco 70%

Q17 - Você se sente mais importante por estar envolvido com o turismo e lidando com os visitantes?

Sim 65% Parcialmente -----

Não 5% Em branco 30%

Q18 - Você acredita que o turismo tem contribuído para melhorar a imagem da comunidade e a autoestima em geral dos residentes?

Sim 60%

Não 15%

Não sei responder isso com exatidão 15%

Em branco 10%

Q19 - Você acredita que o turismo dá visibilidade à sua cultura e tradição, contribuindo para dar destaque e agregar valor à cultura afrodescendente?

Sim 80%

Não –––

Não sei responder com exatidão 20%

Q20 - Considerando-se os cursos e treinamentos que você frequentou para capacitação em turismo, o que você achou deles? (Os respondentes foram permitidos marcar mais de uma alternativa).

-Eles foram excelentes para mim como ser humano 60%

-Eles foram de pouca utilidade para mim. –––

-Eu não aprendi muito sobre o que foi dito nos cursos e treinamentos, pois não fui capaz de entender o conteúdo e as palestras, aulas. 5%

-Os cursos me fizeram sentir mais útil, e mais conhecedor acerca de coisas do turismo. 45%

-Eu comecei a frequenter os cursos, mas desisti sem conclui-los. –––-Eu tenho o maior interesse em frequentar novos cursos e treinamentos, sejam eles na área do turismo ou não. 80%

Q21 - Você sente que o turismo praticado na comunidade lhe pertence também?

Sim 75% Eu não sei responder isso. –––

Não 20% Em branco. 5%

Q22 - Quais palavras abaixo definem ou explicam o turismo na comunidadeKalunga?

Capacitação: 85%; Preservação: 75%; Renda: 75%; Conhecimento: 70%; Valorização: 70%; Cultura: 65%; Oportunidade: 65%; Visibilidade: 45%; Justiça: 10%; Exploração: 5% Inovação: 5%

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

No Q22, as percepções locais sobre a importância do (eco)turismo para eles e para a comunidade por meio de palavras-conceito oferecem di-versas leituras a respeito da comunidade Kalunga em relação ao turismo. Capacitação, preservação, e renda são as que tiveram maior incidência de marcações como palavras que explicam o (eco)turismo.

Q23 - Em sua opinião quais são as vantagens e desvantagens do turismo

Vantagens

1-Melhoria da renda; valorização cultural; associativismo; 2-Conhecimento; aumento da consciência ambiental em nível comunitário; suporte; ajuda; visitantes; 3 Visibilidade; capacidade;

Desvantagens

1- Quebra de regras; exploração sexual; drogas; desavenças/conflitos comunitários; 2- Ameaças de estranhos; poluição, lixo, erosão, destruição; falta de consciência ambiental;3- A recusa em pagar as taxas comunitárias ou a desconsideração com relação a elas, comportamento desrespeitoso, arrogante, ou ruim do visitante ruim; graves acidentes/ incidentes com os visitantes;

Q24 - No questionário, os entrevistados mencionaram a infraestrutura turística necessária a ser providenciada/construída e que poderia ajudar a comunidade a ter mais geração de renda e, ou, melhor receber os visitantes

Construir pousada ou chalés na própria comunidade em vez de ter os visitantes hospedados nos hotéis da cidade; criar parques de campismo; melhorar os restaurantes e os serviços de alimentação. Alguns entrevistados mencionaram os empréstimos ou incentivos financeiros governamentais como um meio de se obter recursos para se melhorar a estrutura local para o turismo e para o visitante, bem como para a criação de novos produtos turísticos. Um entrevistado mencionou que o grupo deveria ficar mais unido para fortalecer o turismo Kalunga.

8 - Considerações finais

A pergunta principal formulada no início do Capítulo direcionava a pesqui-sa a buscar evidências sobre como as intervenções governamentais e or-ganizacionais têm afetado as dinâmicas comunitárias dos Kalunga e como isso tem beneficiado a atividade turística em suas terras?

Assim, com base na coleta e análise de dados algumas conclusões podem ser citadas sob o status de ‘lição aprendida’ com este estudo de caso. A in-vestigação revela que as atividades produtivas praticadas e geridas pelos

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INTERVENÇÕES ETNOTERRITORIAIS E SOCIAIS

Kalunga, incluindo o “ecoturismo” ou o “turismo de natureza” em suas ter-ras se assentam em um sistema econômico flagrantemente fraco; portan-to, a entrada de recursos por vias institucionais e via turismo –mesmo que não sejam quantias vultosas - tem um impacto muito positivo para sanear a economia e finanças em nível familiar.

O efeito não é apenas econômico, mas também social e ambiental, pois o turismo Kalunga se apoia na qualidade de seus atrativos, ou seja, na pre-servação e conservação de seus recursos naturais, faunísticos, paisagísti-cos, de lazer, etc. entre eles, as matas, as trilhas, as cachoeiras, etc.

Em relação ao caso Kalunga, a pesquisa revelou que o aumento do fluxo de visitação e uma maior interação entre os residentes da comunidade com os visitantes fez despertar em alguns membros da Comunidade o interesse por capacitação. Por meio das respostas obtidas nos questionários e nas entrevistas, pode-se afirmar que os Kalunga têm experimentado uma re-lativa elevação de sua autoestima e o fortalecimento da noção identitária como ‘grupo étnico particular’.

Nas questões Q17 (65%) e P18 (60%) dos entrevistados mencionam clara-mente a sua elevada autoestima e maior importância individual e da cultura por causa do turismo e dos visitantes. Na pergunta Q22, as palavras-cha-ve como “valorização” (70%), “cultura” (65%) e “visibilidade” (45%) deno-tam evidências de um autorreconhecimento do grupo de que o turismo teve um impacto positivo na comunidade. Na questão Q14 pode-se obser-var que 65% dos entrevistados concordam com houve benefícios coletivos, enquanto 35% discordam. (Eco) Turismo não é a única atividade a Kalunga tem para a geração de renda; como mostrado na Q9, contribui até 30% do rendimento mensal total de 70% dos entrevistados.

Porque o ecoturismo tornou-se um novo evento ponte moradores e for-talecimento de uma rede local, e trouxe pessoas para trabalhar como uma equipe, e causou mais debate para a tomada de decisão, é possí-vel afirmar que (eco) turismo contribuiu para dar novo cultural e signi-ficados sociais para a Kalunga, e isso pode ser notado ao longo de suas respostas ao questionário. No entanto, não foram observados padrões de nova reconfiguração terra. Até mesmo os moradores não mencioná-lo nas entrevistas. ?

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A única coisa a dizer é que a comunidade quer melhor infra-estrutura tu-rística, como a construção de albergues (mas tradicionalmente construídas com palha e barro), de parques de campismo, melhoria de restaurantes, ea construção de um portão de entrada para o site. Além disso, observou-se que existe um forte sentimento de orgulho entre os locais de pertença ao território Kalunga.

Em termos de formação de capital humano, constatou-se que a prática do (eco)turismo exige aprendizado de um conjunto de conhecimentos, téc-nicas e habilidades, os residentes locais cientes desses fatos (e desafios) mostram-se altamente interessados em frequentar treinamentos e cursos. A demanda e interesse por capacitação para atuar no turismopor parte da comunidade é extremamente alta.

As questões Q20 e Q22 do questionário revelam esse interesse do grupo. Por exemplo, 85% desejam obter capacitação; 75% querem mais conheci-mentos, e 65% almejam mais oportunidades. O percentual mostra o fator de impacto da capacitação no (eco)turismo para os moradores. Existe um consciente coletivo de que é necessário preservar seus recursos naturais e paisagísticos como garantia de sobrevivência da própria comunidade e da atividade turística. Por exemplo, na questão Q22, 75% dos entrevis-tados mencionaram a”preservação” como palavra diretamente ligado ao “turismo”.

Com base nos dados coletados na comunidade Engenho II, é possível afir-mar que o ecoturismo ou turismo de natureza de base comunitária tem um papel social. Pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida para os moradores, mas, para que isso aconteça, a participação da comunidade é necessária para sua implementação e gestão. Os moradores precisam de autonomia na tomada de decisões e aportes de recursos públicos para re-solver os problemas.

Ressalta-se que o (eco)turismo terá um impacto positivo maior na comuni-dade maior se for praticado em conjunto com programas sociais, capacita-ção constante, e projetos de formação de um contingente com consciência ambiental.

O (eco)turismo Kalunga é mais um caso que confirma o que outros estu-dos de caso já revelaram: o relevante papel social, cultural, ambiental e

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econômico que o (eco)turismo tem para as comunidades localizadas em áreas reconhecidamente frágeis, especialmente aquelas em áreas remotas de difícil acesso e sem os meios de criar ou ampliar sua cadeia produtiva.

Igualmente importante para o fortalecimento das comunidades quilom-bolas e de suas atividades produtivas, incluindo as práticas (eco)turísticas, são a continuação dos programas governamentais com ações diversas em benefícios dessa minoria étnica, tais como os exemplificados no PRONAF e na Rede TRAF.

São programas que podem contribuir para a formação de um contingente humana bem mais qualificado, bem como contribuir para a criação e ex-pansão de uma cadeia produtiva e para o surgimento de arranjos produ-tivos comunitários, sejam cooperativas sejam associações, levando essas comunidades a níveis de interlocução com diferentes atores de desenvol-vimento, propiciando a formação de uma economia solidária. Um processo que se constitui e sustenta pelo ‘capital humano’ e por um ‘desenvolvimen-to local endógeno’ dando materialidade a um modelo de etnodesenvolvi-mento em que o (eco)turismo tem um papel fundamental.

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS:Kalungas da Chapada dos Veadeiros

Iara Lucia Gomes BrasileiroLuiz Carlos Spiller Pena

1 - Introdução

O grande potencial de Alto Paraíso é cachoeira e turismo de aventura.

Nosso “arroz com feijão” é realmente esse roteiro que inclui só

visita à cachoeira. Eventualmente a gente tem solicitação de roteiro

cultural lá nos Kalungas, visitando a comunidade, principalmente

na época das festas que eles têm lá em agosto e setembro.

Entrevista (*)

A epígrafe utilizada na abertura desse capítulo destaca a fala de um dos ato-res responsáveis pela oferta de atividades turísticas a partir de Alto Paraíso de Goiás, município situado no Estado de Goiás, que integra a Região da Reserva da Biosfera1, Patrimônio Natural e Cultural eleito pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e que possui um importante papel na indução do turismo regional.

1 “CriadaspelaUNESCO-OrganizaçãodasNaçõesUnidasparaaEducação,aCiênciaeaCultura-em1972,

as Reservas da Biosfera, espalhadas hoje por 110 países, têm sua sustentação no programa “O Homem e

aBiosfera”(MAB)daUNESCO,desenvolvidocomoPNUMA-ProgramadasNaçõesUnidasparaoMeio

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cionais de desenvolvimento.” Disponível www.mma.gov.br/biomas/caatinga/reserva-da-biosfera.

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

O discurso surgiu no contexto de uma entrevista na qual o interlocutor foi solicitado a responder se a definição de roteiro integrado como um produ-to turístico ou oferta turística que envolve a visitação a atrativos naturais e culturais em determinada destinação ou região turística caberia à realida-de do que se oferecia a partir daquela cidade ou na região de sua influên-cia (considerados na pesquisa2 os municípios próximos como São João da Aliança, Cavalcante e Teresina de Goiás).

O paradoxo identificado a partir da resposta, e que se reproduz em tantas outras destinações turísticas, coloca o peso da representação social da na-tureza como elemento essencial da motivação e das escolhas dos usuários turistas que, “eventualmente”, consideram em sua prática ou interesse a dimensão da cultura como igualmente importante.

Pode parecer óbvio para alguns que existe aqui uma vocação do destino em questão, marcado pela oferta generosa de inúmeras cachoeiras, porém a interpretação do turismo como um fenômeno capaz de produzir relações mais responsáveis entre os homens e, desses, com os objetos que cultu-ralmente determinam e que influenciam suas vidas tornou-se mais impor-tante com o surgimento da noção de turismo sustentável, ainda na década de 80 do século passado.

Se tal noção concentrou a ideia, entre outras, de que os chamados atores do turismo possuem um papel preponderante no desenvolvimento de um senso ético e moral que vai além de intentos individuais, ou individualiza-dos por grupos de interesses, o jogo das relações que os envolve deveria ser construído para, por meio da, e com a sociedade local, caracterizando um comportamento que favoreça o desenvolvimento sustentável reforça-do pela participação da comunidade do destino.

Em Alto Paraíso o turismo parece estar mais para a típica oferta de sol e praia do que para o propalado ecoturismo que, se tomado “ao pé da letra”, por decorrência, propiciaria resultados desse tipo de desenvolvimento.

2 A pesquisa a que nos referimos diz respeito ao projeto chamado Estratégias para o desenvolvimento do

turismo sustentável na região da Chapada dos Veadeiros, desenvolvido na parceria entre o Centro de

Excelência em Turismo e o Centro UnB Cerrado, ambos da Universidade de Brasília. (*) O texto da epí-

grafe é um extrato de entrevista realizada no âmbito desse Projeto.

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

É necessário, aqui, abrir-se um parêntesis sobre o turismo de sol e praia. Nos dias de hoje, as praias são um dos principais atrativos turísticos, es-pecialmente nos países tropicais. Essa procura surgiu no século XIX prin-cipalmente no Mar Mediterrâneo, quando os banhos de mar eram utili-zados com fins terapêuticos para adultos. Na Europa do século XX aos banhos de mar somou-se o sol como atrativo turístico, agora associado à saúde, ao lazer e ao entretenimento.

De acordo com os Marcos Conceituais da Segmentação do Turismo (BRASIL, s/d) são vários os entendimentos para esse segmento: de sol e mar, litorâneo, de praia, de balneário e costeiro, todos, no entanto, rela-tivos a “atividades turísticas relacionadas à recreação, entretenimento ou descanso em praias, em função da presença conjunta de água, sol e calor” (BRASIL, s/d, p. 43).

Ainda nesse início de leitura o leitor pode estar-se perguntando: o que há em comum entre o ecoturismo na Chapada dos Veadeiros em Goiás e o segmento Sol e Praia? Que relação os autores vêem em locais de geografias tão díspares? Como e onde se enquadram os Kalungas nesse raciocínio?

Chegaremos lá. Antes, no entanto, vamos refletir um pouco mais sobre o que vem a ser o turismo de sol e praia, seus apelos e suas consequências.

De modo geral, a motivação de quem procura esse tipo de turismo é a busca pela combinação de sol, água e calor. De nada adiantará a praia, marítima ou fluvial, sem o calor. A viagem terá sido em vão. O que se pre-tende, como fim primeiro e último, é o descanso, o lazer, a diversão sim-ples dada por esses três elementos.

A única forma de a viagem ser perdida será a não existência do calor ou de eventual impossibilidade de usufruir da água e do sol. Esse turista não está propriamente interessado na cultura local e seus atrativos. E quanto ao ambiente, sua primeira preocupação não é a ecologia ou os impactos que sua visita causará ao meio, mas se, afinal, “vai dar praia”. Da mesma maneira, o aparente descompromisso subentendido na expressão permi-te sua transposição para a realidade da Chapada: afinal “vai dar cachoeira ou não?”.

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

Daí a provocação do título do artigo que intenciona chamar a atenção para o que se acredita ser uma contradição significativa na região objeto de es-tudo, na medida em que as ações para o turismo, aquilo que se pratica, não parece expressar um comportamento responsável para gerar oportunida-des ou barreiras que conduzam, por exemplo, a escolhas responsáveis a partir dos turistas.

Todavia, não pretendemos aqui identificar quem deveria realizar escolhas éticas ou políticas, ou para quem, ou, ainda, para o que as escolhas deveriam ser direcionadas. Nossa reflexão será conduzida para relativizar a prática do ecoturismo associando a importância do patrimônio como elemento essencial ao entendimento e valorização da oferta turística cujo substrato é a cultura, mais especificamente construindo um contraponto a partir do (re) conhecimento e valorização da Comunidade Kalunga de Emas, no mu-nicípio de Teresina de Goiás, região da Chapada dos Veadeiros.

2 - Ecoturismo

No final da década de 1990 o ecoturismo – turismo baseado na natureza – tornou-se praticamente um fenômeno em diversos países do mundo, uma vez que, pensava-se, poderia trazer benefícios sociais e ambientais para os locais onde era praticado.

O interesse no assunto foi inspirado pela publicação Nosso Futuro Comum, Relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1987, quando foi cunhado o conceito de “desenvolvimento sus-tentável”. O documento destacava o dilema em que as nações se encon-travam: como satisfazer as necessidades humanas da atualidade sem des-truir o planeta? Como se manter ou, mesmo, se desenvolver, sem agredir profunda e, muitas vezes quase irreversivelmente, a natureza e seus recursos?

Assim surgiu e tomou corpo a ideia de ecoturismo, alternativa à extração desenfreada de recursos naturais para manter as indústrias de transfor-mação. Além disso, o ecoturismo poderia intervir em outra ameaça do sé-culo: o desaparecimento de heranças culturais de diversas comunidades, em razão da pressão da sociedade industrial. O ecoturismo seria, portan-to, uma ideia certa na hora certa.

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

No entanto, a distribuição dos benefícios advindos do turismo nem sem-pre ocorre facilmente nas comunidades, que sofrem a pressão de lucro de curto prazo, como visto em outras atividades econômicas que se esque-cem dos aspectos sociais, culturais e ecológicos que deveriam, também, ser considerados.

Stephen Wearing e John Neil (2001) trazem oportuna reflexão sobre o eco-turismo em sua obra Ecoturismo – impactos, potencialidades e possibilida-des. Ao questionar se o ecoturismo seria uma prática de marketing imposta pelo mercado, uma nova “mania” ou um modismo, os autores chamam a atenção para o fato de a “natureza” ser tão negligenciada pela socieda-de contemporânea. Nosso tempo é indiferente, quase hostil à natureza, atribuindo-lhe valor apenas como possuidora de recursos que possam ser quantificados ou, quando não, como espetáculo, como atração.

Seríamos, portanto, uma sociedade “suicida” e a natureza nos serviria como fuga, desculpa ou distração. De todo modo, muitas vezes, respondemos a esse chamado de forma descuidada, em número incompatível com a capa-cidade local para suportar o impacto trazido por tantas pessoas ao mesmo tempo. Por outro lado, esse afluxo à natureza talvez também explique uma mudança no modo como a enxergamos e nos relacionamos com ela.

“Ecoturismo” é um termo muito amplo, servindo a diversos interesses. Pode significar atividades turísticas praticadas na natureza, um nicho de merca-do, um tipo de turismo “especial” e por aí afora. Muitas têm sido as formas de turismo que se utilizam do prefixo “eco” como forma de se promover.

Originariamente, “eco” vem do grego oikos, que significa lar ou, mais mo-dernamente, habitat. Assim, as origens do ecoturismo remontam a um tipo de filosofia de vida, a um modo de ver o mundo e viver.

Por outro lado, turismo significa viajar para fora do nosso habitat. Queremos conhecer lugares e pessoas, sentir, cheirar, ver novidades desconhecidas, fora do nosso cotidiano. Diante de tantas e variadas motivações para as viagens, conceituar o ecoturismo seria uma das primeiras ações para en-tender não somente sua prática como seu planejamento.

O Ministério do Turismo do Brasil (MTur) propõe na Cartilha de Segmentação do Turismo o seguinte entendimento do que vem a ser ecoturismo:

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

Ecoturismo é um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sus-

tentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca

a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do

ambiente, promovendo o bem-estar das populações. (BRASIL, 2010a, p. 17)

Para o MTur, portanto, para ser considerada como ecoturismo a ativi-dade deve estar voltada para a conservação ambiental aliada ao envol-vimento das comunidades locais, devendo se desenvolver sob os princí-pios da sustentabilidade e com suporte legal (BRASIL, 2010a).

Antevendo os impactos positivos e negativos advindos do turismo, par-ticularmente aquele praticado em áreas naturais, a Organização Mundial do Turismo (OMT) publicou, em 1998, o Guia de Desenvolvimento do Turismo Sustentável em que oferece “diretrizes técnicas e instrumentos metodológicos” para serem aplicados por dirigentes, autoridades, em-preendedores privados e outros interessados no desenvolvimento do tu-rismo de forma sustentável.

Além dessa publicação poderiam ser trazidas muitas outras que tratam dos cuidados devidos ao ambiente, à cultura, à economia, à política e às instituições quando do planejamento das atividades relativas ao turismo como SWARBROOK, 2000; FUNARI e PINSKY, 2001; BENI, 2007; COSTA, 2009; COOPER, HALL E TRIGO, 2011, para citar apenas alguns autores.

Em todas, é possível observar a necessidade de se conhecer o sistema turístico local. Quais são as relações, os interesses, as parcerias, os ser-viços presentes e ainda não estabelecidos; quais são os recursos naturais e humanos disponíveis; quais as potencialidades, as ameaças e as van-tagens que poderão resultar do turismo caso venha a ser implantado. Ou seja, é preciso planejar muito bem a atividade, para que os benefí-cios que dela resultem sejam maiores que os prejuízos que porventura venham a existir.

3 - Turismo Cultural

O Caderno de Orientações Básicas, publicação do Ministério do Turismo que trata do segmento cultural, traz em sua Introdução, a afirmação de que a “cultura engloba todas as formas de expressão do homem: o sentir,

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o agir, o pensar, o fazer, bem como as relações entre os seres humanos e destes com o meio ambiente” (BRASIL, 2010b, p. 11).

Essa definição, bastante abrangente, permite que se possa afirmar que “o Brasil possui um patrimônio cultural diversificado e plural”.

Sem dúvida, esses aspectos representam oportunidades de estruturação de diversos produtos turísticos, buscando tornar a atividade como uma possibilidade de promoção e preservação da cultura brasileira.

Na visão do MTur, a cultura deve ser compreendida como indutora da de-manda turística, o patrimônio cultural como “fonte” de produtos turísti-cos, a diversidade e a identidade cultural como diferenciação para a oferta e para o posicionamento competitivo de destinos e roteiros.

A literatura sobre o Turismo nos dá conta de que desde seus primórdios, a humanidade se desloca sobre a superfície da Terra, onde quer que fosse o local de habitação das comunidades humanas. Por necessidade, por pra-zer, ou por inúmeros outros motivos, o homem sempre se movimentou. Viajar, portanto, termina sendo uma expressão da cultura humana.

Por ocasião do Renascimento italiano, a aristocracia europeia viajava para conhecer sítios históricos e arqueológicos que inspiravam seus artistas. Desses deslocamentos nasceu o grand tour, quando a viagem de nobres, burgueses e aristocratas podia se estender por vários anos, equivalente nos dias de hoje, ao Turismo Cultural que, de acordo com o MTur:

[...] compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do con-

junto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos

eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imate-

riais da cultura. (BRASIL, 2010b, p. 15)

Ainda de acordo com a publicação oficial do Ministério do Turismo, que considera a posição de inúmeros autores acadêmicos, o Turismo Cultural envolve “experiências positivas do visitante com o patrimônio histórico e cultural” e favorece a percepção do turista, contribuindo para a preserva-ção desse patrimônio. Assim, o turista “sente” o lugar e seus moradores, e interpreta, compreende e valoriza o que visita.

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São considerados bens culturais capazes de atrair turistas: sítios arqueoló-gicos, ruínas, museus, conjuntos urbanísticos e outras edificações, além de eventos capazes de revelar a memória e a identidade das diferentes comu-nidades e que constituem seu patrimônio.

4 - Patrimônio, da materialidade à imaterialidade

A trajetória das políticas de preservação do patrimônio no Brasil come-çou a sofrer transformações importantes, sobretudo a partir da década de 1970 quando se retomaram as discussões e reflexões sobre a valorização das culturas populares. Esse debate representou um passo fundamental na ampliação do conceito de patrimônio para além das concepções mais tra-dicionais associadas ao patrimônio de pedra e cal.

O monumentalismo contido nas definições de patrimônio cultural de então (monumentos; conjuntos; sítios), conforme artigo 1º da Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural da UNESCO consagrou grande importância à dimensão física nas políticas de conservação do pa-trimônio. Até recentemente na história do País, tais políticas valorizavam as expressões baseadas, sobretudo, na materialidade dos bens culturais.

Na contracorrente desse pensamento, outros postulados dessa mesma época, no âmbito da própria UNESCO, segundo Lévi-Strauss (2006, p. 80), incitaram a um desvio da “visão quase exclusivamente monumentalista, que até então havia prevalecido, em favor de um enfoque mais antropoló-gico e global”.

Essa reflexão teria partido da análise do elenco de bens culturais enume-rados na Lista do Patrimônio Mundial, muito limitada do ponto de vista da expressividade de outros “testemunhos materiais das diferentes cul-turas do mundo”. Mas ocorreu, também, no caso do Brasil, a um gru-po de esclarecidos ligados ao governo militar da época e envolvidos por Aloísio Magalhães na criação do Centro Nacional de Referência Cultural; cujo objetivo foi o de traçar um “sistema referencial básico para a des-crição e análise de dinâmica cultural brasileira” (FONSECA, 2006). Foram ações, entre outras, que inauguraram e tornaram mais pública à socieda-de nacional e mundial a ênfase aos aspectosimateriaisdos bens a serem salvaguardados.

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Há vinte anos, a noção de patrimônio cultural estava satisfatoriamente

contida e se resumia a monumentos arquitetônicos. A partir de então, a

história da arte e da arquitetura, a arqueologia, a antropologia e a etnolo-

gia não se limitam mais ao estudo dos monumentos em si mesmos, mas se

voltam preferencialmente para os conjuntos culturais complexos e multi-

dimensionais que traduzem no espaço as organizações sociais, os modos

de vida, as crenças, os saberes e as representações das diferentes culturas

passadas e presentes no mundo inteiro. (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 80).

Segundo Sant’Anna (2006), a revisão do postulado da materialidade sur-giu da crítica de países do terceiro mundo a essa mesma Convenção de 1972 e numa ação contestatória formal de que se realizassem “estudos que apontassem formas jurídicas de proteção às manifestações da cultura tra-dicional e popular como importante aspecto do Patrimônio Cultural da Humanidade” (SANT’ANNA, 2006, p. 15).

Segundo a autora, o resultado dessa solicitação materializou-se no texto Recomendação Sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, ou Recomendação Paris, apresentado por ocasião da 25a Reunião Conferência Geral da UNESCO em 1989.

Representou, também, a retomada de pressupostos contidos no antepro-jeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, elaborado por Mario de Andrade em 1936, cuja sedimentação de uma no-ção mais ampla de patrimônio cultural viria a se consolidar no texto ex-presso nos Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988.

O Decreto 3551/2000 - que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, bem como a metodologia da sua consecução baseada no Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC e a Resolução 001/2006, que instrui qual-quer entidade pública ou privada quanto aos procedimentos na instaura-ção de processo administrativo de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ampliou o foco do Estado sobre as políticas de preservação.

A noção de patrimônio cultural foi ampliada com as contribuições dos tra-balhos de pesquisadores e estudiosos como historiadores, antropólogos, sociólogos, museólogos, arqueólogos, arquitetos, entre outros, na des-crição e análise de sociedades, culturas e instituições, e representa, até a

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atualidade, um papel importante na construção e articulação das narrati-vas nacionais associadas ao patrimônio cultural (GONÇALVES, 2002).

Alguns desses textos e reflexões acerca da importância do Registro do Patrimônio Imaterial trazem duas noções essenciais que se complemen-tam e auxiliam a (re)pensar as culturas populares e tradicionais e as políti-cas relacionadas: a categoria patrimônio e a noção de referência cultural.

A categoria de patrimônio pode ser entendida como uma noção passível de relativização e de comparação uma vez que seu uso se dá por mundos sociais e culturais muitas vezes diversos. Se do ponto de vista do mundo moderno, dito ocidental, os contornos dessa categoria contêm delimita-ções precisas (patrimônio econômico-financeiro, genético, cultural etc.), em outros contextos ela pode assumir fronteiras imprecisas ou resseman-tizadas pelos grupos sociais que a vivenciam. Segundo Gonçalves (2003).

Há uma diferença básica que reside no modo como é representada a opo-sição entre matéria e espírito. Sabemos que a concepção de uma matéria depurada de qualquer espírito é uma construção moderna.

O mesmo acontece com o espírito, independentemente de toda e qual-quer materialidade. Não é a partir dessa dicotomia que pensam os devotos. É necessário levar em conta esse fato, se quisermos entender a concepção nativa de patrimônio.

É possível preservar uma “graça” recebida? É possível tombar os “sete dons

do Espírito Santo”? Certamente que não. Mas é possível, sim, preservar,

por meio de registros e acompanhamento, lugares, objetos, festas, conhe-

cimentos culinários etc. É nessa direção que caminha a noção recente de

“patrimônio intangível”, nos recentes discursos brasileiros acerca do patri-

mônio. (GONÇALVES, 2003, p. 26-27)

Por sua vez, a noção de referência cultural opera com sentido semelhante, ao se atribuir aos sujeitos de contextos culturais diversos o papel de intér-pretes de seu patrimônio cultural (FONSECA, 2006).

Ao se incluir nesse conhecimento a identificação de “referências cultu-rais”, deseja-se que, nessa intervenção, seja levada em conta não apenas a consideração do valor histórico e artístico dos bens. Mesmo que a isso

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se acrescente uma preocupação com a racionalidade econômica e social da intervenção, é possível que os inventários deixem de fora a dimensão simbólica daquele espaço para seus habitantes, necessariamente plural e diversificada; pois, do ponto de vista da cultura, considerar apenas a con-centração, em uma determinada área, de um número significativo de mo-numentos excepcionais, de algum modo a “desvitaliza”, uma vez que se deixa, assim, de apreender em toda a sua complexidade, a dinâmica de ocupação e uso daquele espaço. (FONSECA, 2006, p. 88).

Por isso mesmo, Oliveira (2004, p. 05) destaca que entre as ações de pre-servação do patrimônio cultural alguns princípios ajudam a entender me-lhor a imprescritibilidade dos conhecimentos tradicionais, como organiza-dores de sistemas culturais, e como bens inalienáveis e irrenunciáveis, por isso mesmo devendo constituir foco incessante do Estado. Foco esse cujo tom deve ser dado pelos próprios possuidores do conhecimento.

• os detentores dos conhecimentos tradicionais devem anuir previamente

o acesso aos bens culturais – leia-se conhecimentos tradicionais –

que lhes são próprios, indicando no processo de consentimento, os

elementos que constituirão os planos de salvaguarda de tais bens;

• o estabelecimento de políticas públicas adequadas de modo a

garantir, aos detentores de conhecimentos tradicionais, a utilização

sustentável da diversidade cultural e da biodiversidade.

Essa apreensão do sentido de uma totalidade no trato das referências cul-turais é importante para se (re)pensar a realidade de comunidades tradi-cionais como as dos quilombolas.

A partir das reflexões acima, em bases gerais, sobre as definições de eco-turismo, do turismo de sol e praia, e, sobre o patrimônio cultural material/imaterial, podemos, agora, trazer o objeto da Terra de Pretos, que nos inte-ressa destacar como inspiração para o objetivo do presente trabalho quan-do, ainda na introdução defendemos a ideia de maior completude ao termo e à prática do ecoturismo. Trata-se da proposta de criação do Memorial Casa de Lió, situado no município de Teresina de Goiás/GO3.

3 Idealizado por Fernando Lana, em 2010, o projetofoi concebidoe executado pelo Centro de Excelência

em Turismo da Universidade de Brasília, CET/UnB, subsidiado mediante descentralização de recursos

doMinistériodaCultura.Aarticulaçãoeexecuçãoinicial,emparceriacomacomunidade,ficouacargo

do então professor visitantena UnB, Rogério Dias.

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5 - Os Kalungas, o Cerrado e o Turismo

O título acima poderia ser invertido – O Cerrado, os Kalungas e o Turismo. Aparentemente, para o leitor, o significado seria o mesmo. No entanto, a sutileza da inversão traz para a discussão a importância de se reconhecer e valorizar a cultura Kalunga como um dos principais fatores de conservação e preservação desse bioma, certamente esquecido na maioria das discus-sões sobre as novas fronteiras do agronegócio no país.

Em estudo sobre a “cultura, produção de alimentos e ecologia de saberes” Daniela Ungarelli (2009) traz dados sobre o avanço do desmatamento do Cerrado com a finalidade de promover desenvolvimento por meio do agro-negócio, decisão e iniciativas que têm levado pesquisadores, órgãos, orga-nismos e organizações atentos aos prejuízos causados por essas medidas, a chamarem a atenção para números preocupantes, como a prospectiva de que “campos e savanas não protegidos em Unidades de Conservação estarão totalmente erradicados em cerca de 57 anos e a total extinção da cobertura vegetal em cerca de 86 anos”(UNGARELLI, 2009, p. 12).

Pode-se, portanto, deduzir que uma das grandes ameaças – se não a maior delas – ao Cerrado e à sua sociobiodiversidade tem sido sua ocupação sis-temática sem a devida preocupação com seu uso racional, economicamen-te viável, ambientalmente correto e socialmente justo.

Junto com as áreas naturais vão-se, também, a cultura, as tecnologias e o conhecimento acumulado durante anos e até, séculos, principalmente quando se trata de comunidades tradicionais afetadas pelo processo desse tipo de “desenvolvimento”.

A maior parte do Cerrado do Brasil, mesmo ameaçada, está na região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Na mesma região onde está a maior co-munidade quilombola do Brasil – a dos Kalungas – formada por sessenta e dois povoados, com mais de quatro mil pessoas.

Como não poderia deixar de ser, visto que se trata de uma comunidade re-manescente de quilombolas, uma de suas fortes características é a relação com o cultivo da terra, na produção de seu próprio alimento, seja com a criação de bovinos, suínos e aves, seja no extrativismo de frutos do cerrado, além de frutas e verduras de suas hortas e pomares (UNGARELLI, 2009).

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Ora, se essa região encontra-se sob o forte olhar dos que acreditam que o desmatamento do Cerrado não traz prejuízos severos não somente ao clima regional como geral, mas, também à cultura dos seus habitantes, não fica difícil concluir que os Kalungas estão – ou continuam - sob forte ameaça.

O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga compõe-se de 253 mil hectares que ocupam parte de três municípios da Chapada dos Veadeiros/GO: Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre.

Certamente, há muito mais o que se conhecer na região da Chapada dos Veadeiros.

5.1 - Comunidade de Emas4 e o Memorial Casa de Lió

Certa ocasião, durante a campanha para eleições municipais, o então pre-

feito de Teresina de Goiás e candidato à reeleição, esteve na Fazenda Ema

– sítio Calunga, em campanha.

Chegou na casa de Dona Leó, a cumprimentou, tomou café, pediu seu voto

e os da comunidade, despediu- se e partiu em direção aos outros conglo-

merados familiares da região.

A velha calunga, sorridente e com o bom humor de sempre, me disse:

– Ó meu fio, esses políticos tão procurando por uma pá!

“Uma pá?” – pensei eu. E perguntei a ela:

– Como uma pá, Dona Leó?

Ela respondeu:

– Uma pá pra escorá! - , disse, batendo forte na minha omoplata.

4 O texto dessa sessão está baseado no trabalho de campo executado porAna Lourdes de Aguiar Costa,

quecompôsaequipeCET/UnB,comopartedaelaboraçãodapropostaMuseográficadoMemorial.São

dela os registros das falas da Comunidade Kalunga Emas.

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E continuou: “Ô Lana, esses prefeito pensa qui é prefeito, acha qui é prefei-

to, mas tão longe da ‘prefeição’!”

Demos boas risadas e continuamos a prosa. (“Causo” relatado por Fernando Lana).

Em maio de 2004, durante a realização do I Encontro Afro-Goiano na Cidade de Goiás, o grupo representante da Comunidade Kalunga visitou a Casa de Coralina, que se tornou um memorial à poetisa. Surpreso com o grau de conservação da casa e da memória ali contida, o senhor Simplício, Kalunga morador da Fazenda Ema, perguntou porque não poderia ser feito o mesmo com as casas de matriarcas Kalunga, como Dona Lió, Dona Procópia, Dona Joana, e outras, para que a memória delas fosse preservada e para que hou-vesse uma conservação de suas casas Kalunga. Surgia, ali, o embrião da von-tade explícita de preservar a cultura Kalunga, ressaltando sua importância não apenas para a própria comunidade como para eventuais visitantes.

Líder em sua comunidade na Fazenda Ema, Dona Lió faleceu em 15 de setembro de 2006. Após sua morte, a idéia de um Memorial Kalunga foi lembrada.

Desde então, outro quase membro dessa comunidade, Fernando Lana,Kalunga por opção, tornou-se o primeiro intérprete de seu patrimônio cultural. Seu convívio com as comunidades Kalunga da Chapada é de longa data, o que o levou a ser um conhecedor e defensor fervoroso da sua cultura. Foi dele tam-bém a responsabilidade, junto ao Ministério da Cultura, pelo levantamento de recurso que viabilizaria o Projeto Implantação de um Memorial Kalunga na região da Chapada dos Veadeiros – GO / Reserva da Biosfera de Goyaz.

A proposta do Memorial Kalunga baseou-se na concepção de Museus do Conselho Internacional de Museus (ICOM) que, o define como “uma ins-tituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, co-munica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite” (ICOM, s/d). Tal conceito inclui os jardins botânicos, zoológicos, aquários; bibliotecas pú-blicas, centros de arquivos e documentação; monumentos históricos, sítios arqueológicos; parques nacionais; planetários e centros de ciência abertos ao público, em que se expresse interesse em encontrar a identidade e as referências culturais coletivas.

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Para o ICOM (2009), entre outras responsabilidades definidas no seu Código de Ética, destaca-se a importância dos Museus enquanto “seu pa-pel educativo atraindo e ampliando os públicos egressos da comunidade, localidade ou grupo a que servem. Interagir com a comunidade e promo-ver o seu patrimônio é parte integrante do papel educativo dos museus”.

Seguindo esses pressupostos, a implantação do Memorial Kalunga Casa de Lió serviria à preservação e valorização da cultura do povo Kalunga.

O Projeto foi desenvolvido de forma participativa, em que todas as de-cisões foram tomadas em conjunto entre o Centro de Excelência em Turismo (instituição executora), a Associação Kalunga e os membros da Comunidade de Emas com a realização de inúmeras reuniões para a dis-cussão tanto da base conceitual do Projeto, como de seu planejamento fí-sico e sua implantação.

Ao seu término espera-se que a própria comunidade seja capaz de condu-zir o Memorial, tanto valorizando a memória intangível dos Kalungas e de Dona Lió, quanto ofertando turisticamente um atrativo.

O Memorial Casa de Lió será, assim, mais um ponto de visitação da Chapada dos Veadeiros/GO, uma referência cultural para as novas gerações Kalunga e, principalmente, um reconhecimento da luta pelos direitos dos quilom-bolas e dedicação da Dona Leonilda (Lió) à sua comunidade.

Em seguida apresentamos o Memorial a partir de imagens e falas dos seus intérpretes culturais, ou seja, sua própria comunidade. São ilustrações que mostram etapas do processo de restauração e construção de novas edifi-cações para constituição do Memorial e falas da comunidade que desta-cam a importância de ser Kalunga e da preservação do seu patrimônio.

Os projetos arquitetônico e paisagístico foram concebidos para estruturar o espaço físico do terreno onde está situada a casa onde morou Dona Lió, o principal equipamento onde serão recolhidos os objetos de seu uso pes-soal e outros que foram doados pela comunidade. No seu entorno, que en-volveu também trabalhos de restauração, estão a sua cozinha, o seu depó-sito de ferramentas da roça e a casa de farinha (barracão de ofícios). Foram construídos mantendo o padrão kalunga: um espaço que abrigará o Centro de Recepção de Turistas com loja de artesanato e lanchonete, sanitários

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e a casa do Seu José, um dos filhos de Dona Lió, que ficou o responsável por zelar por essas estruturas e pelo acervo que começou a ser doado pela comunidade.

As coisas do passado a gente não pensava no que tá acontecendo hoje. E

daqui pra frente, esse tempo de hoje vai ser histórico como era antiga-

mente pra hoje. Esse tempo de nós hoje igual a gente tá aqui conversando

quando for contar daqui mais 40 60 anos nem compara. Nem toda coisa do

passado a gente lembra pra falar, mas for contar tiquim por tiquim a gente

nem dá conta dos pensamentos da gente, na hora que a gente ta conver-

sando nem lembra a coisa de mais interesse. (Eugênio Pereira das Virgens).

Quando o projeto se iniciou, a casa em que morou Dona Lió se encontrava muito danificada (Fig. 1 e Fig. 2).

FIG. 1 - Casa de Dona Lió antes da res-tauração (registro frontal)

FIG. 2 - Casa de Dona Lió antes da res-tauração (registro lateral)

Acervo CET Acervo CET

No processo de restauração da moradia foi refeito o telhado e as paredes reparadas com tijolos de adobe secos ao sol, material que serviu para as novas construções como o Centro de Recepção de Turistas, seus sanitá-rios de apoio e a reestruturação da base da casa de farinha e de preparação de biscoitos, igualmente deteriorada (Fig. 3). É importante registrar que todo o trabalho de recuperação foi realizado pelos próprios Kalungas, que foram pagos com recursos do projeto, via Associação, uma vez que foram tomados todos os cuidados legais para a dispensa de licitação, já que não faria qualquer sentido empregar outra mão de obra que não a da comuni-dade e/ou materiais de construção que não fossem idênticos aos originais.

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FIG. 3 - Casa de farinha e de preparação de biscoitos antes da restauração

Acervo CET

A confecção das coberturas das edificações respeitou igualmente os mo-dos tradicionais (Fig. 4), outra forma de manter vivos, ainda que pela mate-rialidade, os espaços que perpetuam a vida de uma das maiores lideranças daquela comunidade.

FIG. 4 - Trama tradicional da cobertura

Acervo CET

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A Figura 5 mostra a casa já restaurada. Existe uma nova construção, situada à direita do Memorial Casa de Dona Lió onde passou a residir um de seus filhos que assumiu o papel de guardião desse patrimônio, Senhor José.

FIG 5 - Casa de Dona Lió após a restauração

Acervo CET

Na Figura 5 nota-se também uma disposição peculiar das edificações, em que normalmente, a cozinha (à esquerda e vazada, sem alvenaria) não está incorporada à estrutura principal, mas, constitui-se em uma estrutura integrada.

A propósito do acervo museográfico, aos utensílios pessoais de dona Lió somaram-se diversas doações dos kalungas que, percebendo o valor desse patrimônio, demonstraram interesse em também colaborar para a preser-vação da história de seu povo.

A gamela eu ganhei do meu sogro, mas meu marido colocou sal pra gado.

Eu apanhei e coloquei pra dentro porque ela rachou. Eu não ia deixar ela

acabar. Quem me deu não dá mais, pois meu sogro é falecido. Usava ela pra

ralar mandioca, fazer bolo – aqueles enroladinhos. Tem muitos anos, acho

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tem mais ou menos uns 30 anos. Se fosse pra outro museu eu não ia doar

não, mas como era pra Leó, eu doei. Ajuda a contar a história do povo por-

que não é tudo que conheceu, hoje esses mais novos não conhece gamela

não, esses novatos não conhece não, pode conhecer nesses lugar de museu

véi. (Maria Soares da Silva).

Por fim, as Figuras 6 e 7 registram o Centro de Recepção de Turistas, que abrigará lanchonete e uma visão do conjunto onde aparecem os sanitários ao centro, ao lado dele a Casa de Ferramentas e ao fundo a Casa de farinha e de preparação de biscoitos reestruturada.

FIG 6 - Centro de Recepção de Turistas FIG 7 - Visão do Conjunto

Acervo CET Acervo CET

O Memorial ainda não foi concluído. Resta finalizar algumas obras e, prin-cipalmente, constituir e organizar a exposição e gestão do acervo. Como dito anteriormente, o projeto foi executado em parceria com os Kalungas, por meio de sua Associação. E muitos são os desafios que a comunidade ainda precisa vencer, tanto no que se refere à conclusão das obras como, principalmente, na capacitação. Contudo, a semente está lançada. Como disse Dona Ester, uma das atuais lideranças:

Nossos antepassados vieram pra cá como escravos, as comunidades foram

criadas, pois eles fugiam da escravidão. Nossa resistência aqui é histórica e

teve muito sofrimento. Tem mais de 200 anos. Nossos antepassados luta-

ram pela terra e estão enterrados aqui. Começamos a conhecer nossa his-

tória a partir dos estudos da Mari Baiocchi, de 1983 pra cá. E desde então

estamos na luta pela questão da terra. (Ester Fernandes de Castro).

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DESAFIOS DO TURISMO NA TERRA DE PRETOS

6 - À guisa de conclusão

A reflexão inicial desse trabalho trouxe as noções de ecoturismo, turismo cultural e patrimônio cultural para realçar que apesar da representação social que se faz da natureza, motivadora das escolhas dos usuários turis-tas que acorrem à Chapada dos Veadeiros, deve-se levar em conta a va-lorização do patrimônio cultural lá existente. Esse entendimento poderá contribuir para a prática do efetivo ecoturismo; cuja intenção é trazer o desenvolvimento baseado no respeito à cultura e no menor impacto que se possa causar.

As opções para um turismo cultural, ou um ecoturismo stricto sensu, en-tretanto, não se dariam pelo “colorido” que as comunidades Kalunga em geral possibilitam ao desfrute dos turistas que, eventualmente, tenham o interesse em conhecê-los.

Ao contrário, é importante garantir aos detentores dos modos de vida da Comunidade Kalunga, que seu patrimônio material e intangível sirva aos propósitos de valorização da sua cultura, dos seus conhecimentos tradi-cionais, estimulando uma espécie de salvaguarda desse patrimônio mesmo sem a imposição de políticas públicas.

O dado empírico, a construção do Memorial Casa de Lió pode ser um ca-minho que possibilite a utilização sustentável da diversidade cultural, uma vez que o processo consentido de acesso à intimidade da Comunidade Kalunga, expressa pela vida de Dona Lió, constituiria uma maneira de sus-tentar a valorização e, consequentemente, a preservação de seus saberes e fazeres, garantindo-lhes o papel de intérpretes de sua própria cultura.

Não se quer dizer que a opção de sol e cachoeira deva ser menos ofer-tada como o feijão com arroz, mas que suas referências culturais como o Memorial de Lió sejam valorizadas para além de uma intervenção que siga uma racionalidade econômica e social, mas que vá além disso, que tenha em vista a dimensão simbólica que possui.

O segredo do Memorial em Emas está também na consciência de que não basta reunir um número significativo de monumentos ali, naquele peque-no espaço, mas que na sua (re)criação caiba uma nova dinâmica de ocupa-ção e uso, o que certamente o convívio com turistas e visitantes de outras

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comunidades ou cidades pode garantir. Revitalizar a cultura Kalunga por meio do Memorial é, por consequência, uma estratégia que pode dar certo.

Kalunga é uma grotinha (menor que um riacho), um pau, uma árvore.

Kalunga em dialeto africano quer dizer povo guerreiro. Guerreiros, os

kalungas de Teresina de Goiás lutam pela posse da terra. Resistir, não ir

embora, ficar aqui por direito. (Ester Fernandes de Castro).

Referências

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ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS E PROPRIEDADE INTELECTUAL:a possibilidade do uso da denominação de origem para o reconhecimento do gado curraleiro Kalunga

Adegmar José FerreiraRodolfo Nunes Franco

1 - Introdução

Este trabalho discute a possibilidade de se estruturar um arranjo produti-vo local da carne e leite de curraleiro1 Kalunga na comunidade quilombola Kalunga dos municípios de Teresina, Cavalcante e Monte Alegre, todos da região norte e nordeste do Estado de Goiás.

1 Curraleiro Kalunga é uma raça bovina que podemos encontrar principalmente nos campos ou pastagens

doEstadodoMaranhão,Pará,TocantinsesobretudonasregiõesnorteenordestedoEstadodeGoiás.

O bovino denominado “curraleiro” é um animal que se diferencia das raças convencionais, conhecidas

como zebuínas, existentes no Brasil. As quatro espécies que fazem parte do gênero zebuíno são o nelore,

o gir, o guzerá e o indubrasil. A principal característica física que diferencia tais raças de outras existentes

no Brasil é a presença de cupim. O curraleiro também é conhecido como “pé-duro”, geralmente são de

pelagem amarela ou castanha, não apresenta cupim e são animais de pequeno e médio porte.

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A ideia é demonstrar que a utilização da propriedade intelectual, notada-mente as indicações geográficas na modalidade denominação de origem, na cadeia produtiva da carne e do leite de curraleiro Kalunga gera desen-volvimento. As indicações geográficas, basicamente a denominação de ori-gem e a indicação de procedência, fazem parte do sistema de propriedade intelectual, juntamente com as marcas e patentes, e tem previsão legal no artigo 176 da Lei n. 9.279/1996.

A problemática deste trabalho é discutir se um instrumento ofertado pelo direito, no caso as denominações de origem, são os meios adequados para se organizar os arranjos produtivos locais e proteger a carne e o leite do curraleiro Kalunga, e com isso promover desenvolvimento.

Os objetivos deste trabalho são analisar o instituto das indicações geo-gráficas, notadamente a denominação de origem, e como pode ser usada como uma estratégia para a consolidação dos arranjos produtivos locais na região do quilombo Kalunga. Além desse fato, analisar como os arranjos produtivos locais podem contribuir para a consolidação de um modelo de desenvolvimento para as comunidades agrícolas.

Em relação ao referencial teórico utiliza-se a noção de desenvolvimento trabalhada por Sen (2000), Flores (2009), para os quais desenvolvimento comporta uma noção mais ampla, integral, plena, que possibilita o acesso a bens básicos e que torna efetivo aquilo que é favorável. Sanchez Rubio (2013). É nesta perspectiva que se usa os direitos de propriedade inte-lectual e os arranjos produtivos locais como estratégias para se alcançar desenvolvimento.

Em relação à metodologia, adota-se um conjunto de procedimentos que permitam a análise de dados de forma a construir um sentido sobre aquilo que se escreve. Basicamente, vale-se da pesquisa de campo e da pesqui-sa bibliográfica. Esta ocorre por meio do estudo da bibliografia referente ao tema deste trabalho, aquela se dá através do estudo de caso do gado curraleiro na comunidade quilombola Kalunga, principalmente a partir da análise do que já foi colhido durante a visita à referida comunidade.

Relativamente à estrutura, será feita uma abordagem conceitual e nor-mativa sobre os arranjos produtivos locais e as indicações geográficas, notadamente sobre a modalidade denominação de origem. Em seguida,

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discute-se a posição e a atuação da secretaria de ciência e tecnologia do Estado de Goiás (SECTEC-GO) sobre a estruturação dos arranjos produti-vos locais. Para justificar a viabilidade dos arranjos produtivos locais como política de desenvolvimento regional, vale-se do estudo de caso do APL do açafrão do município de Mara Rosa-GO.

Analisaremos as experiências estrangeiras sobre os arranjos produtivos lo-cais, a relação entre propriedade intelectual e arranjos produtivos locais e o papel do mercado e do consumidor no reconhecimento dos produtos oriundos destes APLs. Por fim, propõe-se a possibilidade do registro pe-rante o instituto nacional de propriedade industrial (INPI), da denomina-ção de origem “carne e leite de curraleiro Kalunga”.

2 - Abordagem conceitual e normativa

sobre os arranjos produtivos locais

Devemos esclarecer que não há nenhuma construção teórica sobre os ar-ranjos produtivos locais no âmbito do Direito. A ausência de escritos sobre o tema no âmbito jurídico e a ausência de um instrumento legal sobre os arranjos produtivos locais nos obriga a construir uma discussão que torne menos obscuro a noção de arranjos produtivos locais.

Relativamente ao estado da arte sobre os arranjos produtivos locais no Brasil, podemos afirmar que se têm poucos escritos sobre os arranjos pro-dutivos na área do Direito. O que se tem está vinculado basicamente à eco-nomia, à administração e à geografia.

Os arranjos produtivos locais são mecanismos ou instrumentos que favo-recem o desenvolvimento de uma economia de escala local ou regional e por isso tais arranjos têm como característica principal a promoção do de-senvolvimento do meio rural onde se instalam ou se estruturam.

O sentido atribuído por Stefano (2008) é o de que os arranjos produti-vos locais criam uma oportunidade de desenvolvimento que não poderia ser alcançado de forma individual, ou seja, é um mecanismo que gera uma consciência coletiva em busca de uma autonomia para os membros da co-munidade. Na visão de Tárrega (2012)

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O conceito de arranjo produtivo local surge do reconhecimento da neces-

sidade de concertação de agentes econômicos na ação interinstitucional,

como medida de orientação de política pública para o desenvolvimento lo-

cal do setor produtivo. (TARREGA, 2012, p. 109).

Arranjo produtivo local pressupõe cadeia, algo organizado em determi-nado território e que se especializa na produção de determinado bem ou produto que será destinado ao consumo pela comunidade que o produz e ao comércio como forma de gerar renda.

Os arranjos produtivos locais podem ser estruturados em um município ou em um conjunto de municípios, como uma estratégia estatal de de-senvolvimento da região destes municípios e principalmente de seus habitantes.

Podemos afirmar que se trata de um instrumento de desenvolvimento re-gional por meio da organização das atividades econômicas e a possibilida-de de alcançar e conquistar novos mercados, bem como promover desen-volvimento econômico, social e humano e melhorar as condições de vida na zona rural.

Não há no ordenamento jurídico brasileiro lei federalsobre os arranjos produtivos locais. O que se tem sobre esta política de desenvolvimento re-gional são decretos do poder executivo. No caso de Goiás temos o decreto n. 5.990/2004, que instituiu a rede goiana de apoio aos arranjos produti-vos locais. (GOIÁS, 2004).

A ausência de normas sobre os arranjos produtivos locais não é motivo para que não se efetive tal política. A prática e a própria quantidade de APLs existentes no Estado de Goiás demonstram que, embora não pos-sua uma legislação específica, a operacionalização dos arranjos produ-tivos locais tem contribuído para fortalecer e consolidar a economia das comunidades rurais e, consequentemente, contribuem para o desenvol-vimento regional.

Da análise dos casos de arranjos produtivos locais estruturados no Estado de Goiás verificamos que são formas de promover a economia de deter-minado local ou região, principalmente quando esta região é reconhecida como lugar de produção de um bem específico.

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Trata-se de uma perspectiva comercial, na medida em que o desenvol-vimento vem com o reconhecimento da região e da inclusão de deter-minado produto no mercado consumidor. Além disso, a estruturação dos Arranjos Produtivos Locais pressupõe a participação de toda a co-munidade no processo produtivo, em que os sujeitos coletivos das co-munidades marginalizadas são os atores dessa nova perspectiva de desenvolvimento.

Apesar de serem relativamente novos e ainda não terem uma regulamen-tação jurídica específica, os arranjos produtivos locais despontam como uma eficiente ferramenta para a concretização de direitos fundamentais por meio do exercício de uma economia baseada na cooperação e no in-teresse econômico. Trata-se de um tipo de organização das atividades econômicas em que toda a coletividade se beneficia dos resultados dessas atividades, buscando sempre o desenvolvimento regional/local da região onde se instalam.

A estrutura dos arranjos produtivos locais se baseia praticamente na so-lidariedade, no interesse econômico, já que se busca renda, e na coope-ração entre os membros desses arranjos. Adota-se, como organização, a ajuda mútua da comunidade que sobrevive daquela região, ou daquele espaço territorial usado para a satisfação das necessidades da respectiva comunidade.

Os arranjos produtivos locais despontam como uma alternativa à economia voltada para o abastecimento do mercado externo. O agronegócio predo-mina atualmente, principalmente na região Centro-Oeste do Brasil, com a produção em áreas extensas, com predomínio da produção de grãos, ca-na-de-açúcar e carne bovina, dentre outros.

Para Tárrega (2012, p. 79) “[...] o agronegócio gera para a agricultura a de-pendência de produtos químicos (tendo apenas como alternativa os trans-gênicos) e de um mercado agrícola altamente competitivo e dominante, que aniquila agricultores e comunidades tradicionais [...]”.

Vale-se, portanto, da implementação dos arranjos produtivos locais em substituição a essa economia de grande escala, valorizando a cooperação e a solidariedade, em que os benefícios se repartirão de forma igual a todos os membros que compõem e fazem parte desses arranjos.

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3 - As indicações geográficas

Como já dito, as indicações geográficas se dividem em indicações de pro-cedência e denominação de origem, cuja previsão legal está compreendida nos artigos 176 ao 182 da Lei n. 9.279/90.

No âmbito agrícola, são principalmente as indicações geográficas que podem consolidar os produtos no mercado por um preço diferencia-do. Relativamente à denominação de origem, modalidade das indica-ções geográficas, pode-se afirmar que possui uma relação mais estrei-ta com a terra e com o meio geográfico, ou seja, visa destacar e dar credibilidade a um produto através das condições naturais intrínsecas ao mesmo.

3.1 - A denominação de origem

Normativamente, a denominação de origem está regulamentada na Lei Federal n. 9.279/1996. Em relação ao registro desta modalidade perante o instituto nacional de propriedade intelectual (INPI), deve ser observa-do o que prescreve a citada Lei e a resolução n. 075/2000, do próprio INPI.

Na visão de Tárrega (2012), a indicação geográfica, tanto a indicação de procedência quanto a denominação de origem, tem sido utilizada como estratégia de desenvolvimento, “[...] principalmente nos arranjos produ-tivos agrícolas, pois, além da proteção que confere aos produtos, cria ou revela uma identidade cultural latente na coletividade [...]”. (TÁRREGA, 2012, p. 113).

A vantagem do uso da denominação de origem nos APLs é para inserir no mercado um produto diferenciado, e com isso gerar renda e desen-volvimento. Trata-se de uma estratégia de desenvolvimento que permite consolidar um modelo de exploração econômica para as comunidades rurais, notadamente a comunidade quilombola Kalunga, através do re-gistro da carne e do leite do bovino curraleiro.

Esta modalidade de propriedade intelectual permite que determinado produto seja lançado no mercado e que se torne reconhecido pelas ca-racterísticas do território onde foi produzido.

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4 - A atuação da secretaria de ciência

e tecnologia do Estado de Goiás

Sabemos que os arranjos produtivos locais, enquanto política pública de desenvolvimento territorial-rural, não tem um instrumento jurídico pró-prio. Por esse motivo, as secretarias dos Estados articulam a viabilidade e a estruturação de tais arranjos. No Estado de Goiás o órgão encarrega-do de articular as atividades referentes aos arranjos produtivos locais é a Secretaria de Ciência e Tecnologia.

Da análise dos dados da Secretaria de Ciência e Tecnologia, podemos afir-mar que no Estado de Goiás existem, ao todo, 59 (cinquenta e nove) arran-jos produtivos locais. Desses 59 arranjos produtivos locais apenas 12 são priorizados pelo GTP – APL e possuem plano de desenvolvimento prelimi-nar. Desses 12 arranjos produtivos locais podemos destacar o APL de pro-dutos lácteos da estrada de ferro e da microrregião de São Luis dos Montes Belos, carne da microrregião de Jussara e mandioca e derivados do APL de Iporá, e o APL do açafrão de Mara Rosa. (GOIÁS, 2014).

Segundo dados da Secretaria de Estado de Gestão e Planejamento do Estado de Goiás, nessa unidade federativa existem 11 (onze) arranjos pro-dutivos estruturados e alguns em estruturação. Entre os em estruturação, destacam-se os APLs de Produtos do Cerrado da Região do Vale do Paranã e da cachaça também da Região do Vale do Paranã. (GOIÁS, 2014).

Entretanto, em nenhum dos APLs, tanto os estruturados quanto os em es-truturação, estão contemplados os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre; os quais mereceriam destaque por abrigar o maior território quilombola do país, relativo à comunidade quilombola kalunga, e também por se localizar na região da chapada dos veadeiros, destino turís-tico conhecido nacionalmente pelas belas cachoeiras, notadamente aque-las localizadas no interior do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.

A possibilidade de exploração do turismo torna-se um complemento à im-plantação do arranjo produtivo local da “Carne de Curraleiro Kalunga”, pois a presença dos turistas na região pode ser fundamental para a construção de um restaurante que oferte tal produto, ajudando, assim, a divulgar este alimento no mercado consumidor por um preço diferenciado.

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4.1 - A estruturação dos arranjos produtivos locais

Na visão de Tárrega (2012), o procedimento de organização dos APLs exi-ge o desenvolvimento de uma série de ações coletivas que culminarão na estruturação de um APL. O foco em determinada localidade, e a sensibili-zação dos atores locais é fundamental para que se alcance um resultado favorável à consolidação de um APL.

A estruturação de um arranjo produtivo local se inicia por iniciativa de uma associação do local ou da região onde há o interesse em se instalar o APL. Os interessados, motivados pelo desejo de desenvolvimento da re-gião onde sobrevivem, vão ou oficiam à Secretaria de Ciência e Tecnologia alegando a necessidade e possibilidade de se estruturar um arranjo pro-dutivo local.

No caso da comunidade quilombola Kalunga, a existência da “Associação do Quilombo Kalunga” e da “Associação Kalunga de Cavalcante”, cada qual com seus respectivos líderes, mostram a possibilidade da estruturação do arranjo produtivo local da “Carne e Leite de Curraleiro Kalunga” a partir da mobilização dos membros da comunidade, motivados pelo desejo de desenvolvimento.

4.2 - Um estudo de caso: o arranjo produtivo local do açafrão de Mara Rosa-GO

Para enfatizar este trabalho, demonstrando que é possível promover de-senvolvimento rural nas comunidades rurais, vale-se do estudo de caso do Arranjo Produtivo Local do Açafrão de Mara Rosa, município goiano locali-zado na região norte do Estado. Criado no ano de 2007, o Arranjo Produtivo Local se caracteriza pela produção e beneficiamento de um produto/ali-mento típico da culinária goiana, de coloração amarela e extremamente saboroso, conhecido como Açafrão. Além do município de Mara Rosa, o arranjo produtivo local do açafrão compreende os municípios de Estrela do Norte, Amaralina, Alto Horizonte e Formosa.

A existência deste Arranjo Produtivo Local, embora não seja em uma co-munidade quilombola, justifica a possibilidade e viabilidade de se estru-turar essa política de desenvolvimento regional na comunidade quilom-bola Kalunga da região norte e nordeste do Estado de Goiás. Trata-se de

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regular, por meio dos Arranjos Produtivos Locais, as atividades econômi-cas voltadas para a produção da carne e do leite de Curraleiro Kalunga.

Como já dito, a possibilidade de transplantar uma perspectiva teórica (exis-tência dos APLs) para uma perspectiva prática (implantação de APLs na co-munidade quilombola Kalunga), subsiste a partir da noção de que isso seja possível e, também, devido à existência e experiência de arranjos produti-vos locais de produtos agrícolas, como o caso do arranjo produtivo local do Açafrão no município de Mara Rosa, região norte e nordeste do Estado de Goiás. Isso conjugado à possibilidade do diálogo entre arranjos produtivos locais e propriedade intelectual.

Embora existam algumas dificuldades presentes no APL do Açafrão de Mara Rosa, a experiência bem sucedida deste Arranjo Produtivo Local e de outros que também aqueceram a economia de determinadas regiões ru-rais, justifica que a estruturação de Arranjos Produtivos Locais pode inovar a economia de dada região, principalmente em relação à inserção de pro-dutos no mercado.

A perspectiva comercial deste tema também justifica a implantação de Arranjos Produtivos Locais, pois considerando que o acesso ao mercado, não apenas do ponto de vista de adquirir produtos, mas também na pos-sibilidade de inserir um produto diferenciado neste mercado geraria uma renda maior e isso viabilizaria melhoria da qualidade de vida. Além disso, é da característica do Arranjo Produtivo Local promover desenvolvimento para uma coletividade de determinado espaço e não apenas de uma única empresa.

A perspectiva teórica dos Arranjos Produtivos Locais se justifica na prática. A intenção é promover desenvolvimento territorial e rural (ABRAMOVAY, 2003) a partir da estruturação de tal política. O caso objeto de análise de-monstra que há possibilidade de consolidar um modelo de desenvolvimen-to a partir da perspectiva da implantação dos Arranjos Produtivos Locais, ou seja, a estruturação de arranjos produtivos locais implica em desenvol-vimento, em alternativa a um modelo consolidado, ou seja, abre novas pos-sibilidades para as comunidades agrícolas, para os sujeitos coletivos.

No contexto do Arranjo Produtivo Local do Açafrão de Mara Rosa, per-cebemos que essa nova forma de organização das atividades econômicas

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gera desenvolvimento, na medida em que lança no mercado um produto conhecido e que serve como alimento, desde que atenda aos padrões de qualidade exigidos pelo mercado consumidor.

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2005), as novas formas ou iniciativas de abordagem das atividades econômicas, mesmo que sejam emancipadoras, baseadas na solidariedade, reciprocidade, generosidade e na cooperação, “não representam novos modos de produção que substi-tuam o modo capitalista. Contudo, isso não lhes retira relevância nem po-tencial emancipador”. (SANTOS, 2005, p. 30-31).

O que se pretende é demonstrar que há um desejo de se buscar melhorias nas condições de vida das comunidades rurais, e isso poderá se consolidar a partir da mercantilização dos produtos oriundos dos arranjos produtivos locais, ainda mais quando amparados pelos direitos de propriedade inte-lectual, preservando seus conhecimentos tradicionais e ao mesmo tempo revelando uma identidade cultural e territorial próprias das comunidades agrícolas, como a comunidade quilombola Kalunga.

5 - As experiências estrangeiras

O incentivo à implantação dos arranjos produtivos locais não é uma carac-terística eminentemente nacional. Algumas regiões de determinados paí-ses, movidos pelo desejo de alavancarem suas economias, propõem alter-nativas que são viáveis à construção de uma economia sólida. É o caso, por exemplo, da Itália, França e Portugal.

Na América do Sul, temos o caso do Chile, Uruguai e Argentina. Em todos os casos, as práticas estão voltadas para o meio rural, como o incentivo ao turismo, ao cultivo sustentável de eucaliptos, aos laticínios e à vinicultura.

Relativamente à prática do cultivo de eucaliptos, ousamos discordar em ser uma prática que beneficie o meio ambiente. Esta atividade surgiu como uma alternativa à preservação das florestas naturais. Diante da necessida-de de preservação do meio ambiente natural, as plantações de eucalipto vêm ocupando espaços que antes eram de floresta nativa, e isso origina o que Harvey (2011, p. 147) denomina de “espaços de segunda natureza”, ou seja, utiliza-se o eucalipto para o reflorestamento de áreas degradadas.

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Tal fato não quer dizer que seja uma prática adequada, pelo contrário, já que HARVEY (2011) argumenta ser uma prática que não traz benefícios e pode causar, também, prejuízos, já que se trata de monocultura. Embora não seja a melhor maneira de reparar os danos ambientais, o cultivo de eu-calipto está se destacando.

Atualmente o uso do eucalipto está se tornando imprescindível para a fa-bricação de carvão e papel. Além disso, temos o aproveitamento da ma-deira de eucalipto, como postes, mourões e tábuas para a construção de currais e para a construção civil, ante a escassez de madeiras nativas e à proibição do corte daquelas que ainda existem, em respeito às normas am-bientais, principalmente a Lei n. 9.605/98.

Essa madeira é tratada, industrializada, ou seja, após o corte recebe um tratamento que impede a ação de insetos, como cupins, que aca-bam prejudicando o seu tempo de duração, e proteção contra a ação da umidade proveniente das chuvas, já que em se tratando de construções rústicas, como cercas e currais, a madeira está sempre submetida ao relento.

No Brasil, já temos uma empresa denominada “Plantar Empreendimentos e Produtos Florestais Ltda” com sede no Estado de Minas Gerais que cui-da do tratamento da madeira de eucalipto, reconhecido no mercado pela denominação AMARU.2

Estas experiências justificam a viabilidade se implantar os arranjos pro-dutivos locais, já que configuram instrumentos de valorização da cul-tura, daquilo que se produz e dos traços que identificam determinada comunidade.

2 O AMARU é uma marca que designa a madeira exclusiva da “Plantar Empreendimentos e Produtos

Florestais Ltda”. Desenvolvida após décadas de pesquisas de melhoramento genético de eucaliptos, as-

seguramaiordurabilidadeeresistência,secomparadacomoutrasmadeirasdereflorestamentodispo-

níveis no mercado. O seu processo de produção é baseado na clonagem de indivíduos rigorosamente

selecionados,quedãoorigemàsflorestasuniformescaracterizadaspelabaixaincidênciaderachadu-

ras, baixa tortuosidade e alta resistência mecânica. Produzido a partir de técnicas avançadas de mane-

joflorestalecomgrandepadrãodequalidade,oAMARUpodeseraplicadoemáreasdiversas,como

construção civil, agronegócios, paisagismo, movelaria e alta decoração. Disponível em: www.plantar.

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6 - A relação entre arranjos produtivos

locais e propriedade intelectual

Propriedade intelectual é um recorte da ciência do direito que protege os inventos e agrega valor a determinados bens, agrícolas por exemplo. Essa proteção gera uma exclusividade em relação à exploração deste produto. A possibilidade de usar a indicação geográfica na modalidade denomina-ção de origem como mecanismo para organização dos arranjos produtivos locais surge como um instrumento de desenvolvimento para as comuni-dades agrícolas tradicionais, como os Kalunga das regiões norte e nor-deste do Estado de Goiás. Além de promover desenvolvimento, os direitos de propriedade intelectual também protegem a comunidade onde se dá a produção do bem.

A propriedade intelectual assume, aqui, mais que uma função de proteger o bem, pois além de proteger, ela vai incluir o produto no mercado por um diferenciado. Relativamente ao gado curraleiro, estudos3 demonstram que esta raça bovina é uma alternativa de desenvolvimento para a comu-nidade quilombola Kalunga, pois são de fácil manejo e se adaptam com facilidade às condições adversas do bioma cerrado; principalmente em relação ao longo período de estiagem que predomina neste bioma entre os meses de maio e outubro.

Embora percam peso no período de estiagem em virtude da pastagem seca, o bovino curraleiro Kalunga ou curraleiro Pé-Duro recupera as condições corporais anteriores logo que se inicia o período chuvoso devido a sua capacidade de conversão alimentar, ou seja, possui uma capacidade de aproveitar com maior facilidade a vegetação nativa da região.

3 Sobre o gado curraleiro Kalunga, Ver: Neiva, Ana Cláudia Gomes Rodrigues. Caracterização socioeco-

nômica da comunidade quilombola Kalunga e proposta de reintrodução do bovino Curraleiro como

alternativa de geração de renda [manuscrito] / Ana Cláudia Gomes Rodrigues Neiva - 2009. 138 f.: il.,

figs,tabs.Orientadora:Profa.Dra.MariaClorindaSoaresFioravanti.Tesededoutorado.Universidade

Federal de Goiás. Escola de Veterinária, 2009. Ver: Romani, Alana Flávia. Investigação soroepidemilógica

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taneiro. [manuscrito], 2012. Orientadora: Profa. Doutora Maria Clorinda Soares Fioravanti. Universidade

Federal de Goiás. Escola de Veterinária e Zootecnia, 2012.

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ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS E PROPRIEDADE INTELECTUAL

Embora existam as pastagens cultiváveis em terrenos mais planos, geralmente é da vegetação nativa que o bovino curraleiro se alimen-ta, proporcionando à carne deste bovino um sabor e maciez diferen-ciados, além do baixo teor de gordura na carne. (FIORAVANTI, NEIVA, 2009).

O que se vislumbra neste contexto é a proteção, pelo direito, dos co-nhecimentos tradicionais. A propriedade intelectual como forma de or-ganizar o arranjo produtivo local da carne do bovino curraleiro Kalunga protege também a forma como se produz esta carne e os conhecimentos tradicionais utilizados no manejo deste animal, principalmente em rela-ção ao uso de tratamentos naturais em caso de doença do bovino. Isso também é um diferencial que pode ser valorizado no mercado, pois a car-ne produzida pelo agronegócio, pelas grandes fazendas, é caracterizada principalmente por altas taxas de vermífugos controladores de vermes que acometem os bovinos que não possuem a resistência que o curraleiro Kalunga possui.

Essa relação entre propriedade intelectual e arranjo produtivo local, consubstanciada na possibilidade no uso da indicação geográfica para geração de renda, produz desenvolvimento econômico coletivo. Além disso, protege a comunidade juntamente com seu produto, gera liber-dade e desenvolvimento amplo, integral, na concepção preconizada por Amartya Sen.

A combinação entre propriedade intelectual e arranjos produtivos locais é uma forma de reconhecer o gado curraleiro Kalunga ou curraleiro Pé-Duro4 como uma estratégia de preservar e reconhecer a comunidade qui-lombola Kalunga.

A junção entre propriedade intelectual e arranjo produtivo local é a possi-bilidade de se promover também uma reconstrução do território, algo que proporcione a todos o bem comum e um desenvolvimento coletivo, que não seja apenas favorável, mas também efetivo.

4 A designação Pé-Duro é mais usual no Estado do Maranhão, Pará e Tocantins. Em Goiás a designação

que se tem é curraleiro Kalunga.

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7 - A proteção dos produtos no mercado

O mercado consumidor está cada vez mais exigente, principalmente em relação à origem dos produtos e aos procedimentos de produção. Relativamente aos produtos agropecuários, o que se vê é o aumento de normas que estabelecem condições de produção até a chegada desta mer-cadoria ao mercado consumidor.

A busca e a preferência por produtos orgânicos, produzidos tradicional-mente e sem a aplicação de agrotóxicos, garantem que a produção de carne e leite seja uma nova oportunidade para a comunidade quilombola Kalunga.

É nesta perspectiva que o uso dos direitos de propriedade intelectual na organização das atividades econômicas das comunidades tradicionais é visto como uma forma de proteger os produtos e ao mesmo tempo pro-teger a comunidade e seu respectivo território. No caso da comunidade quilombola Kalunga das regiões norte e nordeste do Estado de Goiás, a credibilidade e reconhecimento dos produtos viriam a partir do uso da in-dicação geográfica, revelando os saberes tradicionais, os produtos, a cul-tura e as características regionais.

Além de proporcionar desenvolvimento para as comunidades e regiões ru-rais, as indicações geográficas protegem determinado produto de outro que, embora tenha semelhanças, não possui as mesmas características, como o saber tradicional, o modo de produção, a cultura e local de produ-ção. São elementos importantes que dão destaque a determinado produto e isso precisa ser protegido, preservado, e tais características são valoriza-das no mercado pelo fato de serem únicas. As indicações geográficas ates-tam a qualidade e credibilidade do produto no mercado.

Mendes e Antoniazzi (2012) afirmam que as indicações geográficas tem uma ampla aplicação no meio agropecuário e podem ser utilizadas como um meio para o incremento dos bens agrícolas.

No caso da carne e do leite da raça bovina “curraleiro kalunga”, a ideia é distinguir tais produtos pelo local de produção, pelas características geo-gráficas da região e pela forma de criação e manejo dos bovinos. A cria-ção deste bovino se dá basicamente de forma extensiva, criados soltos no

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pasto, na “larga”5, alimentando-se de espécies vegetais nativas que dão à carne e ao leite sabores diferenciados que podem ser usados como um di-ferencial no mercado.

A diferença entre estes animais que são criados soltos e aqueles que são confinados está justamente na forma como se alimentam. Os animais con-finados são alimentados com ração, diferentemente daqueles que são cria-dos soltos e se alimentam de vegetação nativa, como exemplo o capim Jaraguá, nativo da região do bioma cerrado. Os bovinos confinados ganham peso em um curto intervalo de tempo, e os animais criados a pasto deman-dam um maior intervalo de tempo para chegarem ao ponto de abate.

Esse modelo de criação de animais confinados é fruto de uma demanda cada vez maior por alimentos. Além de haver esta demanda, há também o interesse econômico materializado pelo lucro, priorizado em relação à qualidade do produto. É na época de estiagem que há a garantia de forne-cimento de carne em virtude da falta de animais em regime de pasto pron-tos para abate.

As características singulares deste bovino curraleiro Kalunga devem ser protegidas no mercado pelos direitos de propriedade intelectual, dando à comunidade quilombola Kalunga o direito de exclusividade na exploração de uma raça que pode resgatar as tradições rurais, caipiras, da referida comunidade.

Embora a criação deste bovino seja incipiente, com produção voltada para a satisfação das necessidades da própria comunidade, devemos ressaltar que já existem membros da comunidade que comercializam alguns bovinos nos açougues da região, notadamente no município de Cavalcante, Goiás.

Nesta perspectiva, quando se protege o produto está-se protegendo a co-munidade a partir dos instrumentos oferecidos pelo direito. O direito aqui é visto como uma construção que serve como instrumento de transforma-ção social.

5 Ovocábulo“larga”pressupõealgo livre,ouseja,osanimaissãocriadossoltos,sealimentandode

umadiversidadedecapins,algunsartificiais(aquelesoriundosdaspastagenscultiváveis,plantadas

peloshomens),eoutrosnaturais(aquelesquejáexistemnaregiãoequecompõemadiversidadeda

vegetação nativa).

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A comunidade Kalunga ainda não está inserida na economia de mercado em relação à comercialização da carne e do leite do bovino curraleiro, pois como já dito, é uma atividade que está se iniciando, mas que já trouxe mui-tas melhorias para a referida comunidade.

O que se tem é basicamente para a própria satisfação da comunidade, mas com a reprodução dos animais o número aumentará e tornar-se-á uma ati-vidade inserida na economia de mercado, podendo tal produto ser comer-cializado sob os benefícios do uso dos direitos de propriedade intelectual.

O uso dos direitos de propriedade intelectual na cadeia produtiva de produ-tos agrícolas gera credibilidade em âmbito nacional e internacional. Os bens agrícolas tornam-se conhecidos nacional e internacionalmente pela forma como são produzidos, os fatores humanos agregados e a região geográfica de origem. A qualidade dos produtos agrícolas, notadamente aqueles ali-mentícios, é cada vez mais exigida pelos consumidores, que estão dispostos a pagarem um preço diferenciado por um produto de qualidade atestada.

7.1 - O direito do consumidor

Este trabalho, por sua perspectiva comercial, ou seja, a possibilidade de lan-çar no mercado um produto agrícola por um preço diferenciado em virtude do uso dos direitos de propriedade intelectual justifica que façamos uma abordagem sobre o papel do consumidor nesta relação. É de se notar, por-tanto, que o comércio, tanto no âmbito nacional quanto internacional, pode ser um mecanismo hábil para a promoção do desenvolvimento econômico, do crescimento econômico, redução da pobreza, dentre outros, sobretu-do atrelado à concepção de desenvolvimento trabalhada por Amartya Sen (2000). Por esse motivo, é válido ressaltar que há uma relação ou “correla-ção” (BARRAL, 2006, p. 14) entre comércio e desenvolvimento econômico.

Na visão de Altmann (2005), os consumidores demonstram um desejo de consumir um produto que tenha qualidade. Tal qualidade pode ser atesta-da pelo uso dos selos que têm a função de garantir a qualidade de algum produto.

A possibilidade do uso dos direitos de propriedade intelectual, notadamen-te as indicações geográficas, revela que não estará se protegendo apenas a região, mas também a comunidade, o produto, o produtor e o consumidor.

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Em visita à referida comunidade entre os dias 8 (oito) e 11 (onze) de feverei-ro de 2014, juntamente com a equipe de graduandos do curso de geografia e ciências ambientais da universidade federal de Goiás, verificamos que as principais atividades econômicas desta comunidade são as lavouras para subsistência e os serviços de guiagem, de condução de turistas até as ca-choeiras da região. Relativamente às lavouras de milho, arroz, feijão e aque-las diversas espécies cultivadas nos quintais das casas, podemos dizer que são para o sustento próprio, para si mesmos, não cultivam para o mercado.

Em relação ao turismo, podemos dizer que contribui com a maior parte da renda dos membros da comunidade e tal fato se verifica pela própria cons-trução recente da sede do CAT (Centro de Atendimento ao Turista) na co-munidade Kalunga Engenho II. Portanto, são os consumidores, os turistas, a maior e principal fonte de renda dos membros da comunidade quilombola Kalunga. Daí a importância de se discorrer sobre os direitos do consumidor.

No Brasil há um conjunto de normas que regulam a defesa dos direitos dos consumidores. Na constituição federal de 1988 há a previsão da defesa do consumidor, notadamente no artigo 170, inciso V6. Na legislação infracons-titucional temos a Lei Federal n. 8.078 promulgada em 11 (onze) de setembro de 1990 dispondo sobre a proteção do consumidor. Esse conjunto de nor-mas justifica e atesta a necessidade de se proteger os consumidores, devido à efetiva contribuição no desenvolvimento das atividades econômicas.

Relativamente à carne e o leite de curraleiro Kalunga, a percepção do con-sumidor é fundamental para consagrar esse produto no mercado. A busca por alimentos saudáveis e de qualidade está cada vez mais intensa e é a preferência da maioria da população, tanto nacional quanto internacional.

O curraleiro Kalunga, por ser criado de forma rústica e sem o uso de ver-mífugos para controle de vermes, produz uma carne sem resíduos e sem a presença de substâncias que podem ser nocivas ao organismo das pessoas, e isso também pode consagrar este produto no mercado a um preço mais elevado devido à característica orgânica do produto.

6 Título VII – Da Ordem Econômica e Finaceira. Capítulo I – Dos princípios gerais da atividade econômica.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por

fimasseguraratodosexistênciadigna,conformeosditamesdajustiçasocial,observadososseguintes

princípios: inciso V – defesa do consumidor.

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O resgate desta atividade agropecuária na comunidade quilombola Kalunga poderá garantir a produção de um alimento bastante demandado tanto no mercado interno tanto no externo, mesmo que em pequena escala, haja vista que se trata de uma comunidade composta por pequenos agriculto-res que dependem de auxílio técnico e financeiro de outros atores, como instituições financeiras, universidades, dentre outros.

A cadeia de produção destes produtos deve transmitir aos consumidores a confiança de que vão consumir um alimento saudável e esse é o papel dos direitos de propriedade intelectual, transmitir confiança, segurança, ates-tar a qualidade e consagrar e proteger o produto no mercado. Essa é uma maneira de diferenciar a imensa quantidade de produtos que o mercado oferece ao público consumidor.

A questão ecológica também merece destaque nesta discussão. A agri-cultura e pecuária convencionais se utilizam de muitos recursos natu-rais para manutenção das atividades produtivas. A pecuária convencional se baseia principalmente na criação de gado por meio da formação das pastagens, as chamadas pastagens cultiváveis; que vão ocupando o es-paço das áreas verdes, substituindo florestas, áreas de preservação am-biental, áreas de preservação permanente e matas ciliares, que obrigato-riamente deveriam permanecer como forma de manutenção do equilíbrio ambiental.

Isso é o que David Sanches Rubio7 denomina de “visão empresarial da ter-ra, uma forma não adequada de entender a natureza”, produzir apenas para satisfazer a ânsia pelo lucro em detrimento da qualidade do produto e da preservação do meio ambiente. Daí, a necessidade de se tentar construir uma nova forma de produção de alimentos com base em outra forma de entender a relação com a terra e isso deve ser considerado pelos consumi-dores no momento da escolha e aquisição do produto.

Em relação à produção da carne de curraleiro Kalunga, o diferencial seria a forma como são alimentados os bovinos, ou seja, geralmente os criado-res não alteram as áreas verdes naturais para a formação das pastagens

7 Aula ministrada no dia 9 de dezembro de 2013 na sala do mestrado em direito agrário da faculdade de

direito da universidade federal de Goiás.

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cultivadas. As principais culturas que servem como alimento são as pasta-gens naturais, aquelas nativas da região, que não necessitam de ampliação de áreas para o seu plantio.

As pastagens mais conhecidas são o “capim agreste”,o “capim meloso” e o “capim gordura”, além do capim “Jaraguá”. Essa variedade de pastagens é que proporcionam sabor diferenciado à carne, além de exercerem for-te influência na formação de camada de gordura nesse produto. Além de influenciarem na maciez, sabor e teor de gordura da carne, estas espécies nativas proporcionam qualidades singulares ao leite deste bovino.

De acordo com o Senhor Florentino Xavier, durante nossa estadia na co-munidade, as fêmeas que se alimentam do capim agreste, do capim gordu-ra ou do capim meloso produzem leite mais saboroso, com maior teor de gordura e de coloração amarelada. E quando se alimentam das pastagens cultivadas, geralmente o capim brachiaria, o leite não possui o mesmo ní-vel palatável, coloração e teor de gordura proporcionados pelos outros ti-pos de capim.

Durante a visita que fizemos à comunidade quilombola Kalunga entre os dias oito e onze de fevereiro de 2014, em conversa com um dos líderes e criadores do gado curraleiro Kalunga, Senhor Florentino Xavier, verifi-camos que, além da possibilidade de se produzir carne para o mercado consumidor, há, também, a possibilidade de se aproveitar o couro deste bovino para a fabricação de artefatos como laços, peias, solas, arreatas, ca-brestos, rédeas, dentre outros.

Além disso, o senhor Florentino Xavier nos relatou que o mercado para o gado curraleiro vem se ampliando de forma considerável, não apenas no caso da possibilidade de comercializar a carne, mas também em rela-ção à procura destes animais para domá-los como forma de tração, prin-cipalmente como “Bois de Carro” ou “Bois de Canga”, devido à docilidade, à pelagem e aos chifres em forma de coroa. Os principais interessados nos curraleiros para estas funções que foram citadas são alguns fazendeiros do município de Alto de Paraíso-GO8.

8 Alto Paraíso, município goiano, é uma cidade próxima a Brasília, e é considerada a “porta de entrada”

para a região da chapada dos veadeiros.

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A iniciativa de aproveitamento do couro do gado curraleiro Kalunga partiu da Universidade Federal de Goiás, do ministério da integração nacional, do Instituto Federal goiano e da Embrapa Pantanal (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que foram até à comunidade quilombola Kalunga e ministraram o Curso de Capacitação para a Produção de Artefatos em Couro Ecológico9.

Todas estas atividades são formas de valorização da raça gado curraleiro Kalunga e uma maneira de consolidar o reconhecimento e credibilidade destes artefatos no mercado local, despertando o interesse dos consumi-dores e produzindo assim uma renda extra para a comunidade. Além disso, há a possibilidade de se conhecer a cultura local desta comunidade, que possui uma forma singular de viverem e trabalharem na terra.

Isso significa que as possibilidades da reintrodução desta raça bovina na comunidade quilombola Kalunga são amplas e irão atrair o mercado con-sumidor, não só em relação à carne e o leite, mas também em relação aos artefatos produzidos a partir do couro da raça curraleiro.

O apoio da AKC (Associação Kalunga de Cavalcante) e da AQK (Associação do Quilombo Kalunga) às iniciativas de outras instituições revela a per-meabilidade desta comunidade às melhorias trazidas por tais projetos. Esses fatos demonstram que as iniciativas da universidade e do ministério da integração nacional em relação ao resgate da exploração da raça gado curraleiro na comunidade quilombola Kalunga geram uma aceitação pela comunidade em virtude das melhorias e benefícios provocados pela ati-vidade pecuária. Isso demonstra que o resgate desta atividade desperta um espírito coletivo; um olhar diferente sobre tais atividades, uma ideia de bem comum, de formação de um ideal de crescimento entorno da explo-ração desta atividade como forma de se alcançar o desenvolvimento pleno desta comunidade e da região.

Todos estes fatos justificam o interesse da comunidade pela reintrodu-ção do gado curraleiro na região, não apenas como forma de ocupação

9 O Curso Produção de Artefatos e Couro Ecológico é fruto de uma parceria entre a UFG , o IF Goiano –

Campus Ceres, a Embrapa Pantanal, o Sebrae, Associação Kalunga de Cavalcante e a Associação do

Quilombo Kalunga.

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do território, mas, principalmente, pelo desejo de se aproveitar o que esta raça tem a oferecer e com isso estimular a geração de renda para ser re-vertida em qualidade de vida.

8 - A possibilidade do registro da denominação

de origem “Carne e Leite de Curraleiro Kalunga”

pela comunidade remanescente do Quilombo

Kalunga do município de Cavalcante, Goiás

A possibilidade do registro da denominação de origem da carne e do leite de curraleiro Kalunga merece aprofundamento por tocar diretamente na questão da ligação desta modalidade de indicação geográfica com o terri-tório e com as características que o circundam.

A efetivação do registro pode tornar as pessoas da referida comunidade sujeitos, protagonistas da economia de mercado. Não que eles não sejam protagonistas, isso em termos, pois como já dito, produzem para si mesmos, mas comercializam outros produtos e serviços, como os artefatos em couro ecológico retirado do gado curraleiro e os serviços de guiagem aos turistas.

A ligação direta com a terra e com a natureza os torna homens rurais por na-tureza, que habitam e vivem no campo, que vivem no sertão e possuem vo-cação para a criação de animais, possuem as técnicas de manejo tradicional e possuem um saber diferenciado em relação cultivo de lavouras e a criação de gado. É nesta perspectiva que a criação do gado curraleiro surge como uma atividade que lhes permite a produção para o mercado e para a vida.

O que se pretende com este trabalho é demonstrar que alguns institutos oferecidos pelo Direito são formas de organizar as atividades econômicas de algumas comunidades rurais, como os Kalunga das regiões norte e nor-deste do Estado de Goiás.

Nestas regiões, as condições são favoráveis para se exercer a atividade pecuária, notadamente a criação do gado curraleiro, que pode configurar uma atividade que consolide um modelo favorável à melhoria de vida do povo Kalunga e da própria construção da cidadania.

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O registro de uma indicação geográfica na modalidade denominação de origem possui um rito próprio, dado pela Lei n. 9.279/96, pela resolução n. 75/2000 e pela instrução normativa n. 25 de 21 de agosto de 2013 do Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Esta resolução surgiu da ne-cessidade e importância que o instituto das indicações geográficas tem para o desenvolvimento rural e para a economia, ou seja, um instrumento de desenvolvimento para as comunidades agrícolas.

A escolha da modalidade denominação de origem se dá por uma ra-zão simples, qual seja, é a modalidade de indicação geográfica que tor-na o produto conhecido pelas características geográficas do local de pro-dução. Toda a qualidade agregada ao produto agroalimentar é devida ao território onde foi produzido, e no caso da carne e do leite de curraleiro Kalunga”, estes produtos agroalimentares têm características diferencia-das devido à existência das pastagens naturais da região da Chapada dos Veadeiros.

A existência da possibilidade do registro da denominação de origem “car-ne e leite de gado curraleiro Kalunga”, mesmo dependendo do cumpri-mento de algumas condições, abre uma possibilidade para a exploração de uma atividade econômica rentável para a comunidade quilombola Kalunga, incluindo no mercado um produto singular carregado de particularidades territoriais que podem promover o desenvolvimento da região.

Além disso, embora não discutimos tal possibilidade sob a ótica da uti-lização dos direitos de propriedade intelectual, a produção dos artefa-tos confeccionados a partir do uso do couro do gado curraleiro, também, pode ser inserida no mercado a um preço diferenciado, principalmente se utilizar as indicações geográficas na modalidade indicação de procedên-cia, o que permite que a região do quilombo kalunga se torne conhecida pela produção dos artefatos em couro ecológico.

Conclusão

A principal discussão deste trabalho é tentar demonstrar que a integração de uma região ao mercado consumidor é uma forma de se promover de-senvolvimento, produzir renda e qualidade de vida a partir da utilização dos direitos de propriedade intelectual nos arranjos produtivos locais.

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No decorrer da história a integração de uma região se dá principalmente pela abertura de estradas que dão acesso a áreas antes inacessíveis. As es-tradas exercem um papel fundamental na valorização dos territórios, pois permitem a chegada a determinadas regiões e isso as confere um valor, uma valorização e até mesmo uma especulação em virtude da possibilida-de de acesso, que, antes, era limitado. Esse acesso permite que a produção seja transportada aos centros consumidores, permitindo, assim, maiores possibilidades de exploração.

Na comunidade quilombola Kalunga, embora o acesso seja um pouco di-fícil em algumas regiões, a falta de estradas não configura um problema, como o era no passado. Nesta comunidade, a intenção é promover a inte-gração ao mercado, não por meio de construção de estradas, mas sim pela estruturação de uma cadeia de produção, um arranjo produtivo local, dos produtos derivados da raça gado curraleiro, notadamente a carne e o leite deste bovino. Usa-se a propriedade intelectual como uma via possibilita-dora de mudanças de realidades na vida desta comunidade, valorizando a região e seus respectivos produtos para gerar renda.

A questão do uso dos direitos de propriedade intelectual para a prote-ção de um produto agroalimentar revela-se um excelente mecanismo de proteção ambiental. Enquanto na pecuária convencional há o avanço das pastagens cultivadas em áreas com cobertura nativa, na pecuária para a produção da “Carne de Curraleiro Kalunga” o manejo se dá nas pastagens naturais, aquelas que não foram cultivadas, pois é a presença de uma vege-tação natural que atribui a qualidade ao produto. É nesta perspectiva que esta atividade pode contribuir para a preservação ambiental, notadamente a preservação do bioma cerrado.

No decorrer deste trabalho frisou-se o quão importante são os arranjos produtivos locais, enquanto política de desenvolvimento regional, pois além de promover a organização das atividades econômicas, vão cons-truindo uma solidariedade entre os membros da comunidade, intensifi-cando-se, assim, o desejo pela consolidação de um modelo de desenvolvi-mento que lhes garanta melhorias nas condições de vida.

Nesta perspectiva, surge a possibilidade de se encontrar um caminho que realmente promova desenvolvimento, em sua concepção ampla, para a co-munidade quilombola Kalunga. Consideramos, portanto, que a temática

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deste trabalho, ou seja, a propriedade intelectual atrelada aos arranjos produtivos locais seja um importante instrumento de desenvolvimento para as comunidades rurais.

O diálogo que se apresenta entre um instrumento oferecido pelo direito, no caso os direitos de propriedade intelectual, e uma política de desenvolvi-mento regional, ou seja, os arranjos produtivos locais, revela a possibilidade ampla de construir uma nova realidade para as comunidades quilombolas.

Pensamos, assim, que o direito se torna um instrumento de libertação e ao mesmo tempo de proteção das comunidades e de seus conhecimentos, de construção de uma autonomia, de favorecimento, de consolidação de uma estrutura ou um modelo de exploração que consolide a emancipação de um grupo social minoritário, a comunidade quilombola Kalunga.

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FRANCISCO, Valdivino. Entrevista realizada pelo autor, na comunidade Kalunga

Engenho II no município de Cavalcante-GO, em fevereiro de 2014.

ROSA, Sirilo Santos. Entrevista realizada pelo autor, na comunidade Kalunga

Engenho II no município de Cavalcante-GO, em fevereiro de 2014.

XAVIER, Florentino. Entrevista realizada pelo autor, na comunidade Kalunga

Engenho II no município de Cavalcante-GO, em fevereiro de 2014.

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ENCONTROS E DISTANCIAMENTOS ENTRE A RELIGIOSIDADE KALUNGA E O CATOLICISMO OFICIAL:um olhar para as singularidades do lugar na festa de Nossa Senhora Aparecida1

Luana Nunes Martins de LimaMaria Geralda de Almeida

1 - Introdução

A abordagem cultural que se desenvolveu na Geografia fez ecoar uma nova busca pelo sentido dos lugares. O “lugar” passou a ser entendido com ênfase na experiência de cada um, a sua maneira de perceber as coisas e os seres. O “lugar” retomou as singularidades; agora não apenas na perspectiva de diferenciação de áreas, mas de assimilação de identidades e enraizamentos.

Este artigo lança um olhar para as singularidades de um lugar, tomando como objeto empírico a festa de Nossa Senhora Aparecida das comunida-des Kalunga Diadema e Ribeirão, em Teresina de Goiás, na região Norte Goiano do estado.

1 Artigo produzido a partir da dissertação de mestrado da autora (LIMA, 2014), incluída nas referências

bibliográficas.Partessubstanciaisdotrabalhopréviopodemserretomadasparaexplicarasnovasevi-

dências ou defender novos argumentos.

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ENCONTROS E DISTANCIAMENTOS ENTRE A RELIGIOSIDADE KALUNGA E O CATOLICISMO OFICIAL

Entendemos que a festa é, do ponto de vista da Geografia, uma oportuni-dade essencial para a compreensão da natureza do laço territorial, pois ela permite “perceber os signos espacializados pelos quais os grupos sociais se identificam a contextos geográficos específicos que fortificam sua sin-gularidade (DI MÉO, 2001, p.1).

Para um estudo geográfico de abordagem cultural, esses elementos tra-dicionais, em sua dimensão religiosa atribuem ao espaço sentidos de per-tença e ao grupo que deles compartilham e vivenciam, uma identidade própria.

A problemática que alicerça a temática está na base religiosa que impul-siona a festa. Esta religiosidade aglutina uma visão de mundo particular e relações de poder diversas, sendo tratada aqui numa perspectiva dialética que emerge de encontros e distanciamentos entre o catolicismo popular desenvolvido pelos Kalunga e o catolicismo institucional.

Seguindo uma estrutura, o artigo inicialmente apresenta o vínculo histó-rico do catolicismo popular com a religião católica e os seus desdobra-mentos nas comunidades Kalunga. E lança um olhar para as singularida-des de um lugar, tomando como objeto empírico a festa de Nossa Senhora Aparecida das comunidades Kalunga Diadema e Ribeirão, em Teresina de Goiás, na região Norte Goiano do estado.

2 - Singularidades do catolicismo popular Kalunga:

diálogos e rupturas com a religião oficial

Em trabalho anterior (LIMA e ALMEIDA, 2013) já abordamos o vínculo his-tórico das práticas religiosas dos Kalunga, como comunidades rurais qui-lombolas, à dominação do catolicismo no período colonial. A historiografia não apresenta indícios de sacerdotes que deram assistência aos quilom-bos, possibilitando um intercâmbio entre a hierarquia oficial católica e es-ses movimentos sociais.

Tal fato, associado a questão de que a religiosidade passou a ser trans-mitida de forma laica; foi dando as formas ao catolicismo, tal qual é pra-ticado, hoje, em muitas comunidades rurais, incluindo remanescentes de

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quilombos em todo o país. Em tais formas há o predomínio de folias, ro-marias, festas comunitárias, novenas, votos e promessas, entre outros. Formas de culto muito particular que conjugam os princípios do catolicis-mo com as práticas cotidianas.

Embora a origem da religião, em muitas comunidades quilombolas, esteja vinculada à religiosidade posta na colonização, as diversas manifestações e rituais que surgiram refletem uma visão de mundo dada pelo contexto atual em que vivem. Tais manifestações se inscrevem no chamado catolicismo popular e possuem especificidades que o próprio lugar lhes conferem.

De acordo com Steil (2001); o que caracteriza o catolicismo popular e o torna uma experiência singular, diferenciando-o do catolicismo moderno e clerical são três aspectos básicos: sua origem laica, seu sentido devocio-nal e seu caráter penitencial.

O catolicismo laico deve-se ao fato de seus agentes não pertencerem ao clero oficial, não se apresenta como uma instituição de fronteiras de-marcadas; mas como uma experiência que permeia a vida e a cultura. Observamos nas comunidades Kalunga Diadema e Ribeirão a presença de alguns líderes religiosos, que embora não recebam nenhuma titulação, são tratados e referenciados com extremo respeito.

Estes líderes identificados são as rezadeiras, que por conhecerem as la-dainhas são fundamentais em qualquer novena. E os foliões mais idosos, que são “autorizados”, inclusive pela paróquia que assiste a pequena capela de Diadema, a realizar alguns sacramentos católicos, como o “batismo em casa”, por exemplo.

Um líder religioso local relatou que um dia antes da festa de Nossa Senhora Aparecida faz o batismo das crianças em casa e só depois a criança pode ser batizada na Igreja. Segundo o folião, a necessidade desse batismo ante-rior ao batismo oficial foi orientação do próprio padre, que não discordou, mas apresentou um relato diferente. Na sua leitura:

O batismo em casa é um costume próprio dessas comunidades, dos

Kalunga, propriamente dessa região. Eu não conhecia, eu vim conhecer

o ano passado quando cheguei aqui, que a gente teria o batismo em casa,

né? Mas tem um significado, tem um porquê, existe toda uma devoção em

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torno do batismo, e o batismo em casa se dava em função de no passado

nem sempre o padre... conseguia assistir com mais regularidade a comuni-

dade. Então, pra que a criança não corresse o risco de morrer sem o batis-

mo, tendo em vista que na Igreja Católica qualquer pessoa pode ministrar

o batismo, desde que esteja tentando fazer aquilo que a Igreja faz quando

celebra o sacramento do batismo. Então, os pais, as pessoas mais antigas

atuavam como ministros do sacramento, batizavam em casa, com uma de-

voção, com orações muito próprias, mas conservando a essência do sacra-

mento do batismo, depois traziam para a Igreja, para que o padre pudesse,

como que validar o batismo feito, [...] segundo o rito próprio e adequado

que a Igreja utiliza2.

Observa-se que a dimensão do sentido “laico” não está apenas na sua ori-gem, mas também no seu desenvolvimento, no seu funcionamento com autonomia organizativa, muito embora a Igreja considere necessário “va-lidar” o rito.

O segundo aspecto, o sentido devocional do catolicismo popular, remete à centralidade dos cultos aos santos, baseados no princípio da proteção e lealdade. Por meio das imagens se estabelece o contato com o invisível. Estas imagens não são apenas uma representação que evoca alguém que esteve entre os vivos, mas são personagens que transitam entre os vivos e os mortos e que estão presentes no mundo visível para interceder por eles, por isso, são sagrados.

Assim, “os lugares e as imagens têm no catolicismo tradicional um sentido particular e uma singularidade que ultrapassa qualquer tentativa de racio-nalização ou generalização” (STEIL, 2001, p. 23). Acrescentamos que o sen-tido devocional opera uma inversão interessante do ponto de vista geo-gráfico: enquanto na religião oficial os fiéis se deslocam até a divindade, na religião popular, a divindade, representada simbolicamente pela bandeira do santo, se desloca até os fiéis, e “benze” toda a espacialidade de suas ca-sas (Figura 1). Na folia, diferente da romaria, o deslocamento “ao” sagrado é substituído pelo deslocamento “do” sagrado – só o grupo de foliões se des-loca, enquanto todo o território se sacraliza e orienta uma série de rituais.

2 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 12 de outubro de 2012.

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FIGURA 1 - Giro da Folia de Nossa Senhora Aparecida: no trajeto e no interior da casa de uma devota. Fotos: Luana Nunes Martins de Lima, maio de 2013.

Os Kalunga de Diadema e do Ribeirão adotaram Nossa Senhora Aparecida como padroeira da comunidade e mostram-se convictos de que a devoção à santa é a razão das muitas bênçãos recebidas. A religiosidade expressa na festa demonstra uma estrita dependência pela divindade cultuada para com as questões do cotidiano dos devotos.

A capela, com a imagem da santa, e a festa, em sua homenagem, contri-buem para atrair as bênçãos da divindade à comunidade, como pode ser entendido na fala de um folião:

Pra nóis aqui é uma importância muito grande porque ela é uma padroeira

de todos nós do Brasil, né? E cada capela dessa aqui, que tem uma romaria

dessa é muito importante, é muito feliz, né? Nóis vive muito feliz, porque

toda graça, todo pedido que nóis fizermos, nóis recebe a graça3.

Entretanto, esta santa é apenas uma das várias divindades cultuadas pelos Kalunga. Para Neves (2007), o catolicismo que assumem está mais relacio-nado com as figuras dos santos que a de um Deus único, pois eles, de certa forma, representam o próprio Deus, por isso são adorados.

3 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 9 de outubro de 2012.

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E por fim, o caráter penitencial do catolicismo popular está relacionado ao fato de que pela penitência se realiza um processo de identificação entre o sagrado e o profano. Os fiéis devem associar-se com a paixão e morte de Cristo, e não apenas aderir a um corpo de verdades e aceitar um código moral preestabelecido.

Esse aspecto é identificado na atitude de renúncia dos foliões do supri-mento de suas necessidades a favor da realização da festa, no pagamento de promessas dos fiéis em festas religiosas, conforme os estudos de Maia (1999), nas doações dos mordomos4 da festa, e no próprio deslocamento e instalação em torno do espaço da festa.

A devoção popular se expressa neste aspecto penitencial, mas também pela festa e alegria, pela abundância, fartura e pela liberalidade nos gastos e nos costumes.

As festas em devoção aos santos católicos têm estas características apon-tadas. Certamente elas não são próprias de comunidades Kalunga, e tam-pouco de comunidades quilombolas, de forma geral. Festas religiosas des-ta natureza são comuns e frequentes em diversas comunidades rurais e até no espaço urbano em todo país.

Entretanto, elas se desenvolvem nesses territórios com particularidades eminentemente próprias do contexto local, com todas suas características espaciais, sociais e históricas.

O pároco que assiste as comunidades Kalunga de Teresina de Goiás e de Cavalcante define a religiosidade ali vivenciada da seguinte forma:

Existe dentro da experiência católica, da vivência católica a religiosidade

popular, que é uma religiosidade, que brota da sensibilidade popular, da

sensibilidade das pessoas. E aí ela se desvincula um pouco dos ritos, da for-

ma ordinária da Igreja celebrar (trecho inaudível). É uma vivência da mes-

ma fé, mas vivenciada num contexto de uma realidade mais popular, mais

próxima talvez, porque são eles mesmos que conduzem as celebrações, o

4 Pessoasqueseresponsabilizampordeterminadasfunçõesparaarealizaçãodafesta.NafestadeNossa

Senhora Aparecida em Diadema, os mordomos são determinados por sorteio.

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terço, as ladainhas, a folia. É uma celebração, uma vivência onde o padre

não está muito presente, mas uma celebração com uma devoção católica,

de toda vivência católica5.

O olhar que o padre lança para a religiosidade dos Kalunga mostra que o catolicismo popular permanece ativo, reinventando-se por meio da inte-ração e do diálogo com o catolicismo clerical, reproduzindo-se e atuali-zando-se nas franjas da instituição. Por isso, embora a tensão entre ca-tolicismo popular e catolicismo oficial seja uma constante nos relatos históricos, o que observamos é uma complementaridade entre eles, no caso dos Kalunga, ou, como afirma Bakhtin (1987), entre a religião popular e a religião esclarecida há uma circularidade que permite que uma se ali-mente da outra.

Dessa forma, os elementos de uma podem ser incorporados e ressignifi-cados pela outra, num fluxo contínuo de trocas, como será possível iden-tificar a seguir.

3 - Dimensão simbólica e funcional da religiosidade

Kalunga: o ciclo festivo e seu vínculo com o lugar

Ao tratarmos da cultura sob um olhar geográfico, apontamos para a di-mensão espacial dos modos de vida, dos costumes, dos símbolos e das prá-ticas. Estes elementos “requerem uma organização de territórios ou uma interação com o meio ambiente, levando a uma adaptação deste ou à sua transformação” (BERDOULAY, 2012, p. 101).

Já dissemos anteriormente (LIMA; ALMEIDA, 2013) que os aspectos sim-bólico e funcional no território Kalunga são perspectivas que se imbricam. Enfatizamos também como a religiosidade, que está no campo do simbo-lismo, opera diretamente na vida cotidiana do trabalho e da relação com a terra, segundo a visão de mundo desse povo.

5 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 12 de outubro de 2012.

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Para Bonnemaison (2002, p. 104) “a análise geocultural não pode se des-cuidar desses dois aspectos complementares, nem separá-los. O território é, ao mesmo tempo, “espaço social” e “espaço cultural”, associado tanto à função social quanto à função simbólica”. Por isso, o território é, antes de funcional e zonal, um valor que estabelece uma relação forte, ou mesmo uma relação espiritual com os espaços de vida. Esta dimensão do território está, portanto, sobreposta à dimensão material.

Ao estudar a estrutura de distribuição de terras e a organização da produ-ção em uma aldeia de Madagascar, este autor conclui que, para compreen-der estes elementos, seria preciso ir além do que a materialidade poderia mostrar. Segundo ele:

A terra não era apenas um lugar de produção, mas também o suporte de

uma visão de mundo. A distribuição de terras não era somente social e

jurídica: refletia o tipo de relação que as famílias aldeãs entretinham

com seus ancestrais e a espécie de solidariedade sutil e indissolúvel que

unia seus membros. [...] Compreender o sistema de atribuição de ter-

ras exigia, portanto, que se penetrasse antes numa concepção de mundo

(BONNEMAISON, 2002, p.120-121).

Da mesma forma, nas festas religiosas Kalunga, as comunidades vivenciam o lugar a sua maneira, submersos em uma visão de mundo muito singular. Há uma profunda associação das práticas e crenças do catolicismo popular à produção e ao sustento que vem da terra.

Esta associação é comum em comunidades rurais, mas em se tratando de comunidades tradicionais do Cerrado, possuem ainda especificidades re-lacionadas às estações muito bem definidas de chuva e de seca.

Da mesma forma em que os ciclos do plantio e da colheita são determina-dos pelo ciclo da natureza do Cerrado, as festas também marcam os mo-mentos mais importantes do ano para os Kalunga. Moura et al (2001, p. 52) explicam a sequência destes ciclos da seguinte forma:

Em fins de setembro, depois das primeiras chuvas da primavera, já se po-

dem começar os roçados de mandioca, milho, arroz, abóbora ou feijão. E o

plantio se estende até novembro e dezembro, já em plena força do verão.

De janeiro a março é o período em que as pessoas limpam a roça e cuidam

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dos brotinhos, para que eles não morram e a plantação vingue. Abril e

maio, tempo do outono, são os meses da colheita. Daí se vê porque as fes-

tas celebradas sem exceção em todas as áreas Kalunga são as de janeiro e

junho. Com os Reis, eles festejam o fim do plantio e, com Santo Antônio e

São João, o fim da colheita.

O relato de um folião antigo da comunidade Diadema revela a ligação da devoção aos Santos Reis com o processo do plantio. Ele conta que na sua adolescência uma folia de Reis foi “inventada” em um período fora do ciclo natalino, em virtude da seca, que sempre foi um dos principais problemas dessas comunidades.

Quando eu tinha quatorze, treze anos, doze, treze anos... aqui sempre

acontece, que faltava chuva na época da roça, às veiz cê tava animado com

a planta que é vem boa e tal, nem tava murchando... e a chuva dava uma

afastada. Puseram na cabeça dos mais véio, isso foi em 1972, [...] inventô

uma folia de minino pra chovê. [...] Então, arrumaram essa folia, eu sai can-

tando a guia, um irmão meu [...], foi parece que duas muié, que tava faltan-

do pro terno, nóis era seis ou era oito. E saímo cantando de casa em casa,

de noite e de a pé, folia de Santo Reis. Cêis pode num acreditá, mais o dia

que a folia arrematô foi uma chuva! E mesmo nóis no giro, começô fechá

pra chovê, que tava um perrengue de chuva e tal... Num foi mês de janeiro

não! Fizemo fora da época, que nóis tava precisando de chuva. [...] Eu sei

que tava faltando chuva, cê entendeu?6

A “invenção” desta folia de Santos Reis fora da época demonstra a conver-gência entre a aflição (dado ao não suprimento das necessidades básicas de sobrevivência) e a penitência. O santo é aclamado em caráter de emer-gência, mesmo fora de época. Convém, entretanto, novamente reconhecer que existe nas comunidades rurais uma estruturação das festas vinculadas ao calendário agrícola. Brandão (1978) apontou esta questão fazendo refe-rência à obra de Alba Guimarães.

No ciclo de produção econômica, os santos eram homenageados e feitas

as promessas referentes à produção da lavoura e da criação, nas transições

6 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 7 de maio de 2013.

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que marcavam as passagens de uma atividade para a outra. Durante a co-

lheita de certos produtos, São Pedro, São João e Santo Antônio eram feste-

jados; ao final da colheita realizava-se a festa do Divino (GUIMARÃES apud

BRANDÃO, 1978, p.127)7.

Outras festas também revelam a importância da terra e dos roçados para o povo Kalunga. Nos meses de agosto a outubro acontecem as festas de Nossa Senhora. Em agosto festeja-se a Senhora das Neves e a Senhora D’Abadia, no Vão de Almas. Em setembro, a Senhora do Livramento é celebrada no Vão do Moleque e, em outubro, é a vez da Senhora do Rosário, festejada no Tinguizal, e a Senhora Aparecida, na Diadema e no Ribeirão. “É nesse período, de agosto a outubro, que está começando o plantio dos roçados.

Então, “as pessoas pedem à Mãe de Deus que torne a terra fértil para pro-duzir os alimentos de que precisam” (MOURA et al, 2001, p.53). Já os meses de maio e junho é o período de celebrar a colheita e sua abundância com a grande festa da fartura, que é a do Divino Espírito Santo, nas folias que ocor-rem no Vão de Almas, no Vão do Moleque, na Diadema, no Ribeirão e na Ema.

Por esse motivo, é possível admitir, assim como Bonnemaison (2002, p.116), que:

[...] o território se constrói, ao mesmo tempo, como um sistema e um sím-

bolo. Um sistema porque ele se organiza e se hierarquiza para responder às

necessidades e funções assumidas pelo grupo que o constitui. Um símbo-

lo porque ele se forma em torno de polos geográficos representantes dos

valores políticos e religiosos que comandam sua visão de mundo. Assim,

entre a construção social, a função simbólica e a organização do território

de um grupo humano, existe uma inter-relação constante e uma espécie

de lei de simetria.

Se as festas de santos, de forma geral, exercem simbolicamente este papel de benção e proteção sobre a terra, muito mais a festa do padroeiro eleito para o lugar. Esta tem sua importância na dimensão coletiva e identitária li-gada ao território, definindo uma entidade geográfica em relação às outras.

7 GUIMARÃES, Alba Maria Zaluar. Os homens de Deus. Rio de Janeiro, 1974. Mimeografado. (Não foi pos-

sível ter acesso direto ao texto).

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De acordo com Di Méo (2012, p. 33), “elas privilegiam, com efeito, uma co-munidade localizada de longa data sobre o patronato e sobre a proteção de um santo”. A festa ao padroeiro torna o território sacralizado e legitimado pela apropriação coletiva. A identidade coletiva é fortalecida quando a fes-ta é propriedade do lugar, isso porque a comunidade se afirma ainda mais nesses eventos (Figura 2).

FIGURA 2 - Mulheres ornamentado o espaço da festa. Destaque para a faixa que inclui “Comunidade Kalunga”como delimitador identitário do lugar.

Fotos: LIMA, Luana Nunes Martins, outubro de 2011.

A adoção de Nossa Senhora Aparecida como padroeira da comunidade se realizou dentro de um período no qual já havia ocorrido a consagração da santa como padroeira do Brasil pela Igreja Católica8. Certamente essas ins-titucionalizações, embora ocorram em um plano mais global, influenciam as localidades rurais que recebem a assistência de uma paróquia.

8 Nas festas e no congresso sempre se manifestou o desejo que Nossa Senhora Aparecida fosse decla-

radaoficialmentepadroeiradoBrasil.OepiscopadoapresentouestedesejoaoSantoOfícioeoPapa

Pio XI acolheu favoravelmente os pedidos dos bispos e dos católicos do Brasil. Por decreto de 16 de

julho de 1930 a Virgem Aparecida foi proclamada como padroeira principal de todo o Brasil. A festa li-

túrgicadeNossaSenhoraAparecidaécelebradanoBrasilem 12deoutubro,um feriadonacionaldesde

1980,quandooPapaJoãoPauloII consagrouaBasílica,queéoquartosantuáriomarianomaisvisitado

domundo.Informaçõesdisponíveisem:http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/outubro/dia-de-

nossa-senhora-aparecida.php. Acesso em março de 2013.

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ENCONTROS E DISTANCIAMENTOS ENTRE A RELIGIOSIDADE KALUNGA E O CATOLICISMO OFICIAL

Não foi diferente nas comunidades Kalunga Diadema e Ribeirão, onde a folia de Nossa Senhora Aparecida, como uma prática do catolicismo popu-lar, foi incorporada às celebrações religiosas. Anterior a este período, os festejos em homenagem a Nossa Senhora Aparecida não eram tradição em nenhuma das comunidades Kalunga, que mantinham a devoção a santos como Senhora do Rosário, Santo Antônio, São Sebastião, Senhora D’Abadia, Senhora do Livramento, dentre outros.

A festa de Nossa Senhora Aparecida entre os Kalunga teve início há mais de quatro décadas9, quando uma devota da santa fez uma promessa de que, se sua colheita melhorasse, ela “puxaria” a folia em sua homenagem, isso segundo relatos de moradores da comunidade, confirmados pela devota. Como pagamento da promessa, ela realizou a folia no mês de maio, após a colheita. Segue o seu relato:

[...] Olha, essa aí foi uma prumessa. Era uma prumessa que todo ano eu

mexia com roça, quando dá na marcação da roça coiê, a chuva ó... caia fora,

as pranta perdia tudo. Aí perdia tudo, aí eu fiz a prumessa pra Senhora d’

Asparecida que meu... meu prantio que eu prantasse ganhasse tudo, eu ia

continuar a festa dela todo ano, todo ano eu ia fazer a festa dela.

Ela ainda explica sobre a forma de obter alimentos para a festa:

“[...] tinha o festeiro, tinha o sorteio dela. E tanto que... que a dispesa dela

tudo eu pouco comprava, mais era os otro que dava pra ela, pela santa. E

eu comprava, pra santa eu comprava. Mas ela ganhava muitos trenzinho, e

ia tudo pra ela”10.

Brandão (1978, p. 128) explica que “sob uma matriz tradicional de coletivi-zação de uma religiosidade de afortunados após a colheita de seus cereais, há lugar para usos de eficácia recorrentes a rituais de aflição (o pagamento de promessas)”. Entretanto, se a origem da promessa remete a um contrato com o santo em um momento de aflição e penitência, isso não significa que

9 Ninguém da comunidade soube precisar o ano da primeira folia, nem mesmo a devota pioneira da folia.

Seu companheiro auxiliou na contagem aproximada dos anos.

10 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 11 de outubro de 2012.

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a sua atualização nos rituais da festa vão possuir apenas características penitenciais. Assim ocorreu nas comunidades Diadema e Ribeirão. As doa-ções e o trabalho para a realização da festa atingiram atributos comunitá-rios de solidariedade social.

Assim, são as particularidades do lugar é que dão sentido para a festa. E no caso da Romaria de Nossa Senhora Aparecida, é evidente a compreensão dessa função especial de atender às necessidades locais de sobrevivência dos moradores. Este sentido da festa está enraizado na devoção dos moradores e não caberia compará-lo, por exemplo, aos sentidos atribuídos à grande festa de Nossa Senhora Aparecida realizada em Aparecida do Norte, São Paulo.

Entendemos que “a festa define o lugar. Entramos nos lugares da festa e saí-mos. A festa produz uma fronteira, ao mesmo tempo social, geográfica, cultu-ral e vivida temporalmente. Uma festa alargada na totalidade dos lugares e do tempo, uma festa global não se cobriria mais de sentido” (DI MÉO, 2012, p. 39).

4 - O poder da institucionalidade:

distanciamentos da visão de mundo alheia

Fatos novos causaram a mudança do espaço e da data da festa, fator que suscitou alguns conflitos, afetando algumas territorialidades e criando ou-tras. Identificamos uma efetiva influência de agentes institucionais nos modos de vigência das formas e rituais da festa, situando em que níveis e de que formas operam as mudanças dessas manifestações.

Aqui, destacaremos a transferência na data da festa em maio, por instru-ção da paróquia, para a data oficial da padroeira (12 de outubro) desde 2011, bem como a adoção pelas comunidades de um ritual de peregrinação dos símbolos da Jornada Mundial da Juventude.

Tais fatos demonstraram que, apesar da aceitação do catolicismo popu-lar e das práticas culturais autônomas dos Kalunga, a Igreja Católica ainda exerce controle e afirma seu poder influenciando e interferindo, quando necessário, na estrutura organizacional das práticas religiosas dessas co-munidades. Ela atua no sentido de manter ou ampliar esferas de influência e controle social por meio da festa.

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Os moradores, de forma geral, aceitaram a alteração da data da festa, mas foi algo que criou uma série de problemas para a realização da folia. Com a criação de um espaço próprio para a festa no entorno da capela, grande parte dos moradores passou a se deslocar para lá a partir do terceiro dia da novena, e acampar em barracos construídos para o alojamento das famílias e para o comércio temporário.

Muitos se ocupam com a preparação de alimentos e com a compra de be-bidas e outros produtos para a venda nesses comércios. Ocorre que a folia sempre girou durante os dias que antecedem a festa, pois o ápice das ce-lebrações é o próprio arremate11. Mas, nos dias de giro, os foliões não es-tavam encontrando as pessoas em casa para os rituais, para as refeições e para os pousos.

Alguns foliões apontaram que isso foi um fator que enfraqueceu em grande medida a folia, desintegrando muitos foliões, pois muitos foram perdendo a motivação diante da impossibilidade de realizarem todo o ritual.

Por este motivo, pelos sentidos particulares que a festa carrega, é com-preensível identificarmos em muitos relatos a menção de que a festa/fo-lia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do local, na verdade, é do mês de maio, do período da colheita, e não de outubro – como foi instruído pelo padre.

A folia de Santa Aparecida [...] eles mudaram o jeito dela, porque puseram

na cabeça que dia de Senhora de Aparecida é dia 12 de outubro. Na realida-

de é, né? Mas ela girô aqui a vida inteira, muitos anos, só no mês de maio.

Por quê? Porque mês de maio é uma época que muitas pessoas num atina-

ram ainda de ganhá roça, aí puseram no mês de maio. Aí alguns já tava com

arroz cortado, através de caixinha assim, e outros ainda tava querendo ga-

nhá ainda. Então puseram no mês de maio porque sirviu pra todo mundo.

Mas aí tiveram confronto cum padre, bateu papo, bateu papo, o padre deu

a ideia... deram a ideia e o padre achô melhor mudá, né? Até porque foi ele

a sede de Nossa Senhora de Aparecida em São Paulo, a cidade lá é só dela12.

11 Encerramento da folia e levantamento do mastro com a bandeira do santo homenageado.

12 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 7 de maio de 2013.

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Outro folião confirma a razão da folia/festa se realizar em maio:

[...] Então, é porque essa folia, na verdade, ela foi criada aí assim, através

do [...] crer, né? Acreditá nas coisas. Plantava roça, aí vem o solão, a roça

perdia tudo, aí juntaram com a folia, que ela começô a girá até nas roça,

sabe, Nossa Sinhora Asparecida. Vieram nas roça pra chovê e se ganhasse,

eles resolvia, juntava o dono da roça, [...] cada um dava um pouco de coisa,

fazia a festa de Nossa Sinhora d’Asparecida dia doze de maio, né? [...] Aí foi

fazeno, fazeno, fazeno...13

A festa, portanto, produz a concretização efetivamente sensorial de uma determinada identidade. O fato comemorado, neste caso o sucesso da co-lheita, se inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo, como a junção das expectativas individuais, como um ponto em comum que define a unidade dos participantes. “A festa é, num sentido bem amplo, a produ-ção de memória e, portanto, de identidade no tempo e no espaço social” (GUARINELLO, 2001, p.972).

Interessante é que tanto a folia quanto a festa fazem parte de um contexto maior, que indica as características do “lugar-mundo-vivido” (TUAN, 1983) das comunidades. A vivência, a proximidade entre os moradores, as rela-ções de parentesco distribuídas em todo o território permitem que todos, e em todos os momentos, saibam por onde passa a folia, qual é próxima parte do festejo, quem e o quê doará naquele ano.

Há um comportamento eminentemente próprio do mundo rural nesses vínculos, nesse conhecimento do que se passa ao redor. Associamos al-gumas experiências vividas em campo com aquelas de Brandão (1981, p. 25) em folias de Santos Reis de comunidades rurais de São Paulo e Minas Gerais.

Em cada morada camponesa sabe-se o dia da passagem da bandeira e ela

é esperada no seu dia, sobretudo nos pousos, onde desde a véspera se co-

meça a preparar a comida. Em Caldas, como em outras cidades de Minas e

de Goiás, quando eu me separava da Companhia e precisava reencontrá-la

13 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 8 de maio de 2013.

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no dia seguinte, perguntava a um morador de beira de estrada. Ele sabia

informar a direção e se arriscava a indicar a casa onde ela estaria cantando

por aquelas horas.

Tal vivência não pode ser assimilada por códigos ou conhecimentos siste-matizados, porque refletem um conjunto de práticas que se constitui no saber oral, em um repertório de crenças, rituais e costumes recriados na memória coletiva das comunidades. Nisto consiste o distanciamento que a Igreja Católica opera, por meio da paróquia que assiste a essas comuni-dades, ao não dialogar com determinadas singularidades advindas de uma visão de mundo forjada pelo lugar.

Nesse processo, novas práticas são incorporadas como forma de media-ção institucional, a fim de que seja garantido “o controle sobre o ritual e as crenças envolvidas na relação com o sagrado”, a que Rosendahl (1996, p.72) se reporta como “privatização do sagrado”.

5 - “A folia pode parar, mas a santa precisa

continuar...”: o território simbólico do “Giro da Santa”

O “Giro da Santa”, segundo relatos, foi uma iniciativa do novo padre14, que se reuniu com as pessoas da comunidade e apresentou o projeto. Trata-se de um tipo de procissão que pode se estender ao longo do ano, até que a imagem da santa e a cruz (símbolos adotados) passem por todas as casas das famílias católicas das comunidades.

Os moradores concordaram e organizaram uma lista com uma sequência de 77 casas e as datas designadas para cada uma. A lista, ainda manus-crita, tinha a seguinte frase como cabeçalho: “Santa saiu da Igreja no dia 06/04/13, fazendo uma longa caminhada durante seis meses”.

A inserção de um novo ritual vinculado à festa de Nossa Senhora Aparecida trouxe outros elementos que proveram novas possibilidades de compreen-são do território e das territorialidades nas comunidades.

14 Padre da Diocese de Formosa, que substituiu em 2013 o padre já referenciado e citado neste artigo.

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A proposta é que a Santa e a Cruz girem em todas estas casas, perma-necendo dois dias em cada uma, até retornar para a capela, no dia 12 de outubro, para a festa. No terceiro dia, devem ser levados pelos donos da casa, em uma caminhada, para a casa seguinte. Todos os dias há rezas na casa onde está a imagem e a cruz. Na base do suporte da imagem há um ofertório que guarda as doações dos moradores.

O novo padre confirmou que a iniciativa foi dele e acrescentou que é algo que pretende implantar em todas as comunidades Kalunga que as-siste. Atualmente, iniciou nas comunidades que tem Nossa Senhora Aparecida como padroeira, primeiramente Diadema e Ribeirão, e depois Sucupira.

Ao ser questionado sobre o que o motivou a implantar tal projeto, o padre afirmou que “por Nossa Senhora Aparecida ser a patrona do lo-cal”, conversou com os moradores das comunidades, os quais apoiaram ideia. Ele alegou ter se fundamentado na Jornada Mundial da Juventude (JMJ)15.

Um breve histórico da JMJ, que se tornou mais reconhecida no Brasil com a vinda do Papa Francisco ao Brasil em 2013, será útil para entender melhor a inserção de seu lema e seus ícones na religiosidade das co-munidades Kalunga. De acordo com dados divulgados pela Arquidiocese de Juiz de Fora (2013), a JMJ teve início em 1984, com o encerramento do Jubileu dos jovens em Roma pelo motivo do Ano Santo da Redenção, quando o Papa fez a entrega da Cruz aos jovens, que se tornaria um dos principais símbolos da JMJ, conhecida como “a Cruz da Jornada”. Na ocasião, o Papa ordenou aos jovens que a carregasse por todo o mundo como um símbolo do amor de Cristo pela humanidade, e anunciassem a todos a morte e a ressurreição de Cristo.

Em 1986 houve, oficialmente, a primeira jornada e, em 2003 foi introdu-zido o segundo ícone, além da Cruz: o ícone de Nossa Senhora, para que ela os acompanhasse em sua jornada. Desde 1986 a JMJ ocorre em inter-valos de dois a três anos em celebrações internacionais, e anualmente em celebrações diocesanas, já estando em sua 29ª edição.

15 Entrevista concedida a autora em outubro de 2013.

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ENCONTROS E DISTANCIAMENTOS ENTRE A RELIGIOSIDADE KALUNGA E O CATOLICISMO OFICIAL

No Brasil, esse movimento foi adotado pelas arquidioceses, e os seus sím-bolos fizeram a peregrinação (figura 3) nas várias regiões do país até che-garem ao Rio de Janeiro em 2013, no período da JMJ.

FIGURA 3 - Mapa da peregrinação da JMJ no Brasil.

Fonte: Arquidiocese de Juiz de Fora (2013, p.9).

Ainda de acordo com a Comissão Arquidiocesana da Jornada Mundial da Juventude (2013, p.20), “a experiência da Jornada Mundial da Juventude não pode ficar restrita ao encontro mundial que ocorre a cada três anos e muito menos aos que podem viajar e viver essa experiência em outros países”. De forma que “uma das melhores maneiras de fomentar essa es-piritualidade é trazer essa vivência para as nossas (arqui)dioceses: experi-mentar a diversidade de carismas na unidade da fé em Cristo”.

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Por isso, para o padre, a JMJ trata-se de uma “missão” que não é restri-ta, mas universal, significando que os párocos podem executá-la em suas comunidades, adaptando-a de acordo com as particularidades dos locais. Por esta razão, ele motivou as comunidades a organizarem o Giro da Santa (e da Cruz) da maneira que lhes fosse conveniente, tanto a sequência das casas, quando o tempo de permanência da santa em cada uma, desde que retornasse para a igreja dia 12 de outubro.

É importante retomarmos a referência feita às estratégias religiosas ins-titucionais que ocorrem em um plano global e exercem influências no ca-tolicismo popular de localidades rurais que recebem a assistência de uma paróquia. Ao mesmo tempo, é necessário destacar que a Igreja Católica “re-conhece e controla muitos tipos de territórios”, como bem afirma Rosendahl (1996, p. 59). Tal fato se refere tanto aos “lugares sagrados” apropriados por ela, quanto à sua própria estrutura administrativa, que divide seu domínio em hierarquias territoriais de paróquias, dioceses e arquidioceses.

A pequena Capela Kalunga de Nossa Senhora Aparecida está sob jurisdição do padre responsável pelas paróquias de Teresina de Goiás e Cavalcante. Mesmo assim, as territorialidades da Igreja se constituem em redes, de modo que as organizações e os projetos realizados em grande escala po-dem afetar todos os níveis hierárquicos e gerar alguns conflitos, como já assinalamos ao tratarmos sobre a mudança da data da festa e o enfraque-cimento da folia.

FIGURA 4 - “Giro da Santa” e reza em casa de devotos.

Fotos: Luana Nunes Martins de Lima, maio de 2013.

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Sem a interferência direta do padre quanto à forma, os moradores organi-zaram o Giro da Santa de acordo com o mesmo trajeto da folia, pois segun-do a norma arraigada em seus rituais, a Santa também não pode “cruzar”. O padre apenas acompanhou essa organização, deu orientações gerais sobre as rezas e celebra a missa no dia 12 de outubro, na festa de Nossa Senhora Aparecida.

Um dos foliões que esteve presente na reunião afirmou: “Eu até dei uma opinião pra eles na hora da saída lá, que eles quiria que ela fosse de um lugar e depois voltasse. Eu falei: – Cêis alembra que num pode cruzar! - Porque pra não cruzar, tem uma serra que corta por aqui”.

De forma geral, quem participa das rezas do Giro da Santa são os parentes e vizinhos que moram mais próximos. Além disso, é costume daquele que recebe a visita no dia da reza em sua casa, ir também à casa daquele que o visitou, quando a Santa estiver lá. A relação de parentesco entre as pessoas presentes é evidente; por várias vezes presenciamos o cumprimento dos que chegavam pedindo “benção” aos mais velhos.

Embora o padre assevere que a intenção do Giro da Santa não é substituir o Giro da Folia, mas, sim, inserir as comunidades em um projeto mundial de unidade de fé, no entendimento de algumas pessoas entrevistadas, o Giro da Santa cumpre a função que a folia deixou de cumprir, conforme a explicação de um folião:

[...] eu fui lá assistir uma missa, e eles já tava nesse papo e eu participei, né?

Já tinha marcado o nome das pessoas, a casa que ia ficar e tal e tal. Então,

eu participei já do projeto pronto, e num sô contra, não. Até porque é o

seguinte, do ponto de vista do padre, se achá folião pro giro, tudo bem, se

num achá, pra todo efeito a santa girou. [...] A razão que eu falei logo no iní-

cio, folia tem que tê [...] tradição, pra pessoa que tá jurado fazer aquilo que

tá fazendo. Então, nóis gira. Hoje a santa tá girando, não sozinha, mas pra-

ticamente só. Eu coloco ela aqui na minha casa e vô fazê tudo direitinho,

como o padre pediu, né?... o padre ordenô. Mas só que folião num tem, [...],

se num tiver, ela já fez o giro dela16.

16 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 7 de maio de 2013.

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De qualquer forma, entendendo-se como substitutivo da folia ou não, o Giro da Santa recebe um sentido de obrigação religiosa, como pode ser apreendido pela expressão “vô fazê tudo direitinho, como o padre pediu, né?... o padre ordenô”.

As famílias recebem a santa no dia estipulado e executam as rezas de bom grado. Há uma profunda consideração pela figura do padre, como líder consagrado, o que torna as “ordenanças” ou projetos da Igreja bastante aceitáveis.

Com base na lista que a comunidade organizou, há compatibilidade entre o trajeto do Giro da Santa e o trajeto da folia desde que saiu da igreja. Isso foi possível ao compará-la ao mapa falado produzido juntamente com a comunidade e também na observação participante desenvolvida durante a folia.

Determinados foliões são considerados “peças-chave”, pois conhecem, de fato, todos os versos dos cantos das folias. Algumas pessoas chegaram a dizer que o dia que este ou aquele folião “faltar”, a folia pode acabar, pois nenhum outro folião aprendeu de forma a dar continuidade.

Associado a isso, incluem-se as mudanças nos costumes das folias, os quais os foliões mais antigos (figura 5) não reconhecem como seus, ou como de seu lugar, conforme os relatos de um deles:

E hoje num tá quase achando ninguém... num sei o que que é. Eu girei a

folia, até tentei ensinar alguém, foi poucos que quis aprendê, a coisa que

eu aprendi foi ser “alfel”. [...] E hoje é o seguinte: nóis aprendemo a cantá a

folia naquele ritmo dos véio, né? E hoje mudou assim, a maneira de cantá,

a maneira de girá a folia, num é da maneira que nóis custumô. Entrô os fo-

lião mais novo, mudô tudo e aqueles folião mais véio foi morrendo, então é

aquele sentimento, né? Cê tendo saudade da pessoa que morreu, né? Igual

meu pai que era folião também, morreu. Então cê... num reúne, né? Aí eu

perdi o intusiasmo, perdi minha mulhé, fiquei viúvo, aí eu perdi [inaudível]

a folia também17.

17 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 8 de maio de 2013.

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FIGURA 5 -Foliarealizadaem2001-incluifoliõesquedeixaramdegirar.

Fonte: Acervo fotográfico de um morador de Diadema.

Apesar de concordarem e de participarem do Giro da Santa, os foliões en-trevistados demonstraram o entendimento de que esse ritual não é o habi-tual de seu território, conforme se percebe no seguinte relato:

A tradição tá mudano, num tá? Eu acredito que a tradição tá mudano, né? Que

aqui nóis é acustumado cum a folia, não com a santa girando nas casa, Somo

acustumado é com a folia! A folia... a bandeira, né? Os foliões aí... oito, dez,

doze, já girou a folia aqui, a folia já reuniu até com doze, quatorze, dezesseis,

né? Até dezoito. Hoje tá dando... dando o quê? Ce vê que num anda mais do que

quatro ou cinco pessoas, mais ou menos isso. Chega na casa da sinhora, reza

hoje e amanhã, depois mal sai da casa da sinhora, a sinhora só vê ir lá pra minha

casa, [...] eu num sei nem como é que é, eu nunca fui nem vê como é que é, né?

[...]

Tem festa, hoje até quase num tá dando, mas antigamente, né, os rapaiz novo,

nóis dançava forró na festa da folia. Nóis brincava e cansava, ou se conforme

o intusiasmo amanhecia o dia cantando a curraleira. Cansei de vê amanhecê.

Outra hora se cantasse cansava, ia fazer forró, nóis ia dançar, né?18

18 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 8 de maio de 2013.

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Nestes fragmentos de entrevistas se percebe o sentido de lugar dado ao território, que também insurge nos sentimentos que as folias provocam. O território simbólico está implícito na apropriação da folia para designar o costume do lugar: “aqui nóis é acustumado com folia”, e não com outra forma de ritual. Já o sentido de lugar emerge das lembranças saudosistas, do costume, da afetividade, da familiaridade que suscitam ao falar sobre a folia, sobre os pousos e sobre a alegria dos festejos.

Ao mesmo tempo se nota a territorialidade dos foliões antigos, que legam para si o tempo em que as folias eram vividas com mais intensidade, “no ritmo dos véio”. A morte de muitos foliões, a impossibilidade de outros por causa da idade avançada, a própria mudança da tradição e dos costumes causa um sentimento de perda, como se o território simbólico, que é a fo-lia, lhes fossem desapropriado.

Outra preocupação que permeia alguns foliões é o fato de a folia girar ao mesmo tempo e nas mesmas localidades em que a santa também está no giro. Trata-se da mesma divindade representada pela a bandeira e pela imagem – o que significa que nos giros simultâneos há o risco de “cruzar a bandeira19”. Enquanto uns se recusam a girar pelo receio de “cruzar” pelo caminho que a santa já passou, um deles questiona: “[...] Agora num sei como é que pode sobre a santa andar, uai que... a santa andar nas casa, já tem a folia do pessoal que já anda, né?”20.

O conjunto de práticas do sagrado cria um repertório de crenças, rituais e mitos reproduzidos pela memória coletiva (inclusive o que “faz mal” na folia). Este, enraizado na memória e sendo parte constituinte da cosmovi-são do grupo, entra em conflito com algumas propostas implantadas pela Igreja. Propostas estas que, por vezes, são alheias às particularidades terri-toriais do catolicismo popular desenvolvidas nas comunidades.

Assim, nos próprios códigos de definição da folia/festa, as divergên-cias religiosas entre as duas áreas de agentes, devotos Kalunga e líderes

19 No giro da folia de santos uma das normas ritualísticas é não cruzar o caminho por onde a bandeira já

passou, sob a pena de sofrer algum “castigo”.

20 Entrevista concedida a autora, em trabalho de campo realizado nas comunidades Diadema e Ribeirão,

no dia 8 de maio de 2013.

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eclesiásticos da paróquia, aparecem mais concretamente. Uma coisa é ou-vir de uma parte, as palavras dos padres que explicam a razão da alteração da data da festa e a inclusão do giro da santa. Outra coisa é escutar dos próprios Kalunga os seus códigos de explicação do que se faz e por que se faz isso ou aquilo na festa de Nossa Senhora Aparecida.

Considerações finais

O lugar Kalunga lega uma identidade muito própria às suas festas de pa-droeiros. O inverso também é um fato notório. A festa, objeto deste estudo, tem sua essência vinculada ao lugar onde ocorre; ela é também um territó-rio com capacidade de produzir símbolos territoriais nos quais o uso social se prolonga além de seu acontecimento, proporcionando sentidos de en-raizamento e de pertencimento nos moradores.

Verificamos entrelaçamentos entre natureza, trabalho agrícola, família e religiosidade. A natureza é dotada de um valor não só material, mas tam-bém simbólico. E na visão de mundo dos Kalunga, a festa não é algo sepa-rado desta natureza.

As singularidades do lugar, que envolvem também relações com agentes externos à comunidades, evocam encontros, sobretudo quando se trata da origem de muitas crenças e práticas, mas também distanciamentos, na medida em que o diálogo só é possível para aqueles que partilham dos mesmos códigos culturais. Estes distanciamentos, por vezes, são “natura-lizados” ante o discurso institucional.

Por isso, no âmbito de estudos culturais, ainda que por um viés geográfico, consideramos necessário perscrutar sobre a razão de ser da festa, tendo como fonte os próprios indivíduos e suas experiências: Por que a festa foi criada? Em que contexto? O que ela significou para os moradores? O que ela ainda significa, apesar de suas transformações? Como ela une as pes-soas por meio de um sentido comum?

As respostas a estas indagações, no decorrer da pesquisa desenvolvida nestas comunidades foram desvelando sentidos, indicando caminhos e criando os ne-xos com a reflexão geográfica. Tornamos a afirmar que o lugar, apropriado sim-bolicamente, constitui parte fundamental dos processos de identificação social.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES da comunidade Quilombola Kalunga – Goiás –Brasil

Rosiane Dias Mota

1 - Introdução

O termo protestantismo foi cunhado com o advento da Reforma Protestante no século XVI. Denominado Movimento Reformista, a Reforma Protestante ocorreu juntamente com o Renascimento. Enquanto este último teria atin-gido a elite social, a Reforma teria alcançado a massa europeia; contudo, ambos lutavam contra as ideias da Igreja Católica Romana, mas com pers-pectivas distintas1.

No Brasil, as ramificações que deram origem as igrejas protestantes pas-saram por diversas mudanças, o que resultou no aparecimento de cente-nas de denominações/igrejas, assim como em um aumento considerável de convertidos. De acordo com o Censo Demográfico de 2000 publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 169.872,856 de brasilei-ros afirmaram ser protestantes (denominando-se evangélicos, pentecostais, ou membros da Congregação Cristã do Brasil ou da Assembleia de Deus).

1 Este Movimento iniciou-se motivado tanto por fatores religiosos como também econômicos e políticos.

A questão política se deu devido algumas localidades da Europa serem contra a soberania da Igreja so-

bre os reinados. E, no que se refere a dimensão econômica, os governantes estavam descontentes com

relação a obrigatoriedade de recolhimento de impostos e o envio dos mesmos a Roma, fato que acen-

tuava a pobreza local.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

A presença da igreja e suas múltiplas variações contribuíram para uma ressignificação da identidade territorial dos brasileiros que se “tornaram crentes2”. De acordo com Mendonça (2005, p. 51) “embora seja certo que as religiões universais, como são as protestantes, sempre assimilam ou mantem traços das culturas locais [...] o protestantismo que chegou no Brasil jamais se identificou com a cultura brasileira”.

Para o autor, o protestantismo inserido no país possui um formato nor-te-americano com “matrizes denominacionais e dependência teológica”. O autor ao refletir sobre o protestantismo no Brasil explica que há uma contradição ao se falar em “Protestantismo Brasileiro” tendo em vista que o mesmo não se identificou com a cultura local, sendo o ideal é refe-rir-se a essa religião como “Protestantismo no Brasil”.

No entanto, Léonard (1981) defende a ideia de Protestantismo Brasileiro, diante das particularidades histórico-sociais vividas pelas igrejas pro-testantes desde sua entrada no país. Esta falta de identificação é maior com relação às igrejas tradicionais e pentecostais, diferentemente, as neopentecostais, conforme apresentado, possuemmaior flexibilidade. No entanto, todas possuem o mesmo propósito pregar o evangelho, fazer missões3.

As missões são realizadas por meio do evangelismo e da abertura de no-vas congregações, assim como por meio da criação de novos grupos de oração em residências de recém-convertidos. O campo de atuação dos obreiros4 do protestantismo é ilimitado e tem atingido tanto comunida-des no meio urbano quanto no meio rural.

A atuação destes agentes religiosos ultrapassou fronteiras geográficas, éticas e religiosas, e se estabeleceu em comunidades tradicionais como as ribeirinhas, as indígenas e as quilombolas.

2 Utiliza-separafinsdesta investigaçãoaexpressão:“crentes”,comosinônimodeprotestantes,oude

brasileiros convertidos ao protestantismo.

3 O cristianismo tem como missão disseminar o evangelho. Este compromisso consiste em uma incum-

bência dada por Jesus Cristo, que esta registrada na Bíblia Sagrada - “Ide por todo o mundo, pregai o

evangelho a toda criatura” (Livro de Marcos, cap. 16, ver. 15)

4 Agentes que pregam o evangelho.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

Entre as comunidades tradicionais presentes no país que tiveram a entra-da do protestantismo pode-se destacar as Comunidades indígenas, como o povo Yanomami na Aldeia Marari (RR), a Reserva Indígena Sucuruí (RO), e as Comunidades Quilombolas, como é o caso dos Kalunga (GO), principal objeto de estudo desta investigação (MENEZES, 2010; RIOS, 2007).

O protestantismo na Comunidade Kalunga se iniciou por meio de missio-nários, com o objetivo de ensinar o evangelho, e logo estes se instalaram no Sitio. Os Kalunga, após a conversão, passam a adotar comportamentos distintos de outrora. Ele muda sua forma de vestir, de socializar-se, tem sua forma de produzir seu cotidiano modificado pelas regras da igreja.

Esta reflexão sobre a presença do protestantismo na Comunidade Quilombola Kalunga levou a seguinte indagação: de que forma a presença do protestantis-mo no território kalunga tem influenciado nas relações territoriais, e nas prá-ticas culturais de seus moradores? A partir desta e de outros questionamentos definiu-se para a presente investigação o objetivo geral de analisar a influência do protestantismo na produção do espaço sagrado protestante e a ressignifi-cação das práticas territoriais e identitárias do kalunga convertido. (ver)

Para realizar esta pesquisa apoia-se no estudo do espaço vivido, do lugar e da valorização das representações, enfim a elementos ligados ao subjeti-vismo presente no território e nas relações territoriais estabelecidas. Este está relacionado ao método dialético, com este é possível, interpretar sig-nos, e refletir sobre elementos imateriais.

Adotou-se como aspectos teórico-metodológicos às contribuições de Marinho (2008); e Almeida (2010; 2005), no que se refere a estudos reali-zados sobre a Comunidade Quilombola Kalunga e sobre leituras relacio-nadas a território, identidade territorial e comunidades tradicionais no cerrado. De Haesbaert (2007) com o estudo referente a identidade terri-torial; e, Boice, Veith Júnior, e Horton (1999) que discutem o protestantis-mo. Os procedimentos teórico-metodológicos dividiram-se em Pesquisa Bibliográfica-Documental, e Pesquisa de Campo.

O presente artigo estrutura-se em uma discussão sobre o território kalun-ga, em seguida apresenta-se como o protestantismo se desenvolve na Comunidade e encerra-se com uma reflexão sobre a relação do protestan-tismo com a ressignificação da identidade territorial no quilombo.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

2 - O Território Kalunga

A Comunidade Kalunga é constituída, originalmente, de descenden-tes de negros, que organizaram seu quilombo, na região da Chapada dos Veadeiros, no norte do estado de Goiás. Esta comunidade está localizada, no denominado Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga5, que ocupa uma área de 263,2 mil hectares, centrado entre os municípios de Monte Alegre, Teresina e Cavalcante.

O Sítio reconhecido está em uma região denominada de Vãos da Serra Geral6. Esta área é predominantemente cerradeira, irrigada pelas bacias dos Rios Paranã e das Almas. Além destes, outros rios menores também abas-tecem a região, como Rio Corrente, e seus afluentes Areias, Correntinha e Curriola (ALMEIDA, 2010).

O fato de comunidade estar, localizada em uma região de difícil acesso7, composta de vários morros e serras dificultou por várias décadas a en-trada e/ou o estabelecimento do protestantismo na comunidade, que é composta de 62 localidades e uma população de aproximadamente 3.752 habitantes8 (Figura 1).

5 OsaspectostopográficosdaregiãolevarampesquisadorescomoMarinho(2008)proporumadivisão

doterritóriopormeiodesuasprincipaisserrasebaciashidrográficas.Aautoradividecomoprincipais

núcleos do Sítio o Engenho II, Vão do Moleque, Vão de Almas e Ribeirão dos Bois. Destes o Engenho II é

o que possui melhor infraestrutura e está mais próximo a uma sede municipal, a 20 Km de Cavalcante.

Já os Vãos de Almas e do Moleque estão entre as localidades de mais difícil acesso, a aproximadamente

a 60 Km e 120 Km de Cavalcante, respectivamente.

6 De acordo com Nascimento (1991:18) o termo “vão” é utilizado “para designar a depressão posicionada

entre relevos mais altos, representados aqui pela es carpa do Chapadão Central (BA), que constitui a

Serra Geral de Goiás, e pelo Planalto do Alto Tocantins-Paranaíba.

7 O terreno acidentado, com variação altimétrica que sai de 400m e chega a 1.300m de elevação, asso-

ciada a um solo considerado de difícil correção, devido sua acidez, limitou nesta área também a expan-

são agrícola de monoculturas, como ocorre em todo o Estado. O que levou ao desenvolvimento de uma

economia de subsistência, com pequenos roçados e hortas, ambos destinados ao consumo familiar.

8 Dadosdo“PerfildasComunidadesQuilombolas:Alcântara, IvapurunduvaeKalunga”publicadopela

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir, 2004)

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

FIGURA 1 - Localidades do Sítio Histórico Patrimônio Cultural Kalunga (2014) – LocalidadesidentificadasporAguiar(2013).

Fonte: AGUIAR (2013) e Trabalho de Campo - MOTA, 2014.

Os kalunga possuem um modo de vida tradicional que reflete tanto a forte ligação do quilombola com a terra, e com seu território, quanto a “expres-são de resistência ao processo de capitalismo e, também, uma forma de sobrevivência dentro do capitalismo, uma vez que a terra é utilizada tam-bém como meio de produção de bens para comercialização” (ROSA, 2012, p.7). No caso da Comunidade, os modos de vida se reafirmam mais com a produção do que com a comercialização, tendo em vista que esta última ocorre de maneira tímida.

O fato de estarem em uma região de cerrado e de possuírem uma for-te ligação com esta vegetação os levou a ser denominados como povos cerradeiros (ALMEIDA, 2010). A autora dá esta denominação aos kalunga, porque estes “reconhecem a herança cultural e o local de vivências com suas características naturais, como definidores de seu grupo social e de sua identidade territorial” (op. cit., p.43).

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

As localidades que formam o Sítio Kalunga, em suas diferentes dimen-sões, podem ser consideradas como territórios identitários, porque “eles se caracterizam pelo papel primordial da vivência e pelo marco natural, o Cerrado [...]” (ALMEIDA, 2005, p. 338)9.

É neste território de cerrado que os kalunga têm suas casas, e produzem seus quintais com fruteiras, plantas do cerrado, ervas, hortas, entre outras. Em algumas localidades, há a dificuldade de realizar o cultivo de alimentos nos quintais, devido ao limitado acesso a água. A falta de água consiste em um fator que interfere diretamente na organização espacial das famílias kalunga.

Estas buscam situar-se nas proximidades dos cursos d’água e às margens das rodagens (estradas). Outra limitação que marca o modo de vida dos kalunga na maioria das localidades é a ausência de energia elétrica. Assim como é neste território que são estabelecidas as relações territoriais entre parentes, vizinhos, amigos e conhecidos.

O território kalunga como terra camponesa ultrapassa a noção de traba-lho. Ele “é também morada da vida, lugar dos animais de estimação, do pomar, da horta e do jardim, é a terra da fartura, onde o grupo familiar se reproduz por meio do autoconsumo”. (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p.40).

Além do Cerrado outro elemento que marca a identidade territorial Kalunga é a religião. Os Kalunga tem em seu território um calendário de festas e ma-nifestações cíclicas ligadas ao catolicismo popular. Os festejos ora são ca-racterizados em folias, ou rezas de terços, ora em grandes reuniões festivas denominadas de Impérios. Entre os santos celebrados estão São Sebastião, Santo Antônio, Santo Reis, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora das Neves, São José, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora d’Abadia, São Gonçalo, Menino Jesus, e Santa Luzia.

Esta devoção chegou ao território por meio de missões católicas, que ti-nham o objetivo de evangelizar os Kalunga. Os missionários católicos en-sinaram práticas religiosas como rezas, cânticos, ladainhas e protocolos

9 A autora explica ainda que os territórios identitários “seriam tanto espaços de sociabilidade comunitária

comorefúgiosfrenteàsagressõesexternasdequalquertipo”(Almeida,2005:338)

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

de festejos aos moradores do Sítio. Contudo, esse ensino foi realizado de forma pontual, e sem acompanhamento. Ao longo dos anos a ausência da Igreja Católica deixou o ensino dos dogmas católicos negligenciados.

Na maioria das localidades que possuem Capelas construídas, o Padre as visita uma vez por ano, na ocasião da festa do santo padroeiro, quanto o mesmo realiza casamentos e batizados. Esta ausência de um representan-te da Igreja Católica levou os Kalunga a transmitirem da forma que acredi-tavam ser correta aquilo que aprenderam com seus pais.

Ocorreu com isso uma reconstrução daquilo que foi aprendido, e uma res-significação e inserção de elementos materiais e imateriais ligados á outras matrizes religiosas. Tudo isso consolidou-se em uma contínua reconstru-ção de um catolicismo popular. Neste, foram inseridos e ressignificados distintos elementos, alguns desconhecidos ou até mesmo rejeitados pela própria igreja, como foi por muitos anos o caso da prática da folia e das crenças em seres míticos.

Assim as rezas, as ladainhas e as formas de adorar os santos foram adapta-das àquilo que eles sabiam fazer, ou da forma que outros lhe transmitiram, a estas se adicionou elementos míticos transmitidos pela cultura e imagi-nário local.

Atualmente, em toda Comunidade há três pequenas Igrejas Católicas, de-nominadas pelos Kalunga de Capelas (Figura 2).

As Capelas estão localizadas nos Vão do Muleque, Vão de Almas e Engenho II. Das três apenas a última é utilizada fora dos períodos festivos. Os mo-radores do Engenho II, na tentativa de fortalecerem a fé católica realizam rezas de terço no local. O espaço desta Igreja também é utilizado no em-preendimento de ações sociais, como a ministração de cursos com temáti-cas variadas para a Comunidade.

O catolicismo se faz presente em todo o Sítio, e vários Kalunga se auto-denominam como tal, mesmo nunca tendo sido batizados ou participado das atividades religiosas ligadas a Igreja Católica. A religião católica se ma-terializa no modo de vida Kalunga, nas festas e nas suas crenças de uma forma híbrida, na qual há a devoção ao santo, mas também confia-se nas rezas, nas benzeções e nas simpatias.

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FIGURA 2 - Capela do Engenho II

Fonte: MOTA, R. D. – Data: 11 de julho de 2010

Da mesma forma, a imaterialidade do território também se manifesta por meio do catolicismo popular. Neste âmbito a imaterialidade de seu territó-rio, está presente tanto por meio das crenças quanto das relações territo-riais existentes entre os sujeitos pertencentes ou não ao Sítio.

Os kalunga no âmbito da leitura do território são considerados sujeitos, responsáveis pelas relações territoriais, territorialidades e identidade ter-ritorial kalunga. Tais relações estabelecidas também levam a formação de redes que ligam atores tanto internos quanto externos.

A identidade territorial destes quilombolas, assim como, as relações pro-duzidas neste e a partir deste, são imbricados de significados, de trocas e de conflitos. Neste sentido, Velloso (2006) ao discutir o processo de forma-ção do território kalunga, afirma que “a identidade denominada ‘Kalunga’ foi atribuída e não construída pelo próprio grupo social. As comunidades

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referiam-se e continuam se referindo umas às outras pelo lugar que elas habitam, ou seja, fulano do Engenho, sicrano do Vão de Almas, da Contenda, etc” (op. Cit. p.93).

De acordo com a autora o nome Kalunga foi instituído com um significa-do político a partir do “Projeto Kalunga: povo da terra” com a finalidade de garantir o reconhecimento da terra. Desse modo, “[...] ser chamado de Kalunga deixa de ser negativo, passando a ser referência identitária posi-tiva e o grupo social começa a assumir essa ‘nova identidade’” (idem, p.94).

O modo de vida está diretamente ligado a identidade, as territorialidades e as relações territoriais. Em seu território o modo de vida kalunga apesar de ter forte influencia católica possui elementos distintos desta religião, que foram adquiridos com os seus antepassados, como é o caso dos causos e histórias de seres mágicos contadas em rodas de conversa, das músicas e de danças tradicionais.

Entre as danças e músicas locais pode-se destacar a “Sussa” e a “Curraleira”, que são músicas cantadas e dançadas durante os encontros e as festivida-des dedicados a santos católicos.

A identidade territorial quilombola kalunga é composta de elementos tanto de matriz africana, quanto de trazidos pelos missionários católicos (Quadro 1).

QUADRO 1 - Elementos da Identidade Territorial Kalunga

Elementos da Identidade Territorial Kalunga

Modo de Vida - Afrodescente Decorrente do Catolicismo

Alimentação Protocolos das festas

Economia de Subsistência Necessidade de se batizar os filhos

Casamentos na mesma família Rezas de terços e ladainhas em latim

Músicas e dançasCriação de um calendário festivo com base nos santos e períodos de colheitas

Uso de instrumentos musicais rústicos e de fabricação própria

Inserção de novos instrumentos

BenzeçõesInserção das folias como forma de propagação da fé

Crença em seres míticos e sagrados Crença em santos da Igreja Católica

Fonte: MOTA, R. D. 2014

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

A relação do Kalunga com a terra, com o catolicismo popular, suas festas, suas músicas e danças compõem os territórios quilombolas que são cons-tituídos em um “jogo” de dimensões materiais e imateriais10. Neste jogo o ocorre a produção do lugar, na relação de pertencimento do indivíduo com o local, com suas práticas culturais. As manifestações da cultura kalunga assim como as relações territoriais estabelecidas no quilombo “convivem” de maneira conflituosa com o protestantismo no Sítio.

3 - O Protestantismo na Comunidade Kalunga

O protestantismo está presente na Comunidade Kalunga há mais de duas décadas. Os kalunga relatam que missionários visitam e pregam na região desde os anos de 1980. Contudo, essa intensificação se deu nos últimos dez anos com a ampliação da malha viária, abertura de estradas e o acesso de algumas localidades à energia elétrica.

A influência da igreja protestante na Comunidade está presente ora pelo discurso de descontentamento daqueles ligados a outras religiões, que afirmam que a igreja leva os moradores a abandonarem práticas culturais cotidianas. Ora, pela declaração de membros da comunidade, que as ins-tituições protestantes contribuem para melhoria da qualidade de vida da-queles inseridos ou próximos a estas instituições.

Atualmente existem cinco igrejas protestantes ativas, uma abandonada e uma creche protestante no Sítio Kalunga (Figura 3). Elas estão nas locali-dades de Riachão e Diadema, Vão de Almas, Vão do Muleque e Engenho II. Nas localidades Riachão e Diadema, município de Teresina de Goiás, estão presentes as Igrejas Batista Ebenèzer, por meio da Creche Ebenèzer e a Assembleia de Deus.

No Vão de Almas, Teresina de Goiás, existem quatro famílias protestantes na localidade do Vão de Almas e um grupo de evangelização permanente, coor-denado por uma missionária de Brasília, localizado em Jurema, e há uma igreja evangélica está em construção na localidade de Maiadinha (Figura 4).

10 O território se constitui em um “jogo entre material e imaterial, funcional e simbólico” (Haesbaert,

2007:37).

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

FIGURA 3 - Protestantismo no Sítio Histórico Cultural Kalunga (2014)

Fonte: MOTA, R. D. 2014.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

FIGURA 4 - Mapa Falado: protestantes localizados no Vão de Almas (2013)

Fonte: Trabalho de Campo. Autor: MOTA, 2013

As primeiras ações de evangelização dos kalunga na localidade ocorreram por meio de um Reverendo, já falecido, da organização denominada “Asas do Socorro”, há aproximadamente 25 anos, de acordo com morador da lo-cal. Este teria feito em um avião monomotor várias visitas a região, levado evangelizadores e além de cestas básicas e remédios.

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Na atualidade, a presença de instituições evangelizadoras no Vão de Almas se dá por meio da APEC – Aliança Pró-Evangelização de Crianças de Goiânia, da Organização Missão 4X4, denominados antigamente de Jipeiros de Cristo, das cidades de Goiânia e de Brasília, e de evangelizadores de distintas igrejas protestantes localizadas em Brasília, que levam pastores para evangelizar os moradores do Vão de Almas. A conversão de várias famílias que residem pró-ximas umas das outras e que possuem vínculos afetivos e/ou parentesco é um elemento presente no Sítio, principalmente na localidade do Vão de Almas.

Estes estão nas localidades de Capivara e Pedra Preta. A conversão deste grupo se iniciou por meio de um kalunga que assistia cultos evangélicos pela televisão na escola localizada presente no Vão de Almas. Após a con-versão deste kalunga, ele passou a ser um multiplicador do evangelho, e evangelizou todos os seus vizinhos e parentes. Atualmente, ele os demais estão empenhados na construção de uma igreja protestante na localidade.

No Vão do Muleque, município de Cavalcante, há uma Igreja Assembleia de Deus, do Campo Minaçú, pertencente ao Ministério Madureira (Figura 5). De acordo com o Pastor desta congregação, a maioria dos kalunga ligados à igreja vive em um sistema pendular entre a cidade de Cavalcante e o Vão do Muleque, devido questões relacionadas a escolaridade dos filhos e a oportunidades de trabalho.

FIGURA 5 - Igreja Assembleia de Deus, do Campo Minaçú, pertencente ao Ministério Madureira, e casa pastoral – Vão do Muleque.

Fonte: MOTA, R. D. – Data: 16 setembro de 2013

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

No Engenho II, Cavalcante, há apenas uma igreja, Assembleia de Deus, de mesmo campo e ministério da anteriormente citada (Figuras 6).

FIGURA 6 - Igreja protestante e Casa pastoral no Engenho II

Fonte: MOTA, R. D. – Data: 22 de novembro de 2013.

Já na localidade de São Pedro, Monte Alegre de Goiás, formada de peque-nos grupos de famílias, identificou-se a presença de uma igreja protestan-te. Contudo, de acordo com os moradores, esta havia sido abandonada a alguns anos pelo pastor devido a ausência de crentes.

Na localidade de Ema, o protestantismo se faz presente por meio de fa-mílias convertidas, mas há a ausência de igrejas constituídas. A proximi-dade com a zona urbana de Teresina de Goiás facilita o acesso às igrejas urbanas. Entre elas, destacam-se a Universal do Reino de Deus, a Batista Ebenezer e a Mundial do Poder de Deus.

Na localidade, os missionários e pastores ligados a estas igrejas têm se de-dicado para converter novas famílias, tanto pela evangelização presencial quanto por meio da sensibilização com a inserção de placas com mensa-gens cristãs (Figura 7).

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

FIGURA 7 - Placa “Kalungas para Cristo”.

Fonte: MOTA, R. D. - Data: 08 de fevereiro de 2014.

De acordo com os pastores das Igrejas protestantes da Comunidade, os mesmos estão no quilombo por acreditarem na existência de uma necessi-dade de se evangelizar os kalunga. Eles entendem que a presença do pro-testantismo tem como principal fator positivo o fato de proporcionarem a mudança do “caráter e de comportamento” do kalunga convertido. Esta é proporcionada pelos dogmas do cristianismo, tendo como base a Bíblia Sagrada e o exemplo da vida de Jesus Cristo.

O ex-presidente da Associação Quilombola Kalunga, Sr Sirilo, discorda do posicionamento dos pastores e destaca que a presença do protestantismo na Comunidade leva a uma divisão da mesma. E o fato do padre visitar a localidade poucas vezes por ano, intensifica esta situação. Com a tentativa de fortalecer o catolicismo os kalunga mais devotos rezam semanalmente um terço na igreja católica local, mesmo sem a presença de uma instancia eclesiástica.

A partir do discurso tanto dos pastores quanto da liderança local é possí-vel afirmar a existência de uma ressignificação da identidade territorial do kalunga.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

4 - A identidade territorial kalunga

e sua ressignificação

O “território e a questão da identidade estão indissociavelmente ligados: a construção das representações que fazem certas porções do espaço hu-manizado dos territórios é inseparável da construção das identidades” (CLAVAL, 1999, p. 16). O território kalunga, o modo de vida, e a identidade de seu povo também são indissociáveis. A identidade territorial kalunga se constrói por meio do modo de vida, dos saberes e fazeres, e das relações territoriais.

Ela está relacionada, portanto, à concepção de pertencimento do sujeito com o território, assim como está também associado a própria religiosi-dade do quilombola. Na identidade há encontros e conflitos identitários e esses levam a produção de fronteiras11, que ora fortalecem as relações de pertencimento dos sujeitos com os ritos, e ora evidenciam a alteridade, a percepção da diferença no encontro com o outro.

De acordo com Souza (2008, p.78) é “essa perspectiva de pertencimen-to, que baliza os laços identitários nas comunidades e entre elas, parte de princípios que transcendem a consanguinidade e o parentesco, e vincu-lam-se a ideias tecidas sobre valores, costumes e lutas comuns”.

Essa relação de pertencimento é ressignificada com a entrada do protestan-tismo nas relações territoriais dos kalunga. Por consequência ocorre a res-significação da identidade territorial kalunga, que insere comportamentos distintos das práticas culturais tradicionais. A ressignificação desta iden-tidade leva os quilombolas a aceitarem os dogmas da igreja protestantes acompanhado de benefícios físicos e espirituais, e como consequência re-sulta na ressignificação das territorialidades e identidade territorial kalunga. Para que a espacialidade do sagrado protestante seja concretizada, as rela-ções territoriais dos kalunga e sua identidade territorial são ressignificadas.

11 Afronteiraconsisteem“umconflitodeidentidadesqueseapresentamirreconciliáveisesemdúvida,

o contágio, a mescla, a mestiçagem, a fusão, são inevitáveis” (Stadniky, 2007, s/p) A fronteira possui

umaconotaçãode lugardeconflito,comotambémde“um lugardeencontroecolisãodeculturas,

demundosdistintose, emgeral, incompatíveis” (idem).Osconflitoseencontrosde identidadesna

Comunidade estão relacionados a produção das fronteiras identitárias.

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

No entanto, por outro lado, a identidade, a noção de lugar, essa mesma re-lação de pertencimento, é fortalecida na alteridade, no encontro com o ou-tro, com o diferente. Ora, o kalunga se deixa ressignificar, ora se fortalece e proíbe a entrada das práticas culturais do outro. A exemplo tem-se os mo-radores do Engenho II que criaram um calendário de rezas de terço na igreja católica para fortalecer a religião frente as ações do protestantismo no local.

A ressignificação está presente também na produção de um espaço sagra-do de conveniência. Neste os convertidos, tem interesse nos dogmas dos protestantismo, assim como em todos os benefícios advindos do mesmo. Contudo, os kalunga convertidos, de posse desta identidade ressignifica-da, desafiam as regras do espaço sagrado protestante, e mantem vivas as práticas de outrem, como é o caso da participação nas festas e folias devo-tas a santos católicos.

Mesmo sendo “penalizados” ora por uma decisão terrena do pastor, ora por uma intervenção divina, estes kalunga convertidos adaptam a fé protestan-te ao seu modo de vida, e escondem a criação de um espaço de conveniên-cia no âmbito do sagrado, no qual realizam suas próprias práticas culturais.

Este se dá devido as religiões de modo em geral vivenciarem a coabitação do sagrado e do profano. “O homem toma conhecimento do sagrado por-que este se manifesta, mostra-se como algo absolutamente diferente do profano.” (ELIADE, 1992, p. 13), esse fato é denominado de hierofania.

O profano é denominado como aquele que existe sem orientação, e que se opõe ao sagrado. O sagrado e o profano são vistos como elementos díspares na perspectiva dos líderes religiosos presentes na Comunidade Kalunga. Mas considerados como complementares e coexistentes a partir da perspectiva do próprio kalunga.

Os conflitos relacionados às concepções de sagrado e profano e os dog-mas do protestantismo estão presentes nas pequenas coisas do cotidiano Kalunga, e em importantes decisões, como a de se escolher com quem se constituirá uma família.

Durante as manifestações festivas os conflitos se intensificam. Os Kalunga convertidos entendem a festa, ainda que seja Católica, como um espaço de confraternização, um espaço vivido onde as representações sociais se

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PROTESTANTISMO, IDENTIDADE TERRITORIAL E TERRITORIALIDADES

manifestam, de valorização e intensificação das relações territoriais, e en-tende este um espaço sagrado, de reprodução da própria tradição.

Contudo, a Igreja Protestante concebe a sacralidade apenas voltada para o próprio corpo do individuo, do convertido. Deste modo, todo o restan-te que estiver fora da conduta cristã é considerado pecado, profano. Esta ideia de profano é ensinada pelo protestantismo, que por consequência leva o convertido a não participar das festas locais, dos momentos de reen-contro, e de se recolher às práticas diárias dentro de seus familiares e de sua irmandade, convertidos da mesma igreja.

Conclusão

O espaço produzido com a presença do protestantismo no território kalun-ga possui elementos materiais e imateriais que se estabelecem no contexto das relações territoriais dos quilombolas. Para eles o espaço em sua sacra-lidade e profanidade possui ora elementos distintos, ora complementares e coexistentes a partir da perspectiva de seu espaço vivido.

O kalunga convertido absorve a mensagem de que o templo, a igreja é um local sagrado, mas quando se refere a sacralidade de seu corpo, este sujei-to passa a entrar em conflito com sua identidade territorial por se deparar com as restrições às práticas culturais presentes no espaço vivido.

No entanto, para o kalunga de outra religião o sagrado e o profano as-sumem outra leitura. A igreja é considerada como espaço sagrado. Esta é visitada apenas durante as festas, deste modo o espaço sagrado se mani-festa também nos altares e oratórios que os quilombolas mantem em suas residências.

O restante é considerado como profano. Para este sujeito a dualidade de sagrado e profano está ligada diretamente ao modo de vida, às suas práti-cas culturais, e a construção de suas identidades territoriais.

A concepção de espaço sagrado para o kalunga é diferente daquele que o protestantismo entende e ensina. O quilombola convertido não deixa de ser kalunga, sua identidade, seu modo de vida permanecerá com ele por toda vida. O que ocorre é uma ressignificação de elementos identitários.

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Neste contexto, acredita-se que surge uma nova concepção de religião, na qual leva o conhecimento sobre Deus ao sujeito, mas sem impor usos e costumes, se interage com a cultura local.

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SOBRE OS AUTORES

ADEGMAR JOSÉ FERREIRA

Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), 1999. Doutor

em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), 2010.

Professor na Faculdade de Direito da UFG e da PUC-GO. Juiz de Direito – TJGO.

ELAINE FERNANDES DA CUNHA MESQUITA

Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde e da Superintendência de Políticas

de Atenção Integral à Saúde (SPAIS) da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás

(SPAIS/SES-GO). E-mail: [email protected]

ESTELAMARIS TRONCO MONEGO

Professora Associada N4 da FANUT/UFG. Graduada em Nutrição pela

Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Especialista em Nutrição Clinica pela

UFRJ e em Saúde Pública pela FIOCRUZ-UFG. Mestrado em Educação Escolar

Brasileira pela Universidade Federal de Goiás. Doutorado em Ciências da Saúde

pelo consorcio UNB-UFG-UFMS. E-mail: [email protected]

IARA LUCIA GOMES BRASILEIRO

Professor Adjunto 4 na Universidade de Brasília Graduada em Ciências Biológicas

pela Universidade de Brasília. É mestre e doutora em Ciências pela Universidade

de São Paulo. No Centro de Excelência em Turismo coordena o Núcleo de Turismo

e Sustentabilidade e participa do Bacharelado e do Programa de Mestrado em

Turismo. Coordena e/ou participa de vários projetos na área do Turismo e

Desenvolvimento Sustentável/Sustentabilidade. E-mail: [email protected]

ISMAR BORGES DE LIMA

Professor do Curso de turismo da Universidade Estadual de Roraima, UERR.

Pós-doutorado na Southern Cross University, Austrália. Doutor em Geografia

Humana e Turismo pela University of Waikato (Nova Zelândia). Mestre em

Relações Internacionais pela International University of Japan (Japão). E-mail:

[email protected]

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327

KARINE ANUSCA MARTINS

Professora Adjunto N3 da FANUT/UFG. Graduada em Nutrição pela UFG.

Especialista em Nutrição Clínica pela Universidade São Camilo-SP. Mestre em

Ciências da Saúde pelo convênio UFG, UNB e UFMS. Doutora em Ciências da

Saúde pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]

LUANA NUNES MARTINS DE LIMA

Doutoranda em Geografia pelo Programa de Pós Graduação em Geografia da

Universidade de Brasília. Mestre em Geografia pela Universidade Federal de

Goiás. Especialista em História Cultural: Imaginário, Identidades e Narrativas.

Graduada em Turismo pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

de Goiás. E-mail: [email protected]

LUIZ CARLOS SPILLER PENA

É Professor Adjunto 2 no Centro de Excelência em Turismo da Universidade

de Brasília na graduação em turismo e no programa de pós-graduação,

especialização e mestrado profissional em turismo, onde participa dos núcleos

de Turismo e Sustentabilidade e de Políticas Públicas em Turismo. Doutorado na

área Saneamento e Ambiente pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail:

[email protected]

MARIA CRISTINA VIDOTTE BLANCO TARREGA

Professora Titular da UFG. Doutora em Direito pela PUC-SP, com estágio de

pós-doutorado na Universidade de Coimbra/Portugal. Subcoordenadora do

Programa de Mestrando em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás.

E-mail: [email protected]

MARIA GERALDA DE ALMEIDA

Professora titular em Geografia e Professora do Programa de Pós-Graduação

em Geografia do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) na Universidade

Federal de Goiás (UFG). Doutorado na Universidade de Bordeaux III –Bordeaux.

França.Pós- Doutorado na França, Italia, Canada e Espanha. Estudos na Geografia

Cultural e do Turismo. E-mail: [email protected]

MARIANA DE MORAIS CORDEIRO

Professora da Faculdade União de Goyazes (FUG). Graduada em nutrição pela

Universidade Federal de Goiás. Especialista em Nutrição Clínica e Terapia

Nutricional pelo GANEP. Mestre em Nutrição e Saúde pela FANUT/UFG.

E-mail: [email protected]

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PAOLA RÚBIA CAMARGO SANTOS SILVA

Mestranda na Universidade Federal de Goiás pelo Programa de Pós-graduação

em Antropologia Social Graduada no Curso Superior de Tecnologia em

Saneamento Ambiental (área meio ambiente) pelo Instituto Federal de Educação

Tecnológica de Goiás (IFET). Atua e desenvolve trabalhos na área de Educação

Ambiental e Cultura Popular. E-mail: [email protected]

PETER KUMBLE

Professor University of Massachusetts Dept of Landscape Architecture and

Regional Planning. University of Massachusetts, USA. Email: [email protected]

RANGEL DONIZETE FRANCO

Mestre em Direito Agrário pela UFG. Foi bolsista CAPES (2010/2012). Professor

da FASAM/GO e Assessor Jurídico no Poder Judiciário do Estado de Goiás. Email:

[email protected]

RODOLFO NUNES FRANCO

Professor Faculdade Sul-Americana – FASAM. Mestre em Direito Agrário pela

Universidade Federal de Goiás (UFG), 2014. E-mail: [email protected]

ROSIANE DIAS MOTA

Tecnologia de Gestão Turística pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia de Goiás. Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-graduação

do Instituto de Estudos Sócio-ambientais - Universidade Federal de Goiás.

Doutoranda em geografia pela Universidade Federal de Goiás (IESA-UFG) –

Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

TATIANA OLIVEIRA NOVAIS

Professora da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Goiás

(UFG), nas disciplinas de Saúde Coletiva. Trabalhadora da Atenção Básica do

Município de Bonfinópolis-Go desde 2001. Faz parte da Articulação Nacional de

Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS) em Goiás. E-mail:

[email protected]

THAIS ALVES MARINHO

Professora de Sociologia da PUC Goiás, Doutora em Sociologia pela UnB, Pós-

Doutora em Ciências Sociais pela Unisinos, Assessora de Pesquisa do IDF/

PROEX/PUC Goiás, pesquisadora do grupo Cultura, Memória e Desenvolvimento

(CMD/UNB/CNPQ), do grupo Sócio-Antropologia dos Patrimônios,

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Museus e Acervos (GPMUSA/UFS/CNPQ), do grupo Políticas Públicas, Direitos

e Democracia (UNISINOS/CNPQ) e editora adjunta da Revista Arquivos do CMD.

E-mail: [email protected]

WILMA MELHORIM AMORIM

Graduada em Geografia pela Universidade Católica de Goiás e graduação em

Estudos Sociais pela Universidade Católica de Goiás. Pós-Graduação em Métodos

e Técnicas de Ensino e Planejamento Educacional pela Associação Salgado de

Oliveira de Educação e Cultura, e Mestrado em História das Sociedades Agrárias

pela Universidade Federal de Goiás. Doutora em Geografia pela Universidade

Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected]