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Revista Ícone Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura Volume 09 – Janeiro de 2012 – ISSN 1982-7717 O ESPAÇO ROMANESCO EM HOTEL ATLÂNTICO DE JOÃO GILBERTO NOLL Marcela Ferreira da Silva Santana * Resumo: Este trabalho discute a temática da cidade e do trânsito na literatura brasileira contemporânea por meio da análise do espaço no romance Hotel Atlântico de João Gilberto Noll, o qual constrói uma tensão entre homem e lugar. A obra em questão se constitui sob uma perspectiva que não se preocupa em construir uma identidade nacional dicotômica. Problematiza a relação do homem com os espaços e insere, na economia do texto ficcional, a desarticulação das tópicas estéticas da Modernidade no tratamento da cidade. Palavras-chave: literatura contemporânea, espaço romanesco, trânsito. Introdução Flora Süssenkind (2005)constata que dentre os possíveis caminhos da produção literária contemporânea, a imaginação brasileira é, predominantemente, urbana. A estudiosa atribui esse fator a dois aspectos pertencentes à realidade sócio-cultural do país. O primeiro se relaciona ao fato de que a população tem se tornado, sobretudo, urbana nas últimas décadas, permanecendo apenas 30% deste contingente no campo, e o segundo aspecto aponta para uma reconfiguração artística das tensões entre localismo e cosmopolitismo. Essa tese é defendida por Antonio Candido (2000) quando observa que é possível identificar um movimento pendular entre localismo e cosmopolitismo na tradição literária brasileira, no qual predomina a dicotomia campo/cidade para constituir as fronteiras do território nacional. Em outras palavras, Renato Cordeiro Gomes (1994) afirma que, no Brasil, criou- se uma geografia literária de base euclidiana, fundando os traçados dos campos e das cidades. Abrange desde José de Alencar, passa pelas propostas modernistas e regionalistas de 30 e chega até a literatura documental da década de 70, numa tentativa * Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Goiás. Bolsista Capes. [email protected].

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  • Revista cone Revista de Divulgao Cientfica em Lngua Portuguesa, Lingustica e Literatura

    Volume 09 Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717

    O ESPAO ROMANESCO EM HOTEL ATLNTICO DE JOO GILBERTO NOLL

    Marcela Ferreira da Silva Santana

    Resumo: Este trabalho discute a temtica da cidade e do trnsito na literatura brasileira contempornea por meio da anlise do espao no romance Hotel Atlntico de Joo Gilberto Noll, o qual constri uma tenso entre homem e lugar. A obra em questo se constitui sob uma perspectiva que no se preocupa em construir uma identidade nacional dicotmica. Problematiza a relao do homem com os espaos e insere, na economia do texto ficcional, a desarticulao das tpicas estticas da Modernidade no tratamento da cidade.

    Palavras-chave: literatura contempornea, espao romanesco, trnsito.

    Introduo

    Flora Sssenkind (2005)constata que dentre os possveis caminhos da produo literria contempornea, a imaginao brasileira , predominantemente, urbana. A estudiosa atribui esse fator a dois aspectos pertencentes realidade scio-cultural do pas. O primeiro se relaciona ao fato de que a populao tem se tornado, sobretudo, urbana nas ltimas dcadas, permanecendo apenas 30% deste contingente no campo, e o segundo aspecto aponta para uma reconfigurao artstica das tenses entre localismo e cosmopolitismo.

    Essa tese defendida por Antonio Candido (2000) quando observa que possvel identificar um movimento pendular entre localismo e cosmopolitismo na tradio literria brasileira, no qual predomina a dicotomia campo/cidade para constituir as fronteiras do territrio nacional.

    Em outras palavras, Renato Cordeiro Gomes (1994) afirma que, no Brasil, criou-se uma geografia literria de base euclidiana, fundando os traados dos campos e das cidades. Abrange desde Jos de Alencar, passa pelas propostas modernistas e regionalistas de 30 e chega at a literatura documental da dcada de 70, numa tentativa

    Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios da Universidade Federal de Gois.

    Bolsista Capes. [email protected].

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    de se construir uma identidade nacional, principal preocupao da intelectualidade brasileira. Contudo, a partir da dcada de 70 do sculo XX, alguns fatores vieram contribuir para a desestabilizao do topoi dicotmico (campo/cidade) favorecendo a transio dos elementos temticos e estruturais da narrativa brasileira contempornea, por no mais se organizar em torno de um projeto ideolgico comum que precisa criar ou recriar uma identidade para o pas, como no Romantismo ou no Modernismo, respectivamente.

    Exemplo disso o esmaecimento do tom de protesto contra o regime militar, a literatura contempornea deixa de se organizar em torno de um projeto esttico-ideolgico concebido a priori, perdendo a conscincia de grupo das vanguardas do sculo XX, como era presente no movimento Antropofgico ou mesmo no regionalismo de 1930. O crtico talo Moriconi (2002) identifica essa caracterstica na literatura contempornea e afirma que a mesma passa por um processo de dramtica reorientao, no apenas no plano dos temas, como tambm no plano dos procedimentos narrativos.

    [...] um aspecto crucial da alegada crise do final do sculo o fato de que os escritores emergentes se veem perdidos, no sabendo muito bem em que valores ancorar suas obras. Cada escritor se v diante da circunstncia de ter que criar seu prprio projeto individual, o qual deve incluir uma definio ao menos implcita do tipo de destinatrio, do tipo de leitor que quer, pois este tambm perdeu sua nitidez e homogeneidade. Se no paradigma modernista escrevia-se para construir a literatura brasileira, no final do sculo essa justificativa tica da literatura j no suficiente, e no h na verdade, por enquanto, uma vontade to grandiosa quanto aquela para ocupar o lugar meta-formativo. (MORICONI, 2002, s/p).

    Outro aspecto para essa desestabilizao, apontado por Tnia Pellegrini (2008), a decadncia da crena utpica de que a literatura, por meio da palavra, possui uma fora potencial de transformar as estruturas sociais da realidade brasileira, para dar lugar, a partir da dcada de 70, a uma literatura pressionada pelas foras de uma indstria cultural em vias de consolidao. Desse modo, no h mais sentido falar na dicotomia localismo e cosmopolitismo, porque, hoje, vive-se numa sociedade que d passos largos em direo ao mundo globalizado, em que as fronteiras geogrficas e cartogrficas so, aceleradamente, diludas, colocando em xeque as tpicas que consolidaram a Modernidade.

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    Assim como Modernidade, a literatura contempornea atribui s cidades significados que denotam a falncia do conceito de progresso. Segundo Renato Cordeiro Gomes (2000), h, nessa produo, a necessidade de inserir a impossibilidade de representar uma geografia Balzac. Dito de outro modo, a contemporaneidade se constitui por meio de outros paradigmas, menos territorialistas, que valorizam a diversidade e a multiplicidade dos temas e dos procedimentos estticos.

    Dessa forma, a cidade construda por signos que configuram o no-pertencimento, o no-enraizamento e o no-compartilhamento do homem com o lugar e isso refletido tambm na estrutura da obra por meio da relao entre a literatura e outras mdias, da crise da representao do real e da fragmentao do enredo, entre outras particularidades.

    No geral, trata-se de uma literatura da subtrao, que se ocupa das ausncias e perdas, daquilo que foi impossibilitado de alcanar na cidade e tambm no campo: Essa literatura , dessa forma, produto de um tempo ps-utpico em que o presente desaloja o futuro enquanto terra-prometida, pondo sob suspeitas as certezas que a Modernidade anunciava. (GOMES, 2000, p. 03). A viso baudelairiana da cidade pelo flneur, que a concebia pelo signo da fascinao, no existe mais, tampouco h a eleio do campo como refgio para as mazelas do espao urbano, como fizeram os neoclssicos.

    Nesse sentido, Hotel Atlntico1, o romance de Joo Gilberto Noll publicado, pela primeira vez em 1986, insere como temtica a cidade e o trnsito, mas, diferentemente do tratamento desse tema em outros movimentos literrios como, por exemplo, no Realismo do sculo XIX, que se preocupava em organizar o caos urbano por meio de uma linguagem descritiva, essa narrativa se organiza para representar tambm na estrutura os signos da instabilidade, do mvel e do efmero. Entretanto, antes de analisar o problema do espao no interior do romance supracitado, faz-se necessrio uma breve introduo terica sobre o espao romanesco, a fim de precisar alguns pressupostos imprescindveis para a compreenso da organicidade do espao na narrativa de Joo Gilberto Noll.

    1 Espao e romance: um pouco de teoria

    1 Todas as citaes dessa obra, no presente trabalho, sero retiradas da publicao de 2004.

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    Quando se pretende estudar o espao no romance, o estudioso da literatura esbarra em uma lacuna terica, porque no encontra uma quantidade satisfatria de estudos sobre o assunto, como o caso das outras categorias narrativas. Sobre o espao, no so encontradas teorias consistentes como os estudos de Gerard Genette, Norman Fridman ou Mieke Ball a respeito da problemtica do narrador, por exemplo. Sobre o espao, enquanto categoria narrativa no possvel enumerar muitas contribuies tericas. E, geralmente, quando so encontradas, essas teorias tendem a relacion-lo com o espao exterior narrativa, pouco contribuindo para os estudos literrios, sendo mais teis s cincias sociais. Como o caso do estudo de Micio Tti, O mundo de Machado de Assis, no qual se preocupa apenas em reconstituir a paisagem do Rio de Janeiro a partir do texto ficcional2. Numa veia contrria a essa, pode-se destacar a obra de Osman Lins, Lima Barreto e o espao romanesco, em que, no seu estudo sobre o autor de Triste de fim de Policarpo Quaresma, aborda a categoria narrativa do espao a partir de uma observao terica interessante para a literatura. No presente trabalho, os pressupostos tericos de Osman Lins sero retomados para analisar o espao que emerge da obra de Joo Gilberto Noll:

    A narrativa um objeto compacto e inextrincvel, todos os seus fios se enlaam entre si e cada um reflete inmeros outros. Pode-se, apesar de tudo, isolar artificialmente um de seus aspectos e estud-lo no, compreende-se, como se os demais aspectos inexistissem, mas projetando-o sobre eles: neste sentido, vivel aprofundar, numa obra literria, a compreenso do seu espao e do seu tempo, ou, de um modo mais exato, do tratamento concedido, a, ao espao ou ao tempo: que funo desempenham, qual sua importncia e como os introduz o narrador. Note-se ainda que o estudo do tempo ou do espao num romance, antes de mais nada, atm-se a esse universo romanesco e no ao mundo. (LINS, 1976, p. 63-64).

    O objetivo desse trabalho, ento, observar como o espao se constitui no universo romanesco para conferir-lhe uma tenso nica: enquadrar a personagem e caracteriz-la. Em Hotel Atlntico, o espao serve para constituir um eu-em-trnsito que no consegue estabelecer vnculos afetivos ou polticos com os lugares por onde passa. Osman Lins (1976) diferencia espao e ambientao. O primeiro relaciona-se com a cartografia, a realidade emprica e , portanto, denotativo e explcito. O segundo

    2 Ver mais sobre isso no livro Espao e Romance de Antonio Dimas.

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    est ligado atmosfera do ambiente, aos significados simblicos, conotativos e implcitos que deflagram de determinada situao no espao fsico, como a alegria, a angstia ou o medo.

    Por ambientao, entenderamos o conjunto de processos conhecidos ou possveis, destinados a provocar, na narrativa, a noo de um determinado ambiente. Para aferio do espao, levamos nossa experincia de mundo; para ajuizar sobre a ambientao, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS, 1976, p. 77).

    Dessa forma, o espao o palpvel e a ambientao o sentido. O estudioso desenvolve o conceito de ambientao a partir de trs possibilidades gerais de realizao nos textos narrativos: franca, reflexa e dissimulada. A ambientao franca: se distingue pela introduo pura e simples do narrador. (LINS, 1976, p. 79). Para fundamentar a ambientao franca e diferenci-la da reflexa, o autor retoma a teoria de Philippe Hamon sobre a temtica vazia e a plena, sendo, respectivamente, descrio pura ou denotativa e narrao conotativa ou carregada de significados simblicos. A ambientao franca consiste na descrio do espao pelo olhar do narrador, por isso, vazia de subjetividade e a reflexa, por sua vez, est prxima da temtica plena, em que o espao descrito impregnado pelas impresses subjetivas de uma personagem. Para explicitar o que foi dito, Osman Lins (1976) apresenta como exemplo um trecho de Madame Bovary em que Emma recebe a carta de Rodolfo anunciando o rompimento entre eles e ela se dirige ao sto para l-la. O sto descrito por signos que revelam um ambiente de angstia e isolamento da personagem. O ambiente matizado pela subjetividade de Emma, num momento em que a morte iminente. As ardsias deixavam cair a prumo um calor pesado, que lhe apertava as fontes e a sufocava. (FLAUBERT Apud LINS, 1976, p. 81).

    Se o espao descrito pela focalizao da personagem, tem-se um caso de ambientao reflexa. Nesse exemplo retirado de Flaubert, embora o narrador esteja em terceira pessoa, no h dvida de que o ambiente descrito por meio da subjetividade da personagem Emma. Um exemplo que contraria essa ambientao reflexa e se constitui como franca pode ser observado no terceiro captulo de O Cortio de Alusio de Azevedo, em que se predomina a composio do retrato do ambiente geral do cortio. Eram cinco horas da

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    manh e o cortio acordava, abrindo no os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. (AZEVEDO, 1997, p.30). Dito de outro modo, a ambientao franca feita por meio do olhar do narrador e a ambientao reflexa consiste na construo do relato por meio do olhar de um personagem: as coisas, sem engano possvel, so percebidas atravs da personagem. (LINS, 1976, p. 82). Em ambos os casos, seja o narrador em terceira pessoa ou personagem, a voz narrativa faz uma pausa no relato da ao para se ocupar de dados do contexto, da moldura do espao, no qual a personagem se insere. Exemplo emblemtico de pausa pode ser lido no dcimo captulo da primeira parte do romance Senhora de Jos de Alencar. Quando Aurlia aparece pela primeira vez a Fernando Seixas, aps herdar a fortuna de seu antepassado. Ela aparece na porta do salo e o narrador faz uma pausa na ao por seis pargrafos seguidos para fazer uma longa e exuberante descrio do ambiente, do vestido de seda, do esprito altivo de Aurlia e de sua entrada triunfal no salo. Alm disso, essa ambientao reflexa porque quem v essa exuberncia do ambiente a prpria Aurlia. Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulaes da seda parecia no ser ela quem avanava; mas que ao outros que vinham ao seu encontro. Seixas v a

    mesma entrada de Aurlia de forma diferente: Se Aurlia contava com o efeito de sua entrada sobre o esprito de Seixas, frustrara-se essa esperana, porque os olhos do mancebo [...] no viram mais que um vulto de mulher atravessar o salo e sentar-se no sof. (ALENCAR, 1997, p. 47). O terceiro tipo de ambientao a mais complexa e de difcil apreenso. Ao contrrio das outras duas supracitadas, a ambientao dissimulada no suspende o relato para emoldurar o ambiente, exige a personagem ativa: o que a identifica um enlace entre espao e ao. (LINS, 1976, p. 83). Trata-se de uma reciprocidade harmnica entre seres e coisas, entre personagens e espao, como se o espao nascesse dos prprios gestos das personagens. No h pausas na ao para emoldurao do espao. Ambos, personagem e espao, constituem-se numa relao dialtica, um no outro. Talvez um exemplo que Osman Lins no traz em sua anlise, mas que merece

    ser lembrado a descrio inicial do romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.

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    Mrs. Dalloway disse que ela prpria iria comprar as flores. Quanto a Lucy, j estava com o servio determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; em poucos em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manh, pensou Clarissa Dalloway fresca como para crianas numa praia! Que frmito! Que mergulho! Pois sempre lhe parecera quando, com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de sbito as vidraas e mergulhava ao ar livre, l em Bourton. Que fresco, que calmo, mas que hoje, no era ento o ar da manhazinha; como o tapa de uma onda; como o beijo de uma onda; frio, fino, e ainda (para a menina de dezoito anos que ela era em Bourton) solene, sentindo, como sentia, parada ali ante a janela aberta que alguma coisa terrvel ia acontecer; (WOOLF, 1980, p. 07).

    Nesse excerto do romance de Virginia Woolf, no h pausa no relato para descrever o ambiente de frescor da manh que a personagem percebe. Ao contrrio, enquanto Mrs. Dalloway decide comprar as flores e ouve o ringir de gonzos, o ambiente flui da prpria personagem e recoberto por uma sensao de calmaria que a leva a mergulhar no passado de sua juventude em Bourton. No h pausa para falar do ambiente e depois voltar a ao. como se o espao nascesse da prpria personagem, numa relao dialeticamente recproca. Dito de outro modo, na ambientao dissimulada, tem-se a diluio da moldura do espao, assim como h a diluio da ordem cronolgica. Presente e passado se fundem, espao e personagem tambm. Mrs. Dalloway oscila entre Londres e Bourton, entre presente e passado, numa distenso temporal e espacial. Segundo Anatol Rosenfeld (1969), trata-se da crise do ponto de vista perspectvico do Renascimento, em que a noo de sujeito cognoscente entra em crise, perdendo sua posio em face do mundo, e isso incorporado no romance moderno como tema e como estrutura narrativa. A ambientao dissimulada seria um desses recursos, juntamente com o fluxo de conscincia, a fragmentao do enredo e a fuso de nveis temporais e espaciais. Alm da ambientao e seus desdobramentos, Osman Lins (1976), tambm, argumenta sobre as funes do espao para a narrativa. Retomando Philippe Hamon e Michel Butor, o autor afirma que o espao na narrativa tem como principal funo a

    caracterizao da personagem.

    Tem-se acentuado, no espao romanesco, como das mais importantes, sua funo caracterizadora. O cenrio escreve Philippe Hamon, no estudo sobre mile Zola, confirma, precisa ou revela o personagem. Mais ou menos o mesmo, lemos num estudo de Jean-Pierre Richard sobre os objetos em Balzac: verdade que o objeto, mais frequentemente, tem aqui valor de ndice psicolgico ou social. Michel Butor, por sua vez, ocupando-se especificamente dos mveis, sublinha que estes, no romance, no desempenham apenas um papel potico de proposio, mas de

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    reveladores, pois tais objetos so bem mais ligados nossa existncia do que comumente admitimos. Continua: descrever mveis, objetos, um modo de descrever os personagens, indispensveis.. (LINS, 1976, p. 97).

    Mais adiante na discusso, o autor acrescenta que, apesar de mais importante, a funo caracterizadora no a nica funo do espao romanesco, podendo, tambm, influenciar ou situar a personagem.

    Retomando, mais uma vez, o estudo de Osman Lins (1976, p. 73), tudo na narrativa personagem, espao, tempo, narrador converge harmonicamente para estabelecer a idia geral da narrativa. No romance que aqui se prope analisar, todos esses elementos convergem para criar uma tenso entre homem e o lugar, fazendo emergir desse espao narrado um homem sem lugar, um incessante eu-em-trnsito. Feita essa abordagem terica sobre o espao, passe-se, no prximo tpico, a anlise estrutural do romance em questo.

    2 O espao mvel e a personagem errante

    A narrativa de Joo Gilberto Noll marcada pela temtica do trnsito. A problematizao do homem e do lugar no aparece apenas em Hotel Atlntico (1986) como tambm em Rastros do Vero (1986) e Bandoleiros (1985). Tal problematizao ultrapassa o nvel temtico e se fixa tambm na estrutura narrativa para criar um todo compacto e inextrincvel, do qual sugere Osman Lins (1976, p. 63). Nessas narrativas, o autor insere seus personagens andarilhos ou errantes em diferentes espaos: nibus, hospitais, hotis, rodovirias, todos carregados de signos que denotam o trnsito, a deambulao e a impossibilidade de se fixar em um nico lugar. Aquele que est em trnsito no ocupa lugar nenhum.

    Dessa forma, tudo na narrativa espao, narrador, tempo e personagens se alia ao signo da instabilidade. Segundo Osman Lins (1976, p. 63): ocupar um determinado espao quer dizer: estar em repouso. Por extenso, aquele que ocupa vrios espaos em um curto perodo de tempo, est em trnsito.

    O romance Hotel Atlntico consiste em um relato de viagem de um ator fracassado, que sai de um hotel em Copacabana, Rio de Janeiro, e vai parar em outro hotel em Pinhal, Rio Grande do Sul, sua ltima parada. A viagem carrega em si os signos do trnsito, daquele que saiu e ainda no chegou.

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    O narrador tambm protagonista e annimo. Trata-se de um errante que no tem um itinerrio preparado a priori e parece ter sua viagem condicionada ao acaso das circunstncias encontradas pelo caminho. Sem saber o porqu, o personagem simplesmente continua seu trnsito, passando por lugares e situaes extremas, como por exemplo, a experincia de quase morte, a amputao de uma perna e, por fim, a prpria morte. O percurso que faz banal e se parece com uma fuga, mas que nem mesmo o narrador-personagem demonstra saber as causas.

    Nesse sentido, ao analisar a obra de Noll, Therezinha Barbieri (2003, p. 58) afirma que:

    [...] o leitor de apropria daquele olho gil que focaliza o personagem e passa, com este, a deslocar-se prazerosamente nesse cenrio mvel, desenraizado de tudo, esvaziado de subjetividade, privado de objetivos e de referenciais que pudessem servir de norte, jogo de uma representao em crise, igualmente partilhada por leitor e escritor.

    Em suma, o percurso que o personagem faz pode ser sintetizado num esquema: Rio de Janeiro Florianpolis Vioso Arraiol Porto Alegre Pinhal. O relato se inicia com o personagem em um hotel no Rio de Janeiro, o qual decide partir. Do hotel de Copacabana at a rodoviria, ele vai de txi e, ento, fica claro que ele no tem itinerrio, porque diz ao taxista que ir para Minas Gerais. Contudo, um luminoso em cima do guich (NOLL, 2004, p. 22) o faz decidir comprar uma passagem para Florianpolis. Todo o percurso marcado e direcionado ao acaso. Segue de nibus pela rodovia Sul-Sudeste at Florianpolis. Durante essa viagem, senta-se ao lado de uma americana que se suicida dentro do nibus, ingerindo algum tipo de medicao. Com medo de que lhe faam perguntas, o narrador-personagem sai pela cidade sem rumo e encontra, ao acaso, dois rapazes que vo de carro para o Rio Grande do Sul e ele segue viagem com os desconhecidos. Eles fazem duas paradas: a primeira em um bordel, no qual passam a noite, a segunda parada em uma fazenda prxima rodovia, na qual, os desconhecidos matam uma pessoa. Numa fuga prodigiosa, o narrador-personagem encontra um homem com uma carroa que o leva at Vioso, uma pequena cidade quase na fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dessa cidade, segue caminhando para Arraiol, no estado do Rio Grande do Sul.

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    Em Arraiol, tem sua perna amputada e precisa se estabelecer por um tempo, mas, assim que recebe alta do hospital, continua sua viagem. No h muitas explicaes sobre o estado de sade ou de qualquer outro motivo que o levasse a essa incansvel partida, tampouco h algum indcio de se estar procura de algo maior para sua existncia. No h o mergulho na subjetividade como em Virginia Woolf. Ao contrrio, embora seja narrativa em primeira pessoa, tem-se a ausncia de reflexo e de autoconscincia. O que importa a viagem em si esvaziada de qualquer sentido simblico. De Arraiol, vai para Porto Alegre de carro com o enfermeiro Sebastio e, por fim, chega Pinhal, ao hotel Atlntico, onde morre. Em forma de sumrio, a narrativa segue o fluxo linear do tempo cronolgico. Sem fazer nenhuma analepse ou flash back para saber quais os motivos que levam o narrador-personagem a partir, no possvel saber nada sobre sua origem ou razes. Pelo desenrolar da histria, fica evidente a dificuldade em estabelecer vnculos. Em algumas vezes at h uma inclinao em ficar em algum lugar, casar e adquirir vnculos afetivos ou sociais, mas o que se sobressalta a partida. Retomando a definio de Osman Lins (1976) sobre a ambientao, em Hotel Atlntico aparecero dois tipos de ambientao a dissimulada e a reflexa. Os espaos descritos antes do hotel Atlntico: do hotel no Rio de Janeiro a Pinhal, todas as paisagens, sejam urbanas sejam naturais, s existem a partir do trnsito que o personagem faz. O espao surge enquanto ele caminha.

    Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora da Copacabana, quase esquina da Miguel Lemos. Enquanto subia ouvi vozes nervosas, o choro de algum. De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMS, e comearam a descer trazendo um banheiro de carregar cadver. Fiquei parado num dos degraus pregado parede. [...] Me senti arrependido de ter entrado no naquele hotel. Mas recuar me pareceu ali uma covardia a mais que eu tinha de carregar pela viagem. E ento fui em frente. (NOLL, 2004, p. 9).

    Nesse sentido, a ambientao dissimulada porque no h pausa no relato para fazer descrio da moldura ou do contexto, antes o espao surge da prpria ao. Segundo Nei Dulcls (2004, Orelhas), essa caracterstica presente nos romances de Joo Gilberto Noll influncia do contexto da contemporaneidade em que no mais necessrio fazer longas e detalhadas descries do espao, como no Realismo, ou mergulhar na subjetividade, como os intimistas do Modernismo.

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    Portanto, o autor:

    No quer ser enquadrado como escritor intimista, mesmo reconhecendo suas preocupaes com a subjetividade. Essa deciso ditada pelo acervo literrio acumulado pelo tempo, j que reconhece ser impossvel, hoje, retroceder s longas peregrinaes dos heris balzaquianos ou flaubertianos do sculo 19. [...] Sua opo, portanto, reconhecer as limitaes da nossa poca e deixar-se seduzir pela instantaneidade. (DULCLS, 2004, Orelhas).

    Ao contrrio da ambientao dissimulada em Mrs. Dalloway, obra tributria das tpicas modernistas, em que o espao est integrado personagem Clarissa, em Hotel Atlntico, os espaos vo surgindo na medida em que o personagem caminha e descreve aquilo que v, contudo no h a mesma integrao e intimidade como em Virginia Woolf. Essa ausncia de intimidade est ligada ao fluxo de conscincia, recurso estrutural muito bem articulado na literatura inglesa e que no empregado por Joo Gilberto Noll. Sua personagem achatada, desprovida de subjetividade, no por ser a literatura contempornea inferior quela, mas porque o contexto de produo outro.

    Para Michail Bakhtin (1997, p. 370), a organicidade do romance, por ser um gnero ainda em construo, imprime em si as acepes de cada contexto: as representaes das linguagens so inseparveis das vises de mundo e seus portadores vivos, pessoas que pensam, falam e atuam em condies histricas e sociais concretas. Ou seja, a narrativa contempornea, ao contrrio do Realismo do sculo XIX, no pretende ordenar o caos urbano por meio de uma linguagem objetiva e descritiva, mas, pretende construir o efeito de caos, de palimpsesto, problematizando as fronteiras dos gneros, assim como a possibilidade da representao do urbano e do trnsito. Os espaos surgem de uma necessidade imediata da ao do personagem: o bar quando precisa comer ou a janela quando precisa acordar e reconhecer o lugar onde se est. Segundo Osman Lins (1976, p. 84), na ambientao dissimulada, os atos da personagem [...] vo fazendo surgir o que a cerca, como se o espao nascesse de seus prprios gestos. Alm de no fazer pausas no relato para emoldurar o contexto, o espao, no texto de Noll, no matizado pela subjetividade da personagem, pois essa emulada em toda narrativa, sendo, portanto, classificvel como ambientao dissimulada. Em ltima instncia, essa ambientao dissimulada serve para coadunar os signos da instabilidade no romance. O personagem no quer guardar na memria esse

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    espao, ento, por que emoldur-lo? So lugares fugidios e transitrios, sem significados profundos ou afetivos para o personagem, muito diferente do que ocorre com Clarissa Dalloway ao lembrar Bourton. A relao do homem com o lugar em Hotel Atlntico mais superficial e no demonstra nenhuma intimidade ou afetividade. O espao no tem a mesma representao que tem para Clarissa.

    Porm, quando o personagem-narrador chega ao hotel Atlntico, lugar que d nome ao romance, a descrio do espao se faz pela ambientao reflexa. Pela primeira vez em todo o relato, o espao revestido de alguma subjetividade. Embora sejam sutilmente inseridas no relato, h algumas pausas para descrio do ambiente:

    Encontramos um hotel. O hotel se chamava Atlntico. As letras descansavam na parede branca. Bem na frente do hotel havia um poste com luz. Em volta da luz se percebia uma nvoa muito fina. [...] Era um salo bem espaoso, com muitas mesas, cheio de vidraas para a rua. Todas as paredes descansavam. No fundo do salo havia uma abertura na parede, com a parte superior em arco , que dava para a cozinha. (NOLL, 2004, p. 104).

    Nesse trecho, pela primeira vez em todo romance, o narrador-personagem faz uma pausa no relato para descrever o ambiente, o qual matizado pela subjetividade. Diferentemente dos outros espaos visitados, o personagem parece sentir-se em casa nesse hotel. A palavra descansar utilizada para definir o ambiente por duas vezes no excerto supracitado: As letras descansavam e Todas as paredes descansavam. O descanso indica repouso. Alm disso, na sequncia da narrativa, o personagem afirma que se sente em casa nesse hotel.

    Eu tinha me sentado numa cadeira que havia ao lado de uma pequena mesa. Tirei o casaco, no que me sentisse acalorado, mas s pelo prazer de jogar o casaco sobre a cama onde eu ia dormir, como se estivesse em casa. E eu realmente me considerava em casa pela primeira vez, depois de tanto tempo. (NOLL, 1976, p. 106).

    A ambientao reflexa serve nesses momentos finais da narrativa para matizar o ambiente com a subjetividade do personagem. Esses momentos finais de sua vida demonstram certo afeto em relao ao hotel.

    De acordo com Osman Lins (1976, p. 66), a viagem na narrativa a alegoria do destino humano, assim como o labirinto. Nesse caso, a viagem empreendida pelo personagem de Hotel Atlntico o leva ao seu destino final: a morte, muitas vezes

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    prenunciadas ao longo do caminho, na entrada do hotel em Copacabana, no nibus do Rio para Florianpolis, entre outras.

    Alm disso, Osman Lins (1976) ainda discute as personagens com funo espacial, trazendo como modelo o conto Amor de Clarisse Lispector, cujo cego tem a funo de se constituir como uma apario que modifica o sentido da vida de Ana.

    Em Hotel Atlntico, todas as personagens que esbarram com o narrador-personagem esto ligadas aos signos da instabilidade, do transitrio e do efmero. Tanto a recepcionista do hotel de Copacabana quanto o enfermeiro de Arraiol ou a americana do nibus, como tambm as relaes sexuais do personagem, todas essas personagens e os relacionamentos esto interpenetrados nesses espaos, hotel, hospital e nibus, para conferir-lhes a condio do instvel, do mvel e do fugidio. Todos lugares so construdos por signos de passagem, de trnsito. Gaston Bachelard (1978, p. 202), em seu estudo sobre o espao, afirma que a casa o lugar do acolhimento, da intimidade, da totalidade do ser e da proteo: [...] a casa nos permite sonhar em paz. Em contraposio, est o lado de fora da casa: [...] posto na porta, fora do ser da casa, circunstncia em que se acumulam a hostilidade do universo. essa intimidade que no aparece em nenhum momento da narrativa de Noll, no hotel Atlntico ela sugerida, mas no vivenciada efetivamente pelo narrador- personagem, at porque ele morre na noite em que chega ao hotel.

    Diante disso, possvel afirmar que h, nessa obra, uma problematizao do homem com o lugar, porque esse se apresenta como inspito, inseguro, fazendo emergir dele indivduos desterritorializados3.

    Segundo Therezinha Barbieri (2003, p. 58), trata-se da representao de um homem sem lugar no mundo, sem cidadania: de um excludo do mundo do capital, do trabalho e da moda, podendo acrescentar nessa lista, o mundo da realizao afetiva.

    Em Hotel Atlntico, a condio de excludo no s geograficamente como tambm poltica e afetivamente, cria um sujeito que no carrega as marcas do lugar de onde saiu, tampouco se sabe para onde vai. Essa memria afetiva em relao ao passado

    3 O termo desterritorializao , inicialmente, definido pelos filsofos franceses Deleuze e Guattari, no

    texto Anti-dipo, mas, nesse projeto, ele assume o significado empregado por Flora Sssenkind, no texto Desterritorializao e forma literria, e em outros autores como Renato Cordeiro Gomes.

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    e ao lugar de origem, s razes inexistente assim como tambm no existem expectativas utpicas em relao ao lugar-destino ou ao futuro.

    Como exemplo de signo de errncia percebido no romance, pode-se afirmar que o personagem no leva nenhuma bagagem consigo, nenhum pertence que o fizesse lembrar-se de alguma casa, da famlia ou de qualquer outro vnculo com o passado. Quando conhece a americana, no nibus, ela lhe d uma jaqueta, mas essa abandonada na primeira oportunidade.

    Passei com folga entre dois arames da cerca. Rasguei a cala num galho rasteiro sem folhas. Depois tropecei alguma coisa, ca. O sol muito forte. Levantei com certa dificuldade. Tirei a jaqueta e a joguei no cho. Alem de me fazer suar ela me pesava demais. Abandonei-a sem que me desse a menor vontade de me virar e olh-la mais uma vez. (NOLL, 2004, p. 56).

    Em obras contemporneas, o que se observa que o espao urbano se configura como o lugar da instabilidade, constitudo pela fluidez e pelo mvel, em que se esmaecem as fronteiras cartogrficas e os vnculos de pertencimento. Nesse sentido, Michel de Certeau (1994, p. 183) afirma que: Caminhar ter falta de lugar. o processo indefinido de estar ausente e procura de um prprio. A errncia, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experincia social da privao de lugar [...]. Se habitar significa compartilhar, pertencer e enraizar, quele que caminha o habitar se torna impossvel.

    O indivduo que, sem cidadania, no consegue participar efetivamente das particularidades afetivas, sociais, culturais e polticas produzidas e compartilhadas em determinada localidade expulso e impulsionado ao trnsito.

    No romance de Noll, o narrador personagem um errante, no busca lugar algum, portanto, no est em busca de um lugar melhor. Alheio a tudo e a todos, desprovido de autoconscincia e de reflexo aprofundada sobre o prprio drama, o ex-ator viaja a deriva. Viagem que vai, paulatinamente, se tornando invivel: amputao da perna, cadeira de rodas e muletas, obrigando-o a imobilidade e interrompendo no s a viagem, mas a prpria vida.

    O lugar da impossibilidade, produto de um tempo disfrico e distpico, a cidade na literatura contempornea, que cria um sujeito desterritorializado e sem esperana de reterritorializao.

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    Desterritorializado o sujeito que no possui intimidade, enraizamento e compartilhamento com as particularidades culturais, sociais, afetivas e polticas engendradas em uma determinada localidade. A viso da cidade flaneurie de Baudelaire no encontra terreno na literatura brasileira contempornea.

    Segundo Rejane Cristina Rocha (2009, p.152):

    Mesmo catica e fragmentria, a imagem da cidade que emerge da obra de Baudelaire repleta de significados relacionados a um porvir pelo qual se ansiava, a expectativas de um futuro em que a modernizao se cumpriria. Caos e fragmentao urbana, hoje, no surgem mais, na literatura, como signos do ponto de partida de um desenvolvimento scio-cultural que se inicia, por isso incompleto e falho, mas como eplogo melanclico do que restou do sonho.

    A reterritorializao seria uma forma de assumir as particularidades de um novo lugar, criando uma relao afetiva, de enraizamento e intimidade com a nova localidade. Porm, isso no ocorre em nenhum momento do romance. Na acepo de Marc Aug (1994), na cidade, h uma confluncia de no-lugares, expressos por vias, hotis, praas, hospitais, rodovirias, ruas e outros espaos de passagem, de trnsito. nessa situao que se encontra o narrador-personagem de Hotel Atlntico, no estabelece relaes de intimidade, compartilhamento com nenhum dos lugares por onde transita. Ainda de acordo com o ponto de vista antropolgico de Marc Aug (1994, p. 73), a intimidade estabelecida entre homem e lugar no acontece apenas no mbito da geografia, relacionado a limites e fronteiras, sobretudo se realiza na convivncia e na interao social:

    [...] se um lugar pode ser definido como identitrio, relacional e histrico, um espao que no pode ser assim caracterizado ser definido como um no-lugar. A supermodernidade produtora de no-lugares, isto , de espaos que no so em si lugares antropolgicos e que, contrariamente modernidade baudelairiana, no integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados, promovidos a 'lugares de memria', ocupam a um lugar circunscrito e especfico"( AUG, 1994: 73).

    Essa relao problemtica entre homem e lugar, desdobrada na narrativa de Noll na temtica do trnsito, na ambientao dissimulada, na personagem achatada e no narrador em primeira pessoa, faz da metrpole um lugar inspito e inabitvel, criando um homem sem lugar no mundo e localizando-o num entre-lugar ou num no-lugar. Isso desestabiliza as tpicas modernas.

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    Se a Modernidade concebe o futuro e a metrpole por signos utpicos, h, nesse romance um questionamento das concepes modernas ao inserir um personagem sem lugar na metrpole e mesmo no interior, um eu sem esperana de que o futuro ser melhor.

    Roberto Schwarz (2000), no ensaio As idias fora do lugar, discute a gnese do processo de Modernidade que se constituiu no Brasil no sculo XIX e identifica como dilema da sociedade brasileira a condio de pas escravocrata e os preceitos burgueses liberais da Europa, inviabilizando a efetivao das promessas modernas no interior da estrutura scio-poltica colonial.

    Essa impropriedade entre forma de vida estrangeira e instituies patriarcais em vigor na Colnia cria na sociedade brasileira aquilo que Beatriz Sarlo (2010) chamou de cultura mesclada ou modernidade perifrica para a sociedade argentina. A obra contempornea analisada, portanto, demarca uma problematizao que percebe a tenso entre o homem e os espaos rural e urbano. Da mesma forma, insere na economia do texto ficcional a desarticulao do projeto de Modernidade que se instaurou no Brasil desde a colonizao e que se desdobrou em globalizao, mas que no cumpriu as promessas de progresso e cidadania prometidas.

    Consideraes finais

    Como, ento, narrar histrias to fragmentadas e fugidias? Que procedimentos narrativos seriam necessrios para dar conta da complexidade de tais histrias? Segundo Anatol Rosenfeld (1979, p. 95).

    A tcnica simultnea joga com grandes espaos e coletivos. Elimina, quase sempre, o centro pessoal ou a enfocao coerente e sucessiva de uma personagem central. Os indivduos quase totalmente desindividualizados so lanados no turbilho de uma montagem catica de monlogos interiores, notcias de jornal, estatsticas, cartazes de propaganda, informaes polticas e meteorolgicas, itinerrios de bonde montagem que reproduz, maneira de rapidssimos cortes cinematogrficos, o redemoinho da vida metropolitana.

    Em Hotel Atlntico e em obras literrias contemporneas, o que se observa que o espao urbano se configura como o lugar da instabilidade, constitudo pela fluidez e

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    pelo mvel, em que se esmaecem as fronteiras cartogrficas e os vnculos de pertencimento.

    Segundo Michel de Certeau (1994) o discurso que constri o mais imensurvel dos textos humanos, a cidade, no pode ser sistemtico ou ordenado.

    Ainda de acordo com Anatol Rosenfeld (1969) a viso perspectvica imposta pelo Renascimento desaparece. De modo geral no romance moderno ou contemporneo o sujeito no pode mais ser demiurgo e tampouco consegue assumir uma viso ulterior diante dos fatos que narra.

    A posio que ocupa de mero espectador, to distante do indivduo ntegro de Descartes, representado na literatura do sculo XIX: [...] o indivduo j no tem a f renascentista na posio privilegiada da conscincia em face do mundo e no acredita mais na possibilidade de, a partir dela, poder constituir uma realidade que no seja falsa ou ilusionista. (ROSENFELD, 1969, p. 88).

    Na materialidade do texto ficcional, essa viso aperpectvica do indivduo moderno se desdobra na fragmentao do enredo, no desprezo pela oniscincia narrativa e pela estrutura tradicional descritiva do espao, na insero da elipse, do dizer escamoteado, que, por outro lado, podem estar vinculados rarefao dos sentidos, promovidos pelo bombardeio de imagens eletrnicas, dando a impresso de dj-vu, em que tudo j foi dito, narrado ou visto em alguma imagem da televiso ou do computador.

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