o Voo Da Estirpe Cap 1

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    O VOO DA ESTIRPEADRIANA VARGAS DE AGUIAR

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    O VOO DA ESTIRPECaminhos para a libertaoMODO Editora Tradicional

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    Dedicatria

    A todos que acreditam ou lutaram um dia por um amor quejulgou eterno.Dedico a todas as pessoas que amei; a todos que passaram eainda estou em meu caminho.

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    PREFCIO

    Foi com grande alegria que recebi o convite da escritora

    Adriana Vargas de Aguiar para prefaciar essa obra. Primeiro, por terfeito a reviso de seu texto. Depois, por ter ficado impressionadacom a fora de suas palavras. Como cheguei a afirmar autora,fazia tempo que no me deparava com um romance moderno, toforte e to apaixonado. Antes de termin-lo, Adriana chegou aperder seu manuscrito, tendo que reescrev-lo de memria. Quebom que conseguiu, o esforo valeu completamente.

    Em O Voo da Estirpe no podero ser encontradospersonalidades frgeis. Cada um dos envolvidos na trama parece

    ter sido moldado a ferro e fogo, principalmente Clarice. No hpersonagens perfeitos, cada um merece ateno justamente porseus defeitos que os fazem to humanos, to reais. fcil seapaixonar por caracteres moldados para conquistar o leitor, mas oque envolve na histria escrita por Adriana justamente ocontrrio: Klaus e Clarice so reais demais, poderiam ser o casal doapartamento ao lado, da casa da esquina, com seus problemas edramas pessoais. E isso que envolve quem acompanha a histria.

    Klaus no o homem perfeito, parecendo ter sado dos livrosonde sempre h um viveram felizes para sempre no final. aquele que conquistou Clarice ao seu modo, muitas vezes estranhode ser, muitas vezes incoerente, porm fiel s suas incoerncias,pois foi movido por uma paixo sincera e lutou por ela at o ltimoinstante. E alm.

    Tudo em Clarice intenso: com suas vontades, seus medos e oamor que sente por Klaus, parece sada de um roteiro deAlmodvar. No h meio termo, no h entrega parcial, pela

    metade. Clarice se doa completamente ao seu amado, semreservas.Portanto, s posso desejar uma tima leitura a todos aqueles

    que se aventurarem a fazer o voo da estirpe, assim como Klaus eClarice fizeram, sem medo do que estava por vir. Talvez voc sepergunte, ao ler o ttulo da obra: mas afinal, que voo esse?Pense em algo capaz de romper com tudo que possa dizer que algo impossvel e que, segundo Adriana Vargas, possui forasespeciais, capazes de traduzir o belo e o incomum. esse voo que

    somos convidados a fazer, ao conhecermos a histria desteromance.

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    Bia MachadoProfessora, Escritora e RevisoraCampo Grande/MS

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    Clarice - algum que no consegue se identificar. Precisou tornar-seincompreensvel pelos olhos alheios, para poder entender seu ser. Na mente,experincias no estado quase morte confundem sua realidade, ela j no sabia

    em qual parte da vida se encontrava. Onde est ou esteve Klaus? Quem eporque to especial? Ele existe? Ou apenas em est no interior da alma?Enquanto Clarice no sabe responder, Klaus est dentro de sua alma, a mesmaque vaga pelas ruas sem ser percebida, que conversa atravs da imaginaocom pessoas inexistentes. Klaus existe em seu corao, e ela mergulhar nomisterioso universo interior do ser; atravessar as fronteiras e limites dacompreenso e das leis naturais para encontr-lo ou reencontr-lo. Cabe aoleitor descobrir antes do livro II se verdade ou fantasia os momentosvividos... Quem Clarice?

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    Prlogo

    O voo da Estirpe I foi escrito propositalmente de forma

    introspectiva para que se descubram os confins do eu. No uma

    leitura indicada para pessoas que vivem fora da abstrao do ser,

    porm sua mensagem poder chegar a sensaes que ainda no

    descobriu em si.

    Todos os acontecimentos no livro I dizem respeito a uma

    viagem adulta e densa; forte e destemida. Nenhuma linha foi criada

    nos braos do acaso. Para tudo haver uma explicao at que esta

    se revele, mas para isso se faz necessrio uma entrega ao prprio

    questionamento que a obra induz. O segredo est na forma como

    voc se permite a tal viso.

    Iluso ou realidade? Nunca saber, at descobrir por si mesmo

    ou na leitura do livro II. Os mais afoitos se arriscaro a entender nas

    entrelinhas, at que no cheguem s respostas. H um dilema no

    livro o que se passa Sonho ou fantasia? Qual a verdadeira

    identidade dos personagens? O que se vive no perodo quase-

    morte, durante um coma criao da mente? Existiram outras

    vidas? O que explica a experincia fora do corpo quando um

    indivduo est em coma profundo? Os mortos podem te visitar

    durante o sonho?

    Enquanto no chega o livro II, tire voc mesmo suas prprias

    concluses, respondendo a tais questes ou crie novas perguntas.

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    Antes do acidente

    O quarto estava sombrio, assim como toda Paris.A escurido chegava a fazer sons em meu ouvido. Em poucossegundos, fui tragada completamente para algum lugardesconhecido. Demorei a identificar o que estava acontecendo.Com dificuldade em respirar, algo me impedia de mexer o rosto ecausava mal estar. Percebi-me sendo sufocada pelo travesseiro.Algum havia entrado em meu quarto e tentava me matar.

    Retorci o trax e, com as mos livres, debatia-me na camaquase desfalecendo, engolindo o prprio sangue que descia pela

    garganta. Por um ato de misericrdia, meu assassino soltou otravesseiro. Tive medo de encarar o tirano e ser surpreendida pornovas tentativas de tortura. Em um mpeto de sobrevivncia,levantei da cama e passei a correr, saindo pelas caladas escuras.Escutava seus passos atrs de mim. A distncia entre ns era curta,estava quase me alcanando. Tropecei algumas vezes, levantando-me pela vontade de conseguir escapar. Sem perceber o rumotomado, fui parar em frente ao penhasco paradisaco da cidade.Logo atrs de mim, algum misterioso querendo me matar.

    De longe um claro, algum escutara meu grito e viera ao meusocorro. Ao se aproximar, por mais que tentasse me ajudar, algo oimpedia como se estivesse tentando subir em uma escada rolanteque corria para a descida. Olhei-o pela ltima vez. Era um mooalto que usava um palet marrom. Seus olhos transpareciamimpotncia. Ele gritava algo que eu no conseguia ouvir. Oassassino se preparava para a minha morte. Encurralada e comapenas duas alternativas, finalmente escolhi: saltei do penhasco

    com o corao cheio de vida e medo.Acordei transpirando por inteira. As veias pulsavam firmes,parecendo rasgar a pele. Senti alvio por ter acordado viva e verque tudo no passava de um pesadelo. Estive escrevendo o contoque entregaria amanh de manh ao jornal local, antes deadormecer. Levantei-me da cama e perambulei pela casa cominteno de encontrar meu libi que argumentava o quanto viver bom. Olhei pela vidraa, ainda era dia. De longe se avistava achuva que vinha danando em ritmo frentico. Meus olhos

    alcanavam a energia que saltitava dos pingos ligeiros na folhagemdo jardim. Eu no sentia o cheiro, mas imaginava que ele se

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    comparava ao que minha me cozinhava durante a semana, semimaginar que comer beterraba era bom para tantas outras coisas epoderia ser a santa receita de minha libertao.

    Olhei mais uma vez pela vidraa e vi um pequeno pssaro se

    escondendo num cacho verde na rvore do jardim. Nele, vi-metentando me esconder da realidade nua e crua do mundo, dasqualidades e defeitos que reconheo como parte do meu pacote desobrevivncia. Meu gato, que responde pelo nome de Ninchi,passou por mim esfregando-se em minhas pernas, reivindicandosua rao. Abri a porta que saa para o singelo jardim nos fundos dacasa, um tanto abandonado: erva daninha crescia entre as plantasque minha me cuidava com tanto zelo. Aquele era o cenrio atualde minha vida, por dentro e por fora.

    Por entre o mato que cobria o lugar, uma roseira viva. Derepente, uma surpresa, um boto de rosa se abrindo lindamente decor vermelha. Quase chorei. Era a esperana que eu precisava paraentender que, dentre os destroos, sempre existir algo queanimar o recomeo. Senti vontade de colher a flor, mas em vezdisso, peguei a enxada e o rastelo e passei a limpar o jardim. Empouco tempo cresciam bolhas em minhas mos. A falta decompromisso domstico acomodara-me na preguia e desleixo.

    Eu gosto de estar s, mesmo que isso parea triste. Talvez euseja mimada, mas prefiro garantir minha me que continuarei namisso de no me contrariar. Este meu porto seguro, a raiz deminha imaturidade, um disfarce de criana rf que optou empermanecer na zona de conforto. A coragem viria com o desespero,com a obrigao de sobreviver aos meus sentimentos, porque viver apenas para quem aprendeu a voar.

    Ao terminar meu trabalho no jardim fui para o banho, limpar asujeira que havia dentro de mim. J tinha conseguido retirar a terra

    por debaixo das unhas, mas a sensao de mal estar aindacontinuava. Compreendi que os entulhos de terra, alm de estaremembaixo das unhas, haviam se impregnado nas valetas da alma.

    Sa do banho com uma sensao musical entre os fusoshorrios de meus rgos, cada um funcionando de um mododiferente. Fui at a herana da famlia, a vitrola antiga de mogno,que ainda tocava os velhos discos de vinil. Era uma lembrananostlgica que um dia fora importante para animar as festastmidas da adolescncia de minha av. Coloquei um disco country

    romntico, um clssico americano da dcada de 1960. No gosto decountry, mas era o que tinha para hoje. Servi-me de uma taa com

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    gua tnica e gelo, algum disse que isso substitui perfeitamente odesejo de se embriagar. Era tambm isso o que se tinha para hoje.

    A msica continuava tocando com seus tons evocados pelo ar,insistentemente triste e cafona. Algo peculiar me irritava naquela

    melodia, pois me identifiquei prontamente com o que achavaridculo em sua tristeza contida - esta era a expresso do somemanado de dentro do vinil.

    Estava vida por danar. Imaginei o country se transformandoem um blues, adornado por uma gaita chorosa. Reinventei um novofim para a msica infeliz. Elevei o copo como se fosse uma mo asegurar a minha e me pus a ensaiar os primeiros passos tmidos,para l e para c. Era ridculo, mas como j disse, era o que tinhapara hoje. E que dure at me esvaziar da obsesso por uma gota de

    algo que me preencha, sem que eu merea sofrer por isso. Porque,no fundo, s queria me sentir feliz.

    O motivo pelo qual estava em minha sala danando com umataa de gua tnica nas mos pouco importava. Pelo menos pudeme sentir uma rainha, inventada por alguns instantes: tudo estavaali para me servir.

    Fechei os olhos e me deixei ser levada pela voz feminina que jno soava mais como gritos apelativos e, sim, como algum quetentava me ninar.

    Poderiam estar aqui as pessoas mais importantes de minhavida. Quem? Minha me? Ser mesmo que ela supriria a solidoenraizada em meus axiomas, com a minha cabea em seu colo,querendo entrar em seu tero novamente para me esconder domundo aqui fora? A solido hoje a ausncia de mim mesma. Eusou a pessoa mais importante em minha vida.

    Como vou me sentir s, sem ao menos sentir medo de estar s?E quanto aos outros? S falo por mim, que fujo de rodinhas de

    curiosos que me questionam sobre como me sinto morando sozinhah tanto tempo. Digo com segurana, sinto-me bem, gosto de estarassim! Controversa - a fria taa de gua tnica substituiu a moausente por falta de opo. No digo isso enfatizando a falta damo de uma pessoa importante e, sim, a pessoa que se tornariaimportante se estivesse aqui.

    Continuo danando irritada, quase infantil, com os psdeslizando no tapete da sala. A irritao se prolongou at quecessassem os ltimos pingos de chuva. O cu se tornou sombrio,

    parecia um humano em depresso. As nuvens eram os olhos que

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    choravam por saber que sou algum que limpa incessantementeesta casa para ningum sujar.

    No limparei a casa com lcool, nem passarei mais o tempotodo sorrindo com um sorriso de cristal comprado em lojas

    populares. Se tiver que sorrir, que seja com o meu sorriso. Se tiverque chorar, chorarei com lgrimas de verdade em qualquer lugaronde couber a minha dor.

    Com o queixo sobre o tapete e cabelos cacheados no rosto,permito s lgrimas escorrerem pelo rosto lnguido e inslito. Eis achuva santa! Internamente, me perdoando por ser obcecada porresultados que acredito me pertencerem.

    Quando eu amar atravs das escolhas feitas pelo corao,talvez tenha tempo de sorrir. Pensarei nos tendes do estranho

    chegando, a festa se iniciar com a manifestao que a palavraamor guardou para ser descoberta em um momento especial. Omomento em que o outro me amar atravs do amor que vir emmim, por mim mesma.

    O dia est findando, j est escuro l fora. Tenho a sensao deque o ser amado bater minha porta se apresentando, pedindodesculpas pelo atraso, fazendo promessas. Perder a oportunidadede sair como o vilo da histria. Estaria acorrentado acerca doemeu conhecimento quanto a seu rosto, voz e nome. Por que em vezde me instigar, no vem se deitar comigo? Serei as mos curiosas ainventar as bocas que consigo distinguir umas das outras com o afde beij-lo, o cuidado para evitar sufoc-lo no exagerodescompassado da carncia.

    Justifico-me, dizendo que sou imperfeita. Uma herona feita dematerial humano, sujeita a sentimentos mesquinhos e falveis.Como posso impedir que o sentimento de vingana tome conta demim? Algum teria que pagar por minha solido. Tenho dois

    caminhos: esqueo e me proponho a perdoar o culpado annimo,ou permito que este ressentimento me guie.No fao isso por voc, estranho. Fao isso por mim, que

    mereo viver e ser feliz. Levanto do tapete e abro a porta para anoite comear. Hoje estou perigosa para a humanidade. A polciadeveria impedir-me de sair pela noite do modo como me encontro.Bbada de sentimentos, saio caa de emoes. Os botequinscheios, algumas prostitutas nas caladas e lobos ferozes dentro doscarros que seguem em velocidade lenta, procura de sua presa.

    O sapato me incomoda, restringe minha liberdade e machucaos ps, retiro-o e carrego nas mos.

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    Acabo de pensar, um carro estaciona ao meu lado. Continuo acaminhar. A pessoa insiste e atravessa o carro na rua, subindo pelacalada, tentando me impedir de prosseguir a caminhada. Dou avolta por trs do carro e prossigo irritada. O motorista sai do carro,

    bate a porta e segura em meu brao. Ei! Para onde vai com tanta pressa? Suas mos so fortes e

    me machucam. Tento escapar sem olhar no rosto dele, mas ele medetm.

    Solte-me! E solte agora! Quase ordeno que o faa. Elegargalha e tenta me arrastar para dentro do carro.

    Venha, belezinha, venha com o papai seu hlito de bebidaenjoava meu estmago. Passei a arranh-lo na mo que me prendiae relutei com as pernas para resistir a sua fora que me vencia.

    Olha, que beleza, uma gata selvagem. Ah! Ento voc gosta comviolncia? Falando isso, passou a puxar o meu cabelo eengravatou-me o pescoo.

    No sabia de onde tirar foras para pod-lo. medida queapertava meu pescoo, eu sentia a vista escurecer. A sorte quesou mais alta que ele e minhas pernas possuem a fora de umminotauro. Flexionei a perna para frente, buscando arranque e, como calcanhar, atingi o seu testculo. Ele me soltou.

    Sua ordinria! Ele se agachava e tentava me seguir. Sacorrendo, deixando meus sapatos para trs.

    Ofegante, cheguei minha casa. Ao trancar a porta, em vez dechorar ou me odiar no canto da sala, ri de minha vulnerabilidadepela busca de emoes fortes. Como pode uma pessoa ser toinconsequente? Fui para o banho, pensando que aquele dia j haviabastado para uma louca s.

    Ainda pude sentir como se fosse acariciada. Uma mo forte emacia, porm invisvel, sabe-se de l de onde tinha vindo, mas

    estava l... Ou eu queria que estivesse... Se, era imaginao ousobrenatural, no sei... Sei apenas que senti o cheiro dela e tudopareceu to natural, como se j tivesse acontecido antes, em algumlugar. Fechei os olhos e fui para a minha cama dormir, sem medo esem arrependimento de nada.

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    Caa ou caadora?

    Acordei com a sensao do hlito daquele manaco em minha

    boca. Tomei um copo dgua e pensei vagamente no que poderiafazer naquele dia para obter inspirao, com a finalidade deescrever alguma crnica para o jornal que presto servio. Sentei emfrente ao computador e nada vinha mente. No queriaempanturrar os leitores com minhas frustraes nesta semana. Abria janela e o sol parecia fazer daquela uma manh linda l fora.Esqueci os textos, coloquei um vestido confortvel para aproveitaros ltimos dias de vero e pensei em comprar algumas peas deroupas que me faltavam para esperar o inverno.

    Passei pela feira que vende variados tipos de produtos,mercadorias baratas que eram divertidas de se olhar, mas nada meagradava.

    O nmero de pessoas pelas ruas era considervel para aquelehorrio matinal. Imagino que vrias pessoas que estavamperambulando por ali estariam como eu: insatisfeitas e solitrias.Passei a observ-las, mais do que aos prprios produtos que eramoferecidos pelos vendedores, que gritavam aos ouvidos e quasepuxavam a clientela para dentro dos boxes.

    Observei uma mulher gorda, colocando uma roupa por cima deseu corpo e analisei a dimenso do tamanho desproporcional dapea que ela queria comprar. O vestido no entraria em suasilhueta e, mesmo assim, ela insistia com a vendedora, dizendo queaquele era o seu nmero e que a forma da roupa estava comdefeito. Percebi que, quando passo a reparar os outros, esqueo-mede minha prpria vida e que isso era algo intrigante. At causavauma boa sensao, porm, dispensvel para aquele momento.

    Atravessei a rua e parei em uma banca de jornal. Vi o jornalpara o qual escrevo e senti orgulho de mim mesma ao ler meusescritos no segundo caderno. Minha me tambm se orgulharia seestivesse viva e por mais que o dinheiro que ganho no seja lessas coisas, algo que compensa meu estado existencial nomundo. No fundo, nem estou to sozinha como imagino. Todos osdias, centenas de pessoas compram este jornal. Elas leem meusescritos, acompanham o meu trabalho e, de algum modo, sabemque existo.

    Algum esbarrou em minhas costas, pediu-me desculpas eseguiu. Olhei para trs para ver quem era, mas vi apenas um

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    homem alto, de palet marrom, que andava apressadamente porentre as pessoas. Assemelhava-se muito ao meu quase heri dosonho.

    Voltei os olhos para o jornal, li pela ltima vez meu texto e

    segui pelas caladas, admirando as vitrines, impulsionando ocapitalismo intrnseco.

    O cheiro do caf recm-preparado me fez parar e entrar emuma lanchonete. Sentei-me em uma das banquetas de frente aobalco e pedi um cappuccino. No primeiro gole, senti o gostoprazeroso que parecia fazer descerem pela garganta as amargurase a solido. Senti um par de olhos me observando e sa procurada direo em que vinham.

    Havia poucas pessoas no recinto e nenhum suspeito, pois

    todos estavam distrados com o que comiam, exceto um algumpor detrs de um jornal aberto que impossibilitava que eu visse oseu rosto.

    Observei que usava sapatos pretos de verniz, que vestia umpalet marrom, o mesmo do homem que havia tropeado em mimna banca do jornal. Igual tambm roupa do homem do pesadeloque tive no dia anterior. O jornal que lia, era o jornal para o qual euescrevo e minha empolgao em investigar aquele homem crescia, medida que nada conseguia saber sobre ele. Continuava com orosto todo coberto pelo jornal, queria saber se estava lendo o meutexto do dia.

    Uma discusso na frente do caf desviou a minha ateno. Umcasal se ofendia, enquanto o homem tentava agredir a esposa queacabava de ser flagrada com o seu amante. O tempo que perdiolhando para o tumulto foi o suficiente para que o estranho sasseda lanchonete sem ser percebido. Alis, ele no parecia real.Deveria estar vendo coisas ou minha mente estava to perturbada

    que me fazia acreditar em suas criaes. Fui pagar o caf e oatendente me disse que o senhor estranho de palet marrom haviaacertado a minha conta. Levantei apressadamente da banqueta esegui pelas caladas procura do estranho ou alma penada.

    Enquanto andava feito loba de olhos inquietos, pensei se esteestranho era o homem que conquistaria meu corao e me levariapara a Babilnia. Sua petulncia era algo que, j no prembulo,mostrava-me tratar-se de algum no mnimo interessante, ou defcil tato a ser detestvel. Antes do preldio, seria bom recomendar

    ao futuro e estranho amado acerca do meu lado obscuro. Saibaque, se eventualmente me magoar, estou armada para arranc-lo

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    do meu mundo com as unhas. Tomo de volta o cho que dei.Infelizmente as coisas so assim, as moas boazinhas e bemcomportadas possuem sua vaga garantida no plano celestial. Eu,porm, aproveitarei minha morada eterna onde achar mais propcio

    vazo da minha loucura.Passei em frente a uma floricultura e o funcionrio da loja me

    cumprimentou. Estava parado na porta do estabelecimento, comum boto de rosa na mo. Fiquei sem saber se o cumprimentava devolta e continuei andando neste impasse. Ele foi atrs de mim,fazendo-me parar.

    Ol, pediram-me para te entregar!Desconsertada e embaraada, peguei o boto de rosa vermelha

    e fiquei parada no meio da rua, imaginando como poderia esse

    estranho estar em toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo.Falando sozinha, mesmo em voz baixa, j chamava ateno daspessoas que passavam por mim. Estava ensaiando algumas frasesengraadas, se acaso o encontrasse, pudesse ter a chance deimpression-lo. Minha mente apressada, j imaginou a cena!Arrumarei o lado da cama que ele ir dormir. Ninar-se- entre osmeus seios insanos. Tirarei Ninchi da minha cama e o colocarei paradormir no tapete da varanda dos fundos. Pobre Ninchi, perder asua companheira das madrugadas de solido.

    Do inesperado veio a chuva.Corri para dentro de uma loja de lingerie buscando abrigo. Olhei

    algumas peas que estavam expostas em araras. No senti odesejo de compr-las; as roupas ntimas que j tenho so obastante para meus momentos de solido.

    Uma plaqueta discreta avisava que no fundo da loja funcionavauma ven. boutique1. Curiosamente segui at l para ver o que eravendido. Ao passar pela cortina que dava acesso ao local percebi

    um cenrio completamente diferente, at a iluminao havia semodificado. Uma luz neon fazia o que era branco se tornar aindamais branco, e o que era escuro ficar ainda mais escuro. O neontrazia para o ambiente uma sensao de sensualidade inusitada. Agaleria, embora pequena, parecia um labirinto, cheia de entradascom ares de mistrios. O meu desejo era de sair abrindo todas asportas de uma vez. As pessoas passavam por mim, curiosas comoeu. No enxergava os seus rostos, apenas sabia que estavam ali.

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    Nota da autora:N

    - Sex Shop

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    Abri uma porta e me deparei com um homem olhando atravs deum observatrio alguma imagem curiosa que eu nem queriaimaginar o que fosse. Percebi que ele estava com ereo, pois seapalpava. Fechei a porta imediatamente e abri outra. Neste setor,

    havia algumas mulheres desfilando com fantasias erticas e, para omeu espanto, consegui contar ao menos dez compradoras queestavam vidradas na futilidade. Fechei a porta e continuei meupasseio, que foi interrompido somente quando um famoso paletme chamou a ateno em meio luz neon, no pela cor, mas pelossapatos que brilhavam na luz negra. Quase trombamos, ele tentavame encontrar na escurido, olhando para todos os lados. Seuslbios semiabertos davam a impresso de avidez. Procurava-mecom sede em me encontrar. No mnimo, estaria sentindo prazer

    durante este jogo incansvel que nos encontrvamos. Quando sedeu conta de que eu estava sua frente, saiu; antes, porm, olhou-me profundamente, mas no escuro senti apenas o magnetismo deseu olhar, a luz me impedia de ver o seu rosto. Senti um fogoardendo, subindo de minhas entranhas ao pescoo.

    Eu queria... Antes mesmo de completar a frase, saiurapidamente.

    Segui atrs dele com a esperana de alcan-lo, porm avendedora na porta do sex shop me barrou com uma sacola nasmos. De longe eu vi o vulto dele desaparecer diante de meusolhos. No estava sonhando! Eu vi esta cena. Ele um fantasma ouestou precisando urgentemente de um psiquiatra.

    Fille2, suas compras! Seu marido no a encontrou na loja,descreveu-me como estava vestida e me pediu para lhe entregarum recado, ele a estar esperando para o jantar.

    Meu corao disparou.Desta vez, ele tinha ido longe com sua criatividade.

    Abri a sacola e, dentro dela, havia a lingerie que eu haviaolhado na arara que ficava na entrada da loja; mais no fundo dasacola uma fantasia de enfermeira, que odiei! Odiei tambm oestranho ou alma penada que brincava com a minha curiosidade ese divertia s minhas custas.

    Sa da loja com o desejo de encontr-lo e fazer o mesmoescndalo que o marido trado havia feito em frente ao caf.

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    - Moa

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    A temperatura havia cado. Voltei para a casa tremendo de frio,sem ter comprado a roupa de inverno e com a maldita sacola doven. boutique3 em uma das mos e, na outra, o boto de rosa jfaltando ptalas.

    Foi um dia frustrante, ou esta a inspirao para o meu novotexto?

    Acordei tendo o frio como companhia. Pensei no estranho antesde dormir. Quanta bobagem... Jamais voltaria a v-lo! Ele noexiste, criao de minha mente.

    Sai por a na busca por sensaes - A Torre Eiffel. Ela tosimblica, que no imaginrio parece que nem existe. Quandofinalmente me deparei com ela bem de pertinho, enorme e

    imponente, a chuva comeou a cair justamente neste momento,mas no me atrapalhou em nada, fiquei apreciando o monumentopor um bom tempo. possvel subir de elevador ou de escada;escolhi a segunda opo e subi os 700 degraus para encontrar umalinda viso panormica de Paris e de seus principias pontostursticos ao longe. O que encontrei uma Paris enorme, comprdios antigos em tom ocre, uma pequena ilha onde ficam osprdios modernos e muitos monumentos histricos.

    Sa de l e fui at estao.Seis horas de trem de Rotterdam e a silhueta da famosa

    capital francesa comeava a se revelar. Da janela do trem, osprimeiros prdios iluminados pela luz do amanhecer comeavam aaparecer. L estava eu s 7 horas da manh, sem saber para ondeir. A sensao de chegar sempre interessante, cercado de muitasdvidas e incertezas, e com muitas coisas novas a descobrir. Asprimeiras impresses foram de uma cidade vazia, compreensvellevando em conta o horrio e o dia, um domingo. Acabei vendoParis despertando, os turistas comeando a chegar, o comrcioabrindo suas portas. Tudo isso enquanto caminhava pelo centro dacidade em busca do escritrio de informaes tursticas, localizadona Avenida Champs Elysees, bem pertinho do Arco do Triunfo!Parecia um sonho.

    As pombinhas andando pelo parque me fazem lembrar o meutempo de infncia. Sentei-me em um banco qualquer e passei a

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    Nota da autora:N

    - Sex Shop.

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    observar as pessoas andando loucamente pelas ruas e semperceber o quanto o cimento nas caladas estava desgastado pelotempo e o quanto j serviu sem ser notado. O cimento guardamais lembranas do que as pessoas que possuem corao. Est l,

    o tempo todo, vivendo intensamente somente o que se tem parahoje, assim como eu.

    Jogo os milhos de pipoca que trouxe em meu bolso, as pombasvieram buscar o alimento. Eu poderia pisar em uma delas com asbotas de cor marrom e fivelas douradas. Estavam dispostas a viverou morrer pelo po nosso de cada dia, assim como os meninos nascaladas pedindo, encarecidamente, pelo trocado da compra dossuprfluos no supermercado poderiam ser pisados, esmagados,como o pai que precisa do emprego para alimentar seus filhos com

    o nariz escorrendo, cheios de remelas nos olhos. No quero serpisoteada pela carncia que me faz mil exigncias; explora-medeflorando, como o sexo de uma menina desvirginada aos quatorzeanos.

    Pombinhas miserveis e interesseiras!No desenvolvem laos de afeto aps novas pores de

    qualquer coisa que lhes seja oferecida! Correm, abandonando oamigo anterior.

    Com poucas possibilidades de ao, o domingo estava cinzento,com criana chorona, correndo de um lado para o outro no parque,por no saber escolher com o que quer se divertir. A bab ignora abirra da criana e continua com seu rosto submerso em uma revistade fofoca. Um velhinho sentado em outro banco, com uma toucacobrindo quase todo o seu rosto enrugado; inerte, esttico, como segostasse de sentir o frio. Nada acontece aparentemente, masdentro de cada uma dessas personagens, h um universo solitrio.A bab se esconde na revista. A criana na insatisfao. O velhinho

    na touca. E eu, escondo-me em cada um deles para inviabilizarcontato com os meus sentimentos.

    O que fiz hoje, alm de pensar nos lbios do estranho?

    Penso no amor que perdi: Pierre. O mais refinado e desejadoamor, que de mim foi roubado por minha melhor amiga, Belle.Penso na dor que isso me gerou enquanto eu tentava esquecer, oudigerir. Na decepo em ter atribudo a minha f aos cuidados de

    algum que desprezou o valor de uma amizade. Penso na distncia

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    que hoje nos separa com o passar dos dias. O tempo o levou demim. A traio o roubou de meus sonhos.

    E a vacina contra frustraes ainda no existe. Apenas aprendia caminhar em caminhos que j abdiquei: o tal contratempo. O

    amor sonhado desapareceu para um ltimo eu te quero, dito emtom tnue no ouvido, somos lembranas apenas e isso umlamento, um aprendizado. Pelo menos sei que fui desejada, apesarde trada, embora nada traga a soluo para a questo carncia.

    Tudo paliativo e adiar o momento em que terei de olharsinceramente para meus grilhes e perceber que o problema estdentro de mim.

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    A melhor amiga

    Belle e eu ramos simplesmente inseparveis.Desde que nos conhecemos no jardim da infncia, comaqueles uniformes horrveis de camisa branca de gola e saia azulmarinho de preguinha at o joelho, que caracterizava a autnticaMaria mijona, no nos desgrudamos mais.

    Samos da infncia e entramos na adolescncia juntas. Aosdezoito anos ela tirou a sua carteira de habilitao, e isso para nsera simplesmente o mximo, podamos sair e aprontar todas.

    A nossa aposta era sempre a mesma quem ficar com

    les jolis garons4da faculdade? Ela sempre ganhava, pois era a maiscomunicativa e manipuladora. J eu, preferia descobrir a beleza queningum conseguia ver nos tesouros escondidos. Para o meu azar,assim que me interessava por algum recm-descoberto entre osescombros desprezveis, parecia at que o banhava a ouro, poistodas as garotas de minha idade passavam a se interessar por ele,inclusive Belle, que logo percebia o olhar, os lbios, o jeito de falaretc... Tudo o que antes era desinteressante. Aps o meu namorico

    se desfazer, Belle iniciava algo com a mesma pessoa. Eu no meimportava, pois levvamos na brincadeira. At brincvamos,dizendo-nos scias de negcios - paqueras!

    Em uma tarde de sbado, quando tnhamos dezoito anos,chovia muito e no havia nada para se fazer. Entediadas,resolvemos ir ao Champs Elysees Shopping. No caminho, saindo doelevador, comentando sobre os assuntos do momento, comoesmaltes e os garotos que ingressaram em nosso cursouniversitrio, decidimos gastar um pouco de tempo e dar uma voltapela RuaSaint-Jacques.

    Logo que entramos nessa rua, Belle avistou um garotocom o carro parado. O carro parecia estar quebrado.

    Amiga, para tudo! Olha ali, que beau garon5! elaapontou para o rapaz que estava com cara de cachorro que caiu

    4Nota da autora:N

    Os meninos bonitos.5 Menino lindo.

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    da mudana. Vou passar do lado do carro e voc pergunta a elese est precisando de ajuda ela riu, ironicamente.

    Ela passou com o carro ao lado do rapaz como planejara eeu, timidamente, perguntei:

    Est precisando de ajuda? nem olhei para o seu rosto,pois sentia o meu totalmente vermelho de vergonha.

    O meu carro quebrou! ele estava com as roupasencharcadas.

    Olhei para Belle, sem saber o que mais perguntaria, poisno entendia nada de mecnica.

    No temos como ajudar o bonitinho, alm disso, olha op dgua caindo! disse eu, mostrando o tempo l fora.

    Judiao! No podemos deixar o petit garon6 tomar

    banho de chuva sozinho! Olha os olhos dele, mon Dieu7! Amiga, sinto muito, mas no vou descer do carro nem a

    pau! Mas eu vou... E nossa aposta? Nossa aposta s vale para o crculo da faculdade! Para mim, vale para qualquer lugar dizendo isso, ela

    desceu.Voltou toda molhada, dizendo que o carro estava sem

    gasolina. Amiga, ele vai empurrar o carro e encost-lo na calada

    para evitar um acidente, pegue o carro e v at um posto buscargasolina para ns? Ficarei com ele enquanto isso.

    Vai ficar na chuva? Ah! No sabe que os beijos molhados so os melhores?

    ela riu, assanhada.Sa e fui buscar aqueles gales plsticos de emergncia,

    com cinco litros de combustvel, e at hoje no sei como consegui

    dar a volta dirigindo e segurando o galo cheio de gasolina, o carrono tinha direo hidrulica.Retornei com o combustvel e entreguei-o para Belle sem

    descer do carro. Ela j estava muito molhada. E a, conseguiu algo? perguntei, curiosa. Ainda nada, mas estou no caminho...

    6Notas da autora:N

    - Gatinho.7 Meu Deus.

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    Continuei dentro do carro vendo pelo retrovisor a brigapara conseguir colocar o combustvel no tanque. O rapaz tinha umPeugeot, e nada dava certo. Cansada de tanto esperar, resolviajudar e levei alguns prospectos com propagandas de

    apartamentos que estavam no carro para fazer um funil e, assim,conseguimos colocar o combustvel.

    Enquanto caminhava de volta para o carro, senti quechutei algo que fez um barulho caracterstico a um de molho dechaves. Ao olhar, vi que era o molho de chaves que estava preso tampa do tanque do Peugeot, e o pior, rolou direto para o bueiromais prximo.

    Como ningum viu, fiquei na minha e no falei nada.Eles comearam a procurar a chave e a tampa do tanque, para o

    rapaz poder ir embora. Sem saber o que fazer, ajudei falsamente aprocurar. At sugeri que poderia ter cado no bueiro, mas disseramque isso no poderia ter acontecido, pois estava no cantinho, pertoda roda. Pronto! Uma simples canalhice de minha parte tornou-seuma confuso.

    Com pena do rapaz e me sentindo culpada, mesmosabendo que esta situao poderia ter acontecido a qualquer um,pedi a Belle que oferecesse uma carona para o rapaz ir buscar achave reserva em sua casa.

    Nossa, aceito sim! Apesar de nem saber onde poderiaachar esta chave reserva, pois estou no Brasil h cerca de vintedias.

    Nossa! Onde voc estava? perguntou Belle,entusiasmada.

    Estudando na Itlia, ganhei uma bolsa. Nossa! Que mximo! Agradeo a ajuda de vocs. Aceito sim, e assim que eu

    encontrar a chave em casa, volto para c!Descobrimos que ele morava perto de Batignolles-Monceaux. Que fria! Mas como j tnhamos oferecido ajuda, notinha mais jeito o lugar no chegava nunca! Era longe, muitolonge...

    Ao chegarmos, ficamos esperando no carro. Amiga! Que lugar esse? Belle me perguntou, j se

    sentindo frustrada.Esperamos o rapaz sair com a chave, e da casa dele, at

    chegar onde o carro estava, era tempo o suficiente para elesmarcarem algo. Belle me entregou a direo do carro e pulou para

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    o banco de trs, com inteno de ficar ao lado do garoto quando eleentrasse.

    S o que me faltava 2! Ir de motorista! Alm de segurarvela, se acaso rolasse algo.

    Do nada, o rapaz saiu da casa com o pai e o irmo. Elesiam buscar o carro, aproveitando a carona, e o futuro ficante deBelle ficaria para tomar um banho, pois estava muito molhado.

    Como assim? Voc no vai? perguntou Belle frustrada,j saindo do banco de trs e me empurrando para o banco docarona.

    No caminho de volta, fui respondendo ao interrogatrio doirmo e do pai do menino, sobre o que acontecera de verdade, eonde poderiam estar as chaves. Por dentro estava rindo, pensando

    em Belle, toda molhada, que esperava o garoto para marcar umencontro.

    Quando chegamos com os dois guarda-costas do rapaz,Belle estava mais molhada ainda. Tinha ido ajudar um motoqueiroque cara ao bater na porta de seu carro quando ela o abrira paradescer. Com o impacto, a porta bateu e travou, ento ela ficou dolado de fora, tomando toda a chuva.

    Os guarda-costas do garoto pegaram o carro,agradeceram e foram embora.

    No aguentei e comecei a rir, gargalhar da cara da minhaamiga oferecida. Entramos no carro e fomos embora para nossascasas. No dava para ir mais a lugar algum.

    Depois de umas duas horas ela apareceu em casa, dizendoque sua carteira tinha desaparecido. Fomos olhar juntas no carro,mas no estava l. Imaginamos que tinha cado do carro.

    Durante a semana comearam a cair cheques. Eladescobriu as lojas em que as compras tinham sido realizadas. Ao

    conversar com os funcionrios da loja, eles deram a descrio doirmo do garoto. Nem preciso dizer que no final das contas ela searrependeu de ajudar o bonitinho, e ainda teve que passar por tudoque passou.

    Logo que conheci Pierre apaixonei-me no mesmo instante,mesmo sem olh-lo de frente, como fazem as pessoas normais. Aesta altura, eu j havia perdido a esperana do bom senso e

    sonhava incansavelmente com o prncipe encantado, sado de um

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    romance, quase impossvel pela distncia que nos separaria, masque num belo dia de sol nos uniria pela eternidade.

    Era apenas um desejo, seguido de um pensamentoatormentador, mas quis acreditar sem ouvir conselhos, e no quis

    imaginar que isso no passava de uma fantasia. Conheci-o atravsda internet, e durante dois anos nos falvamos todos os dias. Elecolocava a mo na tela do seu monitor quando aparecia minhaimagem atravs da webcam, eu o imaginava tocando em meuscabelos castanhos, sentindo a temperatura morna de seus dedos.

    Preciso ir at voc... ele escreveu.Venha! respondi.Voc no acredita em amor virtual, lembra? ele me lembrou

    a forma como nos conhecemos.No acreditava at conhecer voc precisei admitir.Voc me deseja? ele perguntou.Muito! respondi.Mas no me conhece...Vou conhecer voc, sim! falei, sentindo tanta certeza

    quanto dois mais dois so quatro.Jura que acredita nisso, menina? ele mexia com os meus

    sonhos.Juro ter certeza disso, meu Dom Quixote era o que mais

    queria.

    Linda, vou sair um minuto para tomar um banho e jantar.Enquanto isso, leia o arquivo que estou enviando.

    Aceitei a transferncia de todo o arquivo para o meucomputador.

    Ao terminar de carregar, meu corao acelerou logo que inicieia leitura. Era o comprovante de sua passagem. O voo 2456,poltrona 109 traria, para mim, na prxima sexta-feira, o homemque havia me tirado a fome e o sono.

    Gostou da surpresa? ele perguntou.Estou absolutamente sem palavras! respondi.Mas gostou?Amei! fui sincera.

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    Pierre morava a 2300 quilmetros de Louvre. Jamais havamosnos visto pessoalmente. Comeamos uma paquera boba pelainternet quando acessei um site de pesquisa, buscandoinformaes sobre literatura. Encontrei um frum que debatia a

    matria sobre amores virtuais. Estava buscando informaes arespeito deste assunto para investir no prximo texto queescreveria para a coluna do jornal. Acabei me empolgando com oclima dos comentrios e arrisquei deixar minha opinio, mesmosem nunca ter vivido uma experincia virtual com algum:

    Confesso que no acredito em amores que nascem a partir deum monitor. Para amar necessrio tocar, sentir e conhecerdefeitos e qualidades.

    Assim que ficou visvel meu comentrio, algum com nome dePierre comentou o que eu havia escrito:

    Confesso que no consigo controlar os meus sentimentos eque se pudesse escolher, no me apaixonaria por uma internauta,no o faria, mas existem coisas que simplesmente no podemosevitar e nem compreender.

    Achei-o ousado!Queria mesmo era lhe dar uma boa resposta, mas... Eu estava

    na rede. Escrevi porque quis.Olhei para o monitor e vi o prximo comentrio que ele fez ao

    que eu havia escrito:

    Clarice Champoudry, 28 anos, branquinha, cabelos castanhos(naturais, huuuu! At que enfim encontro uma mulher original),

    colunista de jornal, solteira (muito bom!), quer dar uma volta pelainternet comigo?

    Ele clicou em cima do meu nome e leu meus dados, vendo afoto no cadastro que havia feito no site para ter acesso.

    Era um verdadeiro imbecil! Como pode acreditar que umamulher cairia em sua teia? Quantas mulheres ele galanteava pordia, no mesmo site e com o mesmo repertrio?

    No iria perder meu tempo em ficar debatendo sobre um

    assunto ridculo. Irritada, sa do frum e fui redigir meu texto.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/1.%C2%BA_arrondissement_de_Parishttp://pt.wikipedia.org/wiki/1.%C2%BA_arrondissement_de_Paris
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    Uma mensagem instantnea me avisou que havia chegado umemail em minha caixa de entrada. Que droga! No consigocontrolar meus impulsos quando fico curiosa. Larguei a inspirao efui verificar a mensagem.

    Tratava-se do mesmo nome insuportvel do frum, Pierre!

    Cara Clarice, desculpa-me pela indelicadeza, por este motivoestou aqui disposto a reparar o inconveniente. Abaixo segue o meuMSN e fao questo de falar contigo para corrigir a m impressoque deixei.

    Larguei a ideia de escrever, a esta altura j estava dispersa.No custava nada ir saber o que este tal Pierre queria comigo.

    Adicionei-o lista de contatos e logo nos primeiros quinzeminutos de conversao, j percebi o que seria a tal paixo virtual.No que eu tenha sentido isso de imediato, mas uma sensaoestranha afagava a minha carncia e ele dizia exatamente todas aspalavras que esperara ouvir de um homem.

    Aos poucos, cedi.

    Pus a mos nos lbios quando dei por mim e percebi o queestava acontecendo. O documento que Pierre havia me enviado eranada mais, nada menos do que o protocolo de sua passagem at aminha cidade.

    Ele veio. Fui busc-lo no aeroporto com o corao nas mos.Quando nos vimos, seu abrao foi algo prolongado, cheio de beijose suspiros. Olhava diretamente em meus olhos e noacreditvamos que estvamos to prximos um do outro enfim...nossos sonhos se realizando depois de tanto tempo diante de uma

    mquina fria, que mal expressava nossos sentimentos.Seguimos para o hotel reservado e escolhido a dedo. Foram osmelhores momentos de minha vida. Ele me amou com loucura esem trguas. Eu me sentia a menina mais boba da face da Terra.

    Passeamos juntos, tomamos chuva e crme glace8. Mostrei-mequem era e o que sentia. Ele me viu com os cabelos molhados,raridade, pois jamais permitiria que um homem descobrisse meus

    8Nota da autora:N

    Sorvete.

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    cabelos encaracolados e, to pouco, que me visse descalaandando pela chuva com os ps gordinhos e chatos.

    Ele me pediu em namoro e jurou que havia encontrado amulher de sua vida. Vi-me inmeras vezes entrando na igreja

    vestida de noiva, enquanto ele me beijava e me fazia acreditar queexistiam problemas no mundo real.

    Dormamos abraados aps fazermos amor. Pierre ficava horasacariciando as minhas costas e passando as mos em meus braos,nutrindo-me com um carinho esperado. Estava muito perfeito paraser verdade!

    Como tudo o que acontecia, eu contava para a minha melhor enica amiga, Belle. Em nossa primeira noite, corri para o banheiro

    enquanto ele cochilava um pouco. Abri a bolsa e percebi que haviaesquecido o celular. Precisava falar urgente com ela. Prometera-lheque telefonaria, na primeira oportunidade, para lhe contar comotudo acontecera. Olhei para a mesa do quarto e vi o celular dePierre, pensei dez vezes antes de us-lo sem pedir autorizao, masdecidi telefonar escondido:

    Amiga, ele um sonho! Lindo! E na cama... Ah! Nossa, amiga, srio?! Estou azul at agora, sem acreditar

    que ele teve a coragem de vir! Segura esse homem, menina!Atravessou o pas para te conhecer! Olha, no existem homensassim no, viu? Se ele veio, porque realmente est apaixonadopor voc! Aproveita! De quem este nmero de celular?

    Nem te conto, esqueci o meu celular em casa! E peguei odele quase emprestado ri.

    Sua danada! O que voc fez para que este homem casse dequatro aos seus ps?

    Ser, Belle?

    No venha com medos claricences, por favor! Se no dercerto, volte para o clube do chuveirinho ela riu. Amiga, ele um escndalo na cama! Voc no tem noo... Nem me fale uma coisa dessas! Estou meses sem nada... Vou desligar, ele est acordando escutei Pierre se mexendo

    na cama.

    Quando ele foi embora, algo me dizia que no iramos mais nosver, mesmo com ele prometendo a terra e o cu.

    Ele sumiu. Eu estava certa.

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    Fiquei triste e pedi o consolo de Belle.

    No fique assim, cherry9, ele vai aparecer... Fui somente uma aventura em sua vida choraminguei.

    Bom, se foi, ou no... O importante que voc aproveitouhorrores... ela riu.

    Voc no entende? Eu me apaixonei por Pierre. Para mim,no foram apenas algumas noites de sexo delicioso. Foisentimento! Acreditei que seria possvel.

    Calma! Vamos pensar em algo... D-me o e-mail do rapaz!Sem pensar em nenhuma alternativa, resolvi aceitar a ajuda. O que vai fazer, sua maluca? perguntei. Vou adicion-lo, quem sabe eu no consigo tirar algo dele?

    Ser que isso o certo? Larga de ser boba, pode deixar comigo.

    Depois disso, a nica notcia que tive foi de que Pierre e Belleestavam juntos.

    Antes de escrever o e-mail, ela ligou para o nmero de Pierreque ficara gravado na memria de seu celular quando, naquelanoite, fui falar com minha melhor amiga do telefone mvel de meunamorado.

    E, por este motivo, tudo mudou em mim.

    9

    Nota da autora:N

    - Querida.