o Trauma Lacaniano

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psychanalise and trauma

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  • 3 A teoria lacaniana do trauma

    O objetivo dessa parte do trabalho retomar a noo de trauma tal como

    ela apresentada principalmente nos Escritos e seminrios, para com isso

    conseguir sustentar a idia de Lacan, segundo a qual o verdadeiro trauma do

    sujeito60 a existncia da linguagem, a dependncia do sujeito ao significante.

    Quer dizer, o trauma por excelncia, na obra de Lacan, a entrada no meio

    significante. Ele deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito se

    constitui, no sendo, desse modo, um mero acidente que ocorre na vida do

    falante.

    3.1 A clnica do significante e a questo do trauma

    Entre 1952 e 1963, Lacan se dedica a estudar um conceito, uma ou duas

    obras de Freud a cada ano. Tomando a forma de seminrios sobre textos

    freudianos, suas aulas voltam-se idia de trauma tal como era situado na

    origem das neuroses por Freud, o que acabou ajudando Lacan a repensar a

    determinao do sujeito.

    No entanto, principalmente no Seminrio 11 de 1964, que, ao voltar ao

    tema do trauma, Lacan afirma que acaso, acidente e contingncia devem ser

    dissociados das noes de imprevisibilidade e irracionalidade. Para justificar sua

    posio, retoma uma das categorizaes aristotlicas61, segundo a qual o

    trauma no acidental. A partir da leitura do texto freudiano Alm do princpio do

    prazer (Freud, 1920), Lacan (1964) vai diferenciar dois modos de repetio: tiqu e autmaton. O primeiro refere-se repetio enquanto encontro com o Real,

    Real que est para alm do autmaton, do retorno, isto , da volta comandada

    pelo princpio do prazer. Na origem da psicanlise, com a concepo de trauma,

    inscreve-se a tiqu como princpio, isto , o Real apresentado na forma do que

    60 O sujeito em foco o sujeito do inconsciente, constitudo pelo par significante, sendo o intervalo

    deles; logo, no deve ser confundido com indivduo, que tem seu fundamento real no corpo. 61 De acordo com Aristteles, o essencial se ope ao acidental. A causa essencial faz com que

    uma coisa seja o que , diferentemente das demais; j a acidental indica infinitas possibilidades do que pode vir a ocorrer.

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    nele h de inassimilvel na forma do trauma (Lacan, 1990 [1964], p. 57).

    Trauma e Real se associam, no discurso lacaniano; o Real o que volta sempre

    ao mesmo lugar, sendo distinto da idia de realidade.

    3.1.1 O trauma e o s depois

    De acordo com Lacan, na obra freudiana o trauma se relaciona com a

    entrada no Simblico. Para acompanhar esta questo, irei agora abordar Lacan

    em seus primeiros seminrios, com o propsito de elucidar o que ele quis dizer

    com isso. Comearei a discorrer sobre a noo de trauma em Lacan a partir da

    leitura que esse autor fez da Histria de uma neurose infantil (Freud, 1918

    [1914]), encontrada primeiro no seminrio O homem dos lobos (Lacan, 1952a) e,

    um ano depois, no seminrio Os escritos tcnicos de Freud (Lacan, 1953-1954).

    No primeiro seminrio, de 1952, Lacan considera que o Homem dos Lobos um

    personagem desincludo da sociedade: muito precocemente, este homem foi

    separado de tudo o que podia constituir para ele um modelo, no plano social.

    Toda a continuao de sua histria a histria de uma neurose infantil, como

    ficou conhecida a partir de Freud deve estar situada nesse contexto.

    Na releitura do caso do Homem dos Lobos, Lacan (1952a) focaliza o

    trauma estrutural da cena primria. Enfatiza, nessa fase, a importncia da idia

    de s depois, e que significa que o acontecimento primeiro como tal no foi

    traumtico, assim como no recupervel posteriormente. Para ele, Freud no

    pde jamais obter a reminiscncia propriamente dita da realidade, no passado,

    da cena ao redor da qual girou toda a anlise do sujeito. De certo modo, o

    tratamento do Homem dos Lobos foi influenciado pela investigao freudiana a

    propsito da existncia ou no das tais cenas primitivas. H algo para alm da

    realidade do acontecimento: a historicidade do acontecimento, quer dizer, algo

    flexvel e decisivo que foi uma impresso no sujeito e que o dominou, sendo

    necessria para explicar a continuao de seu comportamento. isto o que d a

    importncia essencial da discusso de Freud ao redor do acontecimento

    traumtico inicial, na opinio de Lacan. No necessrio que a criana tenha

    visto a cena sexual em si, mas que direta ou indiretamente tenha concludo que

    essa cena verdadeiramente ocorreu, e neste caso a cena foi construda, muito

    indiretamente, graas ao sonho dos lobos. Freud quem ensina o sujeito a ler

    seu sonho: os lobos no se mexem, apenas olham, e tm as mais graciosas

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    caudas; o sujeito que olha uma cena particularmente agitada62; tem medo de

    ser comido (leia-se, castrado) pelos lobos. Este o sonho que leva cena

    reconstruda em anlise a cena da relao sexual dos pais e que em seguida

    assumida pelo sujeito. Por outro lado, este acontecimento traumtico permite

    compreender tudo o que acontece depois, assim como tudo o que assumido

    pelo sujeito: sua histria.

    nesse contexto que Lacan discute o caso do Homem dos Lobos em

    1952, criticando a postura freudiana frente ao tratamento: Freud estabeleceu

    uma relao paternal com seu cliente; colocou-se num lugar de senhor a quem o

    Homem dos Lobos demandava por socorro e este prestgio pessoal tendia a

    abolir entre ele e o paciente certo tipo de transferncia. Assim, Freud estava

    identificado demais a um pai protetor para poder ser eficaz em suas

    interpretaes: emprestava-lhe inclusive dinheiro.

    Lacan se interessa pelo Homem dos Lobos justamente na medida em

    que a observao freudiana sobre o caso centrou-se na existncia (ou na no

    existncia) de acontecimentos traumticos na primeira infncia. Desde o comeo

    das investigaes sobre a histeria Freud se surpreende com o grande nmero de

    casos de abuso sexual. Mesmo quando valoriza a fantasia, apresentando a idia

    de realidade psquica, Freud no invalida a realidade de acontecimentos

    traumticos infantis. O que ele ressalta que os eventos traumticos construdos

    esto sempre articulados s fantasias.

    Na neurotica freudiana, um acontecimento patognico e traumtico era

    considerado como causa do sintoma (Freud, at 1897). A colocao em palavras

    de um episdio traumtico pelo cliente era o que determinava a eliminao do

    sintoma. Assim, o relevo dado objetividade do trauma sexual faz do sintoma

    neurtico o resultado de um acidente na histria, o que inocenta o sujeito.

    Quando Freud acentua a causalidade traumtica, o sujeito considerado vtima.

    Lacan mostra que, embora tenha buscado datar a cena primria no caso

    do Homem dos Lobos, Freud admitiu, sem mais aquela, tantas reestruturaes

    da significao dos acontecimentos quantas lhe parecessem necessrias para

    explicar posteriormente seus efeitos. Tal como Freud (1950 [1895]; 1918 [1914])

    j havia feito, Lacan insiste em considerar uma temporalidade prpria do

    psquico, valendo-se para isso da traduo francesa do termo freudiano

    62 O que seria, ento, se o outro fator enfatizado pelo paciente fosse tambm distorcido por meio

    de uma transposio ou inverso? Nesse caso, em vez de imobilidade (os lobos no tinham movimento; olhavam para ele, mas no se mexiam) o significado teria que ser: o mais violento movimento. Ou seja, ele acordou de repente e viu sua frente uma cena de movimento violento, para a qual olhou tensa e atentamente. (Freud, 1976 [1918 [1914] ], p. 52).

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    nachtrglich por aprs-coup, ou, em portugus, por s depois: s depois a

    situao adquire contornos traumticos; o valor traumtico se d quando um

    acontecimento atual se enlaa ao anterior, resignificando-o.

    No Seminrio 1, intitulado Os escritos tcnicos de Freud, Lacan (1953-

    1954) mais uma vez analisa as intervenes freudianas do caso clnico do

    Homem dos Lobos para, a partir dele, esclarecer o que entende ser uma questo

    central nesse escrito freudiano: o trauma. Segundo ele, Freud:

    (...) se apercebe de que o trauma uma noo extremamente ambgua, porque parece, segundo toda evidncia clnica, que sua face fantasmtica infinitamente mais importante do que sua face de evento. Desde ento, o evento passa para o segundo plano na ordem das referncias subjetivas. Em compensao, datar o trauma continua a ser para ele um problema que convm conservar (...).

    (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 46)

    Como Freud, Lacan refora, no Seminrio 1, que o passado deve ser em

    certa medida restitudo: o que foi originalmente recalcado deve ser reevocado

    durante o tratamento analtico, apesar de nesse processo surgirem problemas e

    ambiguidades que o recalcado levanta quanto sua natureza, funo e

    definio.

    Como mostrou Freud, para que o recalque seja possvel, preciso que

    haja um primeiro ncleo do recalcado, que, embora aparente no existir,

    permanece em alguma parte e chama para si todos os recalques posteriores. Na

    interpretao de Lacan, o recalque originrio exatamente o momento em que o

    simblico se estabelece, deixando de fora muita coisa, inclusive uma relao

    mais imediata com o corpo.

    As formas que toma o recalque so atradas por esse

    primeiro ncleo, que Freud atribui ento a uma certa experincia, a que chama a experincia original do trauma. Retomaremos mais tarde a questo do que quer dizer trauma, cuja noo deve ter sido relativizada, mas retenham que o ncleo primitivo de um nvel diferente dos avatares do recalque. o fundo e o suporte deles.

    (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 56)

    Naquilo que acontece com o Homem dos Lobos, o recalque um

    momento importante e diferenciado dos demais: est ligado experincia de ter

    assistido a uma relao sexual dos pais. Algo ali est excludo da histria do

    sujeito, sendo necessrio um analista para dar sentido experincia original

    traumtica: (...) foi preciso, para dar cabo disso, o acosso de Freud. somente

    ento que a experincia repetida do sonho infantil [o sonho dos lobos] tomou

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    algum sentido, e permitiu no o revivido, mas a reconstruo direta da prpria

    histria do sujeito (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 57).

    Da maneira como Lacan analisa esse caso clnico, fica explcito que o

    Homem dos Lobos foi de grande importncia para a psicanlise, na medida em

    que suscitou questes tericas quanto funo do trauma estrutural e quanto

    questo da temporalidade, do s depois , embora esse s depois j estivesse

    em cena desde a primeira concepo de trauma na teoria freudiana, antes de

    1897. A cena primria reconstituda no curso da anlise, a partir dos efeitos do

    trauma sobre o sujeito naquele momento do tratamento.

    A cena adquire valor traumtico para o sujeito entre a

    idade de 3 anos e 3 meses e 4 anos. Temos a data precisa porque o sujeito nasceu, coincidncia decisiva alis na sua histria, no dia de Natal. na espera dos eventos de Natal, sempre acompanhados para ele, como para todas as crianas, da entrega de presentes que devem vir de um ser que desce, que ele tem, pela primeira vez, o sonho de angstia que o piv dessa observao. (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 220)

    Todavia, a cena da relao sexual dos pais nunca pde ser diretamente

    evocada ou rememorada, podendo inclusive, de acordo com Freud, nem ter

    verdadeiramente acontecido. Freud levanta a possibilidade de que o Homem dos

    Lobos tenha assistido a um coito ocorrido entre ces e concludo que era aquilo

    que os pais faziam. Dessa forma, o que o sonho com os lobos assinala a

    primeira manifestao traumtica para o paciente. O trauma, por conseguinte,

    intervm s depois.

    Segundo a leitura de Lacan, na aproximao dos elementos

    traumticos, fundados numa imagem desintegrada sobre a qual o sujeito no

    tem controle, que se produzem os lapsos na sntese da histria do falante. As

    irrupes do inconsciente e os sintomas so descontinuidades na vida psquica,

    imputveis ao retorno do recalcado. Correspondem ao que Freud chamou de

    descontinuidades na cadeia motivacional consciente do sujeito. Ele considera

    que quando a motivao consciente no justifica algo, deve-se buscar um motivo

    inconsciente. Dito de outra forma, o obsessivo no pode inserir sua obsesso de

    lavar as mos em qualquer narrativa que d de si mesmo.

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    3.1.2 O desejo do Outro como traumtico

    Em 1957, Lacan fala sobre os processos inconscientes que os sonhos

    normais (no os sonhos traumticos) desvelam em suas articulaes lgicas e

    metafricas. Segundo ele, na anlise do sonho, Freud esclarece as leis do

    inconsciente e mostra que o trabalho do sonho segue leis simblicas ou, como

    Lacan diria, as leis do significante: entre o significante enigmtico do trauma

    sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a

    centelha que fixa num sintoma (...) a significao, inacessvel ao sujeito

    consciente onde ele pode se resolver (Lacan, 1998 [1957b], p. 522). Com essas

    palavras, Lacan aproxima o trauma sexual ao incognoscvel o recalcado

    originrio reforando, pois, a virulncia do trauma enquanto estrutural. J o

    sintoma do qual ele fala, e cujo processo de constituio chama de metafrico,

    est em Freud referido transferncia de uma carga energtica pulsional de um

    trao incognoscvel para um smbolo, que tanto representa o que foi suprimido

    como o mantm afastado. Ento, na cadeia significante, o sintoma uma

    intruso que vai revelar uma segunda cadeia associativa originria do recalcado,

    assim como se d no ato falho ou no sonho. Embora seja significante, esse

    elemento metafrico pode surgir tambm no corpo, tal como ocorreu com Dora,

    que mancava quando desejava dar um mau passo (Freud, 1905 [1901]).

    Ao articular os processos inconscientes com os mecanismos da

    linguagem, Lacan (1957-1958) destaca que impossvel estabelecer uma

    distino vlida entre as fantasias inconscientes e o funcionamento da

    imaginao, se a fantasia inconsciente no for considerada desde sempre

    dominada e estruturada pelas condies do significante. Para ele, desde sempre

    os objetos esto significantizados (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 263) e por

    isso que o leite e o seio se transformam em substitutos para a criana, tais como

    o esperma e o pnis. Nesse contexto, a me ou quem ocupa a funo materna

    na relao com o beb surge como o primeiro objeto simbolizado para o

    sujeito, fazendo dele no apenas uma criana satisfeita ou insatisfeita, mas uma

    criana desejada ou no desejada. Como o prprio Lacan sustenta em 1957/58,

    a idia de ser desejado , portanto, essencial, visto que a expresso criana

    desejada corresponde tanto constituio da me como sede do desejo quanto

    dialtica da relao do filho com o desejo da me, que se concentra no

    smbolo da criana desejada.

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    Para exemplificar o que acontece quando algo falha nessa relao me-

    beb, recordo o caso do jovem Andr Gide, cuja me

    (...) tinha altssimas e notabilssimas qualidades e um no-sei-qu de totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida feminina, que, na presena dela, certamente deixava o menino, no momento de seus primeiros anos de vida, numa posio no situada. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269)

    Segundo Lacan, Gide s gozava na identificao com situaes

    catastrficas. Sua vida s toma sentido a partir de uma poca especfica da

    adolescncia, quando se identifica a uma jovem prima.

    Identificao (...). Trata-se do momento em que ele

    encontra a prima aos prantos no segundo andar da casa para onde se precipitara, no tanto atrado por ela, mas sim por seu faro, por seu amor clandestinidade que grassava naquela casa. depois de haver atravessado o primeiro andar, onde se encontra a me da prima sua tia, a quem ele mais ou menos entrev nos braos de um amante , que ele encontra a prima aos prantos e, nisso, encontra um auge de embriaguez, entusiasmo, amor, desamparo e devoo. A partir da, ele se dedica a proteger essa criana, como nos dir mais tarde.

    (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269) Mas Gide nessa poca no se identifica s com a prima como tambm

    com a me da citada prima, que anteriormente j havia tentado seduzi-lo. Com

    efeito, no momento em que a tia o seduz, que Gide, pela primeira vez, se

    transforma no filho desejado, embora fuja horrorizado da cena:

    (...) nada viera introduzir o elemento de aproximao e mediao que teria feito daquilo outra coisa que no um trauma. No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na posio da criana desejada. Essa situao nova, que sob certo aspecto seria salvadora para ele, iria fix-lo, no entanto, numa posio profundamente dividida, em razo da maneira atpica, tardia e, repito, sem mediao como se produziu esse encontro. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 270)

    Dessa maneira, Gide toma na cena de seduo um lugar diferente do at

    ento ocupado. Onde havia vazio, passou a haver um lugar de criana desejada,

    porm nada mais que isso. No podendo aceitar o desejo do qual foi objeto,

    Gide se recusa a permanecer nesse lugar, mas seu eu passa a se identificar

    para sempre, mesmo sem o saber, com o sujeito do desejo do qual ele se tornou

    dependente: Gide apaixonou-se para sempre, at o fim da vida, por aquele

    menininho que ele fora por um instante nos braos da tia, dessa tia que lhe

    afagara o pescoo, os ombros e o peito. Sua vida inteira resumiu-se nisso

    (ibidem, p. 270). Como mais tarde Lacan desenvolveu extensivamente em seu

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    seminrio sobre a angstia, o desejo do Outro sempre traumtico (Lacan,

    1962-1963). Assim, o que Gide guardou do trauma ao longo da vida? Na

    verdade, a partir desse momento e at seus ltimos dias, Gide se apaixonou

    pelo menino acariciado que ele no quis ser. Por isso, j em sua viagem de

    npcias (...), ele pensava nas suplicantes delcias (...) de acariciar os braos e os

    ombros dos rapazinhos que encontrava no trem (Lacan, 1999 [1957-1958], p.

    270), mostrando assim o ponto privilegiado de toda a fixao de seu desejo.

    3.1.2.1 A separao da me traumtica63

    Diferente do desejo do Outro como traumtico (exemplificado atravs do

    caso Gide), h uma outra idia de trauma, tambm ligada tenra infncia e

    separao me-beb. Ao contrrio do que Rank (1924) havia defendido anos

    antes, na perspectiva lacaniana o trauma do nascimento no sinnimo de

    separao da me nem pode ser explicado a partir da angstia do desmame. De

    acordo com Lacan (1962-1963), o momento mais decisivo na angstia do

    desmame no propriamente o momento em que o seio falta s necessidades

    do beb, mas sim aquele em que a criana cede64 o seio, como se ele tivesse

    sido parte dela mesma. Durante a amamentao, o seio faz parte da criana que

    est sendo amamentada, e encontra-se chapado na me. neste sentido que,

    para Lacan, a criana no desmamada pela me: ela se desmama.

    na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que

    se produz o momento de surpresa mais primitivo, s vezes apreensvel na expresso do recm-nascido, na qual passa pela primeira vez o reflexo relacionado com esse rgo que muito mais que um objeto, que o prprio sujeito de algo que serve de suporte, de raiz para o que, num outro registro, foi chamado de desamparo. (Lacan, 2005 [1962-1963], p. 340)

    O beb brinca de largar o seio e novamente peg-lo. Nessa medida, o

    seio , para a criana, um sinal de que existe um vnculo com a me ou, como

    assinala Lacan, de que existe um vnculo com o Outro: O seio no o Outro,

    no o vnculo a ser rompido com o Outro, mas , no mximo, o primeiro sinal

    desse vnculo (ibidem, p. 355-356). O que o sujeito tem para oferecer ao Outro

    63 Embora Lacan no enfatize tanto este assunto quanto o fez Freud, trataremos aqui um pouco do

    que Lacan pde elaborar sobre o assunto. 64 Em Lacan (1962-1963), cesso do objeto sinnimo do aparecimento de objetos cedveis que

    podem ser equivalentes aos objetos naturais, como, por exemplo, a mamadeira.

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    o que ele . Em outras palavras, o seio com o qual ele brinca, tentando se

    diferenciar, , assim, ele mesmo.

    3.1.3 Entre o sonho e o despertar: uma realidade faltosa

    Se o despertar absoluto impossvel, momentos de despertar, pontuais, no so aquilo que a experincia psicanaltica possibilita? (Jorge, 2005, s.p.)

    O Seminrio 11 se caracteriza por ser aquele em que Lacan (1964), alm

    de confirmar que o inconsciente estruturado como uma linguagem, chama a

    ateno para a realidade do inconsciente, enquanto uma realidade ambgua e

    ilusria. Afirma que a realidade do inconsciente a realidade sexual e ainda

    sustenta que a realidade sexual uma questo de relao entre sexualidade

    humana e a combinatria de significantes.

    Na seo intitulada O inconsciente e a repetio do Seminrio 11, Lacan

    (1964) aproxima a transferncia realidade do inconsciente. Liga tambm a

    repetio ao Real, como aquilo que no engana. Para Lacan, o inconsciente

    estruturado como uma linguagem est em vias de realizao, no est acabado,

    e se manifesta de modo to elaborado quanto o nvel consciente, sempre como

    o que vacila num corte do sujeito. Ele pode ser entendido a partir de pelo menos

    duas perspectivas: uma primeira, em que o inconsciente apresentado na teoria

    lacaniana como tropeo significante, desvinculando-o da idia de um depsito de

    memrias inconscientes. Ou seja, pela atribuio de um sentido falha

    discursiva que o sujeito constitui o inconsciente, cuja articulao significativa

    construda no momento de sua enunciao, por meio da suposio de sentido

    construda sobre a equivocidade significante. No se trata, pois, de um

    significado j dado e oculto conscincia do paciente. H, por sua vez, uma

    outra perspectiva, a pulsional, segundo a qual o inconsciente deve ser

    apreendido como repetio. Afirmar isto, por sinal, completamente diferente de

    enfatiz-lo enquanto resistncia. A tese que Lacan desenvolve nesse livro

    [Seminrio 11] que o inconsciente no resiste tanto quanto repete (Miller,

    1997, p. 23). Assim, o sujeito repete na medida em que no alcana seu

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    objetivo; satisfaz algo, mas no o que deveria ter sido. O que importa, alis, no

    a repetio em si, mas o que atingido.

    A repetio est sempre ligada a um objeto perdido: ela

    uma tentativa de reencontr-lo e no entanto, ao fazer isso, perd-lo. (...) este objeto perdido (...) ilustrado, na teoria analtica, pela me como o objeto primrio fundamental que, mediante a operao do Nome-do-Pai, para sempre proibida e perdida. Lacan diz que a me aquela Ding fundamental, a coisa sempre perdida e que a repetio tenta recuperar, perdendo sempre. (Miller, 1997, p. 27)

    Para dar conta disso, Lacan desenvolve o conceito de Real como algo

    que retorna sempre ao mesmo lugar para o sujeito o retorno ou a insistncia

    dos signos , mas que o sujeito no encontra. O Real est, deste modo, ligado a

    um engano e a um encontro impossvel; e a repetio vista sob o prisma do

    fracasso, no do sucesso. De certo modo, a repetio que um dos quatro

    conceitos fundamentais da psicanlise, numa leitura lacaniana parece ter sido

    mal nomeada, pois consiste no retorno do que nunca o mesmo. Implica,

    conforme Lacan (1964), no retorno de uma coisa que diferente da segunda

    vez, e que s tomada como repetio por causa do significante. Mas o que h

    por trs dela j a pulso que no encontra mas que nisso se satisfaz.

    Em um tratamento analtico (pelo menos nos que pretendem ser bem

    sucedidos), h uma tendncia a tornar o analisando cada vez mais ciente de

    suas repetitivas escolhas de objetos, relaes e situaes... serializando-as.

    Contudo, para Lacan, a repetio envolve algo que est excludo da cadeia

    significante algo de que o sujeito no ir lembrar, mesmo que se esforce para

    isso , mas em torno do qual a cadeia de significantes gira. Isto quer dizer que a

    repetio envolve tanto o impossvel de pensar quanto o impossvel de

    dizer.65

    H uma outra perspectiva para se compreender o conceito de

    inconsciente, articulado pulso, que no s o fracasso. O sujeito, de algum

    modo e em algum nvel, sempre obtm satisfao: mesmo que atravs de uma

    aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito obtm satisfao. Mesmo que

    tentemos ir alm do princpio do prazer, esse alm marca algo que um alm do

    princpio do prazer de ordem interna (Miller, 1997, p. 25). Desta maneira, se o

    objeto da pulso pode ser isto ou aquilo o objeto em si no importa, pode-se

    t-lo ou no , no entanto, o que satisfeito no circuito pulsional permanece o

    65 Este o recalcado originrio, segundo Lacan.

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    mesmo. Quer dizer, Mesmo que no se alcance o alvo, realiza-se o objetivo

    (...) (Miller, 1997, p. 25). Logo, o sujeito sempre obtm alguma satisfao.

    De acordo com Miller, preciso ainda distinguir a realidade, que

    estruturada pela fantasia, daquilo que se refere ao que satisfeito pelo princpio

    do prazer: alguma coisa que no muda, que requer todo o nosso sonho e nossa

    viglia, mas que , ainda assim, prazer. (ibidem, p. 25). Quanto ao desejo, que

    no deve ser entendido como sinnimo de prazer, a experincia analtica permite

    que se enuncie que tem funo limitada, franqueada pelo limiar imposto pelo

    princpio do prazer: o prazer o que limita o porte do quinho humano o

    princpio do prazer o princpio de homeostase (Lacan, 1990 [1964], p. 35).

    Para completar, importante lembrar que, j no ensaio Alm do princpio do

    prazer, Freud (1920) tomou a repetio como alm do princpio do prazer e

    tambm da realidade, ambos preocupados com a homeostase.

    3.1.4 A compulso repetio: uma forma de recordar

    As relaes do trauma com a compulso repetio, to bem ilustradas

    nos casos de neuroses traumticas, so elucidadas por Lacan nas aulas VI e VII

    do Seminrio 2. Nelas, Lacan (12/01 e 19/01/1955) discute os conceitos que so

    encontrados no texto freudiano Alm do princpio do prazer, de 1920: princpios

    do prazer e de realidade, e compulso repetio. Para Lacan, a inspirao

    freudiana para conceber o princpio do prazer partiu da idia mdico-cientfica do

    sistema nervoso, segundo a qual esse sistema sempre visa a restabelecer seu

    ponto de equilbrio. No entanto, essa teoria seria oposta da intuio subjetiva,

    pois, para Freud, no princpio do prazer, o prazer, por definio, tende a cessar.

    Por outro lado, cabe ao princpio de realidade resguardar prazeres, aqueles cuja

    aspirao justamente atingir o fim. O princpio de realidade no se ope ao

    princpio do prazer, mas apenas uma diferenciao sua, um dispositivo mais

    adequado a obter o prazer. Diz Lacan que foi introduzido porque, quando se

    busca o prazer, acontecem acidentes. Freud diria: para que isso no acontea

    preciso levar em conta a realidade. Neste sentido, os princpios do prazer e de

    realidade adquirem outro valor, na medida em que, longe de serem opostos, eles

    so complementares.

    em oposio ao par princpio do prazer e de realidade que Freud

    localiza a compulso repetio. Lacan (1954-1955) ressalta que nela existem

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  • 130

    duas tendncias que se entrelaam uma restitutiva e outra repetitiva e que,

    aps a manifestao da tendncia restitutiva, resta algo que repetitivo.

    Assinala que, segundo a hiptese freudiana do princpio do prazer, o conjunto do

    sistema deve sempre retornar ao estado inicial, operando de forma

    homeosttica; mas a compulso repetio, por sua vez, desrespeita essa

    homeostase e, por isso, considerada como algo que fica alm do princpio do

    prazer. Segundo Lacan, foi justamente por haver uma incongruncia,

    representada pelos aspectos da compulso repetio que desmentem ou

    desalojam o princpio do prazer e se articulam ao trauma, que Freud formulou

    dois novos conceitos na dcada de 1920: a idia de um Alm do princpio do

    prazer e o conceito de pulso de morte. Alm disso, existem pontuaes nesse

    mesmo ensaio freudiano de 1920 de que nem os sonhos traumticos nem a

    repetio nas neuroses traumticas obedecem ao princpio do prazer. Para

    todos os efeitos, o que se repete sempre algo que acontece quase que por

    acidente.

    Lacan tenta dar um passo a mais no que concerne s suas explicaes

    sobre a distncia a cobrir entre o retorno de significantes e a funo da

    compulso repetio na aula de 13/12/1961 do Seminrio 9. Pois, como Lacan

    afirma, compulso repetio diz respeito exatamente a um ciclo (Lacan,

    1961-1962, s.p.)66 de comportamento determinado e no um outro que

    equivale a certo significante que se repete, pouco importando que ele seja

    exatamente o mesmo ou que apresente pequenas diferenas. Este ciclo pode

    ser concebido, de acordo com Lacan, sobre o modelo da necessidade de

    satisfao. O que se repete est l, no apenas para preencher a funo de

    representar uma coisa que estaria ali atualizada, mas para presentificar como tal

    o significante que esta ao se tornou.

    Na opinio de Lacan, a compulso repetio porta um paradoxo: 1) ela

    faz surgir um ciclo de comportamento que se inscreve nos termos semelhantes a

    uma resoluo de tenso do binmio necessidade-satisfao, recalcando um

    significante; contudo, 2) qualquer que seja a funo interessada nesse ciclo no

    errado dizer que o que ela quer dizer enquanto compulso repetio que

    ela est ali tambm para fazer surgir, para trazer de volta, para fazer insistir

    alguma coisa que essencialmente da ordem de um significante (Lacan, 1961-

    1962, s.p.).67

    66 Cf. a aula de 13/12/1961. 67 Cf. as aulas de 13/12 e 20/12/1961.

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  • 131

    De acordo com uma primeira verso terica68, para Freud, a compulso

    repetio, no justificada do ponto de vista do princpio do prazer, tem por

    funo dominar o acontecimento. Em outras palavras, o constante retorno de

    eventos com valor de trauma teria exatamente a funo de tentar domin-lo e

    integr-lo na organizao simblica do sujeito, atendendo finalidade de sempre

    submeter ao princpio do prazer. Para Freud, a repetio , ento,

    consequncia do trauma, uma tentativa intil de anul-lo e tambm uma forma

    de lidar com ele, levando o sujeito a um outro registro, diferente do princpio do

    prazer (...) (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 235). Esse foi, na

    opinio de Lacan, um dos motivos pelos quais Freud recuou frente idia de

    que o psiquismo regido apenas pelo princpio do prazer e logo props um Alm

    do princpio do prazer. Em Da rede dos significantes, Lacan (1964) discute novamente a funo

    da repetio e, para tanto, resgata dois textos freudianos: Recordar, repetir e

    elaborar (Freud, 1914a) e o quinto captulo de Alm do princpio do prazer

    (Freud, 1920). Mas por que estes trabalhos so, para Lacan, essenciais para

    sustentar tal discusso?

    Embora s tenha desenvolvido todas as suas implicaes tericas em

    1920, foi em Recordar, repetir e elaborar que Freud (1914a) comeou a

    conceituar compulso repetio como um objeto autnomo de sua reflexo

    (Roudinesco & Plon, 1998, p. 657).69 Interessado por questes relacionadas

    tcnica, em Recordar, repetir e elaborar, Freud aproxima a compulso

    repetio da transferncia, mesmo no constituindo a totalidade da

    transferncia: a grosso modo, ela uma maneira prpria do analisando se

    lembrar. Como Freud diz, logo no incio do tratamento analtico, aps ser

    explicada a regra fundamental da psicanlise ao paciente, ou seja, a associao

    livre, o analista espera escutar tudo o que vem mente do paciente. Entretanto,

    segundo Freud (1914a), o que se observa a partir disso totalmente diferente: o

    paciente fica silencioso, declarando que nada tem a relatar. O que assim se

    evidencia uma resistncia contra recordar algo. Assim, o paciente comea seu

    tratamento por uma repetio deste tipo, quer dizer, por uma compulso

    repetio ele repete ao invs de recordar, e repete sob o efeito de resistncias. 68 Mais tarde, numa outra verso, Freud radicalizou a noo de trauma e, nessa perspectiva, a

    compulso repetio a prpria marca do trauma original e que Freud coloca no sintoma, como sendo o mais prprio do sujeito e que nunca muda.

    69 As idias de repetio e compulso, na teoria freudiana, aparecem todavia em textos bem anteriores ao de 1914. J na dcada de 1890, Freud frisou a importncia da repetio na abordagem de casos de histeria (Freud, 1893a) e empregou o termo de compulso numa carta a Fliess (07/02/1894), onde discutia suas dificuldades em ligar a neurose obsessiva sexualidade (cf. Roudinesco & Plon, 1998, p. 656-657).

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  • 132

    (...) o paciente submete-se compulso repetio, que agora substitui o impulso de recordar, no apenas em sua atitude pessoal para com o mdico, mas tambm em cada diferente atividade e relacionamento que pode ocupar sua vida na ocasio (...). (Freud, 1969 [1914a], p. 197)

    O que que o paciente repete, na opinio de Freud (1914a)? Ele repete

    o que j havia avanado a partir das fontes do recalcado suas inibies, suas

    atitudes inteis e seus traos patolgicos de carter (ibidem, p. 198) assim

    como repete seus sintomas, no transcorrer da anlise. Desta forma, atravs de

    reaes repetitivas no decurso do tratamento e com a superao de resistncias

    porventura existentes, despertam-se lembranas at ento recalcadas.

    Do captulo cinco do Alm do princpio do prazer (Freud, 1920), Lacan

    est interessado em esclarecer por que, de primeiro, a repetio ter aparecido

    ao nvel do que chamamos neurose traumtica? (Lacan, 1990 [1964], p. 53).

    Pergunta-se tambm qual a funo da compulso repetio, se nada parece

    justific-la do ponto de vista do princpio do prazer. No que se refere funo da

    compulso repetio, Lacan considera que seu objetivo era dominar o

    acontecimento traumtico. Segundo ele, no Alm do princpio do prazer, Freud

    indica que o que se passa nos sonhos da neurose traumtica, depende do nvel

    do funcionamento mais primitivo do psiquismo, ou seja, do processo primrio70.

    Alm disso, a descoberta de Freud que a funo de repetio evidencia a

    relao do pensamento com o Real (Lacan, 1990 [1964], p. 52).

    Para Freud (1920), um fracasso por parte dos estratos mais elevados do

    aparelho mental em sujeitar a excitao pulsional, que assim fica funcionando

    em processo primrio, provoca um distrbio anlogo neurose traumtica.

    Somente aps se efetuar essa sujeio que se torna possvel que o princpio

    do prazer (bem como sua modificao, o princpio de realidade) avane sem

    obstculos. At ento, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou

    sujeitar as excitaes, teria precedncia, no, na verdade, em oposio ao

    princpio do prazer, mas independentemente dele e, at certo ponto,

    desprezando-o (Freud, 1976 [1920], p. 52).

    Assim, as crianas repetem experincias desagradveis para poderem

    dominar uma impresso de maneira ativa, ao invs de faz-lo simplesmente

    experimentando-a de modo passivo. Esta repetio de algo idntico , em si,

    uma fonte de prazer. Em contrapartida, a compulso repetio dos

    70 No inconsciente, o tipo de processo psquico encontrado o processo psquico primrio,

    enquanto na vida de viglia normal o processo psquico secundrio (Freud, 1976 [1920], p. 51).

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  • 133

    acontecimentos da infncia no decurso da anlise despreza o princpio do

    prazer.

    O paciente comporta-se de modo puramente infantil e

    assim nos mostra que os traos de memria recalcados de suas experincias primevas no se encontram presentes nele em estado de sujeio, mostrando-se elas (...) incapazes de obedecer ao processo secundrio. (Freud, 1976 [1920], p. 53)

    A repetio , desta forma, algo que est sempre velado ao longo do

    tratamento analtico, diferindo das idias de retorno dos signos, reproduo e

    rememorao agida. Assim, este primeiro encontro, Real, que h por trs da

    fantasia do analisando, inacessvel; um pensamento adequado enquanto

    pensamento evita sempre a mesma coisa, quer dizer, evita sempre o Real

    traumtico (Lacan, 1964).

    3.1.5 O trauma: algo impossvel de nomear, e que retorna

    no Seminrio 11 que Lacan mais claramente aproxima o trauma da

    idia de Real. Diz ele:

    No notvel que, na origem da experincia analtica,

    o real seja apresentado na forma do que nele h de mais inassimilvel na forma do trauma, determinando toda a sequncia e lhe impondo uma origem na aparncia acidental?

    (Lacan, 1990 [1964], p. 57) Com efeito, o trauma deve ser tamponado pela homeostase subjetivante

    que corresponde a dominncia do princpio do prazer e, por mais que se

    desenvolva o sistema de realidade, uma parte do que da ordem do Real com

    certeza se mantm prisioneira das redes do princpio do prazer.

    No sentido de sustentar o trauma como Real, dois termos que foram

    utilizados por Aristteles, numa pesquisa sobre a causa tiqu e autmaton

    so importados por Lacan para o Seminrio 11:

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  • 134

    Para Aristteles, a tiqu est compreendida no autmaton, que podemos traduzir pelo nosso acaso. A tiqu, diz ele, tem relao com as coisas produzidas, seja pela inteligncia, seja pela natureza, com vistas a um fim determinado, mesmo que no esteja ao alcance do homem. O autmaton aquilo que se produz margem da natureza, tem a causa fora de si e est privado de finalidade natural. Por isso, autmaton designa algo que se move por si mesmo, donde, mais tarde, a idia de autmato e a de automatismo.

    (Gueller, 2005, p. 11) Lacan (1964) traduz a tiqu aristotlica por encontro com o Real

    contingente, que est para alm da insistncia dos signos (isto , est para alm

    do autmaton). O autmaton, ele traduz como rede de significantes, atravs da

    qual algo se repete, na medida em que est submetida ao princpio do prazer.

    Em outras palavras, o autmaton corresponde ao desdobramento automtico no

    inconsciente da cadeia significante.

    O trauma um encontro faltoso com a tiqu; um encontro essencial, que

    demanda o novo mas que nem por isso totalmente assimilvel. O Real, por sua

    vez, se estabelece como o que vige sempre por trs do autmaton, e do qual

    evidente, em toda a pesquisa de Freud, que do que ele cuida (Lacan, 1990

    [1964], p. 56). Assim, este Real que escapole, est para alm do retorno e da

    insistncia dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princpio do

    prazer.

    Ao comentar sobre o assunto, Fink acrescenta que, para Lacan (no sem.

    11 de 1964),

    O real aqui o nvel de causalidade, o nvel daquilo

    que interrompe o funcionamento tranquilo do autmaton, da seriao automtica, sujeita lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando esto destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretao analtica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: tiqu. O encontro com o real no est situado no nvel do pensamento, mas no nvel onde a fala oracular produz no-senso, aquilo que no pode ser pensamento. (Fink, 1997, p. 241-242)

    Nesta citao vemos que o nvel em que Lacan est colocando o Real

    o do recalcado originrio. J no domnio do autmaton, Lacan inclui o retorno do

    recalcado, que, em sua qualidade de formao do inconsciente, regido pelo

    princpio do prazer.

    A compulso repetio no est ligada ao retorno da necessidade, nem

    se assenta na natureza. Ela demanda algo novo; e neste sentido que Lacan

    (1964) sustenta que o encontro com o Real se apresentou pela primeira vez a

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  • 135

    Freud sob a forma de trauma, pelo que ele tem de inassimilvel. O que no pode

    ser nomeado o trauma, que passa a ser identificado, em Lacan, com a coisa

    da linguagem. No entanto, ele ser tamponado pela homeostase subjetivante

    que orienta todo o funcionamento definido pelo princpio do prazer (Lacan, 1990

    [1964], p. 57).

    Para exemplificar melhor o assunto, recorro ao sonho do pai velando seu

    filho, relatado por Freud no captulo VII de A interpretao de sonhos (1900),

    para, logo em seguida, discutir os comentrios que Lacan faz sobre ele, nas

    lies 3, 5 e 6 do Seminrio 11.

    (...) um pai estivera de viglia cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Aps a morte do menino, ele foi para o quarto contguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de vel-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Aps algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de p junto a sua cama, que o tomou pelo brao e lhe sussurrou em tom de censura: Pai, no vs que estou queimando? Ele acordou, notou um claro intenso no quarto contguo, correu at l e constatou que o velho vigia cara no sono, e que a mortalha e um dos braos do cadver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles.

    (Freud, 1987 [1900], p. 468) Ao invs de querer entender porque o pai continuou dormindo, como fez

    Freud, Lacan se pergunta o que precisamente o despertou, posto que no

    sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente nico. S um

    rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorvel pois

    que ningum pode dizer o que seja a morte de um filho seno o pai enquanto

    pai isto , nenhum ser consciente (Lacan, 1990 [1964], p. 60).

    No sonho da criana queimando (Freud, 1900 apud Lacan, 1964), o

    lugar do Real, que vai do trauma (esse ponto de encontro) fantasia (como

    construo simblica), encontra-se representado nas coisas que testemunham

    que no se trata de um sonho a saber, um acidente como o da vela que cai,

    queimando o quarto onde jaz o filho morto ou, ento, a prpria voz do filho morto

    clamando ao pai por socorro (Lacan, 1990 [1964], p. 59).

    Em Algumas notas adicionais sobre a interpretao dos sonhos como um

    todo, Freud diz que o sonho uma fantasia a trabalhar em prol da manuteno

    do sono (Freud, 1976 [1925], p. 159). Logo, se o sonho desempenha bem sua

    funo, quando acorda o sujeito nada sabe dele, nem de sua misso. Contudo,

    se, mesmo aps vrios anos, o sujeito lembrar dos sonhos, isso significa que

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  • 136

    houve uma irrupo do inconsciente recalcado no eu normal (Freud, 1925). No

    retorno a Freud de Lacan, por outro lado, l-se que, entre o sonho e o despertar,

    alm desta funo do sonho, ser o guardio do sono, existe ainda uma funo

    secundria, mas to importante quanto a primeira e que aparece pela primeira

    vez aps o sonho da criana queimando. Para Lacan, o sonho no ocorre para,

    com isso, proteger o sono: o que desperta o sonhador algo de uma outra

    realidade. Lacan supe que a realidade faltosa que causou a morte da criana

    passa pelas palavras de reproche Pai, no vs que estou queimando?. Para

    ele, o que elas perpetuam exatamente o remorso (o fracasso) do pai, por ter

    escolhido uma pessoa que no estava altura da tarefa que lhe havia sido

    determinada. Desta maneira, a no interrupo do sonho se revela como uma

    homenagem realidade que s continuou a se dar atravs da compulso

    repetio, num infinitamente jamais atingido despertar (Lacan, 1990 [1964], p.

    60). Assim, enquanto para Freud o sonho somente o que prolonga o ato de

    dormir, para Lacan justamente o oposto: contra o desejo da conscincia, o

    prprio sonhar que desperta o sonhador para a realidade da morte do filho, no

    Real.

    (...) o encontro, sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda e cujo sonho no conheceremos e aquele que sonhou para no despertar. (...) Pois no que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto pegando seu pai pelo brao (...) designa um mais-alm que se faz ouvir no sonho. O desejo a se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente nico. (Lacan, 1990 [1964], p. 60)

    Reparem ainda no acento que Lacan coloca na realidade das palavras de

    apelo da criana, ao dizer Pai, no vs... e sacudir o brao do pai. H uma

    reprimenda endereada ao pai, que se sublinha atravs da questo do olhar.

    Lacan observa ainda que no pelo barulho da vela que cai ou o fogo que

    consome o quarto ao lado, feitos para cham-lo, que esse pai desperta. Logo,

    uma

    (...) outra realidade realidade que se passa na ruptura entre percepo e conscincia, que constitui o inconsciente essa Outra cena que desperta o sujeito. E que realidade esta, mais real que o barulho ou o claro das chamas? Lacan responde dizendo que uma realidade que queima, no real. O sonho queima trata-se de um sonho de angstia por fornecer a esta outra realidade, ao real foracludo do simblico, uma imagem (...). (Costa-Moura, 2002 [2001], p. 72).

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  • 137

    Assim, o prolongamento do sono permite ao pai evitar se encontrar diante

    da morte da criana. Um encontro faltoso, um tropeo entre um pai e um filho,

    passou-se entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda (a criana

    morta ou o velho?) e de quem no conheceremos jamais os sonhos, e o pai, que

    produziu um sonho essencialmente traumtico para, atravs dele, prolongar a

    vida do filho que ele no conseguiu salvar. Por sua vez, o encontro do barulho

    e do claro das chamas com o significante queimando que evoca a Freud a

    febre da criana e propicia que se produza esse sonho que, posteriormente,

    adquire para esse pai impotente71 um valor traumtico.

    Na lio de 21/01/1970 do Seminrio 17, Lacan afirma que Freud no

    emprega em seus textos a expresso necessidade de dormir mas desejo de

    dormir, o que totalmente diferente:

    O curioso que ele [Freud] completa essa indicao

    com o seguinte um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que s acordamos para continuar sonhando sonhando no real, ou, para ser mais exato, na realidade.

    (Lacan, 1994 [1969-1970], p. 54)

    Assim, o sujeito acorda quando algo da ordem do Real interfere no sonho, como

    no sonho de angstia. O ato de despertar, portanto, permite quele que acordou

    prosseguir fantasiando. Neste sentido, para Lacan (1964), Freud pde confirmar

    no sonho da criana queimando sua teoria do sonho como realizao de

    desejo, mesmo que o sonho traumtico contradiga a tese do sonho como

    guardio do sono o desejo manifesta-se a pela perda imajada do objeto,

    atravs do gesto da criana que pega o pai pelo brao.

    Por sua vez, em um seminrio anterior ao 17, Lacan (1964) j sugerira

    que, por meio do sonho da criana queimando, Freud havia apresentado sua

    elaborao final respeito da compulso repetio, apesar dela s ter surgido

    como conceito mais tarde. Sobre o assunto da compulso repetio, lembro

    que, no Alm do princpio do prazer, Freud (1920) revisa os conceitos de

    princpio do prazer e princpio de realidade, luz das experincias com traumas

    de guerra, que lhe pareciam inassimilveis. neste contexto que Lacan introduz

    a questo dos sonhos. Geralmente associados ao princpio do prazer autmaton,

    com Lacan os sonhos encarnam o desejo do sonhador embora tambm portem,

    sob uma forma velada, a cena traumtica, parte essencial da ordem do Real.

    Falando do sonho da criana queimando, Lacan diz: O real, para alm do

    71 A impotncia paterna frente ao ocorrido fator relevante para que o sonho adquira valor

    traumtico.

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  • 138

    sonho que temos que procur-lo no que o sonho revestiu, envelopou, nos

    escondeu, por trs da falta de representao, da qual s existe um lugar-

    tenente (Lacan, 1990 [1964], p. 61). Logo, se antes desta frase Lacan pareceu

    sugerir que o Real se apresentava facilmente em sonhos, aqui ele esclarece que

    s possvel encontrar o seu representante no sonho, posto que a

    representao do Real faltosa per se. O que se repete, no sonho, sempre

    algo que se produz como por acaso.

    3.1.6 Operadores da diviso do sujeito

    No h sujeito sem, em alguma parte, afnise do

    sujeito, e nessa alienao, nessa diviso fundamental, que se institui a dialtica do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 209)

    Tratarei agora de duas operaes lgicas constituintes do sujeito a

    alienao e a separao e que esto intimamente referidas ao trauma

    estruturante na obra lacaniana aps 1964.

    No passado, Lacan j havia utilizado o termo alienao em outro

    contexto. No artigo sobre o estdio do espelho, publicado em 1949, Lacan

    trabalha o tema da alienao imaginria a propsito da constituio do eu [Je]:

    alienao imagem que lhe devolvida pelo espelho e com a qual se identifica

    por meio do olhar do Outro (Berendonk, 2005, p. 50). De acordo com Lacan

    (1949), o eu conserva uma dimenso imaginria, na medida em que se constri

    a partir da imagem daqueles com os quais se identificou em seu percurso.

    Justamente o fato de se constituir a partir da identificao com uma imagem

    sempre mais ou menos fixa e de identificao com o outro, faz com que o eu

    tenha qualquer coisa de coagulado, e, ao mesmo tempo, qualquer coisa de

    alienante (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 29).

    Mas no nessa acepo de alienao imaginria que iremos nos deter.

    Lacan volta ao termo alienao, mas num sentido diverso, ao introduzir em 1964

    dois operadores, a alienao e a separao, que esto em jogo na constituio

    do sujeito e dizem respeito ao fato de que o sujeito produzido dentro da

    linguagem que o aguarda, e inscrito no lugar do Outro. Assim, o sujeito

    depende do significante, que est inicialmente no campo do Outro.

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  • 139

    Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei a funo de corte, e que se articula agora, no desenvolvimento do meu discurso, como funo topolgica de borda.

    A relao do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de hincia. (Lacan, 1990 [1964], p. 196)

    No detalhamento lgico dessas operaes Lacan utiliza as noes

    matemticas conhecidas como unio72 ( ) e interseo ( ) na teoria dos

    conjuntos. Segundo esta teoria, a unio de dois conjuntos diferente de sua

    interseo. Dito de outro modo:

    A unio dos conjuntos A e B o conjunto de todos os elementos que pertencem

    ao conjunto A ou ao conjunto B.

    A B = { x: x A ou x B }

    Exemplo: Se A={a,e,i,o} e B={a,n} ento A B={a,e,i,o,n}.

    Em contrapartida, a interseo dos conjuntos A e B o conjunto de todos os

    elementos que pertencem ao conjunto A e ao conjunto B. Neste sentido, a interseo isola aquilo que pertence a ambos os conjuntos. A B = { x: x A e x B }

    Exemplo:

    Logo, se A={a,e,i,o,u} e B={a,n} ento A B=a.

    Lacan resgata tambm da lgica matemtica as noes de vel de

    excluso e de vel de unio para, a partir delas, propor um novo termo: o vel da

    escolha forada, concernente alienao, e que depende da forma lgica da

    unio.

    72 Escolhi usar o conceito matemtico unio dos conjuntos (ao invs de reunio, como aparecem

    em algumas tradues) ao longo da tese, por julgar ser mais correto.

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  • 140

    O vel da alienao se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que h, na unio, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, h por consequncia um nem um, nem outro. A escolha a apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso.

    (Lacan, 1990 [1964], p. 200)

    Resumidamente, a partir de Lacan (1964), h ento trs tipos de vel: 1)

    eu vou ou para l ou para c (vel de excluso): se eu vou para l, logo no

    posso ir para c, tenho que escolher; 2) vou para um lado ou para o outro, tanto

    faz, d na mesma (vel de unio); 3) vel de escolha forada, que se apoia na

    forma lgica da unio. Este o vel da alienao, que comporta sempre uma

    perda: de um lado o sujeito aparece como sentido, produzido pelo significante e,

    de outro, ele desaparece como afnise.73

    (...) o vel da alienao define-se por uma escolha onde se deve decidir qual dos conjuntos se deseja manter, sendo que o outro conjunto inteiro desaparece, incluindo a interseo. Neste caso, sempre uma mesma parte acaba tambm desaparecendo seja qual for a escolha, razo pela qual esta ser dita uma escolha forada. (Berendonk, 2005, p. 52) O vel da alienao pode ser ilustrado pela alternativa a bolsa ou a vida.

    No esquema reproduzido logo acima, se escolho qualquer um dos dois

    elementos bolsa ou vida algo se perde necessariamente. Escolhendo a

    bolsa, perco as duas coisas: tanto a bolsa quanto a vida. Em contrapartida,

    escolhendo a vida, perco a bolsa; fico com a vida amputada da bolsa.

    73 Afnise: desaparecimento do prprio sujeito, em sua relao com os significantes, de acordo

    com Lacan (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 24).

    a vida

    a bolsa a vida

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  • 141

    Assim, a escolha incide sobre aquilo que o sujeito vai aceitar perder. O que

    ocorre que forosamente se escolhe a vida, e no vel da alienao tambm, se

    escolhe o sentido.

    Assim, quando algum nos diz a bolsa ou a vida, s temos uma nica escolha real: obviamente escolhemos a vida. E nesse caso a bolsa perdida (falsa) e o vel verdadeiro. Existe apenas uma outra possibilidade (...): tem-se a possibilidade de perder as duas. Mas a principal possibilidade para ns a escolha da vida; logo, perde-se a bolsa, e neste caso a vida apenas meia-vida, uma vida em que algo (o dinheiro) est faltando. Este vel sempre exclui um s e mesmo termo a bolsa (...). (Soler, 1997b, p. 60-61)

    Chemama e Vandermersch (2007 [2005]) propem um esquema

    diferente dos aqui j mencionados, na medida em que, segundo eles, a

    demonstrao de Lacan s faz sentido a partir dos dois conjuntos acima

    representados (ver esquema anterior sobre a bolsa ou a vida), se se distinguir

    o elemento bolsa do conjunto bolsa.

    Assim, a partir do esquema proposto por Chemama e Vandermersch e

    que no consta do texto de Lacan, o elemento bolsa est por inteiro na parte do

    conjunto bolsa que constitui a interseo com o conjunto vida. Se escolho a

    bolsa, (...) perco tudo. (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 30).

    A partir de a bolsa ou a vida Lacan tenta esclarecer as possveis

    consequncias desse vel no que diz respeito relao do sujeito ao significante:

    a suspenso do sujeito, sua vacilao, a queda de sentido no discurso. Logo, a

    alienao que, de acordo com Lacan, estruturante faz um remetimento

    permanente e circular de um ou a outro ou, de um nem a outro nem; h

    uma vacilao subjetiva radical, em que esse ou e esse nem so sinnimos

    de mutilao (no sendo, portanto, uma alternncia). Assim, no exemplo de

    a bolsa

    a vida

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  • 142

    Lacan sobre a diviso do sujeito, quando o sujeito aparece em algum lugar como

    sentido, noutro ele se manifesta como fading o sujeito desaparece, ele nos

    escapa, cai no no-senso: (...) na operao do vel entre o ser e o sentido, a

    escolha forada do sentido se d s custas da perda de uma parte de no-

    senso (Berendonk, 2005, p. 52).

    O esquema acima ope o ser ao sentido e, nele, se escolhemos o sentido, o

    sentido subsiste decepado dessa parte de no-senso, que , propriamente

    falando, o que constitui na realizao do sujeito, o inconsciente (Lacan, 1990

    [1964], p. 200).

    Na tentativa de dar alienao o estatuto de um conceito, apoiado em

    uma formalizao, Lacan precisa o que ele entende por sujeito e Outro, no

    captulo 16 do Seminrio 11. Ali, define o Outro como o lugar em que se situa a

    cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do

    sujeito, o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer (Lacan, 1990

    [1964], p. 193-194). Para Lacan, o Outro precede o sujeito e fala sobre ele antes

    mesmo de seu nascimento. Neste sentido, h uma lgica que precede o sujeito,

    que no concomitante ao seu surgimento, sim anterior a ele. Lacan entende

    que o sujeito , na verdade, efeito de linguagem e de fala (ou melhor, efeito de

    significante); ele se constitui a partir do campo do Outro campo do Outro como

    lugar de significantes e da fala, como diz Lacan no Seminrio 11. Antes disso, s

    existe sujeito por vir.

    O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o

    significante. Mas por este fato mesmo, isto que antes no era nada seno sujeito por vir se coagula como significante.

    (Lacan, 1990 [1964], p. 187)

    (...) por nascer como significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito esse surgimento que, justo antes, como sujeito, no era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em significante. (ibidem, p. 188)

    o ser (o sujeito)

    O sentido (o Outro)

    O no-senso

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  • 143

    A entrada do sujeito no campo discursivo , portanto, traumtica, na

    medida em que ele se encontra, de sada, alienado ao desejo do Outro, ao seu

    discurso. O sujeito, se parece servo da linguagem, ele o mais ainda de um

    discurso em cujo movimento universal seu lugar j est inscrito desde seu

    nascimento, ainda que seja sob a forma de seu nome prprio. Contudo, embora

    se sujeite linguagem, ele tambm ganha algo, pois se torna um sujeito da/na

    linguagem, permitindo-se representar, assim, por palavras. Lacan admite que

    sempre existe uma escolha forada por parte do sujeito, j que possvel negar

    a subjetividade. O sujeito at pode no adotar esta posio dividida ao no se

    sujeitar ao Outro como linguagem, embora isto acarrete necessariamente uma

    perda de si mesmo: o que acontece, por exemplo, no autismo.

    Na sequncia de sua formalizao das operaes constituintes do sujeito,

    Lacan apresentou, tambm no captulo 16 do Seminrio 11, o que chamou de

    separao: uma segunda operao lgica, equivalente a um retorno, assim

    como a um corte, hiato e escanso. Enquanto que a primeira operao a

    operao alienante se fundamenta na subestrutura da unio, a segunda se

    situa exatamente na interseo. Na separao trata-se da possibilidade de se

    recuperar algo do que est na interseo, e que, pela unio, havia sido perdido.

    (Berendonk, 2005, p. 53). A separao envolve o confronto do sujeito alienado

    com o Outro, dessa vez no com o Outro como linguagem, mas como desejo.

    O Outro materno precisa mostrar algum sinal de

    incompletude, falibilidade, ou deficincia para a separao se concretizar e para o sujeito vir a ser como $; em outras palavras, o Outro materno deve demonstrar que um sujeito desejante (e dessa forma tambm faltante e alienado), que tambm se sujeitou ao da diviso da linguagem, para que testemunhemos o advento do sujeito. (Fink, 1998 [1995], p. 76)

    A separao introduz, do lado do Outro, a questo da existncia da falta

    do sentido: so os intervalos do discurso e o enigma do desejo do Outro. Do lado

    do sujeito, por sua vez, a separao aponta para a necessidade que o sujeito

    tem na medida em que o ser lhe falta de se engendrar, se parere, se parare.

    Lacan faz jogar o equvoco dessa palavra [separao] com se parer74 (se

    arrumar, mas tambm se defender, se munir do que preciso para se pr em

    guarda), e igualmente com o verbo latino se parere (se engendrar). (Chemama

    & Vandermersch, 2007 [2005], p. 31). Assim, a separao uma tentativa por

    parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo do Outro na forma com que

    ele se apresenta no mundo do sujeito.

    74 Na lngua francesa, a expresso se parer homfona de separer.

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  • 144

    no intervalo entre esses dois significantes que vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experincia do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustr-lo, a me, no caso. no que seu desejo est para alm ou para aqum do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, no que seu desejo desconhecido, nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 207)

    Em suma, no incio o sujeito fundamentalmente objeto do gozo do

    Outro (Laurent, 1997b). uma parte perdida de um Outro Real cujo prottipo

    a me , vivendo no lugar de objeto. Mais adiante, se identifica com aquela parte

    perdida por no ter identidade, o sujeito acaba por se identificar a algo,

    ingressando na rede de significantes. Assim, o sujeito tenta assumir suas

    identificaes primrias: com o significante-mestre ou, ainda, como o objeto a

    ser definido por ele prprio no final: a identificao completa: aquilo que ele foi

    como tal, no desejo do Outro, no apenas no nvel simblico do desejo, mas

    como substncia real envolvida no gozo. Ele s pode tentar recuper-lo ou

    identific-lo dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes. (Laurent,

    1997b, p. 44).

    A introduo dos conceitos de alienao e separao permitiu a Lacan

    (1964) retomar, de uma outra maneira, a relao do sujeito com o significante e

    o objeto (Vandermersch, 2000). A alienao em Lacan se define no s como

    dependncia do Outro, mas tambm como uma diviso lgica em que o

    significante produz o sujeito. a relao mais precisa desse sujeito com o

    significante, embora no se sustente sem que haja um segundo operador: a

    separao. A alienao d ao sujeito uma relao com a morte no com a

    morte real, mas com a morte como significante. (Vandermersch, 2002 [2000], p.

    42). J na separao o que se d que duas faltas se articulam: a do sujeito e a

    do Outro.

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  • 145

    3.1.6.1 Indicaes millerianas sobre alienao e separao

    Ao contrrio do que havia feito com o conceito de alienao, em 1964

    Lacan no apresenta aos seus interlocutores indicaes grficas da separao.

    De acordo com ric Laurent (1997a), no entanto, estas frmulas foram

    oferecidas por Miller. Segundo ele, a primeira falta est referida ao fato de que o

    sujeito no pode ser inteiramente representado no campo do Outro: sempre algo

    resta. No se pode apresentar a todo o sujeito. O carter fundamental parcial

    das pulses introduz uma falta, que Lacan designa marcando o sujeito com uma

    barra ($)75. (Laurent, 1997a, p. 37).

    Alienao em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)

    A partir disso, tm-se uma segunda falta concernente operao lgica

    da separao , que pressupe uma atividade por parte do sujeito, atividade

    esta que tem por objetivo fazer com que ele no se represente somente atravs

    daquilo que para o Outro, do que esse Outro lhe diz ou faz.

    75 Sujeito barrado, sujeito fendido, sujeito dividido escritas sob o mesmo smbolo ($): para Lacan,

    a notao $ representa que o sujeito est barrado pelo que o constitui propriamente enquanto funo do inconsciente. Essa diviso produto do funcionamento da linguagem no sujeito quando ele comea a falar ainda criana.

    $ > S2 S1 Sujeito Outro

    Sentido Ser

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  • 146

    Ao final do processo de alienao e separao obtm-se como resultado a diviso de ambos, sujeito e Outro. Nenhuma destas partes estava l, no incio, tal como se apresentam agora. A separao resulta num tipo de interseo onde algo do Outro (...), que o sujeito considerava como uma parte sua, lhe arrancado e conservado, na fantasia, pelo sujeito, agora dividido. (Berendonk, 2005, p. 56)

    Neste contexto, o Outro pode ser entendido como o lugar onde um

    significante S1 se encontra em relao com um outro significante S2. Ou seja, para se definir a estrutura do Outro precisamos de pelo menos dois significantes:

    S1> S2.

    Separao em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)

    No esquema da Separao em J.-A. Miller, os dois significantes S1> S2 se encontram situados no crculo do Outro, o objeto a76 na interseo onde o

    significante unrio (S1) esteve no esquema da Alienao, e o sujeito ($) no outro crculo.

    A partir deste remetimento de um significante a outro a operao de

    separao faz surgir, alm do sujeito ($), tambm um resto o objeto a , que no caso se circunscreve tanto no campo do sujeito quanto no campo do Outro,

    sendo ambas as faltas superpostas. Contudo, existem condies para que esta

    superposio (sempre incompleta) acontea: o Outro deve demonstrar que

    um sujeito desejante (e assim tambm portador de uma falta e alienado), que

    tambm se sujeitou diviso da linguagem, para que testemunhemos o advento

    do sujeito (Berendonk, 2005, p. 56).

    76 Segundo Lacan, objeto causa do desejo. Ele no um objeto do mundo, no representvel

    como tal. O objeto a s pode ser identificado sob a forma de fragmentos parciais do corpo, redutveis a quatro: o objeto da suco (o seio), o objeto da excreo (as fezes), a voz e o olhar (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 278).

    $ S1> S2 a Sujeito Outro

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  • 147

    3.1.6.2 Variaes do conceito de vel alienante

    Nos Seminrios 14 e 15, o conceito da alienao aparece nos textos de

    uma maneira diferente, se comparado a como ele foi apresentado antes. A idia

    de separao desaparece aps 1964 e o termo alienao passa a significar tanto

    a alienao quanto a separao desenvolvidas entre 1960-1964. Lacan adapta

    ao vel alienante entre o ser ou sentido vel que implica necessariamente uma

    perda a negao prpria da dualidade de De Morgan77, negao que a chave

    de tudo o que postulado posteriormente. Passa-se ainda da alienao entre

    ser e sentido e da operao da separao para a variante do cogito ergo sum de

    Descartes78, uma variante inventada por Lacan e que deriva da aplicao da

    negao de De Morgan.

    De acordo com Lacan, em lugar de haver um momento ideal como o que

    Descartes havia proposto em que pensar e ser coincidem, o sujeito forado a

    escolher um ou outro. Ele pode ter pensamentos ou existir, mas nunca ambos ao

    mesmo tempo.79 O cogito cartesiano penso, logo sou80 transforma-se assim na

    frmula lgica ou eu no penso ou eu no sou, que resolve alguns dos

    77 Um matemtico chamado De Morgan desenvolveu um par de regras complementares usadas

    para converter a operao ou em e e vice-versa. Para duas variveis a lei :

    e

    Assim, quando quebramos a barra longa no primeiro termo, a operao abaixo da barra se transforma de multiplicao para soma e vice-versa.

    Quando existem vrias barras em uma expresso, voc deve quebrar uma barra por vez, aplicando a regra cima.

    78 Sobre o cogito cartesiano, cf. Discurso sobre o mtodo (Descartes, 2008 [1637]) e Meditaes sobre a filosofia primeira (Descartes, 2008 [1641]). Aqui, basta saber que, segundo Descartes, h um ponto no qual o pensamento e a existncia se sobrepem; quando o sujeito cartesiano afirma eu penso, ser e pensar coincidem neste justo momento. o fato dele pensar que o sustenta enquanto ser. Para Lacan, o sujeito do cogito cartesiano que subvertido, posto que aquele que se sujeita lei do significante e do desejo. Tal mtodo cartesiano o levou, pela primeira vez, a definir o Real como impossvel: o cogito o ponto de partida lgico da explicao do real pelo impossvel, na medida em que ele liga o fundamento da cincia certeza de um sujeito (Porge, E. apud Kauffman, 1996, p. 509). 79 Ressalto que Descartes estudou o pensamento consciente, enquanto o que interessou a Lacan,

    assim como a Freud, foi sempre o pensamento inconsciente. 80 Traduo livre. Na verso em espanhol: pienso entonces soy (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 22).

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  • 148

    impasses das operaes de alienao e separao. Essa dupla negao ou eu

    no penso ou eu no sou permite reformular, atravs da ilustrao grfica que

    reproduzo logo a seguir, o funcionamento dessa disjuno, que se baseia em um

    no excludente.

    Ao considerarmos o uso do termo pensar quando Lacan se refere ao

    pensamento inconsciente como disjunto da subjetividade, ento temos nesta

    ilustrao do Grupo de Klein, apresentada nos Seminrios 14 e 15, um exemplo

    claro daquilo que o autor chama de sujeito dividido. O canto direito superior do

    esquema ou eu no penso ou eu no sou fornece uma definio de quem seria

    este sujeito:

    A alternativa ou/ou significa que somos obrigados a nos

    situar em algum outro canto deste grafo. O caminho da mnima resistncia (...) negar o inconsciente (negar ateno aos pensamentos que esto se desenvolvendo no inconsciente), um tipo de prazer, no falso ser (canto esquerdo superior).

    (Fink, 1998 [1995], p. 66) O sujeito encontra-se de sada alienado, fendido. A diviso , no entanto,

    o que possibilita sua prpria existncia, j que o sujeito advm como uma forma

    de atrao na direo de uma experincia primria de prazer/dor ou trauma e

    como uma espcie de defesa contra esse mesmo prazer que lhe excessivo

    (esmagador, embora fascinante). Ele se divide entre o consciente (canto

    esquerdo superior) e a cadeia de significantes tais como as palavras, fonemas,

    letras (canto direito inferior).

    $ que estava l no incio

    Alienao

    Ou eu no penso ou eu no sou (escolha alienante)

    Ou eu no penso

    Ou eu no sou

    Ilustrao grfica do Grupo de Klein do Seminrio 15

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  • 149

    De acordo com a teoria lacaniana, todo ser humano que aprende a falar , dessa forma, um alienado pois a linguagem81 que, embora permita que o desejo se realize, d um n nesse lugar, e nos faz de tal forma que podemos desejar e no desejar a mesma coisa e nunca nos satisfazermos quando conseguimos o que pensvamos desejar, e assim por diante. (Fink, 1998 [1995], p. 23)

    Esta frmula lgica ou eu no penso ou eu no sou interessa a Lacan

    pois no uma dupla negao no sentido habitual, em que duas negaes se

    anulam entre si, produzindo um resultado positivo. Ela introduz uma outra

    funo, que conserva a formalizao de uma perda. Qualquer postura adotada

    pelo sujeito em relao ao desejo do Outro (o desejo da me, de um dos pais ou

    ambos), uma vez que aquele desejo provoca o desejo do sujeito, remete a uma

    perda. Enquanto uma escolha impossvel entre o eu no penso e o eu no

    sou, pode ser resumida em matemtica como:

    Este enunciado, conhecido pela lgica simblica como teorema de De

    Morgan, representa uma verdadeira descoberta: a negao da conjuno de

    duas proposies (por exemplo, quando se diz que no verdadeiro que A e B

    sejam sustentveis conjuntamente), equivale unio da negao de cada uma.

    A lei da dualidade permite, assim, transformar uma

    operao em outra a unio em interseo e a interseo em unio usando a negao. No h, no Seminrio 11, uma transformao assim mediada por uma negao, isso , uma perda exceto o uso que Lacan faz da perda sem volta na passagem entre ambas as operaes, pensada topolgica mas no logicamente que relacione a operao de alienao e a operao de separao. (Rabinovich, 2000, p. 63)

    A lei da dualidade de De Morgan implica uma perda inevitvel, forada.

    Existe um pensar sem eu e um ser sem eu, o que introduz a noo do

    conjunto vazio, igualando-a ao sujeito. Ou seja, a opo da alienao, formulada

    como ou eu no penso ou eu no sou, assegura o sujeito mesmo que de uma

    maneira velada, j que com isso ele passa a se reconhecer como um ser em

    falta.

    81 Muito resumidamente, quando Lacan se refere linguagem, ele a entende enquanto aquilo que

    constitui o inconsciente. Nas palavras de Fink (1998 [1995], p. 25-26): (...) a linguagem, da forma como opera ao nvel do inconsciente, obedece a um tipo de gramtica, ou seja, a um conjunto de regras que comandam a transformao e o deslizamento que existe dentro dela. O inconsciente, por exemplo, tem uma tendncia a quebrar as palavras em suas mnimas unidades fonemas e letras e a recombin-las como parea adequado (...).

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  • 150

    Lacan aplica essa operao alienante ao cogito ergo sum, no Seminrio

    14. Para isso, escreve a unio dos conjuntos cogito e sum, situando ergo no

    lugar da interseo. O cogito cartesiano pode ser considerado, desse modo,

    como a interseo entre os conjuntos cogito e sum. Sendo assim, pensar e ser

    excluem-se mutuamente e a interseo entre ambos implica a prpria negao.

    Aplicada ao cogito, a lei de dualidade permite

    transformar a relao entre pensar e ser no mbito da teoria psicanaltica. No podem ser verdadeiros simultaneamente o pensar e o ser, se introduzida a negao prpria da lei de dualidade no cogito. A transformao d como resultado um no sou e um no penso. O no sou situa-se do lado do sum e o no penso do lado do cogito. O destino dessa transformao, de agora em diante, afasta-se de Descartes, e passa a funcionar estritamente no campo da psicanlise e no um comentrio filosfico. (Rabinovich, 2000, p. 64)

    De acordo com Lacan (1966-1967), costumamos negligenciar que a

    negao assim introduzida afeta o eu [Je]: a partir do momento em que o Je foi

    escolhido como instaurao do ser, em direo ao eu no penso que se deve

    ir, posto que o pensamento constitutivo justamente por uma interrogao sobre

    o no ser. Assim, a dimenso do Outro, que segundo Lacan essencial, est no

    cerne do cogito cartesiano. Ela configura o limite do que pode se definir e se

    assegurar melhor como o conjunto vazio que constitui o eu sou, nesta

    referncia ao Je, como puro e nico fundamento do ser. O eu sou no outro,

    definitivamente, seno o conjunto vazio, j que ele se constitui por no conter

    nenhum elemento. O eu penso no , de fato, nada alm da operao de

    esvaziamento do conjunto do eu sou (Lacan, 1967-1968, p. 176).

    J o eu no sou significa que no h elemento deste conjunto que

    exista sob o termo Je: isto quer dizer que, ao nvel significante, no h nada que

    permita ao sujeito se assumir como um eu [Je] desejante. O eu [Je] est

    foracludo. Esta a falta estrutural do sujeito (...) (Rabinovich, 2000, p. 75). Este

    cogito no penso

    sum no sou

    ergo

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  • 151

    reencontro deixa claro que o eu penso tem semelhante roupagem, na medida

    em que este pensar sem eu (que o pensar inconsciente) tambm exige uma

    perda.

    (...) o sou implica o fundamento do sujeito do penso, na medida em que d esta aparncia, pois no mais que uma aparncia de ser transparente a si mesmo, de ser o que podemos chamar de sou pensado. (...) ao nvel de Descartes e do cogito de um sou pensado (suis-pense) que se trata (...).82 (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 36)

    Esse eu penso implica algo revelado pelo logo sou do cogito

    cartesiano. Assim, no lugar onde mais eu penso (na ilustrao do Grupo de

    Klein, em direo ao canto esquerdo inferior) que o sujeito dividido assume

    (posteriormente) para si a responsabilidade frente quela experincia traumtica

    de prazer/ dor ou gozo que o constituiu.

    Onde uma vez reinou o discurso do Outro, dominado

    pelo desejo do Outro o sujeito capaz de dizer Eu. No Aconteceu comigo, ou Eles fizeram isso comigo ou O destino tinha isso guardado para mim, mas Eu fui, Eu fiz, Eu vi, Eu gritei. (...)

    Se pensarmos o trauma como o encontro da criana com o desejo do Outro e muitos casos de Freud sustentam essa viso (considere, para citar somente um exemplo, o encontro traumtico do pequeno Hans com o desejo de sua me) o trauma funciona como a causa da criana: a causa de seu advento como sujeito e da posio que a criana assume como sujeito em relao ao desejo do Outro.

    (Fink, 1998 [1995], p. 86)

    Mas e esse ou eu no penso ou eu no sou? Segundo Lacan, na

    articulao do eu no sou est o essencial do inconsciente, referindo-se

    questo da surpresa. Para estar l como inconsciente, no necessrio ainda

    que eu pense, como pensamento, em que consiste o inconsciente. L onde eu o

    penso, para no mais estar l. (Lacan, 1967-1968, p. 83). Neste sentido, o

    lugar do eu no penso est marcado por essa forma de sujeito que aparece

    como que arrancado do campo a ele reservado.

    O fundamento desta surpresa, tal como aparece no nvel de toda

    interpretao verdadeira, no outra coisa que esta dimenso do eu no sou.

    O que se passa ali onde eu no sou algo que pode ser retomado, na opinio

    de Lacan, na mesma forma de inverso que nos tem guiado todo o tempo. Quer

    82 Traduo livre. Na verso em espanhol: (...) el soy que implica el fundamento del sujeto del

    pienso, en tanto que d esta apariencia, pues no es ms que una apariencia de ser transparente a s mismo, de ser lo que podremos llamar un soy pensado. (...) al nivel de Descartes y del cogito es de un soy pensado (suis-pense) que se trata (...) (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 36).

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  • 152

    dizer, o eu no penso se inverte e o sujeito se aliena outra vez em um pensa-

    coisa, o que Freud articula sob a forma de representao de coisas, da qual o

    inconsciente, que tem por caracterstica tratar as palavras como coisas,

    constitudo (Lacan, 1967-1968, p. 181). Logo, o eu no penso no conflui com

    o eu no sou: de alguma maneira um e outro se recobrem.

    Com efeito, se Freud fala dos pensamentos do sonho

    porque, atrs dessas sequncias agramaticais, h um pensamento cujo estatuto est por ser definido nisto que ele no pode dizer nem logo eu sou nem logo eu no sou, e Freud articula isso muito precisamente quando diz que o sonho essencialmente egosta, isso implicando que o Ich do sonhador est em todos os significantes do sonho e absolutamente disperso, e que o estatuto que resta aos pensamentos do inconsciente o de ser coisas.

    (Lacan, 1967-1968, 181-182)

    A alienao originria, desta maneira, parte da posio do ou eu no

    penso ou eu no sou e desemboca no eu no penso, para que ele ($) possa at ser escolhido. Deste modo, se pensarmos no papel da anlise, ela parte

    desse ponto do sujeito j alienado, definido pelo psicanalista pelo eu no

    penso. Isto , a tarefa em que o analista coloca seu analisando implica, de

    sada, uma destituio subjetiva. O sujeito assim se realiza somente enquanto

    falta.

    Ele [o psicanalista] o pe na tarefa de um pensamento

    que se apresenta, de alguma forma, em seu prprio enunciado, na regra que o institui, como admitindo essa verdade fundamental do eu no penso: que ele associe livremente, que ele no procure saber se est ou no por inteiro, como sujeito, se ele a se afirma. A tarefa qual o ato psicanaltico d seu estatuto uma tarefa que j implica essa destituio do sujeito. (Lacan, 1967-1968, p. 98)

    Se o sujeito renuncia, porm, posio de eu no penso, ele impelido

    para o plo do eu no sou, este sim inarticulvel. Mas o que resiste, vale

    lembrar, no o sujeito em anlise, o discurso, e exatamente na medida em

    que h uma escolha forada (em referncia alienao originria), onde

    impossvel escolher entre o onde eu no penso e o onde eu no sou.

    O retorno alienao do sujeito na neurose (eu no penso), aps ter

    alcanado a posio de verdade do inconsciente (eu no sou), representa

    portanto uma repetio: o sujeito articulado em seus termos deslizantes, mas

    sempre pronto a escapar de um salto, a um dos quatro lugares dos vrtices da

    estrutura quadrangular do grupo de Klein.

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  • 153

    Impondo-se como sujeito de linguagem, feito e efeito de linguagem, o

    sujeito cartesiano , a partir da descoberta do inconsciente, revisitado pela lgica

    da alienao dividido entre o ser e o pensar ou eu no penso, ou eu no

    sou. Pressupe-se nesta operao, necessariamente, a formalizao de uma

    perda, que ao mesmo tempo traumtica e estruturante (pois para que o sujeito

    saiba o que lhe falta ou, melhor ainda, o que falta ao Outro, necessrio que ele

    perca algo).

    *

    Aps escrever sobre a acepo lacaniana do trauma, de 1952 a 1964,

    assim como ressaltar em que contexto e de que maneira o autor se apropriou da

    abordagem freudiana do tema, preciso destrinchar o conceito de Real em

    Lacan. O Real solidrio noo de trauma, aps os anos de 1970.

    Segundo Lacan, o Real s pode ser definido em relao ao Simblico e

    ao Imaginrio. Ele no essa realidade ordenada pelo Simblico; pelo contrrio,

    ele retorna a um lugar no qual o sujeito no o encontra, a no ser sob a forma de

    um encontro impossvel, tal como expresso em Pai, no vs que estou

    queimando? (Freud, 1900).

    Definido como impossvel, o Real no pode ser simbolizado totalmente na

    fala ou na escrita. O trauma, por sua vez, enquanto evento inassimilvel para o

    sujeito, geralmente de natureza sexual, aproxima-se do Real proposto por Lacan

    na dcada de 1970, uma parte fundamental e originalssima de seu trabalho e

    que enriquecer a discusso sobre o trauma exposta at agora.

    Real e trauma se aproximam tanto em alguns momentos do ensino

    lacaniano, ao ponto de o trauma por diversas vezes se apresentar como uma

    variante do conceito de Real.

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  • 154

    3.2 O trauma e o privilgio do Real

    No incio do ensino de Lacan, real e realidade so tratados quase como

    sinnimos. Posteriormente, entretanto, em contraposio idia freudiana de

    realidade psquica, Lacan forja o Real: ele o impossvel (Lacan, 2007 [1975-

    1976], p. 37), o sem-sentido que retorna incessantemente ao mesmo lugar,

    questionando o sujeito e sua existncia.

    O Real o que escapa realidade psquica e ultrapassa os campos do

    Imaginrio e do Simblico, podendo ser apreendido somente atravs de

    manifestaes intrusivas na vida do sujeito, como as alucinaes, ou atravs da

    compulso repetio presente nos sintomas. A grosso modo, um dos trs

    registros Real, Simblico e Imaginrio pelos quais o homem se posiciona no

    mundo, ou pelos quais se ordena a experincia analtica. Mesmo sem serem

    conceituados, os registros Real, Simblico e Imaginrio aparecem pela primeira

    vez juntos em 1953.83 Contudo, a idia de Real variar muito ao longo da obra

    lacaniana.

    Desde essa poca, a concepo de Real difere da de Simblico e de

    Imaginrio. a introduo do Simblico que remaneja e funda os outros dois

    registros. A nfase colocada sobre o registro do Simblico para dar conta da

    eficcia dessa experincia analtica que se passa inteiramente pautada pela fala

    (parole). desse modo que o Simblico comea a ascender ao primeiro plano.

    Com o objetivo de entender a realidade humana em sua totalidade, Lacan

    enfatiza os trs registros que a compem o Simblico, o Imaginrio e o Real

    e adianta o que postular mais tarde sobre o conceito de Real.

    83 Cf. O Simblico, o Imaginrio e o Real (Lacan, 1953c). Embora o ttulo da conferncia tenha sido

    impresso em minsculas numa edio recente da Jorge Zahar, que faz parte da coleo Campo Freudiano no Brasil e dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller (Lacan, 2005 [1953c]), decidi, ao longo dessa tese, escrever com maisculas os termos Imaginrio, Simblico e Real, como uma maneira de grifar os conceitos.

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    Em primeiro lugar, uma coisa no poderia nos escapar, a saber, que h na anlise toda uma parte de real em nossos sujeitos que nos escapa. Nem por isso ela escapava a Freud quando este tinha de lidar com cada um de seus pacientes; porm, naturalmente, estava igualmente fora de sua apreenso e alcance. (Lacan, 2005 [1953c], p. 13)

    Mais frente, Lacan diz que existe um Real que no se trata na anlise e

    que se refere pessoa, s suas possveis qualidades ou falta delas. Nesta

    conferncia de julho de 1953, entusiasmado a partir de uma perspectiva

    estruturalista com o Simblico, Lacan pouco fala sobre o Real e, com isso, deixa

    seu interlocutor decepcionado no que se refere ao tema proposto. No entanto, na

    discusso posterior conferncia, alguns dados foram acrescentados, o que

    possibilitou um melhor entendimento a r