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OENCONTRO - IMVI - Igreja Metodista de Vila Isabel · 2008-02-09 · Mas já houvetempo quando se discutiam as intérminas diferenças entre gregos e troianos, entre Atenas e Esparta,

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OENCONTRO

B. P. BITTENCOURT

À MINHA MÃE

MARIA JOANA BITTENCOURT

ESTAS PÁGINAS SÃO CARINHOSAMENTE DEDICADAS.

CAPA E DESENHOS DE:DERLI BARROSO

PUBLICAÇÃO DAJUNTA GERAL DE EDUCAÇAO CRISTÃ

DA IGREJA METODISTA DO BRASILSÂO PAULO

1965

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ÍNDICE

A GÊNESE 06A OPORTUNIDADE 07

I À BEIRA DO POÇO DE JACÓ 09II AMOR 17III PAZ 21IV O SENTIDO DA CRUZ 26V VONTADE SOBERANA 31VI GRATIDÃO: IDEAL DE SERVIÇO 36VII A OVELHA E A LÃ 39VIII COMPANHEIRISMO 44IX O TEMPO 48X O ENCONTRO 53

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A GÊNESE

Meu caro leitor, as meditações que se seguem não têm outra

finalidade senão a de ajudá-lo a compreender melhor suas relações

pessoais com Jesus Cristo no tempo presente.

Elas foram escritas sem preocupação literária, de improviso, de

momento, na hora em que o espírito de Cristo as trazia ao meu coração.

Foram escritas num exílio acadêmico na Alemanha, quando, longe de meus

queridos, da minha Igreja, de meus amigos, da minha Pátria, nele e só nele

encontrava refúgio nas horas de saudade, saudade imensa, grande, difícil,

mas gostosa saudade.

E, ao escrever estas páginas, eu vivia com ele o seu enredo, seu

colorido, sentido vário, que não é meu, mas dele, inspiração dele, e para o

seu louvor unicamente escritas. Se mérito há, também é dele, para quem

seja a glória para todo o sempre.

Heidelberg, dezembro de 1961.

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A OPORTUNIDADEO tema constante para a discussão do homem de hoje é política

internacional baseada no denominador comum Oriente-Ocidente oucomunismo-capitalismo; e na equação é indispensável entrar os cálculosfuturos no que respeita à sorte das ideologias em foco, quiçá do própriomundo, o poderio atômico das partes discordantes com suas imprevisíveisconseqüências.

Mas já houve tempo quando se discutiam as intérminas diferenças entregregos e troianos, entre Atenas e Esparta, ou quando se debatia na rua e noSenado o antagonismo Roma-Cartago. Tudo passou com a História e hojesó serve para atormentar nossos filhos na escola.

Talvez esteja o leitor pensando que, numa época de extremodesenvolvimento científico e com problemas político-sociais de tão alta rele-vância para o momento histórico ocupando a atenção do mundo, seja atéanacrônico falar sobre uma personalidade que viveu há quase dois mil anos.Mas, exatamente porque o avanço da ciência trouxe consigo brutalsecularização do homem, com uma conseqüente degeneração de seusvalores espirituais, é que se torna legítimo falar-se na reabilitação dessesmesmos valores.

Por mais que o homem queira negar e fugir existe, inata em sua alma,uma tendência religiosa (como inata é a sexual ou a gregária) que o arrastanum movimento constante em direção a um deus, e de cuja influência elenão pode nem sabe escapar, levando-o a levantar diante dos próprios olhosas mais esdrúxulas imagens da divindade. A este teotropismo, que semanifesta desde o animismo dos povos primitivos até as mais refinadasformas de teísmo de nossos dias, jamais o homem pode escapar, por maisque submeta sua consciência a valores materiais imediatos.

Totalitarismos romanos, como democracias gregas, têm-se levantadocom os séculos, e, com os séculos, visto também seu ocaso. Os maisvariados ídolos, os mais diversos deuses, as religiões mais esquisitas, têmencontrado eco no coração humano nos milênios por que corre a História.Tudo tem passado como também passará a tensão dos dias que vivemos.

Mas Cristo "é o mesmo ontem, hoje e eternamente". Com ele está avitória. Ainda agora o Papa afirmou, e com razão, que à "Igreja do Silêncio"na Hungria, pertence a vitória, e que esta vitória é só questão de tempo.

Esta é a única razão que me leva à publicação das meditações que seseguem: a fé firme de que Jesus Cristo é o Senhor da História, o Senhor da

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vida; ele é a certeza para as incertezas do coração humano, a únicaesperança em meio à crise presente, o único amor para este mundo inimigo,o único valorespiritual em meioà presente secularização.

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I

I – À BEIRA DO POÇO DE JACÓ

João 4.1-42

A CENA

Meio-dia. Vestes empoeiradas de um longo jornadeio, pés descalços,cabelos soltos ao vento, chega o viandante, sedento e com fome, vindo doSul, às vizinhanças de uma cidade da Samaria, chamada Sicar. Horaprópria para uma pausa na jornada, e nenhum lugar melhor para o cansadoperegrino que a murada da fonte de Jacó. Fatigado, senta-se ali.

O bando de seguidores vai à cidade comprar alimento.

Só, a cismar, quando seus olhos se refletiam nas águas quietas dafonte, a incentivar-lhe a sede, foi que uma mulher de Sicar se achega aopoço, desobrigando-se de mais um de seus diários quefazeres (ocupações).Reconhece logo, no estranho, um judeu, raça que ela e os seus odiavam,ódio, aliás, bem retribuído. Procura ignorá-lo, tirar a água, voltar à cidade e

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continuar o ritmo normal de sua vida anormal.

Mas o viajor aproveita o ensejo para pedir água e matar a sede, pois, opoço é fundo e ele não possui com que tirá-la.

"Dá-me de beber".

Estranho pedido, pois os judeus não se comunicavam com ossamaritanos.

E a mulher, admirada, volta-se e lhe dirige uma pergunta perfeitamentenormal:

"Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim que sou mulhersamaritana?"

Sim, meu caro leitor: um judeu. Um judeu como muitos outros quehaviam, cansados, sedentos, famintos, atravessado a Samaria e, ali juntoà fonte de Jacó, sido vistos vezes sem conta, ignorados, anônimos,indesejados.

Foi assim que escribas, fariseus, saduceus, sumos sacerdotes,Herodes e Pilatos viram o mesmo homem. E para estes, simples, masatrevido judeu.

E é assim que muitos — milhões quem sabe — ainda hoje olham paraJesus de Nazaré. Ele é "o homem", como disse Pilatos, não porque oprocurador o destacasse como "O Homem", mas porque era o conhecido, oacusado, o indesejável, digno só de uma cruz e nada mais.

Quantas vezes você tem ouvido falar de Jesus como outro judeu igual aJudas Macabeu, Uzias ou outro qualquer. Ele representa nada para suavida, muito menos que seu cavalo ou seu automóvel com os quais você sepreocupa todos os dias, porque deles precisa para seu transporte.

Passam-se as horas e os dias como se só existisse um ponto numlongínquo passado histórico relacionado com o nome desse Judeu, ao qualpor sua vez se juntam outros nomes como Belém, Nazaré, Cafarnaum,Jerusalém, Judéia, Galiléia, Herodes, Pilatos, João, André, Pedro e outros,também de memória quase apagada. Você também conhece algumasdatas como Natal, Páscoa ou Pentecostes, nas quais o comércio seengalana, é feriado na fábrica ou no escritório, há refeições especiais emcasa, visitas, presentes, e é tudo. Além disso, o judeu é igual a um polonêsou malaio que você porventura haja conhecido quando morou em Atibaia ouPasso Fundo.

Nenhum significado, nenhuma relação. Outra raça, outra época, outra

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língua, tudo distante, tudo difuso, quase impenetrável.

E você ainda é feliz quando aceita ter existido esse judeu. Outros há queaté a existência histórica lhe negam, dizendo ser ele um mito comomitológicaseram as figuras em torno das quais gregos e latinos construíramas mais estranhas histórias deste mundo. Outros dizem--no criação damente excitada de um bando de homens e mulheres que seus passosseguiram por um ou dois anos e às suas idéias fantásticas emprestaramcrédito.

Mas o trabalho, os negócios, a família, este mundo todo de lutas, depreocupações ou de prazeres e gozo sem conta, levam-no simplesmente aignorá-lo ou a contá-lo com o outro judeu ali da esquina e do qual vocêcompra sapatos ou meias de vez em quando.

Ignorá-lo, simplesmente ignorá-lo.

Assim quis fazer a mulher de Sicar. Deixá-lo-ia entregueàs especulaçõesde seu descanso, voltaria aos cuidados da casa, a seu amante, e oesqueceria como a tantos outros judeus que pela retina lhe haviam passadoem anos de que já não mais se lembrava.

Mas o judeu lhe responde: "Se conheceras o dom de Deus e quem é oque te pede: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva".

A resposta ouvida pela mulher é estranha. Um judeu comum não lhefalaria assim. "Dom de Deus... água viva...". Onde esse cavalheiro conseguiuesses elementos tão estranhos e ao mesmo tempo tão impressivos? Sim elenão é simples judeu como as dezenas que por ali passaram e cujo vulto cedono horizonte de desvanecia para nunca mais ser evocado. Mulher de vidalivre, acostumada a lidar com os homens, levanta os olhos e contempla ovulto peregrinoque lhe ousa falar nesse tom diferente. Não, ele não é vulgar emerece outro tratamento do que o pejorativo "judeu" de início. E, nacontinuação de um dos mais belos diálogos que jamais a pena do homemregistrou, ela muda o tratamento: "Senhor..." Não mais o judeu vulgar,anônimo, até desprezível. Ele é cavalheiro e assim é tratado.

Quantas samaritanas e samaritanos de hoje assim também conhecema Jesus de Nazaré.

O trato com ele é feito em base puramente humana, embora ele fale em"Dom de Deus" e em "Água viva". Suas relações com ele ainda o colocamem pedestal inferior a Jacó, o patriarca da Escritura: "És tu, porventura,maior do que nosso pai Jacó?" Como pode este simples cavalheiro, estesenhor — diriam com a samaritana — significar para mim mais que Jacó,Elias ou Davi, quando nem mesmo algo com que tirar água ele possui?

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Sim, meus problemas, minhas lutas, minhas apreensões, a inquietudedo meu coração, minhas feridas morais, meus combates espirituais serãocertamente mais bem tratados pela psicanálise, psicoterapia, espiritismo,umbandismo. Ou não se aquietará minha consciência, meu conturbadocoração, através de minhas esmolas, minhas orações, meus jejuns, minhasconfissões e minhas penitências? Pois, ele mesmo um simples baldepossui?... e o poço é fundo.

Sim, o poço é fundo!

Quem sabe nas horas de sol abrasador, quando sinto os areaisescaldantes sob os pés descalços, o corpo cansado e sedento, ainda eu ovejo como outro cavalheiro qualquer, como um Mestre (quem sabe?), ilustrepor todos os méritos, mas impotente para socorrer-me, eu insista: "Onde,pois, tens a água viva?"

Não, eu não creio. E, como eu, meu leitor amigo, muitos também nãocreram e não crêem. Entre esse número está seu próprio povo, para o qualele é menos que Abraão e Moisés, pois Abraão é o começo, a gênese daprópria nação, e Moisés tinha as tábuas da lei, a sarça ardente, a arca, otabernáculo, a aliança, as promessas. E Jesus de Nazaré não possui nemmesmo um simples balde e eu não sei onde, porventura, ele tem a ÁguaViva, se é que a tem.

Quem sabe até a concessão do título de Mestre seja demais, masconvenhamos em que ele assim seja chamado como o fazem ainda hoje eentre estes o seu próprio povo. Mestre, cujo ensino moral é o mais elevadopossível — se bem que cópia servil de muito do que há no judaísmo —argumentam alguns. E o homem para ser aceitável a Deus, para ter vidaíntegra, em síntese, para ser salvo, nada mais precisa fazer que praticar oensino ético do Mestre. E daqui para o humanismo doentio de dois séculospassados e o deste, vai somente um passo. A salvação do homemdependendo, não da pessoa de Jesus, mas de seu ensino, para cuja práticapossui o homem possibilidades suficientes, torna-o capaz de realizar suaprópria salvação. Ele — o homem — possui a corda, conhece a profundi-dade do poço e sabe onde a água está. Desgraçadamente, no entanto, nãosabe distinguir entre "água" e "Água Viva". Não conhece a própria alma.Esta possui dimensões que lhe são ainda grandes incógnitas. Ou se emparte lhe conhece os segredos, oculta-os sob um simples manto desamaritano, procura tirar a água, voltar aos interesses de Sicar, deixar operegrino junto à fonte e ignorá-lo para sempre.

Mas foi preciso que o olhar penetrante do caminheiro atingisse ocoração da samaritana, penetrasse sua alma, levantasse o véu que lhe

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encobria a vida licenciosa, trouxesse a claro o que ela escondia, quem sabecom amargura e lutas no recesso do próprio ser, para que ela reconhecessenele um profeta. Admirada, quem sabe constrangida, com a revelação deseus segredos íntimos, ela exclama: "Senhor, vejo que és profeta". E nadamais natural que conversar com um profeta sobre assuntos de ordemespiritual e para este campo ela conduz a palestra: adoração, Jerusalém,Geresin, Messias, Cristo.

Profeta era um homem capaz de interpretar a vontade de Deus para opresente e o futuro; era oráculo de Deus, o mais sublime e respeitoso serque os mortais do tempo conheciam. E a galeria era augusta e numerosa:Samuel, Elias, Eliseu, Isaías, Jeremias, Amos e tantos outros. Profetizaramfomes, guerras, cativeiro, destruição, morte; profetizaram vitórias,abundância, paz. Desvendaram os segredos dos corações dos reis e dospríncipes, dos nobres e dos grandes da terra. E ali estava um profeta.Maravilhoso! Extraordinário!

Os profetas falavam em nome de Deus, ouviam a voz de Deus, e, comdivina autoridade, falavam dos destinos dos homens e das nações,desvendando-lhes o futuro. E não foi assim que Jesus fez? Abriu a cortina,penetrou os profundos arcanos, trouxe à luz o que a pobre mulher jamaisdesejava fosse comentado por ele. Certamente ele é profeta, mas somenteprofeta.

Será que é assim que você o vê, meu caro leitor?

Mas tal foi a impressão que o profeta lhe causou, tal a penetração, aagudez e a graça de seu ensino, tal a glória de sua presença, da revelaçãode Deus em sua face e de sua própria afirmação "Eu o sou", que a pobrepecadora de Samaria abandona o cântaro junto à fonte de Jacó, vai atéSicar, chama os homens da cidade para um encontro com ele e lhes afirma,perguntando: "Será este porventura o Cristo?"

Sim, ele era diferente. Um profeta se apóia em visões e revelações, napalavra que de Deus recebe e deste modo se expressa: "Assim diz oSenhor". Mas Jesus falava: "Eu, porém, vos digo". Um rabino procura naEscritura e em Moisés a autoridade para seu ensino: "Moisés disse". Jesus,porém, falava: "Vós ouvistes o que os antigos disseram; eu, porém, vosdigo".

Foram os homens de Samaria. Viram e ouviram e agora diziam deexperiência própria: "Já agora não é pelo que disseste que nós cremos;mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este éverdadeiramente o Salvador do mundo".

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• O LIVRO

A Bíblia é o livro que narra esta cena à beira do poço de Jacó. É o livroque nos conta como, em Jesus de Nazaré, Deus visita os Samaritanos deSicar, os da minha raça, da minha cidade, da minha rua, do meu próprio lar,a mim mesmo.

Sem corrermos o risco do extremismo cético de Bultmann,1 ou doexagero literalista do Do minus dixit de Barth, no entanto, poderíamos dizercom este último que "a relação de Deus com os homens e a relação doshomens com esse Deus é para mim — diz Barth — o tema da Bíblia e oresumo de toda a filosofia".

E, como dizia Zahrnt, "não é o homem o agente deste encontro, masDeus. Não há nenhum caminho do homem para Deus, mas só o caminhode Deus para o homem". E é na Bíblia que a Palavra de Deus encontra ohomem, e ela o encontra em Jesus Cristo. E, quando Deus em Cristo falaao homem, então esta Palavra de Deus possui perfeita relação histórica doVerbo que se fez carne, e, em Jesus de Nazaré, viveu entre os homens. Porisso, parafraseando Pilatos, diríamos: "Eis o Livro".

Vá, meu caro leitor, ao Evangelho, não em busca da letra que mata,mas à procura do espírito que vivifica, no dizer de Paulo. E, ali, em clarezaesplendente e simplicidade de criança, ver-se-á você frente a frente comaquele a quem, sem saber, seu coração procura e por quem sua almaaspira. Antes, porém, deixe-me introduzi-lo a essa invulgar personalidade.

• DA HISTÓRIA À FÉ

O apóstolo Paulo, num simples versículo escreve a mais curta históriada vida de Jesus de que se tem notícia: "Nascido de mulher, nascido sob alei" (Gl 4.4b). Jesus não era um fantasma, ou uma sombra como nos contosde fada, meio que cópia servil de muito do que há no judaísmo, meiohomem, meio Deus, ou, como os gnósticos, um semi-deus, mas Jesus évero homem que viveu plenamente a vida de um homem normal nestemundo. Sua vida humana não difere da vida de outro homem qualquer, enisto o autor do quarto Evangelho e de 1 João é insistente: "O Verbo se fezcarne e habitou entre nós” (Jo 1.14a); "O que era desde o princípio, o quetemos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o quecontemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da

1 Por não se tratar de trabalho crítico, onde citações dos autores mencionados no corpo do livro sãoindispensáveis ao pé da página, o autor limitou-se somente a mencionar-lhes os nomes para seu crédito.

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vida" (1Jo 1.1). (E note-se que a preocupação do Quarto Evangelho édescrever o Cristo exaltado e não o Jesus da História).

Ele viveu em determinado espaço e em tempo específico da Históriahumana. Mais ou menos no ano cinco antes de nossa era, Jesus veio aomundo, nascendo de Maria. Teve infância e mocidade normal. E, como dizo Credo Apostólico, "padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos", fato possívelde verificação.

Ainda na linguagem do mesmo Credo cristão, como tantos outroshomens, "foi morto e sepultado". Morto e sepultado em determinada cidade:Jerusalém; em determinada colina: Calvário; em determinada semana: a daPáscoa. Não um mito, mas um e único fato que não se repete; não umaidéia, mas um acontecimento; não a interpretação de um culto, masrealidade histórica; não metafísica, mas escatológica; não um símbolo, maspalavra; não miragem, mas fé.

Eis a história de um homem como você ou eu. Homem, sim, mas nãomero homem. Jesus é também e ao mesmo tempo o filho de Deus, nãoporque possuísse qualidades físicas extras, mas por causa de sua relaçãocom Deus. Paulo diz que "Deus estava em Cristo" (2 Co 5.19).

Não foi difícil para a samaritana perceber que estava falando comalguém que era mais do que um profeta. Talvez seja difícil para o homementender por que Jesus foi levado ao Calvário e à Cruz. Os própriosdiscípulos não entenderam, e, usando aqui a linguagem de Paulo deLagarde, "Ele era grande demais para morrer".

Mas é exatamente na cruz e no túmulo que ele é diferente, pois, nem nacruz, nem no túmulo ficou. De muitos outros homens se pode dizer:"padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado".Mas só de Jesus se pode dizer: "ao terceiro dia ressuscitou dos mortos". Eaqui nos defrontamos com algo que transcende a história do homemcomum que na morte se encerra para o mundo presente.

Foi difícil para os discípulos ver Jesus pendurado numa cruz. Nocaminho de Emaús dois deles revelam desilusão: "Pois nós esperávamosque fosse ele quem havia de redimir a Israel" (Lc 24.21).

Será que aqui o homem se encontra só no domínio da fé, ou existeainda algo sensível à História?

Acompanhemos os dois no caminho de Emaús; sigamos a Pedro e seuscompanheiros retornando às lides da pesca nas praias de Tiberíades;contemplemos a desolação de algumas seguidoras à porta do túmulo;

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vejamos o grupo todo disperso. Desilusão, medo, desorientação, fracassototal.

Eis que algo acontece. Algo que da Galiléia leva os discípulos outra veza Jerusalém; algo que os lança a uma atividade febril, incontida; algo que osleva a desafiar a própria morte. Isto o historiador pode verificar.

O historiador não pode verificar se Jesus ressuscitou ou não. Mas podeafirmar que Pedro e os outros discípulos o viram ressurreto. Paulo não maisque vinte e cinco anos após o evento escreve: "...Cristo morreu pelosnossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitouao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas, e, depois, aosdoze. Depois foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dosquais a maioria sobrevive até agora, porém, alguns já dormem. Depois foivisto por Tiago, mais tarde por todos os apóstolos, e, afinal, depois de todos,foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo" (1 Co15.3a-8). Note-se a referência paulina às testemunhas que ele conheceupessoalmente e que ainda viviam quando ele endereça sua carta aoscristãos coríntios.

Isto significa que Deus ressuscitou a Jesus de Nazaré dentre os mortos.Aquele que na cruz pregado estava, vive! Este é o testemunho claro que oNovo Testamento nos comunica.

Jesus de Nazaré é o Verbo divino encarnado. Deus nele está. Suapalavra é a palavra de Deus; seus atos são os atos de Deus no mundo; suahistória é a história de Deus com os homens, ou, como diz GüntherBornkamm, "Jesus é a manifestação da realidade de Deus no mundo. NeleDeus a si próprio se revela".

• O ENCONTRO

Paulo afirma que "Deus estava em Cristo reconciliando o mundoconsigo próprio" (2 Co 5.19). Em Jesus Cristo o homem se defronta comDeus. Não há medianeiros (mediadores). É na face de Cristo e só nela quese reflete o brilho da glória de Deus (2 Co 4.6).

A encarnação do Verbo Divino em Jesus de Nazaré — a vida, morte eressurreição de Cristo — é o ponto crucial da História humana, a invasãodo temporal pelo eterno.

Cristo chama o homem para este encontro pessoal. Uns o encontramde maneira dramática como Paulo na estrada de Damasco; ou como Pedro,

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nu, nas praias de Tiberíades; ou Zaqueu na copa de uma árvore numapraça de Jericó. Outros no silêncio de sua própria alma, quando o coraçãose aquece de modo inexplicável, como John Wesley naquele 24 de maioem Aldersgate. E, quando o homem ouve o chamado de Cristo, passado efuturo se dissolvem no presente através da vinda do Reino de Deus aqui eagora. Seguir a Jesus no presente significa participar com ele também dofuturo. Não há para aquele que pessoalmente o encontra um interesseimediato na História, mas no hoje; não no que Jesus era, mas no que ele é,no que ele significa agora para mim, numa relação íntima, totalmentepessoal, minha, só minha. Minha confissão de fé não mais será:

"Eu creio que Jesus Cristo foi concebido pelo Espírito Santo; quenasceu da virgem Maria; que sofreu sob Pôncio Pilatos; que foi crucificado,morto e sepultado; que ao terceiro dia ressuscitou dos mortos..."

Mas será:"Eu creio em Jesus Cristo, o qual foi concebido pelo Espírito Santo; o

qual nasceu da virgem Maria; o qual sofreu sob Pôncio Pilatos; o qual foicrucificado, morto e sepultado; o qual ao terceiro dia ressuscitou dosmortos..."

Isto significa que a fé cristã não se baseia em fatos históricos, mas naprópria pessoa de Jesus Cristo. Não é a fé na ressurreição, mas noRessuscitado.

A História da salvação, para Paulo, está contida na exposição que fazaos filipenses, no capítulo 2 de sua carta (6-11) que assim se lê:

"Pois ele, subsistindo em forma de Deus não julgou como usurpaçãoo ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma deservo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figurahumana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte, emorte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu onome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobretodo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesseque Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai".

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II – AMOR

"... se eu não tiver amor, nada serei"(1Co 13.13.b)

"Sempre que houver um vazio em tua vida, enche-o de amor"(Amado Nervo) .

Se alguém me pedisse para definir o amor eu diria simplesmente: nãosei.

Sei que o amor não conhece distâncias: simplesmente ama.Não conhece altura, porém, sobe onde está o alvo de seus anseios.Não vê o abismo: simplesmente desce, desce porque ama.Não olha a cor: se negro, branco, amarelo ou azeitonado.

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Simplesmente, docemente, diafanamente ama.Não há vazio para o amor: ele tudo preenche.Não conhece fronteiras: simplesmente as atravessa em busca de seus

sonhos.Não cogita do feio ou belo, perfeito ou imperfeito, sadio ou enfermo, rico

ou pobre, palácio ou choupana, mas terna e docemente ama.O amor não conhece aurora ou ocaso, noites escuras ou plenilúnios,

pois ele é a própria luz.Não indaga do ontem, hoje ou amanhã: o amor é eterno.Não conhece Verão. Usa-lhe o brilho e o calor para fazer-se mais

achegado.Não vê o passar do Outono. Simplesmente se delicia com seus frutos.Não conhece Primavera. Mas, da beleza das flores e do perfume dos

vales e outeiros, enche a vida e a vida noutros transborda.Não sabe do frio Inverno, mas das neves tece o agasalho que aquece e

vitaliza.Não conhece a morte: além do frio mármore ainda ama, ama sempre.Que é o amor? Não sei.Mas...Ele está nos olhos vivos, cheios de luz, inquiridores e gostosos do meu

filhinho.Ele está nos passos trôpegos, incertos, falsos do velhinho que passa.Está na face do mancebo: coragem, altivez, força, grandeza,

promessas...É o olhar da casta donzela: graça, pureza, doçura, atração...É a escola, o lar, a igreja, o campo, a fábrica. ..Ele é a chama que arde no altar e é o próprio altar. É a mensagem, é a

Bíblia, é o ministro, é a congregação.É o sol, a lua, a via Láctea, os pássaros, os insetos, as flores, o perfume,

as árvores, os horizontes, os mares, as serras, os vales, os desertos, osoásis, o imenso, o infinito, o eterno... E que mais? Tudo.

O amor é indefinível, porque o amor é Deus e Deus é indefinível. Ele éinfinito, absoluto, eterno. Incorpora os próprios atributos da divindade. Enisto está a sublimidade do amor, em que sendo infinito, absoluto, eterno,inatingível pela finitude humana, fez-se um de nós, finito, relativo, temporal,para que em nós e em tudo houvesse amor.

Em Jesus de Nazaré a magnificência e a grandeza deste amor semanifestam em tanta glória quanto a finitude humana seja capaz deperceber.

Não a glória do palácio do rei Antipas, na Galiléia, mas a que penetraos tugúrios de pecadores contumazes.

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Não a luz e o esplendor dos banquetes reais, mas a mesa de leprosos epublicanos.

Não os colóquios teológicos com os mestres de Jerusalém, mas à beirado poço de Jericó, com uma pecadora conhecida.

Em Jericó esse amor não se agasalha na casa de um conhecido epiedoso fariseu, mas penetra os impenetráveis umbrais de Zaqueu, otraidor.

Não se inebria com o perfume das grandes festas, mas recebe oungüento e as lágrimas de uma meretriz ante os olhos pasmados de Simão.

Não lhe precederam na última entrada em Jerusalém os carros deguerra, os cavalos fogosos e os clarins romanos, mas ramos e folhas deoliveira e os hosanas dos pequeninos.

O evento amor não teve lugar em Roma, Alexandria ou Atenas, mas nasvielas de Nazaré da Galiléia, obscuro vilarejo, distante até do mundo.

E este amor não busca os perfeitos, salvos, justos — se porventura oshá — mas o pecador, o publicano, a meretriz. Inconcebível para os"escolhidos" do tempo de Jesus; inconcebível para o homem de hoje. Masrealidade gloriosa.

"Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimentode Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seuscaminhos!" (Rm 11.33).

"Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos,nem principados, nem cousas do presente, nem do porvir, nem poderes,nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderáseparar-nos do AMOR de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor"(Rm 8.38-39).

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III - PAZ

“Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus, por meio denosso Senhor Jesus Cristo"

(Rm 5.1)

Dia brilhante de sol outonal. O céu azul, claro, risonho. A naturezatoda em festa. O espelho azul do lago Constança, uma superfície plácida,calma, serena. Descansam essas águas na paz de um desses diasensolarados e tão raros do Outono centro-europeu. Embora reflitamquietude e paz, não são águas neutras, estagnadas, sem vida. Por elasatravessam as águas do Reno, descendo dos Alpes suíços. Mas o lago asrecebe e logo depois as devolve à sua torrente normal, sem perder oequilíbrio, a serenidade, a paz.

Não deixa por isso de refletir o azul do céu, a sombra das árvoresribeirinhas, o brilho do sol, a grandeza quase indescritível dos Alpes, e dealimentar milhões de seres viventes que suas águas povoam. E, no

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exercício de toda essa vitalidade e no reflexo de toda essa glória, elemantém seu indispensável equilíbrio.

Assim é a paz. Paz é sinônimo de personalidade equilibrada. É aoequilíbrio total da personalidade humana que a Bíblia chama de paz.

O jovem quando ama só possui paz em seu coração, só descansa,quando sua personalidade se equilibra pela correspondência de seu amor.Sem esse equilíbrio, ele não tem paz, ainda não a conquistou, embora abusque incessantemente numa insistência muitas vezes inconsciente juntoao objeto de seus anseios.

O homem antes de conhecer a Deus não tem paz. Este é o testemunhoda Escritura quando afirma: "Para os ímpios não há paz" (Is 57.21).

Que acontece aqui? É o desequilíbrio. Só Deus está dando de seu amore graça. E o homem, não participando dessa transação, não se equilibra,não possui paz. O homem que não conhece a Deus, não conhece paz,porque não ama, e a paz é fruto do amor, não de amor egoísta que sórecebe, mas, e principalmente, de amor altruísta, cuja máxima preocupaçãoé dar. E é neste dar, neste contínuo oferecer-se, sem pensar em receber,que ele recebe e por isso se equilibra.

Paz ou equilíbrio da personalidade é conseqüência. É corolário degrande axioma: encontro com Deus. E o fator principal deste encontro éCristo. Ele é o fiel da balança, e só através dele pode vir ao homem oconhecimento de Deus, pois o homem só conhece a Deus através de suarevelação em Cristo. A carta aos Efésios diz que Cristo é a nossa paz (Is2.14) e que o Evangelho que Cristo pregou foi Evangelho de paz (Is 2.17).

Paulo afirma que a nossa paz é conseqüência dessa transação de amor,desse conhecimento de Deus, dessa nova relação encontrada através doque ele chama de justificação pela fé em Cristo. Nenhum balanço seestabelece quando há credores e devedores. Só há equilíbrio quando ascontas são acertadas. E a dívida do pecado humano para com Deus édemasiadamente grande, e a paz só volta ao coração do homem quandosua consciência lhe testemunha esse amor perdoador de Deus em Cristo.Só assim o homem pode ter acesso à fonte perene de paz. E não éprivilégio para ser gozado além e amanhã. Não. É hic et nunc — aqui eagora. Paulo afirma: "Justificados, pois, pela fé TEMOS PAZ".

Basta que o homem tome por analogia suas relações com o próximo.Dificilmente dorme em paz o coração em cujo seio se abriga o ódio contra opróximo ou possui contas a acertar com seu irmão. Pode ser que o perdãohumano seja móvel egoísta na tentativa de conseguir paz, equilíbrio. Tantas

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e tantas vezes a fraqueza humana assim se expressa: "Perdôo, mas nãoquero mais relações com ele". Não é preciso dizer que este tipo de perdãonão equilibra jamais as relações humanas.

Deus não é assim. Seu perdão é gracioso, fruto de amor perfeito quenos amou antes que o amássemos.

Nas relações Deus-homem o perdão representa o selo da aceitação doservo pelo seu Senhor. Nas relações homem-homem o perdão é uma dascoisas mais sublimes que Deus tem sugerido ao homem como elemento desua própria aproximação do Criador. E é somente quando Deus em Cristome afirma o seu perdão e sela com sua graça o perdão que ofereço erecebo do meu próximo, que meu intranqüilo coração pode então ter paz,pode equilibrar-se. Esta relação é dialética: embora Deus seja o eternocredor — pois o homem é pecador por natureza — ele torna em Cristonossa conta neutra, êle estabelece o balanço, realiza a síntese, concede apaz, equilibra o conturbado coração do homem, e isto é sublime, é glorioso,indescritível, incompreensível ao homem comum. Esta é a linguagem dePaulo quando ele diz que a paz de Deus excede a todo o entendimento (Fp4.7).

O homem possui paz porque aquilo que lhe faltava, Deus em Cristo lhesupriu. E nisto está a manifestação augusta do amor de Deus em Cristo.Lembre-se o homem de que antes de a si mesmo se conhecer, já Deus oamava e estava à sua espera. Evoco aqui a figura magnífica do pai naparábola de Jesus, à entrada da fazenda, olhares longos no caminho, asofrer o amor que consagrava ao perdulário e pervertido filho. E o filho nãodescansou enquanto não levantou os olhos do cocho onde comia com osporcos, voltou-se para o lar e confessou-se pecador diante do pai.

Conseguida a paz através dessa transação preciosa e ungida peloapaixonado amor de Deus, o homem precisa mantê-la. Isto não está emDeus, pois, ele sempre mantém seu compromisso. Está em mim.

A permanência, pois, desse equilíbrio depende única e exclusivamenteda minha comunhão com o Senhor. Esta comunhão não é sinônimo de doisou três minutos apressados de oração pela manhã ou à noite. Ela só épossível através da cruz de Cristo que situa o homem em novo mundo, comnova atitude e nova e dinâmica interpretação da vida. Comunhão com Deusé a sensação diuturna, de momento a momento, de que não estamos sós,mas que ele está conosco, fica conosco, vai conosco, permanece em nós,por nós e para nós.

Não tente o homem manter esse equilíbrio através de suas ofertas aoSenhor, pois, os judeus, consoante as Crônicas e os livros de Samuel,

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ofereciam até centenas de milhares de bois de uma só vez e rejeitaram oPríncipe da Paz. Nem seja sua intenção fazê-lo com seu trabalho, seusjejuns, ou com o conhecimento de toda a Bíblia. Nem mesmo seu culto,suas flores, seus círios, seu incenso, sua música, seus templos podemmanter-lhe a paz. E isto por um simples motivo: é que no outro prato dabalança estão seus pecados que são sempre mais pesados que todo oesforço que porventura êle seja capaz de realizar. Todos estes elementossão acessórios importantes, e sua finalidade é dar, ao coração que já possuipaz, o gozo de celebrar a glória do Senhor da paz.

Não é segredo que muitas vezes o homem procura, através do culto oudo serviço cristão, fugir à situação de fato em que seu atribulado coração seencontra. Conheci um cidadão que, servindo a uma das igrejas ondetambém eu servia como pastor, jamais faltava a qualquer reunião, inclusiveàs da sociedade de crianças e estava sempre uma hora ou duas antes doinício de qualquer programa. Depois de algumas visitas a seu lar, fiqueisabendo que suas relações com a esposa eram tão críticas que o lar lhe eraintolerável e ele se escondia então atrás do altar.

Concluindo: paz é fruto de comunhão com Deus, e comunhão com Deusé prática, não gesto ou palavras ou humanos sacrifícios. E eu só conheçoum caminho para o restabelecimento do equilíbrio da personalidadehumana, para a realização da sua paz: Cristo.

"Ele é a nossa paz..." (Ef 2.14a).

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IV – O SENTIDO DA CRUZ

"Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a suacruz e siga-me.Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e, quem perder asua vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á.Que aproveita ao homem, ganhar o mundo inteiro e perder a suaalma?"

(Mc 8.34-36)

Dietrich Bonhoffer, mártir do Cristianismo, que se opôs a Hitler durantea segunda guerra mundial, escreveu: "Quando Cristo chama o homem, eleo desafia para vir e morrer".

A morte física não é condição necessária e indispensável ao chamado

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divino. Aliás, ela ocupa lugar secundário na economia desta mesmavocação, quiçá nem entra como fator de qualquer importância. Em suaprimeira epístola aos coríntios Paulo escreve: "Ainda que eu entregue meupróprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso meaproveitaria" (1Co 13.5). Se se entendesse do modo contrário, bastaria aohomem, no desempenho de seu chamado, ir ao encontro da morte e teriaseu galardão conquistado. No entanto o problema não é tão simples eJesus não seria tão inocente e cândido em equacioná-lo assim.

Nem mesmo Bonhoffer, que, quando este pensamento escreveuesperava a morte a qualquer instante, quis dar significado literal emeramente material às suas palavras. Jamais. A morte física não temsignificado aos olhos do Eterno se não estiver relacionada como simplesparcela e incluída na soma total que relaciona outros fatores de maior emais augusta importância. É ainda Paulo que, em 2 Co 11.23-29, enumeratodos os padecimentos de seu ministério, que o levaram quase até a morte,quem escreveu: "Reputei tudo como escória para que possa ganhar aCristo e ser achado nele" (Fp3 .8 ).

E aqui nos defrontamos novamente com a cruz, relacionadaintimamente com o chamado neste texto de Marcos. O abraçá-la, o tomá-lasobre os ombros, sim, esta é condição indispensável e necessária para oapostolado cristão. A cruz, aqui neste convite e desafio de Jesus, não tinhao significado que sua morte lhe emprestou no Calvário, porque o significadoque lhe deu o Filho de Deus nela suspenso, só ele e unicamente ele poderiadar, e só nele e por ele ela poderia receber essa conotação.

Jesus não diz que a cruz de seu chamado deveria ser entendida comoalgo sobre o que o homem deveria morrer, na qual o discípulo deveria"perder a sua vida". Se assim fora, grande e final teria sido o mérito demilhares de inimigos indesejáveis do império romano que seus imperadorescrucificaram e total o mérito de alguém que, ao lado do Cordeiro de Deusexpirante, o desafia com insultos e insolências.

Não. A cruz de que fala Jesus Cristo nesta passagem de Marcos eoutras paralelas poderia ser levada durante a realização dos ideais dopróprio Cristo, na peregrinação do homem neste mundo, no seguir a Cristo,seu Senhor. E por que não dizermos que esse tomar a cruz pode serexpresso como nova atitude pessoal, nova interpretação — consciente einteligente — da realidade presente e futura, mas especialmente presente?Sim, pessoal, porque Jesus fala de "sua cruz", não dele, pois, a dele só elepoderia levar, como a levou, mas da minha e da sua, meu caro leitor.

A cruz, o mais ilustre símbolo cristão, significa nova interpretação davida, desde o momento em que o homem se defronta com Cristo e lhe ouve

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o chamado.

Nova atitude para com Deus, o Pai e Criador de todas as coisas, emnova interpretação de sua graça e seu amor que sempre estiveram voltadospara o homem em eterna expectativa. É a nova posição, antes antagônica,rebelde, agora franca e amiga. Deus, o eterno desconhecido, distante,insensível, só presente nos templos, no altar; no arder dos círios ou noinvocar da bênção; na feição pungente dos ídolos, ou entre as capas degrosso volume escrito numa linguagem também distante e impenetrável.Agora, "eis que tudo se fez novo". Rasgado o véu, penetra a alma no SanctaSanctorum, fala face a face, sente-lhe a excelsitude, a grandeza infinita, amajestade, a onipotência, a santidade, mas sente-lhe também aproximidade, a "voz mansa", as mãos ternas, os passos bem chegados, oaquecer do amor: é a relação Pai-filho que se estabelece. E só há umprisma através do qual o espectro desta relação é visto em todo o esplendormultifário de um colorido de glória: é a cruz.

Certo domingo à tarde visitei um orfanato da cidade onde servia comopastor. Encontrei, à entrada, um garoto de mais ou menos seis anos, todocheio de barro, sujinho mesmo e outro mais velho, pouco mais velho, comuma mangueira de água, tentando livrá-lo da lama. Logo perguntei: "Comoé que vocês estão fazendo isto?". E o que procedia à limpeza do irmãozinhologo respondeu: "O pai não está; ele foi à cidade; está longe".

Assim é o universo para muitos. Procedem como se o Pai não estivesseem casa, como se ele tivesse ido à cidade vizinha, como se estivesse longe.Sentem-se em um grande orfanato, sozinhos, como filhos bastardos, aíprovisoriamente adotados. É orfanato, não seu lar. E porque não é seu lar,sentem-se à vontade, livres, para desarranjar a casa, quebrar os móveis,espancar seus irmãos, destruir, destruir, até que a si próprios se destroemtambém.

Mas a cruz dá ao homem o ensejo de interpretar o universo de mododiferente. Aquilo que antes era casa vazia, sem dono, de onde o Criador seretirara após seu feito, agora está cheio da própria Presença; agoraencontrou a figura que o transforma em lar: o Pai. E Ele faz o homem sentirque não está só. Ele é a eterna, sensível, doce, gostosa Presença.

A filosofia do tudo se acaba na tumba; a do "comamos e bebamosporque amanhã morreremos" não tem mais lugar, porque agora o homem,através da cruz, ressurgiu com o crucificado. Porque aquilo que me pareciaeterno cemitério, onde as vítimas de falsa filosofia da criação seencerravam atrás do gélido mármore e deixavam simplesmente de existir,agora é vida, em cuja economia o mármore não tem mais cotação.

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Sim, aquilo que simples, pura e mecanicamente orbitava pelos anos luz,pelo infinito sideral e se constituía num todo frio, senão mesmo vazio —simples Via Láctea, nebulosas, planetas e sóis — agora possui propósito,agora se define em termos pessoais e teológicos.

Nova atitude para com o pecado. Aquilo que antes era inofensivo emoral, que não entrava em minhas cogitações quando porventura tentavasituar-me no tempo e no espaço como homem, ser vivente, pensante,dotado de consciência, agora toma a forma de inimigo mortal, contra o quala cruz me coloca em posição de permanente e irredutível combate.

Nova atitude interpretativa para com a vida como um todo. Esta novaatitude encerra elementos negativos e positivos. Os elementos negativossão pura e simplesmente denominados por Cristo com frase mui breve: "a simesmo se negue". Jesus jamais desejou que, ao tomar esta atitude, ohomem se abastardasse e aniquilasse sua própria personalidade,fazendo-se eunuco ou celibatário, vestindo-se permanentemente de preto,ou fugindo para os desertos, usando cintos de espinho ou sapatos de ferro,comendo peixe ou tomando chá. Jamais esta renúncia é ainda renúncia deatitude e de interpretação viciadas. Através desta renúncia passa o homema ver a vida em termos exclusivamente de Cristo. E aqui está o lado positivoda renúncia — por paradoxal que pareça falar-se em aspecto positivo darenúncia. Esta nova atitude interpretativa permite ao homem apossar-se deCristo e leva-o a viver por Cristo e em Cristo, sem misticismo, mas narealidade histórica do hoje, do*agora da existência. E aqui o exemplo, bemcomo o ensino de Paulo, em Gl 2.20, é único. Este é o ponto crucial doproblema, pois, ele não é corolário, mas tese.

A mim me parece um tanto sumário, mas também se me afiguracompleto o quadro, quando se estabelece que ao tomar sua cruz o homemtoma novas atitudes e de novo interpreta suas relações para com Deus,para com o universo onde agora existe, para com o pecador e para com avida como um todo, Ainda como grande importe capítulo deste panoramada existência na sua relação com o Absoluto, poderíamos acrescentar asrelações do homem com o seu próximo, com o samaritano da beira docaminho, para cujas relações é condição indispensável e necessária aovocacionado uma nova atitude em função da posição assumida para comos vários itens já mencionados dentro do quadro da realidade presente emface da cruz. É que este "próximo", este "samaritano" não é mais meronúmero pelo qual se chama dentro do quadro da indústria ali da esquina,dente na engrenagem do capitalismo ou parcela indefinível do socialismoestatal, mas meu irmão, por quem, nessa mesma cruz, Cristo tambémmorreu. Mas esta nova atitude para com o próximo é corolário,conseqüência da nova interpretação de Deus, do universo, do pecado e davida como um todo; como conseqüência será nova a atitude para com o

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trabalho, a família, a pátria e especificamente para com o Reino de Deusaqui representado pela Igreja de Cristo.

O destaque dado acima ao pecado da visão da vida como um todo temsua razão de ser na importância que esta parcela encerra na economia daexistência e porque é olhando para o cocho onde come com os porcos, queo homem pode sentir o apelo do amor que em Deus o espera.

Assim, a cruz — que para muitos tem sido o símbolo de pesado fardo ede sofrimentos físicos — pode ser equacionada como nova atitudeinterpretativa. Convém notar que a primeira interpretação peca contra oensino total do Novo Testamento onde toda a ênfase é colocada em Cristoe em sua obra redentora, pois, jamais advirá qualquer mérito por sangue ousuor que o homem porventura venha a derramar depois de haver tomadosua cruz. O próprio Senhor Jesus diz algures que está pronto a levar o meufardo, a tomar sobre si as minhas ansiedades e inquietudes, o meu cansaçoe opressão. É ainda o mesmo Senhor quem ensina que por mais ansioso eangustiante que meu coração se encontre, jamais poderei acrescentar umcôvado que seja à minha estatura.

Poder-se-ia então concluir que a minha cruz, tomada livre evoluntariamente ao ouvir o chamado, não são meus jejuns, minhasprivações, minhas chagas, minhas prisões, minhas esmolas, minhasorações, longas ou breves, a leitura da Bíblia ou a pregação do púlpito, eoutros elementos que tais, mas nova atitude em face da realidade presente,e que me relaciona diretamente com o Senhor Deus onipotente. Esta novaatitude me leva a uma relação direta com o Senhor Deus onipotente. Estanova atitude faz-me expressar como Paulo perante Agripa, quando suaprópria cabeça estava pendente: "Sinto-me venturoso, ó rei..." (At 26.2).

Não se tome falsamente o que diz o parágrafo anterior. Jejuns, orações,esmolas, prisões, combates e lutas, tudo faz parte da minha cruz, não comotese, mas como corolário. O v. 36 de Marcos 8 agora em foco ensina que denada servirá uma vida inteira de sacrifícios e lutas, se não assumirmos essanova atitude. Pois assim fazem os hindus e budistas, capazes mesmo defabricar máquinas de oração e usam os prolongados jejuns, que fazempublicamente e com grande propaganda, e como arma política. Foi contraisso que se insurgiu Jesus todas as vezes que repelia esse religiosoproceder dos fariseus do tempo.

Esta nova atitude interpretativa para com a realidade presente dá novocolorido à totalidade da existência, tornando harmoniosas as relaçõesDeus-homem em Cristo. É isto que Jesus chama de "glória" em João 17.22.É esta a herança que ele nos legou: "eu lhes tenho transmitido a glória queme tens dado, para que sejam um, como nós somos um". É só neste

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Evangelho que a cruz significa glória e é a contemplação desta mesma cruzque o cap. 1 v. 14 chama de glória quando diz: "...e vimos a sua glória, glóriacomo do ungido do Pai". Esta é a interpretação que Paulo dá quandoescreveu: "Longe de mim esteja gloriar-me a não ser na Cruz..." (G1 6.1 4).

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V – VONTADE SOBERANA

"...não se faça a minha vontade, e, sim, atua".(Lc 22.42b).

Dentre as criaturas que saíram das mãos do Eterno Criador, só ohomem tem a ousadia de levantar o nariz e dizer a seu Senhor: "Não serve.Eu não quero assim".

Isto acontece, é claro, porque é o homem o único animal dotado devontade, atributo que lhe foi emprestado pela própria divindade. Quis oSenhor da criação que na criatura se refletisse aquilo que em caráterabsoluto caracteriza o próprio Deus: capacidade de escolha.

A história humana é o registro constante de uma série de escolhas. Avontade do homem determina o destino, não só seu, mas de sua família, desua nação e, tantas vezes, do próprio mundo. Dificilmente pensa o homem

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que sua escolha atinge também seu próximo, embora só a ele cabe aresponsabilidade. Mas é a história do indivíduo, na sua relação pessoal comDeus, que interessa a esta meditação.

Depois que o homem pecou e foi destituído da glória de Deus, herdou,como conseqüência de seu ato volitivo, a tendência para o pecado. E é estaforça gigante que lhe persegue os passos até a sepultura, e que torna avontade de Deus sobremodo estranha a seus olhos. Não podecompreender a razão de ser, a finalidade da submissão e obediência a essavontade. Parece impossível conhecê-la e ainda mais difícil realizá-la. É queo homem é irresistivelmente atraído pelo imediato, enquanto o plano deDeus é mais mediato. O homem se impressiona facilmente com seuspróprios sentimentos e os idolatra, ao mesmo tempo que a vontade sobe-rana lhe parece invisível, extra-sensorial. A linguagem de Hebreus (Hb11.27b), relatando que Moisés "permaneceu firme como quem vê aqueleque é invisível", é paradoxal e incompreensível ao homem comum.

É fácil ao homem escusar-se pela impossibilidade de o relativoconhecer, através da humana filosofia, a vontade do absoluto. E por quenão dizer que o atrevimento humano leva o homem ainda mais longe, pois,através de um precário raciocínio de justificação, ele é conduzido a lançarsobre o Criador a responsabilidade de sua desobediência, ao dizer queassim o fez o Senhor, porque suas tendências são inatas e que éperfeitamente normal o permitir que a natureza se expresse, e que estaexpressão não possui, por força de sua gênese, qualquer conotação ética?Mas é fácil perceber-se que tudo isto é vício de raciocínio ao qual a própriavontade humana conduz.

E é neste ponto que surge também a humana indagação: "Mas qual éentão a vontade de Deus? É possível ao homem conhecê-la?"

Sim, o homem é capaz de conhecê-la. Não através de sua ciência oufilosofia, pois, elas só lhe revelariam o que é exclusivamente humano, masatravés de Cristo, que é a manifestação mais humana que conhecemosdaquilo que é divino. Ele é a encarnação da própria vontade de Deus e énele e através dele tão-somente que o mortal pode conhecer a vontade doEterno.

Paulo foi muito feliz ao escrever que "Deus estava em Cristo" e a IEpístola de João, por sua vez, põe ênfase no fato de que também em Cristoestava "o homem". É, pois, nele, que o divino encontra o humano e ohumano por um ato de vontade — concessão graciosa do próprio Criador —encontra o divino.

Mas depois que o homem pela fé encontra o seu Deus em Jesus Cristo,

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ele ainda é levado a indagar: "Mas como conhecer em Cristo a vontadeeterna?". E a resposta é uma e única: a mesma Palavra de Deus escrita quelhe permitiu o conhecimento e o encontro com Cristo, essa mesma Palavrapossui os elementos indispensáveis para que o homem também conheça oindispensável da vontade soberana. Por outro lado o contato pessoal comCristo, através da oração da fé, traz ao coração humano a noção da vontadedivina, que é identificada pela consciência do homem quando afinada pelodiapasão do Evangelho de Cristo.

Há, ainda, depois do exame da Palavra de Deus escrita, a indagação dohomem quando chega a alcançar pela fé, na vida e mensagem de Cristo, avontade de seu Senhor: "É praticável na vida humana aquilo da vontadedivina que Deus em Cristo nos sagrados escritos manifestou?" Ainda se háde dizer que só o homem, e só pela simples leitura e conhecimento dessavontade em Cristo, não poderá praticá-la. Mas então será baldado todo oesforço? Não. É exatamente neste encontro do homem com Deus em Cristoque lhe vem capacidade cognitiva e poder realizador. E aqui mais uma vez éo auxílio da Escritura invocado, com o testemunho escrito de homens emulheres que chegaram ao ponto de, pela interpretação de sua vontadecom a vontade divina, escrever, como no caso de Paulo, temos a mente deCristo" ou "Cristo vive em mim" ou como Pedro perante a suprema corte deseu país, quando ameaçado: "Antes importa obedecer a Deus do que aoshomens".

Creio que o homem pode dialogar com o seu Deus e apresentar-lhe suavontade. Sim, ele pode, mas sempre nos termos em que Cristo o fez: "Sê épossível...", com a necessária e indispensável conclusão: "contudo, não sefaça a minha vontade, e, sim, a tua".

Quantas vezes não vamos ao Senhor para consultá-lo a respeito dealgo sobre o quê já tomamos nossa antecipada decisão? Nem sequer atomamos ad referendum. Simplesmente decidimos e cometemos o erroclamoroso de, em termos de consulta, submetermos o Senhor à nossavontade, ou pelo menos realizarmos essa tentativa atrevidíssima.

Tudo o que se escreveu nesta meditação só tem sentido para o homemquando ele se apercebe da Eterna Presença no universo e particularmenteem sua vida. E este sentido da Presença, esta nova atitude interpretativa, éa própria cruz de Cristo que dá. Concluindo, diríamos que só depois que ohomem se encontra com Cristo e toma a sua cruz, é que ele pode conhecerem Cristo a vontade soberana, pois ele irá sentir-se num mundo ordenadocom finalidade; finalidade cuja ordem o homem, que ao Senhor conhece,tem de lutar por manter, pois é a vontade soberana. É só quando o homemaprende não se achar a casa vazia, e sabe que o Senhor, o chefe da casa,está à cabeceira da mesa, que ele se porta com decência. Não porque

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tenha receio dessa invisível Presença, mas porque ela lhe é preciosa.

Tudo o que o homem precisa saber — repito — da vontade de Deuspara realizá-la, foi revelado em Cristo. Felizes são os homens de quem oEvangelho pode dizer:

"Agora eles reconhecem que todas as coisas que me tens dado provêmde ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste e eles asreceberam e verdadeiramente conheceram que sa- de ti, e creram que tume enviaste" (Jo 17.7-8).

OBS: Sugiro, meu caro leitor, procurerecolher-se por alguns instantes aosaposentos de sua própria alma e cantarsomente para seu coração ouvir o hino 270 doHinário Evangélico.

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VI - GRATIDÃO: IDEAL DE SERVIÇO

"Sempre dou graças a Deus por todos vós, mencionando-vos emnossas orações, e sem cessar, recordando-nos diante do nossoDeus e Pai, da operosidade da vossa fé..."

(1Ts 1.2 -3a).

Nenhum louvor, por mais perfeito e sincero, pode jamais corresponderà bênção da vida.

Ela é preciosa, tão preciosa que o coração do Pai se partiu, que aspotestades celestes se abalaram, que os reinos se moveram, quando oSenhor da vida enviou seu próprio e único filho ao mundo para que por elevivêssemos — sendo ele a própria vida. Gosto de ler a alegoria do BomPastor e ouvir o Evangelho dizer: "Eu vim para que tenham vida e a tenhamem abundância" (Jo 10.10b). E pouco mais à frente no mesmo Evangelhosegundo João, ele diz: "Eu sou a vida (Jo 14.6). Não foi só na Encarnaçãoque, em Jesus de Nazaré, a vida se relacionou com o Filho de Deus e, porforça da encarnação, com o mundo também. O mesmo evangelista,

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filosofando sobre o tema Encarnação, afirma: "A vida estava nele, e a vidaera a luz dos homens" (Jo 1.4).

A vida do homem só pode ser apreciada através de um prisma: Cristo.Fora dele pode haver tudo, e tudo se apresentar com um arremedo de vida,levando o próprio homem a rotular esse arremedo como "vida boa". Sãodois mundos diferentes, antagônicos: de um lado a excelência de Cristo, deoutro o mundo. Embora o mundo se apresente com todas as excelências egozos desta imitação de vida, tudo, absolutamente tudo, conduz à morte.Tudo deve levar a Cristo, proceder de Cristo ou existir por Cristo. O própriohomem não pode existir por si próprio. É ainda o Quarto Evangelho que nossocorre aqui: "Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora..." (Jo15.6).

Este dualismo é de difícil compreensão para o homem e aparece a seusolhos como verdadeira loucura. Ele encontra no mundo aquilo que lheexcita os sentidos e o satisfaz como ser temporal, embora precariamente. Ea Escritura afirma que isto não é vida. Mas ele pergunta: "Então que évida?". E a resposta é inaceitável porque ela não lhe define os prazeres e ogozo, mas pretende atirar-lhe sobre o ombro uma cruz, que ele rejeita,porque cruz não é símbolo de gozo temporal para o homem temporal. Há,nos escritos paulinos verdadeiro grito de alma, torrente de sentimentos,quando o apóstolo tenta relacionar-se com o que ele define como vida, eque poderia escandalizar seus irmãos da Galácia, porque nesta relaçãoPaulo (ser temporal) — Cristo (eterno), ele não pode evitar a Cruz: "Estoucrucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive emmim" (2.20). E, na continuação de sua lição e de seu clamor, o apóstolo dápor assentado que aqui mesmo no domínio do temporal, a cruz pode rela-cionar-se com o homem e outorgar-lhe vida, e oferecer-lhe gozo e prazer,gozo e prazer que, por se oporem ao gozo e prazer temporal, só se defineparadoxalmente em termos da cruz: "...e esse viver que agora tenho nacarne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo seentregou por mim (Gl 2.20) .

Por isso a vida cristã, isto é, a vida-Cristo, só se define em termos deserviço, pois a cruz representa a maior obra jamais realizada em benefíciodo gênero humano e, quem a toma no sentido real de nova interpretação darealidade presente, há de gastar-se no serviço de Deus e do próximo, comoexpressão de sua gratidão a Deus pelo dom da vida que agora, vista peloprisma da cruz, coloca-o em nova e privilegiada posição. Quem lê asviagens de Paulo em Atos e depois suas epístolas, tem a sensação nítida deque a agitação 'permanente de sua carreira e a soma extraordinária deserviço prestado era o corolário natural da relação com o seu Senhor queele estabelece em Gálatas 2.20. E, quando ele se assenta para escreveraos cristãos coríntios uma carta de severa admoestação e conselhos,

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define a posição cristã nestes termos: "Porque de Deus somoscooperadores" (1Co 3.9a) . Sunergoi que se traduziu em português por"cooperadores" quer dizer exatamente isto: trabalhar com alguém, servirao lado de outro numa causa comum.

A mim me parece que a maior expressão de louvor e gratidão que ohomem pode endereçar a seu Senhor é o trabalho. O serviço é a definiçãomelhor de vida em Cristo e ele representa o mais expressivo louvor a Deuspelo dom dessa mesma vida.

Mas que é serviço? O ideal de serviço é o próprio Cristo. E ele nosrevelou que uma das manifestações do Pai e do Filho em termos inteligíveisao homem, é o ideal de serviço, quando afirma: "Meu Pai trabalha até agorae eu também" (Jo 5.17). Além do auto-benefício, o alvo deste ideal deserviço é o Senhor e o próximo.

Esta noite tive um sonho interessante. Estava no Brasil e recebera umatestado de um médico que me havia examinado dois meses antes. Eleatestava que eu estava com uma enfermidade pertinaz e muito comum emnossos dias e que só teria seis meses de vida. Daí duas preocupações: nãopoderei ver meu filho crescer e fazer-se homem. E a segunda: que fareipara o Senhor em termos de serviço nestes seis últimos meses de minhacarreira temporal?

Esta minha viagem e o tempo para meditações solitárias que ela estáme oferecendo leva-me a crer que o melhor louvor não são os hinos emúsica que enleva, as flores no altar ou o ritual do culto (embora esseselementos sejam uma das mais refinadas expressões de louvor), mas oserviço, o serviço cristão.

Acordei, depois do sonho que me pesara à noite. O sol radiantefiltrava-se pelas cortinas, rendilhando em luz alguns desenhos na parede domeu quarto. Acordei para a realidade da vida que vivia. Senti meu corpodescansado e cheio de saúde. A alma se encheu da esperança gostosa dever Paulo César, homem e cristão, servindo ao mesmo Senhor e cuidandodos interesses do Reino, e o coração transbordou de gozo pelo ensejo dacontinuação da vida e pela oportunidade de serviço. Voltaram-se-me osolhos para a Pátria distante e particularmente para a igreja amada que acada um oferece graciosamente um ideal de serviço. E todas as sensaçõesdesta manhã aqui neste canto sul desta pobre Alemanha dividida (quando otexto foi escrito a Alemanha estava separada por um muro da entãoAlemanha Oriental), levaram-na a um denominador comum: vida.

E, pelo mais precioso dos dons — a vida — oferece o ministérioevangélico uma oportunidade sui generis de louvor. Não há de o ministro

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trabalhar porque precisa de corresponder ao parcimonioso salário que oConcílio lhe vota, nem mesmo porque foi ordenado com a imposição dasmãos do bispo, ou, no dizer das Pastorais, do "presbitério". Nem mesmo eleage, e cura, e visita, e ora, e prega, e escreve, e consola, simplesmenteporque é ministro e estes são dever es do ministro. Jamais! Mil vezes não!

O ministério, como outro qualquer trabalho, é privilégio. E todo o seuideal de serviço deve ser visto sob este prisma. E a relação entre esteprivilégio e Aquele que o concede deve ter o curso estabelecido pelo Salmo116.12-14. Atentando para o dom, para o chamado específico e para o idealde serviço, tudo em termos de privilégio, deve então a alma voltar-sepermanentemente para o seu Senhor em atitude de louvor contínuo, demodo que a equação louvor igual a serviço seja real.

É só através desse louvor que o homem manifesta a seu Deus e Senhora sua mais perfeita gratidão.

"Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois,a glória eternamente. Amém" (Rm 11.36) .

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VII – A OVELHA E A LÃ

"O Senhor é o meu pastor, nada me faltará.Ele conduz-me a pastos verdejantes..."

(Sl 23.1-2).

O piedoso pastor alemão Christoph Blumhardt escreveu algures:"Ensinamos aos nossos filhos esta frase: "Porque eu sou Cordeirinho deJesus, ele me conduz a pastos verdejantes". Eu digo não. Porque vós soisovelhas de Jesus, vós tendes lã, e a lã deve ser tosquiada. Ninguém possuiovelhas por causa das pastagens, mas por causa da lã!"

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Vezes sem conta vamos ao púlpito para oferecer, em nome de Cristo,um céu além das nuvens e das estrelas, onde a música de divinas harpas, operfume inebriante de etéreas flores, o brilho ofuscante de preciosasgemas, a gloriosa luz e a numinosa Presença, tornam os eternos páramosum lugar de suspense como nos contos de fada; oferecer vida deprosperidade material que necessariamente advirá da conversão, e todosos demais benefícios da vida na comunidade dos crentes que são pintadoscom cores vivas e atraentes. Alguns pregadores há que fazem daconversão verdadeiros hospitais, prometendo saúde física aos que ingres-sam na fé que anunciam. Tudo, tudo à moda das modernas agências depublicidade que descrevem em caracteres gigantes os benefícios da ofertae, no rodapé, com invisíveis asteriscos, em reduzido número de palavras,as obrigações e os preços.

Falamos e aceitamos os privilégios do Salmo 23: pastos verdejantes,alimento abundante, águas tranqüilas, frescas, cristalinas, descanso,sossego, paz; nenhum esforço, nenhum trabalho, pois até a mesa estáposta pelo Senhor; nenhuma preocupação com a senda a seguir, pois oguia é o Senhor, não há inimigos a temer, pois, na sua presença e para seutestemunho, o Senhor prepara a minha mesa. Enfim, só privilégios,privilégios e mais privilégios!

O Evangelho de Cristo não é só a alegoria do Bom Pastor. É também acruz. Nestas meditações se definiu a cruz como nova atitude interpretativa.E como relacionar a cruz com a minha condição de membro da Igreja,minha condição de ovelha?

É a cruz que me permite definir (e quem sabe reinterpretar) minhacondição de ovelha. A ovelha não existe por causa das pastagensverdejantes; pelo contrário, a ovelha existe porque possui lã, e a lã deve sertosquiada. Nenhum pastor compraria ovelhas porque possui pastagens,mas possui pastagens porque tem ovelhas. O importante não são aspastagens, e sim a lã. Todavia, não se menosprezem as pastagens, poiselas existem por causa das ovelhas e sem as pastagens as ovelhaspereceriam. A ovelha, porém, só existe por causa da lã.

Nosso ensino a nossos filhos cria-lhes na mente um conceito de Deuscomo um Pai de amor cujo regaço cheio de bênçãos não tem lugar paraqualquer ideal de serviço da parte do homem. Ele fez tudo, tudo. Ninguémse admire de que nossos filhos dele se afastem e mesmo contra eleblasfemem, quando não lhes vem, na hora desejada, o imediato socorro.Eles foram preparados para tão-somente receber; jamais para oferecer a lãà tosquia.

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Aliás, a ovelha que não se submete à tosquia não vive vida tão longa,nem goza de saúde igual à que é tosquiada regularmente. E, quanto mais aovelha é tosquiada, mais depressa lhe cresce a lã e melhor se torna.

A Igreja de Cristo não é um banco onde o Senhor deposita seu ouro edo qual usamos e abusamos. Ela é o banco onde fazemos irreversíveisdepósitos. Jesus nos conta que o samaritano usou seu azeite, seu vinho,sua cavalgadura, seu dinheiro, seu crédito na hospedaria, sem falar, noentanto, que o infeliz assaltado recebeu a conta pelos gastos e serviçosprestados.

Vamos ao culto porque apreciamos o coro e o solista da noite; porque opregador é nome conhecido nos púlpitos evangélicos; porque a organista,num belo e moderno órgão eletrônico, produz música que enleva; porquenossos amigos lá estarão e nós os veremos e nos deleitaremos com oencontro; porque é hora de distração das preocupações e anseios danossa carne (vida); porque nosso nome está no rol e haverá, emboravelada, alguma censura pela nossa ausência; porque precisamos serexemplo para nossos filhos que crescem... Nossa lã? Não. O Senhor é ricoe dela não precisa. Afinal de contas ele no-Ia deu como único agasalho e oinverno está às portas. Não é de se estranhar que o ateísmo comunista,que se propõe a oferecer ainda mais lã, tem absorvido milhões de cristãosacostumados só a receber.

A tosquia é símbolo de serviço. Já definimos gratidão como o ideal deserviço. Deste modo a oferta de nossa lã seria o nosso culto de gratidão aoSenhor. E este culto de gratidão é a demonstração pública de que o Senhorbeneficia seu povo e, embora este povo não exista por causa dessesbenefícios, ele os tem, não em troca da lã que oferta, mas como naturalconseqüência do amor do Grande Pastor das ovelhas. É como o quadro decerto grande pintor, onde aparece o pastor, não de cajado em punho para adefesa do rebanho e a mão sobre a cabeça da ovelha a acariciá-la, mas afigura terna da ovelha a roçar-lhe meigamente o manto em atitude de amore gratidão.

Embora o homem receba (porque o dar é próprio da generosa naturezadivina), Deus não chama o homem para receber, mas para dar. E não seconfunda esta oferta, esta consagração em termos de dois ou três quilos delã. Ela é representada pela atitude ofertante do homem, mais do que pelaprópria lã que porventura ele ofereça. E aqui não haveria melhor ilustraçãodo que a referência que Jesus fez à oferta da viúva pobre. E por que nãodizermos que nenhum pastor é proprietário só da lã, mas de toda a ovelha?Assim é o homem: com a entrega de sua lã, entrega todo o seu ser. E elepassará a viver em termos de oferta e apropriação total da parte de seuSenhor.

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A lã não representa paga de qualquer espécie aos cuidados sem preçodo pastor, como o serviço cristão não é retribuição ao sacrifício do SupremoPastor por seu rebanho, pois este é gratuito, gracioso. Que lã pagaria oscuidados e as vigílias, as montanhas e os vales, os desfiladeiros e osabismos percorridos pelo pastor em busca da ovelha perdida? E mais: opastor não percorre campos e montes ou desce abismos em busca de meioquilo de lã, mas em busca da ovelha. A ovelha não oferece tambémsomente o peso de sua lã, mas a própria vida que está íntima eindissolüvelmente associada com a lã que dela nasce e cresce sem cessar.

Mas o elemento mais ilustre nesta sublime transação não épropriamente a relação lã-pastagens, mas a relação pastor-ovelha. Esta éuma relação pessoal em termos mui expressivos como consagrados pelapalavra do próprio Bom-pastor: "Eu sou o bom pastor: conheço as minhasovelhas, e elas me conhecem a mim" (Jo 10:14). É nesta relação pessoalque a ovelha sente transbordante gozo em trazer sua lã e o Supremo Pastora alegria de ser seu pastor.

Deixando de lado qualquer idéia mística que porventura Galatas 2.20possa encerrar, gostaria que esta meditação fosse selada com esseaugusto texto de Paulo, como o ideal nas relações ovelha-pastor:

"Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver queagora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a simesmo se entregou por mim".

E então o Salmo 23 pode concluir:"O meu cálix transborda".

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VIII - COMPANHEIRISMO

"Então designou doze -para estarem com ele..."(Mc 3.14)

Companheirismo... Este é um dos mais acentuados instintos humanos.O homem é ser gregário por excelência. Não gosta de estar só. Isola-sesomente por aberração mental ou por força de castigo a cumprir e, por quenão dizer, por aberração espiritual também, como no caso dos ascetas?

O companheirismo exerce no homem uma ação purificadora de altaclasse. É tão bom quando temos alguém a quem contar as lutas e fracassosque se escondem no porão de nossa alma, em canto escuro, receosos derevelação! E que alívio quando do companheiro ou companheira flui apalavra de conforto, de estímulo e, às vezes, até mesmo de perdão, perdãodiferente, antecipado, que, antes mesmo que o coração se dobre ansioso,já se sente aliviado! E, como se sente venturoso o homem quando pode

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partilhar com alguém que lhe conhece a alma e a quem ele ama os maisrecônditos segredos! Ganha a vida assim partilhada um quê indefinido egostoso, uma esotérica compreensão de destinos comuns.

E não é só na ansiedade, na luta, na dor, ou guardando pecadorecôndito e indesejável que o homem aprecia a companhia de alguém.Quão bom e salutar é dividirmos também com os outros nossas vitórias, ostriunfos vários que a vida alegremente nos traz! Também isto exerce napersonalidade humana efeito salutar, renovador até mesmo terapêutico.Confidenciarmos as vitórias, o gozo da alma; contarmos a alguém de umcoração ensolarado, um ser no qual raiou nova luz, nova aurora; falar deobstáculos transpostos e da conquista do ontem, tudo contribui para oaprimoramento do caráter de quem testemunha e para encorajamento docompanheiro confidente. Evite o orgulho, e egoísmo, o ensimesmar-se deum convencimento patológico, que pode gerar enfermidade fatal ao coração.É por isso que os poetas escrevem e repartem o divino estro, é por isso queo compositor deixa nas pautas metade da alma a transbordar a celestemúsica; é por isso que você e eu sentimos gozo indizível no companhei-rismo que nos permite, não só derramar o fel, mas também quebrar o vasode alabastro, derramar o perfume, inebriar a vida toda de encantos mil.

E por que não dizer que é no instinto gregário que os outros doisgrandes e poderosos instintos da raça — o sexual e o religioso —encontram expressão própria?

Não nos esqueçamos jamais de que nossa reação pessoal em face darealidade da vida perante aqueles com quem palmilhamos a mesma veredapode determinar-lhes a felicidade ou a desventura do viver. Jesus Cristoconhecia todas estas coisas. Ele mesmo sabia que, homem como era,embora divino, precisava também da companhia dos homens e sem ela suaobra estaria condenada e sua própria estada entre os homens — sua vida— sofreria muito.

Marcos, o mais antigo dos evangelhos, cuja tradição está mais próximada fonte, registra um traço particular do chamado dos doze que nenhum dosoutros evangelhos o faz. Antes de chamar os discípulos para pregarem ou,no trabalho pessoal ser, na linguagem do Mestre, "pescadores de homens";antes de comissioná-los para a divina missão de cooperadores do Reino;antes de torná-los continuadores da obra que se inaugura com aEncarnação, Jesus os chama — diz Marcos — "para estarem com ele". Sódepois o Senhor acrescentou:...." e para os enviar a pregar". Sentia Jesus,como você e eu, a necessidade do companheirismo. Jamais se isolou, anão ser para momentos de comunhão com o Pai. E, uma das lutas de seuministério foi por tornar o grupo de companheiros capaz de entender suamissão e com ele sofrer os desapontamentos da carreira, como também

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com ele exultar quando ramos e flores fossem colocados sob os pés dojumentinho que transportava o Senhor na entrada triunfal.

Quando Jesus vai ao Getsêmane e leva consigo três companheiros,deixa-os vigiar com ele na hora mais angustiante de sua divina pere-grinação, sofre por três vezes o desapontamento de ter sido deixado asofrer sozinho. E sua angústia, que poderia ter sido aliviada pelocompanheirismo, aumenta a solidão no horto. E suas próprias palavrasrevelam o desengano de seu grande e amorável coração: "Então, nem umahora pudestes vós vigiar comigo?" (Mt 26.40b). Parece que vejo a desilusãocom os companheiros estampada na fronte augusta do Mestre, quandoouço suas palavras: "Ainda dormis e repousais! Eis que é chegada a hora, eo filho do homem está sendo entregue nas mãos de pecadores" (Mt 26.45).

O Quarto Evangelho (cap. 17) registra uma oração de Jesus, poucoantes de oferecer-se em holocausto pelos seus. Nesta oração, o motivoprincipal é o louvor ao Pai pelos companheiros que ele teve durante seuministério e a intercessão insistente junto a Deus, pelo cuidado divino paracom os companheiros que ficavam, a quem o Senhor Jesus havia trans-mitido as lutas e as peregrinações que sofrerá, mas também em cujoscorações deixava o Mestre os segredos do Reino que do Pai recebera.Deixava mais: deixava a própria glória com que Deus revestiu a Encarnaçãode seu Filho: "Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado..." (Jo17.22a).

Que companheiro sublime!

Assim foi Jesus. Chamou os doze, não primeiramente paraassessorá-los nos trabalhos da Causa; não tão-somente para organizarema manutenção do sacro colégio; não primeiramente para pregar e anunciara chegada do Reino; não necessariamente para fundarem uma igreja; nãosomente para aprenderem a curar pela fé, nem mesmo para qualquergrande empreendimento social. O Senhor Jesus os chama primeiramentepara a mais augusta tarefa que jamais se confiou a um mortal qualquer.Chamou-os "para estarem com ele".

Ainda hoje Jesus Cristo, o Senhor anda pelas ruas da minha cidade;pelos trilhos intérminos do campo onde cultivo o meu trigo e apascento omeu rebanho; pelos corredores da minha escola; por entre as máquinasbarulhentas da minha oficina; entre os negócios do meu escritório; pelaspraias, pelas montanhas, pelos prados, pelos vales, por onde quer que euvá, convidando-me "para estar com ele".

E, se porventura a nau está em perigo, prestes a soçobrar, tais aslutas e as angústias, os ventos, e a fúria do mar, pode o homem sentir a

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mesma experiência daquele pequeno grupo vencido quando Jesus "subiupara o barco para estar com eles, e o vento cessou" (Mc 6.51).

Dobro meus joelhos no silêncio reverente da minha alma; curvo minhafronte diante da majestade do convite. E, no lusco-fusco da noite que descesobre minha aldeia, murmuram, trêmulos, meus lábios: "Fica, porque étarde e o dia já declina" (Lc 24.29a).

E não há conforto maior para o coração abatido, nem participação maisquerida para a alma exultante de gozo, do que o registro de Lucas logo,como segue:

"E ele entrou para ficar com eles" (Lc 24.29b).

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IX – O TEMPO

"Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente"(Hb 13.8).

Há na vida do homem um marco natural, depois do qual ele passa aviver do passado. Parece que a visão do fim de todo mortal lhe constrangeos olhos da alma os quais se voltam para águas quietas ou agitadas que poreles passaram e que agora correm inexoravelmente para o mar.

Encontrei há algumas semanas, ao sol do meio-dia, um casal develhinhos. Deviam ter, asseguro, mais de sessenta, quem sabe setentaanos. Vi as rugas que lhes vinculavam as faces, os cabelos encanecidos, depés incertos e as mãos trêmulas que se juntavam numa expressão feliz decompanheirismo sadio. Atentei cuidadosamente para os olhos de amboscom indiscrição de pasmar e pude ler-lhes os segredos e os colóquiosdaquele dia tão claro e cheio de futuro.

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Um dia, crianças; depois jovens a correr pelas ruas desta pequenacidade do sul da Alemanha — Radolfzell — a colher dos frutos nativos destaterra amiga e a vadear, receosos, pelas praias pedregosas do lagoConstança. Depois o encontro: olhares roubados, discretos, depois diretos,quentes, promissores. Então o altar, as flores, a música, os conselhos doministro, a unção celeste. Daí o lar, o sol do Verão e a neve do Inverno, osjaneiros e os dezembros, os planos realizados e os castelos sem conclusão.A chegada dos filhos, a ventura de vê-los crescer, percorrer os mesmosprados e montes, as mesmas ruas e praças e a repetir o mesmo e intérminociclo de seu soberbo destino. Só depois que os netos já amadureciam paraa repetição terceira do ciclo, é que eles acordaram do sonho, postaram-sena colina cortada pelo caminho, a contemplar a jornada vivida, os ideaisatingidos, os meio-atingidos e os jamais alcançados.

A palavra mais comum daquele colóquio de lustros e decênios eracertamente "lembrança". "Lembras-te, querida?..."

É bom viver o passado. Recordar as bênçãos, contar as vitórias e cantarbem alto os aleluias da alma pelo que o Senhor tem feito por nós. Mas sóassim. Só quando com Ele andamos passo a passo a caminhada é queconvém recordar. Sim, recordar as múltiplas vezes que conosco Ele seassentou à beira do poço e nos serviu da Água Viva; as vezes inúmeras que,atravessando os maduros trigais da velha Palestina, Ele mesmo colheu otrigo e, do Pão da Vida, se encheu nosso regaço. E outras tantas, inúmeras,incontáveis, quando Ele nos clareou o rumo com a Luz do Mundo e nos deusabor à existência com o Sal da Terra. Sim, é bom recordar; recordar queEle viveu conosco peregrinou a mesma estrada e que as suas foram asnossas experiências.

E eu vi nos olhos do casal de velhinhos o palco no qual sedramatizavam um passado. Naquele instante eles viviam além, nos basti-dores. Viviam de saudades, da lembrança do passado. Parece quecumpriam a profecia dos versos de Guilherme de Almeida:

“E quando eu passar e tu passares,Hão de seguir-nos todos os olhares,E debruçar-se as flores nos barrancos.”

Foi outro encontro, no entanto, que me inspirou esta página. Outro par,momentos depois, no mesmo dia ensolarado e belo.

E, quando os vi, parei discretamente para lhes observar a passagem ever-lhes a luz, então discreta, que jorrava através das janelas da alma, jáque além, além das cortinas, na azáfama ou no sossego dos bastidores, sópenetra o Senhor do espetáculo.

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Eram jovens, bem jovens. Creio que dezesseis ou dezessete anos lhesseria marcar demasiado longe a jornada. Não se davam as mãos,contentando-se somente com o ruflar discreto, de quando em quando, dablusa de lã nos braços nus do companheiro, e ela a sentir a pele juvenil aroçar na lã que compunha a blusa jogada sobre os ombros, no caminho decasa.

Vinham da escola e era a hora da refeição do meio-dia. Os passos, tãolerdos, revelavam desinteresse pelo alimento físico que os aguardava.

Cabelos doirados, olhos azuis, vivos, inquiridores, mas, sobretudoesperançosos. Pés vagarosos, mas firmes, pisando como quem inicia ajornada, acompanhados que eram pelos olhos, freqüentemente, como aquerer livrá-los das urzes da jornada.

Não. Aquele casal não tinha preocupação nenhuma com o passado. Osolhos juvenis, de um vivo de fogo, estavam postos no futuro, para o qual ospassos vagarosos os conduziam então. Ali tudo era amanhã, depois deamanhã, futuro imenso, intérmino para aquela juventude a florir.

Não havia preocupação com o que antes se passara nos bastidores.Agora estavam no palco e deviam representar bem o seu papel. Apreocupação era com o êxito futuro da peça e não com a renda da bilheteriade ontem.

Da esquina da rua onde moro, passo a contemplá-los, agora mais àdistância, na outra esquina, sempre avançando, rumo ao futuro.

Que conversam eles? Não sei. Só sei que falavam do futuro. Quaiseram seus sonhos? Não sei. Sei tão-somente que eram futuros. Para ondeseus passos os conduziam? Não sei. Sei que para o amanhã.

Mas em seus corações os mesmos anseios, os mesmos sonhos.Aquecem-se as mãos ao darem-se à vida em comum. Flores, perfumes,grinaldas, música. O altar, o ministro, o ritual, bênção, festa, lua-de-mel. Lar,filhos, amigos, Primavera, Outono, mas tudo no futuro, futuro para o qualnão convém correr; para o qual se deve caminhar devagar, seguro,confiante.

Mas todo esse amanhã imenso, gostoso, perto ou distante; todas asflores, os perfumes, a música ou o altar, nenhum significado têm senãorelacionados com o Senhor do futuro, Jesus Cristo, Deus Conosco. Se elenão for junto, pouco se ouvirá da música, do perfume só lima parte muipequena, das flores e dos pássaros o encanto é quase nada; a própria luzdo sol não terá pleno brilho, a água não matará completamente a sede, nem

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o pão saciará de todo a fome.

Conheço alguém em quem passado e futuro se reúnem em eternopresente: Cristo. Passado e futuro só possuem significado em termos dopresente. A vida crista se traduz menos em termos de saudade eesperanças: compõe-se de amor e o amor, embora possua ligações com opassado e futuro, é o agora da vida. O passado fornece lições para asvitórias do porvir, cuja urdidura se encontra no agora da existência. Asaudade e a esperança possuem conotação temporal: jamais o amor. Elese realiza plenamente numa esfera extra-temporal. É curioso verificar-senos evangelhos que Jesus Cristo jamais disse ao paralítico suplicante:"Procure-me amanhã". Nem tampouco quis o Filho de Deus saber se oscegos aos quais restaurou a vista haviam contemplado ontem belas aurorasou vésperas cheias de luz e poesia. Não. Ele simplesmente viveu o seupresente de amor: curou-os.

Há duas parábolas nas quais Jesus vive, em sua narrativa, estarealidade presente. Quando o samaritano encontrou o pobre judeudilapidado e sofrendo à beira do caminho, não lhe pediu esperasse umpouco ou lhe indagou do acontecido de ontem. "Pensou-lhe os ferimentos,aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal,levou-o para uma hospedaria e tratou dele" (Lucas 10:34). Esta é alinguagem do agora. Quando o filho pródigo se descobre miserável e dis-tante do pai, não diz: "Amanhã irei ter com meu pai", mas "levantar-me-eie irei ter com meu pai... e levantando-se, foi para seu pai" (Lc 15.18a, 20a).

Não há nestas páginas lição que nos queira alienar da realidadehistórica, temporal. Jamais, pois o homem é ser temporal e a vida possui narealidade estas três dimensões: passado, presente e futuro. Há, sim umbrado que visa acordar os saudosistas e despertar os visionários. Há opropósito de chamar a atenção para a urgência do presente, de modo que avida do agora, na exuberância do amor que de Cristo promana, seja vividacom tal intensidade que o passado não perca seu significado, nem o futuroseu sabor de espera.

É cristão trabalhar e pensar no futuro, pois, no dizer de Paulo,esperamos a volta do Senhor. É, no entanto, iníquo absorver de tal modo opresente nesta expectativa, que a vida perca sua realidade atual e se tornena angústia ou no enfado do amanhã.

É bom recordar, é justo usar as experiências de ontem para os bonsêxitos de hoje. É, no entanto, iníquo roubar ao presente suas possibilidadescriadoras, através de uma absorção desusada no passado.

Há uma indecifrável urgência de vivermos o agora em Cristo, o hoje do

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amor, na certeza gostosa de que tanto a saudade quanto a esperança lhepertencem.

Bem aventurado o homem que pode ver o passado como o resultado dealguns anos de vida em comum com aquele que é o Senhor do passado.Venturoso o homem que pode lançar seus olhares para o futuro e permitir,como no caminho de Emaús, que Jesus vá com ele em demanda doamanhã. Feliz é o homem que no agora em Cristo pode sentir saudades doontem com ele, e prosseguir sereno, para o amanhã da fé.

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X – O ENCONTRO

"Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pãocom fartura, e eu aqui morro de fome!

Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu ediante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como umdos teus trabalhadores.

E, levantando-se foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai oavistou e, compadecido dele, correndo, o abraçou e o beijou".

(Lc 15.17-20).

Jovem, cheio de vida, vestido suntuosamente, na posse da herança,levanta a fronte, volta as costas ao velho pai, e parte. Parte para odesconhecido, "para uma terra distante". E, lá, dissipa seus bens: vivedissolutamente. E quando o ouro se acaba, todos o abandonam e, nalinguagem da Escritura, é expulso do jardim em cuja entrada se ai teia aespada flame jante.

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Então o campo é seu mundo. Os porcos seus amigos. Numa estrebariao leito encontra, e, no cocho entre o rosnar dos suínos, o seu pão. Porvestes, andrajos. O corpo e a alma no meretrício se corromperam. Nosolhos a chama se apagara e nos dedos não mais se achava o anel deherdeiro.

Este é o drama do homem. Quantos se encontram hoje numa destasduas fases: dissipando seus bens, vivendo dissolutamente, no gozo eprazeres do mundo, ou já no segundo estágio, a apascentar porcos, comeles vivendo, com eles dormindo, e no seu cocho se alimentando cada dia,desnutridos, sem esperança, vencidos!

Poucos homens sabem que não foram criados para o cocho a quem têmdescido, porque assim o escolheram. Uns mais próximos dos porcos, outrosmais longe; uns descem mais, outros menos; uns comem em pequenos,outros em largos, avantajados cochos, onde tentam enlamear ainda mais aprópria face que deveria refulgir a imagem do Criador. Mais próximos oumenos próximos dos porcos, uma coisa é certa: "Todos pecaram e carecemda glória de Deus" (Rm 3.23).

Também nem todos os homens sabem que lá de onde vieram, à entradada fazenda, olhos incessantemente postos no caminho, braçosamoràvelmente abertos, lábios onde há sempre a palavra de perdão ebênção, espera o pai, velando em noites longas e por dias inteiros, naesperança do retorno do filho que partira.

O texto de Lucas 15.11-32 encerra a mais notável dentre as notáveisparábolas de Jesus. Seu foco não é o filho que parte rico e volta seminu,faminto, corrompido, desgraçado; não são os protestos e os reclamos doirmão que ficara fiel no seu trabalho; não é a festa, o banque, a música, asdanças. Não. A figura central nesta parábola é a do Pai, cujo amor perfeitobaixou a este mundo e, em Cristo, incessantemente busca e encontra ohomem pecador.

É esse mesmo Deus-em-Cristo que dá ao homem forças para que elepossa levantar-se e partir. Mas é preciso que o homem queira, quesimplesmente deseje. Parece que vejo aquele miserável rapaz da parábola,assentado, desiludido, olhos baixos, a vigiar o rebanho que passeia. Derepente seus olhos se inflamam, seu coração se aquece, sua fronte seergue e ele tem uma visão do velho pai a esperá-lo ao longe. Mas não ficasó na visão, no êxtase e na glória daquele momento de contemplação. Elediz a si próprio: "Levantar-me-ei e irei ter com meu pai". Isto não é futuro,não é amanhã, não é depois. Isto é agora, é presente, é já, pois a narrativacontinua: "E, levantando-se, foi para seu pai".

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Foi como estava: sujo, seminu, descalço, faminto, carregado depecados e de dores. Não partiu arrogante para discutir com o pai os direitosque porventura lhe restassem. Não. Humilde, reconhecendo o abismo emque naufragara, se propõe a confessar: "Pai, pequei contra o céu e diante deti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teustrabalhadores".

Vestes novas, anel no dedo e sandália nos pés. Regozijo, festa nafazenda.

Isto acontecerá, meu caro leitor, a todo homem que se descobre nococho, entre os porcos, miserável, pecador e se propõe a regressar ao lar econfessar-se culpado diante do Pai, apelando para sua misericórdia emCristo.

"Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele,correndo, o abraçou e o beijou". Não existe no céu nem na terra outra cenamais comovedora do que esta. Não há linguagem humana que outro quadromais augusto descrever possa. É o encontro do infinito com o finito; é oencontro do amor de Deus com a miséria e o pecado humano.

Ele o espera. Não à distância, no além, no desconhecido. Mas aqui, aseu lado; e, se você estender a mão, simplesmente estendê-la, ele oabraçará e o beijará, no dizer da parábola de Jesus.

Ele o espera. Não amanhã, no próximo domingo, no ano vindouro, nofuturo. Ele o espera agora, já. Tome o alforje; arranje melhor os andrajos demodo a velar mais discretamente a nudez moral em que se encontra; curvea fronte em atitude de súplica e parta. Volte ao lar.

Basta que seu coração queira e na intimidade de sua alma, diante doEspírito Divino, haja lugar para a decisão:

"Levantar-me-ei e irei ter com meu pai".

• DEPOIS DO ENCONTRO

O "fato Cristo" acontecido na vida do homem não o isola de outroshomens que não conhecem a Cristo. Aproxima-o, é verdade, de outrosintegrados em Cristo e apenas distancia-se espiritualmente dos que aindanão retornaram a Deus. Deste modo o "homem em Cristo", como Paulodenomina os cristãos, não pode abstrair sua condição de sócio. Elecontinua relacionado com a mesma sociedade de antes do Encontro comseu Salvador. A diferença está em que agora ele assumiu sérias

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responsabilidades para com o mundo em que vive. Antes ele o contemplavasendo ele próprio parte integrante do mundo. Agora ele o vê através doprisma do Evangelho, dos olhos de Jesus Cristo, seu Senhor, estando nomundo, mas a ele não pertencendo (Jo 17).

E qual o colorido que a luz de seus olhos humanos (mas em Cristo)projeta através do prisma Cristo sobre esse mundo no qual ele vive, sem,contudo, lhe pertencer?

A eterna soberania de Deus torna-se realidade. Deus não é somenteaquele ser distante, que manda chuva e sol sobre a terra e a faz tremer devez em quando. Não é o ser divino para o qual se apela em horas deaperturas, mas o Deus pessoal que em Jesus de Nazaré o encontrou e nelefez morada, e cuja vontade, por mais estranha e difícil que pareça, deverealizar-se na vida do novo homem, mesmo que incompreendida. Já umsanto do passado dizia: "Senhor, tu me esmagas; mas basta saber que é atua vontade."

Os outros seres humanos já não são meras peças do mecanismo social.Agora estão mais chegados, são o seu próximo.

E qual é a atitude do novo homem para com o próximo?

Ele possui os mesmos direitos perante Deus, perante o Estado e diantede outros homens. E, por mais estranha que pareça a lição de Cristo, eledeve entrar primeiro pela porta, deve sentar-se à sua frente no banquete. E,porque ele é o seu próximo, não pode ser motivo de exploração pessoal. Eletem direito a uma vida digna; ele também deve participar do pão.

A urgência do testemunho é outra incumbência do novo estado dohomem depois do Encontro. Seu amor a Deus e sua responsabilidade paracom o próximo levam-no a anunciar-lhe a possibilidade de ele mesmo vir aencontrar-se com Cristo. Este não é um anúncio que se faça à maneira desimples propaganda comercial. Ele tem dois aspectos: o primeiro é aapresentação de Cristo como o caminho que leva o homem a Deus; osegundo é o anúncio do julgamento de Deus pendente sobre o homem nasua condição de rebelde, de distanciado de Deus. Este anúncio é profético,tendo a Palavra de Deus como instrumento, mas também é existencial epode ser distinguido pelo homem comum através do brilho da glória deCristo na face do novo homem em seu testemunho na vida de cada dia.Este não é um brilho utópico e luminoso como a fictícia auréola dos santos.É revelado em termos de vida e vida abundante em Cristo. Também não éexercício humano, mas é o novo estado do homem em Cristo, de quem vema graça e o poder para o testemunho.

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Há aspectos deste testemunho diário que o homem não expressasenão através da Igreja de Cristo, que não se confunde com nenhumadenominação evangélica, embora estas sejam expressões daquela.

Este testemunho também se expressa na relação do homem com oEstado, em termos de obediência e tributos, até ao ponto em que o Estadonão interfira em sua nova relação com Cristo.

O novo homem olha para os bens do mundo como instrumentos de seutestemunho cristão e não como elemento de opressão do próximo ou dasociedade, ou alimento para seu orgulho ou degradação moral como nocaso do rico insensato da parábola de Jesus, segundo Lucas (12.16-21).Nem ao Estado atribui ele o direito de ser o proprietário de todos os bens edeles dispor para seu fortalecimento político e opressão humana. Os bensmateriais existem para o bem do homem e do seu próximo e não parainstrumento de seu pecado.

O novo homem possui nova conceituação da família, onde esposa efilhos são familiares e não objetos de satisfação de seus desejos.

Depois do encontro com Cristo o homem é membro do Reino de Deus,vivendo agora no mundo por sua graça e da esperança futura de suaredenção final. As relações do novo homem com o mundo não sãomundanas, porque ele não mais lhe pertence. Elas são divinas. E ele já nãoforma uma unidade com o mundo, mas com Cristo e esta unidadeestreita-se cada vez mais até à exclamação paulina:

"Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver queagora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a simesmo se entregou por mim" (Gl 2.20).

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LIVROS DO MESMO AUTOR

PROBLEMAS DE UMA IGREJA LOCALPublicação da Associação Acadêmica "João Wesley", 1962.

A PERSONALIDADE VIVA DE PAULOPublicação da Associação Acadêmica "João Wesley", 1964.

O NOVO TESTAMENTO:Cânon — Língua — Texto Publicação da Associação dos SemináriosTeológicos Evangélicos — ASTE — 1965.

IMPRENSA METODISTA