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O trabalho com fábulas: um processo com implicação autoral Rita de Cássia Constantini TEIXEIRA 1 Resumo Este artigo tem por finalidade apresentar os resultados de uma pesquisa realizada com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, ciclo II, a qual buscou analisar as implicações sobre o processo de assunção da autoria nas atividades pedagógicas, tendo como gênero discursivo a Fábula. Posicionamento este de responsabilidade do dizer, sabendo que as leituras das Fábulas ainda são vistas com sentidos únicos e fechados cerceando os espaços discursivos dos sujeitos-alunos. Sendo assim, a pesquisa, que busca olhar para o processo de escrita, pauta-se na fundamentação teórica da Análise do Discurso Pecheuxtiana e, com base nas análises, podemos sinalizar como os enunciados evocam formações discursivas e imaginárias que revelam a tessitura dos sentidos produzidos nas produções textuais. Palavras-chave: Autoria, Escrita, Gênero Discursivo- Fábula. Abstract This article aims to present the results of a survey of students in the 6th grade of elementary school, cycle II, which sought to examine the implications of the process of assumption of authorship in educational activities, with the discursive genre, fable. Positioning this responsibility of saying, knowing that the readings of the Fables are still seen with unique and closed senses abridging the discursive spaces of the subjects students. Thus, the research that seeks to look at the writing process, and based on the theoretical basis of the analysis of Pecheuxtiana Speech and based on the analysis, we can flag how the statements evoke discursive and imaginary formations that reveal the fabric of meanings produced in textual productions. Keywords: Authoring, Writing, Gender discursive Fable 1 Pós-graduada no Programa de Pós- Graduação em Educação, nível Mestrado, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP. Foi bolsista Capes, sob orientação da Profª Drª Soraya Maria Romano Pacífico. E-mail: [email protected]

O trabalho com fábulas: um processo com implicação autoral como os sujeitos-alunos se identificaram com a produção desse gênero discursivo para assumirem a posição discursiva

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O trabalho com fábulas: um processo com implicação autoral

Rita de Cássia Constantini TEIXEIRA1

Resumo

Este artigo tem por finalidade apresentar os resultados de uma pesquisa realizada com

alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, ciclo II, a qual buscou analisar as implicações

sobre o processo de assunção da autoria nas atividades pedagógicas, tendo como gênero

discursivo a Fábula. Posicionamento este de responsabilidade do dizer, sabendo que as

leituras das Fábulas ainda são vistas com sentidos únicos e fechados cerceando os

espaços discursivos dos sujeitos-alunos. Sendo assim, a pesquisa, que busca olhar para o

processo de escrita, pauta-se na fundamentação teórica da Análise do Discurso

Pecheuxtiana e, com base nas análises, podemos sinalizar como os enunciados evocam

formações discursivas e imaginárias que revelam a tessitura dos sentidos produzidos nas

produções textuais.

Palavras-chave: Autoria, Escrita, Gênero Discursivo- Fábula.

Abstract

This article aims to present the results of a survey of students in the 6th grade of

elementary school, cycle II, which sought to examine the implications of the process of

assumption of authorship in educational activities, with the discursive genre, fable.

Positioning this responsibility of saying, knowing that the readings of the Fables are

still seen with unique and closed senses abridging the discursive spaces of the subjects

students. Thus, the research that seeks to look at the writing process, and based on the

theoretical basis of the analysis of Pecheuxtiana Speech and based on the analysis, we

can flag how the statements evoke discursive and imaginary formations that reveal the

fabric of meanings produced in textual productions.

Keywords: Authoring, Writing, Gender discursive Fable

1 Pós-graduada no Programa de Pós- Graduação em Educação, nível Mestrado, pela Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP. Foi bolsista Capes, sob orientação da Profª Drª

Soraya Maria Romano Pacífico. E-mail: [email protected]

Sabemos que, ao produzir um texto, o sujeito deixa marcas de estilo e o estilo

garante a presença da subjetividade, que vai renovando os gêneros discursivos e

reconstituindo o estilo de cada um deles. Essa condição de produção somente se garante

pelas práticas de leitura e de escrita que proporcionam ao sujeito-aluno a construção de

determinado gênero discursivo, cuja prática de escrita poderá contribuir para a

constituição do autor.

Observamos, com base nas leituras de Mikail Bakhtin (2011) em Estética da

Criação Verbal, que a forma padronizada reflete menor subjetividade na produção dos

gêneros discursivos, e que a subjetividade marcaria um estilo particular quando o sujeito

constrói com a escrita, podendo, mais facilmente, assumir-se como autor do próprio

texto, e encontrando-se na produção textual um sentimento de pertencimento (Coracini,

1999).

Os gêneros do discurso trazem uma composição diversificada e multiforme,

sendo considerada uma atividade humana que cresce e se diferencia à medida que se

desenvolve em determinado campo, como nos aponta Bakhtin (2011).

Sob o mesmo ponto de vista, dentro do universo oral e escrito, temos uma

diversidade de gêneros que também vão surgindo conforme a necessidade de evolução

da língua e, por conseguinte, de seus falantes, por isso afirmamos, que não há um plano

único para os gêneros discursivos. Apesar desse conhecimento, as mais variadas

instituições de ensino procuram reduzir o trabalho com as práticas de leitura e escrita a

produções extremamente conteudistas, que visam apenas à estrutura dos textos, de

modo a apagar qualquer manifestação polissêmica, tanto no texto oral quanto no escrito

dos sujeitos-alunos.

É do conhecimento de todos os profissionais da área da educação que os livros

didáticos trazem um rol de gêneros discursivos, dentre eles a fábula. As fábulas são

narrativas curtas, lidas para os alunos, desde os anos iniciais de escolarização. Muitas

vezes, os textos literários aparecem no livro didático apenas como um recurso para

trabalhar a gramática, apagando-se o que é próprio do literário (Bragatto Filho, 1995).

Nesse caso, os sujeitos-alunos ficam formatados e impossibilitados de se

movimentarem e formar uma consciência crítica e, por isso, ficam presos aos sentidos

prontos que a escola lhes oferece, legitimando ainda mais o discurso dominante.

Ler e reler as fábulas de modo a permitir que os alunos sejam interpelados por

outras formações discursivas, as quais podem gerar outras interpretações, são condições

fundamentais para as práticas de leitura e escrita, dentro da escola. Contudo, no período

em que realizamos nossa coleta de dados, pudemos notar a escassa leitura desse gênero

discursivo nas salas de aula. Geralmente, as fábulas são lidas durante os primeiros anos

do Ensino Fundamental I, mas se perdem com o passar dos anos. Assim, quando esse

gênero foi trabalho em sala de aula, especificamente na sala do 6º ano, para a realização

da pesquisa, o discurso dos alunos resumiu-se em: “fábulas são histórias para crianças”.

A ideia equivocada de linguagem como sendo transparente que a escola ainda

trabalha, sobretudo por conta do sistema educacional, que cobra dos professores e os

coloca em condições controladoras de trabalho, faz com que as atividades pedagógicas

percorram um caminho único, e com as fábulas não seria diferente, como se os textos

tivessem um único desfecho e uma única moral, que regula e engessa o processo de

letramento, relacionando o ensino de língua e de literatura ao paradigma estruturalista,

em detrimento das posições discursivas que os sujeitos-alunos podem ocupar para ler e

escrever; consequentemente, os mesmos não podem ser autores do próprio discurso, ou

tampouco ocupar uma posição discursivo-ideológica diferente da permitida pela

instituição escolar.

Entretanto, apesar de essa ser a formação discursiva dominante, no contexto

escolar, não podemos desconsiderar que outras vozes que ecoam para além dos muros

escolares também produzem sentidos e, por isso, podem interferir nas condições de

produção do discurso dos sujeitos-alunos. Geralmente, a escola não reconhece as outras

agências de letramento, pois a ela não lhes é permitido ou até mesmo garantido que tal

olhar se modifique por conta do advento, fortemente, marcado pelo livro didático ou por

outros materiais de uso contínuo que o sistema educacional delega como principal

objeto de trabalho, ficando, assim, alheia aos conhecimentos que os alunos trazem,

adquiridos em outros espaços.

No que diz respeito ao trabalho com as fábulas, o engajamento dos alunos com

os temas polêmicos poderia oportunizar-lhes a escrever e dar opiniões que seriam

construídas por meio das próprias relações sociais, vivenciadas, quando são autorizados

a participar de práticas de leituras, de escritas ou de produção orais conduzidas para o

deslocamento de novas produções de sentido, não apagando os sentidos construídos

sócio-historicamente. E, para pensarmos sobre o silenciamento e apagamento dos

sentidos, Orlandi (2007) em “Papel da Memória” considera que:

Acontece que esses sentidos-excluídos, silenciados- não puderam e

não podem significar, de tal modo há toda uma nossa história que não

corresponde a um dizer possível. Não foram trabalhados socialmente,

de modo a que pudéssemos nos identificar em nossas posições.

(ORLANDI, 2007, p.66)

Se há sentidos que são excluídos e silenciados, podemos dizer que a leitura e a

explanação das fábulas lidas durante a coleta de dados nos levaram a pensar, mais uma

vez, no sentido único que vigorou sustentado na ideologia dominante. Por isso,

pensamos: As fábulas têm apenas o fundamento didático? Mas, o que é ser didático,

afinal? As fábulas constituem-se como gênero discursivo muito interessante; logo, elas

não poderiam servir para momentos e práticas de leitura reflexiva, de construção da

consciência crítica? Enfim, questões como essas nos permitem percorrer um espaço

interpretativo muito mais amplo, que não reduz a interpretação das fábulas a um sentido

único e fechado, sequer a uma moral. Nessa perspectiva, consideram Romão e Pacífico

(2006), em concordância com a Análise do Discurso que:

[...] que o texto não é um quebra-cabeça, que só pode ser montado de

uma única maneira, senão as peças não se encaixam; ao contrário, o

sentido do texto não está pronto, mas, sim, à espera de um leitor que

percorra o texto, a história do texto, a sua própria história de leitura,

o seu arquivo, para que haja uma cooperação entre leitor e autor na

produção do sentido, um enriquecimento cultural, individual, uma

ampliação do horizonte do leitor. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006,

p.11)

Tomando como corpo nesse movimento, a agregação, o deslocamento e o

desprendimento de sentidos acontecem e vão atribuindo uma nova roupagem para os

sentidos produzidos pelos alunos em suas produções. E é nesse processo que o analista

do discurso deve se atentar em olhar e em acompanhar o movimento pendular dos dados

que serão analisados, deixando o discurso já instituído ter a oportunidade de produzir

novos significados e, consequentemente, ressignificar-se.

Neste artigo, de fato, daremos atenção especial ao trabalho realizado na sala

onde coletamos os dados, com a finalidade de apresentar os resultados da pesquisa

realizada com a coleta de produções escrita, do gênero discursivo fábula, intitulada

como “O Trabalho com Fábulas: um processo com implicação autoral”. O trabalho

investigou como os sujeitos-alunos se identificaram com a produção desse gênero

discursivo para assumirem a posição discursiva de autor, (Orlandi, 1996), alcançando a

assunção da autoria, momento em que o sujeito-aluno se responsabiliza pelo seu próprio

dizer.

A proposta didática

A coleta de dados teve início no mês de abril do ano de 2014 e, antes de

iniciarmos a pesquisa, pudemos repensar as mudanças ocorridas nas sociedades e em

como, com o decorrer do tempo, as relações sociais se transformam, assumem outro

corpo, outra forma, mas as fábulas perduram, pois elas permitem uma interpretação que

vai além de uma conversa entre animais ou objetos inanimados, já que os temas

explorados nesse gênero discursivo parecem sempre muito atuais. A fábula pode

permitir reflexões acerca dos conflitos sociais para que, assim, possamos nos posicionar

em relação aos temas.

Durante a aplicação do trabalho, a explicação sobre as características do gênero

fábula, aos alunos do 6º ano, teve início com uma pergunta geradora que a professora

lançou à turma - “O que é fábula?” – , seguida da resposta: “Fábula é uma composição

literária em que os personagens são geralmente animais, forças da natureza ou objetos,

que apresentam características humanas, tais como a fala, os costumes, etc., estas

histórias são geralmente para crianças”.

Logo após o conceito, foi realizada a leitura do seguinte texto:

A fábula é uma narrativa em prosa ou poema épico breve de caráter

moralizante, protagonizado por animais, plantas ou até objetos

inanimados. Contém geralmente uma parte narrativa e uma breve

conclusão moralizadora onde os animais se tornam exemplos para ser

humano, sugerindo uma verdade ou reflexão de ordem moral. A

fábula teve a sua origem no Oriente, onde existe uma vasta tradição,

passando depois para a Grécia, onde foi cultivada por Hesíodo,

Arquíloco e, sobretudo Esopo. Neste período o gênero ainda pertencia

à tradição oral. Foram os romanos, entre os quais sobressai Fedro, que

inseriram a Fábula na Literatura Escrita.

Durante a explicação, os sujeitos-alunos foram sendo conduzidos aos sentidos já

legitimados pelas práticas didáticas convencionais sobre a interpretação das fábulas.

Essa prática pedagógica deve ser considerada em nosso processo de análise dos dados,

pois ela tem implicações na relação que os alunos podem, ou não, construir com a

interpretação e, consequentemente, com a produção textual. Se o aluno não interpreta de

forma crítica as condições de produção de leitura, consequentemente a escrita não será

autorizada a gerar novos sentidos, ou seja, o sujeito-aluno continua repetindo o já-dito e,

portanto, o movimento de criação da escrita e ou da oralidade, com base em novos

posicionamentos discursivos, não acontece.

Logo depois, seguiu-se com a leitura de mais um texto:

Cada animal simboliza algum aspecto ou qualidade do homem como,

por exemplo, o leão representa a força; a raposa, a astúcia; a formiga,

o trabalho. É uma narrativa com fundo didático, quando os

personagens são seres inanimados ou objetos, a fábula recebe o nome

de apólogo.

Acompanhamos periodicamente todas as aulas concedidas pela professora e pela

escola para a coleta de dados. A sala contava com dezessete sujeitos-alunos. Os

sujeitos-alunos do 6º ano, que participaram da referida pesquisa, não realizavam leituras

de fábulas, pois esse gênero discursivo só está presente no livro didático do 7º ano, ou

seja, se o professor não proporcionar aos sujeitos-alunos o acesso aos vários gêneros

discursivos, ficando preso ao material didático, o trabalho pedagógico pode se tornar

fragmentado, e sabemos que esse não deve ser o movimento pedagógico com os

gêneros discursivos. Todavia os conteúdos curriculares, geralmente, são divididos por

ano, tendo para cada ano um ensino de um determinado gênero discursivo, acarretando,

assim, a fragmentação do trabalho do professor, que muitas vezes, é obrigado a seguir

tal conteúdo.

Como consequência da ausência das fábulas no livro didático do 6º ano, a

professora da sala leu as fábulas para os sujeitos-alunos advindas de outra fonte, e,

como consequência, apenas ouviram a leitura, sem ter acesso ao texto escrito. As

fábulas foram: “A galinha dos ovos de ouro”; “O cachorro e seu reflexo”; “Cigarra e a

Formiga”; e a “Lebre e a Tartaruga”. A maioria dos sujeitos-alunos já conheciam as

fábulas, enquanto que outros se arriscaram a dar outra moral a elas.

Diante desse percurso metodológico e sem silenciar que a constituição do corpus

já se constitui em um posicionamento do pesquisador, apresentamos, a seguir, as

análises que realizamos.

Análise de dados

Para este artigo trazemos dezessete atividades de produção textual, a

partir do gênero discursivo fábula. Todas as análises estão pautadas no referencial

teórico da Análise do Discurso Pecheuxtiana e nos estudos dos Gêneros Discursivos de

Bakhtin. As observações durante a aplicação da atividade, mais uma vez, serviram-nos

de objeto de análise, pois, como analistas do discurso, não pudemos deixar de

considerar as condições de produção que permearam toda a coleta que envolveu essa

pesquisa.

Ao iniciarmos as análises das produções escritas, constatamos que apenas duas

produções apresentaram os elementos fundantes de uma fábula, como apontados: “a

fábula apresenta-se como narrativa curta, emprega linguagem culta ou coloquial,

dependendo do efeito de sentido que se deseja construir, e, no final, destaca-se uma

moral, com o objetivo de transmitir ensinamento”. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006, p. 44).

Partindo das análises e dos postulados da Análise do Discurso, o recorte

apresentado a seguir é uma produção de um sujeito-aluno, I.S.N., do 6º ano, que

conseguiu deixar a marca da autoria e sair da posição de copista, constituindo a própria

escrita de forma a sentir-se pertencente ao contexto e criar sentidos outros para compor

a fábula. A leitura de mais de uma fábula realizada pela professora permitiu que o

sujeito–aluno pudesse criar uma escrita diferenciada e garantir o acesso ao interdiscurso

com uma linguagem instituída pelo movimento da relação com outras leituras.

O sujeito-aluno I.S.N. aponta no discurso escrito marcas da contemporaneidade,

como os aparelhos eletrônicos, os quais parecem necessários para resolver um

problema. Desse modo, o sujeito-aluno consegue atingir a assunção da autoria,

posicionando-se no contexto em que está inserido e, por isso, ampara a escrita.

Vejamos:

Fábula: “A inveja da raposa”

A rapoza estava morrendo de inveja da Dona Coruja, porque ela tinha comprado um

carro lindo.

A raposa então tentou roubar aquele carro mas não conseguiu porque a coruja pegou

ela no flaga. Então, tentou outra vez, mais não conseguiu, tentou, tentou, tentou, mais

não conseguiu.

Então a raposa teve um plano e foi falar com a coruja:

- Dona Coruja, a senhora poderia me emprestar o seu carro?

- Claro! Disse Dona Coruja.

Mas, Dona Coruja era muito esperta, ela colocou um dispositivo no carro, se caso

alguém saisse da cidade com o carro, o carro explodia.

A raposa saiu da cidade e o carro explodiu.

Moral: Quem tudo quer tudo perde.

A leitura desta fábula criada por um sujeito-aluno que cultiva na escrita

elementos diferenciados nos permite olhar para a ideologia que sustenta a formação

discursiva e imaginária do autor, sujeito-aluno, quando resolve colocar um dispositivo

no carro para resolver um problema de roubo ou furto e, assim, passa a compreender

que a polifonia instala um novo movimento dos sentidos.

Konder (2002), com estudos sobre Bakhtin, confirma que “A polifonia, para

Bakhtin, relativizava as distorções ideológicas favorecidas pelo discurso monológico,

pela linguagem dogmática, sacralizada, comprometida com a pretensão da autoridade”.

Por isso, no recorte apresentado anteriormente, interpretamos que o sujeito-aluno se

permite, sente-se autorizado a criar sentidos novos, atualizando as possibilidades da

fábula, partindo para um discurso polifônico.

A seguir, apresentaremos três produções realizadas, ainda, pelos sujeitos-alunos,

sendo a primeira delas o recorte do sujeito-aluno L.N.R. Observamos que, em uma das

explicações, durante a coleta, a professora menciona que objetos também podem fazer

parte de uma fábula e o sujeito-aluno, então, sente-se autorizado a escolher como

personagem um videogame. Acreditamos que a troca do objeto pelo animal tenha

causado, para o sujeito-aluno, uma escolha necessária para a escrita e, por conseguinte

acredita ter elaborado uma fábula. Vejamos:

Fábula: Que coisa estranha!

Serto dia acordei e ouvi vozes, eram os aparelhos eletrônicos fui até a sala e meu

próprio vídeo game falou comigo, como ele era portátil eu o peguei e o levei para o

quarto, e lá nos conversamos:

- Oi, Luís (Video Game)

- Oi P&P (Eu)

- Porque você nunca flou comigo antes (eu)

- tenho vergonha (Video Game)

- Entendo, vamos jogar? (Eu)

- Claro (Video Game)

- Que jogo você quer jogar? (Eu)

Orlandi (2007) faz algumas considerações sobre a interpretação e a produção

de sentidos:

[...] a interpretação é uma injunção. Face a qualquer objeto

simbólico, o sujeito encontra a necessidade de ‘dar’ sentido. O que é

dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios de significância

(delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação.

(ORLANDI, 2007, p.64).

Levando em consideração os apontamentos da autora, podemos observar, na

produção desse sujeito-aluno, a significação para o objeto que vai lhe dando vida e

concatenando outros sentidos.

Outra consideração fundamental neste percurso de escrita apresentado são as

marcas da subjetividade que são postuladas no discurso do sujeito-aluno quando coloca:

“como ele era portátil eu o peguei e o levei”. Percebe-se que há a utilização da

materialidade da língua escrita para falar de si.

O sujeito-aluno igualmente garante a autoria com coesão e a coerência

textual, fazendo a retomada dos espaços e não se perdendo na deriva, quando discorre:

“levei para o quarto, e lá nós conversamos”. A utilização do advérbio de lugar “lá”

demonstra que o sujeito-aluno está totalmente situado no próprio texto e consegue

amarrar rapidamente as lacunas para que o leitor possa compreender a leitura. Essa

preocupação continua a transparecer ao longo do texto, ao apresentar, entre parênteses,

os personagens, que são apontados ora por “(videogame)”, ora por “(eu)”. Essa

preocupação em demarcar os falantes é uma marca expressiva de autoria.

A autoria se instala tão fortemente ao enunciar o título da fábula “Que coisa

estranha!” e ao fazer uma relação com a moral “As coisas acontecem quando menos se

espera” nos leva a pensar em como a posição discursiva do sujeito-aluno é marcada pela

liberdade de escrita que o fez acreditar nas próprias relações, relações estas coesas e

repletas de autenticidade, compreender que um fato estranho é algo inesperado e, que

“menos se espera” são formações imaginárias e discursivas que o levaram para assumir

esta construção. E, ainda, o modo como ele se inscreve no discurso, deixando de se

preocupar e de seguir a proposta dada pela professora, assumindo a responsabilidade do

dizer.

Pensando nessa relação ideológica, conferimos as relações de Orlandi (2011)

em “Autoria, Leitura e efeitos do trabalho simbólico”:

[...] não há sentido sem interpretação mas este processo de

constituição de sentido ( sua historicidade) não é transparente para o

sujeito. Ao contrário, é através de um processo imaginário que o

sentido se produz no sujeito na relação que interliga linguagem/

pensamento/ mundo. A interpretação, assim como a ideologia, é

igualmente necessária. (ORANDI, 2011, p.133)

Desse modo, a relação de escolha depende tão fortemente da relação ideológica

e da posição discursiva para constituir o próprio discurso.

Em outro recorte, um sujeito-aluno K, do 6º ano, escolhe o objeto (skate-SK8)

para compor o texto. Vejamos:

O SK8

Era uma vez uma menino que gostava de andar de SK8 e que um dia o SK8 ficou com

vida e eles foram na pista de SK8 ele caio e falou eu nunca mais vou andar de SK8 ele

falou vou começar andar mais melhor e eu ficou bem melhor e foi no torneio de SK8 e

foi ganhando e até que um dia ele perdeu e ficou triste e nunca mais andou de SK8 e o

menino falou se você meajudar eu volto andar de SK8 me ajuda por favor e o menino

chegou em casa e falou isso e mentira e o SK8 falou não e mentira e eu ficou amigo de

toda munde eu era famoso emgual uma estrela. Todo mundo conhecia eu e começou

ovir vozes e falou isso e doidisse e o SK8 flou não e doidera.

Moral: quen sempre anda de SK8 e começa ganhar toneio vira estrela.

Acreditamos que a escolha do objeto está muito relacionada com a faixa

etária em que se encontra o sujeito, pois, no município em que foi realizada a pesquisa,

especificamente os sujeitos do bairro têm fortemente constituído como cultura local

uma pista de skate. Mais uma vez, podemos notar a posição ideológica constituindo

sentidos quando o sujeito-aluno é autorizado a escrever com liberdade, no entanto, para

garantir que cumprirá o enunciado estabelecido pela professora, instala uma moral

coerente para o texto que acredita ser uma fábula. Orlandi (2011), em “Autoria, Leitura

e efeitos do trabalho simbólico”, faz considerações importantes sobre os gestos de

interpretação e analisa que:

O que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de

interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo

sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma

formulação que faz sentido. O modo como ele faz isso é que

caracteriza sua autoria. Como, naquilo que lhe faz sentido, ele faz

sentido. Como ele interpreta o que o interpreta. (Orlandi, 2011, p.97)

Ao olharmos para os próximos recortes, verificamos como a subjetividade se

instala logo no título que, em outra produção, também do 6ºano, o sujeito-aluno

L.F.D.S. procura dar o texto. Com a construção do título “O preconceito nunca leva a

nada”, o gesto de interpretação materializa-se no discurso escrito e procura deixar

evidente a liberdade que encontrou para expor, mesmo que de modo inconsciente,

deslocando os sentidos da sua subjetividade para um processo discursivo perpassado por

uma ideologia, intensamente, marcado em si e, logo em seguida, já anuncia a moral do

texto “Nunca juga ninguém pela aparência” que continua sendo amparada por este

envolvimento discursivo-ideológico. Não há preocupação em seguir alguma estrutura

formal para compor o texto, apenas em deixar evidente a marca da subjetividade que

tanto o afligia. Para nos instalarmos no campo da reflexão, pensamos sobre a posição

discursiva de Orlandi (2011), que aponta:

Se a noção de estrutura nos permite transpor o limiar do

conteudismo, ela não basta pois nos faz estacionar na ideia de

organização, de arranjo, de combinatória. É preciso uma outra

noção. Esta noção, a de materialidade, nos leva às fronteiras da

língua e nos faz chegar à consideração da ordem simbólica,

incluindo nela a história e a ideologia. (Orlandi, 2011, p.46)

Vejamos o recorte na íntegra:

Fábula: “O preconceito nunca leva a nada”

Moral: Nunca juga ninguém pela aparência

Um menino da Africa se mudou para o Brasil e comesou a estuda tinha um menino que

colocava muito apelido nas pessoas ai o menino entra na sala ai o menino que colocava

apelido em todo mundo falo

- Menino carvão

O menino ficou sentado na carteira deita e todos os di ele sua o menino

Um dia ele contou para os pais ai os pais ligo para escola para fala que tem um menino

da sala do filho dele que fica colocando apelido nos alunos ai a diretora falo com o

menino e os pais dele ai e virou amigo dele.

A partir da produção, podemos refletir que, imediatamente, no primeiro

parágrafo, o sujeito-aluno já situa o leitor de que “Um menino da África se mudou para

o Brasil” aqui, neste trecho, observamos como o mesmo não se sente pertencente ao

próprio contexto e precisa sustentar a sua história arraigada em outro contexto.

Essa produção mostra como o sujeito-aluno, no momento de prática escrita,

sentiu a necessidade de transpor uma história sem a regulação do modelo pronto

instituído pela escola, ainda que fosse exigido na coleta de dados da referida pesquisa.

A produção tem o efeito de denúncia suscitada na moral e mantida no corpo

do texto, quando denuncia uma prática ainda encontrada nas instituições de ensino, o

bullying, ao dizer que o menino que veio da África era chamado de “Menino carvão”.

Muitas vezes, achamos que falamos do texto pelo texto (coesão, coerência, tema,

figura), enquanto que nossas formações imaginárias nos levam, mesmo que de modo

inconsciente, a promover a reflexão e o posicionamento discursivo.

Lembramos sempre que a fábula é um gênero discursivo que não

necessariamente deveria ter como leitura a redução e a fragmentação dentro das

escolas, colocando-as apenas para as séries iniciais do Ensino Fundamental, pois elas

promovem uma leitura para o despertar da consciência crítica, para o debate e para

pensar na questão humana a partir de muitos elementos que estão perpassados pela

ideologia e pelas formações imaginárias.

Considerando esse o caminho para a leitura das fábulas, trazemos as

considerações de Romão e Pacífico (2006):

A nosso ver, o trabalho com a fábula é de grande relevância na sala

de aula, principalmente, quando a concepção de leitura ultrapassa a

visão reducionista de repetição do sentido literal do texto.

Defendemos isso, pois a fábula é muito mais do que histórias sobre

animais e deve ser lida e interpretada considerando-se a denúncia

sócio-histórica que nela se encerra. (ROMÃO; PACÍFICO, 2006,

p.39)

Baseados nas produções textuais dos alunos, podemos compreender, com base

no referencial teórico da Análise do Discurso de Matriz Francesa Peuxchetiana e nos

estudos sobre os Gêneros Discursivos, que, nesta pesquisa, também se pôde construir o

movimento “pendular” tão bem organizado por Petri (2013) em seus estudos, quando

argumenta que “[...]‘Pêndulo’, porque temos que entender também as especificidades

desse movimento e porque ele é tão significativo quando se trata de analisar o discurso,

desconstruir conceitos e produzir deslocamentos de sentidos [...]” (PETRI, 2013, p.41).

É pensando nesse movimento que a agregação, o deslocamento e o

desprendimento de sentidos acontecem e vão atribuindo uma nova roupagem para os

sentidos produzidos pelos alunos em suas produções. Nesse processo, a escola deve se

atentar em olhar e em acompanhar o movimento pendular, pois ele acontece dentro das

escolas e, principalmente, na sala de aula, deixando o discurso já instituído ter a

oportunidade de produzir novos significados e, consequentemente, ressignificar-se.

E, ao ressignificar-se, a fábula traz momentos de novas formações imaginárias e

novos posicionamentos discursivos, autorizando os sujeitos-alunos a se encontrarem no

contexto social e cultural e, por isso, assumirem a posição autor. Assim, vejamos uma

consideração de Romão; Pacífico (2006) sobre este posicionamento de autoria:

A leitura da fábula pode estimular a discussão (portanto, permite que o

discurso polêmico se instale) acerca do relacionamento social, ou seja,

faculta a realização de uma leitura polissêmica e, sendo assim,

apresenta várias possibilidades de leitura. Diante disso, julgamos que

os leitores podem usufruir a interpretação da fábula para contestar

determinada situação que esteja fora da ordem. (ROMÃO;

PACÍFICO, 2006, p.40).

Ainda, observamos que quinze produções, realizadas pelos alunos do 6º ano, têm

traços característico de contos de fada, com elementos significativos como: “Era uma

vez” e “viveram felizes para sempre”, e não de fábulas. Observemos o recorte do

sujeito-aluno: K.V.O:

Fábula: A pata e o Pato

Em um dia belo, um casal de patos estava nadando... E, então um dia eles se casaram-

se e viveram felizes para sempre.

Isso, a nosso ver, comprova que o ensino dos gêneros discursivos, no caso da

pesquisa, a fábula, fica reduzido a leituras conteudistas e estruturais, como se essa

prática garantisse o aprendizado de cada um.

Considerações Finais

Quando trabalhamos com produções de textos, podemos ter em mãos discursos

que deixam traços da subjetividade do autor. As pistas de subjetividade são indícios

muito significativos da posição discursiva que o sujeito-aluno ocupa, e também

indiciam os traços da ideologia que circulam nos discursos e fazem parecer natural que

os sujeitos escrevam de um modo e não de outro.

As análises apontaram que as condições de produção afetam sobremaneira a

constituição dos sujeitos e dos sentidos. Se o sentido para a escrita é determinado, a

tendência é de que o aluno se mantenha na paráfrase; se há espaço de discussão e

debate, se múltiplos sentidos são permitidos, a possibilidade que o sujeito se identifique

com uns e não com outros é maior, vigorando a polissemia, embora esse movimento

tenha sido pouco observado, no momento das análises.

Essa pesquisa apresentou a análise dos dados e, por meio deles, podemos dizer

que observamos um movimento de retorno aos modelos valorizados pela instituição

escolar, configurando o que Orlandi (1996) chama de circularidade do discurso

pedagógico; por outro lado, observamos que a liberdade da escrita impulsiona o sujeito-

aluno a se identificar com determinados sentidos e, consequentemente, produzir

discursos os quais nem sempre seguem tais modelos legitimados e institucionalizados.

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