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O REINO E O

SACERDÓCIO

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Chanceler:

Dom Altamiro Rossato

Reitor:

Ir. Noberto Francisco Rauch

Conselho Editorial: Antoninho Muza Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi

Délcia Enricone

Jayme Paviani Jorge Alberto Franzoni

Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva

Regina Zilberman

Telmo Berthold Urbano Zilles (presidente)

Diretor da EDIPUCRS:

Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS

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Caixa Postal 1429 90.619-900 — Porto Alegre

Tel.: (051)339-1511 R.: 3323

Fax: (051) 339-1564

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José Antônio de C. R. de Souza (organizador)

LUIS ALBERTO DE BONI

(responsável pela presente edição)

O REINO E O

SACERDÓCIO

O pensamento político na Alta Idade Média

Coleção:

FILOSOFIA-33

Porto Alegre

1995

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© Copyright dos Autores

1ª edição: 1995

Editoração:

Suliani — Editografia Ltda

Capa:

José Fernando Fagundes de Azevedo

Impressão e acabamento: Gráfica Evangraf

Diagramação da versão digital:

Paolla Monticelli

FICHA CATALOGRÁFICA

R373 O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta Idade Média / org.

José Antônio de C. R. de Souza. — Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

234 p. — (Coleção Filosofia; 33)

1. Filosofia Medieval 2. Igreja e Estado 3. Política — Filosofia

4. Idade Média — História I. Souza, José Antônio de C. R. de II.

Título III. Série.

C.D.D 189

261.7

320.01

909.07

Elaboração do Setor de Processamento Técnico — BCPUCRS

Coleção

Filosofia —33

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SUMÁRIO

Introdução / 6 Luis A. De Boni

1 - A Igreja nascente em face do Estado Romano / 8 Daniel Valle Ribeiro

2 - A Civitas Política de Agostinho - Uma leitura a partir do Epistolário e do A

Cidade de Deus / 20

Francisco Manfredo Tomás Ramos

3 – Leão I: a Cátedra de Pedro e o primado de Roma / 39

Daniel Valle Ribeiro

4 - O pensamento gelasiano a respeito das relações entre a Igreja e o Império

Roamano-Cristão / 53

José Antonio de C. R. de Souza

5 – Sacralização do poder temporal: Gregório Magno e Isidoro de Sevilha / 78 Daniel Valle Ribeiro

6 – El pensamiento político papal em la Donatio Constantini – Aspectos históricos, políticos y filosoficos / 97

Francisco Bertelloni

7 - O dever da fidelidade no Manual de Dhuoda / 117

Ruy Nunes

8 – As raízes da hierocracia no De Institutione Regia de Jonas de Orleans / 131

José Antônio de C. R. de Souza

9 – Hincmar, Arcebispo de Reims, e os dois poderes / 156

Nachman Falbel

10 - A teocracia imperial no fim da Alta Idade Média / 184 José Antônio de C. R. de Souza

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INTRODUÇÃO

Falando de forma simplificada, e sem querer entrar em problemas de delimitação histórica, para o mundo ocidental a Alta Idade Média é um período que se estende desde o século V, quando da queda de Roma, até o século XII. No

que tange ao pensamento político, trata-se de uma época das menos estudadas. A muitos talvez pareça que nela quase nada existe digno de menção, além do nome de Aurélio Agostinho, que, aliás, ainda pertence propriamente ao período anterior. Um olhar mais detido haverá, porém, de constatar alguns fenômenos importantes e singulares.

O Cristianismo surgiu no império romano, o estado tecnicamente mais bem organizado da Antiguidade, dispondo de corpo jurídico só igualado pelos estados

modernos, que nele se inspiraram. Entretanto, alguns séculos depois, sobre as ruínas daquela instituição, desabrochou a Cristandade: em vez de uma monarquia, com o poder ciosamente centrado na figura de César, ergue-se um mundo estranho, sobredeterminado pela religião, dentro do qual o bispo de Roma reivindica a soberania. Nesta mudança há dois aspectos fundamentais a serem considerados.

Em primeiro lugar, observe-se, o arcabouço teórico pagão, transformado, continuou determinando o pensamento cristão. A noção de unidade do poder estava latente nas grandes disputas entre o papa e a autoridade leiga, e mesmo nas

querelas entre o sumo pontífice e os patriarcas orientais: às noções jurídicas herdadas do império, somavam-se as convicções teológicas, afirmando ser vontade divina que houvesse uma só e tão somente uma autoridade suprema sobre a terra. Para os clérigos, tal autoridade deveria ter um cunho primeiramente religioso. Parecia lógico, então, que, ao colocar-se o problema a nível interno, houvesse a pergunta a respeito de quem dispunha da autoridade suprema dentro da Igreja. No Oriente, defendeu-se mais urna federação de igrejas, atribuindo-se igual dignidade

a todos os patriarcados. Já no Ocidente há, desde o início uma supremacia da sé romana e aos poucos, e nem sempre sem dissonâncias, o papa tornou-se o líder eclesiástico inconteste.

Algo diferente acontecia no confronto entre a autoridade religiosa e a leiga. Enquanto o basileos bizantino exerceu poder quase inquestionado sobre a igreja grega, o bispo romano e o imperador ocidental, ao interpretarem a relação entre ambos os poderes, mostraram que no Ocidente o césaro-papismo defrontava-se

com forte corrente hierocrática. Na esteira da tradição romana, Carlos Magno e

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Otão I, por exemplo, consideraram o papa como o mais alto funcionário religioso do próprio império, e nunca titubearam em intervir e legislar também em assuntos eclesiásticos; em contrapartida, na corte pontifícia (baste recordar para tanto Gregório VII), argumentava-se que tal como o espírito é superior ao corpo,

assim também o poder espiritual é superior ao temporal, cabendo ao papa o posto supremo na condução da Cristandade. Quando estas duas doutrinas se defrontaram em momentos cruciais, tanto aconteceu de o imperador depor o papa, como de o papa depor o imperador, pesando em cada instante, acima de tudo, o argumento do mais forte.

No entanto, e com isto chegamos ao segundo aspecto, algo de novo e inesperado brotou destes debates que, talvez, parecem conservar apenas um caráter arqueológico. Neles o Cristianismo acabou descobrindo sua originalidade ante o

político: pela primeira vez na História, a religião reivindicou para si um espaço não coincidente com aquele reservado ao Estado. ―Dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus‖ implica em conceber uma forma de poder que rompe com a concepção imperial romana. Quando os cristãos eram levados ao martírio, dizendo que César não era senhor, que havia um só Kyrios, Jesus Cristo, estavam abrindo caminho para os séculos futuros: há um senhorio inconteste de César, mas há um senhorio superior de Cristo - os dois não se confundem, os dois não disputam o

mesmo espaço, o cristão professa uma dupla e distinta fidelidade a eles. Talvez a Alta Idade Média não tenha percebido a distinção entre estes poderes; percebeu, contudo, que nem sempre eles andam juntos.

Os textos do presente volume constituem uma análise tópica daquele mundo diferente, que não pode ser lido com as categorias de nossa época, se o quisermos compreender em sua originalidade.

Porto Alegre, 29 de maio de 1995.

Luis A. De Boni

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A IGREJA NASCENTE EM FACE DO ESTADO ROMANO

DANIEL VALLE RIBEIRO Universidade Federal de Minas Gerais

O estudo das relações entre a Igreja e o Estado na Idade Média alcança um

longo período. Estende-se do século V ao século XV. Torna-se necessária uma análise preliminar da situação do cristianismo em Roma — primeiro como religião perseguida, depois favorecida e mais tarde como religião oficial do Império Romano. A conversão de Constantino exerceu considerável influência nos

progressos da nova doutrina. As concessões e favores conduziram à institucionalização da Igreja e influíram na conduta desta na Idade Média.

A IGREJA E O ESTADO ROMANO

É do conhecimento comum que as relações entre a Igreja e o Estado foram, ao

longo de três séculos, marcadas por lutas freqüentes e violentas. Sem o amparo do estatuto legal da religio licita, o cristianismo tornou-se proscrito pelo Estado Romano, intransigente na defesa do culto do imperador. De sua parte, embora considere o Estado como expressão da vontade divina, a Igreja mantém-se irredutível na defesa de sua fé e de sua liberdade.

A exegese católica repousa na pregação de são Paulo. Na famosa Carta aos Romanos,1 diz o Apóstolo: ―Sejam todos submissos às autoridades superiores porque não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram

instituídas por ele. Aquele que resiste à autoridade, rebela-se contra a ordem estabelecida por Deus e atrai para si a própria condenação. Com efeito, os magistrados não existem para serem temidos quando se pratica o bem, mas quando se faz o mal‖.

1 Rom 13, 1-7.

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Note-se que são Paulo recomenda o respeito não apenas aos chefes da Igreja, mas a todos os que exercem o poder e, por conseguinte, mesmo à instituição que encarna a mais alta magistratura — o Império pagão.2

―Não desejas temer a autoridade?‖ —prossegue são Paulo —. ―Faze o bem e

receberás aprovação; porque o príncipe é um instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Porém, se fazes o mal, teme; porque não é em vão que ele porta a espada, sendo o ministro de Deus, para fazer justiça e castigar os que praticam o mal. É necessário ser submisso, não somente por medo do castigo, mas por dever de consciência. Por essa razão, paga os impostos porque os magistrados são ministros de Deus que o servem no exercício de sua função. Dá, então, a cada um o que lhe é devido: o imposto, a quem deveres o imposto; o tributo, a quem deveres o tributo; o respeito, a quem deveres o respeito; a homenagem, a quem

deveres a homenagem‖ 3 Não é outro o ensinamento de são Pedro. Na sua primeira epístola, proclama a

submissão de todos ao poder humano porque ele vem de Deus. Afirma que a autoridade do soberano impõe-se ao respeito e à obediência porque ele é o delegado de Deus para promover o bem e impedir o mal.4 Para Arquillière, estamos diante de uma ―conception ministérielle du pouvoir séculier. L‘autorité Du Prince s‘impose au respecte et à obéissance parce qu‘elle est l‘instrument de

Dieu pour promouvoir Le bien et réfréner Le mal‖.5 Depara-se-nos, aí, um fundamento providencialista do poder, isto é, de que o poder decorre da ação da providência divina. Em suma, os princípios políticos do cristianismo apostólico, assim expressos e definidos, afirmam a separação absoluta entre a Igreja e o Estado, a submissão dos fiéis à autoridade constituída e a participação do Estado na obra da Providência.

A LITERATURA PATRÍSTICA

A literatura patrística reflete a doutrina paulina. Embora as questões pertinentes ao dogma constituíssem a preocupação dominante, aos Padres da Igreja não escapavam as implicações da vida política. Os textos elaborados ao longo do período que se estende até a paz de Constantino podem orientar-nos sobre as

relações da Igreja com o Império. Problemas de justiça, ordem social e paz,

2 ARQUILLIÈRE, Henri-Xavier. L‘augustinisme politique. Essai sur La formation des théories politiques du Moyen Age. 2. ed. Paris: J. Vrin, 1956. p. 91. 3 Rom 13, 3-7. São Paulo retoma várias vezes esse ensinamento. Na Epístola a Tito, por

exemplo, ele recomenda que se lembre aos fiéis ―o dever de serem submissos aos magistrados e

às autoridades‖. Tt 3, 1-7. 4 1Pd 2, 13-17. 5 ARQUILLIÈRE. L‘augustinisme politique. cit. p. 93.

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inerentes ao direito natural do Estado, acabarão absorvidos pelo cristianismo. Os ensinamentos desses textos irão instruir a conduta da Igreja nas suas relações com o poder secular. Posto que esquematicamente, examinemos o pensamento de alguns desses autores da tradição patrística.

Santo Irineu (130-202), bispo de Lyon, que conheceu de perto a perseguição de Marco Aurélio, aborda o problema das relações com o Estado.6 Apoiado na passagem da Epístola aos Romanos (13, 1-7) relativa aos poderes estabelecidos, afirma que Deus não pedirá contas aos reis do que estes tenham realizado de justo e conforme a lei. Mas, tudo o que tiverem tentado contra a lei, poderá tornar-se causa de sua condenação. A eles deverão os homens submeter-se resignadamente, pois alguns lhes são dados para o seu bem, outros para o seu castigo, segundo seu merecimento. A Deus caberá julgá-los.7

Teófilo de Antioquia trata de outro problema capital das relações do cristianismo primitivo com o Império: o culto do imperador. Diz ele: ―Eu honro o imperador, mas não o adoro: rezo por ele. Adoro o autêntico e verdadeiro Deus vivo, aquele a quem o imperador deve sua existência. Tu me dirás: Por que não adoras o imperador? Porque não foi feito para ser adorado, mas para ser cercado de legítimo respeito. Porque não é um Deus, é um homem a quem Deus confiou um cargo, não para ser adorado mas para julgar segundo a justiça. O título de

imperador lhe pertence e não é permitido a outro usá-lo. Da mesma maneira, não é permitido adorar senão ao único Deus. (...) Honra, pois, ao imperador, amando-o, obedecendo a ele e rezando por ele. Assim fazendo, observarás a vontade de Deus, porque este é o preceito divino: ―Honra, meu filho, a Deus e ao soberano, e não lhes sejas rebelde; porque eles punirão logo seus inimigos‖.8 Teófilo guarda, como se vê, absoluta fidelidade ao pensamento paulino.

Tertuliano (155-220) é o mais notável teólogo latino até o aparecimento de

santo Agostinho. De formação jurídica e temperamento polêmico, escreve dois tratados em defesa dos cristãos e da Igreja contra as acusações da sociedade pagã — Ad nationes e Apologeticum. Sustenta que o imperador é César porque foi estabelecido por Deus. É sobretudo interessante seu comentário acerca dos limites do poder imperial. Assegura no Apologeticum, aparecido em 197: ―Quanto a nós, para a salvação dos imperadores, invocamos o Deus eterno, o Deus verdadeiro, o Deus vivo, de quem os próprios imperadores preferem a benevolência mais que a [benevolência] das outras divindades: sentem que Ele é o único Deus, e que eles

[imperadores] estão colocados sob seu poder, em segundo plano, após o que são os

6 Adversus haereses, 5, 24. Esta é a principal obra de Santo Irineu. Compreende cinco livros, tendo

sido os três primeiros escritos entre 180 e 189. Os últimos são de data incerta. 7 Adversus haereses, 5, 24. A documentação encontra-se em ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 95-6. 8 Ad Autolycum 1, 11. Sources Chrétiennes 20, 1948. p. 83-5. Nascido na Síria, Teófilo foi bispo de

Antioquia em 169. Morreu provavelmente em 182 ou 183.

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primeiros, antes e acima de todos os deuses (...) Nós pedimos sempre por todos os imperadores para que tenham uma vida longa, um reinado tranqüilo, um lar seguro, exércitos corajosos, um senado fiel, um povo honesto‖.9 Tertuliano indica as razões dessa atitude: o dever de orar por nossos inimigos; a necessidade de rezar pelo

Império, em virtude da iminência do fim do mundo; por por fim, para que se veja no imperador o eleito de Deus. Os cristãos sentem-se mais estreitamente ligados a ele que os outros súditos: ―Ele é, antes de tudo, nosso César porque foi estabelecido por nosso Deus‖.10 Tertuliano volta ao tema no seu Ad Scapulam (212), ao reafirmar: ―O cristão não é inimigo de ninguém, nem mesmo do imperador. Sabe que ele foi instituído pelo seu Deus e que deve amá-lo e respeitá-lo (...) Deseja sua salvação como a de todo o Império, enquanto o século subsistir. Nós honramos, pois, o imperador como homem que vem logo após Deus e a quem

deve tudo o que é (...) Ele é maior que todos, somente inferior ao verdadeiro Deus‖.11 Registre-se, finalmente, sua conhecida condenação da lei injusta: ―Legis injustae honor nullus‖.12

A segunda metade do século IV assinala o começo da idade de ouro da literatura patrística. É a época de Atanásio de Alexandria, João Crisóstomo, Agostinho de Hipona, Ambrósio de Milão, para citar alguns. A efervescência religiosa favorece a expansão da vida espiritual e permite que a Igreja se organize.

A liturgia ganha magnificência. As indagações de natureza especulativa propiciam o surgimento de controvérsias sobre questões fundamentais do dogma. E também a época em que as relações de poder entre a Igreja e o Estado se revestem de uma significação especial.

A santo Ambrósio (333-397), de quem falaremos adiante, coube tentar estabelecer, no século IV, as atribuições respectivas dos poderes religioso e leigo. De sólida formação jurídica e conselheiro dos imperadores Graciano e Teodósio, o

bispo de Milão é animado de forte sentimento de independência da autoridade eclesiástica, vale dizer, da preeminência da Igreja. Assevera que o imperador é um cristão revestido de púrpura; está sujeito à lei moral como todos os fiéis.13

São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla (398-404), professa, igualmente, a superioridade do poder espiritual. Para ele, as leis divinas impõem-se aos que detêm o poder. Sustenta na sua Homilia 4: ―Ao rei são confiados os corpos; ao sacerdote, as almas. O rei perdoa as dívidas, o sacerdote perdoa os pecados. Aquele, pelo constrangimento; este, pela exortação. O rei dispõe de armas

visíveis; o sacerdote, de armas espirituais. Aquele faz guerra aos bárbaros, este luta

9 Apologelicum 30, col. 441-443, PL 1,502-04. Tradução de ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 99. 10 Apologeticum 32, co). 447. PL 1, 508 ss. 11 AdScapulam 2, col. 700. PL 1,778. 12 Ad nationes 1,6. Col. 566. PL 1,636. 13 PALANQUE, Jean-Rémy. Saint Ambroise et l‘Empire romain. Paris: De Boccard, 1933. p. 355.

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contra os demônios (...) Eis por que o rei curva a testa sob as mãos do sacerdote, e em todo o Antigo Testamento os sacerdotes ungiam os reis (...) Eu digo isso não porque queira difamar os reis, mas para os que exaltam a presunção e a cólera, a fim de que saibas que o sacerdócio é maior do que a realeza‖.14

Na tradição patrística, portanto, os súditos devem obedecer à lei civil, submeter-se à justiça secular. Entretanto, a obediência ao Estado conhece limites. Sujeita-se a uma hierarquia de ordens e de leis. A lei de Deus sobrepõe-se à lei humana. Nada se deve fazer contra a primeira, sob o pretexto de obediência à segunda. Em conseqüência, a resistência à lei má ou injusta é legítima. Como assinala Gaudemet, ―elle se borne à une attitude de résistance passive, au refus de faire Le mal, qui exposera peut-être au martyr. Elle NE saurait autoriser l‘insurrection‖.15

Existe, pois, um equilíbrio instável entre a aceitação e a recusa ao Estado pelos cristãos. Como explicar, então, essa progressiva rejeição ao poder romano? Esse sentimento de recusa origina-se nas perseguições sistemáticas e na insegurança jurídica em que vivia a comunidade cristã. H. Rahner salienta, com razão, que esse sentimento de oposição ao Estado tem raízes mais profundas: baseia-se na própria Revelação divina, contida no Antigo Testamento, de que a espécie humana é chamada a participar do futuro reino do Messias, único rei, onde reinarão a paz e a

justiça. Instruído pela Revelação, o homem não poderia aceitar o Estado despótico porque Estado e política são considerados, dentro dessa óptica, coisas secundárias e efêmeras. A oposição aos grandes Impérios do Oriente já aparece, aliás, no livro de Daniel e na epopéia dos Macabeus. De fato, a Igreja nascente nutre simpatia pelos jovens executados na fogueira, por Daniel e pelos irmãos Macabeus e os torna como modelo na sua luta contra o despotismo religioso.16

Por último, deve ser lembrado que a desobediência ao Estado decorre da

própria concepção religiosa de Roma. Herdada de velhos princípios italiotas e helenísticos, atribuía ao imperador, representante do Estado, qualidades, privilégios e poderes comumente conferidos ao sacerdote. Dito de outra maneira: o poder romano outorgava função pública à religião. Com efeito, Augusto e seus sucessores assumiram o principado e a dignidade de Pontifex Maximus, isto é, eram os primeiros da res publica e sumos sacerdotes da religião do Estado. Tal acontecimento é assim visto por um especialista das relações entre Igreja e Estado: ―L‘empereur, prêtre supreme: ce fait constituait um problème pour lês chrétiens.

Certes, on constate que, au cours de l‘histoire, lês prérogatives religieuses se réduisent jusqu‘à n‘être plus qu‘um simple titre: mais depuis l‘origine jusqu‘aux

14 Homélies 4, 5. Sources Chrétiennes 277, 1981. p. 165-71. 15 GAUDEMET, Jean. L‘Eglise dans l‘Empire romain. Paris: Sirey, 1958. p. 496. 16 RAHNER, Hugo. L‘Église et l‘État dans le christianisme primitive. Paris: Éd. du Cerf,

1964. p. 30-1.

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derniers siècles de l‘Empire, on trouve une pensée qui accordait à l‘Etat Le droit de régler absolument à as guise La vie religieuse de sés sujects, et une telle pensée NE pouvait que se heurter à um ‗non‘ catégorique chez lês chrétiens‖.17

Reside aí, com efeito, a raison d‘être da oposição cristã ao Estado. Fiel à sua

doutrina, a jovem Igreja coloca-se contra o poder constituído. Nutre sentimento de hostilidade à instituição imperial. Fica ao lado dos humildes. Prefere a companhia dos que lutam contra o despotismo.

A VITÓRIA DE CONSTANTINO E AS RELAÇÕES DE PODER

A adesão de Constantino abre novas perspectivas ao cristianismo. O chamado Edito de Milão (313) coloca a religião nascente em condições de igualdade com as demais. Dominado por exaltação mística e razões de Estado, o novo senhor do Império estava seguro do caminho a seguir: edificar a unidade com o concurso da Igreja. Após a vitória parece ter crescido nele a consciência de sua própria missão. Acredita-se mesmo um enviado do Senhor. Ao esboçar seu programa de governo, afirma: ―Deus me quis a seu serviço e me julgou apto a executar seus desígnios‖ 18. Constantino está convencido de que seu imperium vem de Deus. Em decorrência, a

Igreja é importante para a execução de sua política imperial. O príncipe vê nela um instrumento admirável e uma ―religião de Estado‖ para sustentar seu governo, razão por que devia sujeitá-la.19

As relações de poder entre a Igreja e o Estado não parecem conduzir, durante algum tempo, a uma ruptura do equilíbrio. Como cristão, devia o imperador submeter-se às prescrições eclesiásticas e conduzir a política de acordo com a moral cristã. Entretanto, os poderes exorbitantes do soberano acabaram por

estender-se sobre toda a Igreja e esta não pôde preservar sua jurisdição sobre matéria religiosa. Na verdade, o imperador torna-se ―o primeiro senhor da Igreja‖, regendo-a com absoluta falta de escrúpulo. Antes reprimido, o cristianismo é agora a religião mais favorecida. A Igreja beneficia-se de múltiplas concessões — terras, templos, funções públicas. Mas tem um preço a pagar: sua liberdade. Essa interpenetração progressiva entre os poderes eclesiástico e leigo será um dos traços marcantes até o fim do século V.

17 Idem, ibidem. p. 33. 18 EUSÉBIO. Vita Const 2, 28. 19 Cf. PACAUT, Marcel. La théocratie. L‘Église et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989. p.

14-7. Cf. ALFÔLDI, Andrew. The Conversion of Constantine and pagan Rome. Oxford: Claredon

Press, 1948. p. 36 ss. Cf. BAUS, Karl & EWIG, Eugen. Storia della Chiesa. L‘Epoca dei Concili. Milano: Jaca Book, 1977. v. 2. p. 4 ss. Cf. ainda MAZZARINO, Santo. La fin Du monde antique.

Paris: Gallimard, 1973. p. 111-19.

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Com Teodósio, que reinou no final do século IV (379-395), o cristianismo converte-se em religião oficial. E imposto a todos os súditos, enquanto as outras doutrinas sofrem discriminação. A Igreja institucionaliza-se e, em decorrência, configura-se uma hierarquia eclesiástica a que se reconhece

competência administrativa e jurisdicional: estabelece-se estatuto privilegiado aos clérigos, que passam a gozar de favores fiscais, e a dispor de patrimônio resultante de doações e liberalidades. Essa interpenetração entre as duas sociedades, sem duvida materialmente favorável à Igreja, é também a mais nociva ao seu ministério espiritual.

O apego do clero romano ao bem-estar é lastimado por Amiano Marcelino (AM 27, 3,14). Também são Jerônimo estigmatiza com energia os estranhos abusos que a prosperidade crescente da Igreja Romana introduzia em seu seio, nota

Duchesne.20 Tornando-se cristão, Teodósio desejou converter também o Império, e não somente converter, mas fazer da nova religião o que não pudera fazer com a antiga – uma instituição universal e oficial, uma religião de Estado.21

No século IV erguem-se numerosas e magníficas igrejas graças ás doações imperiais e, segundo o novo modelo imperial, a basílica, edifício muito semelhante à ―sala de audiência‖ do imperador. Na verdade, porem, a Igreja do século IV é uma Igreja rica e marginal em relação ao saeculum.22 Teoricamente, o imperador

não determina as formulas de fé – é assunto dos bispos. Também não se atribui o direito de depor um bispo – competência da igreja. Na prática, contudo, o cristianismo ―converte-se na religião do imperador, não somente no sentido de que era professada, mas também dirigida por ele‖ (L. Duchesne).

A tutela imperial torna-se sufocante. Fraco ainda, o papado pouco pode fazer diante da onipotência do estado Romano. A igreja conta, certamente, com homens de valor, alguns até de expressão política. Mas faltam-lhe organização centralizada,

aparelhagem administrativa, quadros e meios para aspirar à teocracia, ou mesmo com ela sonhar. Contudo, Roma toma a palavra. A partir do século IV é o bispo de Roma quem lidera a luta pela liberdade. Saliente-se que a crescente perda de autoridade dos imperadores do ocidente impediu qualquer pretensão ao cesaropapismo. No oriente, os imperadores arianos, com o apoio freqüente de bispos de Constantinopla, prepararam o cesaropapismo bizantino.

Diante da ameaça, elabora-se doutrina contrária à intervenção imperial nos negócios da Igreja. Os bispos opõem-se ao imperador ariano Constâncio II, que

nos concílios ―fazia de sua vontade a lei da Igreja‖, que perseguiu Atanásio de

20 DUCHESNE, Louis. Histoire ancienne de l‘Église. 3 ed. Paris: Albert Fontemoing, 1907.

v. 2. p. 459. 21 Idem, ibidem. P. 656. 22 BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: ÁRIES, Philippe & DUBY, Georges, org. História da vida

privada. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1990. v. 1. p. 265.

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Alexandria e mandou para o exílio outros bispos. As variações da política imperial no tocante às relações com a Igreja favoreceram modificações na conduta dos homens do clero. Assim, quando o arianismo pareceu superado, a doutrina eclesiástica adotou o princípio da colaboração estreita. Mas quando a

crise oriental se agravou, no final do século V, voltou-se a insistir na separação e distinção dos ofícios.

DOUTRINAS DE NÃO-INTERVENÇÃO NO SÉCULO IV

Essas doutrinas elaboram-se especialmente durante o reinado de Constâncio II.

Ossius de Córdoba

O Concílio de Sárdica (343), reunido para discutir a ingerência do poder temporal nos assuntos internos da Igreja, exprime um prelúdio dessas doutrinas. A carta que os bispos dirigem a Constâncio é formulação clara do princípio de não-

intervenção do poder imperial na esfera religiosa. Mas foi sobretudo Ossius que, pressionado a subscrever a sentença de

condenação de Atanásio, dirigiu ao imperador famosa carta (356) em que expressa a doutrina eclesiástica da não-intervenção. Esse documento constitui a primeira manifestação oficial a respeito das relações entre os dois poderes.23 O bispo assevera a submissão do príncipe cristão à Igreja e preconiza a separação de atribuições: ―Não te intrometas nos negócios da Igreja e não nos dês ordens a esse respeito. Mas aprende conosco. Deus te colocou nas mãos o Império e a nós

confiou os negócios da Igreja‖.24 A mesma doutrina encontra-se em outros bispos, desterrados porque se

recusaram a subscrever a condenação de Atanásio. Assim, Lúcifer de Cagliari compõe no exílio (354-61) obras violentas contra o soberano. Não teme enviar a Constâncio a manifestação de sua intransigente independência: (...) ―Prova [então] que foste designado nosso juiz, prova que foste feito imperador para que, pela força das armas, nos obrigues a executar todas as vontades do teu

amigo, o diabo (...) Como podes pretender julgar os bispos, quando não lhes obedeces; já estás condenado à morte, perante Deus! Nessas condições, como tu, que és profano, podes assumir tal autoridade sobre os amigos de Deus, sobre os sacerdotes de Deus?‖.25

23 GAUDEMET. L‘Église dans l‘Empire romain. cit. p. 498. 24 Citado por GAUDEMET. Op. cit. p. 499. 25 Escrita provavelmente em 357 ou 358. Pro Sancto Alhanasio 1. PL 13, 823. A carta está em

ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 104 e GAUDEMET. Op. cit. p. 499.

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Outro que se ergueu contra o imperador Constâncio foi Hilário de Poitiers. Exilado na Frígia (356), no Oriente grego, o bispo redige numerosos panfletos nos quais denuncia os perigos da intervenção imperial na esfera religiosa. Sua obra Contra o imperador Constâncio é grito vigoroso na defesa da liberdade da

Igreja. Embora firme, Hilário mostra-se menos violento que seu contemporâneo Lúcifer de Cagliari.

Santo Ambrósio

Ardente defensor da independência da Igreja, como se afirmou, santo

Ambrósio não se contenta apenas em sustentar a liberdade do poder espiritual: solicita a ajuda do Estado. Para assegurar a autonomia da Igreja, a doutrina ambrosiana26 separa a religião da res publica, ou seja, o temporal do espiritual. Conseqüentemente, a fé não depende senão da Igreja, e o imperador, sendo cristão, a ela está submisso. Em matéria religiosa, o soberano deve seguir as instruções da Igreja. Por outro lado, deve ajudá-la a buscar o bem comum.

A questão essencial das relações entre a Igreja e o Estado estará sempre colocada: como estabelecer os limites entre um e outro poder? Ambrósio de Milão

busca o caminho ao recomendar ao próprio Teodósio — ―Imperator enim intra Ecclesiam, non supra Ecclesiam est‖ (―o imperador está na Igreja, não acima da Igreja‖).27 Em outros termos: reconhece os direitos do príncipe, mas afirma que, em sua qualidade de cristão, está submetido a Deus. Deve por isso respeitar o direito, os bens e a honra de seus súditos. Considera o imperador como legislator supra legem: acima da própria lei. Mas, se sua autoridade é preeminente no jus publicum, seu poder detém-se no domínio reservado. Santo Ambrósio abriu o

caminho para as futuras definições dos papas Dâmaso e Gelásio. Suas idéias irão inspirar a doutrina do primado da ordem eclesiástica de santo Agostinho e a do ministerium regale que a Idade Média professará.28

DOUTRINAS DE COLABORAÇÃO

O período compreendido entre a morte de Teodósio (395) e a ascensão de Zenão (474) é especialmente favorável, sobretudo no Ocidente, às relações entre a Igreja e o Estado. A convivência estreita-se, superam-se as dificuldades, uma ou

26 Sobre o pensamento político de Santo Ambrósio, cf. CARLYLE, A. J. A History of Mediaeval

Political Theory in the West. London: W. Blackwood, 1903. v. 1. p. 180-84. Cf. BATIFFOL, Pierre.

La Siège apostolique. Paris: Gabalda, 1924. p. 51 ss. Cf. também PALANQUE. Op. cit. P. 371 ss. 27 Sermo Contra Auxentium 36. PL 16, 1018. Cf. a tradução de RAHNER. Op. cit. p. 134-46. (Documento 13 b). 28 GAUDEMET. Op. cit p. 500.

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outra crise mais séria não perturba a aproximação. A doutrina eclesiástica já não acentua com o mesmo rigor a distinção entre os dois domínios. Insiste-se agora na colaboração, apressa-se o entendimento. A fraqueza da autoridade dos príncipes e mesmo sua devoção à Igreja favorecem quadro de sensível influência eclesiástica.

Santo Agostinho

No início do século V, santo Agostinho aparece como o grande defensor dessa política de colaboração. Fundamentado nas Escrituras, mas apoiado também em textos de santo Ambrósio, o famoso bispo de Hipona formula doutrina mais

adequada às circunstâncias. O Império, enfraquecido, necessita da Igreja. A solidariedade entre os dois poderes parece útil, inclusive para combater as heresias, consideradas por diversas razões um perigo para o Estado e para a Igreja.

Embora sem examinar pormenorizadamente o pensamento político de santo Agostinho, tema de outro capítulo, recorde-se que o grande doutor distingue nitidamente os dois poderes, que diferem em seu objeto: o Estado ocupa-se dos interesses materiais, e a Igreja dos interesses espirituais; em sua natureza: uma é física, a outra é moral; em seus meios de ação: o Estado recorre à espada para

impor e defender sua autoridade, a Igreja exerce sua autoridade pela caridade; em seus fins e destino: o Estado é temporário, desaparece, ao passo que a Igreja é eterna. Existem, entretanto, diferenças entre as duas sociedades, ambas feitas de homens e para o bem do homem. Entre os dois poderes existe por vezes concordância na preocupação quanto ao bem comum. De sua parte, a Igreja empresta ao Estado seu ensinamento moral, suas preces, e impõe aos seus fiéis a obrigação de obediência. Cabe ao Estado assegurar à Igreja paz, proteção e ajuda.

Essa colaboração não implica perda da preeminência do espiritual, isto é, da Igreja, de vez que os fins desta são superiores aos do Estado. Tal preeminência, por outro lado, não significa necessariamente teocracia. Mesmo porque, à época do autor do De civitate Dei, o papado não era suficientemente forte para sobrepor-se ao Estado. O pensamento político de santo Agostinho terá poderosa influência na Idade Média.

Leão I

O papa Leão I governou a Igreja de 440 a 461. Adotou de perto a doutrina da união dos poderes, sem renunciar aos direitos da Santa Sé. Além da grande contribuição à doutrina da primazia papal, Leão I deixou importante auxílio à idéia de colaboração estreita entre a Igreja e o Estado. Essa doutrina de aproximação

atendia às necessidades da época e, assim, não parece estranha a cautelosa adesão do papa. Posto que favorável à união dos poderes temporal e espiritual, S. Leão

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tem idéia nítida sobre os direitos da Sé Romana. Julga que o primeiro dever do imperador é ajudar a Igreja. Essa ajuda ―se traduit par des interventions impériales dans la vie de l‘Église que le pape admet et parfois sollicite. Il prie l‘empereur de reunir le concile, mais il se reserve de décider de l‘opportunité de cette réunion et

de fixer l‘ordre du jour de l‘assemblée‖29 Destina-se também a resolver querelas doutrinárias ou mesmo questões disciplinares. A autoridade religiosa cabe determinar matéria de fé, regulamentar a disciplina e administrar o patrimônio. Evidentemente, a aplicação dessa doutrina de estreita colaboração só tem êxito quando o imperador é devotado à Igreja e pronto a respeitar-lhe os direitos.

Note-se, porém, que as relações entre a Igreja e o Estado conheceram novo curso no final do século V. Leão I havia afirmado com insistente firmeza a tese do primado papal e lançado as bases de uma doutrina de independência. No

entanto, persistiu na antiga linha de união dos poderes religioso e temporal, e manteve-se sob a proteção do imperador. A diferença mais nítida entre um e o outro poder começou a delinear-se no pontificado de Felix III (483-492), seguramente por influencia do cisma de Acácio, e teria seu perfil definido por Gelásio I (462 – 496).30

Pode-se afirmar que as relações de poder entre a Igreja e o Estado no Ocidente, no final do século V, tendem para uma solução de equilíbrio. Há a

busca constante de superação de problemas. Assim é que a doutrina do poder secular vai ao encontro do mesmo ideal de entendimento e afirma os mesmos princípios manifestados pela Igreja.

Sem dúvida, a ligação com o Estado trouxe à Igreja consideráveis vantagens. A sombra do poder imperial, ela manteve sua unidade diante da crise ariana, estruturou-se, prosperou. O preço foi elevado, porém. Conheceu a intervenção direta do Estado até em matéria doutrinária, quase sucumbiu à tentação de riqueza,

caminhou para a intolerância.31 O espantoso apego do clero ao bem-estar foi lastimado por alguns. São Jerônimo, como vimos, chegou a condenar os abusos decorrentes da prosperidade crescente da Igreja Romana.

Desde o século IV vinha o cristianismo atraindo alguns dos melhores espíritos da sociedade romana — Ambrósio, Hilário de Poitiers, Agostinho, Atanásio, João Crisóstomo. Demais, a riqueza que antes se aplicava na construção de teatros e aquedutos destinava- se agora à edificação de igrejas. Alterou-se o equilíbrio social em benefício do sacerdote, em desvantagem para as antigas instituições imperiais.

29 Id.Ib.p.503. 30 Ao examinar a doutrina gelasiana, Marcel Pacaut afirma: ―Dualisme, explicite avec clarté, et

coopération: voilà finalement lês notions essentielles que l‘Antiquité legue au Moyen age‖. PACAUT.

La théocratie. cit. P. 20-1. 31 Cf. HILLGARTH, J. N. Christianity and Paganism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,

1986. p. 4-5. Cf. DUCHESNE. Op. cit p. 459.

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Enquanto ―the political organization of the empire became increasingly rigid, unimaginative, and unsuccessful, the Church was mobile and resilient and provided space for those whom the State was unable lo absorb‖.32

Em 476 caiu o Império e o Estado fracionou-se. Das ruínas restou a Igreja,

única força organizada. Ancorada no prestígio que lhe dava sua doutrina, dententora da cultura, possuidora de bens e terras, pôde consolidar progressivamente sua posição. Por isso, da autoridade soberana, imperial e universal de Roma fez-se a herdeira presuntiva. A formulação da teoria da monarquia pontifícia será estudada no capítulo 3 — ―Leão I: A Cátedra de Pedro e o primado de Roma‖.

APÊNDICE

A mais antiga pregação cristã sobre o Estado

―Com efeito, aqueles que crêem em Deus não têm que dissimular, e não têm que temer os que detêm o poder, se não praticam o mal. Mas se obrigados, em virtude de sua fé em Deus, a agir de outro modo, preferem morrer felizes a fazer o que lhes é ordenado. Quando o apóstolo diz que ‗é preciso submeter-se a todo o poder dominante‘ (13, 1), ele não faz alusão a esse caso. Não pede que renunciemos à nossa fé nem aos mandamentos divinos para executar as ordens dos homens, mas que, por deferência ao poder, não cometamos nenhum delito, de modo a não sermos castigados como malfeitores. Eis porque ele acrescenta: ‗o

carrasco é servidor de Deus‘ (Rom 13, 14), contra aqueles que praticam o mal. ‗Não queres temer o poder? Faze o bem e obterás louvor. Mas se praticares o mal, teme. Não é em vão que ele usa a espada‘. Por conseguinte, o apóstolo recomenda que se submeta a uma existência santa e piedosa neste mundo, e que não se tenha diante dos olhos o perigo da espada‖.

HIPÓLITO DE ROMA. Comentário sobre Daniel. Sources Chrétiennes

14, 1947. p. 156.

32 MOMIGLIANO, Arnaldo. The Conflit Between Paganism and Christianity in Fourth Century.

Oxford: Clarendon Press, 1963. p. 1-10.

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A “CIVITAS” POLÍTICA DE AGOSTINHO Uma leitura a partir do Epistolário e do A Cidade de Deus1

FRANCISCO MANFREDO TOMÁS RAMOS Instituto Teológico de Fortaleza

A fonte principal de nosso estudo: o Epistolário

Poderia causar estranheza — e não somente ao leigo — o fato de pretendermos nos servir do Epistolário de Agostinho como fonte principal para um estudo de maior envergadura acerca das idéias políticas do grande Doutor (354-

430). É preciso, pois, salientar, logo de início, que suas cartas à nossa disposição hoje (cf. PL XXXIII 270 cartas; CSEL LXXXVIII, 31 cartas) não são apenas confidenciais e pastorais, mas também doutrinais (filosófico-teológicas, as mais numerosas) e oficiais. Cobrem elas todo o arco da vida de Agostinho a partir de sua conversão, e refletem o século agitado em que ele viveu; a decadência do Império Romano do Ocidente, sua vida econômica, política e religiosa. A sociedade e a família espelham-se bem nelas. Pense-se, por exemplo, nas 54 cartas sobre a luta

donatista em que, por 30 anos, Agostinho empenhou o melhor de suas energias. As intrincadas questões sobre a graça, por ocasião da polêmica com os pelagianos, são tratadas a fundo em 29 cartas das quais algumas são clássicas (cf. Eps. 140; 186; 217...). As invasões bárbaras que assolam a Europa e chegam até o norte da África, em particular o assédio de Roma de 410, escandalizam os cristãos e servem de pretexto a intelectuais pagãos para atribuir à nova religião, que prega a misericórdia e a mansidão, a culpa de tais calamidades; isto dará ocasião a

1 O presente artigo é uma síntese parcial das conclusões a que chegamos numa recente pesquisa: A

idéia de Estado na doutrina ético-política de S. Agostinho (Um estudo do Epistolário comparado com

o ―De Civitate Dei‖). Coleção ―Fé e Realidade‖ 15, São Paulo: Loyola, 1984, 730 p. Foi publicado,

originariamente, pela revista Perspectiva Teológica, XVII (1985), n. 41, p. 63-76, no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte (Brasil). Agradecemos tanto à Edições

Loyola quanto à direção da Revista Leopoldianum a permissão de reeditar o texto.

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Agostinho de escrever as cartas a Deogratias, Vitoriano, Volusiano, Marcelino e Macedônio (Eps. 102; 111; 135-138; 152-155), que, sob vários aspectos, podem considerar-se como anteprojetos parciais da obra monumental do De Civitate Dei. Não só os pagãos, mas ainda os maniqueus, os arianos e outros hereges, são

refutados no Epistolário. Problemas teológicos, exegéticos, eclesiológicos, morais, filosóficos, são aí debatidos com maestria.

Esta correspondência é enviada aos quatro pontos cardeais do mundo civilizado de então. Seus destinatários pertencem a todas classes sociais e estados de vida: a hierarquia eclesiástica está toda presente, desde o papa ao humilde subdiácono da vizinha diocese; uma teoria de oficiais e funcionários do Estado comparecem igualmente nas pessoas de senadores, governadores, cônsules e pró-cônsules, vigários da África, comissários imperiais, mestres dos

ofícios, ―principales‖, ―civitatis curatores‖, tribunos, notários, decuriões... Muitas destas epístolas, além disso, ―são sínteses perfeitas de longas elucubrações‖ dos grandes tratados, enriquecidas ainda pela ―índole circunstancial e ocasional‖ que lhes é própria.2

Apesar disso, e não obstante o enorme volume de publicações que dia-a-dia cresce acerca do pensamento agostiniano, o seu Epistolário, como conjunto, continua praticamente inexplorado, principalmente no tocante aos temas

doutrinais.3 O presente estudo vem mostrar, precisamente, um dos pontos (e de capital importância dentro do ―augustinismo‖) em que as cartas do Hiponense têm algo de original a nos dizer: o político. Pretende-se definir, em particular, a natureza, a finalidade própria e o valor do Estado terreno, da ―respublica civitasque terrena‖ [―república e cidade terrena‖] (Ep. 91, n. 4), que é ―multitudo hominum in quoddam vinculum redacta concordiae‖ [―multidão de homens reunida por certo vínculo de concórdia‖] (Ep. 138, n. 10).4

I - A PROBLEMÁTICA

O pensamento político de Agostinho é por demais estudado e discutido para que se faça ainda necessário encarecer-lhe a profundidade, a importância e a atualidade. Bastaria para constatá-lo reler as atas da primeira sessão plenária

2 Cf. CILLERUELLO, L. In: Obras de San Augustin, tomo VIII. Madrid: BAC. 1951, p. 2-3. 3 O exauriente Fichier Augustinien (4 v. Institut des Études Augustiniennes, Paris, 1972) elenca apenas

86 estudos sobre as cartas em geral. Os temas tratados são: Agostinho e Jerônimo; Paganismo e Cristianismo; aspectos literários; Igreja do século IV no norte da África; os correspondentes de

Agostinho; a responsabilidade do cristão (1); a Cidade de Deus nas cartas (S. PRETE); caráter de

Agostinho; os bens temporais (M. RAMOS); pelaglanismo; O Epistolário de Sto. Agostinho (2). A

pesquisa bibliográfica ulterior que fizemos (1961 até hoje) não enriquece este acervo. 4 A tradução das palavras e frases latinas entre colchetes é da responsabilidade da Redação de

Perspectiva Teológica, como também a de algumas frases da carta 155, no Apendice.

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do Congresso Agostiniano Internacional de 1954, ou compulsar, mesmo superficialmente, os repertórios bibliográficos especializados. Como no-lo nota, por exemplo, E. L. Fortin, nesta época dividida entre duas tendências opostas — a primeira, uma utopia de democracia radical e igualitária que se

alia por vezes à violência sistemática, fruto ambas da filosofia do século XIX, passando por Marx, Nietzsche e Heidegger; a segunda, configurada num imobilismo conservador do ―status quo‖ e que pode tornar-se, como reação, tão perigosa quanto a primeira — transparece, diz ele, a atualidade da ―teologia política‖ de Agostinho, ―o pensador mais profundo da Igreja antiga‖, com sua posição de equilíbrio, eqüidistante dos extremos.5

E Henrique C. de Lima Vaz, nosso filósofo da História, escreve, por seu lado: ―Às fontes filosóficas do pensamento político ocidental vêm juntar-se,

assim, as fontes teológicas das quais procede, por um aparente paradoxo, sobretudo a partir dos fins da Idade Média, uma das correntes estudadas magistralmente, entre outros, por Georges de Lagarde, que conduziram à idéia da laicidade do Estado moderno. Entre essas fontes teológicas a mais importante é, sem dúvida, santo Agostinho. A reflexão política de Agostinho move-se, como é sabido, entre duas ordens de problemas, que ele situa dentro das vastíssimas coordenadas do seu pensamento filosófico-teológico: a interrogação lançada

sobre a perenidade da ordem romana, abalada com a tomada de Roma por Alanco em 410, e as relações entre o Estado cristão e a heresia, problema suscitado pela revolta donatista na África. A influência do pensamento político de Agostinho domina soberbamente toda a Idade Média e estende-se até os tempos modernos. Na verdade, há uma vertente do pensamento político do Ocidente que só pode ser entendida à luz das concepções de santo Agostinho e daqui a importância do conhecimento exato da sua doutrina nesse campo‖.6

Estão longe, contudo, os conhecedores da matéria, de se acordarem — como sói acontecer quando se trata com um gênio da envergadura de um Agostinho — acerca da interpretação exata de não poucos pontos particulares de sua doutrina, haja vista, a modo de exemplo, a questão sobre a mudança de opinião do mesmo acerca da intervenção do Estado contra os circunceliões da seita de Donato.7 Tais divergências, aliás, têm raízes mais profundas. No exemplo agora dado, estas se encontram na discussão a respeito do reconhecimento mesmo, por parte de

5 Cf. FORTIN, E. L ‗Idéalisme politique et foi chrétienne dans la pensée de Saint Augustin‖ In: Recherches augustiniennes VIII (1972), p. 231-2.256. 6 H. VAZ, H. C. de Lima. Prefácio ao nosso estudo supra-referido, A idéia de Estado na

doutrina..., p. 16. 7 Vd. Epístolas 93 e 185 (Nuova Biblioteca Agostiniana, v. 21, p. 806-77,23,10-75) e o estudo de C. BOYER, ―Droit et Moral dans S. Augustin‖ In: Essais anciens et nouveaux sur la doctrine de saint

Augustin, Milão, 1970, em confronto com S. COTTA, La città politica di S. Agostino, Milão, 1960.

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Agostinho, de um Estado de direito, autônomo em relação à Igreja, e em última análise a existência dc uma lei natural como fundamento do Direito.

Enfim, mesmo acerca das características fundamentais do assim chamado ―legítimo ou autêntico augustinismo‖, não há pleno acordo, e isto entre autores de

total ortodoxia católica:8 é assim, pois, que, em última instância, vêm à baila as questões mais fundamentais sobre as relações do natural e do sobrenatural, do livre arbítrio e da graça, do pecado e da justificação, da razão e da fé, da ciência e da ―sapientia‖, da filosofia e da teologia. Resulta então, no campo do político e em particular no tocante à definição da natureza, da finalidade e do valor do Estado terreno, toda uma série de questionamentos, a partir da perspectiva básica, em Agostinho, das ―duas Cidades‖ (quas etiam mystice appellamus civitates duas [―que também chamamos misticamente duas cidades‖] — DCD XV, i, 1).9

É na linha destas interrogações que se coloca o presente trabalho. É o próprio Agostinho a nos dizer já numa das primeiras cartas, ao amigo Nebrídio, que de todo ―existente‖ se deve perguntar pela natureza e pelo valor (...ita cum quaeritur quid sit, necesse est ut et sit, et aliqua aestimatione pendatur‖,Ep. 11,4). O que significa, pois a sua ―Civitas multitudo hominum in quoddan vinculum redacta concordiae‖ do Epistolário [―cidade (Estado), multidão de homens reunida por certo vínculo de concórdia‖] (vd. Ep. 138, 2, 10) ou o seu ―populus, coetus

,nultitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus‖ [―povo, multidão de seres racionais, associados pela participação concorde dos bens que eles amam‖] do De Civitate Dei (XIX, XXIV) Para um pensador cristão de linha platônica, que procura a ―sabedoria‖ que torna o homem ―bem-aventurado‖, e que a repõe no conhecimento e no amor da Verdade, que é Deus (cf. Ep. 118), como é vista a ―felicidade temporal‖ do Estado terreno? E como poderia este atingi-la senão através da justiça? Eis-nos chegado ao terreno das

assim chamadas ambivalências ou antinomias agostinianas, em campo político. Estamos diante de Agostinho que põe em dúvida a justeza da definição ciceroniana de ―populus‖10 — sem que, paradoxalmente, dele discorde.11Estamos diante de Agostinho, ―romano‖ e cristão, que louva os

8 Compare-se, por exemplo, ET. GILSON, Introduction à l‘étude de saint Augustin, paris, 1949, 3 ed.,

p. 229-323 ; F.CAYRÉ, ―Caractères speciaux de la philosophie augustinienne‖ (1954) In : Essais

anciens...,p. 71-86. 9 Cf. RAMOS, M. T. Op. cit., cap. V, art. 2.—O De Civitate Dei é referido no texto com a sigla DCD. 10 ―Est igitur, inquit Africanus, respublica res populi, populus autem non omnis su ET utilitatis

communione sociatus‖ [É portanto, segundo o Africano, a república algo do povo; e o povo não é todo

e qualquer grupo de homens, reunidos de qualquer modo, mas a reunião de uma multidão associada por um consenso jurídico e pela comunhão de interesses‖] (CÍCERO, De Rep. 1,39). 11 Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap. III, final, com nota 77.

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méritos do ―preclaro Império‖, e ao mesmo tempo lhe condena a ―cupiditas hurnanae gloriae‖ [―a cobiça de glória humana‖].12

Estamos diante dos autores que, à vista destas páginas do Hiponense, se dividem na interpretação da natureza de sua ―cidade política‖ e se perguntam, em

última análise, se o grande Doutor tê-la-ia ou não concebido como ―uma terceira cidade‖, ―autônoma‖, ao lado das ―duas cidades‖ místicas (DCD XV, i, 1), capaz de unificar todas as cidades políticas concretas da terra, e se ela, por si, poderia ou não pretender atingir o ideal de um ―Estado justo‖.13 Qual é, pois, a possibilidade de realização de um Estado justo? Eis a pergunta central, aquela utopia que platão e Cícero já procuravam. Mas como definir, então, a propria justiça? Sobre tais questoes o epistolário tem algo a nos dizer, particularmente naquelas cartas que chamaremos de politicas, as de numeros 137, 138, 153 e 155, e em tantas outras de

alto teor filosófico e teológico. Deve-se estar atento para os riscos que se corre na interpretação da doutrina

politica (e do ―augustinismo‖ em si) do Hiponense: - não exagerar o valor de expressoes obiter dicta, devidas antes, por vezes, ao calor da polêmica ou às exigências da retórica; - querer encontrar em Agostinho um ―sistema completo de verdades‖, onde ao invés se encontra um método a ser aplicado no problema do destino humano; - querer salavar a ―autenticidade do social... com sua inegavel

problematicidade‖, sem colocar-se no ponto de vista da ―sapientia‖[―sabedoria‖] que nos aponta, mais acima, um Absoluto de valor. Além disso, ainda os debates do Congresso de 54 nos mostram a necessidade de uma visão interdisciplinar, aonde convergem a teologia, a exegese bíblica, a filosofia, a história e até a crítica literária e a filologia, quando se queiram dirimir, até o fundo, as questões mais espinhosas do pensamento politico de Agostinho.

Por tudo isso, não se deve transcurar de estabelecer o fundamento

metafisico da moral augustiniana, indispensável aliás para a compreensão de toda sua doutrina,14 nem esquecer de debater o sentido da ―romanidade‖ de Agostinho, que explicará bem melhor a ótica com que ele vê o Estado terreno;15 tampouco negligenciar o confronto da ―respublica civitasque terrena‖ [―republica e cidade terrena‖] (Ep. 91, 4) com a ―divina caelestisque respublica‖ [―divina e celeste república‖] (Ep. 155, 1.1) que já é ―peregrina nesta terra‖ (Ep. 91, 1), à cuja luz somente se pode aquilatar corretamente o último valor do que é terreno (cf. Ep.. 258, 2);16 por fim, não deixar de

confrontar a imagem do estado ―ideal‖ de Agostinho, entrevisto numa

12 Ibid., cap. IV, art. 2º, D. 13 Ibid., cap. V, art. 2º B. 14 Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap. 15 Ibid., cap. IV, art. 2º 16 Ibid., cap. V e VI.

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perspectiva platônica e cristã, não puramente escatológica, com a imagem ―real‖, existencial, dos ―muitos reinos terrestres, nos quais se divide a sociedade dos interesses e das cobiças terrenas‖ (...terrenae utilitatis vel cupiditatis...societas – DCD XVIII, ii, 1), que de nenhum modo lhe fugia.17

Aqui precisamente está o nó do problema, sob o ponto de vista te´rico e prático, na composição das duas imagens. O nosso titulo, ―Idéia do Estado...‖, quer indicar isso. Chega Agostinho a conceber o Estado terreno de um modo unitário e coerente? Esta sua unidade seria real, de tal modo que os vários estados concretos poderiam pretender também constituir-se numa única ―civitas mundi hujus‖ [―cidade deste mundo‖], ou esta peramnece apenas como um ―universale vocabulum‖ (cf. DCD, ibid.)? Neste ultimo caso, por que? – Responder a estas perguntas significará, a nosso ver, determinar o alcance daquele ―quoddam

vinculum concordiae‖[―certo vinculo de concordia‖]. Será ela, a concordia, a definir o Estado;18 é ela, enquanto se expressa na ―pax temporalis‖, o fim específico a ser procurado e tutelado pelo mesmo;19 é ela por ela, ainda, que propriamente se medirá o valor do estado, mas neste caso deverá ser ―ordinata concordia‖[―concórdia bem-ordenada‖]. E como, então, poderá ser ela aferida, enquanto valor?20

II - NOSSAS CONCLUSÕES

1 - Nota prévia: a descoberta do Epistolário

Não será fora de propósito chamar ainda a atenção, como primeira conclusão, para a extraordinária riqueza do Epistolário agostiniano enquanto repositório privilegiado das grandes teses que fazem o ―grande augustinismo‖. Haja visto, a modo de comprovação: H. MARROU, Saint Augustin et l‘Augustinisme. Dos 30 títulos com que o autor, na 2ª parte do seu livro, ilustra a doutrina de Agostinho,

aduzindo excerptos de seus escritos, 9 são tirados do Epistolário.21 Quanto à doutrina política, todos os augustinólogos, maiores ou menores, se

sentem na obrigação de referir ao menos algumas passagens das cartas 93, 137, 138, 153, 155 ou 185.22 Mas o que se nos impõe dizer, depois de haver compulsado atentamente não poucas das obras destes autores, é que, quase sempre, lhes falta a visão de conjunto da carta inteira (para não falarmos do nexo de uma

17 Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap. VI, art. 3º. 18 Ibid., cap. III. 19 Ibid., cap. IV, art. 3º. 20 Ibid., cap. VI, art. 2º. 21 Vejam-se, de resto, o nosso cap. I, no tocante à filosofia, e o artigo 1º do cap. VI, com relação à cristologia, à eclesiologia e à soteriologia agostinianas. 22 Ibid., cap. II nota 4.

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série determinada de cartas ou do inteiro Epistolário), o que vem empobrecer notavelmente a avaliação do texto em estudo. Sob este aspecto, não podemos deixar de enfatizar a densidade doutrinal e a força de textos tais como os das cartas 137, n. 17; 138, n. 17 e 155, n. 1 e 2, onde se encontram, em síntese, todos os

princípios básicos para a solução de nosso questionamento sobre o Estado.23 O primeiro texto, que é como o fio condutor que percorre toda a nossa

dissertação, deveria ser lido em paralelo com os capítulos dos livros VIII e XI do De Civitate, que contêm a síntese da filosofia agostiniana, e de largas páginas do livro XIX, o ―político‖por excelência; o segundo texto nos permitiu levantar um quadro que põe bem à luz a maestria dialética com que Agostinho joga com estes três elementos: ―civitas terrena‖, ―caelestis respublica‖ e ―imperium Romanum‖;24 a partir do terceiro texto, enfim, pudemos impostar

todo o parágrafo central do nosso estudo, a saber: ―A Verdade como critério último do valor do Estado‖.25

Note-se ainda, dentro do âmbito político, o significado de outras cartas que são praticamente ignoradas por todos, ou porque insignificantes quanto à extensão ou porque são motivadas, aparentemente, só pela cortesia ou cordialidade do Bispo de Hipona. Tais são, por exemplo, as de número 18 (a Celestino), 164, n. 4 (ao bispo Evódio), 233 (a Longiniano), 258 (a Marciano). Mostramos, de resto, sobejamente,

a vantagem da leitura paralela do Epistolário com oDe Civitate Dei; iluminam-se mutuamente. Seria almejável que se levasse a cabo um estudo comparativo, ―ex professo‖, de ambos. Empresa muito árdua, aliás.

2— A “Civitas” política de Agostinho

Não se encontra em Agostinho um tratado sistemático de ética política. Ele aborda, ao invés, na sua ingente obra, problemas e situações que vêm precisamente a constituir o ambiente histórico concreto de sua época e que resultam em tantos outros elementos do que poderíamos chamar sua ética social e política, a saber: o bem sobreexcelente da paz temporal; o valor e o papel da autoridade e das leis; o Estado como instituição ―de jure naturali‖ [de direito natural], suas relações com a Igreja; a justiça penal e a virtude da mansidão; o direito de propriedade e a

comunhão dos bens; o sentido da ―guerra justa‖, etc... Constatam, de fato, os autores a respeito desta ética política que é incompleta;

que Agostinho move-se num plano inetapolítico; que as interpretações que dela se fazem são muitas vezes antitéticas. Mas não se lhe negam a validade e a força dos

23 Vd. o apêndice deste artigo. 24 Cf. RAMOS, M. ob. cit, p. 203. 25 Ibid., p. 311-314.

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princípios. Agostinho tem em vista sempre a condição do homem concreto e nela ele sabe distinguir, e ao mesmo tempo coerenternente interligar, as dimensões ontológicas, existencial e escatológica. Isto vale para o homem singular e para a ―civitas‖. O seu conceito de Estado, como no-lo mostram suas cartas, é tributário

destes três planos convergentes da sua ―sapientia‖: do metafísico de linha platônica, do crente e místico cristão, e também do homem do seu tempo, perfeitamente inserido na realidade do dia-a-dia e por ela questionado. É assim que as cartas 102, 135 a 138, 152 a 155, que são como anteprojetos do De Civitate Dei, respondem a objeções bem concretas de pagãos e cristãos, amantes da grandeza do Estado Romano e temerosos de que a nova religião oficial, com seus preceitos de misericórdia e mansidão, viesse a solapar-lhe a segurança, seja externa, seja interna; ou ainda, que ela deixasse fora da via de salvação os antigos romanos que

antecederam a Cristo. As respostas de Agostinho convergem, pois, coerenternente, para o Estado (romano) (cf. Eps. 137, n. 17; 138, n. 17; 155, n. 9, 16), vendo-o e avaliando-o à luz da sabedoria dos filósofos, dos méritos dos seus grandes vultos e, sobretudo, da visão de fé da ―divina e celeste República‖.

Importa, então, muito mais determinar estes princípios fundamentais, metafísicos e de fé, de toda a ética agostiniana, a cuja luz poder-se-á entender melhor a sua concepção do Estado.

Tentemos fazê-lo, brevemente, numa síntese. O Estado terreno, como instituição política, terá por fim imediato a promoção

e a tutela dos ―bens temporais e transitórios‖ (Ep. 220, 8), ou seja, a salvaguarda e garantia da incolumidade física, da tranqüilidade e segurança (―quies... secundum carnem‖ [―repouso, tranqüilidade.., segundo a carne‖] — (Ep. 155, n. 10) de seus cidadãos. Ele deve assegurar, em suma, a ―salus hujus vitae‖ [―a salvação desta vida‖] (Ep. 137, n. 1; 220, n. 9), ou seja, a ―pax hujus mundi‖ [―paz deste

mundo‖]Ep. 231,6), a ―paz humana‖ (Ep. 189,6), a ―pax temporalis‖ (DCD XIX, xiii, 2) ou a ―terrena felicitas‖ [―felicidade terrena‖] (Ep. 138, n. 18). Contudo o ―bonum sociale‖ [‗bem social‖] não é todo o ―bonum commune‖ [―bem comum‘] nem muito menos o ―summum bonum‖ [―sumo bem‖] do homem. O Estado não é o Absoluto. A concórdia necessária e suficiente para constituí-lo, como realidade natural, será um acordo sobre coisas temporais e transitórias — ―rerum humanarum... consensio‖ —, ao menos acerca de um mínimo de ―paz temporal‖, de si boas, mas tais coisas permanecem axiologicamente abertas ao absoluto de

valor — ―rerum divinarum... consensio‖ —, pelo qual são elas medidas,já que, de fato, sem este acordo aquele primeiro não será ―nem pleno nem verdadeiro‖ (Ep. 258, 1,2). A concórida que funda a ―civitas‖, não deveria ser, em última análise, uma concórdia qualquer, mas ―ordinata concordia‖ [―concórdia ordenada‖] (DCD XIX, xiii, n. 1), ―ordinata cantas‖ [caridade ordenada‖] (Ep. 140, n. 4), ―vera amicitia‖, [―verdadeira amizade‖] ―non pensanda temporalibus commodis, sed

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gratuito amore putanda‖ [―que não se mede por interesses temporais, mas se avalia pelo amor gratuito‖] (Ep. 155, n. 1).

Ora, ―nemo... potest veraciter amicus esse hominis, nisi fuerit ipsius primitus veritatis‖ [―ninguém pode ser verdadeiramente amigo do homem, se não o for

primeiramente da própria verdade‖] (ibid.). Não há, pois, justiça nem nenhuma das virtudes sobre as quais se fundamenta o Estado, sem o amor de Deus e do próximo. A própria razão já no-lo diz e a fé no-lo confirma: nisto consiste a filosofia natural, a lógica e a ética — individual, social e política — pois é Deus o ―Criador de todas as naturezas‖, a ―verdade e a luz da alma racional‖, ―o sumo e veríssimo bem comum‖ (Ep. 137, n. 17), a única verdadeira beatitude tanto do homem singular como do Estado (Eps. 118, 155...). A lei da razão e os preceitos da antiga lei mosaica, com efeito, já nos impõem este duplo mandamento, mas ele só se cumpre

pela graça do Espírito Santo (Ep. 157, n. 4, 9, 15, 16...; Ep. 140, n. 4). Eis que o problema da justiça e da felicidade ―... unde boni beatique simus‖ [―como sermos bons e felizes‖] (Ep. 233), do homem e da ―civitas‖, só encontra resposta em Agostinho à luz da sua doutrina, metafísica e cristã, sobre a criação e, a participação, juntamente com a teologia da graça e da salvação.

Está, aí, implícita, toda uma doutrina da analogia, ―a tese fundamental da filosofia cristã‖, sem a qual não se entenderá a idéia de ―civitas‖ de Agostinho.26

Este ―Estado justo‖, numa perspectiva cristã, com efeito, permanecerá ―ideal‖, como tendência, possibilidade ou imagem imperfeita daquele ideal verdadeiro (que é a Realidade, no sentido platônico) da Cidade Celeste (cf. Ep. 138, n. 17). Na verdade, Agostinho está certo de que em todos os tempos haverá ―em todos os povos‖ cidadãos dos ―dois remos‖, do de Cristo e do demônio, em constante luta (Ep. 199). Todo Estado terreno e temporal (―non caeleste‖), enquanto tal, com seus bens e sua ―paz terrena‖, embora ―bons, porque dom de Deus‖, permanece

assim na sua ambivalência, diante da ―paz eterna da Cidade suprema‖, já que estes bens que o Estado procura ―não são tais que possam eximir os que os amam de toda angústia‖ e poderão mesmo, desgraçadamente, ser tido como supremos e definitivos; daí as guerras e divisões da cidade terrena (DCD XV, iv; Ep. 220).

E sob este aspecto de temporalidade, de transitoriedade, de implicação sobretudo na liberdade e nos ―vícios da humana fragilidade‖ (Ep. 153, n. 13) que falamos, por várias vezes, de ambivalência e de ambigüidade da cidade dos homens e dos seus bens próprios.27 Esta ambivalência da ―civitas‖ é a mesma, em

fim de contas, do homem seu cidadão. Este é, antes de tudo, fundamentalmente, ou ontologicamente, limitado enquanto criatura (―...non ob aliud res deficere, vel posse deficere, nisi quod ex nihilo factae sunt‖ [―não por outra razão as coisas

26 Ibid., cap. VI, art. 2º, D. 4. 27 Cf., p. ex., ibid., p. 315, com nota 96.

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decaem ou podem decair, senão porque foram feitas do nada‖] (Ep. 118, n. 15) Mas ele é criatura racional, livre e que de fato peca livremente, afastando-se do seu Criador, que é ―ipsa Bonitas‖ [―a própria Bondade‖], e voltando-se para a criatura (cf. Eps. 153, n. 12; 118, n. 15). Esta ambivalência moral se radica, afinal, naquela

ambivalência ontológica (a moral se baseia na metafísica). Doutro lado, esta mesma ―criatura racional‖, naturalmente boa enquanto tal, pode livremente participar, pela graça da bondade mesma e da justiça de Deus, embora de modo sempre imperfeito nesta terra, onde ―nemo... vivit sine peccato...; optimus autem est, qui (peccat) minimum‖ [―ninguém vive sem pecado; o melhor é quem peca menos‖] (Eps. 167, n. 13; 140, n. 4; 56; 153, n. 12...).

Estas as razões últimas porque não cremos que Agostinho tenha admitido a existência de um ―Estado dos bons‖ (como ideal político) ou de um ―Estado dos

maus‖, nem tampouco tenha pensado na possibilidade concreta de ―uma única Cidade política‖, que unificaria todos os Estados terrenos pelo vínculo do fim comum da ―paz terrena‖.

De fato, o ideal político de Agostinho seria não o de grandes impérios, tutores de paz, mas o da ―convivência pacífica e feliz‖ de ―muitos pequenos Estados, sobre a face da terra‖ (DCD, IV, xv).

Em conclusão, parece-nos, pois, claro que a ―civitas‖.política de Agostinho

não pode ser concebida como teocrática. Ela não pode, de fato, por si mesma, justificar e levar seus cidadãos ao fim último da vida eterna, substituindo-se à Cidade de Deus. Ela não será também absorvida pela Igreja, na linha de um ―agostinismo político medieval‖ pois o santo Doutor respeita sempre, na prática, a distinção fundamental entre a Igreja e o Estado, mesmo sob o regime sacral.28 Doutra parte, não haverá um Estado, totalmente ―autônomo‖, isto é, neutro ou independente em relação ao fim da ―Cidade celeste‖. Ele será, porém,

relativamente autônomo e suficiente como realidade temporal, que tem por fim próprio a ―paz temporal‖, a qual ele pode e deve assegurar. Neste sentido, aquele ―ideal Estado justo‖ não só admite mas naturalmente se orienta na direção daquele último bem supremo que é Deus mesmo ou ―sua Paz que supera todo entendimento‖, alcançável perfeitamente, por graça, só na outra vida, e do qual também o bem comum promovido pelo Estado é, de certo modo, uma realização.

É quanto nos ensinam o De Civitate Dei e todo o Epistolário agostiniano. O Estado de Agostinho será, assim, sempre teocêntrico, na medida mesma

em que for justo e verdadeiro. 3— Pontos controversos

28 Cf. ibid., cap. VI, art. 3º.

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A filosofia política de Agostinho é, de resto, de uma extraordinária atualidade. Há nela, evidentemente, questões-fronteira, pontos cruciais em discussão. Não há espaço para debatê-los aqui. Limitamo-nos a indicá-los, formulando-os sob o nosso ponto de vista:29

1º) Não há evolução de um ―A gostinho filósofo‖ (platônico,) para um ―Agostinho teólogo‖ (‗antipelagiano, — O seu otimismo político

Comparemos, de início, as duas cartas dos extremos — cronologicamente falando — por nós examinadas: o bilhete antimaniqueu a Celestino, de 391 (Ep. 18), e a última carta ao valoroso capitão Bonifácio, em desavença momentânea

com o Império, data de 428 (Ep. 220). A primeira já nos traz os principios basicos da Metafísica do bem e da Ética da felicidade, do dever e do amor, de Agostinho, postos numa perspectiva de fé cristã. Nela os planos filosófico e teologico aparecem mais distintamente. Na outra, estes principios continuam presentes – e quanto a eles creio que não se pode falar em evolução essencial em Agostinho30 -, como base de um juizo de valor sobre o ―politico‖, onde predomina um forte acento escatológico (devido talvez também às circunstancias particulares da vida pessoal de Bonifácio naquele período).

Talvez deva-se dizer que, com a disputa antipelagiana, a partir de 441, as cartas de Agostinho passam a acentuar sempre mais, também no tocante ao politico, a verdade de fé do pecado original com suas sequelas e a necessidade absoluta da graça salavadora do Mediador. Também a longa querela com os hereges Donatistas, que praticamente se estendeu até os últimos dias do santo bispo, leva-o a insistir no mistério da unidade da Igreja de Cristo, único sacramento de salavação definitiva.

Isto tudo, juntamente com as objeções dos pagãos contra a doutrina cristã, como pretensa causa da ruína do Império, poderia explicar o juízo por vezes mais rigoroso de Agostinho sobre o Estado ―terreno, e não celeste‖, com seus bens passageiros (Ep. 220, 8. 11) e sua paz temporal (cf. Ep. 231, 6) e, em particular, sobre Roma (cf. Eps. 217, n.10 e 164, n.4). Ele não deixa jamais, porém, de reconhecer o seu valor natural e a sua função específica de zelar pela paz terrestre, como vimos em todas as nossas cartas ―politicas‖.

Sem duvida, a pertinácia e crueldade dos ―terroristas‖ Circunceliões, a progressão devastadora das incursões bárbaras, a própria experiencia cotidiana de Agostinho com a labilidade humana, como juiz em foro eclesiastico e civil (cf. Ep. 95), ao mesmo tempo que lhe demonstravam a fragilidade e ambiguidade desta

29 Cf. bid. Conclusão. p. 347-353. 30 Cf., neste mesmo sentido, F. CAVALLA, Scienza, sapienza Ed esperienza sociale, Padova. 1974, v. I, p. 161; R. RUSSEL, ―Introduzione Generale‖ (2ª parte: Filosofia) In: S. AGOSTINO, La Città di

Dio. Roma: NBA, 1978, v. V/1, p. CXIII; E. GILSON, ob. Cit., p.310, nota 1.

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paz, ajudaram-no também, paradoxalmente, a reconhecer na pratica o valor e a necessidade do estado com suas leis e instituições, como garantia desta mesma ―pax hujus mundi‖ que nos permitiria viver cá na terra ―in omni pietate et caritate‖(Eps. 220- 3; 3221, 6).

Doutro lado, ainda para uma avaliação mais positiva do estado, conta também, ao lado do otimismo metafísico da doutrina da Criação e da Participação de Agostinho, a sua concepção da graça redentora de Cristo, como as expusemos no primeiro e no último capítulos do mesmo estudo. De fato, esta graça está presente e atuante em todos os tempos e em todas as gentes, além das estruturas visíveis da Sua Igreja (cf Ep. 102), ―sanando as vontades‘ (Ep. 127,5) e não permitindo, assim, que mesmo a ―civitas impiorum‖ se degrade totalmente. Cremos que esta perspectiva otimista possa se estender para além do ―Estado pagão‖, que

Agostinho conheceu, ao nosso atual Estado liberal e pluralista.

2º) Teologia e também ―filosofia da história‖ para uma reta compreensão da doutrina política de Agostinho.

O que poderíamos, nesta conclusão, opinar sobre a questão discutida da existência de uma ―filosofia da história‖ em Agostinho?31 Inclinamo-nos a uma

resposta afirmativa e tentaremos justificá-la brevemente. O duplo preceito do amor do Antigo Testamento, retomado por Cristo, já está

na razão: o homem, para ser feliz, para chegar à paz, à justiça deve voltar ao Princípio, ao Ser, à Unidade, passando por si mesmo, chegando à ―pulchritudo interioris hominis‖ (Ep. 120. n. 20: cf Eps. 18.2; 127,5.6): o primeiro mandamento é a ―rerum divinarum cum benevolentia et caritate consensio‖: o segundo mandamento é a ―rerum humanarum cum benevolentia et caritate consensio‖

(Eps. 258,4: 137, n. 17). A razão já mostra que o ―pondus naturae‖ é o amor (Eps. 55, n. 18: 157,. n. 9), que este amor é de Deus e do próximo (eu não amo a mim mesmo, nem portanto ao próximo se não amo primeiro a Deus, que é o que ‗há de melhor‖ — Ep. 155, n. 13),32 a ―imagem‖ divina que estará no homem pela justiça da graça supõe a ―imagem‖ divina pela criação que deve ser ―restaurada‘ (refici et reformari (Eps. 120. n. 19-20: 118, n. 15).33 A paz política supõe a procura da paz interior do homem, da sua unidade: a ―pax hominum‖ e a ―p civitatis‖ supõem a

―pax hominis mortalis et Dei: in fide sub aeterna lege oboedientia‖ (DCD, XIX, xiii. 1)34 que, por sua vez, pressupõe ou inclui aquele ―cuidam justus ordo naturae‖ (DCD, XTX. iv. 4). Isto define já uma moral (independentemente do que

31 Cf. RAMOS, M., ob. cit, cap. V, art. 2º B 3. 32 . Cf. igualmente Eps. 130, n. 14; 167, n. 16. 33 Cf. Ep. 147, n. 44-46. 34 Cf. LAUFS, J. Der Friedensgedanke bei Augustinus (Untersuchungen zum XIX Buch des ―De

Civitate Dei‖, Wiesbaden, 1973, p. 97, com nota 43.

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a fé possa trazer a mais).35 Bastaria também, para definir um sentido último racional da História, embora sem que se saiba o seu destino concreto escatológico, que só a Revelação lhe dá. Mesmo prescindindo desta, o destino último do homem seria a busca da Verdade, que é Deus — aquela ―amicitia ...veritatis‖ (Ep. 155, 1,

1) —, daquela ―pax plena‖ , daquele Deus em cuja ―fruição‖ estaria o ―unum atque summum bonum nostrum‖ (Ep. 118, n. 16, 17, 20) que Platão, segundo Agostinho, já indicava.

Por isso mesmo podemos concluir ainda que a justiça, a paz, a amizade e as virtudes em geral, que fundam o Estado, são ditas ―verdadeiras‖ não imediatamente porque levam à Beatitude da vida eterna, ―quae vere vita est‖, mas porque se conformam ou derivam daquela Verdade que é Deus mesmo, o Criador do homem, ―bem imutável, que deve ser amado com puríssima e sinceríssima

caridade‖ (Ep. 140, n. 56; n. 18). Com efeito, ―non aliunde beatus homo, aliunde ‗civitas‘‖ porque ―neque... facit beatum hominem, nisi qui fecit homimem‖ (Ep. 155, n. 1. 2). Deus é princípio e fim: é o Fim por que é o Princípio.

3º) O valor do Estado se entende à luz da autonomia ―antropo (proxime)-teocêntrica (ultime)‖ da ética agostiniana

Deveríamos também definir com mais profundidade aquela ―autonomia relativa‖ ou teocêntrica que, para nós, traduz bem a mente de Agostinho acerca do valor do Estado terreno, ou seja, de sua relação com o ideal da ―Cidade celeste‖.36 Tal conceito se harmoniza, coerentemente, com o sentido profundo de toda a ética agostiniana, centrada numa Metafísica do Bem. Esta ética poderia, pois, ser vista em dois planos distintos e sucessivos, mas não opostos:

(a) o plano da autonomia ética, com fundamento próximo na natureza, na

―recta ratio‖ da ―anima rationalis‖, que, diante dos valores da existência, é capaz de ―dislinguere, eligere, pendere...‖ Ep. 140, n. 4; De util. cred. 12, 27); mas

(b) em subordinação a uma ―superior heteronomia‖, fundada na ―lex aeterna‖, na ―ipsa bonitas‖ (Ep. 18, 2), na ―aperta simplexque sapientia atque Veritas quae... Deus est‖ (Ep. 118, n. 26, 23).

Só assim a razão humana será de fato ―recta‖, ―si ordinem servet..., ordinata caritate..., subdendo minora maioribus corporalia spiritualibus, inferiora

superioribus, temporalia sempiternis‖, numa palavra, orientando ―a felicidade temporal e corporal‖ e toda criatura‖ ao ―Criador‖ e à ―felicidade eterna‖ (Ep. 140, n. 3 . 4). Com efeito, ―as coisas humanas só se avaliam retamente a partir das divinas‖ (Ep. 258, 2). Assim se salva a autêntica liberdade do homem, numa profunda dependência última de Deus (que propriamente a funda). O livre-arbítrio

35

Cf. RAMOS, M. ob. cit., cap. 1, nota 165. 36

Cf. ibid., cap. VI, art. 2º, D5 e Cap. VI, art. 3.

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não lhe é tirado, mas precisamente por isso lhe é dado o auxílio da graça (cf Ep. 157, n. 10) A ―ciência‖ só não basta, mas deve ser assumida pela ―sabedoria‖ que é ―caridade‖ (Ep. 55, n. 39).3737 Afinal ―lex ita que libertatis, lex caritatis est‖ (Ep. 167, n. 19). Nem por isso a graça exclui a lei natural da razão, e sim torna o

homem capaz de observá-la (cf Ep. 157, n. 15).38 A autonomia da ética agostiniana é, portanto, ―antropo (proxime)-teocêntrica

(ultime)‖ ou teônoma, e assim não será nunca nem atéia nem neutra, axiologicamente, em nenhum dos seus campos concretos de aplicação, em última análise porque a ―recta ratio‖ humana é participação da ―Veritas aeterna‖ pela qual ela é ―iluminada‖ (Ep. 118, n. 2, 15).39 Isto vale evidentemente, também para todo o âmbito do ―político‖, já que ―aliud civitas non sit, quam concors hominum multitudo‖ (Ep. 155, n. 9).

4º) A ―patria carnalis generationis‖ que se fará ―portio... supernae patriae‖ (Ep. 91, 1. 6). — O autêntico progresso humano está em relação com o advento do Reino

Tocamos, assim, de novo a outra ―aporia‖ fundamental para a reta compreensão da idéia de Estado de Agostinho, a saber, a relação do natural e do

sobrenatural (natureza, graça e pecado).40 Reafirmamos apenas, no tocante ao nosso tema, que Agostinho não contrapõe ‗natural‘ e ‗sobrenatural‘, ‗razão‘ e ‗fé‘, ‗liberdade‘ e ‗graça‘, ‗tempo‘ e ‗eternidade‘, mas os ordena. Assim se entende que ele possa falar da ―pátria terrena‖, que se fará ―porção da pátria

37 ―Sic itaque adhibeautur scientia tamquam machina quaedam, per quam structura caritatis assurgat

quae maneat in aeternum, etiam cum scientia destruetur; quae ad finem caritatis adhibita multum est

utilis; per se autem ipsa sine tali fine, non modo supérflua sed etiam perniciosa probata est‖ (=NBA

21, 494-6) 38 ―Quant à La necessite de La grâce rend possible l‘observation de la loi naturelle, mais elle suppose

cette loi. Il est donc aisé et légitime de lire un enseignement philosophique dans une doctrine qui

dépasse cet enseignement. Cela est d‘autant plus facile quand il s‘agit de Saint Augustin que lui-même

distingue parfois ce qui déjà resulte de notre seule nature raisonnable‖ (C. BOYER. In:Essais anciens..., p. 85). 39 De um lado, sendo Agostinho um gênio metafísico-religioso-teocêntrico, Deus transparece

freqüentemente como fundamento (último) de sua moral. E é este o clima de seus escritos. Doutro lado, porém, visto que é um autor existencial, experiencial (conhecedor da experiência humana

interior), ele permite também que se afirme uma moral, em si válida, com fundamento próximo na

―recta ratio‖ e, por conseguinte, em sentido relativo, ―autônomo‖ (= absoluto participado) subindo daí,

coerentemente, ao fundamento último (indutivamente). Em suma, a luz divina não obscurece a luz participada da ―recta ratio‘, que é verdadeira e boa. Nesta mesma linha, tem razão S. KOWALCZIK

quando afirma que o ―teocentrismo cristão‖ de Agostinho, dentro de sua Metafísica do Bem, se

harmoniza com seu ―antropocentrismo moderado‖, conferindo-lhe fundamentos duráveis e dimensão

escatológica (cf. ―La Metaphysique du bien selon 1‘acception de St. Augustin‖. In: EstudioAgustiniano 8 (1973), p. 51). 40 Cf. RAMOS, M. ob. Cit., cap. V, art. 2º C.

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celeste‖, já ―peregrina nesta terra‖ (Eps. 91, 6; 104, n. 4) — é a eternidade no tempo — sem confundir as duas realidades, mas ordenando de certo modo a primeira à segunda. O cidadão da pátria terrena deve, pelo amor correto para com a mesma (vera et pia dilectione), pelo qual ―não põe limites aos seus bons

préstimos‖, merecer aquela eterna (ibid.). Ora, a ―pátria terrena floresce verdadeiramente‖ pelas virtudes, ―pelos costumes castos, honestos e probos‖, como já o afirmava Cícero; tais costumes, sobretudo a ―Vera pietas‖, são aqueles pregados pelas Igrejas de Cristo (Ep. 91, 3).

De fato, a ―civitas‖ se redime pela ‗metanoia‘ de seus membros.41 Agostinho, portanto, sem ser teocrático, põe em relação o autêntico progresso humano e o advento do Reino.42

4— Perspectivas para hoje — o cristão e o Estado

Devemos concluir. O Estado terreno de Agostinho, concreto e singular, em qualquer momento e lugar, com qualquer cultura que seja, em regime confessional ou laical, é antes de tudo uma parte daquela ―Societas... mortalium‖ [―sociedade dos mortais‖] DCD, XVIII, ii, 1; XIX, xiii, 2) e devedor, moralmente, da ―humani,

generis caritas‖ [―amor do gênero humano‖] (Ep. 153, n. 3), por força da participação na ―communis natura‖ [―natureza comum‖] Ep. 130, n. 13). Este amor pelo homem terá, porém, a sua raiz no amor de Deus, criador do homem, ―o sumo e veríssimo bem comum‖ do mesmo homem (Ep. 137, n. 17); assim, de si o Estado terreno de Agostinho, enquanto tal, será sempre devedor a Deus da ―verapietas‖ [―piedade verdadeira‘], que é dom seu (Ep. 155, n. 1, 2, 9). Por isso mesmo o duplo mandamento do amor cristão, no qual se resume a doutrina de

Cristo, e que inclui a mansidão e a misericórdia, já exigidas pela lei da razão, não poderá jamais ser prejudicial ao Estado, mas ao contrário será a ―laudabilis Republicae salus‖, ―... magna... salus Reipublicae‖ [―a salvação da louvável república; a grande salvação da república‖] (Ep. 137, n. 17; 138, n. 15).

Este Estado terreno será, contudo, sempre distinto da ―celeste e divina República‖, embora a ela se ordene na pessoa de seus cidadãos. Agostinho não teve em mente uma teocracia romana nem, hoje, propugnaria um regime de

cristandade. ―A Cidade de Deus peregrina‖ transcende todos os regimes. Ele aceitaria ao invés, quer me parecer, um Estado liberal, aconfessional, pluralista, como mal menor, na impossibilidade concreta de um Estado ―autônomo-

41 Vd. COTTA, S. ―S. Agostino. Struttura e Itinerario della politica‖. In: Studium 75 (1979), p. 179-

180. Podemos dizer que aqui, particularmente, estaria a ―modernidade‖ de Agostinho: neste aspecto

íntimo da subjetividade do homem. Neste ponto há uma aproximação com Kant. 42 Faríamos pois certa restrição à posição negativa de J. PEGUEROLES no seu ―Sentido dela Historia,

según San Agustín‖. In:Augustinus 18(1971), p. 257-258.

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teocêntrico‖ (no sentido há pouco explicado). Ele condenaria todo Estado ateu militante, a ―civitas impiorum‖ que ―generaliter quippe ... caret justitiae veritate‖ [―a cidade dos ímpios‖ que ―geralmente carece da verdade da justiça‖] (DCD XIX, xxiv), sem porém enquadrá-lo simplesmente como

―civitas diaboli‖ [―cidade do diabo‖]. Ao cristão, por fim, revestido de autoridade ou simples cidadão de qualquer

tipo de Estado, ao mesmo tempo membro da Cidade de Deus peregrina e desta concreta cidade terrestre, caberá em particular a obrigação de levar o próximo ao amor de Deus, ―pela benevolência, pela doutrina, pela disciplina‖, ―corrigindo os maus ou suportando-os, se não puder corrigi-los‖ (Eps. 138, n. 17; 155, n. 15). Ele estará assim, o cristão, como de resto todo homem ―pio e justo‖ de todas as épocas e lugares (Ep. 102, 12), sempre em luta, solicitado pelas ―duas Cidades‖ que se

defrontam, até o ingresso ―na cidade suprema e divina, onde já não haverá calamidades a suportar com incômodo, nem paixões a refrear com fadiga, mas apenas o amor de Deus e do próximo a conservar, sem nenhuma dificuldade e com perfeita liberdade‖ Ep. 137, n. 20; cf. Ep. 140, n. 63).

E enquanto ―aguarda, com paciência e vivo desejo a vinda do seu Senhor‖, cuja hora ignora, como ―o servo bom e fiel‖ (Ep. 199, n. 52, 54), ele vai construindo a História: ele faz parte, com efeito, do ―regnum Christi‖ (ibid., n. 35,

37), cujos filhos, ―na sua maioria plantam, constroem casas, compram, possuem, assumem as honras da magistratura, contraem matrimônio‖... ―são, pois, agricultores, marinheiros, comerciantes, pais de família, soldados e administradores, e tudo isso eles o fazem ―oboedientissima caritate... utentes hoc mundo tanquam non utentes‖ [―com caridade obediente, usando deste mundo, como se não o usassem‖] (ibid., n. 38).

APÊNDICE

Da carta 137 (A Volusiano — ano 411/12)

―Que discussões, que doutrinas de qualquer filósofo que seja, que leis de qualquer Estado, se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais Cristo diz que se compendia toda a Lei e os Profetas: ‗Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e Amarás o teu próximo como a ti mesmo‘? Nestas palavras se inclui a filosofia natural, visto que as causas de todos os elementos da natureza estão em Deus Criador; está

compreendida a filosofia moral, uma vez que uma vida boa e honesta não de outra fonte recebe o seu específico aspecto senão quando aquilo que é para se amar, a saber, Deus e o próximo, se ama como se deve; está incluída a lógica, pois a verdade e a luz da alma racional não são senão Deus; está contida também a

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salvação de um Estado louvável, pois não se funda nem se conserva melhor o Estado do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e nele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade,

no momento em que se querem bem por amor daquele ao qual não podem esconder o espírito com que amam‖ (137, n. 17).

Da carta 138 (a Marcelino — ano 411/12)

―Rendemos graças ao Senhor nosso Deus que contra tais males nos enviou um

socorro singular. Aonde não nos arrastaria, a quem não envolveria, em que abismo não nos submergeria esta torrente da horrenda maldade do gênero humano, se a cruz de Cristo não se elevasse a alturas sem confronto, plantada como é por assim dizer sobre a inconcussa pilastra de uma tão potente autoridade, a fim de que agarrando-nos ao seu madeiro pudéssemos ter um firme ponto de apoio e não ser arrastados e engolidos pelo vasto sorvedouro daqueles que neste mundo nos aconselham mal ou a eles nos impelem? Numa tal inundação de péssimos costumes, numa tal corrupção da antiga educação, era necessário que acorresse a

nos ajudar a autoridade celeste, a qual nos induzisse a abraçar a pobreza voluntária, a continência, a benevolência, a justiça, a concórdia, a verdadeira piedade e as outras virtudes que são como a luz e o sustentáculo da vida, não só para transcorrer esta vida com toda a honestidade, nem apenas para manter a mais completa concórdia na cidade terrena, mas também para chegar à salvação eterna e à cidade celeste e divina de um povo, digamos assim, eterno, da qual nos toma cidadãos a fé, a esperança e a caridade. Enquanto vivermos corno peregrinos sobre a terra, a

autoridade de Cristo nos leva a suportar, mesmo se não conseguirmos corrigi-los, aqueles que quereriam manter estável o Estado sem punir os vícios, enquanto os primeiros romanos o fundaram e fizeram prosperar com as virtudes, muito embora não tivessem para com o verdadeiro Deus a verdadeira piedade, capaz de conduzi-los, através da salutar religião, à cidade eterna, mas conservaram uma espécie de probidade da sua estirpe que era suficiente para fundar, aumentar e conservar a cidade terrena. Deus mostrou assim, no riquíssimo e famoso Império Romano,

quanta força tivessem as virtudes civis também sem a verdadeira religião, para que se compreendesse que, se a verdadeira religião a elas se une, os homens se tornam cidadãos da cidade celeste, onde reina como rainha a Verdade, como lei a Caridade e que tem por duração a Eternidade‖ (138, n. 17).

Da carta 155 (a Macedônio —413/14)

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―Embora não reconheça em mim a sabedoria que me atribuis, devo agradecer-te muito por tua benevolência tão sincera para comigo. Alegro-me que o trabalho de meus estudos tenha agradado a tal e tão ilustre pessoa. Alegro-me muito mais, porém, porque reconheço que o teu espírito, levado pelo amor da eternidade e da

verdade, bem como o sentimento amoroso do teu coração, aspiram com avidez à posse daquela divina e celeste cidade, cujo rei é Cristo, e na qual somente se deve viver para sempre e na beatitude, contanto que aqui na terra se viva na retidão e na piedade religiosa. Vejo também que te aproximas dela e a abraças com ardor. De tais sentimentos tem origem também a verdadeira amizade que não se mede por interesses temporais, mas se avalia pelo amor gratuito. Ninguém, de fato, pode ser verdadeiramente amigo do homem, se não o for primeiramente da própria verdade; o que, se não acontece gratuitamente, não acontece de forma alguma‖ (155, n. 1).

―Sobre tal argumento têm discutido muito também os filósofos, mas nos seus escritos não se acha nenhum aceno à verdadeira piedade, isto é, ao genuíno culto do verdadeiro Deus, de onde necessariamente derivam todos os ofícios de uma vida reta. E a causa disso é, a meu ver, que eles quiseram construir a seu modo a felicidade e pensaram que era preciso antes fazê-la por si mesmos que impetrá-la, quando aquele que a concede é apenas Deus, visto que, na verdade, somente quem criou o homem pode torná-lo feliz. Pois, quem a suas criaturas, aos bons e aos

maus, dispensa tantos bens — o ser, o ser homens, os sentidos, a energia e a força, a abundância de riquezas — Ele se dará a si mesmo aos bons para que sejam felizes pois já é um dom seu o fato de eles serem bons...‖ (155, n. 2).

Do A Cidade de Deus (livro XIX — ano 426, aproximadamente)

―Deste modo, a paz do corpo é a harmoniosa disposição de suas

partes; e a da alma irracional, o ordenado repouso de seus apetites. A paz

da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, e

a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenda e a saúde do animal. A

paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé

debaixo da lei eterna. Tive uma infância feliz, simples, mas feliz. Assim

como a maioria das crianças, meu primeiro amor surgiu na escola: era o

guri mais bonito- eu e todas as meninas da turma corríamos atrás dele

enquanto ele preferia o futebol. Bons tempos esses. Passaram, e eu

cresci. Não seria capaz de definir o que ocasionara o meu medo de

relacionamentos, talvez algum pequeno episodio na minha infância que

nem eu mesma seria capaz de identificar. Mas esse medo não me

impediu de criar laços de amizade, que por sinal sempre foram muito

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fortes. Mas como para toda regra tem que existir uma exceção, ela surgiu

e eu não esperava por isso. Eu estava completamente apaixonada pelo

meu melhor amigo. Enquanto ele me contava suas paixões eu sempre

tentava me imaginar no lugar delas, e o quão melhor eu seria pra ele.

―irmã‖. Tentava de todas formas possíveis não deixá-lo perceber os

meus sentimentos em relação a ele, talvez tenha conseguido. Ou não. O

tempo passou e não o via mais, no inicio pensava neles todos os dias E a

paz dos homens entre a sua ordenada concórdia. A paz da casa é a

ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem nela, e a

paz da cidade é ordenada concórdia entre os cidadãos que governam e os

governados. A paz da cidade celestial é a comunidade perfeitamente

ordenada perfeitamente concorde no gozo de Deus e no gozo mútuo em

Deus. E a paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem (pax omnium

rerum tranquillitas ordinis).A ordem, é a disposição dos seres iguais e

dos diferentes, designando a cada qual o lugar que lhe convém (DCD

XIX, xiii, 1).

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3

LEÃO I: A CÁTEDRA DE PEDRO E O PRIMADO DE ROMA

DANIEL VALLE RIBEIRO Universidade Federal de Minas Gerais

INTRODUÇÃO

O papel e o desenvolvimento da Igreja de Roma, no Ocidente, desde o século II, têm sido normalmente reconhecidos pelos historiadores. O predomínio do bispo de Roma, entretanto, foi explicado por alguns apenas como reflexo de circunstâncias históricas. A própria Roma tomou a iniciativa da hegemonia a fim

de assegurar a unidade da Igreja. Segundo essa teoria, o primado da Sé Romana resultou da necessidade de o cristianismo ter um órgão dirigente. A Igreja de Roma não usurpou, mas ofereceu como serviço a primazia necessária à boa ordem da comunidade cristã. Ao assumir a liderança, o bispo de Roma ―passou da posição de irmão à de pai e senhor‖, diz H. Koch.1

Outra explicação tem sido apresentada para mostrar o crescimento do poder papal: o prestígio de que gozava a antiga capital do Império. Indiscutivelmente,

Roma desfrutava de excepcional importância. Era o centro do mundo romano, para onde tudo convergia. A Sé de Pedro tinha facilidade de comunicar-se com as demais Igrejas. Em decorrência, podia o bispo de Roma ter efetiva soilicitudo sobre as demais Igrejas e tentar exercer sobre elas mais ativamente sua autoridade.

Para a exegese católica, a missão dos apóstolos é de capital importância para o estudo do cristianismo primitivo. As comunidades da Igreja dos primeiros tempos sujeitavam-se à autoridade dos apóstolos, autoridade que se transmitiu ao

episcopado. A propagação do cristianismo processou-se através da criação de Igrejas ligadas às Igrejas-Mães. Havia um traço de união entre elas. Passou a existir, pois, a partir de certo momento, uma Igreja das Igrejas. O episcopado

1 Criado por BATIFFOL, Pierre. Cathedra Petri. Paris: Cerf, 1938. p. 12.

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estabeleceu-se no século II. Sua criação atendia aos apelos da sucessão apostólica,já que seus poderes derivam dos apóstolos. Essa, a doutrina de Tertuliano. Existe, portanto, uma ligação histórica do episcopado com os apóstolos.

Deve ser também lembrado que no século II a Igreja Apostólica de Roma,

apostólica em virtude de Pedro e Paulo, distinguia-se das demais Igrejas Apostólicas. É verdade que a idéia de sucessão apostólica não se ligava somente a Roma. Mas a estreita associação da Igreja Romana com Pedro imprimia-lhe autoridade. Em razão disso, Roma distanciava-se das outras Igrejas Apostólicas — Corinto, Antioquia, Efeso.

A idéia de que a Igreja Romana é a Ecclesia principalis, ou seja, a mais antiga, a primogênita, aparece já no final do século II. Em texto redigido por volta de 180, santo Irineu, bispo de Lyon, sustenta que todas as Igrejas devem por-se de acordo

com a Igreja de Roma, em conseqüência da principalitas desta. A Igreja de Roma, diz ele, é a maior, a mais antiga, conhecida de todos. A ela devem ligar-se todos os fiéis, em virtude do seu principado mais poderoso — ―propter potentiorem principalitem‖.2

Já se reconhece certa preeminência do bispo de Roma, e a idéia de sucessão apostólica segue caminho firme. Carta de Firmiliano de Cesaréia a são Cipriano, então em conflito com o papa, indica que Estêvão I ―professa ter a cadeira de Pedro

por sucessão‖ e ―glorifica-se do lugar do seu episcopado e de ter a sucessão de Pedro sobre quem foram estabelecidos os fundamentos da Igreja‖.3 A despeito de seu conflito com o papa Estêvão, a propósito da questão batismal, são Cipriano reconhece que em Roma está a cathedra Petri, a Igreja princeps. Sustenta mesmo que a investidura de Pedro por Cristo constituía o pilar da unidade da Igreja. Seguramente não se dá ainda ao papado reconhecimento amplo de jurisdição em matéria doutrinária e disciplinar. Por isso, o melhor é falar em primado honorífico.

A adesão de Constantino abre novas perspectivas ao cristianismo. O regime imperial assegura proteção à Igreja, mas também faz dela um instrumento de sua política. O cristianismo torna-se a religião do príncipe. Protetor do cristianismo, Constantino arvora-se em mantenedor de sua unidade e ergue-se em árbitro de suas divisões. O cesaropapismo do imperador inspira, certamente, a política intervencionista de seu filho, Constâncio II, em questões doutrinárias e produz a teocracia imperial bizantina. Na verdade, a Igreja do século IV é uma Igreja ―rica e marginal‖ e o ―cristianismo é periférico ao saeculum, mesmo que agora seja a fé

nominal dos poderosos‖.4

2 Irineu. Adversus haereses, 3, 3. 3 A documentação encontra-se em BATIFFOL. Op. cit. p. 13. 4 BROWN Peter. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges, org. História da vida

privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v. 1. p. 265.

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No Ocidente, onde o Império agonizava, pôde a Igreja preservar a independência do poder religioso e opor-se à intromissão do príncipe na esfera espiritual. A Sé Apostólica exerceu melhor sua soilicitudo sobre as demais Igrejas. Quando se colocava um problema de fé, sobrepunha-se geralmente a

autoridade de Roma.

FUNDAMENTOS DO PODER PAPAL

É absolutamente necessário observar, de início, que não se pode falar de papado nos primeiros séculos do cristianismo. Mesmo porque papa é um título

comumente usado, do século III ao VI, para designar todo bispo. Esse testemunho de respeito encontra-se na correspondência de santo Agostinho, são Jerônimo, Sidônio Apolinário, Fausto de Riez. Por esse tempo, a Igreja compreendia, verdadeiramente, uma federação de pequenas comunidades. Seitas menores ameaçavam a unidade. Para fortalecer a organização e impedir o progresso da heresia, desenvolve-se o episcopado. Bispos passam a chefiar a cristandade ocidental em Roma, Lyon, Corinto, Atenas e Creta. O bispo aparece, então, como o defensor da ortodoxia. Sínodos reúnem bispos de cidades próximas para definir a

doutrina e combater as heresias. Ainda no século II subsiste outro problema: como demonstrar que o

montanismo (que pregava a renúncia ao matrimônio e o jejum rigoroso) e as demais seitas não interpretavam corretamente a melhor tradição cristã? Santo Irineu resolve a dificuldade, ao sustentar que os bispos são os herdeiros da autoridade dos apóstolos. Tertuliano, o mais importante teólogo até o aparecimento de santo Agostinho, retoma pouco depois a tese de sucessão apostólica: somente as

Igrejas fundadas pelos Apóstolos são intérpretes da verdadeira fé. Em meados do século III, são Cipriano desenvolve a idéia do Primatus Petri. Seguindo a doutrina particularmente desenvolvida por Irineu, defende a ―identidade de doutrina e de autoridade entre os bispos e os apóstolos, e insiste na unidade da Igreja‖.5

A idéia de sucessão apostólica, fundamento do poder papal, não se identificava exclusivamente com Roma. As outras Igrejas invocavam o mesmo princípio. Entretanto, a estreita associação de Igreja Romana com o apóstolo Pedro conferia-

lhe autoridade, pois representava a tradição mais venerável — Roma era local de peregrinações, onde se acreditava estivessem sepultados Pedro e Paulo.

―Jusqu‘au IVe. siècle‖ — afirma o historiador eslavo F. Dvornik —,―les évêques de Rome n‘avaient jamais eu besoin de souligner ce fait. Ils avaient, en effet, un autre titre

qui leur assurait la première place dans la hiérarchie. C‘est que leur siège était en

même temps la résidence de l‘empereur et la capitale de l‘Empire romain: raison qui

5 MACCARRONE, Michele. Vicarius Christi. Storia dei titolo Papale. Roma: Lateranum, 1952. p. 7.

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était alors respectée dans toute la chrétienté, car l‘Eglise, dès les premiers jours de son

existence, s‘était conformée, pour organiser son admninistration, à la division politique de l‘Empire romain‖.6

Inegavelmente, não deve ser esquecido que Roma era a capital do Império e a cidade mais importante do mundo romano. O prestígio da Urbs por certo conferia ao seu bispo situação relevante. Por outro lado, não se deve desprezar o crescimento da importância de Constantinopla, tornada novo centro da ordem política após o desmoronamento do Império. Ambrogio Donini, entretanto, insiste

em que a afirmação gradual do poder papal ―está ligada, em primeiro lugar, ao prestígio de que gozava a antiga capital do Império e só secundariamente à reivindicação de Roma como Sé Apostólica e à memória de Pedro e Paulo‖.7

De qualquer forma, não seria exagerado dizer que a posição do papa era ainda modesta.

Papado,papatus, lembra P. Batiffol, é um vocábulo que pressupõe o termo papa, o qual pertence exclusivamente ao bispo de Roma.8 Todavia, a existência de

verdadeira federação de Igrejas, cada qual formando pequena sociedade autônoma, constitui obstáculo à pretendida preeminência da Sé Romana. Na realidade, o poder do bispo de Roma não está universalmente reconhecido, e a doutrina do primado da Santa Sé continua por formular-se.

Nesse quadro de federação de Igrejas episcopais, qual poderia ser a função da Igreja de Roma? Dito de outra maneira: Qual era o papel do papa? Tem-se feito distinção entre papatus e primatus, noções que se completam mas que são distintas. A definição de primado é importante para a compreensão dos

fundamentos e da própria evolução do papado. Nos três primeiros séculos firmam-se dois atributos do papado: sollicitudo e potestas. O primeiro termo evoca as obrigações do pastor. É empregado por Sirício, ao referir-se à 2ª Carta de Paulo aos Coríntios (II Cor, 11, 28): ―sollicitudo omnium ecciesiarum‖.9 Aparece também em Bonifácio10 e em Celestino.11 Mas é com Leão I que se acentua essa noção. Os bispos também exercem sua soilicitudo, porém a do papa estende-se sobre toda a Igreja. Potestas confere o poder, o direito de julgar. Algumas vezes, no mesmo

texto, potestas aparece ao lado de auctoritas, o que torna difícil atribuir a cada um

6 DVORNIK, François. Byzance et la primauté romaine. Paris: Cerf, 1964. p. 24. 7 DONINI, Ambrogio. História do Cristianismo. Das Origens a Justiniano. Lisboa: Edições 70,

1988. p. 162. 8 BATIFFOL. Op. cit. p. 24. 9 Ep 1,7. PL 13, 1138. 10 Ep 15, 1. PL 20, 779. 11 Ep 18, 1;22,6. PL 50,505 e 541.

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desses termos significado próprio.12 Releva observar que as duas palavras definem o primado segundo o papa Leão I.

Guardiã da unidade, a Igreja Romana pretende ser a principal, a primogênita. Mas de onde vem essa primogenitura, se existiam igrejas fundadas antes dela? A

questão é praticamente insolúvel, a não ser que se admita ser a Igreja Romana a Igreja de Pedro. A antigüidade da Sé de Roma não resulta do fato de o Príncipe dos Apóstolos ter sido seu primeiro bispo. Segundo a exegese católica, Roma tem primazia particular, especial, em razão de que ela foi instituída por Cristo, e por Cristo entregue a Pedro. Por isso, nos primeiros séculos a Igreja Romana procurou exercer uma soilicitudo e uma potestas sobre as outras Igrejas, baseando-se na sua apostolicidade eminente e na idéia de que, fundada por Cristo na pessoa de Pedro, todas as demais Igrejas devem estar em comunhão com ela.

Na nomenclatura utilizada para determinar seu papel, o papado recorreu a uma terminologia própria ou tomada ao direito público romano.13 Esse papel, diga-se de passagem, é o primeiro. Daí primatus, que se aproxima de principatus.14 O primado papal decorre da aceitação da idéia do principatus, palavra que designa um poder que, na sua ordem, é supremo. Desse modo, o poder do imperador é um principatus. Assim também a dignidade episcopal é um principatus. A palavra introduziu-se na linguagem eclesiástica no século V para

significar o primado de São Pedro, bem como a soberania ligada à autoridade da Sé Romana. Imediatamente esse principatus do papa se reconhecerá análogo ao do imperador, em estreita ligação, logo se vê, com o Direito Romano. No plano religioso, a plenitudo potestatis papal consiste na identidade dos poderes petrino-papais com os de Cristo.

O poder de que se reveste o Sumo Pontífice provém da disposição testamentária de são Pedro, clara e definitivamente manifestada na Epistola

Clementis. Esse poder papal Ullmann o rotula de poder descendente, isto é, teocrático, absoluto. Assim, o conceito mais significativo do governo papal na Idade Média cifra-se na noção de auctoritas, idéia carismática que muitos autores identificam como o elemento constitutivo do principatus. Vemos confundirem-se aí, nitidamente, o status apostolicus do Papa e seu marcante poder monárquico. Saliente-se ainda que a característica essencial da auctoritas (romana e papal) se fundamenta na sua indivisibilidade. A forma era romana, a matéria era bíblica. Dissociar o direito da História Medieval, sustenta o historiador inglês, implica

desconhecimento de um dos fundamentais princípios do medievo.15

12 GAUDEMET, Jean. L ‗Église dans l‘Empire romain. Paris: Sirey, 1958. p. 414-15. 13 Id., Ib. p. 412-13. 14 Sobre o principatus da Sé Apostólica, cf. BATIFFOL. Op. cit. p. 83-94. Cf. também ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Madrid: Revista de Occdente, 1971. p. 41. 15 ULLMANN. Principios de gobierno... p. 38 ss. e 61 ss.

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Na correspondência papal, a partir de Bonifácio I (418-422), vemos o termo principatus aplicado com freqüência à Sé Apostólica. É utilizado para designar tanto a primazia de Pedro entre os apóstolos como a do papa, seu sucessor, entre os bispos. O papa Leão I (440- 461), igualmente, estabelece íntima ligação entre o

principatus de Pedro e a autoridade suprema da Igreja.16 Assim, principatus tem duas acepções: a primeira, designa a primazia de Pedro entre os apóstolos; a segunda, indica a preeminência do bispo de Roma, seu sucessor, entre os bispos (P. Batiffol). Por isso, ao tentar impor a primazia da Cathedra Petri, Estevão I (254-257) valia-se de Pedro, cuja cadeira ocupava por sucessão autêntica, com base no Tu es Petrus... O mesmo argumento, aliás, já havia sido utilizado por Calisto (217-222) para tentar impor o primado de Roma. Houve quem pretendesse ver aí não a primazia de Pedro sobre as outras Igrejas. Ainda uma vez, porém, a condição de

Ecclesia principalis, isto é, a mais antiga, a primogênita, está ligada à pessoa de Pedro. É aí que se estabelece a Cathedra Fetri, sustenta a tradição. Esta faz de Roma a Igreja princeps, origem do episcopado, segundo a afirmação de que foi criada por Cristo na pessoa do Príncipe dos Apóstolos.

Principatus de Pedro e sucessão apostólica constituem pontos nodais para a exegese católica no estudo do primado de Roma. Dois textos são particularmente invocados para sustentar a tese do primado de Pedro. O primeiro é o de Mateus,

16,18: Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam. O segundo é ode João, 21, 15-17: Pasce agnos meos... pasce agnos meos... Pasce oves meas. O conceito de Pedro como vigário de Cristo, afirma Michele Maccarrone, domina os dois versículos. Mais: a sociedade com Cristo não é um privilégio transitório concedido ao Apóstolo, mas vem do Senhor como elemento originário e essencial da constituição da [sua] Igreja.17

A noção de primatus terá uma definição mais nítida com Leão I. Além de

determinar-lhe os dois traços marcantes — soilicitudo (soilicitudo omnium eclesiarum — II Cor, 11, 28) e potestas — o pontífice indica que a primazia assim entendida não é senão a perpetuidade, na pessoa do bispo de Roma, dos privilégios conferidos a Pedro sobre os demais apóstolos.

FORMULAÇÃO TEÓRICA DO PRIMADO

O desenvolvimento do primado percorreu, obviamente, diversas etapas de que ressaltaremos os momentos mais significativos. Seria oportuno lembrar que o primado não é ainda matéria de definições dogmáticas ou de exposições doutrinais.

16 Ep 9. PL 54, 625. 17 MACCARRONE. Vicarius Christi, cit. p. 14, 16-18.

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Afirma-se no desenrolar dos acontecimentos e é a forma pela qual os pontífices expressam sua missão.18

A primeira manifestação do poder papal aparece no século III. Calisto I (217-222), a propósito da doutrina sobre penitência, tentou impor sua autoridade como

sucessor de São Pedro. Depois Estêvão I (254-257) reivindicou a primazia de Cathedru Petri.

É com Dâmaso I(366-384) o grande impulso. Os historiadores do papado sublinham a importância desse pontificado na formulação teórica do primado da Sé Romana. Autoritário e enérgico, Dâmaso procura firmar a liberdade da Igreja de Roma mesmo diante do Oriente. Cunhada pelo papa, aplica-se pela primeira vez a Roma a expressão apostolica sedes.19 O título excluía, naturalmente, as outras igrejas apostólicas, já que Roma reivindica a suprema autoridade sobre as demais.

Tal afirmação era a resposta de Dâmaso às pretensões da Igreja oriental expressas no cânon 3 do Concílio de Constantinopla (381), que conferia ao bispo desta cidade lugar imediato ao bispo de Roma porque Constantinopla era a ―nova Roma‖. Convocado pelo imperador Teodósio, por razões políticas a ele compareceram apenas os bispos orientais. Reunido o sínodo romano, no ano seguinte, o papa afirma: a Igreja Romana não foi fundada por decreto de qualquer sínodo; sua primazia decorre dos poderes conferidos por Cristo a Pedro e Paulo,

enquanto a Constantinopla falta autoridade para reclamar origem apostólica. Evidentemente, o prestígio de Roma não era atingido. A reação do papa tinha por fim conter as ambições de Constantinopla, que se colocava em lugar privilegiado entre as sés orientais e que por certo viria, aos olhos de Roma, constituir-se em ameaça futura. Para um estudioso das relações entre Roma e Bizâncio, o cânon 3 destinava-se unicamente a reduzir a influência desmedida do bispo de Alexandria e a regular os negócios da Igreja do Oriente.20 Ao invocar o versículo de Mateus (16,

18), Dâmaso dava suporte teológico à tese do primado, mas não se limitou às afirmações teóricas. Adotando uma política hábil e firme, soube utilizar a proteção imperial. Proclamou que o valor dos concílios dependia da aprovação de Roma. Nem a forte personalidade de santo Ambrósio, que em Milão ―coloca o imperador Teodósio no meio dos penitentes‖,21 ofuscou a atividade desse seu contemporâneo.

As primeiras afirmações do primado logo encontram oposição. No Concílio de Aquiléia (381) circulou um documento que contestava a pretensão de o papa situar-se em posição especial, acima dos demais bispos, e com o direito de resolver

questões dogmáticas fora do concílio. A mesma tese é retomada por Palladius de Ratiária, bispo deposto no referido concílio. Afirma ele que o papa não é senão

18

GAUDEMET. Op. cit. p.416. 19

BATIFFOL Op. cit. p. 152. 20

DVORNIK. Op. cit. p. 38-9. 21

BROWN. Op. Cit. p. 267.

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―um dentre muitos‖ e que são Pedro ―jamais reivindicou uma prerrogativa entre os apóstolos‖.22 Desse modo, diante das primeiras afirmações firmes do primado, surgem os primeiros sinais de doutrinas conciliares.

O primado afirma-se também em matéria legislativa. Sirício (384-389) dá-lhe

formas jurídicas romanas, tomadas de empréstimo às constituições romanas.23 A jurisdição superior do papado aplica-se no Ocidente através de decretais dirigidas às diversas regiões. Desde essa época Roma procura também ligar diretamente a si a zona de fronteira entre o Oriente e o Ocidente.

Os sucessores de Dâmaso insistem na idéia de que o papa goza de prerrogativa especial, pois Roma possui a Cathedra Petri. Consciente disso, Inocêncio I(402-417) sustentou, em célebre decretal, que todas as causae maiores devem ser submetidas à Sé Apostólica,24 isto é, à jurisdição pontifícia. Ao valer-se de

expressão indefinida, o papa, evidentemente, assegurava-se o direito e a possibilidade de intervir quando quisesse. Por outro lado, nota um historiador, a ordenação contida na fórmula causae maiores eleva o pontífice à posição de juiz supremo, própria de Moisés, e dá à pretensão de Roma consagração bíblica.25 Observam-se os primeiros passos de centralização, que se pode ver também em matéria litúrgica, quando Inocêncio afirma em outra epístola ser Roma caput institutionem.26 Na qualidade de sucessor de Pedro, atribui-se o direito de regular

toda questão de fé.27 Em outro documento, Inocêncio revela a mesma noção da autoridade suprema do papa, ao escrever: ―Quando se discute questão relevante de fé, estimo que todos os irmãos e co-bispos devem submeter-se ao único Pedro, àquele de quem procedem seu nome e sua dignidade, e assim todas as Igrejas do mundo tirarão em conjunto o melhor proveito‖.28 Manifesta-se também aí a preocupação com a Igreja do Oriente, que se desembaraçava do poder pontifício, mas submetia-se à teocracia imperial bizantina.

Bonifácio I(418-422) foi o primeiro a aplicar o termo principatus à Sé Romana. Em carta aos bispos da Tessália, o papa manifesta-se contra a intervenção de Constantinopla na Ilíria. ―A Sé Apostólica‖, diz Bonifácio, ―tem um principatus que lhe dá o direito de acolher as queixas de todos os bispos‖ — ―Ideo tenet sedes

22 A respeito dessa oposição, cf. BATIFFOL, Pierre. La siège apostolique. (359- 451). Paris: Gabalda,

1924. O apelo ao papa foi decidido no Concílio de Sárdica (343). 23 GAUDEMET. Op. cit. p. 417. 24 Ep 2, 6. PL 20,473 A; MANSI 3, 1034. 25 BAUS, Karl & EWIN, Eugen. Storia della Chiesa. L‘Epoca dei Concili. Milano: Jaca Book, 1977.

p. 281. 26 Ep 25,2. PL 2O,551. 27 Ep 29. PL 20, 582. 28 Extrato da correspondência de santo Agostinho. Apud RAHNER, Hugo, L‘Église et l‘État dans le

christianime primitive. Paris: Cerf, 1964. p. 165.

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apostólica principatum ut querelas omnium licenter acceptet‖.29 O papa salienta ainda que esse principatus foi concedido por Cristo a são Pedro, em virtude do que Roma é para todas as Igrejas do mundo o que a cabeça é para os membros.30 Temos aí, pois, a idéia de Igreja universal fundada na comissão petrina — Tu es

Petrus. Para Walter Ullmann, o papa associou duas idéias: a de principatus e a de apostolica sedes.31

Note-se que a Igreja adota a estrutura do Império: quadros territoriais, princípios administrativos e normas de processo, procedimentos judiciais. No cume da hierarquia, o bispo de Roma publica constituições análogas às do imperador, inspira-se na Chancelaria e no Senado, persegue sua ascensão com o apoio de príncipes.32

LEÃO I E O PRIMADO DE ROMA

A afirmação do primado romano tem em Leão I(440-461) a figura de maior expressão. O papa Leão ascende à cátedra apostólica plenamente convencido de sua autoridade e persuadido da importância de seu ministério. Seus escritos não contêm uma exposição sistemática da doutrina do primado, mas seu pontificado

constitui uma permanente afirmação da primazia da Santa Sé. Auxiliado pela situação do Império que se desagregava e pela impotência do poder imperial diante dos invasores bárbaros, pôde formular com segurança sua teoria da monarquia papal. Deve ser ressaltada, paralelamente, a forte personalidade deste papa. Mais que seus predecessores, Leão Magno contribui para definir a posição eminente do bispo de Roma.

Leão I é firme partidário da idéia do principatus e da autoridade principesca de

São Pedro. Para ele, Cristo, o verdadeiro e eterno bispo de sua Igreja, havia concedido a Pedro participação eterna em seu poder. O poder das chaves, ligar e desligar (et tibi dabo claves regni coelorum, et quodcumque ligaveris super terram erit ligatum et in coelis, et quodcumque solveris super terram erit solutum et in coelis), foi conferido apenas a Pedro, que desse modo preside à sua Sé e a transmite aos seus herdeiros.33

29 JAFFÉ. Reg Pont, 364. 30 Ep 14, 1. PL 2O, 777. 31 ULLMANN. The Growth... p. 7. A origem da expressão apostolica sedes tem acurado estudo

em BATIFFOL. Cathedra Petri, p. 15 1-68. 32 LE BRAS, Gabriel. ―Le droit romain au service de la domination pontificale‖. Revoe hisorique

de Droit Français et Étranger. Paris: 1. p. 377-98, 1949, p. 380-81. 33 Sermo 4,3; 5,2 e 4. PL 54, 151; 153-54. Há uma edição mais recente dos sermões de Leão I no

Corpus Christianorum. Series latina. Turnholti: Typographi Brepols, 1973. Sermo 4, 3. Corpus Christianorum 138, 19-20; Sermo 5,2 e 4. C C 138, 22-24. Sobre a distinção de poderes, cf. a Ep 14.

PL 54, 676.

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Apesar de não ter sido o primeiro a invocar a sucessão de Pedro, nenhum papa antes dele o fez com tanta energia. A idéia de ser o bispo de Roma herdeiro de São Pedro já havia sido expressa por Sirício (384-399), mas é aprofundada por Leão Magno, que a vê como o efetivo fundamento do primado papal. Como

herdeiro de São Pedro, o papa assume suas funções, seus plenos poderes e seus privilégios. Observa-se em Leão I a insistência no fundamento dogmático do primado: além de sucessor de São Pedro, afirma sua íntima união com o apóstolo de quem ocupa o lugar34 Sempre ancorado na exegese (Mt 16, 18-19), reconhece a dignidade de todos os bispos, tuas lembra a diferença de poder existente entre os apóstolos. Admite a unidade na dignidade, não na posição (ordo), de vez que os apóstolos tinham a mesma honra mas não a mesma potestas.35 Nessa semelhança de honra existe uma distinção de poder. Ao elaborar uma concepção

monárquica em que o papa é o legítimo sucessor de Pedro — cuius vice fungimur36 —, Leão Magno traça com firmeza os contornos do poder pontifício. Não se esquece, contudo, de suas obrigações de pastor, de sua soilicitudo, que, por sua qualidade, estende-se a toda a Igreja. O primado fundamenta-se, portanto, na reunião da soilicitudo e potestas, dois atributos que se firmam nos três primeiros séculos da história do papado.37

O poder da Sé Romana vê-se ainda reforçado quando o imperador

Valentiniano III (424-445), no célebre decreto de 445, apóia Leão I contra Hilário de Arles. É a primeira vez que se encontra um texto legislativo dedicado à doutrina do primado. O ato de Valentiniano (Constitutio Valentiniani III) destina-se a resolver dificuldades criadas pelo bispo de Aries, o qual, ao afirmar a independência da Igreja da Gália, pretende fugir à obediência de Roma. O imperador sustenta que o primado da Sé Apostólica é assegurado pelo mérito de são Pedro, fundado na dignidade da cidade de Roma e confirmado pela

autoridade do concílio. Valentiniano refere-se, certamente, à interpolação do c. 6 do Concílio de Nicéia. O ato do poder secular tem sido objeto de numerosas críticas. Não pode ser negado, porém, que ele marca um progresso extraordinário: reconhece formalmente a jurisdição do pontífice romano. Mais: afirma o primado da Sé Apostólica. Deve ser lembrado também, como mostrou Gaudemet, que, longe de fazer concessões, o texto imperial adota o ponto de

34 Sermo 2,2. PL 54, 143; Sources Chrétiennes 74. Segundo Maccarrone, o princeps Petrus de Leão I seria para um historiador a imitação da concepção romana do optimus princeps. Cf. MACCARRONE.

Op. cit. p. 48. 35 Cf. ULLMANN. The Growth... p. 2-4. Cf. também GAUDEMET. Op. cit. p. 420.Foi Leão I quem

cunhou a expressão plenitudo potestatis (Ep 14, 1. PL 54, 671). 36 Sermo 3,4. PL 54, 147; Sources Chrétiennes 88. 37 BATIFFOL. Cathedra Petri. p. 25-27.

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vista dos homens da Igreja, que lhe dão por fundamento a sucessão apostólica, a importância de Roma e os cânones conciliares.38

O papa Leão intervém ativamente nas questões doutrinais do Oriente. De fato, a região é palco de freqüentes questões religiosas. Querelas cristológicas colocam

frente a frente Antioquia e Alexandria. Grave conflito surge quando Êutiques de Constantinopla e Dióscoro de Alexandria levantam nova questão cristológica. A heresia, chamada monofisista, sustenta que só há uma natureza em Cristo — a divina. Heresia sempre perturbou a vida da Igreja. Leão I age prontamente, desejoso de superar dificuldades. Escreve a Dióscoro de Mexandria para expressar claramente que só a Roma pertence fixar a fé. O papa acredita ser necessária a unidade entre as duas Igrejas, uma vez que Alexandria foi fundada por Marcos, discípulo de Pedro. Dirige-se também a Flaviano, patriarca de Constantinopla. A

carta do pontífice a Flaviano, de 13 de junho de 449, conhecida como ―Tomo de Leão‖, é um resumo perfeito da doutrina católica a respeito das duas naturezas de Cristo e uma afirmação clara de que ao papa cabe definir a doutrina.39

Foi convocado o concílio para solucionar a questão. Os partidários de Eutiques, que fora anteriormente condenado, prepararam o projetado encontro. Presidido por Dióscoro, resultou em tumultuosa assembléia, sem que o documento pontifício fosse examinado. Eutiques acabou inocentado. Afirma-se

terem os delegados do papa sofrido constrangimento e violência.40 O sínodo recebeu do pontífice a denominação de ―o latrocínio de Éfeso‖. Leão I formulou enérgico protesto contra o ocorrido ali. Solicitou o apoio de Valentiniano III para a convocação de novo concílio. Valentiniano endereçou correspondência a Teodósio II, instando com o imperador que ―defenda a lei e respeite a honra de Pedro‖ (J. Gaudemet).

Um sínodo papal reune-se em Roma (449). Em carta conjunta, o papa e o

sínodo dirigem-se a Teodósio.41 O tratamento é cordial, mas firme. Leão Magno narra o episódio de Éfeso e diz ter sido o imperador induzido em erro. Termina afirmando: ―Defendei contra os heréticos a posição inabalável da Igreja para que o direito de Cristo defenda também o vosso Império‖. Escreve também a Pulquéria,

38 GAUDEMET. Op. cit. p. 424-25. Cf. LE BRAS. Le droit romain... p. 381. P. Batiffol (Calhedra Petri. p. 26) vê no texto imperial uma alusão ao Concílio de Sárdica. 39 Epistola dogmatica ad Flavianum, PL 54,755-81. Para F. Dvornik, as dificuldades da Igreja do

Oriente, do século IV à primeira metade do século V, devem ser explicadas pela rivalidade entre as Sés

de Alexandria e Bizâncio, e na pretensão de Alexandria de ocupar o primeiro lugar. DVORNIK, Op. cit. p. 42. 40 Para uma visão pormenorizada dos acontecimentos de Éfeso, cf. LLORCA, Bernardino. Historia de

la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1958. v. 1. p. 546 ss. Sobre o conflito entre Roma e Constantinopla,

cf. também a opinião de DVORNIK. Op. cit. p. 42-50. 41 Ep 44. PL 54, 827-31. As cartas de Leão Magno protestando contra os episódios de Éfeso, renovam

a doutrina do primado dogmático de Roma. JAFFÉ. Reg Pont, 437 e 438.

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irmã do soberano, mas que, no momento, nada podia fazer. Apelos inúteis, já que Constantinopla continua intransigente.

Altera-se a situação com a morte do imperador. Marciano escreve a Leão Magno para comunicar sua ascensão e reconhecer a preeminência do papa

sobre o episcopado.42 Por sugestão imperial, novo concílio ecumênico é convocado e reune-se em

Calcedônia (451). Semanas antes Leão escreve a Marciano para solicitar que não permita discussões doutrinais. Deseja apenas que os padres se limitem às questões de fé definida em sua carta a Flaviano. Com efeito, o concílio aprova a doutrina exposta por ele. A Epístola dogmática é reconhecida como norma de fé. É expressivo o triunfo de Leão I. Na 15ª sessão, porém, sofre sério golpe: por decisão do concílio (cânon 28), Constantinopla passa a gozar no Oriente a mesma primazia

que a Roma cabe no Ocidente. O papa Leão protesta, em defesa da autoridade da Santa Sé, em carta ao

imperador Marciano (450-457): ―Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, a sua glória, e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar por muito tempo o governo da vossa demência. Todavia o fundamento das coisas seculares é um e o das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro salvo o que assenta naquela pedra que o Senhor deixou como alicerce. Aquele que

cobiça o que lhe não é devido perde o que é de sua própria pertença. Que seja bastante para o acima mencionado o fato de, pela ajuda da vossa piedade e o meu consenso favorável, ter obtido o bispado de uma grande cidade. Que ele não desdenhe de uma cidade real que não pode transformar numa sé apostólica; e que de maneira alguma espere ser capaz de subir prejudicando os outros. Porque os privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos decretos do Sínodo de Nicéia, não podem ser derrubados por um ato sem

escrúpulos, nem por uma inovação. E na fiel execução desta tarefa é necessário que eu demonstre, com a ajuda de Cristo, uma perseverante dedicação, porque é um encargo que me foi confiado. E se as regras sancionadas pelos Padres e estabelecidas sob a inspiração do Espírito Santo no Sínodo de Nicéia para governo de toda a Igreja forem violadas com a minha conivência (o que Deus me impeça) e se os desejos de um só irmão tiverem mais peso em mim do que a utilidade comum de toda a casa do Senhor, deverei ser condenado‖.43

Observe-se ainda que o concílio tinha promovido a reabilitação póstuma de

Flaviano, (morto a caminho do exílio) e a deposição de Dióscoro. Leão condenou como herético a este último. O papa somente aprovou as decisões doutrinais. De

42 Ep 73. PL 54, 899. 43 Ep 104. PL 54, 993-95. Apud ESPINOSA, Fernanda. Antologia de Textos Históricos Medievais. 3. ed, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 125-26. (1) Anatólio, bispo de Constantinopla. (2) O

primeiro concílio ecumênico (325).

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sua parte, o imperador Marciano estranhou que Leão não tivesse aprovado oficialmente o concílio. Manifestou que os partidários de Êutiques duvidaram da aprovação papal de sua condenação pela assembléia. A atitude imperial é, para Jean Goudemet, ―la preuve de la reconnaissance par tous, même par l‘empereur et

par les hérétiques, de la supériorité doctrinale de Rome. La décision pontificale est au-dessus de celle du concile‖44

Leão I deixou enorme contribuição à doutrina do primado papal e lutou tenazmente para assegurar a emancipação da Sé Apostólica. Fundamentou sua autoridade jurisdicional no poder das chaves, isto é, na identificação do papado com Pedro, a quem foi atribuído o poder de ligar. Daí as numerosas intervenções disciplinares de Leão Magno: o bispo de Besançon, deposto por Hilário de Aries, recorreu a Roma. O papa reconheceu seu direito e deu conhecimento do caso aos

bispos da Gália. Também na África teve de atender a questão surgida com um bispo deposto pelos seus confrades. Cuidadoso, o pontífice preferiu decidir após ouvir o episcopado africano. Mas a intervenção de Leão Magno fez-se sentir sobretudo quando os bispos orientais,vitimas do ―latrocínio de Éfeso‖ (449), recorrem à Santa Sé. O papa não quis dar solução pessoal, como se viu, e propôs a reunião de um concilio ecumênico onde estariam representados o Oriente e o Ocidente.

Ao lado da notável contribuição à doutrina do primado papal, Leão I deixou importante subsídio à idéia de colaboração estreita entre os poderes temporal e espiritual. Essa doutrina de aproximação atendia às necessidades da época e, assim, não parece estranha a cautelosa adesão do papa. Ainda que favorável à união dos poderes, Leão magno coloca sempre em primeiro plano os direitos da Sé Apostólica. Julga que o primeiro dever do soberano é ajudar a Igreja. Vê-se isso, claramente, quando afirma em carta ao imperador Leão I: ―É preciso compreender

que o poder imperial não foi instituído apenas para que o mundo seja governado,mas sobretudo para que a Igreja seja protegida‖.45 Essa ajuda traduz-se por ―intervenções imperiais na vida da Igreja,que o papa admite e às vezes solicita‖ (J. Gaudemet). São numerosos os exemplos de apelo ao imperador,seja para convocar o concílio, seja para resolver questões disciplinares ou mesmo conflitos doutrinários. Roma entende, contudo, que a nomeação de bispos, a administração do patrimônio eclesiástico e matéria de fé devem caber exclusivamente à autoridade religiosa. Busca-se dessa forma estabelecer o exato limite de

atribuições. Todavia, é extremamente difícil determinar a linha de demarcação entre os dois ofícios. Deixar à competência da autoridade eclesiástica questões pertinentes à fé e à disciplina somente tem êxito quando o imperador é dedicado à

44 GAUDEMET. Op. cit. 434. 45 Ep 156. PL 54, 1130.

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Igreja e capaz de respeitar-lhes os direitos. Por conseguinte,a doutrina sujeita-se ao perigo, por sinal freqüente, de o soberano decidir sobre matéria religiosa ao arrepio da lei canônica.

Conclusão

Apesar de Leão I haver realizado muito, a situação do bispo de Roma continuava dificil. O desmoronamento do Império deixara-o na verdade desamparado. A luta pela sobrevivencia impeliu o papado a manobras politicas e mesmo à procura do apoio de chefes barbaros. Não significou, porem, o

abandono da luta para libertar-se. Os homens da Igreja procuraram sempre assegurar a independencia de Roma. O tratamento cordial que se observa na correspondencia emanada da chancelaria pontificia,do papa Leão ou de outros pontifices, reflete tão-somente o alto conceito que da instituição imperial fazia a Sé Apostólica.

O seculo V revela grandes papas: Inocencio I, Leao Magno, Gelásio. Em Leão I unem-se sabedoria teologica e habilidade diplomatica. Inspirado nelas, formula sua doutrina para assegurar a emancipação do papado e o triunfo da

ortodoxia. Com Leão Magno, reconhece Donini, ―toda a estrutura da Igreja,como uma especie de federação debispos autonomos,muda radicalmente‖.46 O seculo V mostra a Igreja do ocidente unida em torno da Santa Sé. O primado de Roma está virtualmente reconhecido nos planos doutrinário, disciplinar e juridicional. Mas no Oriente é inexpressiva a força do papado. A posição da Igrejabizantina,quase sempre reticente ou de franca oposição, abre o caminho para a separação definitiva.

46

DONINI. Op. Cit. 267.

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4

O PENSAMENTO GELASIANO A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O

IMPERIO ROMANO-CRISTÃO

JOSÉ ANTONIO DE C. R. DE SOUZA Departamento de História da UFG

É incontestável a atuação da Igreja e do Papado em muitos aspectos na Idade

Media. Ate mesmo historiadores coerentes engajados nesta ou naquela ―ideologia‖ aceitam tal fato quer no intuito de questioná-lo e denegri-lo ou no fito de enaltecê-

lo exacerbadamente. É por demais notório que essas posturas não são as únicas, mas apenas a titulo de síntese genérica queremos englobá-las em dois blocos que poderíamos classificar como dialéticos ou antagônicos, no intuito de chamar a atenção dos leitores desavisados.

Gelásio I(492-496) é um desses personagens da Alta Idade Media que provoca tal espécie de atitude acima descrita, em face de sua não menos célebre epistola dirigida ao imperador Anastácio (491-518), em 494, sobre as relações

entre os poderes espiritual e temporal. Esse tema, objeto central do presente artigo, foi e ainda é motivo de

polemicas e controvérsias, de modo que as considerações que nos propomos fazer a respeito do mesmo tem como propósito não só de esclarecer modestamente o pensamento gelasiano quanto a formulação da teoria acerca do poder pontifício a época medieval, mas também salientar a obrigação moral e religiosa que a Igreja tem para com a humanidade no tocante a fidelidade a Cristo e a Boa Nova que Ele anunciou.1

Antes de mais nada, a maneira de roteiro histórico introdutório convém ressaltar alguns aspectos contextuais entre outros, o cesaropapismo imperial, os Concílios Ecumênicos de Éfeso e de Calcedônia e suas conseqüências, e ainda a preeminência da Sé Apostólica sobre as demais igrejas particulares, fatos esses que nos ajudarão a compreender melhor as próprias idéias de Gelásio I.

1 Cf. Mt. XXVIII-18-20: ―Jesus, aproximando-se deles, falou: ‗Toda a autoridade sobre o céu e sobre a

terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinado-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que

eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos!‖.

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I — CESARO-PAPISMO E HERESIAS

O Cristianismo nas províncias orientais do Império Romano sofreu uma influência natural e marcante da filosofia greco-helenística, particularmente do Neoplatonismo, graças aos quais se tentou explicar e sistematizar os dogmas contidos na Sagrada Escritura.2 Aos poucos surgiu o que poderíamos chamar de Filosofia e Teologia cristãs primitivas, de modo particular nos centros culturais mais importantes daqueles territórios: Alexandria, Antioquia e Constantinopla.

Entretanto, paralelamente houve teólogos3 que, racionalizando ao extremo os

dados contidos na S. Escritura, descambaram para a heresia, envolvendo questões relacionadas com o Mistério da Santíssima Trindade, particularmente no que se refere a Jesus e ao Espírito Santo, A mais grave de todas elas, por causa de seus desdobramentos ulteriores, foi o Arianismo, elaborada e proposta por Ário, sacerdote da Igreja de Alexandria.

Ora a essa época o Cristianismo já se havia irradiado por todas as províncias imperiais e tinha adeptos em todas as camadas sociais. Por esse motivo, e segundo nos conta Eusébio de Cesaréia em sua obra,4 como o imperador Constantino havia

derrotado seu rival, Maxêncio, na batalha de Ponte Mílvia, graças ao auxilio do Deus dos cristãos, resolveu em 313 promulgar o Edito de Milão: ―Eu, Constantino Augusto, assim como eu, Licínio Augusto, reunidos (...) em Milão para discutir todos os problemas relativos (...) ao bem público, entendemos dever regular, em primeiro lugar, entre outras disposições (...) aquelas sobre as quais repousa o respeito pela divindade, isto é, dar aos cristãos, como a todos, a liberdade e a possibilidade de seguirem a religião de sua escolha (...) a fim de que a divindade

suprema, a quem rendemos espontaneamente homenagem, possa testemunhar-nos em todas as coisas o seu favor e a sua benevolência costumados (...).5

A liberdade de culto no império vinha de encontro aos anseios dos cristãos que haviam sido perseguidos cruelmente ate o governo de Diocleciano (285-305). Mas, por outro lado, o imperador: ―veio a conhecer perfeitamente a vitalidade invencível do Cristianismo e concluiu que só ele seria capaz de resistir aos elementos

2 Cf. a introdução e os três capítulos iniciais (p. 10-114) da História da Filosofia Cristã, dos

professores Boehner e Gilson. Petrópolis: Vozes, em 1970. 3 Elencar o número desses teólogos hereges seria por demais enfadonho. A titulo de informação basta

citar Marción (sec. II), Paulo de Samosata, bispo de Antioquia (sec. III) etc. Remetemos o leitor interessado, as seguintes obras: Nova História da Igreja, v. I (Daniélou), Petrópolis: Vozes, 1966;

História da Igreja, v. I (Bihlmeyer-Tuechle), São Paulo: Paulinas, 1964; História de la Iglesia

Católica, v. I (LLORCA CL at.), Madrid: BAC, 1956; Historie de l‘Eglise, v. II, III, IV (FLICHE-

MARTIN et al.), Paris: Bloud & Gay, 1950. 4 In: História Eclesiástica X, Vita Constantini. 5 In: 900 Textos e Documentos de História, v. I, p. 112.

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dissolventes que já atacavam a medula do Império (...). Constantino passou, pois para o lado de quem possuía o futuro (...)‖,6 e viu nessa religião uma forma de unificar politicamente o Império.

As idéias de Ário perturbavam a unificação religiosa bem como a ordem

pública e social, particularmente no Egito, por isso: ―(...) Constantin estima que la réunion de l‘episcopat de tout l‘Empire constituerait, pratiquement, le meilleur moyen de redonner la paix à l‘Eglise (...)‖.7

Constantino então convocou todos os bispos do Império a se reunirem em concilio na cidade de Nicéia, por ocasião da primavera de 325, após ter descartado a hipótese de vir a realizá-lo na cidade de Ancara. Nele tomaram parte cerca de 250 bispos, sobretudo orientais, acompanhados de sacerdotes e diáconos, dois presbíteros romanos representavam o papa Silvestre I(314-335).

A primeira congregação solene ocorreu no palácio imperial e Constantino, abrindo os trabalhos conciliares, proferiu um discurso conclamando os presentes a unidade. A presença do imperador nas sessões: ―a apporté aux débats le poids de son autorité et a fait triompher la cause du parti anti-arien (...). Deux évêques seulement refusèrent d‘y souscrire: us seront exiles, par ordre de I‘empereur, de même qu‘Arius (...)‖8

Os bispos Hósio, Alexandre e o diácono Atanásio elaboraram a doutrina

católica, a qual foi oficializada por um dentre os vários decretos ou cânones conciliares: Jesus Cristo é o Filho unigênito de Deus, nascido do Pai, isto é, da substância do Pai, verdadeiro Deus de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial (homooúsios) ao Pai.

Entretanto, os gestos de Constantino, se bem que favoráveis a ortodoxia crista, não deixaram de ter um significado político de acordo com seus propósitos9 e tais gestos, na opinião do insuspeito Eusébio de Cesaréia, adepto do

Arianismo, eram tipicamente sintomas do césaro-papismo: ―(...) ao ocorrerem dissensões em quaisquer províncias entre si, ele, como se fosse o bispo comum para todos, constituído por Deus, reuniu os concílios dos ministros de Deus. E não se achava indigno de se fazer presente nos mesmos e tomar parte em suas reuniões, bem como ainda participava dos problemas em questão... no mais punha-se de acordo, sobretudo com aquelas pessoas que admitiam as opiniões

6 Apud ROMAG. In: Conpêndio da História da Igreja, v. I, p. 149. 7 Apud METZ. In: Histoire des Conciles (QSJ 1149), PUF, Paris, p. 21. 8 Idem, Ibidem, p. 21-22. 9 Cf. o artigo publicado na Revista de História n. 104, P. 741-766, entitulado ―Constantino e o Império

Cristão‖ Cf. ainda as seguintes obras que exploram e analisam muito bem o cesaropapismo: PIGANOL: L ‗Empire Chrétien. Paris: PUF, 1947; REMONDON. La Crisis del Império Romano de

Marco Aurélio e Anastácio. Barcelona: Labor, 1967.

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mais justas e que estavam propensas a paz e a concórdia, mostrando claramente que se comprazia com elas (...)‖.10

Mas efetivamente nem o concilio de Nicéia nem a atuação político-religiosa de Constantino conseguiram deter o avanço rápido e ativo das idéias propostas por

Ário e seus aderentes, fato esse ocorrido particularmente no seio dos bárbaros germânicos, os quais aos poucos adentravam nas fronteiras orientais do Império.

Durante a segunda metade do século IV, especialmente na região do Bósforo, o Arianismo também ganhou simpatizantes e ate mesmo em Constantinopla, a nova capital. Pelo menos nas províncias orientais, muitas das igrejas estavam nas mãos de sacerdotes arianos, que chegaram ate a usufruir do apoio dos imperadores Constâncio II e Valente.

Por volta de 380, quando Teodósio I (379-395) já estava a frente do governo

das províncias orientais, a querela ainda perturbava a paz imperial, também ameaçada cada vez mais pelos bárbaros que se infiltravam naquelas paragens, ou como agricultores ou como soldados e ate mesmo como federados, incumbidos de proteger as fronteiras contra novas hordas invasoras.

Teodósio, no propósito de pelo menos assegurar a paz interna, oficializou a doutrina cristã estabelecida em Nicéia como religião do Estado Romano, e naquele intuito, visando também a pôr fim as disputas entre arianos e ortodoxos, convocou

todos os bispos das províncias orientais do Império para um concilio, a realizar-se em maio de 381, em Constantinopla.

No 2º Concilio Ecumênico, embora se restringisse ao Oriente e não houvesse nenhum representante do bispo de Roma, a época, o papa Dâmaso, tomaram parte no mesmo 150 bispos, segundo historiadores do século V e a tradição, mas, conforme a reconstituição das listas de assinaturas as atas, encontradas em diversos manuscritos, o número constante é de 146 participantes11

Os aspectos fundamentais tratados naquele concilio resumidamente foram os seguintes: a) reiterou-se a doutrina de Nicéia. b) Acrescentou-se-lhe a consubstancialidade do Espírito Santo ―que procede do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado. Ele que falou pelos profetas (...).

12 c)

Estabeleceu-se que o bispo (patriarca) de Constantinopla lideraria todos os bispos das outras igrejas particulares do Oriente, como fazia o bispo de Roma em relação à Igreja do Ocidente.

Após o término do Concilio Constantinopolitano, Teodósio decretou e

divulgou por todo o Império que todos os súditos estavam obrigados a seguir os decretos conciliares, sob pena de castigos, de modos que ortodoxia e heresia se

10 Apud ARTOLA, M. In: Textos Fundamentales para la Historia. Madrid: Revista de

Occidente, 1973, p. 28. 11 Histoire des Conciles, p. 23. 12 Apud PRELOT, M. In As Doutrinas Políticas. Lisboa: Presença, 1973, v. I, p. 251-252.

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transformaram em questões políticas e isso noutras palavras também foi uma atitude genuinamente césaro-papista, compreensível ate certo ponto, uma vez que ao se tornarem cristãos, o imperador e o estado romano deixaram de ficar alheios a tudo que respeitava a Igreja.

Foi justamente durante o governo de Teodósio o Grande que ocorreram as primeiras investidas eclesiásticas ante o cesaropapismo. Ambrósio (333-397), bispo de Milão, tanto pelos seus gestos como por seus escritos começou manifestar-se contra a gerência do estado sobre a Igreja.

Prelot sintetiza claramente os acontecimentos mais relevantes ocorridos então: ―(...) o segundo conflito diz respeito à basílica de Milão, reclamada pelos arianos. O imperador, ou os seus representantes, tinham dado razão aos heréticos. Ambrósio protesta. Ordenam-lhe que se cale, uma vez que, segundo suas próprias

palavras, todos os assuntos dizem respeito ao imperador: ‗in potestate ejus sunt omnia‘. Não — responde Ambrósio — ‗porque uma basílica é bem consagrado a Deus. Ao príncipe cabe preocupar-se com seus palácios; a nós padres, e portanto a mim que sou bispo, cabe preocupar com as Igrejas‘(...)‖. O quarto e último litígio e o mais grave: Em Tessalônica deram-se escaramuças, nas quais foram assassinados alguns funcionários. O imperador ordenou sangrentas represálias que degeneraram num verdadeiro massacre. Quando o imperador regressa a Milão, S. Ambrósio

afasta-se da cidade para não se encontrar com ele e proibe-o de participar do culto divino. E este fato que constitui aquilo a que impropriamente se chamou ―excomunhão‖ de Teodósio. O imperador é obrigado a fazer publicamente penitência antes de assistir aos ofícios religiosos e receber os sacramentos.

Mais tarde, S. Ambrósio afirmará que reconhece plenamente os direitos do imperador, mas que este, como cristão, tem deveres para com a Igreja. Esta é a máxima fundamental, cujo alcance é enorme: ―O imperador faz parte da Igreja, não

está acima dela (...)‖.13 Rommen destaca ainda com mais clareza o pensamento de Ambrósio a

respeito das relações entre Igreja e Estado Romano: ―(...) Ambrósio rejeita com veemência a teoria de que o imperador seria a lei viva (lex animata), de que o imperador tenha, por direito divino, poder político absoluto em todos os assuntos espirituais e temporais (...) e que mesmo quando legisla em seu campo temporal não é inteiramente legibus solutus; está sujeito não só a lei divina, mas também a sua consciência, que lhe manda guardar as leis, pois a aplicação objetiva da lei,

uma vez feita a lei, não deve ser impedida pelos caprichos e arbitrariedades do imperador. Assim fala o grande Ambrósio a Teodósio: ‗Não é digno do imperador negar a liberdade da palavra, nem é digno de um bispo não dizer o que pensa. Nada vos faz, a vós imperadores, tão amados como o vosso respeito pela liberdade e até

13 Apud ROMMEN, In: O Estado no Pensamento Católico. São Paulo: Paulinas, 1967, p. 489-490.

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mesmo dos que vos devem obediência militar. Ha esta diferença entre os bons e os maus príncipes: os bons amam a liberdade, ao passo que os maus amam a escravidão. Nada é diante de Deus tão perigoso para o sacerdote e tão ignominioso diante dos homens como não dizer livremente o que pensa‖. E o renomado

professor alemão conclui seu ponto de vista acrescentando: ―Nessas palavras, vemos combinadas a libertas christiana e a nobre consciência do poder espiritual, da independência eclesiástica(...)‖.

Santo Agostinho (354-430), discípulo de santo Ambrósio e bispo de Hipona, empregando uma linguagem mais sutil, cheia de metáforas, nas quais demonstra suas qualidades como retórico e escritor, diz a mesma coisa, duma forma bem singela e edificante: ―(...) Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor de si levado até ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus, levado até o

desespero de si, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a gloria dos homens e tem esta por máxima gloria a deus, testemunha de sua consciência... Naquela seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta servem em mútua caridade, os governantes aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela ama sua própria força em teus potentados, esta diz a seu Deus ‗hei do amar-te, Senhor, que és minha fortaleza‘ (...)‖.14

É importante notar nessa passagem do bispo de Hipona que as pessoas fazem parte de ambas as instituições, Estado e Igreja. Entretanto, se na primeira as preocupações de seus governantes restringem-se à orbita profana, terrena, assentada na força, já na Igreja, as preocupações se revestem de um caráter que extrapola o imanente; e seus dirigentes, os bispos, e por que não, também as autoridades cristãs seculares, devem estar sempre dispostos ao serviço da coletividade, tendo em vista não somente a honra a Deus, mas também a realização

plena do ser humano junto dele. Outra passagem da mesma obra é ainda mais explícita no que se refere ao

que acabamos de expor e sobretudo às relações entre Igreja e Estado: ―A família dos homens que não vivem da fé busca a paz terrena nos bens e comodidades desta vida. Por sua vez a família dos homens que vivem da fé espera nos bens futuros e eternos segundo a promessa (...). o uso dos bens necessários a esta vida mortal é portanto comum a ambas as classes de homens e a ambas as casas, mas no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do outro.

Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz, porem firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas

14 SANTO AGOSTINHO. De Civate Dei, XIV, 28, tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo:

Américas, 1961. vol. I, p. 285.

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a cidade celeste ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé, usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz. Por isso, enquanto está como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a promessa de sua redenção e como penhor dela o dom espiritual, não duvida em

obedecer às leis regulamentadoras das coisas necessárias e do mantenimento da vida mortal (...). Tais diferenças deram motivo a que essa cidade e a cidade terrena não possam ter em comum as leis religiosas. Por causa delas a cidade celeste se vê na precisão de dissentir da cidade terrestre, ser carga para os que tinham opinião contrária, e suportar-lhes a cólera, o ódio e as violentas perseguições, a menos que algumas vezes refreie a animosidade dos inimigos com a multidão de fiéis e com o auxilio de Deus... a cidade celeste... não se preocupa com a diversidade de leis... nada lhes suprime nem destrói, antes as

conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes nações, encaminha-se a um só e mesmo fim, a paz terrena, se não impede que a Religião ensine deva ser adorado o deus único, verdadeiro e sumo (...)‖.15

Santo Agostinho no trecho acima também projeta alguns dentre os inúmeros problemas e inquietações da sociedade romana à sua época, tais como a desestabilização do Estado romano, pelo menos quanto às províncias ocidentais, em face da presença bárbara(ostrogodos, visigodos, suevos, vândalos) daí ele haver

insistido na importância de se conseguir e conservar a paz, na necessidade de se observar as leis civis. Insinua ainda a existência de divergências no plano religioso, pois os bárbaros haviam aderido em massa ao Arianismo, e, como já se escreveu acima, houve imperadores que, por motivos políticos, compactuaram com os arianos e perseguiram bispos e clérigos defensores da ortodoxia.

Não se deve ignorar também que desde aquela época as províncias imperiais do noroeste da África eram agitadas pela questão donatista,16 cujos

desdobramentos se refletiam intensamente não apenas nas questões religiosas como também nos setores sócio-economicos daquelas regiões. Mas o fundamental, como ensinava o bispo-filosofo, eram a observância e a fidelidade às leis divinas e o respeito à ortodoxia, pois tal procedimento é o que poderia conduzir as pessoas ao Sumo Bem, após a fase da sua peregrinação neste mundo.

As principais escolas de catequética e de estudos teológicos, localizadas principalmente em Antioquia e em Alexandria, foram centros famosos de discussões e reflexões a respeito de como se uniam as naturezas humana e divina

em Jesus Cristo, devido às idéias arianas. Alguns intelectuais pertencentes à primeira insistiam na separação das duas naturezas. Por outro lado, um grupo de

15 Idem, Ibidem XIX, 17, tomo III, p. 176. 16 Cf. ROMAG, op. Cit., p.191-194 e o artigo publicado na Revista de História nº 103, entitulado

Donato e Donatismo.

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teólogos alexandrinos defendia o ponto de vista segundo o qual na pessoa de Cristo uniam-se as duas naturezas.

Desde 428, Nestório era o patriarca de Constantinopla. Ex-aluno da escola de Antioquia, levou às últimas conseqüências a tese ali defendida, a ponto de, em seus

escritos e sermões, propor que Maria era apenas mãe de Jesus. Ora, justamente nas províncias orientais do Império há muito Nossa Senhora era invocada sob o título de Mãe de Deus, tendo em vista a divindade de Jesus.

Os debates recrudesceram, sobretudo em razão de ser justamente o patriarca de Constantinopla que zelosamente fazia semelhante afirmação. Em pouco tempo, Nestório ganhou inúmeros adeptos, de modo especial entre os monges do Egito. Esse fato veio a perturbar a disciplina eclesiástica na região. Por isso, Cirilo, bispo de Alexandria, escrevendo a Nestório, solicitou-lhe que reconhecesse seus erros e

passasse a chamar a Virgem de Mãe de Deus. Nestório manteve-se calado e Cirilo então refutou uma a uma as teses que ele defendia.

Mas o problema não foi resolvido com essa atitude. A controvérsia e as brigas entre os adeptos de um e outro bispo ganharam todas as províncias orientais, perturbando ao mesmo tempo a ordem pública e a unidade religiosa, uma das bases da própria sustentação do poder imperial.

Em face dos acontecimentos, Teodósio II(408-450) e seu colega do

Ocidente, Valentiniano III (425-455) resolveram convocar todos os bispos do Império no intuito de, reunidos em concilio ecumênico, a se realizar em Efeso, em 431, discutirem o problema e solucioná-lo.

O prof. Metz observa que ―Le choix d‘Ephèse pour le concile de 431 a été fatal à cause de Nestorius. L‘empereur Théodose II, qui pourtant avant secrètement des sympathies pour Nestorius, n‘aurait pas pu faire une meilleure choix pour favoriser la cause de Cyrille (...) Il s‘agissait de décider au concile si, à l‘encontre des

affirmations de Nestorius, Marie pouvait être appelée véritablement Mére de Dieu. Or, selon une vielie tradition Marie était morte à Ephêse; la population de la ville... vouait une vénération particulière à Marie, la Mère de Dieu (...). La population d‘Ephèse était réputée pour ses réactions contre ceux qui ne respectaient pas ses traditions (...) Dans ces conditions, on imagine qu‘une assemblée put discuter à Ephèse, en toute sérénite, une question aussi délicate (...). Cyrille d‘Alexandrie était sur d‘avoir la foule pour lui, et Nestorius d‘en essuyer les affronts (...).17

O 3º concílio ecumênico foi inaugurado solenemente em junho de 431.

Nele tomaram parte aproximadamente cerca de 180 bispos, inclusive três legados pontifícios de Celestino I(422-432).

Cirilo abriu os trabalhos corciliares, embora o comissário imperial, Candidiano, e inúmeros partidários de Nestório houvessem protestado. Esse

17 Histoire des Conciles, p. 72-73.

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fato deu margem a inúmeras manobras políticas junto ao imperador, contra Cirilo, que tomara aquela atitude porque muitos bispos, inclusive os legados pontifícios, haviam se atrasado para a sessão inaugural, por motivos pessoais ou propositadamente.

As assembléias conciliares se estenderam até outubro do mesmo ano, no meio de muito desentendirnento e confusão. Assim mesmo, apesar da pressão de Teodásio II, Cirilo, seus adeptos e os legados papais se mantiveram firmes e ―(...) frisaram bem clara a doutrina católica: Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. De Maria não nasceu a divindade, mas tampouco a simples humanidade. O que dela nasceu é a segunda pessoa da santíssima Trindade, verdadeiro Deus. Por conseguinte, Maria é a verdadeira Mãe de Deus. Finalmente foi deposto e excomungado o heresiarca (...).‖18

Os partidários de Nestório, apesar de sua condenação, persistiram em divulgar aquelas idéias errôneas, perturbando a unidade político- religiosa do império. Foram então perseguidos e desterrados, passando a pregar os ensinamentos do pseudo mestre na Armênia, Mesopotâmia, Pérsia e até mesmo na China.

As pesquisas e as discussões teológicas suscitadas não somente pelo Arianismo, mas também pelo Nestorianismo, a respeito de Jesus Cristo prosseguiram, embora a doutrina oficial já houvesse sido definida nos três

concílios supraditos. Nesse meio tempo, Eutíquio, sacerdote constantinopolitano, apoiado pelo novo

bispo de Alexandria, Dióscoro, supervalorizando excessivamente a natureza divina de Cristo, passou a ensinar que em Jesus só havia aquela natureza.

O patriarca de Constantinopla, Flaviano, convocou então um sínodo regional (448) para examinar o problema, no qual Eutíquio e sua tese acabaram por ser condenados.

Entretanto, a controvérsia teológica entre Cirilo de Alexandria e Nestório de Constantinopla havia contribuído para o desgaste político-religioso do Patriarca da ―Nova Roma‖, a ponto de o cânone do Concílio de Constantinopla, que estabelecia a preeminência do bispo daquela cidade sobre os demais prelados orientais, não haver sido levado em conta. Poder-se-ia dizer que prevaleceu a ortodoxia contra a heresia, fato esse que se adequa à verdade, mas por outro lado não se pode negar também que o bispo de Alexandria e a escola catequética daquela cidade assumiram um papel relevante sob os prismas teológico e político, em vista das

idéias propostas e atitudes assumidas. Eutíquio, ciente disso, imediatamente após sua condenação escreveu ao papa

Leão Magno (440-461), ao imperador Teodósio II e a Dióscoro, sucessor de Cirilo, justificando seu ponto de vista. O imperador se deixou convencer a ponto de haver

18 ROMAG, op. cit., p. 179-180.

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escrito ao bispo de Roma solicitando-lhe que revogasse a condenação de Eutíquio promulgada por Flaviano.

Por que esse pedido? O bispo de Roma, por acaso já tinha a essa época condições legais e eletivas para revogar a decisão de um outro bispo qualquer?

Noutras palavras já se estava admitindo o primado romano? A questão referente ao Primado Romano por si mesma é bastante

complexa e, como se sabe, suscitou e ainda provoca discussões entre os teólogos católicos (Hans Küng, Leonardo Boff), entre os membros de várias Igrejas cristãs e ainda entre os especialistas em História da Igreja e História das Idéias Políticas na Idade Média.

Não teríamos, pois, meios de nestas poucas linhas tratar adequadamente do problema ora apontado sem nos desviarmos do propósito de nosso estudo, embora

o mesmo se relacione indiretamente com o tema em apreço. Todavia é útil destacarmos alguns fatos ocorridos a respeito do assunto por

nós revisto, considerando que nos fornecem algumas pistas importantes que vêm de encontro ao nosso trabalho.

Já em 382, o bispo de Roma, Dâmaso (366-384), havia reunido um sínodo na referida cidade, quando então foi aprovada uma declaração em que os signatários declararam que a Igreja Romana devia exercer um primado que não podia ser nem

contestado nem compartilhado porque fora transmitido diretamente por Cristo a Pedro e nele aos seus sucessores. O documento acrescentava que ele é exclusivo da Sé Apostólica, expressão nova e rica em conceitos subjacentes, conforme observa Pacaut ―(...) tous les pouvoirs que les Apôtres avaient reçus em commun, tous les pouvoirs des évêques — le pontife recevant par là, et pour le moins, une autorité égale à celle du concile oecuménique (...)‖.19

Antes mesmo de Dâmaso, são Clemente Romano (92-101), santo Inácio de

Antioquia e santo Irineu, bispo de Lyon, salientaram a importância da Sé Romana em relação às demais igrejas particulares.

Santo Ambrósio, contemporâneo do bispo romano, Sirício (384- 399), o qual passou oficialmente a se intitular ―papa‖, proferiu a célebre frase que expressa o respeito à Igreja de Roma: ―Ubi Petrus ibi Ecclesia‖, e indubitavelmente ao seu titular.

Inocêncio I(401-417) nas palavras de Pacaut: (...) le plus ferme en cette matière, écrit que c‘est de Pierre, prince des Apôtres, que procèdent son

apostolat et son épiscopat dans le Christ,20 deu mais um passo importante na afirmação da idéia em tela.

19 Apud PACAUT, M., Histoire dela Papauté, p. 35, Fayard, Paris, 1976. 20 Idem, Ibidem, p. 35.

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Progressivamente os bispos de Roma foram tomando consciência de que se cada fiel ou mesmo cada bispo viesse a adotar normas particulares de conduta religiosa ou moral jamais se efetivaria o desejo de Cristo: ―Ut omnes unum sint‖21. Cristo ao fundar sua Igreja concedeu uma autoridade especial, em relação aos

demais bispos, a fim de que pudesse dirigi-la no propósito de realizar sua missão. Fundamentando essa concepção, havia a célebre passagem de Mateus: ―Tu é Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do reino do céu e tudo o que ligares sobre a terra será ligado no céu e tudo o que desligares na terra será desligado no céu e as portas do inferno não prevalecerão contra ela (...)‖.22

Foi justamente à época do pontificado de Leão I que se adotou o termo latino ―principatus‖ ao referir-se à Sé Apostólica e se passou a considerar o papado como uma espécie de monarquia e o sumo pontífice, enquanto herdeiro

dos poderes petrinos, como Princeps da Igreja. Numa carta endereçada aos bispos da província Vienense, em 445,

encontramos um trecho bem significativo a respeito de nossa asserção: ―(...) Sed huius muneris sacramentum ita dominus ad omnium apostolorum officium pertinere voluit, tu in beatissimo Petro, apostolorum omnium summo, principaliter collocavit et ab ipso quasi quodam capite dona sua velit in corpus omne manare, ut exsortem se mysterii intellegeret esse divini, qui ausus fuisset a Petri soliditate

recedere. Hunc enim in consortium individuae unitatis assumptum (...)‖.23 Noutra carta, dirigida ao bispo Anastácio de Tessalônica, os termos usados por

são Leão I são bem claros: ―(...) Hortor et moneo, ut quae pie sunt ordinata salubriterque disposita nulla concertatione turbentur (...). Nec enim poterit unitatis nostrae firma esse compago, nisi nos ad inseparabilem soliditatem vinculum caritatis astrinxerit: quia sicut in uno corpore multa membra habemus, omnia autem membra non eundem actum habent (...). Conexio totius corporis unam

sanitatem, unam pulchritudinem facit et haec conexio totius quidem corporis unanimitatem requirit, sed praecipue exigit concordiam sacerdotum. Quibus cum dignitas sit communis, non est tamem ordo generalis, quoniam et inter beatissimos apostolos in similitudine honoris fluit quaedam discretio potestatis, et cum omnium par esset electio, uni tamen datum est ut ceteris praemineret. De qua forma episcoporum quoque orta est distinctio, et magna ordinatione provisium est, ne omnes sibi omnia vindicarent, sed essent in singulis provinciis singuli, quorum inter fratres haberetur prima setentia, et rursus quidam in maioribus urbibus

constituti sollicitudinem susciperent ampliorem, per quos ad unam Petri sedem universalis Ecclesiae cura conflueret et nihil usquam a suo capite dissideret‖.24

21 Jo 17, 11. 22 Mt 16, 16-20. 23 In: PL MIGNE, v. LIV, col. 628. 24 Idem, Ibidem, p. 675.

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Quanto à herança petrina reinvindicada, sistematicamente afirmada pelos sumos pontífices, desde essa época, ao se referirem ao munus apostólico exercido por são Pedro, tratava-se de uma herança quanto aos poderes que o príncipe dos Apóstolos havia recebido de Cristo. Aplicava-se o princípio jurídico da sucessão

universal, isto é, uma instituição do Direito Romano, segundo a qual o herdeiro sucedia o falecido em todos os seus direitos, deveres e obrigações, tendo-se em vista que o heres era tido como sucessor legal do finado. Essa herança não se referia aos méritos, às qualidades ou aos defeitos da pessoa jurídica, no caso específico, do apóstolo Pedro.

Nota-se então claramente a distinção entre a função exercida por alguém e a própria pessoa. Importava, no tocante ao exercício das atribuições pontifícias, a capacidade plena quanto aos poderes que Jesus Cristo havia conferido a são Pedro

e na pessoa dele a todos os seus sucessores. Isso acontecia através da eleição pontifícia, todavia o eleito sucedia diretamente a são Pedro e não ao seu antecessor imediato, em razão da ―potestas iurisdictionis‖. E devido à transmissão da ―potestas ordinis‖ era indispensável a sucessão efetuar-se no tempo no espaço.

Ora, nas províncias ocidentais devastadas pelas invasões bárbaras, a relevância da cidade de Roma tomou novo impulso em razão de seu papel religioso. Quando todas as instituições romanas estavam desabando, a organização eclesiástica se

firmava cada vez mais. Convinha, pois, ao imperador reconhecer esse fato e foi justamente isso que Valentiniano III e Teodósio II fizeram através de um edito promulgado em 445: ―Os augustos imperadores Teodósio e Valentiniano a Ecio, varão ilustre, conde, patrício e general supremo de ambos os exércitos: Estamos convencidos de que a única defesa para nós e para nosso império é a proteção de Deus, e, a fim de merecê-la, a nossa primeira aspiração consiste em apoiar a fé cristã e nossa venerável religião. Portanto, visto que o primado da Sé Apostólica é

assegurado pelos méritos de são pedro, o príncipe dos bispos, junto com a posição especial da cidade de Roma e também pela autoridade do sagrado Sínodo que estabeleceu a primazia da Sé Apostólica, que ninguém ouse tentar alguma coisa contra a autoridade da mesma. Porque só agindo daquela forma em todos os lugares será preservada a paz entre as igrejas, quando toda a Cristandade reconhecer ao seu príncipe e cabeça (...). Entretanto não queremos somente acabar com a situação mais grave (...) mas também evitar que se origine no seio da Igreja a mais leve revolta e a fim de que não pareça que a disciplina eclesiástica foi

minimizada, ordenamos com sanção perpétua que não será permitido nem aos bispos da Gália nem aos de outras províncias, contrariando ao antigo direito, atentar contra a autoridade do venerável papa da Cidade Eterna. Tudo que a autoridade da Sé Apostólica tenha decretado ou venha a decretar, seja considerado lei para todos. Por conseguinte, qualquer bispo que venha a ser convocado em

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juízo pelo Romano Pontífice e não se apresentar, seja obrigado a fazê-lo pelo governador de sua província (...)‖.25

O próprio Estado Romano admitia a preeminência da Sé Apostólica sobre os demais bispados, embora esse decreto imperial não deixasse de revelar sua

tônica cesaropapista, segundo a qual a unidade eclesiástica era vital para a manutenção da ordem pública e nesse intuito a espada defenderia a cruz.

A resposta de são Leão Magno às cartas de Eutíquio e de Teodósio II foi dirigida a Flaviano, na qual o papa reiterava a condenação de 448, feita pelo patriarca de Constantinopla.

Entretanto, como as dissensões aumentassem, e Dióscoro, Eutíquio e seus aderentes pressionassem o imperador, este resolveu convocar um concílio na cidade de Efeso a se reunir em 449, no intuito de examinar o problema e

oferecer-lhe uma solução política. O concílio se reuniu conforme a convocação de Teodósio e quem o presidiu

foi Dióscoro. Os legados pontifícios nem puderam se manifestar, a carta do papa endereçada a Flaviano não pôde ser lida. Os padres conciliares, na maioria, partidários de Eutíquio e de Dióscoro, revogaram a sentença de condenação proferida contra o monge arquimandrita, depuseram Flaviano e acabaram por conseguir que Teodósio II confirmasse e ratificasse as atas do concílio.

Leão I, ao saber de tais atos, declarou-os absolutamente nulos, e dirigindo-se em carta à princesa Pulquéria, irmã do imperador, denominou o concílio de Latrocínio de Efeso‖ além de não haver confirmado na Sé Constantinopolitana Anatólio, indicado para substituir Flaviano.

Os protestos dos bispos antimonofisistas se intensificaram, As desordens, ocorridas por causa das nomeações levadas a cabo pelo partido vencedor em Efeso, ao invés de manter a ordem pública, agravaram ainda mais a situação. Nesse meio

tempo, Pulquéria foi proclamada Augusta, Teodósio II veio a falecer e o general Marcion, cristão ortodoxo, foi aclamado imperador (450-457) e, no fito de se legitimar no poder, casou-se com a imperatriz.

Marcion, a pedido de Leão I e no intuito de pôr fim à querela entre monofisistas e ortodoxos, convocou todos os bispos do império para se reunirem em concílio, no ano seguinte, na cidade de Calcedônia (451).

O 4º Concílio Ecumênico foi o mais concorrido na antiguidade cristã. Nele tomaram parte aproximadamente 600 bispos, na maioria das igrejas orientais,

embora a presidência efetiva dos trabalhos tenha cabido aos legados pontifícios. Na 6ª sessão, ocorrida a 25 de outubro, a carta de Leão I, dirigida a Flaviano, a

respeito da doutrina ortodoxa, foi lida e aprovada por todos os presentes. Definiu-se, pois, que em Jesus Cristo há uma só pessoa com duas naturezas, consubstancial

25 Idem, Ibidem, p. 637-638.

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ao Pai segundo a divindidade e consubstancial aos homens segundo a humanidade, sem confusão, nem transformação, sem divisão nem separação.

Pacaut observa o seguinte, a propósito desses eventos: “... si l‘on a recours au pape, si l ‗on reprend sa thèse, c ‗est parce que l‘on a besoin de lui et parce

que, sans son accord, la foi n‘a pas le caractère plein de l‘orthodoxie (...)‖.26 Dióscoro, Eutíquio e os monofisistas em geral foram condenados, depostos

de suas funções e banidos para regiões longínquas do império. Apesar disso essa heresia propagou-se rapidamente, sobretudo nas províncias orientais.

Todavia, numa das sessões conciliares, justamente em que os legados papais não se encontravam presentes e se deliberava a respeito da organização geral da Igreja, ao final da mesma promulgou-se o cânone 28º que veio a suscitar outra espécie de controvérsia, no tocante ao primado romano. Eis o texto: ―Seguindo em

tudo as decisões dos santos Padres e com o conhecimento do cânone dos 150 bispos o qual justamente acabou de ser lido.., nós também determinamos e decretamos os privilégios da santíssima Igreja de Constantinopla ou Nova Roma, porque os padres concederam privilégios, com toda razão, ao sólio da Roma Antiga, por ser aquela cidade imperial, e os 150 bispos (...), movidos pelas mesmas considerações, concederam iguais privilégios ao santíssimo sólio da Nova Roma, pensando com razão que a cidade, honrada pela presença do império e do senado e

gozando de iguais privilégios aos da antiquíssima Roma soberana, deveria igualmente receber idêntica posição nos assuntos eclesiásticos, sendo apreciada, estimada e ocupando o segundo lugar depois da mesma.

―Por isso decretamos que os metropolitas, mas apenas os metropolitas das dioceses do Ponto, Asia e Trácia, juntamente com os bispos daquelas dioceses que ficam entre os bárbaros, sejam ordenados pela já citada sede da santíssima igreja de Constantinopla. Que cada metropolita destas dioceses ordene os bispos de sua

província como foi declarado pelos divinos cânones; mas que, segundo foi dito acima, os metropolitas das dioceses aludidas sejam ordenados pelo arcebispo de Constantinopla, após realizarem as eleições costumeiras de acordo com a praxe e de lhes haverem sido comunicadas‖.27

Como se percebe os bispos orientais, apoiados num dos cânones do Concílio de Constantinopla, referente à preeminência da Sé constantinopolitana sobre as restantes dioceses orientais, confirmaram aquele decreto conciliar.

Os motivos desse ato foram vários, por si mesmos evidentes no documento

pelo menos alguns dentre eles. No entanto outras razões subjacentes num contexto mais amplo, tais como a predominância de bispos orientais naquela assembléia, fato que espelha não somente a impressionante difusão do Cristianismo,

26 Apud PACAUT, op. cit., p. 41. 27 In: Sacrorum Conciliorum Nova et Amplíssiina Collectio (Mansi). Tomo VII, col. 370.

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particularmente nas províncias orientais do Império bem como a importância econômica-política das mesmas em relação ao Ocidente, naquela época relativamente já desestabilizado em face da presença bárbaro-germânica por todos os cantos. Além disso, em razão do próprio Nestorianismo bem como do

Eutiquianismo havia a necessidade prático-administrativa de se reiterar oficialmente a preeminência do arcebispo Constantinopolitano sobre os demais prelados orientais. Além disso tudo, as querelas teológicas também assumiram um caráter nacionalista, reflexo de antigas aspirações libertárias contra a centralização excessiva da administração daquelas províncias, a fim de que ao menos uma região do império, a mais próspera, sobrevivesse em face à turbulência dos novos tempos. Por isso, a manutenção da ortodoxia, o césaro-papismo eram instrumentos válidos para o Estado, levando-se em conta o que acontecia.

Leão I aprovou todos os cânones do concílio de Calcedônia, exceto o 28º. Esse fato provocaria o estremecimento nas relações e na comunhão entre os bispados de Roma e de Constantinopla.

Numa carta dirigida ao imperador Marcion, Leão Magno foi incisivo a respeito da questão: ―Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, a sua glória, e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar por muito tempo o governo de Vossa demência. Todavia, o fundamento das coisas seculares é um e o

das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro, exceto aquele que está assentado na pedra que o Senhor deixou como alicerce. Quem cobiça o que não lhe pertence, acaba perdendo o que é da sua própria alçada. Que seja bastante para o acima predito [Anatólio] o fato de, pela ajuda de Vossa piedade e o meu consenso favorável, ter conseguido o bispado de uma tão grande cidade. Que ele não desdenhe de uma cidade real que não pode ser transformada na Sé Apostólica; e que de maneira alguma almeje guindar a uma posição mais elevada prejudicando

os outros. Porque os privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos decretos do sínodo de Nicéia, não podem ser derrubados por um ato sem escrúpulos, nem perturbados por meio de uma inovação (...) e se forem violadas com a minha conveniência (...) deverá ser condenado (...)‖.28

A disseminação dos movimentos heréticos anti-dogmáticos nas províncias orientais do império foi um acontecimento que merece uma consideração mais profunda além do que já se escreveu acima. Entretanto, seu estudo, que não deve ser negligenciado, viria no momento, a prejudicar nosso propósito inicial.

Tais movimentos não foram contidos em sua expansão graças aos decretos conciliares ou a repressão militar levada a cabo pelo Estado. As contendas entre heréticos e ortodoxos ganhou tal proporção nos últimos decênios do século V que o imperador Zenon (474-491) resolveu, através de um decreto

28 In: PL MIGNE, v. LIV. col. 993-995.

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chamado Henótico, promulgado em 482, conciliar monofisistas e católicos, particularmente os que viviam no Egito e em Constantinopla.

Os trechos mais relevantes do mencionado decreto dizem o seguinte: ―Nós bem como as igrejas existentes em todo o império não possuímos outra

doutrina ou símbolo da fé a não ser a expressa neste santo símbolo a respeito do qual declaramos que os 318 e os 150 padres assim já definiram (...) pois acreditamos que somente graças ao mesmo nosso império sobreviverá (...) este é, pois, o mesmo símbolo que os santos padres reunidos no concílio de Éfeso proclamaram e foi por essa razão que o ímpio Nestório foi destituído de seu ministério eclesiástico... junto com Eutíquio, pois ambos recusaram os decretos sobre a doutrina aos quais aludimos (...)‖.

―Confessamos que o unigênito Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo,

se encarnou verdadeiramente. É consubstancial ao Pai no que respeita à sua divindade e no tocante à sua humanidade é consubstancial a nós mesmos; que ele desceu do céu, é obra do Espírito Santo, tomou seu corpo de Maria Virgem, mãe de Deus; que ele e um só e não dois. Por isso afirmamos que são obra da mesma pessoa os milagres que fez e os tormentos que padeceu em sua carne.

―Por conseguinte, excluímos da comunhão aquelas pessoas que o dividem, ou que confundem suas naturezas ou dizem que tomou um corpo imaginário,

pois a encarnação ocorreu sem a mancha do pecado, e da Virgem Maria não nasceu um segundo Filho, visto que a Trindade assim permaneceu, embora haja encarnado uma de suas pessoas.

―(...) E condenamos pelo anátema qualquer um que pense ou, tenha pensado de outra forma, agora ou noutra ocasião, ou no concílio de Calcedônia (...). Principalmente a Nestório e a Eutíquio (...)‖.29

À primeira vista o texto cesaropapista assumia plenamente a ortodoxia

niceno-constantinopolitana e efesina. Todavia a condenação do concílio de Calcedônia revelava uma sinal de ruptura com a doutrina católica, o que na prática resultou em maiores confusões e discórdias, visto que nenhum dos grupos religiosos nele mencionados se consideravam legalmente condenados em face de tanto jogo de palavras diplomáticas. Em suma os ortodoxos sentiram-se traídos, em razão do Henótico sistematizar a doutrina proposta por Leão I e reafirmada pelo concílio de Calcedônia. Os monofisificatas, persegui- dos e acostumados já a reações violentas, não viam com bons olhos a elasticidade da doutrina religiosa

oficializada por Zenon. Quando as notícias a respeito do que ocorria nalgumas províncias orientais

e o Henótico chegaram a Roma, o papa Félix III (483-492) enviou legados portando cartas dirigidas ao patriarca Acácio e ao imperador, solicitando-lhes

29 EVAGRIUS, in Historia Ecclesiastica XIII, 14, cit. por Artola.

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que revogassem tal decreto e permanecessem fiéis à doutrina de Calcedônia. Mas ambos permaneceram irredutíveis e não aceitaram a orientação pontifícia.

Esse fato obrigou o papa a reunir um sínodo em Roma, em julho de 484, ao qual compareceram 77 prelados, a fim de estudar a questão acaciana. Os padres

sinodais junto com o sumo pontífice acabaram por destituir a Acácio da Sé Episcopal de Constantinopla.

Mas o imperador Zenon, apesar de receber os legados papais que lhe entregaram a carta na qual Félix III destituía a Acácio, ignorou tal fato, mantendo o aludido patriarca em sua arquidiocese até 489, quando veio a falecer. Dois anos mais tarde, Zenon faleceu também. Sucedeu-lhe Anastácio, adepto do monofisismo.

II— GELÁSIO I: AS IDÉIAS E A ATUAÇÃO PONTIFICIAL30

Quando Anastácio foi sagrado imperador pelo novel patriarca Eufêmio, este pediu-lhe que revogasse o Henótico e se mantivesse fiel à doutrina formulada e promulgada no concílio de Calcedônia. Mas o imperador, em face de suas convicções religiosas pessoais, não se comprometeu em nada com Eufêmio, pelo

contrário, discretamente levado por motivos político-econômicos, protegeu os bispos monofisificatas e os adeptos dessa heresia que viviam no Egito, na Síria, na Palestina e na Fenícia.

Esse fato levou Eufêmio a reunir um sínodo em 492 com o propósito de reconfirmar as teses e decretos estabelecidos em Calcedônia, bem como recusar a doutrina contida no Henótico e a profissão de fé que Anastácio havia feito, apoiado naquele decreto imperial quando fora sagrado.

O imperador ficou insatisfeito com aquelas medidas tomadas por Eufêmio, e, por coincidência ou não, o aludido patriarca foi vítima de dois atentados misteriosos.

No princípio de março de 492, Gelásio I iniciou sua gestão papal. Esse pontífice romano era natural da África, mas desde cedo fora educado na Cidade Eterna e na escola catequética de são Leão I. Além de uma vasta bagagem cultural, adquiriu enorme experiência nos assuntos e problemas eclesiásticos, religiosos e

políticos existentes naquela ocasião, pois havia sido secretário de Félix III, durante seu pontificado. Isto lhe havia proporcionado também uma ocasião para redigir inúmeras cartas a dignitários eclesiásticos nas quais defendia zelosamente a ortodoxia contra o monofisismo e seus aderentes.

30 Os escritos de são Gelásio I se encontram no volume LIX da Patrologia Latina. A quinta parte da

obre citada é pseudo-gelasinana e remonta à época do papa Dâmaso (382), cujo autor se desconhece.

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O pontificado de Gelásio I ocorreu justamente no momento em que diversos povos germânicos haviam se tornado os senhores das antigas províncias do Ocidente e até mesmo da Itália. Por exemplo, Clóvis, líder franco, conquistava a Gália palmo a palmo. Teodorico, ariano e rei dos Ostrogodos, desde 493 tornou-se

rei da Itália. Os Visigodos estavam instalados na Península Ibérica, os Vândalos no noroeste africano. Aos imperadores não restava outra alternativa se não a de reconhecer seus líderes como reis ―federados‖ daquelas regiões, a fim de que estes os aceitassem pelo menos nominalmente como único soberano de todos, conforme a teoria universalista concebida pelos chefes de estado romanos.

Logo que se tornou, papa, Gelásio informou a Anastácio do acontecimento. Entretanto não fez o mesmo com Eufêmio, por considerá-lo fora da comunhão com Roma devido ao ter sido pusilânime em relação ao imperador monofisificata e

haver conservado o nome de Acácio nos dípticos da igreja Constantinopolitano. Foi justamente Eufêmio que tomou a iniciativa de escrever ao papa e o fez por

duas vezes, visto não ter recebido resposta a primeira carta. Ambas não se conservaram mas a epístola de Gelásio nos sugere o seu conteúdo: ―(...) Gostarias que nós nos humilhássemos ainda mais? Que consentíssemos que nas celebrações dos mistérios divinos se recitasse o nome dos hereges, dos que foram condenados e dos seus sucessores? Deveríamos precipitarmos de olhos abertos no abismo? Não

disseste que recusavas Eutíquio e os outros hereges? Recusa, pois, igualmente os que estão em comunhão com os sequazes de Eutíquio. Disseste que Acácio foi condenado, embora permanecesse católico. No entanto, ele estava separado de nossa comunhão, devido estar em união comum com os hereges. E, levando em conta que veio a falecer nessa condição, não podemos aceitar que seu nome ainda seja incluído entre os nomes dos bispos católicos.

―Admiramos que declaraste aceitar a doutrina de Calcedônia e não condenaste,

em geral e particularmente, os que estavam em comunhão com os fautores daquelas pessoas que haviam sido anatematizadas. O concílio de Calcedônia não condenou Eutíquio e Dióscoro? E assim mesmo Acácio estava em comunhão com Timóteo Eluro e Pedro Monge, hereges eutiquianistas. Poderias afirmar que o aludido Pedro, com quem Acácio estava em comunhão, foi absolvido? Poderias apresentar-nos provas de como ele se purificou do eutiquianismo e como não esteve em comunhão com Eutíquio?

―Não deves, pois, olvidar tua declaração, segundo a qual professas a fé

católica, e por isso mesmo de tirar dos dípticos o nome de Eutíquio. Não basta falar. É teu dever mostrar com gestos que renunciaste à comunhão com os hereges e com todos aqueles que estiveram em comunhão com eles (...) jamais um bispo deve se omitir, quando se trata de anunciar a verdade, pela qual na

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condição de ministro de Nosso Senhor Jesus Cristo, se preciso for, deverás oferecer tua própria vida (...)‖.31

Cabe indagar: Acácio, patriarca de Constantinopla, era monofisificata ou não? Quem eram os outros personagens desconhecidos mencionados na carta a

Eufêmio? Na verdade, respondendo à segunda indagação chegaremos à resposta da primeira. Timóteo Eluro foi um bispo monifisista de Alexandria e igualmente Pedro Monge. Este e Acácio, segundo Romag,32 teriam auxiliado Zenon a redigir o dúbio Henótico. O patriarca agira mais em função da política imperial favorável ao monofisismo do que aos interesses da unidade doutrinária, e por isso Félix III o excomungou em 484. Ademais, os católicos de Alexandria haviam eleito o patriarca a João Talaia, e Acácio e Zenon apoiaram a Monge, eleito pelos monofisistas. O próprio Monge também acabou excomungado por ser usurpador e

adepto de Eutíquio. Gelásio, em face do exposto, agiu com firmeza não só como papa, mas

também impôs a Eufêmio que, na condição de patriarca, de primaz para o Oriente, agisse da mesma forma e não se deixasse guiar pelos interesses do Estado em detrimento da religião, enfim da própria unidade eclesial, notadamente considerando-se que a doutrina católica estava em questão. Noutra passagem da carta pontifícia, Gelásio pergunta a Eufêmio porque ele não o informara a respeito

de sua eleição para o bispado de Constantinopla, segundo o procedimento habitual dos bispos-eleitos em comunhão com Roma.

Os gestos ambíguos de Eufêmio não agradaram nem a Roma nem a Constantinopla. Dois anos mais tarde (494), Anastácio o desterrou para longe das fronteiras imperiais e deu-lhe um sucessor nos moldes césaro-papistas.

Noutra carta Gelásio foi mais incisivo ainda quanto aos problemas em questão: ―(...)Eles têm coragem de citar os cânones e são os primeiros a violá-los (...)

fundamentados em qual concílio tinham o direito de destituir João de Alexandria de sua sede, apesar de o mesmo nem antes nem depois haver admitido sua culpa? Digamos que foi o imperador que tomou aquela atitude. Perguntamos: baseado em quais cânones ou regras podia fazê-lo? Por que Acácio permitiu que ele fizesse uma ação ilegítima? Deus disse que é culpado não somente aquele que erra, mas também aquele que aprova os que erraram... Se os bispos da segunda e terceira sedes, podem ser depostos, bem como outros prelados inocentes, por que não se pode destituir o patriarca de Constantinopla, visto se encontrar em comunhão com

os hereges? (...). Tratando-se da religião, segundo os cânones, compete à Se Apostólica o supremo pode para julgar (...). Ninguém, mesmo que seja cristão muito poderoso, se arroga tal direito, exceto se for perseguidor da fé. (...). Por isso,

31 Epístola n. 1. In: PL MIGNE v. LIX. 32 ROMAG, op. cit., p.184.

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não receamos ver-se extinguir o poder do julgamento apostólico, fundamentado-nos nas palavras de Cristo, na tradição dos antigos e na autoridade dos cânones, de modo que a Sé Apostólica deve julgar sempre toda a Igreja.(...)‖33

As teses gelasianas são por si mesmas bem claras: o sucessor de Pedro e seus

herdeiros exercem o primado sobre as igrejas particulares. O imperador, mesmo sendo cristão e desfrutando de um poder ímpar, não tem o direito de se imiscuir e interferir em assuntos eclesiásticos, devido a não possuir competência e direito para tal. Se os bispos são coniventes com atitudes dessa espécie, naturalmente ilegítimas, o sumo pontífice tem o direito de depô-los, porque a Sé Apostólica é responsável pela fidelidade à ortodoxia, à disciplina eclesiástica, e enfim detentora do múnus apostólico para julgar os transgressores dos postulados cristãos, pois, conforme o próprio Gelásio, o papa é o detentor supremo dos poderes legislativo,

executivo e judiciário na Igreja: ―(...) O que a Sé Apostólica afirma em um sínodo ou concílio, tem valor jurídico, o que ela recusa, não tem força legal (...).34

A determinação e a firmeza de Gelásio na defesa da unidade eclesiástica, da integridade doutrinaria, do primado e supremacia da Sé Apostólica, podem aparentar uma obstinação inflexível, mas por outro lado não se pode olvidar que ele tinha consciência plena de sua missão como pastor supremo e das responsabilidades que ela implicava, ademais os profundos conhecimentos

teológicos que possuía garantiam-lhe respaldo para seus gestos, se não nos esquecermos também da doutrina paulina a respeito da missão episcopal.35

Prelados de diversas regiões do mundo cristianizado também reconheceram a autoridade e o zelo de Gelásio e legitimaram seus gestos quanto à defesa da catolicidade e da disciplina eclesiástica: ―Ao Senhor Santo Apostolo e Bento Padre dos Padres, Gelásio, papa da cidade de Roma, os humildes bispos da Dardânia:

―Recebemos com o devido respeito e devoção as salutares prescrições do teu

apostolado e rendemos solene ação de graças a Deus onipotente e à tua beatitude, por haver-se dignado visitar-nos por meio de uma admoestação pastoral, contendo um ensinamento evangélico.

―Por isso, é nosso desejo obedecer às tuas ordens em todos os aspectos, conforme recebemos o ensinamento de nossos padres, observando inviolavelmente os mandamentos da Sé Apostólica e guardando na proporção que convém, fiel e irrepreensível submissão à fé ortodoxa da qual tu és o guardião.

―Quanto a Eutíquio, Pedro, Acácio e quaisquer que sejam seus sectários e

aderentes, mesmo antes de haver recebido tuas ordens, nós nos esquivávamos deles como se fossem portadores e transmissores da pestilência. E agora, após havermos

33 Epístola n. 4, dirigida a Fausto, chanceler do rei Teodorico. 34 Epístola n. 8, In: PL, vol. Cit. 35 Cf. as epistolas paulinas dirigidas especialmente a Tito e Timóteo.

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recebido a admoestação da Sé Apostólica, à qual desejamos servir com dedicação e sem mácula, conforme os preceitos e estatutos dos padres, ser-nos-á mais importante ainda afastarmo-nos daquela peste e fugir de qualquer pessoa que fez ou faz parte da seita proposta por Eutíquio e assumida por Pedro e Acácio, bem

como daquelas pessoas que entrarem em comunhão com seus partidários. (...)‖36. Em 494 ocorreram fatos importantes que marcaram o pontificado de Gelásio. Primeiramente convocou um sínodo ao qual compareceram 70 bispos. O

trabalho principal dos padres sinodais consistiu em catalogar e classificar todos os livros canônicos da Sagrada Escritura, os livros apócrifos da igreja primitiva e os livros proibidos, escritos por hereges, desde as origens do Cristianismo até aquela ocasião. O sínodo romano também confirmou novamente as decisões tomadas pelos 4 Concílios Ecumênicos, aos quais já nos referimos.

Nesse mesmo ano o imperador Anastácio enviou à Itália alguns legados para tratar com Teodorico assuntos de interesse do Império. Esses legados tinham ordem expressa de não se avistarem com Gelásio, devido às relações tensas entre a Igreja e Estado por causa de monofisismo e do cisma acaciano.

O sumo pontífice soube das ordens imperiais e fez chegar aos ouvidos de Fausto o Irineu, embaixadores de Anastácio, o seu descontentamento por aquele gesto do imperador. Eles ao regressarem a Constantinopla informaram Anastácio

das queixas do papa. Quando regressaram novamente à Itália, disseram pessoalmente a Gelásio que o imperador havia tomado aquela atitude porque o papa não lhe havia comunicado sua eleição ao papado. Esses fatos levaram o santo padre a escrever a conhecida epístola ao imperador, objeto ainda hoje de inúmeras interpretações. Vejamos o texto da mesma na íntegra:

―Não foi por causa de minha eleição, mas porque os teus enviados a Roma espalharam por toda a cidade que não era do teu agrado que se

apresentassem para visitar-me, bem como disseram-me que não te escrevesse a fim de não ser inoportuno.

―Contudo, pelo que conheço de tua benevolência e diante da ansiedade revelada pelo fato de não haver recebido uma carta minha, sentir-me-ia culpado se me mantivesse em silêncio.

―Por isso, nascido romano como sou, amo e reverencio em ti, glorioso filho, o Príncipe Romano. E como cristão, desejo que aquele que é tomado pelo zelo divino, conhecendo a verdade, venha a agir como tal.

―Na condição de pontífice da Sé Apostólica que sou, e ao constatar alguma falha na observância da fé católica, esforço-me para corrigi-la, apesar de minhas limitações, com admoestações oportunas, visto que me foi imposta a

36 Apud LABBE, Historie Ecciesiastique, tomo IV. col. 1665.

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pregação da palavra divina, peço-te que me ajudes mais do que S. Paulo, quando recebeu a missão de anunciar o Evangelho.

―A presunção humana pode erguer a cabeça contra os estatutos divinos, mas o pretensioso jamais vencerá. E até seria admissível desejar aos

adversários que sua ambição lhes caísse em cima com mais violência desde quando causasse prejuízos à religião.

―Eu suplico, por conseguinte, à tua piedade, a fim de não condenares pela arrogância um dever de interesse divino. Não se diga mais que um príncipe romano considera ultraje dizer a verdade.

―Augusto imperador, são principalmente dois os poderes através dos quais se governa o mundo: a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Destes dois, é mais grave o peso dos sacerdotes, pois estes deverão prestar contas na

ocasião do julgamento divino, inclusive pelos próprios reis da humanidade. ―Na verdade, tu sabes, filho clementíssimo, que em razão de tua dignidade és o

primeiro de todos os homens e o imperador do mundo, todavia sê submisso aos representantes da religião e suplica-lhes o que é indispensável para tua salvação.

―Com efeito, no que se refere à administração dos sacramentos e à disposição das coisas sagradas, reconhece que deves submeter-te à sua orientação e não seres tu quem deva governá-lo, e assim nas coisas da religião deves submeter-te ao seu

julgamento e não querer que eles se submetam ao teu. Ora, no tocante ao governo da administração pública, os próprios sacerdotes, cientes de que o poder te foi conferido pela vontade divina, obedecem às tuas leis, pois no que se refere às coisas do mundo não lhes agrada seguir orientação diferente.

―De que modo deves obedecer àquelas pessoas a quem foi confiada a administração dos mistérios divinos? Assim como aos pontífices compete uma responsabilidade não pequena, se omitirem algo que convenha ao culto divino,

assim também lhes compete uma responsabilidade não menor se depreciarem o que devem obedecer. De modo que a todos os sacerdotes em geral, que administram retamente os divinos mistérios, convém que os corações dos fiéis lhes sejam submissos. Tanto mais, por acaso, não se deve prestar obediência à cabeça da Sé Apostólica, a quem a mesma divindade quis que todos os sacerdotes lhe fossem submissos e a veneração da Igreja sempre honrou como tal? Como Tua Piedade sabe, nada pode colocar-se, graças a recursos puramente humanos, acima da posição daquele a quem o chamado de Cristo preferiu a todos os outros e a

quem a Igreja reconheceu e venerou sempre como seu primado. As coisas fundamentais por disposição divina podem ser atacadas pela vanglória humana, mas não podem indubitavelmente vir a ser conquistadas por nenhum poder humano. Praza aos céus que a audácia dos inimigos da Igreja não lhes seja também definitivamente perniciosa, visto que nenhum poder terá condições de abalar as bases estabelecidas pelo próprio autor da nossa religião.

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―Na verdade, o fundamento divino está firme. Por acaso a religião sucumbiu às novidades, por enormes que fossem, quando algum dos hereges pontificava em sua arrogância? Pelo contrário, isso não aconteceu e invencível permaneceu quando aos olhos dos incrédulos parecia estar próxima de seu fim.

―Portanto, eu te peço que esses homens desistam de se aproveitar das perturbações que afligem a Igreja, para como pretexto aspirar pretensiosamente àquelas coisas que lhes são proibidas. Não permitas que eles as consigam, pois é necessário que guardem sua posição correta perante Deus e os homens‖.37

Um dos aspectos mais relevantes nesse longo documento pontifício é a firmeza e a autenticidade de Gelásio. Por que mascarar a verdade dos fatos com subterfúgios, com desculpas? Os hereges usufruem do apoio imperial, ocupando bispados que por direito e justiça não lhes pertencem, servem-se da política

imperial em benefício próprio, causando prejuízos à religião e à Igreja, embora sejam instrumentos dóceis e imorais nas mãos do Estado, que necessita deles para atingir seus objetivos.

Gelásio, como cidadão romano, respeita a autoridade constituída por Deus para governar o império e assim considera a pessoa de Anastácio. Entretanto, não há reciprocidade de gestos. Ele, na condição de papa, é o responsável pela ortodoxia, pela unidade eclesial, chamado que foi pelo

Cristo para exercer o múnus apostólico. Por isso, agradando ou não, acha-se na obrigação moral do corrigir os que

erram, inclusive ao próprio Anastácio, que se diz cristão. O santo padre considera uma falha de sua parte não advertir ao imperador a

respeito dos males causados pelo monofisismo e seus fautores, tendo em vista que o mesmo se mostrou desejoso de reavivar os contatos com o papado. Por tal razão, mesmo que pareça desrespeitoso usar de franqueza para com o imperador,

supremo governante universal, ele, Gelásio, não se furtará em dizer a verdade, particularmente no que se refere às coisas de Deus, que naturalmente ocupam um lugar preeminente em relação às demais.

Os postulados gelasianos referentes de modo específico às relações entre Igreja e Estado estão enunciados nos conceitos auctoritas e potestas. Em nossa língua e na terminologia jurídica atual esses termos são sinônimos. Entretanto, em latim e conforme o Direito Romano cada um deles tinha um significado particular.

Auctoritas designava a própria fonte do poder, una e indivisível, enquanto

potestas significava uma fração da autoridade proveniente da mesma e exercida por alguém. O supremo mandatário romano era detentor da auctoritas, enquanto, por exemplo, os governantes das províncias, os duces, os praetores, e até mesmo os reis bárbaros, exerciam somente a potestas.

37 Epístola n. 8, dirigida ao imperador Anastácio, In: PL, MIGNE, volume citado.

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Numa sociedade nova, alicerçada na cultura romana e no Cristianismo, ocorreram algumas alterações importantes. O sumo pontífice recebeu diretamente de Cristo, na pessoa de são Pedro, a autoridade para dirigir a Igreja, depositária da Revelação salvífica. O imperador, indubitavelmente, exerce um poder cuja origem

é divina, mas que lhe foi concedido mediatamente pelo desígnio da Providência, de modo que em razão da origem (mediata e imediata) o poder imperial é inferior espiritualmente em dignidade à autoridade pontifícia.

O mesmo acontece quanto à finalidade. Os sacerdotes, em especial o santo padre, são responsáveis pela salvação de todas as almas, mesmo as dos potentados do universo, e por esse motivo têm a obrigação moral de orientá-los e adverti-los a respeito do que é certo, segundo os ensinamentos do cristianismo, e ainda de combater e denunciar o que é ilícito e injusto, de

acordo com os princípios religiosos. Por outro lado, a competência dos governantes seculares é imanente, pois

restringe-se aos aspectos materiais da vida terrena, quer dizer, à consecução do bem comum, manifesto no progresso e desenvolvimento sócio-econômico da população, na ordem pública, no cumprimento e observância da lei e da justiça, na paz externa, etc. Por conseguinte, nesses aspectos o clero deve acatar as determinações do Estado.

Mas o propósito de Gelásio, após estabelecer os princípios básicos de sua argumentação, não foi definir, em razão dos mesmos, a supremacia da Igreja sobre o Estado ou dos sacerdotes (hierocracia) sobre os governantes seculares. O sumo pontífice quis mostrar que ocorria uma inversão de valores, suscitada por motivos econômico-políticos, visto que o monofisismo grassava em províncias (Egito, Síria, Fenícia) economicamente vitais para a sobrevivência do império, enfim, para a própria segurança do Estado. E tais motivos, embora politicamente justificáveis,

tornavam-se moralmente ilícitos desde que envolviam um problema religioso, a preservação da ortodoxia.

Como o império aderiu ao Cristianismo e seu governante supremo se diz cristão, tem a obrigação moral de restabelecer a ordem natural das coisas e, no âmbito religioso, observar a ortodoxia, impedir a difusão das heresias, ouvir e acatar as decisões do clero legítimo, principalmente do sumo pontífice que dirige e lidera a Igreja universal. Anastácio, ao desejar a unidade e a paz imperial, não deve ser o primeiro a contribuir para a perpetração do cisma e da heresia e para a

indisciplina eclesiástica. Agindo assim, revela uma atitude contraditória com sua função, e, o que e mais grave, contrária ao próprio autor da religião cristão e da harmonia e ordem universal.

Uma outra carta de Gelásio revela e destaca muito bem suas legítimas intenções: ―(...) Agora não pretendemos demonstrar ou provar novamente se sua comunhão foi legítima, tendo em conta que não ocorreu de modo regular. Um

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bispo da Segunda Sé, não pode nem deve ser destituído ou restabelecido por quem quer que seja, sem a anuência da Primeira Sé, exceto se, por acaso, toda ordem vier a ser revogada e não se reconhecer mais a distinção, estabelecida pelos antigos estatutos de nossos Padres, entre a primeira, a segunda e a terceira Sés, e se ignorar

que o corpo, estando privado de sua cabeça, faz com que todos os membros se digladiem entre si... fundamentados em quais razões deveríamos obedecer às outras sedes, as quais negligenciaram a reverência devida à Sé Apostólica(...)?‖38

Gelásio I exerceu as funções pontifícias por mais dois anos, com a mesma dedicação e coragem a serviço da Igreja. Para alguns autores, será relembrado como o ‗pai‖ da hierocracia medieval, para outros, como o primeiro autor que soube precisar e distinguir com exatidão os âmbitos de atuação da Igreja e do Estado. Apesar de seus esforços, o cisma acaciano e suas conseqüências vieram a

ser resolvidas apenas durante o governo de Justino I(518-527), após muitas conversações entre Roma e Constantinopla.

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Epístola n. 14, dirigida aos bispos gaudeses, In op. Cit.

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SACRALIZAÇÃO DO PODER TEMPORAL Gregório Magno e Isidoro de Sevilha

DANIEL VALLE RIBEIRO Universidade Federal de Minas Gerais

A SÉ ROMANA E BIZÂNCIO

O desmoronamento do sistema político ocidental (476), decorrente da queda do Império Romano diante das populações germânicas, deixou a Igreja desprotegida, em meio extremamente hostil. Demais, a autoridade do bispo de Roma não era reconhecida pelos bárbaros que ocuparam a Itália, a Espanha e a África do Norte, por adotarem o arianismo.

A presença do bárbaro e querelas religiosas não interessam nem ao papa nem ao imperador. Malgrado pequenas oscilações, as relações entre a Igreja e o Estado

tendem para o equilíbrio, no final do século V. Prevalece a tentativa da superação de dificuldades, que o objetivo é comum. As relações harmoniosas entre os dois poderes dependiam, evidentemente, do reconhecimento mútuo das prerrogativas de cada um. Várias razões, porém, concorriam para dificultar a separação dos ofícios: o prestígio de que gozava a monarquia sagrada e, sobretudo no Ocidente, a destruição da antiga idéia romana de Estado e a penetração progressiva do espiritual na esfera do Estado, cujo papel é posto a serviço da Igreja.1

Diante das dificuldades no Ocidente, a Sé Romana busca apoio em Bizâncio.

Mas fica entre dois fogos: de um lado, sofre a pressão dos bárbaros; do outro, está Bizâncio, que chamada a protegê-la, tem de ser tratada com absoluta cautela. Entre a Igreja e o Estado imperial existirá sempre uma desconfiança oriunda daquilo que

1 FOLZ, Robert, L ‗idée d‘Empire en Occident du Vle. auXie. siècles. Paris: Aubier, 1953. p. 17. Sobre a noção romana de Estado, cf. FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Histoire des institutions

politiques de l‘ancienne France. La Gaulle romaine. Paris: Hachette, 1888-1892. p. 147-63.

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um historiador chamou, com singular propriedade, ―l‘incontro di una religione troppo giovane con uno stato troppo vecchio‖.2 De sua parte, a Igreja de Roma nada pode contra a poderosa teocracia bizantina. Houve mesmo momentos de intervenção violenta do poder temporal, da qual resultou a deposição, o exílio e a

morte de papas. O século V tinha sido o da luta pela emancipação do papado e da edificação da liberdade da Igreja com Inocêncio I, Leão I e Gelásio. O século VI apresentará dificuldades, mas, apesar de alguns momentos graves, sobretudo na época de Justiniano, as relações com o Império Bizantino tendem a distender- se.

Justiniano (527-565) dá uma definição clássica do poder imperial (basileia) e do poder espiritual (sacerdotium), na 6ª Novela do seu Código, publicada a 16 de março de 535: ―Os maiores dons que Deus, na sua infinita bondade, fez aos homens são o sacerdotium e o imperium. O sacerdócio cuida dos interesses

divinos, o Império dos interesses humanos, cuja fiscalização lhe cabe. Ambos procedem do mesmo princípio e conduzem a vida humana à sua perfeição. Eis porque os imperadores têm em alta consideração a honra dos sacerdotes, pois estes rezam continuamente a Deus por eles. Quando o clero possui um espírito justo e se entrega inteiramente a Deus, quando o imperador governa a república que lhe é confiada, então resulta uma harmonia muito proveitosa ao gênero humano. Assim, então, os verdadeiros dogmas divinos e a honra do clero estão

à frente de nossas preocupações‖.3 Na verdade, Justiniano jamais abriu mão do direito de exercer vigilância sobre

a Igreja e velar pelos ―verdadeiros dogmas divinos‖. Embora afirmasse a superioridade do sacerdotium, de forma alguma subscreveu a doutrina gelasiana. Seu interesse pela teologia não lhe parece ter propiciado uma convicção pessoal em matéria de fé. Autocrata nato, não tinha dúvida da preeminência do poder imperial. Eram freqüentes as manifestações de veneração à Sé Romana: ―Nós nos

esforçamos para nos manter em união com vossa Sé Apostólica e manter as Igrejas no seu estado. Porque em todas as coisas, nosso cuidado é aumentar a glória e a autoridade de vossa Sé‖,4 asseverava ao Sumo Pontífice. Entretanto, considerava o papa simples patriarca do Ocidente, ou seja, no mesmo plano do patriarca residente em Constantinopla. Sua política religiosa pode não ter sido deliberadamente contra Roma, mas sem dúvida suas intervenções em matéria religiosa tornaram dramáticas as relações entre o papado e o Império. Sobretudo o conflito gerado pela querela dos ―Três Capítulos‖ tem sido considerado pelos historiadores da

Igreja como ―uma das mais ignominiosas derrotas do papado‖.5

2 ARCARI, Paola Maria. Idee e sentiment politici dell‘Alto Medioevo. Milano: A. Giuffrè, 1968. p. 53. 3 Citada por DVORNIK, François. Byzance et la primauté roinaine. Paris: Éd. du Cerf, 1964. p. 62. 4 Justiniano ao papa Júlio II (533). Coll. Avellana, 84. 5 RAHNER, Hugo. L ‗Église et l‘État dans le christianisme primitive. Paris: Éd. du Cerf, 1964. p. 224.

A documentação encontra-se às p. 244-57.

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As pressões de alguns imperadores contra os papas provocou um distanciamento entre os dois poderes, mas propiciou o rumo da Igreja romana, que passou a ter mais firmeza diante das questões com o Império. Para François Dvornik, o que favoreceu o rompimento entre Roma e Constantinopla, ou, se

preferirmos, a ruptura da ordem eclesiástica estabelecida por Justiniano, foi a destruição do Ilírico pelos ávaros e eslavos, juntamente com a perda do Mediterrâneo por Bizâncio. Por outro lado, as invasões germânicas introduziram elementos novos na civilização romana, enquanto substratos helenísticos e orientais tomaram na cultura e na vida bizantina lugar preponderante. Isso fez com que Roma e Constantinopla seguissem rumos diferentes. O afastamento que se operou entre o Oriente e o Ocidente talvez pudesse ter sido evitado se o ponto do Ilírico, nos Balcãs, não tivesse sido destruído.6 Contudo, não se pode esquecer que

o cânon 28 do Concílio da Calcedônia (451), ao afirmar a plena igualdade entre os bispos da Nova e da Antiga Roma,7 fazia prever o choque agudo entre os dois grandes centros religiosos.

Foi exatamente a presença dos lombardos na planície do Pó (568) um dos fatores favoráveis ao papado. Ocupado com o avanço dos búlgaros, persas e árabes, o Império Bizantino não pôde desguarnecer suas defesas orientais e atender o pedido de socorro que lhe chegava da Itália. O outro fator foi a expansão do Islã.

A queda da Síria, do Egito e da África nas mãos dos árabes aumentou o prestígio do papa no Ocidente e acabou por eliminar importantes rivais do bispo de Roma — os patriarcas de Alexandria, Antioquia e Jerusalém. O triunfo do Islã, como acertadamente afirmou Ferdinand Lot, propiciou indiretamente o ―engrandecimento de Roma em virtude da ruína das grandes cidades do Oriente, berço do Cristianismo‖.8 Sua rival agora era apenas Constantinopla.

De onde vem esse poder temporal do papado? Sabemos pela correspondência

de Gregório Magno que a Igreja possui considerável patrimônio, recursos econômicos de monta, e beneficia-se de donativos. O papado é o maior proprietário da Itália. Outro fator favorável: inexiste um poder civil em Roma. E o papa quem socorre a população menos favorecida, protege os prisioneiros e os escravos, aprovisiona e defende a cidade contra as invasões. Torna-se a única força capaz de opor-se aos lombardos, De tudo isso lhe advém grande prestígio. O papa é o senhor da cidade e o único representante do Império. A Igreja, a herdeira da auctoritas de Roma.

6 DVORNIK. Op. cit. p. 68-9. 7 MANSI. 7, 445. 8 LOT, Ferdinand. La fin du monde antique et le début du Moyen Age. Paris: Albin Michel,

1951. p. 329.

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GREGÓRIO MAGNO E A REALEZA CRISTÃ

É nesse quadro de enormes transformações que transcorre o pontificado de Gregório Magno (590-604). O novo pontífice é um romano perfeitamente convencido de que o Império permanece como a expressão política ideal do universalismo cristão. É súdito fiel do imperador. Essa fidelidade toca por vezes à humildade, que a muitos parece subserviência.

Colocado entre ―as agitações do mundo e as obrigações do governo‖, esse

místico trocaria de bom grado o trono pontifício pela vida monástica. Como tentou fazer, aliás, quando declinou dc sua eleição em carta ao imperador, a quem cabia, segundo o costume, ratificar a escolha do pontífice.

Perfeitamente identificado com a dura realidade do seu tempo, é levado a aproximar-se das monarquias que se constituem no Ocidente, de cujos reis assume a direção espiritual. Teve o mérito de elevar-se ―acima das contingências e de propor aos seus contemporâneos uma concepção cristã do homem e do mundo na

qual a reflexão sobre o poder ocupa lugar especial.9 Com efeito, a exegese prática de Gregório Magno transparece na sua teoria da realeza cristã.

Algumas obras do papa — Homilias sobre Ezequiel, Moralia in Job — foram iniciadas antes de sua ascensão ao pontificado, mas concluídas quando já era pontífice.10 Isso mostra que para ele sua atividade intelectual ligava-se estreitamente à sua função episcopal.

O pontificado gregoriano transcorrerá entre o sentimento de fidelidade à ordem antiga, ou seja, à estrutura imperial romana, e o apelo à ordem que se estabelece —

os remos nascidos das invasões bárbaras. Gregório teve o mérito de ―descobrir‖ o Ocidente, de trazer a Igreja para a Europa, que será o palco principal de sua atuação. Decepcionado com o Império, agora representado por Bizâncio, busca apoio de reis e rainhas para exercer sua missão evangelizadora. Estende ao clero sua autoridade e firma a jurisprudência do papado sobre a Igreja, que passa a ter efetivo controle sobre a disciplina eclesiástica. Após o choque com o imperador

9 REYDELLET, Marc. Gregoire le Grand: la royauté et l‘ordre du monde. In: —. La royauté dons Ia

litterature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Sévilie. Roma: Ecote Française de Rome — Patais

Farnése, 1981. p. 442. 10 GILLET, Robert Introduction à traduction des Moralia. In: ——. Gregoire le Grand. Morales sur

Job. Paris: Éd. du Cerf, 1952. p. 10. (Sources Chrétiennes). Sobre Gregório Magno, cf. BATIFFOL,

Pierre. Saint Grégoire le Grand. 3. ed. Paris: Ed. du Cerf, 1938; DUDDEN, F. Homes. Gregory the

Great, his place in History and thought. London: Longmans, 1905. 2 v. Mais recentemente: Robert GILLET. Introduction à sua tradução das Moralia, cit.; REYDELLET, Marc. Grégoire le Grand: la

royauté et l‘ordre du monde, cit. O pensamento político de Gregório é também analisado por

ARQUILLIRE, H.-XAVIER. L‘augustinisme polilique. Essai sur la formation des théories politiques

da Moyen Age. 2. ed. Paris: J. Vrin, 1956 e por ARCARI, P. M. Idee e sentimenti politici..., cit. Sobre as questões com o Oriente, cf. BERTOLINI, Ottorino. Roma di fronte a Bisanzio e ai Longobardi.

Bologna: Licinio Cappleti Editore, 1941.

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Maurício e com o patriarca de Constantinopla (595) retoma o poder sobre o clero da Gália. Fixa com precisão a doutrina oficial da Igreja, segundo o que está expresso nos quatro concílios ecumênicos.11 Ao precisar matéria doutrinária, pretendia dissipar qualquer dúvida do clero gaulês.

Conselheiro moral dos soberanos, Gregório dirige-se aos príncipes para adverti-los e lembrar-lhes seus deveres de governantes cristãos. Assim, exorta Childeberto da Austrásia a não promover leigos ao episcopado e a lutar contra a simonia.12 É ampla a correspondência com Brunilda, mãe de Childeberto, com a corte de Toledo e com os demais príncipes europeus. Manifesta-se, aí, o propósito deliberado de trazer ao rebanho povos ainda não cristianizados, chamar à ordem reis convertidos, mas pouco atentos às coisas da fé. A atitude de Gregório é, porém, a do pastor zeloso que aconselha. O que o anima é a vontade de estreitar a

colaboração, não a de subordinar o Estado à Igreja. Ao que aspira é que o poder secular sirva ao desígnio divino da salvação do homem, numa retomada da doutrina gelasiana de dualismo e cooperação dos poderes.13

Gregório Magno tem sido visto mais como um papa da Idade Média ou como um soberano do que propriamente como bispo de Roma. De nossa parte, julgamos que ele ainda está preso à Antiguidade, é o último papa do período. Sofre da nostalgia de Roma. Permanece ligado ao Império, política e sentimentalmente. Há

em Gregório, porém, uma nova concepção de poder. Para ele, o poder é uma missão, não um atributo pessoal, um privilégio, e deve ser exercido em benefício da coletividade. Surge, aqui, a idéia de serviço. Essa idéia é nova e com ela Gregório rompe com a Antigüidade e torna-se um papa medieval. Marc Reydellet percebeu muito bem que Gregório adquire a estatura de soberano espiritual do Ocidente porque emprega sua autoridade episcopal sobre toda a Europa, promove a reconquista espiritual dos anglos e se corresponde com monarcas para o benefício

das igrejas locais.14 Gregório, baseado na doutrina antiga, sustenta que o bispo de Roma é o

depositário da fé e o responsável pela doutrina. Seu desentendimento com o imperador Maurício (582-602) insere-se nessa visão do pontífice. A primeira desavença ocorreu quando o soberano interditou a funcionários e militares o acesso à vida monástica. O papa publicou o texto imperial e apresentou seu protesto a Maurício.15 Fato mais grave verificou-se em 595. O bispo de Constantinopla, João,

11 Registrum V, 59. As cartas de Gregório Magno citadas neste trabalho estão na Monumenta Germaniae Historica, edição EWALD & HARTMANN. Registrum Epistolarum.Berolini,

1889.v. 1. 12 Reg V,60. 13 PACAUT, Marcel. La théocratie. L‘Église et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Dcsclée, 1989. p. 27. 14 REYDELLET. Op. cit. p. 452. 15 Reg III,61.

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o Jejuador, atribuía-se o título de patriarca ecumênico. A reação de Gregório foi enérgica. Em carta ao imperador afirma que somente Cristo é o Mestre universal e não existe em toda Igreja, que se estende pelo mundo, quem possa chamar-se ecumênico. A indignação do papa contra a atitude da Sé de Constantinopla explica-

se pela sua idéia de que existem dois princípios de universalidade para um único mundo: a Igreja e o imperador. Sendo a universalidade, segundo ele, um atributo da Igreja, nenhum patriarca pode arrogar-se esse direito. Para anular a pretensão de Constantinopla, o papa Gregório sustenta, como Leão I, o fundamento dogmático do primado papal, ou seja, ―Tu es Petrus et super hanc petram‖... Diz ainda a Maurício: ―Tendes o dever de refrear um homem que insulta a Santa Igreja Universal, que está cheio de orgulho, que se inflama por desfrutar de um título que o torna diferente dos outros, que se coloca ele próprio acima do vosso Império,

apropriando-se de um nome‖.16 Curiosamente, essa soberania universal na ordem espiritual, que Gregório

agora denuncia, será mais tarde reivindicada pelos seus sucessores e culminará na rivalidade entre o sacerdotium e o impenum. De qualquer forma, o violento protesto do papa foi exagerado. Não havia na atitude do patriarca oriental a intenção de usurpar a jurisdição sobre a Igreja universal nem de recusar a primazia de Roma, segundo o que entende um especialista da questão entre Roma e

Bizâncio.17 Aliás, a designação de patriarca ecumênico, da titulatura bizantina, era bem anterior a Gregório e não designava o universo, mas o império.

Como se afirmou, o papa Gregório votava particular estima ao Império, que julgava universal por sua natureza e vocação. Em sua correspondência, designa-o sancta Respublica ou christianissimum Imperium. Em seu pensamento, a universalidade é atributo da Igreja. Daí existirem dois princípios de universalidade — a Igreja e o Império. Embora se confundam, constituem campos distintos que se

completam para a plena realização de um objetivo comum, isto é, o de empreender o projeto divino da salvação. Desse modo, cabe ao papa conduzir o rebanho e ao imperador assegurar a paz à Igreja para que ―o reino terrestre esteja a serviço do reino dos céus‖ — (―terrestre regnum coelesti regno famuletur‖)18 — o que seria, segundo a fórmula de Arquillière,19 ―a concepção ministerial do Império cristão‖.

Consciente da superioridade do sistema imperial, o papa sublinha em duas oportunidades o contraste entre ―o imperador, senhor de [homens] livres‖ e os ―reis das nações, senhores de escravos‖ — ―imperator dominus liberorum‖ e ―reges

gentiuin domini servorum‖. Assim, em setembro do ano 600, reprova a brutalidade

16 Reg V, 37; JAFFÉ. Regesta Pontificum Romanorun. 1360. 17 A questão é muito bem estudada por DVORNIK. Op. cit. p.70-2. Segundo Batiffol, houve um mal-

entendido porque o título ―não designa o universo, mas o Império‖. BATIFFOL. Op. cit. p. 205. 18 Reg I, 61. 19 ARQUILLIÉRE, Henri-Xavier. L‘augustinisme politique, cit. p. 124. Reg XI, 4.

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do ex-cônsul Leôncio, que fizera açoitar funcionário acusado do crime de malversação. O papa declara que tal procedimento ofende a Deus, mancha a reputação do seu autor e sobretudo obscurece a glória do imperador porque ―entre os reis das nações e o imperador dos romanos existe a diferença de que os reis das

nações são senhores de escravos, enquanto o imperador dos romanos é senhor de homens livres‖.20 Três anos depois, ao cumprimentar Focas pela sua ascensão ao trono imperial, Gregório sugere algumas reformas indispensáveis após o reinado tirânico de Maurício: ―Que todos retomem a posse tranqüila de seus bens a fim de que se alegrem sem temor do que adquiriram honestamente. Que cada um reencontre sua liberdade sob o vosso piedoso governo. Porque, entre os reis das nações e os imperadores da República, há essa diferença — os reis das nações são senhores de escravos, enquanto os imperadores da República são senhores de

homens livres‖.21 Portanto, aos olhos do pontífice, o Império aparece como forma moral superior aos remos que se constituem no Ocidente. A esses diferentes remos, segundo a óptica do papa, opõe-se o Império, fundado no direito. Por isso, Gregório encara o velho sistema político romano como protetor da libertas. Sabia perfeitamente, entretanto, que a tirania floresce em qualquer parte, sob o imperador ou sob os reges. Conhecia também, por experiência pessoal, a fragilidade da teoria em que repousava sua crença no Império universal. Pode ter-lhe escapado a

profundidade das alterações que se processavam; estas, como vimos, somente se operaram na segunda metade do século VII, quando os árabes se apoderaram do Mediterrâneo e os eslavos ocuparam o Ilírico, cortando a comunicação entre o Oriente e o Ocidente. Mas viu, seguramente, que no Ocidente o mundo desabava: foi obrigado a enfrentar sozinho os lombardos às portas de Roma.

Aspecto particularmente importante é o da realeza cristã em Gregório Magno. O papa renova a tradição patrística e apresenta uma teoria sobre a origem e o fim

do poder. O que busca, evidentemente, é outra justificativa do poder. O que oferece é uma nova imagem da sociedade política. Para ele, caso subsista, o Império será oriundo de uma necessidade do mundo. Sua visão é a do rex ideal, fundado na moral. Nessa realeza terrena, preparação para a realeza divina, todos são convidados, ninguém está excluído — imperator ou reges gentium.

Recorde-se, de passagem, que a idéia de universalidade do Império vem da Grécia. Filósofos helenos e sobretudo os estóicos dão relevância à noção de comunidade humana. Das conquistas de Mexandre extraem a idéia de missão

universal da civilização grega. Roma atribui-se, por assimilação, a mesma tarefa civilizadora. Essa noção de Império como centro fundamental da civilização acaba ―purificada‖ pelo cristianismo, cuja missão é essencialmente ecumênica. A medida

20 Reg XI,4. 21 Reg XIII, 34.

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que o Império se cristianiza, a idéia imperial penetra os meios eclesiásticos. Leão I representa a síntese acabada desse universalismo romano-cristão,22 que terá na liturgia o principal instrumento de propagação.

Retomemos o pensamento gregoriano. Sua visão do mundo é menos linear

ou menos histórica que a de santo Agostinho, escreveu Marc Reydellet.23 Mas depois da queda do Império do Ocidente foi o primeiro a reatar a patrística e a extrair dos textos sagrados uma linha política. Ora, a conjuntura política reclamava uma síntese, uma ideologia. Gregório procurou uma explicação e uma solução para os problemas do mundo. Sua época é a do nascimento da Europa, quando a emergência dos regna assinala uma nova etapa nas relações entre a Igreja e o Estado. Os príncipes católicos ortodoxos marcham em bom entendimento com Roma. Essa é a realidade nova que se abre ao papado e

propicia a expansão da Igreja. É nessa perspectiva que o pensamento político de Gregório Magno deve ser interpretado.

Gregório não foi, certamente, um inovador, mas o cristianismo lhe deve, após séculos de espera, a oportunidade de inspirar a vida política. Apoiado nas Sagradas Escrituras, e tendo por mestre Santo Agostinho, elabora teoria sobre as atribuições do poder. De fato, suas idéias resultam de sua grande experiência como pastor e administrador. Antes dele a doutrina política estava ―implícita‖, refletia a

observação que se fazia da realidade social. Era uma espécie de adaptação ou de transfiguração. Com ele, ao contrário, existe uma forma teórica de abordagem política. Vivendo no Ocidente e voltado para o Ocidente, a monarquia aparece em torno dele como a única forma de governo existente. O papa não tem escolha: é ―monarquista por necessidade‖.

No pensamento gregoriano, o poder é uma missão, um dever, não um privilégio pessoal. Funda-se na noção de serviço. Diante dos deveres do seu cargo,

o imperador não se beneficia de qualquer privilégio, não escapa à norma geral, equipara-se ao rei ou ao bispo. A doutrina gregoriana estabelece princípios e exigências aplicáveis a todos, sem exceção, ao Imperium e aos regna, No seu entendimento, a autoridade episcopal reveste-se das mesmas características da autoridade leiga— ―quem detém o título de pastor está carregado de pesadas inquietações, de sorte que é difícil saber se exerce os deveres de pastor ou de um grande da terra‖.24 Gregório mostra aos governantes que, em virtude da origem do seu poder, devem exercê-lo em benefício da coletividade. Prevalece, aqui, a idéia

de serviço. Veja-se, por exemplo, o seguinte texto:

22 LEÃO I. 82 Sermão. In Natali Apostolorum. Sources Chrétiennes, 69. 23 REYDELLET. Op. cit. p. 466. 24 Reg 1, 24; JAFFÉ. Reg Pont 1092.

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―Todos os homens são iguais na sua essência. Mas, por uma questão de

ordenamento, uns sobrepõem-se aos outros. Então, se depreendemos pela razão o que aconteceu no plano temporal, mais justamente descobrimos o que somos no plano

natural. Muitas vezes, o poder que nos foi conferido impressiona a alma e a envaidece

com pensamentos arrogantes, O tumor da vaidade deve ser, portanto, extirpado pela

humildade. Se a razão desce das alturas para seu próprio nível, mais prontamente encontra a planície da igualdade natural. Ora, como falamos, a natureza fez todos os

homens iguais, mas, com a diversificação de méritos, uma ação oculta pospôs uns aos

outros. A mesma diversidade que veio do erro foi retamente ordenada pelos desígnios

divinos, de tal modo que um homem seja dirigido por outro, já que nem todos vivem igualmente. Os homens justos, quando estão no poder, não se vestem da força do mando,

porém da igualdade de natureza; nem se vangloriam de governar os homens, mas de

servi-los, Ora, eles sabem que os antepassados são lembrados não tanto por terem sido

reis de homens quanto por terem sido pastores de seus rebanhos. Em verdade, na natureza o homem tem precedência sobre os animais irracionais, não sobre os outros homens.‖25

Gregório preocupa-se com a ética dos governantes, inquieta-se com os males que o poder pode acarretar. Princípios devem ser respeitados para preservar a dignidade dos que exercem função de mando público. Por isso, adverte dos perigos que cercam o poder, alerta sobre os sonhos do ambicioso,26 comenta a soberba e fala do tirano, isto é, do mau príncipe. Mais pastor do que teólogo, preocupa- se

com a salvação dos reis, pelos quais se crê responsável perante Deus. A doutrina do papa precisa a atribuição dos poderes em termos de estreita

unidade, ou seja, sem distinguir o temporal do espiritual. Sua Regula Pastoralis destina-se, igualmente, a reis e a eclesiásticos. Gregório repete são Paulo, reafirmando que o poder, bom ou mau, tem aos seus olhos uma justificativa. Sempre preocupado com a doutrina antiga, exalta a utilidade do poder e afirma que ―a boa administração encontrará recompensa junto de Deus‖.27 Observação oportuna, numa época em que o poder real se origina da conquista militar.

O tema do príncipe a serviço da Igreja aparece na correspondência com os reis e o imperador. Nas Moralia depara-se-nos a exegese alegórica do rinoceronte. Gregório compara esse animal aos poderosos deste mundo e faz referência à sua observação pessoal: ―Lembro- me, freqüentemente, de ter visto este espetáculo: como o rinoceronte se irritava para atingir duramente e, levantando seus chifres, aterrorizava os pequenos animais, ameaçando-os de morte, de exílio e de condenações; de repente, pelo sinal da cruz impresso em sua fronte, todo o fogo de

sua cólera se apagou e, convertido, pôs fim às suas ameaças‖.28 A alusão a testemunho pessoal, expressa no início do texto, afasta a possibilidade de

25 GREGORIO MAGNO. Moralia. 21, 15. PL 76, 203. Trad. TURRA Jr., Dante & MAFRA,

Johnny José. 26 Mor 4, 30. PL 75, 688. 27 Mor 26, 26. PL 76, 374. 28 Mor 3l, 2.PL76,574.

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referência à conversão de Constantino, e parece indicar a lembrança de acontecimento contemporâneo. Trata-se provavelmente da conversão do visigodo Recaredo (589), ato político e religioso de capital importância. A conversão do imperador Constantino aparece explicitamente adiante: ―Quem teria, então,

acreditado, no começo da Igreja nascente, que esse principado terrestre indomado, esse rinoceronte, que nos primeiros tempos desencadeava ameaças e tormentas, devolveria a Deus sua semente, isto é, responderia com seus atos à pregação recebida... eis, com efeito, que ele promulga leis em favor da Igreja‖.29 Vemos, aí, com iniludível clareza o Império.

Note-se que o rinoceronte não é somente o Império. Os remos nascentes, cristianizados e ortodoxos, estão igualmente associados à missão da Igreja. Marc Reydellet é lúcido ao observar que o Império perde sua especificidade, já que

funda sua legitimidade na História.30 A noção de serviço que o cristianismo confere ao poder, transfere a pessoas muito do peso da instituição política e acaba por anular a idéia de missão providencial. Imperador e reis têm agora tarefa comum em benefício dos súditos. Esse ministerium Dei faz do Estado um instrumento de salvação.

Fique claro, porém: Gregório não pretendia submeter os príncipes à sua autoridade. Em outros termos: respeita a jurisdição monárquica. Ao atribuir um

grau de sacralidade ao poder civil, tem em vista a concepção de uma ordem cristã do mundo. Nesse sentido, não restringe a dinâmica do Estado, como tende, aliás, a fazer quando de seu choque com o Império. Marcel Pacaut31 vê em Gregório Magno uma ruptura da ―tradição constantiniana‖e uma opção deliberadamente extraída das idéias contidas no sistema gelasiano. Ruptura e escolha, diga-se, que irão informar o caminho do político do papado medieval. Temos, pois, que as concepções políticas do papa refletem sua visão mística do mundo. A doutrina

gregoriana não conflita com a soberania de Estado, mas é uma tentativa no sentido de estreitar a colaboração entre os poderes. Fazer de Gregório Magno um campeão da ideologia Igreja-Estado toca o anacronismo. Não existe a suposta teocracia de Gregório Magno. Ao ―legitimar‖ o poder temporal pela devoção à Igreja, abria espaço às monarquias que se formavam e rompia os laços que privilegiavam a união Império-Igreja. O papa sabe muito bem que, pelo menos no Ocidente, a vocação universal do Império está arruinada.

De resto, o pensamento político de Gregório Magno presta-se a interpretações

exageradas. A.-X. Arquillière insiste na concepção ministerial de poder e faz dele um fervoroso adepto do agostinismo político.32 Paola M. Arcari sustenta que ele é

29 Mor 31,7. PL 76, 577. 30 REYDELLET. Op. cit. p. 477. 31 PACAUT. Op. Cit. p.29. 32 ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 121-41.

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o apóstolo da teocracia, que despreza as autoridades civis e sonha com um ―Stato nuovo, non nato, come gli Stati pagani, dalla divisione del lavoro, ma dalla unità della fede: eccolo erigire la Chiesa come Stato‖.33 Ora, Gregório jamais expressou seu pensamento de forma tão áspera e desconcertante. Como mostrou Marcel

Pacaut, a preocupação de Gregório era evitar a fragmentação religiosa que poderia favorecer a dispersão e o isolamento políticos decorrentes do estabelecimento dos bárbaros no Ocidente. Para isso tornava-se imperativo gerar certa coesão em torno de um pólo único, a saber, a Igreja. Não via outro meio de alcançar esse objetivo senão reafirmando as prerrogativas do papa, a primazia romana. Essa tendência simplificadora conduzirá no futuro a outro caminho que fará do bispo de Roma o principal, o único promotor e defensor da autoridade eclesiástica, da autoridade da Igreja. Quanto a ele, propriamente, considera-se, segundo a tradição, sucessor de

Pedro e por isso com autoridade moral para liderar a vida religiosa no Ocidente.34 Fazer de Gregório, como se pretendeu, um instrumento da teocracia, é um exagero.

Um século separa Gregório Magno de Gelásio I. A realidade agora é outra. Alteram-se as relações entre o bispo de Roma e o imperador. Ao afirmar a dualidade de poderes, Gelásio enfatizara a autoridade dos pontífices, mais pesada porque têm de prestar a Deus contas dos próprios reis. Essa noção de auctoritas, diferente da de principado, origina-se da própria função episcopal, mais

particularmente do papa, guia espiritual dos soberanos. As condições do momento são outras. A Igreja Ocidental conheceu o peso do cesaropapismo bizantino. Coube a Gregório estabelecer as atribuições em termos mais amenos. E ele o testemunho da substituição do fundamento ―providencialista‖ pelo fundamento racional do poder.

Sublinhe-se, ainda uma vez, que Gregório não concebeu a priori sua doutrina. Ela resulta de sua experiência pessoal de pastor e administrador. Seu pensamento

tem raízes na tradição romana e ocidental. A concepção ministerial de poder encontra-se já em santo Ambrósio e expressa uma recusa das teorias orientais. Como salienta Arquillière, o esforço do bispo de Roma ―é para subordinar a política à moral, ao contrário do imperador bizantino que fazia da religião um departamento da política‖.35 Gregório abre ―uma via que será amplamente seguida na Idade Média — a via da razão e da nação, ao lado da qual os Carolíngios abriram uma outra: aquela em que o papa e o imperador deveriam caminhar juntos para dominar o mundo‖ (M. Reydellet). Herdeiro embora da concepção de

principatus da Sé Romana, Gregório não deseja ser o omnium dominus.

33 ARCARI. Op. cit. p. 339. 34 PACAUT. Op. cit. p. 27. 35 ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 137.

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O PENSAMENTO POLÍTICO DE ISIDORO DE SEVILHA

A Espanha visigótica do século VII oferece a primeira contribuição objetiva à idéia de realeza no Ocidente medieval. Coube a Isidoro de Sevilha traçar-lhe a doutrina. O bispo espanhol procurou orientar seu trabalho para a solução de problemas concretos, na tentativa de edificar uma teologia moral adequada às estruturas sociais de seu tempo.36 Isidoro é o grande mestre da teologia política da Alta Idade Média. Tanto quanto Gregório Magno, e mais que Santo Agostinho,

provavelmente, ele foi ―um homem de ação e mesmo um homem político‖.37 Dividiu o seu tempo entre os negócios da corte e o estudo dos manuscritos antigos.

Isidoro deixou importante contribuição. Sua obra mantém unidade de inspiração, continuidade de pensamento. Quer se trate de estudo profano, quer de erudição ou de exegese, o objetivo é sempre a elevação de espírito de clérigos e leigos letrados de sua terra. Notoriamente apaixonado pela Espanha, esta ocupa importante papel na sua História dos Godos. Tem consciência do passado histórico

de sua terra sob o Império. A Espanha não é, assim, para ele uma criação dos godos. Sem o estabelecimento destes na Espanha o regnum Gothorum teria sido apenas um sonho. A realeza gótica encontrou ali ambiente favorável ao seu desenvolvimento. Estabelece sempre uma expressão de continuidade entre os romanos e os godos. Revela incontida admiração pela obra construtiva dos príncipes visigodos. Parece não experimentar nostalgia pela grandeza de Roma e afirma que César foi ―o primeiro que deteve o poder monárquico‖38 o que leva J. Fontaine a concluir que ―o ancestral dos monarcas visigodos é, para Isidoro, o

próprio César‖.39 Na verdade, não é homem preso à Antigüidade como Gregório Magno. Isidoro vive seu tempo, liga-se à sua contemporaneidade.

Momento expressivo da evolução do reino ibérico é a formulação, pelo 8º Concílio de Toledo, do seguinte princípio: ―O que faz o rei não é a sua pessoa, é o direito‖. Esta frase resume o processo que se desenvolve ao longo do século VII e que submete a monarquia visigótica a regras cada vez mais severas. A essa evolução Isidoro esteve de certo modo ligado, mesmo após sua morte.

Evidentemente, a realeza da época isidoriana difere da que se desenvolve posteriormente. Não há dúvida, porém, de que a doutrina política de Isidoro resulta de seu contacto com a realidade social.

Ao lado da sua História dos Godos e das Etymologiae, esta de grande sucesso nos primeiros séculos da Idade Média, Isidoro concorreu para o desenvolvimento

36 A obra fundamental é a de FONTAINE, Jacques. Isidore de Séville et la culture classique dans

l‘Espagne wisighotique. Paris: Etudes Augustiniennes, 1959-93. 3 v. 37 FONTAINE. Op. cit. v. 2. p. 705. 38 ISIDORO. Etyimologiae V, 39, 25. 39 FONTAINE, Op. cit. v.2. p. 820.

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da teoria política. Desde o final da Antiguidade, por sinal, o príncipe cristão aparece como o protetor da Igreja e o defensor da fé. O respeito ao cristianismo era a noção básica. Com Isidoro as teses de Gregório Magno têm uma definição mais clara. Como escreveu Marc Reydellet, ―a novidade essencial consiste em conceber

a realeza não mais como o produto do direito natural, mas como o governo do povo cristão‖.40 Acentua-se, desse modo, a noção de serviço. Evidentemente inspirado em Gregório Magno, o autor espanhol identifica-se com o seu tempo, mais precisamente com as transformações por que passava o reino visigodo, que necessitava de uma ideologia nova. Recorde-se, a propósito, que a realeza visigoda se instalou pela conquista pura e simples. Na Espanha, a Igreja não pôde, diante do conquistador ariano, socorrer-se de uma colaboração leal: não há nem um são Remígio espanhol nem um Clóvis visigodo. (M. Reydellet) Só mais tarde chegam

Leandro e Recaredo. E nas Sentenças que se encontra o essencial das idéias isidorianas acerca da

realeza. A obra foi escrita algum tempo depois da morte de Recaredo, rei visigodo que renunciara ao arianismo (589) e se ligara à Igreja. Ao que se crê, redigida no reinado de Sisebuto, cujo excessivo zelo contra os judeus é condenado por Isidoro,41 que vê neste príncipe uma esperança para a solução dos problemas que afligiam a Espanha após a morte de Recaredo. O princípio de monarquia eletiva de

base hereditária, estabelecido pelo IV Concílio de Toledo (633), mostrava falhas. Isidoro compreendeu a necessidade de uma doutrina mais sólida. Prestou inestimável serviço à realeza que dominava a Espanha, livrando-a do seu ―pecado original‖:42 libertou-a de sua inferioridade diante do Império.

Com efeito, em face da tradição imperial romana, os remos [bárbaros] que se constituíram no Ocidente pareciam uma fatalidade histórica absurda. A idéia imperial permanece e exerce constante fascínio sobre as mentes, em sonho que se

projeta pelos séculos da Idade Média. Os homens da Igreja procuram ―humanizar‖ os reis bárbaros e criar o ideal de uma realeza cristã. Assim foi com Gregório de Tours, que exerceu grande influência na vida política da Gália merovíngia, e também com Gregório Magno. Essa dificuldade de desembaraçar-se do ideal do Império levou o erudito latino Cassiodoro a mascarar Teodorico de princeps. Isidoro foi mais feliz. Teve a seu favor o advento tardio da monarquia cristã na Espanha. Ao promover a renovação da realeza espanhola, Isidoro exorcizou as lembranças nocivas.

40 REYDELLET, Marc. Isidore de Séville: tradition et nouveauté. In: . La royauté dans la

lttierature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Séville. Paris: École Française de Rome,

1981. p. 554-55. 41 ISIDORO. Goth 60, 291. 42 A expressão é de Reydellet.

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O pensamento político de Isidoro repousa no princípio de que a realeza está a serviço da Igreja. A monarquia não aparece mais como uma imitação fraudulenta do Império, porém como uma instituição a serviço da causa cristã, segundo a vontade de Deus. A Igreja assume o princípio da universalidade do Império, em

virtude da nova concepção do mundo. No entanto, ao contrário da idéia original de Império, que é, por definição, unitária e totalitária, a Igreja admite pluralidade: sustenta a unidade da realeza de Cristo, luas, sendo universal, compõe-se de múltiplas células. Esse pensamento já havia sido, aliás, exposto por Gregório Magno na polêmica com o patriarca oriental João, o Jejuador.

Ao conceber a realeza como um serviço do povo cristão, Isidoro, indiscutivelmente, assimilava-a ao episcopado. ―Inventando‖ a realeza cristã — escreveu M. Reydellet — ―ele libertava do Império as realezas nacionais e lhes

conferia uma legitimidade própria‖.43 Tal sistema político parte da afirmação de que a Igreja constitui o regnum Christi. A teologia política de Isidoro é cristológica por excelência. Ao tornar-se cristão o príncipe, altera-se a natureza do seu poder. Modifica-se, igualmente, a maneira de exercê-lo. Estabelece-se, dessa forma, estreita relação entre a realeza e a Igreja, vale dizer, entre o Estado e a Igreja; do mesmo modo, criam-se novos laços entre governantes e governados. Esse traço de igualdade entre todos, de comunhão sob a autoridade de Cristo, dá especial

originalidade à teoria isidoriana de poder. A realeza de Cristo ocupa, pois, lugar preeminente no pensamento de Isidoro.

O sevilhano não é movido por razões políticas, mas pela necessidade da luta doutrinária que iria liderar na reconstrução da realeza visigótica. Essa realeza não aparece aos seus olhos como uma espécie de Império universal modelado segundo a imagem do Império terrestre, porém se perpetua através dos séculos. A realeza de Cristo, de que a realeza judaica é imagem, não exprime poder e dominação: não é a

do Cristo pantocrático dos mosaicos bizantinos. Essa realeza de Cristo se exerce no interior da Igreja de que Cristo é o Esposo. Segundo Marc Reydellet, Isidoro assimilou de maneira admirável o sentido dessa imagem de Rei e Esposo consagrados pela mesma unção. A crítica moderna explica a unção real como um rito de participação, de interação. Isidoro soube traçar a especificidade dessa realeza tal como ela se define, ideal e figuradamente, na unção dos reis judeus. A unção em si é tão somente um símbolo. Diferentemente do Antigo Testamento — em que a unção real expressa a vontade divina e pode permanecer secreta —, a

realeza cristã é concebida na Igreja e fundada na noção de devotamento e

43 REYDELLET. Isidore de Séville. p. 557. O sistema político-religioso isidoriano parte da afirmação de que a Igreja constitui o regnun Christi e, portanto, da realeza de Cristo. Diferente

da concepção de monarquia divina, que servia de fundamento ao antigo poder imperial romano.

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subordinação recíprocos.44 Não existe qualquer comprovação da existência do rito de unção real na Espanha visigótica da época de Isidoro. Não há dúvida, porém, de ter sido o reino ibérico o primeiro a realizar tal cerimônia. Convertidos ao catolicismo, seus reis foram os primeiros a receber a sagração, isto é, a unção

sacramental que lhes conferia excepcional prestígio.45 O rito é, com efeito, secundário e reflete o simbolismo, lembra Pierre Batiffol.

Dele se vale Isidoro para concretizar o conjunto de representações, ao retomar os ensinamentos de Gregório Magno e santo Agostinho. A única unção que conta verdadeiramente é a unção batismal, que torna o povo cristão um conjunto harmonioso sob a autoridade de Cristo. Dessa idéia fundamental do cristianismo, Isidoro formulou verdadeiro sistema político. Sabemos que a noção de que o rei faz parte da Igreja vem da Antigüidade, mais precisamente de santo Ambrósio. Com

Isidoro a realeza aparece como expressão política do corpo místico. Sempre próximo do pensamento de Gregório Magno, Isidoro preocupa-se

com os perigos do poder. Por isso, dirige-se aos reis, futuros soberanos e pretendentes à realeza. Tece considerações acerca de acontecimentos contemporâneos. O poder para ele não é sinônimo de perdição. Apenas exige do seu detentor uma força espiritual superior. As reflexões que aparecem nas Sentenças a propósito da realeza demonstram sua preocupação de pastor. Assim

é que, ao retomar a teoria cristã sobre a origem do poder, ligando-a ao plano da salvação, põe em relevo a modificação introduzida pelo cristianismo no plano social. Não se trata apenas de colocar o príncipe a serviço da Igreja. E a própria essência da realeza que se transforma — a instituição real é na verdade uma função no interior da sociedade. Embora o fundamento das idéias de Isidoro

44 J. de Pange salienta que é necessário distinguir na unção hebraica o ato declarativo e o ato

constitutivo, O primeiro realiza-se sempre secretamente. O segundo é um rito coletivo, cujo agente é

―toujours pluriel‖. PANGE, Jean de, Le roi très chrétien. Paris: Arthème Fayard, 1949. p. 49. Na realeza cristã a unção é um rito unicamente declarativo. Existe, portanto, significativa alteração em

relação aos costumes judaicos, pois é através do ato declarativo que se manifesta a coesão do povo,

que, na Bíblia, se expressa pelo ato constitutivo. Decorre daí que a unção do príncipe cristão não poderia ser considerada como mera reconstituição do rito judaico. Cf. REYDELLET. Isidore de

Sáville. p. 562, nota 220. 45 Marc Bloch crê que a a introdução do rito de sagração na Espanha visigótica seja anterior a Wamba.

Baseia-se em Juliano de Toledo, que atesta sua existência desde 672. BLOCH, Marc. Les rois thaumaturges. 3 ed. Paris: Gallimard, 1983. Marcel David refutou o argumento. Afirma que Juliano de

Toledo apresenta como uma instituição em vigor apenas o juramento prestado pelo rei. O fato de o rei

Wamba ter sido sagrado na Igreja pretoriana de Toledo, não prova a existência de uma tradição

anterior. DAVID, Marcel. ―Le serment du sacre du IXe. au XVe. siècle. Contribuition à 1‘étude des limites juridiques dela souveraineté.‖ Revue de Moyen Age Latin. Strasbourg: nº 6, p. 5-272. janv.-

mars, 1950. p. 39-46.

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estejam sobretudo em santo Agostinho e Gregório Magno, foi ele o primeiro a dar formulação mais nítida a esses princípios.46

Nas Etymologiae, sua obra ―mais completa pela concepção e realização‖ (J. Fontaine), o prelado revela seu ideal do rex ao indicar a origem do nome: ―o

nome de rei vem de agir com retidão‖.47 Ao tecer considerações sobre as virtudes do rei, assevera: ―As virtudes reais essenciais são em número de duas: a justiça e a piedade. Mas, entre os reis, a piedade é a mais louvável; porque a justiça, por si própria, é mais severa‖ — ―Regiae virtutes praecipuae duae: iustitia et pietas. Plus autem in regibus laudatur pietas; nam iustitia per se severa est‖ (Isidoro. Etym IX, 3,5). Nas Sentenças, obra pastoral, cuida de como deve agir o soberano. Em Gregório, a palavra rex tem interpretação laudatória. Isidoro não foge muito a isso e segue de perto a tradição legada pelo

estoicismo segundo a qual sábio é o rei.48 Para Isidoro a realeza deve ser, antes de tudo, uma realeza em si mesma; o

verdadeiro rei sabe dominar seus instintos e resistir a si próprio. Saliente-se que, em Isidoro, rex é a única palavra carregada de um peso metafórico. Princeps, que aparece várias vezes nos capítulos das Sentenças, parece ter um valor puramente institucional; o sevilhano não acompanha a Gregório Magno, que via, por detrás do princeps, um repositório de espiritualidade. De resto, ao formular o seu ideal de

rex, Isidoro não lhe empresta o alcance de um princípio constitucional. Não prega que o rei que peca deva ser destronado. Seu ponto de vista é o da gramática e da metafísica: o rei que falta a seus deveres trai seu nome e sua missão (M. Reydellet).

O perfil do príncipe cristão isidoriano acompanha o modelo esboçado por Gregório. Parece que Isidoro considera a exegese de Gregório mais adequada à moral política que ele tenta impor no reino ibérico. É impelido a Gregório possivelmente por razão particular. A óptica de santo Agostinho, de duas cidades

em confronto, reflete a observação de um mundo pagão; a perspectiva de Gregório e de Isidoro é a de uma sociedade cristã. A transferência que se processa aplica-se ao novo povo de Deus, isto é, o povo cristão. Em suma, no que diz respeito aos perigos do poder, ao ideal do rex ou à doutrina do mau rei, o pensamento isidoriano fundamenta-se intimamente em Gregório Magno. Assim é que pede ao rei que refreie sua cupidez e adverte que o bom príncipe ―não despoja ninguém para fazer um pobre rico‖.49 Quem encarnaria a imagem do príncipe cristão de Isidoro? O retrato que nos oferece parece ser o de Recaredo.

46 J. Fontaine afirma que Isidoro ―tentou construir uma teologia moral adaptada às estruturas

sociais do reino visigótico‖. FONTAINE. Op. cit. v. 1. p. 10. 47 Etym IX, 3, 18. 48 Para um estudo aprofundado do sentido da etimologia em Isidoro, cf. FONTAINE. Op. cit. v. 1. p. 43. 49 Sent III, 49, 2.

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O grande problema que se coloca a Isidoro é o de saber o caminho a tomar depois da conversão de Recaredo. Em outros termos: qual o significado da realeza em uma sociedade cristã? Não se tratava apenas, como observa M. Reydellet, definir as relações entre a Igreja e o Estado. O grande perigo era ver o soberano

visigodo tentar submeter a Igreja, a exemplo dos imperadores. No momento em que a realeza espanhola procurava seu caminho era importante revesti-la de uma justificação ideológica, ou seja, daquilo que um historiador das idéias políticas chamou de helenismo cristão. Essa teoria; originada de Eusébio de Cesaréia, autor de importante História Eclesiástica, era a doutrina oficial do Império Bizantino, a partir de Justiniano e seus sucessores.

Esse foi o quadro de que se valeu Isidoro para elaborar sua concepção política. É dentro dessa perspectiva que esboça seu modelo do príncipe cristão.50 Antes de

definir as qualidades do príncipe, ele pergunta a que critérios deve o rei responder em uma sociedade cristã.Diante da gravidade do momento, assume a orientação da realeza. Com efeito, toda a doutrina política de Isidoro fundamenta-se na interação Igreja-Estado. O texto que trata das relações entre os dois poderes tem sido objeto de interpretações exageradas. Não será, pois, demais repeti-lo:

―Os príncipes seculares ocupam, por vezes, a supremacia do poder na Igreja a fim de

proteger, através desse poder, a disciplina eclesiástica. De resto, na Igreja esses poderes não seriam necessários se não impusessem o terror da disciplina, o que os sacerdotes são

impotentes para conseguir com sua pregação. Freqüentemente o reino celeste vale-se da

realeza terrena: quando aqueles que estão na Igreja vão contra a fé e a disciplina, são

destruídos pelos príncipes. Que estes saibam que Deus lhes pedirá contas a respeito da Igreja, por ele confiada à sua proteção. Pois, quer a paz e a disciplina eclesiástica se

consolidem pela ação de príncipes fiéis, quer periguem, aquele lhes pedirá contas, já que

confiou sua Igreja ao seu poder‖51

Examinado isoladamente, este texto parece indicar o esvaziamento o conteúdo próprio do Estado, isto é, presta-se a uma interpretação teocrática. O trecho que

precede essa citação é particularmente importante. Nele afirma Isidoro: ―Os poderes seculares estão sujeitos à disciplina religiosa; e não obstante disponham da supremacia real, continuam ligados pelos laços da fé‖.52

Se ligarmos as duas passagens, vemos que, em relação à Igreja, o príncipe lhe deve sujeição; em alguns casos, não obstante, conserva seu poder dentro da Igreja — isso quando chamado a assegurar a disciplina diante da impotência da

50

DVORNIK, Francis. Early Christian and Byzantine Political Philosophy. The Dumbarton Oarks Center for Byzantine Studies. Washington: Harvard University, 1966. v. 2. p. 611 ss. 51

Isidoro. Setentiae III, 51. PL 83,723-24. Apud ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 142. 52

Isidoro. Sent III, 51, 3, PL 83,723.

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autoridade eclesiástica. O texto abrange os limites da intervenção do poder civil no interior da Igreja. Não se trata, portanto, de submeter o Estado ao poder religioso. As intervenções do poder leigo nos negócios da Igreja resultam dos deveres desse mesmo poder, que os príncipes receberam de Deus ―para afastar os povos do mal‖.

Não objetivam transformar esse poder de natureza secular em poder eclesiástico ou supra-eclesiástico. Mas é inegável: estamos bem distantes do dualismo gelasiano.

Marcel Pacaut viu com lucidez o postulado isidoriano ao escrever: ―Portanto, não se diz mais que a Igreja dá ao Estado seu dinamismo nem mesmo que o Estado está na Igreja (o que implicaria subordinação), mas simplesmente que, sem o serviço da Igreja e sem a fé cristã, não há nenhuma razão para haver o Estado, não há o Estado justo‖.53 O belo estudo literário de Marc Reydellet do texto de Isidoro sustenta que o prelado espanhol, ―bien loin de vouloir vider l‘État de son contenu

propre, met ici en garde contre les empitements du prince sur le domaine ecclésiastique. Il lui reconnait seulement le droit d‘intervenir pour suppléer à l‘impuissance des clercs‖.54 Tenha-se em mente que Isidoro vive numa Espanha tardiamente convertida. À vista disso, acautela-se contra os males de uma interferência indevida do Estado em matéria doutrinária. É infenso ao príncipe travestido de teólogo. De qualquer forma, porém, essa filosofia política irá sustentar, um século mais tarde, o edifício carolíngio.

Nota-se em Isidoro, como se afirmou, uma definição mais precisa dos postulados expressos por Gregório Magno no que concerne ao papel do poder leigo na manutenção da disciplina e da moral cristãs. A monarquia isidoriana torna-se um ministério, uma função na sociedade. Estamos diante de uma sacralização do poder temporal. Pode-se dizer que, como Gregório, o pensamento de Isidoro é dominado por um desejo de ―unificação‖, que não deve confundir-se com um projeto teocrático.55 Pode-se até admitir uma negação do direito natural, mas não

uma absorção do Estado pela Igreja. Certamente, ao atribuir ao poder temporal

53 PACAUT. Op. cit. p. 30. A primeira edição desta obra é de 1957. Dvornik tem opinião bem próxima: ―In these words the notion of the state built on natural law had almost disappeared. The

state is necessary only for the protection and defense of the Church. If the Church did not need

such protection and defense, the secular power would not be necessary, since this is its sole reason for existence‖. DVORNIK. Eearly Christian and Byzantine... v. 2. p. 848. 54 REYDELLET. Isidore... p. 590. 55 Ao sustentar a concepção ministerial de poder, Arquillière atribui a Isidoro poderosa influencia

teocrática e estabelece estreita relação entre o pensamento do sevilhano e o de Gregório VII. Cf. ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 42 e 142. Por sua vez, Ullmann acredita ter sido Isidoro um dos

principais arquitetos da ideologia hierocrática e o mais perfeito continuador das idéias de

Gelásio. ULLMANN, Walter. The Growthh of Papal Government in the Middle Ages. London:

Methuen, 1955. p. 28-31. Cf. ainda a opinião de CARLYLE, A. J.A History of Mediaeval Polilical Theory in the West. London: W. Blackwood and Sons, 1903. v. 1. p. 171 ss.; cf.

também ARACARI. Op. cit. p.717 ss.

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função religiosa, a doutrina eclesiástica gerou certa confusão entre os poderes. Todavia, não era ainda chegado o momento de substituir a teocracia imperial pela teocracia pontifícia.

Na realeza de Isidoro há duas fontes de poder: Deus e o povo cristão. É Deus

quem dá o poder, mas o rei é também convocado pela comunidade de fiéis. O rei representa, no domínio leigo, o sinal da unidade orgânica do povo, da mesma maneira que o bispo o é no plano espiritual. Temos, assim, uma realeza fundada, não nas pessoas, porém na comunhão de fiéis. Esta concepção distingue-se nitidamente da ideologia imperial, que repousa na idéia de que a realeza é imitação de Deus. A noção de poder originado do alto por delegação, Isidoro cria uma realeza cuja origem é Deus, mas que tem sua causa final no corpo místico dos fiéis unidos no Cristo. Em vez de ser apenas uma delegação divina, a realeza

é, ao mesmo tempo, uma participação com a humanidade. Em resumo, o poder de Deus encarnado em certos homens iguais a outros homens, ligados pela união em Cristo.56

O rei está obrigado a respeitar as leis, afirma Isidoro.57 A questão já havia ocupado os melhores círculos romanos: o princeps sobrepõe-se ou não às leis? A teoria segundo a qual o soberano é a ―lei viva‖ aparece no primeiro século do Império, por influência helenística.58 A noção de que o imperador está sujeito às

leis é traço marcante do principado, que desde suas origens procurou exorcizar a má ascendência das idéias orientais. Santo Ambrósio adotou posição ambígua: ao mesmo tempo em que fazia concessão ao princípio helenístico da ―lei viva‖ exigia do imperador obediência às leis. Embora pareça hesitante em alguns traços, Isidoro submete o príncipe ao ordenamento legal. Nesse sentido, liga-se ao ideal de civilitas do Alto Império.

É importante salientar, pois, a transformação que se opera na noção de poder

pessoal, substituída pela idéia de poder como missão. É a Igreja o agente dessa transformação, que faz do poder não um privilégio, mas um serviço a ser exercido em benefício da coletividade. Esse ministerium Dei torna o Estado um instrumento de salvação. Consubstancia-se na elaboração teórica de um Império Cristão. Como afirma Marcel Pacaut, é essa doutrina política que vai presidir, um século mais tarde, à construção do edifício carolíngio e mostrar de maneira significativa que existem muitos meios para um Estado cristão assim definido e sacralizado situar-se diante da autoridade eclesiástica.59 Louve-se, entretanto, o

meritório esforço de Isidoro de criar uma nova imagem de soberano necessária ao nascimento da Europa.

56 REYDELLET. Isidore... p. 592-93. 57 Sent III, 51, 1—2. 58 DVORNIK. Early Christian and Byzantine... v. 2. p. 536. 59 PACAUT. La théocratie. p. 30.

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EL PENSAMIENTO POLITICO PAPAL EN LA “DONATIO CONSTANTINI”

Aspectos históricos, potiticos y filosóficos del Documento Papal

FRANCISCO BERTELLONI Univ. de Buenos Aires. Diretor de “Patristica e Mediaevalia”

La reconstrucción Del contenido político de la donatio1 puede realizarse a partir de ella misma y con ayuda de las interpretaciones históricas acerca de su origen que resumiremos brevemente en lo que sigue.

La primera interpretación2 se articula en torno del peligro lombardo que amenazaba al Papado y del riesgo que, como consecuencia de aquel pelígro, corrían las aspiraciones ecuménicas del obispo de Roma si ésta era anexada por los

lombardos. Esta interpretación señala tres aspectos importantes que resumen el contenido específicamente político del documento. En primer lugar alude a la universalidad a que aspiraba el obispado romano. Este carácter universal se corresponde con el primado sobre las restantes iglesias que la donación reconocía al obispo de Roma. En segundo lugar la interpretación alude a una restitución de presuntos derechos papales sobre Ravena, de jurisdicción oriental. Tambien esa restitución era acorde con las insinuaciones de la donatio referidas a la cesión que

Constantino habría hecho, en favor de Silvestre, del imperium sobre Oriente. Pués si según el documento de donación, Constantino lleva su corona hacia Oriente con el consentimiento papal, con ello el falsario quería significar que Constantino era Emperador porque el Papa así se lo había permitido, es decir porque era el Papa quien tenha efectivamente la soberanía sobre Oriente. Y en tercer lugar la interpretación señala la restitución al Papa de todos los territorios y derechos sobre

1 Sobre los aspectos jurídicos y políticos de la donatio pueden consultarse los clásicos trabajos de

LAEHR, G., Die konstantinische Schenkung in der abendländischen Literatur dês Mittelalters

biszur Mitte des 14. Jahrhunderts, Berlin, 1926, y MAFFEI, D., La donazione di Costantino nei giuristi medievali, Milano, 1964. 2 Cfr. HALPHEN, L. Charlemagne et l‘empire carolingien, Paris, 1949, p. l4ss.

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la república,3 es decir la soberanía sobre Occidente. Con ello hace referencia, por una parte, a la soberanía territorial sobre la zona occidental del Imperio — tambien aludida en la donatio — y por la otra al imperium que recibe el Papa es decir al poder político propiamente dicho que lo autoriza a otorgar — como la historia

testimonia que efectivamente lo hizo — a Pipino y a sus hijos el título de patricius romanorum. Esta facultad tambien estaba prevista en el documento de donación. En resumen, para esta interpretación la donatio acudía a justificar la posesión por parte del Papado de toda la soberania, política y territorial, sobre Oriente y Occidente, es decir dia debía legitimar derechos papales anteriores al encuentro en Ponthion (754), que habrían sido recibidos por el Papa en el acto de donación. Esta interpretación de la donatio la considera, en consecuencia, como el título jurídico en virtud del cual el Papa posee la plenitudo potestatis sobre todo el Imperio.

La segunda interpretación4 prácticamente coincide com la primera, salvo en dos aspectos: el primero referido al móvil que condujo al Papa a recurrir a los francos; el segundo referido al fin último de la donatio que, en este caso, es más definidamente determinado como un directo golpe contra Bizancio. En relación con el primer aspecto, el Papa Esteban II no habría solicitado el socorro franco a causa de la amenaza lombarda — que habría sido solo un pretexto encubridor de los verdaderos motivos — sino con el propósito de independizarse de la égida de

la soberanía de Bizancio dela que el Papa, según la teoría imperial bizantina, era un súbdito más. En lo que hace al contenido político de la donatio, que és lo que interesa destacar aquí, es fundamental tener en cuenta que, si bien la ayuda de los francos al Papado apoyaba en forma directa las pretensiones de este último sobre Ravena y sobre Roma, es decir sobre territorios de jurisdicción bizantina y occidental, sin embargo indirectamente esa colaboración franca apoyaba fuertemente el propósito que había sido el verdadero móvil de la solicitud de

ayuda a los francos. Aqui aparece el segundo aspecto — propósito último de la donatio — estrechamente relacionado con el primero, el verdadero móvil del recurso papal a los francos. El acento de esta interpretación en relación con el objetivo de la donatio está puesto en la inveterada confrontación papal con Bizancio. La donatio habría sido creada, sobre todo, como un instrumento jurídico sobre el que el Papa pudiera apoyarse no solamente para reivindicar sus presuntos derechos sobre Ravena y Roma sino para oponerse con argumentos sólidos a la política bizantina y poder liberarse finalmente de una soberanía que

obstaculizaba sus aspiraciones sobre Occidente. Por ello, creando en Cariomagno un nuevo Emperador que no rechazara la política del Papa, éste podía

3 Cfr DUCHESNE, L. Liber Pontificalis, T. I, Paris, 1986, p. 448ss. 4 Cfr. ULLMANN, W. Historia del pensamiento político en la Edad Media (trad. esp. de R.

Villaró), Barcelona, 1983, p. 57ss.

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desvincularse políticamente del Imperio oriental apoyándose sobre el Imperio de Occidente y reivindicando al mismo tiempo su soberanía sobre todo el Imperio por más que, en la práctica, hubiera abandonado toda esperanza de poder participar activamente en las decisiones bizantinas.

La tercera interpretación5 centra su exégesis en la coronación de Cariomagno. Esta habría tenido una doble consecuencia: la primera fue la transformación del patricius romanorum, Carlomagno, en Imperator Romanorum; la segunda fue el renacimiento de un Imperio que, en lo sucesivo, será romano-cristiano y cuyo progenitor fue el Papa. Este, sin embargo, debía contar con un título que acreditara la legitimidad del papel supraimperial que él mismo habia desempefiado en el acto de coronación y que lo había facultado para volver a dar vida a la institución imperial. En otros términos, el Papa

necesitaba justificar de alguna manera su activo protagonismo en la translatio imperii desde Oriente hacia Occidente. Asi, la donatio, que habría existido desde alrededor del 775 habría prestado al Papa un doble servicio: por una parte, para acreditar la translatio imperii que Constantino había efectuado en favor de Silvestre y sin la cual era imposible que el Papado transfiriera el Imperio en favor de Carlomagno; por la otra, para que el Papa pudiera actuar jurídicamente cuando procedió a efectuar la translatio en la persona del nuevo Emperador.

Según esta exégesis, pués, la donatio habría desempefiado un papel fundante de la translado imperii operada por el Papado in personam Magni Caroli y habría sido inventada como condición necesaria y suficiente de dicha translatio. Sin donatio Constantini no podia haber habido una legítima translatio imperii es decir, no podría haber tenido lugar una legítima coronación de Carlomagno.

Aunque la cuarta interpretación6 no coincide con la quinta (Ohnsorge) en cuanto a la fecha de aparición de la donatio, existe sin embargo entre ambas un

acuerdo parcial, pero importante, en cuanto a las conclusiones a que ellas llegan como consecuencia de sus respectivas lecturas políticas de la donatio. En efecto, para Schnürer, el hecho de que el Papa reciba — entre otros emblemas imperiales — la corona, aunque no la use, significa que podia entregaria a quien quisiera. De allí que el Papa pudiera elegir a quien quisiera entre muchos aspirantes a ese cargo. De esta interpretación puede colegirse, aunque de hecho su autor no lo haya hecho explícitamente, que poseyendo la corona, el Papa tiene la soberanía en Occidente — porque allí se quedó — y en Oriente — porque autoriza a Constantino a llevarse

la corona a Bizancio.

5 Cfr. DUCHESNE, L. Les premers temps de l‘état pontifical. Paris, 1904, p. 173ss. 6 Cfr. SCHNÜRER, G. Kirche und Kultur im Miltelalter. T. II, Paderborn, 1929, p. 29.

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A esa conclusión llega con una excelente fundamentación, que la convierte en la mejor articulada de todas, la interpretación de Ohnsorge.7 Para éste la donatio aparece como un recurso papal que debía servir para dar cuentas a Carlomagno de la situación llamada ―de dos Emperadores‖. La reconstrucción de esta

interpretación debe partir de un hecho histórico: el traslado de Constantino a Oriente. Para el pensamiento político bizantino ese traslado habia significado una translatio imperii y ésta, a su vez, tenía un contenido triple: en primer lugar, desde el punto de vista estrictamente material, la translatio equivalía a la instalación Del Imperio en Constantinopla; en segundo lugar, desde el punto de vista político, la translatio implicaba el traslado de la soberanía imperial desde Occidente hacia Oriente; y en tercer lugar, desde el punto de vista de las relaciones entre Oriente y Occidente, el hecho de que la soberanía tuviera su sede en Oriente otorgaba a éste

una clara supremacía sobre aquél. Frente a esta doctrina, el Papado, que para conservar el primado sobre las

restantes Iglesias necesitaba seguir siendo obispo de la capital del Imperio, debía encontrar una respuesta que actuara como contradoctrina de este pensamiento bizantino. La respuesta papal aparece, pero ella no es doctrinaria sino fáctica, ya que se articula en dos hechos históricos — uno real, la coronación de Carlomagno, otro falso, la donación de Constantino. Recién detrás de ellos

aparece el pensamiento político papal. El Papa, pués, responde con hechos que encubren toda una doctrina.

El primer hecho es la coronación de Cariomagno. Aprovechando la vacancia del trono de Oriente el Papa crea un nuevo Emperador. Con ello León III habría querido recuperar la supremacía occidental perdida con el traslado de Constantino a Bizancio. Pero luego, ante la aparición de un Emperador en Bizancio, el Papa crea la donatio, que habría sido inventada con posterioridad a la coronación de

Carlomagno pero que tenía la función de testimoniar un hecho que había tenido lugar antes de dicha coronación. La donatio tenía como objetivo plasmar de juridicidad y de legitimidad política a la coronación de Carlomagno. Con la donatio el Papa habría querido legitimar la situación que se presenta ante la existencia de dos Emperadores y así ella acudía en auxilio de la legitimidad de la actuación del Papado en la coronación de Carlomagno. Pués en efecto, si éste tiene el imperium en Occidente, lo tiene porque lo recibió de un Papa que, como lo acreditaba la donatio, lo había recibido de Constantino que había sido Emperador

en Occidente. Y por otra parte, si otro Emperador, en este caso Nicéforo II, tiene el imperium en Oriente, lo tiene porque cuando Constantino quiso entregar a Silvestre

7 Cfr. OHNSORGE, W. ―Die konstantinische Schenkung. Leo III und die Anfänge der kurialen römischen Kaiseridee‖. In: Zeitschrift der Savigny Stiftung für Rechtsgeschichte. (Germ. Abt.),

LXVIII (1951), p. 78/109.

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la corona imperial, éste la rechazó y consintió en que Constantino la llevara consigo a Bizancio para transmitiria allí, a partir de él, a sus sucesores.

En consecuencia la donatio legitimaba, por una parte a Carlomagno en cuanto Emperador occidental coronado por el Papa; por la otra legitimaba a Nicéforo II

como Emperador oriental y como sucesor legítimo y portador de la corona de Constantino. Independientemente de las relaciones de subordinación política entre ambos Emperadores — a las que nos referiremos de immediato — el Constitutum había logrado una explicación satisfactoria de la situación ―de dos Emperadores‖, que era la función que se le habría atribuído al crearla.

Para esta interpretación, sin embargo, aún cuando la donatio presuponía la existencia de dos coronas y de dos Emperadores, curiosamente no admitía la existencia de dos Imperios, entendidos como instituciones paralelas e

independientes entre sí, sino que el Constitutum establecía una neta diferencia entre ambos soslayando al Imperio de Oriente, al que colocaba en la provintia y anteponiendo a éste el Imperio occidental, al que colocaba en la urbs. En esta contraposición entre la centralidad del Imperio occidental y la marginalidad del oriental se escondía el fundamento dela subordinación de Bizancio a Roma planteada y exigida por la donatio. Con todo, esta subordinación no significaba la sujeción de un Imperio a otro Imperio soberano que, en sentido absoluto, fuera

superiore carens, sino de un Imperio a otro Imperio que recibe su soberanía del Papa. En última instancia la donatio habría logrado presentar en forma jurídica la subordinación de una de las coronas a la otra y a su vez habría podido demonstrar ia subordinación de la corona occidental a un poder político supraimperial, como lo era el Papado en la concepción doctrinaria de la donatio.

Numerosos son los análisis posibles del origen histórico de la donatio. Numerosas son tambien las lecturas de su contenido político formuladas a partir

de aquellos análisis. Las interpretaciones a que nos hemos limitado son, sin embargo, suficientes para colegir de ellas el significado político mínimo implicado en el Constitutum. Resulta claro que el propósito dela donatio fue,primero, confirmar el primado del obispo de Roma; segundo, asegurar su soberanía sobre el Imperio occidental, y tercero garantizar que el Imperio oriental declinara su rebeldia político-religiosa frente al Papado. En la medida en que el contenido político de la donatio implicaba a la Iglesla, al Imperio de Occidente y al de Oriente, sus consecuencias políticas abarcaban toda la realidad

política conocida. De allí que la doctrina política contenida en el documento bien pueda ser calificada como totalitaria en el más genuino sentido de la palabra. La donatio se presentaba, pués, como un instrumento jurídico que consagraba las aspiraciones papales al ejercicio de una soberanía total y ella era la primera expresión de una doctrina que, sigios más tarde, será formulada através de la teoría de la plenitudo potestatis papal, es decir de la potestas in temporalibus e in

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spiritualibus. El Constitutum fue, pués, la primera expresión formal del propósito del Papa de convertirse en soberano absoluto.

No puede escapar al lector de la donatio la habilidad con que ella había sabido integrar, dentro del amplio espectro de temas de que se ocupaba, el problema que

podríamos llamar el verdadero origen del pensamiento político-medieval, es decir el conflicto entre el Imperio de Oriente y el Papado de Roma. Si cuando el documento hablaba del reconocimiento del primado a Silvestre o cuando mencionaba la donación de la soberanía en Occidente lo hacía a través de referencias explícitas, en cambio cuando se refería a Oriente lo hacía indirectamente, a través de insinuaciones y de simples gestos que, a pesar de su cautela, estaban cargados de un tácito y fuerte significado político que debía caer, con todo su peso, sobre el más difícil opositor del Papado. El amago constantiniano

de entregar al Papa la corona imperial y el rechazo por parte del Papa de esa corona constituían todo un lenguaje de gestos que, como ya se ha señalado, querían insinuar que, si Constantino instalaba el Imperio en Bizancio, lo hacía con consentimiento papal.8 A su vez ello significaba que la soberanía sobre Oriente pasaba antes por el Papa que por el Emperador. De ese modo reaparecía, una vez más, el carácter supraimperial del Papado, pero ahora sobre el Imperio de Oriente que, puesto que seguía sosteniendo su propio caráter de heredero político y

religioso del viejo Imperio Romano, era El elemento más rebelde de todas las piezas políticas que el Papado quería tutelar.

Si admitimos que el documento de donación fue redactado dentro del periodo que se extiende entre mediados del siglo VIII y mediados del IX, puede concluirse que él aparece en un momento en que el agustinismo político ya había actuado suficientemente en Occidente como para que sus estructuras políticas hubieran padecido su fuerte influencia y como para que, en virtud de ella, las instituciones

occidentales no resuitaran problemáticas para la política Del Papado. El problema, pués, no residía en Occidente si recordamos que, de hecho y a pesar de su descontento, Carlomagno había aceptado ser coronado. Ello significó el triunfo más logrado y la culminación del esfuerzo varias veces secular del agustinismo político.9 El problema real estaba en Oriente. La creación del Imperio Occidental había sido, quiérase o no, una verdadera duplicación de la institución imperial, pués el nuevo Imperio actuaba como contrafigura que hacía para debilitar el poder político de un Imperio ya existente. De allí que no parezca arriesgado afirmar que

la donatio constituía, ante todo, un argumento dirigido indirectamente pero principalmente contra la reticencia bizantina a reconocer las aspiraciones papales.

8 A la importancia de los gestos en la simbología política medieval ha hecho referencia

ULLMANN (cfr. op. cit. p. 105). 9 Cfr. ARQUILLIÈRE, H.X. L‘augustinisme politique. Essai sur la formation des theóries

potiliques du moyen-age, Paris, 1972, esp. p. 117/143.

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Para concluir con los aspectos políticos de la donatio, debemos hacer ahora una breve referencia a la doctrina imperial, es decir a la teoría acerca del Imperio y de su soberanía que, aunque esbozada elementalmente, estaba contenida en el Constitutum. Dado que éste tenía como objetivo fundamental legitimar la sujeción

de toda la Igiesia y de todo el Imperio a la soberanía supraimperial del Papado, forzosamente el Constitutum debía hacer alguna referencia al alcance de la soberanía que había poseído Constantino con anterioridad al acto de donación. Pues si el documento tenía el propósito de justificar la plenitudo potestatis papal por medio del traspaso de la sede de la soberanía universal del Imperio al Papado, entonces no podia evitar aludir, aunque fuera en forma tácita, a la situación en que se encontraba la soberanía imperial antes de que ella hubiera sido transferida al Papado. Es precisamente en esas referencias donde se esconde el pensamiento

imperial de la donatio; más aún, allí se esconde incluso la verdadera paradoja de un

documento cuyo origen es papal y curialista pero que contiene, como presupuesto, una doctrina imperialista de cuñio romano acerca del poder político.

No puede pasarse por alto la importancia de esta teoría papal acerca del imperium, sobre todo teniendo en cuenta que alguno de los intérpretes imperialistas de la donatio, que hemos estudiado en otros trabajos,10 fundamentó sobre esa misma doctrina imperialista su propia exégesis del alcance y del significado del

acto de donación. Más aún, puesto que los autores imperialistas no dudaban de la autenticidad de la donatio—que defendía, mediante el recurso a un hecho histórico, la plenitudo potestatis papal — y puesto que sin embargo, frente al fail accompli de ese hecho histórico, debían encontrar en él algún argumento en favor de su propia concepción del Imperio, en algún caso llegaron a encontrarlo en la misma donatio, ya que ésta presuponía una concepción acerca de la soberanía del Imperio cuyo alcance, por lo menos hasta el momento de la donación, coincidía plenamente con

la concepción de los teóricos laicos del Imperio. Así fue como la donatio que había nacido para ratificar puntos de vista doctrinarios del curialismo llegó a ser utilizada, paradojalmente, para sostener las perspectivas doctrinarias de los defensores de la independencia de la soberanía del Imperio respecto de la Iglesia.

La teoría acerca del Imperio contenida en la donatio estaba construída sobre la base del reconocimiento a Constantino de facultades para donar en favor del Papado. Con ello se reconocía al Emperador el carácter de sede originaria de la soberanía sobre todo lo que se donaba, antes de que se hubiera producido el acto

de donación. De allí que el Constitutum admitiera implícitamente que, todo lo que el Emperador cedía al Papa, había preexistido antes en aquél. Ello comprendía, en

10 Cfr. BERTELLONI, F. ―‗Constitutum Constantini‘ y ‗Romgedanke‘. La donación constantiniana en el pensamiento de tres defensores del derecho imperial de Roma: Dante, Marsillo de Padua y

Guiliermo de Ockham‖. In: Patristica et Mediaevalia, IV-V (1983/4), p. 67/99.

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primer lugar la soberanía sobre toda la Iglesia, ya que es Constantino quien concede al Papa el primado sobre las restantes Iglesias del mundo; en segundo lugar la soberanía sobre el Imperio occidental, ya que Constantino cede el palacio, la ciudad de Roma y los territorios occidentales; y en tercer lugar la soberanía

sobre el Imperio oriental, ya que la corona que el Papa rechaza, que Constantino lleva consigo a Bizancio y que lo faculta para ser Emperador oriental, era la misma que ese Emperador había poseído desde antes de la donación y que, del mismo modo como lo facultó después de la donatio para ser Emperador en Oriente así tambien lo facultaba antes para ejercer allí la soberanía imperial.

Fácil es percibir, en consecuencia, que ni siquiera la ideología curialista y papal, de la que, obviamente, estaba impregnado todo el documento de donación, se había podido desprender de una concepción de la soberanía que estaba

identificada con la ya mencionada idea de la soberanía total. La concepción de la donatio acerca de la soberanía partía de una soberanía que no se divide y que, aún cuando puede ser enajenada — como de hecho, según la donatio, lo había sido en favor del Papado — era transferida en forma integral y sin admitir participaciones ni enajenaciones parciales. En otros términos, para la donatio el Imperio podía cambiar de sede, es decir podía estar sujeto a la translatio, pero no podía disminuir. Así, el autor de la donatio había incluído eu su falsificación una verdadera doctrina

imperial redactada sobre la base de una idea romana de la soberanía del Imperio. Esa doctrina convertía a la donatio imperii en una translatio imperii. En última instancia el Constitutum no era más que una de las tantas formas de translatio a las que el Imperio habia estado sujeto durante el medioevo. Él fué una falsa translatio.

El nacimiento y autoría de esta doctrina imperial acerca de la soberanía total suele atribuirse a Carlomagno. Sin embargo, las reservas de éste frente a su coronación y sobre todo el hecho de que aquella doctrina estuviera ya

potencialmente contenida en el mismo documento de donación muestran las dificultades que surgen cuando se atribuye aquella teoría a Carlomagno. Ella no fue elaborada en la corte imperial sino en la curia papal y su insinuación en el Constitutum tenía el objetivo de que ella actuara como base juridica para legitimar el traspaso al Papado de toda la soberanía. No es el caso determinar aquí si la donatio aparece antes o después de la coronación de Carlomagno. Independientemente de ello sí debe tenerse en cuenta, en primer lugar, que el Constitutum Constantini fue el primer documento que registra una teoria imperial

y, en segundo lugar, que éste nació, paradojalmente, no a instancias del Imperio sino del Papado: ―Carlomagno no ha inventado la concepción de la que se ha beneficiado‖,11 el mérito de dicha invención no pertenece, en efecto, al Imperio, sino al Papado.

11 Cfr. ARQUILLIÈRE, op. cit. p. 154.

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* * *

Independientemente del origen, autor y fecha de la donatio, es indubitable que el común denominador de las interpretaciones que hemos analizado más arriba acerca de las circustancias históricas que dieron origen al Constitutum es que ese documento procuraba fundamentar la dependencia del Imperio y de toda la Iglesia respecto del Papado en un falso hecho histórico: la transferencia de toda la soberanía de Constantino al Papa Silvestre. Es precisamente este carácter falso de

la donatio el que nos permite introducirnos ahora en el problema que se refere a sus aspectos filosóficos. Ello surgen como respuesta a la pregunta acerca de los motivos que apremiaron al Papado a procurar la legitimación de su carácter supraimperial recurriendo a una falsificación. Pués si en el momento de aparición de la donatio el Papado ya contaba con una nutrida serie de argumentos con los que podía defender teórico-teológicamente su supremacía sobre la Iglesia y sobre el Imperio, ¿qué necesidad le obligaba a recurrir a una falsificación de un hecho

histórico para sostener aquella supremacía? Es precisamente en la respuesta a esa pregunta donde se esconde el sentido de

Constitutum Constantini. Allí, en efecto, se concentra todo el contenido filosófico del documento. Pués si bien es verdad que la donatio se enrola como un argumento más en la larga serie de razones esgrimidas en favor de la supremacía del Papa, sin embargo el tipo de argumentación a que se apela en ella es diferente de las argumentaciones teóricas. Esta nueva argumentación se presenta, en primer lugar, como un recurso a un hecho histórico que, alegado como verídico, actúa como

legitimante de una situación determinada y, en segundo lugar ese hecho histórico debe coincidir con la doctrina que justifica teóricamente esa situación. En otros términos, en primer lugar el hecho histórico ―donatio Constantini‖ debe legitimar la situación ―carácter supraimperial del Papa‖ y en segundo lugar ese hecho histórico ―donatio‖ debe coincidir con la teoría que legitimaba ese carácter supraimperial del Papa. Es por ello que aún cuando la donatio fuera solamene un argumento entre otros, con todo, eu la medida en que ella recurre a la historia como

legitimadora, se presenta como un argumento bien distinto de los argumentos de carácter teórico que hasta ese momento había esgrimido el Papado. El carácter atípico de la donatio es, pués, evidente.

Este carácter atípico de la donatio exige determinar la función que el falsario quiso atribuir a su invención dentro del conjunto, de los argumentos papales. Porque es evidente que si esta vez se apelaba a la fuerza probatoria de la historia y no a la de las doctrinas, no se lo hacía en vano. Más aún, si se falsificaba un hecho

histórico para que él probara algo, no se lo hacia sin objetivos precisos. Parece indudable que si el Papado recurria ahora a la historia a pesar de que contaba con una sólida doctrina que apoyaba teóricamente sus pretensiones políticas, no se

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trataba de nu procedimiento superfluo, sino que lo hacía con el propósito de poner de manifesto que la historia coincidia con lo afirmado por la doctrina. En otros términos, en la mentalidad del falsario la donatio cumplía una función muy concreta: ella debía mostrar que la historia había respondido fielmente a lo

prescripto por la doctrina. Y aunque se hubiera debido apelar a una falsificación para lograrlo, ello aparentemente no importaba mientras se consiguiera adaptar por cualquier medio, el curso de la historia real al curso que la doctrina prescribía que esa historia debía haber tomado.

Este breve análisis puede extenderse. Una conclusión segura, sin embargo, permite afirmar hasta aquí que, aún independientemente de las intenciones del falsario, las consecuencias de la donatio pueden llegar bastante más allá del punto hasta el que han llegado sus valoraciones por la crítica, pués un documento que, en

primera instancia, se presenta solo como una invención con objetivos que parecen limitarse a la sola legitimación de una situación política y a la ratificación de un pensamiento político, aparece recién en su verdadera magnitud cuando, frente a un análisis más profundo, se lo considera desde la perspectiva de la antitesis historia-sistema. Tres son, en consecuencia, los aspectos filosóficos que la donatio Constantini invita a descubrir en dia: el primero es su carácter de argumento atípico y la función que, en tanto tal, le corresponde en las intenciones del falsario

que usó de ella para que la doctrina coincidiera con la historia; el segundo es el hecho de que la donatio reitera una vez más en la historia del pensamiento el binomio historia-razón; y el tercero es el papel que la donatio como falsificación desempefiaba dentro de la mentalidad del hombre medieval que privilegiaba la doctrina frente a la facticidad, adaptando ésta a aquélla.

* * *

La comprensión del problema referido a la función que su autor atribuyó a la donatio debe partir del hecho de que, ante todo, ella acudía en auxilio de un factum histórico concreto que necesitaba de una justificación. Ese factum puede ser expresado con la fórmula Imperium dependet a Papa, en la que Imperium debe entenderse en el sentido amplio que le atribuía la concepción bizantina, es decir concentrando en él tanto la politicidad imperial como la Iglesia. En

consecuencia, la dependencia de todo el Imperio respecto del Papa convertía a éste en una instancia supraimperial que lo colocaba tanto sobre el Imperium propiarnente dicho como sobre la Iglesia. Hasta la aparición de la donatio esa supraimperialidad había sido defendida por el Papado fundamentalmente mediante el recurso a argumentos construídos a partir de sus propias exégis del dado bíblico. Ellos constituían, pués, un cuerpo teórico cuyo dato inicial era escriturario pero cuya articulación era racional. Se trataba, en última instancia, de una teorización que, aunque era política, formalmente estaba mui cerca del

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modus operandi de la teología, ya que, como ésta, aquélla tomaba sus datos iniciales de la Bíblia y, sin pretender racionalizarlos o demostrarlos racionalmente, extraía de ellos sus conclusiones políticas ayudada por la razón. En la medida en que esta argurnentación política deducía racionalmente sus

conclusiones a partir del dato bíblico, ella era teología política. Pero por otra parte, mientras el Papado disponía de un patrimonio doctrinario constituído por esa teología política, el Imperio bizantino en cambio, contaba con un patrimonio histórico que actuaba como sostén de su estructura y de su concepción político-religiosa. Este patrimonio histórico de Oriente estaba constituído, precisamente, por la misma evolución del Império Romano cuya historia había culminado con la transformación de Bizancio en su nueva capital: Constantinopla.

El peso que la posición de preeminencia de la Constantinopla imperial sobre la

Roma papal tenía en la justificación de la política bizantina de supremacía religiosa era tan grande12 que el Papado comenzó a percibir la necesidad de sustituir el argumento imperial basado en la historia — como causa de la transformación de Constantinopla en capital del Imperio — por el argumento basado en la voluntad papal, como causa de dicha transfomación. Se trataba pués, de sustituir un argumento histórico imperial por otro argumento histórico papal pero que era acorde con la doctrina del Papado acerca del alcance de su propia jurisdicción. El

Papado debía probar de alguna manera que, si Constantinopla se había transformado en capital de un Imperio político-religioso y si había logrado alcanzar esa preeminencia, no había sido en virtud de su misma evolución histórica sino a causa del consentimiento papal, lo cual era bien compatible con la misma doctrina papal acerca de la supremacia del obispo de Roma en cuestiones de gobierno eclesiástico y, consecuentemente — dada la identificación entre Imperio y Cristandad — de gobierno civil. Para lograr sus objetivos el Papado

debía encontrar un argumento histórico, es decir un hecho que pusiera de manifiesto que había sido la voluntad papal la causa de que el Imperio tuviera su continuidad en Constantinopla. Y este hecho no debía hacer otra cosa que ratificar fácticamente la doctrina que el Papado sostenía teóricamente.

Esta doctrina del Papado, opuesta a la historia esgrimida por Bizancio, muestra que la lucha entre Imperio y Papado no fue solamente una lucha política

12 Cfr. ULLMANN, W. Il Papato nel medioevo (trad. itai. de I. Cherubini), Roma-Bari, 1975, p. 37.

Dicha preeminencia y la consiguiente supremacía tenían su origen no solo en la ya mencionada superioridad de facto que Constantinopla asumía sobre Roma como consecuencia del traslado de la

capital del Imperio sino tambien en la legislación del Concilio de Calcedonia (451). Éste establecía que

Constantinopla tenía el mismo rango que Roma y que el rango eclesiástico de una ciudad dependia de

su rango civil, lo que implicaba una pérdida de jerarquia de Roma y del Papado. Sobre el tema v. ULLMANN, Historia del pensamiento político en la Edad Media, cit. p. 38, y The Groiwth of Papal

Government in the Middle Ages, London, 1955, p. 10s. 42s. y 77.

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sino que, en la medida en que cada uno de ellos se apoyaba en argumentos de naturaleza diferente fundados a su vez en concepciones radicalmente distintas entre sí respecto del alcance de los sendos poderes, el enfrentamiento entre ambos era filosófico. Se trataba de dos cosmovisiones13 opuestas que se

enfrentaban, de una lucha entre dos principios sobre los que se apoyaban cada una de esas cosmovisiones: el principio bizantino era la historia mientras que el papal era la Cristiandad. Al principio bizantino según el cual el Imperio debía someterse al Emperador, fundado en razones históricas, se oponía el principio papal según el cual la Iglesia debía someterse al Papa, fundado en razones doctrinarias. Pero puesto que el apogeo del Imperio cristiano condujo a una total identificación entre el cuerpo que quería gobernar el Emperador — que comprendía a la Igiesia — y el cuerpo que quería gobernar el Papa — que

comprendía al Imperio — éste y aquél terminaron queriendo gobernar el mismo cuerpo.14 La clave de esta confrontación estaba, pués, en la concepción imperial bizantina que, por una parte, no reconocía la primacía del Papado, y que, por la otra, tampoco reconocía el carácter del Emperador romano asumido por el Emperador de Occidente. En última instancia era el mismo Imperio Romano, ahora en Constantinopla, el que se enfrentaba, por un lado, con el Papado de Roma, y por el otro, con el Emperador occidental creado por el Papado.15

13 ―Por una parte la presunción de los Emperadores de Oriente de ser los sucesores de los Emperadores

romanos era puramente histórica y, por onde, nada tenía que ver con la Cristandad, en tanto que, por la

otra, la presunción del Papado no se fundamentaba y no podía fundamentarse en la historia sino más bien en la consideración ahistórica de la preeminencia papal en virtud de la comisión petrina... En otras

palabras, lo que para uno era un axioma de importancia primaria era para el otro de significación

secundaria. Para el Emperador de Oriente la historia estaba en primer plano y la Cristandad tenía que

someterse a ella, en tanto que para el Papa la doctrina cristiana estaba en primer piano y la historia se subordinaba a ella‖ (cfr. ULLMANN. Principios de gobierno y política en la Edad Media, trad. esp. de

G. Soriano, Madrid, 1971, p. 110). 14 Teniendo en cuenta que para el Emperador ese cuerpo era el Imperio que abarcaba a la Iglesia y

que para el Papa ese cuerpo era la iglesia que abarcaba el Imperio, puede afirmarse, con ULLMANN, que ―el Emperador de Oriente veía en dicho cuerpo al Imperio; el Papa a la iglesia‖

(cfr. ULLMANN, loc. cit.). 15 Ullmann ha resumido el papel protagónico del imperio Romano histórico em el nacimiento de las ideas políticas medievales: ―... cuando en el año 1204 Constantinopla cayó en manos de los cruzados,

Inocencio III pudo por fin exclamar que la iglesia de Constantinopla había vuelto a su madre, la Iglesia

de Roma. Lo que importaba al Papado, desde comienzos del siglo V hasta el siglo XIII, era el no

reconocimiento de su primacía por parte de Bizancio. Más aún, precisamente la negativa de este papel por parte del gobierno de Constantinopla entrañó... serias consecuencias para el Papado que vió en la

creación de un Emperador de Occidente el único médio efectivo para hacer real su papel político de

primacía jurisdiccional. Asimismo lo que importaba a los emperadores de Occidente era el no

reconocimiento por parte de Bizancio de su papel de único César romano. Bizancio es la clave para la comprensión del desarrollo de las ideas ‗políticas‘ del Papado y del Imperio de Occidente. La pura

ideologia determinaba el rumbo de los acontecimientos históricos y esta ideología arrancaba de la

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La donatio aparece como una directa consecuencia de ese confieto. Ella es la expresión más acabada de la dicotomía entre historia y doctrina pero tambien es, al mismo tiempo, la mejor expresión del intento de superarla. El objetivo de su autor habría sido terminar definitivamente con la oposición entre los argumentos

doctrinarios del Papado y los argumentos históricos del Imperio; pero puesto que para ello necesitaba destruir estos últimos, recurrió a la donatio a la que dotó de un argumento histórico cuya función era, por una parte, mostrar que el sistema gubernamental bizantino padecía de un error intrínseco16 constituído por los falsos argumentos históricos que apoyaban ese sistema y, por la otra, probar ―que la continuidad histórica del Imperio Romano en Oriente era consecuencia, no de la historia sino de a voluntad del Papa y, por ende, del mismo orden cristiano‖.17 En lo sucesivo y a la luz del documento de donación, los títulos históricos esgrimidos

por el Imperio no solo debíam desvanecerse como argumentos sino que además debían perder su carácter histórico. Para el Papado, si el Imperio había tenido su continuidad jurídica en Oriente, había sido gracias al arbitrio papal. Pero puesto que además ese arbitrio no podía ser contrario a la doctrina cristiana acerca del problema — ya que dia había sido elaborada por el mismo Papado — en consecuencia la voluntad papal debía coincidir con esa doctrina. De este modo la donatio unía entre sí dos instancias hasta ese momento separadas: historia y

doctrina. La atipicidad del argumento contenido en la donatio y la solución de continuidad que él introducía en relación con los argumentos utilizados hasta ese momento por el Papado provienen, precisamente, de su carácter histórico y de la función que, en tanto argumento fundado en la história, le había sido atribuído por su autor: poner un punto final a la dicotomía entre la historia y la doctrina. De la donatio podía concluirse que historia y doctrina coincidían en apoyo del factum —Imperium dependet a Papa.

* * *

La donatio entendida como disolución de la discontinuidad entre historia y doctrina y como punto de unión entre ambas nos facilita el ingreso en su segundo aspecto filosófico: la donatio como expresión del clásico topos historia-razón o historia-doctrina. Hemos visto que la supremacía del Papa y su carácter

noción de Emperador de los romanos como único ‗Señor del mundo‘‖ (cfr. ULLMANN. Historia del

pensamiento político... p. 93ss. El subrayado es nuestro). 16 Cfr. ULLMANN, Reseña MAFFEI, D. La Donazione di Costantino nei giuristi medievalli, Milano,

1964, en Journal of Theological Studies, XVI (1995), p. 526. 17 Cfr. ULLMANN, Principios de gobierno... p. 116, nota 38 y Historia Del pensamiento político... p.

59: ―lo que el autor de la donación decía explícitamente era que el traslado del gobierno imperial desde Roma a Constantinopla había tenido lugar con el acuerdo y aprobación del Papa Silvestre. Un echo

histórico se interpretaba en términos puramente ideológicos‖.

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supraimperial, cuya fundamentación teórica se había logrado ya a través del recurso a una doctrina, era fundamentada por la donatio en un hecho histórico coincidente con aquélla. Mientras que la doctrina era un producto de la razón — no entendida como resultante exclusivamente de la razón sino como un producto

ideológico construído deductivamente a partir de la exégesis papal del dato biblico — el hecho histórico aludido por la donatio se transformaba en una suerte de norma de derecho positivo resultante de la voluntad del Emperador. En otros términos, a partir del hecho de la donación llevado a cabo por Constantino se deducía con carácter normativo el principio según el cual la soberanía Imperial corresponde al Papa. De ese modo tanto la doctrina papal como la historia que el Papado había construído con ayuda de la donatio coincidían en afirmar que Imperium dependet a Papa. En consecuencia la norma positiva originada en el

factum constituído por la voluntad del legislador — en este caso Constantino — coincidía con los preceptos del orden eterno puestos de manifiesto por la doctrina racional que se había originado en la hermenéutica papal del orden eterno querido por Dios. Por ello la donatio desempeña un papel protagónico como instancia que reitera el topos historia-razón, recurrente en la historia del pensamiento. Corrigiendo el curso de la historia, la donatio procura superar la antítesis que presenta ese binomio. En lo sucesivo la historia ya no debe presentarse como

antítesis de la doctrina sino que, solidaría con dia, debe someterse a sus prescripciones. De hecho, la donatio cumplía con esos requisitos y lo hacía tan bien que por ello se transformaba en el nexo entre la filosofía y la realidad, entre la teoría y la facticidad histórica.18

* * *

Como tantas otras falsificaciones que vieron la luz en el medievo, tambien la donatio procedía a hacer depender la facticidad de la historia humana respecto del derecho divino y a subordinar el curso de los hechos al programa de la Cristiandad.19 Se trataba, en última instancia, de anteponer el orden que se suponía querido por Dios al rumbo que efectivamente había tomado la historia. El historiador se siente casi obligado a preguntarse si acaso la mentalidad medieval favoreció la aparición de tales falsificaciones y si existía en el medievo algún tácito

motivo que fomentara la profusión de esos pseudodocumentos. En la respuesta a estos interrogantes se resuelve el tercer aspecto filosófico que percibimos en la

18 ―... la donación fue inventada para que ella fuera la milagrosa confirmación de los puntos de vista

[de los canonistas, es decir de los teóricos del Papado]. A través de su incuestionable veracidad

histórica, la donacián constituía el vinculo entre su abstracto razonamiento filosófico [de los

canonistas] y las realidades de la vida (Cfr. ULLMANN, Medieval Papalism. The political theories of lhe medieval canonists, London, 1949, p. 108. 19 Cfr. ULLMANN, Principios de gobierno... p. 110.

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donatio: su papel en cuanto faisificación, es decir su función en relación con la forma mentis del hombre medieval.

Cuando se trata de estudiar los productos culturales de una époea histórica, uno de los procedimientos más eficaces para acceder a su comprensión integral es

colocarse dentro de sus propios criterios para dejar aflorar a partir de ellos sus creencias y modos de pensamiento. Si ello logramos con la donatio Constantini, ella no solo aparecerá como paradigma intelectual de ese período sino que además ofrecerá un hilo conductor fundamental para interpretar el medievo.

Revisando los distintos niveles de análisis que ofrece la donatio observamos que ella cubre un vasto espectro de posibilidades que van desde la donatio considerada simplesmente como documento falsificado para satisfacer una necesidad concreta surgida de esta coyuntura política, hasta la donatio considerada

como integrante de un extenso cuerpo de falsificaciones que reflejan un aspecto de la mentalidad medieval. La donatio puede ser analizada, pués, como documento único e irrepetible — pués sirve solo para un caso — y como concepto, es decir en tanto falsificación en general. En efecto, en una primera caracterización la donatio aparece como un documento espúreo que presenta como verdadera, entre otros datos falsos, una supuesta cesión de derechos en favor del Papado. En esta instancia la donatio sirve exclusivamente — y de hecho así se analiza — para

legitimar el factum del carácter supraimperial del Papado. Luego la donatio aparece como un argumento que, a causa de su peculiariedad — es decir en la medida en que ella recurre a la historia — no se compatibiliza fácilmente con la naturaleza puramente teórica de los argumentos utilizados hasta ese momento por el Papado. En este caso la donatio debe mostrar la coincidencia del curso de la historia con los preceptos de la doctrina. En una tercera instancia la donatio pierde algo del carácter individual y único que había asumido en los dos niveles anteriores

— es decir pierde su individualidad como documento destinado a resolver un caso — para enrolarse en la historia del binomio historia-razón y para superar las antítesis implícitas en él. En una última caracterización aparece el ya anunciado tercer aspecto filosófico de la donatio: su integración como un episodio más dentro de un modus operandi medieval manifesto a través de las falsificaciones. Función de estas últimas, tan abundantes en el medievo, es adaptar un estado de cosas histórico a una concepción ideal y objetiva de la verdad: las cosas deben ser y suceder tal como indica ese orden objetivo.20 En este cuarto caso la donatio ha

20 La tesis referida a las faisificaciones como instancia que adecúa la facticidad a la idealidad fue

sostenida por Horst FUHRMANN en un extenso trabajo, Einfluss und Verbreitung der

pseudoisidorischen Fälschungen, 2 v. Stuttgart, 1972/4. Como el título del libro lo indica,

FUHRMANN se dedica allí sobre todo a las decretales pseudoisidorianas, es decir a un cuerpo jurídico que recogía un conjunto de faisificaciones que, presentadas como verdaderas, estaban destinadas a

apoyar el pensamiento hierocrático y papal (Sobre el problema ofrece una primera información

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abandonado totalmente su individualidad para pasar a convertirse en un documento más de un enorme conjunto de falsos documentos destinados a mostrar la concordancia entre historia y razón.

¿Qué significan entonces ias falsificaciones y la donatio entre ellas desde y

para la perspectiva medieval? Desde la perspectiva medieval ellas adquiren su significado a partir de una determinada concepción de la verdad vinculada, por una parte, con la idea de auctoritas y vetustas y por la otra con un orden objetivo y trascendente cuya norma no son los hechos sino el orden divino. En consecuencia un hecho o una realidad, cuanto más respaldados se encuentren por una auctoritas y cuanto más reflejen aquel orden divino, tanto mayor grado de verdad ilevarán consigo. Si para conformar, ratificar o promover ese orden es necesario alterar nombres, cambiar fechas o inclusive fabricar un documento proveyéndolo del

respaldo que suministra una vieja auctoritas cercana al origen, ―... por medio de ello no se hace otra cosa que ayudar a triunfar la verdad‖.21 Para la perspectiva medieval una falsificación de ese tipo no será calificada como falsa en relación con esos datos sino en cuanto ella contenga una no-verdad que objetivamente se juzga como tal en relación con un orden tenido por verdadero. Por ello, lo que desde nuestra moderna perspectiva es considerado científicamente como una falsificación, ―...puede ser, en condiciones históricas de otro tipo, la manifestación

del acuerdo entre lo que es un hecho y el orden auténtico‖.22 Y tambien la donatio Constantini se había propuesto y, como las falsificaciones, había conseguido mostrar, que los hechos eran manifestación de ese orden. Ella es, pués, en cuanto falsificación, una expresión paradigmática de la forma mentis de un período que recurre a la falsificación en forma casi programática. En este sentido la donatio es el refiejo de una mentalidad y de una concepción de la verdad identificada con una

ULLMANN, Historia del pensamiento político... p. 78/83). Las decretales pseudoisidorianas han sido

publicadas por P. HEINSCHIUS en Decretales Pseudo-Isidoriae et capitula Angilramni, Leipzig,

1863, cuya páginas iniciales ofrecen tambien una rica información acerca de su contenido. Un informe bastante detallado del contenido del libro de Fuhrmann ofrece Y. CONGAR en ―Les fausses

décrétales, leur réception, leur influence‖, en Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 59

(1975), p. 279/288. Aunque Fuhrmann y Congar se refieren exclusivamente a las falsas decretales, sus afirmaciones pueden hacerse extensivas a todas las falsificaciones medievales. Congar resume la tesis

de Fuhrmann en los seguiente términos: ―¿Cómo explicar que tantos hombres religiosos, sacerdotes y

monges, dedicados a la búsqueda de la perfección cristiana, conociendo las exigencias morales de

Dios, hayan producido tal cantidad de falsificaciones? La respuesta es extremamente interesante. Paradojalmente es la idea misma de Dios y la manera de concebir lo que, según él, son el orden, el

derecho, la justicia y la equidad, lo que explica un hecho que, ante todos nos asombra y escandaliza...‖.

De allí que ―... hombres leales y virtuosos hayan fabricado en masa y con tranquilidad de consciencia

falsificaciones de diverso tipo‖ (Cfr. CONGAR, op. cit. p. 280). 21 Ibid.p.282. 22 Ibid.

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norma objetiva y trascendente cuyo criterio de verificación no son los hechos sino su correspondencia con el orden divino.

La función de la donatio como legitimante de la situación de dependencia del Imperio respecto del Papado, su papel vinculante de la historia con la doctrina, su

reiteración del leit-motiv historia-razón, y finalmente su carácter de falsificación que adecúa la realidad histórica a un orden objetivo son todas notas que, resumidas en una, podrían ser sintetizadas así: la donatio debía adecuar la historia política e institucional del Imperio Romano a lo que el pensamiento cristiano curial y papal afirmaba acerca de esa historia. No se trataba, sin embargo, de enunciados puramente teóricos acerca de su texto ni de características que se coligían de su contenido pero que limitaban su validez exclusivamente a él. Lo que el curialismo atribuía a la donatio debia tener repercusión, es decir, esas notas habían sido

puestas en la donatio para que pudieran ser usadas, pues se trataba de notas que se le habían asignado para que sirvieran de ayuda a la defensa curialista del pensamiento y de las pretensiones políticas papales. De allí que la presencia de esas notas en toda interpretación curialista del Constitutum resulte inevitable, y de allí que toda exposición curialista del pensamiento político que apoyaba la supremacía papal recurriera a la donatio, ya que ésta ofrecía la versión curialista de un importante episodio de la historia del Imperio Romano. Es el caso, por ejemplo, de

la exposición de Tolomeo de Luca.23

* * *

Contemporâneo de Dante24 y enrolado en las filas del curialismo más extremo, Tolomeo de Luca (1236-1326)25 explicitó, como aquél lo había hecho en el De Monarchia, un esbozo de teología de la historia que incorporó al Libro

III del tratado inconcluso De Regimine Principum de Tomás de Aquino.26 La teología de la historia de Tolomeo incluye el episodio de la donatio Constantini, a la que entiende como una cesión del Imperium, es decir como una efectiva cesión de la soberanía en favor del Papa. Con ello Tolomeo interpreta la donatio desde la más ortodoxa perspectiva papal. Para Tolomeo, en efecto, el dominium, es decir la soberanía del Papa, no se limita a su potestas espiritual. Para demostrarlo recurre a un locus clásico de la antropología medieval: la distinción

23 Sobre el pensamiento de Tolomeo de Luca v. especialmente BAUERMANN, i. Studien zur

politischen Publizistik in der Zeit Heinrichs VII, u. Ludwigs d. Bayern. Diss. Brelau, 1921. 24 Para las relaciones entre Dante y Tolomeo, v. nuestro ―Constitutum Constantini...‖ (como nota

10) en Patristica et Mediaevalia, III, 1982, p. 44ss. 25 Datos biográficos de Tolomeo en Karl KRÜGER, Des Tolomäus Lucensis Leben und Werke,

Göttingen, 1874, p. 9/24. 26 Utilizo el texto incluído en Opuscula Philosophica Divi Thomae Aquinatis, Marietti, Roma,

1973, p. 253/258. De esta edición cito parágrafo y página.

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entre cuerpo y alma. Del mismo modo como aquél se subordina a ésta y puesto que lo corporal y lo temporal dependen de lo espiritual,27 el dominium del Papa es superior a todo otro dominium28 en cuanto este último depende siempre de aquél.29 Es obvio que para Tolomeo, que como vimos sostenía la doctrina de la

supremacía papal incluso en lo temporal, el episodio de la donatio no podía tener otro significado que la confirmación en la historia [in actis et in gestis]30 de aquella doctrina que él había demostrado antes teóricamente: ―Un argumento en favor de ello nos ofrece la historia (in actis et in gestis) de los Sumos Pontífices y de los Emperadores (...) en primer lugar Constantino, que cedió el Imperio a Silvestre (...) como lo atestigua la historia‖.31

Como es fácil percibirlo, puesto que, según la interpretación que Tolomeo hace dela donatio, Constantino había cedido a Silvestre nada menos que el

Imperium,32 la donatio no era para él un acto jurídico de índole privada, sino que ella constituía una cesión que afectaba directamente el derecho público y, por ello, en esa cesión estaba implicada la misma soberanía o dominium superius. Para Tolomeo era pués la misma historia la que actuaba en favor de los argumentos teóricos y eran los mismos hechos los que ratificaban esos argumentos. Si comparamos ahora la interpretación que Tolomeo hace de la donatio con el propósito que el falsario se había propuesto al crearla, es decir con el mismo

contenido de la donatio, se observará que, del mismo modo como sucedía con la interpretación de Tolomeo, la donación acreditada por el Constitutum tambien afectaba a la historia del Imperio Romano en un punto nuclear, pues tambien en este caso se trataba de una cesión de soberanía: en efecto, mediante episodio de la donatio, el Constitutum se proponía, como ya lo hemos mostrado, adaptar esa historia a la doctrina curialista acerca de la sede de la soberanía imperial que la donatio hacía residir en el Papa. De ese modo, la posición de Tolomeo respecto de

la donatio coincidía plenamente con el espíritu que había movido al falsario a inventarla; la coincidencia se verificaba en que, para ambos, un episodio de la historia del Imperio Romano constituía la restitución al Papa, de facto, de lo que a él correspondía teóricamente, es decir de iure. Con todo, si en el caso de la donatio esa restitución fáctica ha sido ya ampliamente probada, resta ahora probar en forma más contundente y a la luz de los textos de Tolomeo, que tambien para él se trató de la confirmación histórica — mas aún, providencial! — de un ius. Si ello logramos, habremos probado el êxito de la donatio, pues dia habría sido usada y

27 Cfr. op. cit. L III, 10. n. 980, p. 309. 28 Cfr. Ibid. p. 308. 29 “La jurisdicción temporal depende de la espiritual de Pedro y sus sucesores‖ (ibid. p. 309). 30 Cfr. Ibid. n. 981, p. 309. 31 Ibid. 32 El texto dice ‗in Imperio cessit‖.

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aprovechada por uno de los más importantes teóricos del curialismo tal como el falsario se propuso que lo fuera.

Para Tolomeo, cada uno de los momentos de la historia del Imperio Romano había respondido a un designio providencial. Del mismo modo él consideraba

providencial la causa del dominium ejercido por los romanos sobre el resto del mundo.33 Asi tambien la donatio Constantini había sido un episodio directamente provocado por la providencia, pues de hecho la milagrosa curación de Constantino, que fue el antecedente inmediato de la donatio, había escapado a toda causa natural: ―Llegado el momento de manifestar al mundo la disposición del reino de Cristo, el poder de Jesucristo nuestro principe utilizó al principe del mundo, Constantino, hiriéndole con la lepra y curándolo más allá de toda posibilidad humana‖.34 Pero hay todavía más: además de identificar la causa del episodio que

involucraba a Constantino y a Silvestre con la providencia, Tolomeo afirma que, mediante la donatio, esa providencia había querido confirmar fácticamente, es decir en la historia, lo que desde siempre correspondía al Papado de iure, es decir según la doctrina: ―Luego de lo cual, Constantino cedió a Silvestre, vicario de Cristo, el dominio político [la soberanía] sobre lo que, según las razones y argumentos más arriba determinados, le debía de iure‖.35

La donatio Constantini había sido, pués, para Tolomeo como para todo el

curialismo, el punto en el que confluían historia y doctrina y el puente que unia el hecho y el derecho. En el factum de la donatio, la voluntad divina manifestada en el tiempo hacía uso de un elemento temporal (‗utilizó al príncipe del mundo, Constantino‖) para ordenar el curso de los acontecimientos históricos en forma coincidente con el orden objetivo que el curialismo suponía querido por Dios. De ese modo ese orden objetivo, que no era otra cosa que el reino de Dios, debía realizarse en el tiempo: ―En esa cesión el reino temporal se agregó al reino

espiritual de Cristo... y se cumplió lo escrito por Isaías: ‗se ampliará su Imperio y la paz no tendrá fin‘‖.36 Así, la providencia operaba la realización histórica de lo que en sí mismo correspondía que sucediera: la subordinación del poder temporal al espiritual implícita en lo que el curialismo entendía por ‗Reino de Dios‘. En suma, tanto el ánimo del autor de la donatio como el espíritu que inspiró las falsificaciones y el motivo que condujo a Tolomeo a incluiria donatio dentro de su proyecto histórico-teológico providencial, todos ellos participaban de una misma

33 ―Su dominio político (potestas dominandi) no les fue dada [a los romanos] sino por la providencia del sumo Dios‖ (Cfr. Ibid., n. 945, p. 300). 34 Cfr. Ibid., L. III, 16, n. 1006, p. 317. 35 En otros términos: el plan y orden providenciales divinos se cumplian histórica y temporalmente en

el hecho de la donatio. Ésta confirmaba en el tiempo lo que debía suceder según criterios extratemporales. 36 Ibid.

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mentalidad: lo contingente debe adecuarse a lo absoluto y lo que acaece en el tiempo debe compatibilizarse con el orden objetivo y verdadero que prescribe lo que debe acaecer. Tal es lo que hemos llamado la ―filosofía de la donatio Constantini‖. Ésta satisfacía así los objetivos que le había atribuído el curialismo:

facilitar la argurnentación que defendía la supremacía papal in temporalibus y consolidar la situación supraimperial de Papado.ibid.

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7

O DEVER DA FIDELIDADE NO MANUAL DE DHUODA

RUY NUNES

Professor aposentado da FE — USP

No original e valioso Manual para meu filho, escrito por Dhuoda, uma senhora

alemã, a fim de instruir o seu filho mais velho sobre as verdades religiosas, e de lhe inculcar o dever de fidelidade para com o Rei e o Senhor, depara-se um precioso documento, muito esclarecedor sobre vários aspectos da crença e da vida na conturbada época do final do reinado de Luís, o Piedoso, quando os aristocratas carolíngios começaram a revoltar-se contra o Imperador, e quando se iniciou a

precoce e inesperada desagregação do império formado por Carlos Magno. Meu intento, porém, é sobretudo salientar na obra de Dhuoda o papel desempenhado na educação de um nobre pelo senso do dever de fidelidade para com o Senhor, e pela própria noção de vassalidade que, nessa época, começa a possuir conotação profundamente religiosa e não apenas política e social.

I

No dia 25 de dezembro do ano 800, realizou-se o sonho de Carlos Magno, o plano longamente concebido de ser proclamado soberano da Cristandade e o sucessor dos imperadores romanos do Ocidente. Depois de haver defendido e beneficiado o Papa Leão III, o rei Carlos, Patrício dos Romanos, dirigiu-se à igreja de São Pedro, em Roma, onde se prostrou a rezar antes da celebração da Missa. Quando ele se levantou, o Papa se aproximou e lhe colocou na cabeça uma coroa,

enquanto o ―povo romano‖ fazia estrugir na igreja a aclamação: ―A Carlos Augusto, coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos Romanos, vida e vitória!‖.1 Eginhardo conta, na sua biografia de Carlos Magno, que este ficara

1 In die natalis Domini ante confessionem beati Petri apostoli, cum rex ab oratione surgeret, Leo papa coronam capiti eius imposuit, et a cuncto Romanorum populo adclamatum est: ―Carlo Augusto a Deo

coronato magno et pacifico imperatori Romanorum vita et victoria‖. Annales Fuldenses sive Annales

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muito aborrecido com essa coroação, e que ele declarara que se tivesse sido prevenido, nem teria comparecido à igreja naquele dia, apesar de ser um dia santo tão festivo.2 Começou, então, Carlos Magno a agir como o representante de Deus que, escreveu ele ao Papa Leão III, ―tem por missão proteger e governar todos os

membros de Deus‖. No início de 806, o imperador promulgou um ato determinando o modo como

deveria processar-se a sua sucessão em caso de morte, e declara esperar que os seus filhos continuem a proteger a Igreja, tal como ele próprio, seu pai e seu avô o fizeram, assegurando a defesa da Igreja de São Pedro, e fazendo-lhe prestar justiça. Numa das suas Capitulares, outrossim, estatuiu a forma de juramento de fidelidade, que ligava individualmente à pessoa do imperador todos os habitantes masculinos do Império, desde os 12 anos. ―Prometo, reza o texto, a partir deste dia, ser fiel ao

senhor Carlos, imperador muito piedoso, filho do rei Pepino e da rainha Berta, sinceramente, sem mentira nem más intenções, e pela honra do seu reino, como o dever impõe que um homem o seja ao seu senhor e amo; que Deus e os santos cujas relíquias aqui estão me protejam, porque, em todos os dias da minha vida, com toda a minha vontade e toda a inteligência que Deus me der, nisso o empregarei e a isso me consagrarei‖.

Comentando esse juramento de fidelidade, escreve Luis Halphen: ―Um

compromisso deste tipo, numa sociedade impregnada de espírito religioso, era considerado indissolúvel, Infringi-lo significava perjurar. Era, por conseqüência, perder o direito a recorrer, a partir de então, ao juramento para se justificar contra as acusações, ver-se desqualificado como testemunha perante os tribunais; era o mesmo que expor-se à amputação da mão direita, cúmplice do juramento falso; era colocar-se na categoria dos infiéis, fora da lei, cujos bens e vida não tinham proteção; e, o que é mais grave, era a certeza da condenação eterna‖.3

Regni francorum Orientalis (In usum scolarem). Post editionem G. H. Pertzil recognovit Fridericus

Kurze. Pars Prima auctore Einhardo. Hannover, 1891, p. 15.

―Alcuin and a few other clerics had developed an idea linked with ancient traditions. To protect the church against many corrupt practices and dangers. The realization of the will of God on earth required

the reestablishment in the West of an imperial power that would protect faith and church.

Charlemagne, in their eyes, fulfilled the necessary conditions to be that Roman Christian emperor; to be, indeed, an emperor quite different in their minds from the historical Constantine and Theodosius.

Favorable circumstances occurred... It was, I believe, owing to Alcuin that he went to Rome with the

idea of putting order into the affairs of the church; it was under the same influence that he accepted

there the imperial dignity. Pope Leo III crowned him emperor on 25 December 800‖. François L. Ganshof, Charlemagne in Speculum, v. 24, obtober 1949, p 524. 2 ÉGINHARD, Vie de Charlemagne, p. 80. Éditée et traduite par Louis Halphen. Troisième édition,

revue et corrigée (Les Classsiques de l‘Histoire de France au Moyen Age). Paris: Les Belles Lettres,

1947, p. 80. 3 Louis HALPHEN, Carlos Magno e o império Carolingio. Tradução de Artur Pinto. Lisboa:

Editorial Início, 1971, p. 151.

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Um ano antes de sua morte, ocorrida em 814, Carlos Magno transmitiu a coroa imperial ao seu único filho sobrevivente, o mais novo, Luís, que veio a ser cognominado de Piedoso, Pius, devido ao seu espírito religioso e à sua dedicação às coisas da Igreja. O imperador Luís, o Piedoso, que ainda em vida fizera reis

seus três filhos, Lotário, Luís, o Germânico, e Carlos, o Calvo, teve de lutar contra eles, passou por enormes vexames, e até mesmo pela deposição do cargo, particularmente devido ao seu casamento em 819, após enviuvar de Irmengarda, com a bela e fogosa Judite da Baviera, que passou a lhe influenciar a política. Para mal de seu pecados, Luís, o Piedoso, em julho de 817, havia proclamado imperador o seu filho mais velho, Lotário, de 22 anos, associado desde então ao pai no exercício do poder, e nomeara seu filho Pepino rei de Aquitânia, e o filho Luís, rei da Baviera.

Eleito o Papa Eugênio II, após a morte de Pascoal I(11/2/824), um ato imperial de 824 regulamentou as relações do Papado com o Império, colocou o Estado Pontifício sob a proteção dos Francos e sujeitou o Papa à autoridade imperial. Vieram, depois disso, a revolta dos filhos de Luís, o Piedoso, o golpe de estado dado por Lotário, a restauração do imperador, e a sua morte aos 20 de junho de 840.

A despeito do juramento de fidelidade, preconizado por Carlos Magno, os

filhos de Luís, o Piedoso, se engalfinharam após a morte do pai. Depois das guerras entre os irmãos, e após a partilha dos territórios e os juramentos de Estrasburgo em 842, entre Carlos e Luís, o Germânico, os três irmãos chegaram a uma composição no acordo definitivo, selado em Verdun em agosto de 843 e que, embora alterado, continuaria a balizar por muito tempo os territórios da Europa.

Ora, exatamente de 2 de fevereiro de 843 é datado o Liber Manualis Dhuodane quem ad filium suum transmisit Wilhelmum, O Manual de Dhuoda,

dedicado ao seu filho Guilherme.

II

Os ligeiros acenos feitos às relações entre o Papa e o Imperador, entre a Igreja e o Império, no período carolíngio, compelem-me a lembrar ao leitor desavisado quanto à mentalidade dessa época, que não se pode falar, como hoje

na nossa sociedade, de distinção entre Igreja e Estado como, aliás, nem se pode pensar em tal distinção e no relacionamento das duas esferas, como se viria a fazer no fim da Idade Média. Seria uma incongruência, e um grave erro de interpretação histórica, aplicar ao império carolíngio certas categorias do pensamento político que por então nem se cogitavam. Como observa Dawson, na Idade Média ―a realidade social última não era o reino nacional, mas a unidade comum do povo cristão, do qual o mesmo Estado não era mais que o Órgão temporal, e o rei, o guardião e defensor nomeado pela divindade‖. O

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Estado medieval, segundo Dawson, conservava a herança dos povos bárbaros, as instituições dos povos germânicos, enquanto a Igreja mantinha a tradição da cultura latina e da ordem romana. O império carolíngio diferia do bizantino por não possuir uma burocracia seleta ou classe de advogados e, por isso, o

imperador intervinha nos assuntos eclesiásticos, e o clero atuava predominantemente na administração secular do Império. O rei tinha a primazia do poder e do prestígio, mas os domínios senhoriais usufruíam de notável autonomia local, de modo que o máximo suzerano temporal se devia equilibrar entre a sociedade universal da Igreja, guardiã da cultura, e o poder dos aristocratas que lhe juravam fidelidade por livre escolha, e em troca de favores e benefícios.4

III

Dhuoda era alemã, de cepa aristocrática, e de família aliada à dinastia carolíngia.5 Ao terminar o seu Manual, em 843, tinha 40 anos. Casara-se com Bernardo de Septimânia aos 29 de junho de 824, na capela do palácio de Aix-la-Chapelle. Bernardo era filho de Guilherme de Gellone, primo-irmão de Carlos Magno. Comandou a Marca de Espanha, defendeu-a contra os muçulmanos,

obteve importante vitória em 827, tornou-se camerarius na corte de Aix, e ajudou o imperador Luís, o Piedoso, quando das intrigas do seu filho Lotário. Dhuoda deu à luz o filho, em 29 de novembro de 826, que recebeu o nome de Guilherme em honra do avô, São Guilhem. Dhuoda e o filho seguiram Bernardo nas suas andanças, impostas pelas tribulações do reino. Finalmente, Dhuoda instalou-se em Uzès, capital do condado pertencente à Marca de Gótia e, após a morte do imperador Luís, seu marido achava-se com ela. Aos 22 de março de

841 nasceu-lhes o segundo filho, Bernardo. No conflito entre os filhos de Luís, o Piedoso, Bernardo apoiou Pepino II de Aquitânia, mas, após a batalha de Fontenay em Puisaye (22/6/841), ele se passou para o lado de Carlos, o Calvo, e como penhor desse apoio, enviou seu filho Guilherme para a corte de Carlos. De Uzês foi levado, também, o filho Bernardo, ainda bebê, para ficar junto do pai na Aquitânia. Solitária, sem os filhos e o marido, Dhuoda, aos 30 de junho de 841, começou a escrever o Manual, dedicado a Guilherme que deveria, mais tarde, dá-

lo a conhecer ao irmão.

4 Christopher DAWSON, Ensayos acerca de la Edad Media. Traducción del inglés por Justo

Fernández Buján. Madrid: Aguilar, 1956, p. 103-108. 5 Esses dados biográficos de Dhuoda são extraídos da excelente Introdução escrita por Pierre

Riché para a edição do Manuel pour mon fils (Sources Chrétiennes n 225). Introduction, Texte critique, Notes, par Pierre Riché. Traduction par Bernard de Vregille et Claude Mondésert s. j.

Paris: Cerf, 1975.

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Em 844, o marido de Dhuoda foi acusado de traição por Carlos, o Calvo, e condenado por ele à morte em Toulouse. Guilherme, seu filho, reuniu-se então ao rei Pepino de Aquitânia, que lhe concedeu em 845 o condado de Bordeaux. Em 848, Guilherme tentou apoderar- se da Marca de Espanha, que seu pai comandara,

tomou Barcelona mas acabou preso e decapitado em 849. O outro filho de Dhuoda, Bernardo, parece ter sido mais bem sucedido, se

é que ele se identifica com o célebre Bernardo de Plantevelue, pai de Guilherme, o Piedoso, fundador de Cluny.

IV

No tempo de Dhuoda, e já em épocas anteriores, os clérigos soíam escrever livros de aconselhamento político para os príncipes e para os jovens nobres. Essas obras pertenciam ao gênero literário dos ―espelhos‖.Na época carolíngia os termos manual e espelho eram empregados geralmente como sinônimos. Aliás, como observa Riché, esse gênero literário remonta à antiguidade egípcia e hebraica, passou às civilizações bizantina e árabe. Os ―espelhos‖ apresentavam-se como guias de orientação política, de educação física, moral e literária para os jovens aristocratas.

No prólogo do seu livro, Dhuoda diz a seu filho Guilherme, que assim como o jogo de dados, tabularum lusus,6 era o mais indicado para a distração dos jovens, e assim como as mulheres costumavam examinar o seu rosto num espelho para limpá-lo das manchas e torná-lo bonito para os seus maridos,placere maritis, assim ela espera que o filho se entretenha com o seu livrinho, como se se tratasse de um espelho e de um jogo de dados. ―Nele encontrarás, diz ela, tudo o que desejares saber em poucas palavras como, também, um espelho no qual poderás contemplar

sem hesitação a salvação de tua alma, de modo que possas em tudo agradar não só ao mundo, mas àquele que te formou do limo da terra‖.7

O Manual de Dhuoda, diz Riché, destaca-se pela originalidade,já que o seu autor não foi um clérigo mas uma mulher leiga, nobre e casada, ―o que lhe confere um lugar único na literatura latina da alta Idade Média‖. O Manual é um livro de educação que uma zelosa e erudita mãe escreve para o filho, e nesse gênero é uma obra literária única, que Dhuoda redigiu como o seu testamento espiritual, sobre

possuir caráter autobiográfico que os outros espelhos não apresentam, assim como

6 Tabularum lusus é o jogo de tabuleiro. Tal, o ensinamento da Sto. Isidoro de Sevilha: ―De tabula. Alea, id est lusus tabulae, inventa est a Graecis in otio Troiani belli a quodam milite Alea

nomine, a quo et ars nomen accepit. Tabula luditur pyrgo, calculis tesserisque‖. Etymologiae sive

Origines. Lib. XVIII, cap. 60. Edição Lindsay, Oxford, Tomo II, 1966. 7 ―Inuenies in eo quidquid in brevi cognoscere malis, inuenies etiam et speculum in quo salutem animae tuae indubitanter possis conspicere, ut non solum saeculo, sed ei per omnia possis placere

qui te formauit ex limo‖. Dhuoda, Manuel pour mon fils, p. 80.

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importância histórica, já que foi composto entre a morte de Luís, o Piedoso, em 840, e a partilha de Verdun, em 843. O Manual de Dhuoda foi escrito entre 30 de novembro de 841 e 2 de fevereiro de 843, e dedicado ao seu filho Guilherme, de 16 anos. Ele revela o nível de cultura profana e religiosa de uma mulher leiga, na

metade do século IX.

V

Para certos leitores de hoje, não familiarizados com a vida e a cultura na Idade .Média, o Manual de Dhuoda pode causar espécie, dado o seu teor profundamente religioso e católico, Dhuoda ensina ao filho as verdades fundamentais da fé, fala do

amor de Deus, do mistério da Trindade, das virtudes teologais, dos dons do Espírito Santo, das beatitudes, do combate aos vícios, da aquisição das virtudes, da oração, das tribulações, da morte temporal e eterna, da vida espiritual e do seu sustento, das preces que deve elevar a Deus pelos pais, pelo rei, pelo senhor, pelos parentes vivos e defuntos, e chega até mesmo a dissertar sobre a aritmologia sagrada, em moda na sua época. Alguns pontos de suas recomendações religiosas merecem especial realce. Assim, Dhuoda inculca ao filho a recitação das horas litúrgicas, a prática da Confissão, e a devoção pelas almas do Purgatório.

Além das orações que ela sugere ao filho, tiradas dos livrinhos de oração privada, Precum libelli, muito difundidos em sua época e existentes noutras bibliotecas de leigos, Dhuoda aconselha ao filho recitar as ―horas canônicas‖, o breviário, tal como os monges; no que não ia novidade, já que, desde os albores da Igreja, os fiéis comuns entoavam os louvores a Deus, associados às pessoas consagradas, os bispos e os padres e, depois, os monges. ―Recita as horas canônicas, diz Dhuoda ao filho, desempenha teu dever conforme está escrito: Sete

vezes por dia entoei o teu louvor‖ (Salmo 119-118, v. 164).8 Depois de recomendar o respeito aos ministros de Deus, Dhuoda acrescenta:

―Faze-lhes, em segredo, do melhor modo possível, a tua confissão sincera, com suspiros e lágrimas‖.9 E esse passo revela como na época carolíngia era habitual a prática da confissão individual e auricular.

Por fim, Dhuoda inculca ao filho a devoção pelas almas do Purgatório, Depois de indicar todas as espécies de pessoas pelas quais o filho deve rezar, ela escreve:

―Ora, também, por todos os fiéis defuntos, a fim de que o Cristo misericordioso

8 DHUODA, Manuel pour mon fils, p. 130. 9 ―Da illis, ut melius nosti, tuam occulte cum suspirio et lachrymis ueram confessionem. Nam, ut aiunt

doctores, uera confessio a morte liberat animam et non patitur ire ad ima‖. Ib., p. 196.

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lhes venha em socorro e se digne lhes acolher as almas no seio de Abraão, para que mereçam receber mais tarde, com os santos, o repouso e o refrigério‖.10

VI

O laço jurídico do relacionamento, de subordinação de um homem livre a um senhor, estabelecia-se, nos séculos VIII e IX, por meio de dois atos: a recomendação e o juramento de fidelidade. No primeiro, quem se recomendava, a saber, o futuro vassalo, colocava as mãos juntas entre as mãos da pessoa a quem se submetia, em troca de favores, segundo as fórmulas: in vasatico se coininendare per manus, recomendar-se em vassalagem pelas mãos; manus suas commendare,

recomendar as suas mãos: in manus ou in manibus N. se commendare, recomendar-se nas mãos de um tal. Como observa Ganshof, ―estes últimos textos mostram que as mãos do futuro senhor tinham igualmente um papel a desempenhar no ritual do ato‖.11 O duplo gesto das mãos, immixtio manuum, constituía o ato da recomendação, quer de um homem pobre e humilde, quer de um rico e guerreiro, ao senhor, um rei ou um nobre.

Na segunda metade do século VIII e no IX, acrescentou-se à recomendação o novo ato do juramento de fidelidade, a promessa de ser fiel, apoiada num

juramento em que se apelava para Deus, e se tocava numa res sacra, relíquia, evangeliário etc. ―O juramento de fidelidade, explica Ganshof, deve ter-se ajuntado à recomendação, o mais tardar, em 757, quando o duque da Baviera, Tassilo III, entrou na vassalidade do rei Pepino III‖ e, a partir da época carolíngia, em virtude do caráter religioso do ato, passou a existir uma mística da vassalidade: ―uma vida interior forjando em inúmeros vassalos a dedicação absoluta pelo seu senhor, razão de ser essencial da instituição‖.12

Em troca do serviço devido pelo contrato de recomendação, tal como o fornecimento de víveres, de soldados, de armas, ajuda financeira etc., e pelo juramento de fidelidade que implicava ser leal e não mentiroso, o vassalo recebia, como usufrutuário, um benefício que podia ser um domínio, terras, palácios ou dignidades que representavam cargos lucrativos. E era, principalmente, pelo desejo de enriquecer e de obter mais benefícios, nota Ganshof, que certos vassalos abandonavam ou traíam o seu senhor.

Por outro lado, a concessão, feita pelo rei aos seus vassalos leigos, de certas dignidades eclesiásticas como uma abadia, está na raiz dos abusos que

10 ―Ora etiam et pro omnibus fidelibus defunctis, ut eis pius subueniat Christus, et in sinu Abrahae

animas eorum collocare dignetur, ut requiem et refrigerium in futurum mereantur accipere cum

sanctis‖. ib., p. 312. 11 F. L. GANSHOF, Que é o fedaulisino? Tradução de Jorge Borges de Macedo, 2ª edição (Coleção Saber). Lisboa: Publicação Europa-América, 1968, p. 42. 12 Ib.,p.46 e 51.

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124

determinaram o aparecimento da questão das Investiduras, que tanto prejudicou a Igreja e amimou as relações dos Imperadores com os Papas na Idade Média.

VII

Ao começar a tratar do tema da fidelidade, Dhuoda exorta primeiramente o filho Guilherme a tributar respeito, durante toda a vida, ao seu pai. ―Não me canso, escreve, de insistir, quanto o posso, em que deves respeitar, amar e guardar fidelidade a Bernardo, teu senhor e pai, em todas as coisas, tanto em sua presença quanto em sua ausência‖. De seguida, Dhuoda cita para o filho os sábios conselhos de Salomão, concernentes à reverência devida aos pais e, ao

chegar ao versículo 15 do cap. 3º do Eclesiástico que diz: Não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor, lembrada decerto das recentes revoltas dos filhos de Luís, o Piedoso, exclama: ―Longe de ti, um tal desprezo! Antes a terra me cubra o corpo do que teu pai tenha de passar por isso, o que acredito não virá a acontecer. Não falo disso, porque o tema, mas cumpre te acauteles para que jamais passe pela tua mente a idéia de semelhante crime, cometido, nós o sabemos, por muitas pessoas que não se assemelham a ti‖. E, a reforçar o conselho, Dhuoda evoca os infortúnios de Hofni e Finéias, filhos de Eli (I Sam.

4, 11) e de Absalão, filho de Davi (II Sam. 18, 15). Depois de outras citações bíblicas, Dhuoda acrescenta: ―Quem quer que seja

deve considerar, meu filho, que se um dia atingir a idade madura, quando Deus se dignar de lhe conceder descendência, a sua alegria consistirá em ter filhos humildes, mansos e obedientes, e não teimosos, soberbos e gananciosos, de tal modo que, ao vê-los, ele se rejubile e seja feliz, depois de ele próprio ter sido, quando pequeno, um filho submisso‖. Dhuoda prossegue, apoiada na Bíblia, nos

seus conselhos de reverência que o filho deve tributar ao pai, observando que, se aos olhos dos homens a primeira honra cabe ao poder real ou imperial, a sua vontade expressa é que o seu filho em primeiro lugar, in primis, não negligencie durante toda a vida o dever de prestar ao pai uma homenagem conveniente, fiel e segura, pois ninguém pode ter acesso aos grandes senhores e ao máximo suzerano, a não ser que receba o seu posto de seu pai. Por isso, Dhuoda conclama o filho: ―Ama primeiramente a Deus, segundo o mandamento e, em seguida, estima,

respeita e ama teu pai, de quem procede a situação de que desfrutas no mundo‖. O ponto alto do Manual, tocante à fidelidade, acha-se nesse capítulo III em que

Dhuoda, depois de ter salientado a importância do respeito ao pai, trata da reverência quanto ao senhor, e discorre sobre o papel dos conselheiros, e sobre a atitude quanto à família dos senhores, aos grandes e aos pequenos, e ao respeito devido aos sacerdotes.

VIII

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125

Na Advertência sobre a conduta a manter quanto ao senhor — Admonitio erga seniorem tuum exhibenda — afirma Dhuoda: ―Carlos (Carlos, o Calvo), a quem tens como o senhor que Deus, segundo creio, e teu pai Bernardo escolheram para que tu o sirvas no começo da tua vida e na flor da juventude, procede pelos dois

lados de grande e nobre linhagem. Presta-lhe teu serviço, não apenas para seres agradável aos seus olhos, mas com toda a tua dedicação de corpo e alma. Guarda para com ele, em todas as coisas, uma fidelidade sincera e segura‖.13

Dhuoda passa a aduzir, então, os exemplos louváveis do serviçal de Abraão que se dirigiu a um país longínquo, a fim de buscar uma esposa para o filho do seu senhor; de Joab e Abner para com o rei Davi, e de tantos outros que, segundo a Sagrada Escritura, se submeteram fielmente às ordens de seus senhores, seniorum iussa fideliter obtemperantes. ―Sabemos, de feito, segundo o texto das Escrituras,

diz Dhuoda, que toda honra e toda autoridade são um dom de Deus. Por isso, devemos servir aos nossos senhores fielmente, sem desagrado, sem moleza e sem preguiça, pois, como diz São Paulo, ‗não há autoridade que não venha de Deus, e quem se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus‘ (Rom, 13, 1-2). Por isso é que eu te exorto, meu filho, a guardares, durante toda a vida, a fidelidade de corpo e espírito. Teu progresso crescente será, como cremos, utilíssimo para os teus familiares. Jamais, uma vez sequer, saia de ti uma afronta

maldosa devido à loucura da infidelidade; jamais nasça nem cresça em teu coração a idéia de seres infiel ao teu senhor seja no que for. Fala-se dura e malissimamente daqueles que agem assim, mas não creio que isso venha a ocorrer contigo nem com os teus companheiros de armas; esta conduta jamais se viu nos teus antepassados; não existiu, não existe, e não existirá no futuro.

―Portanto, tu, meu filho Guilherme, oriundo da sua raça, sê para com o teu senhor, como eu te disse, veraz, vigilante, útil e importante. Em todo negócio que

interesse ao poder do rei, trata, enquanto Deus te der forças, de mostrar-te o mais prudente possível, interna e externamente. Lê as máximas e as vidas dos santos Padres (as personagens bíblicas já referidas) que nos antecederam, e aí tu descobrirás como, e de que forma deves servir ao teu senhor, e assisti-lo fielmente em tudo. E quando o houveres descoberto, aplica-te a executar fielmente as ordens do teu senhor. Considera, também, e observa aqueles que o servem assiduamente com a máxima fidelidade, e deles aprende as lições de serviço; ilustrado pelo exemplo deles, com o socorro e a ajuda de Deus, conseguirás mais facilmente

atingir o objetivo que te indiquei. Que o teu Deus e Senhor te seja em tudo propício e benigno; que ele seja o teu defensor, teu chefe benfazejo, teu protetor, e em todas

13 DHUODA, Manuel pour mon fils, p. 148.

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as tuas ações ele se digne te assistir continuamente como teu amparo e defesa. Como ele o quiser no céu, assim seja! Amém.14

O servidor atilado, entretanto, deve ser humilde e dócil para pedir conselhos a quem os possa dar. Para bem servir ao senhor muito importa receber sábios

conselhos de pessoas experientes, assim como dá-los oportunamente a ele. ―Se um dia, escreve Dhuoda, Deus te elevar ao honroso posto de conselheiro entre os grandes do reino, examina com cuidado o que podes dizer, de modo conveniente e oportuno, quando e a quem. Isso requer ponderação do juízo, reflexão e prudência. Quem se aplicar sensatamente a essa busca da sabedoria, atrairá decerto as bênçãos de Deus, os favores dos homens e agradará fielmente em todas as coisas ao senhor‖.15

Dhuoda, então, aconselha o filho a temer e a amar a Deus, a apegar-se a ele na

flor da juventude e a pedir-lhe a sabedoria, que ele a concederá: Pete illi sapientiam et dabit eam tibi.16 Na sua misericórdia afável e gratuita, ele proporciona sabedoria, o conselho e todo o necessário à vida corporal a quem crê que o receberá e o impetra. Ademais, cumpre freqüentar não só os mais velhos como, também, os jovens que amam a Deus e adquirem a sabedoria, porque é da flor da juventude que a velhice retira a sua força.17 Atestam-no os antigos exemplos de excelentes conselheiros, como os de José junto ao Faraó, de Daniel

diante de Nabucodonosor, de Baltazar, de Dano, dos chefes dos Persas e dos Medas; de Jetro, o sogro de Moisés; de Aquior, o conselheiro de Holofernes, chefe dos exércitos pagãos. ―E preciso, no entanto, observa Dhuoda, atinar com os sábios conselheiros, pois muitos que se julgam sábios, não o são; uns dão bom conselho, mas não o dão bem, e outros dão maus conselhos, inviáveis. Na incerteza da escolha cumpre descobrir os descendentes daqueles antigos que, com a ajuda de Deus, sabem ministrar um conselho útil para si próprios e para os seus senhores,

um conselho válido, benvindo e oportuno. Para isso, se atingires a idade madura, deverás acautelar-te contra as pessoas desonestas e escolher as de bem; fugir dos maus, aderir aos bons, e não aconselhar-se com um homem malévolo, covarde ou colérico... Portanto, meu filho Guilherme, toma cuidado, e foge dos malvados dessa espécie, une-te às pessoas honestas que buscam o bem, àqueles que por sincera sujeição às vontades dos seus senhores, ao proporem um bom conselho, mereceram receber de Deus e do mundo uma digna e grande recompensa‖.18

X

14 Ib., p. 148.152. 15 Ib., p. 152-154. 16 Ib., p. 154. 17 Ib., p. 156. 18 Ib., p. 158-164.

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De seguida, a zelosa mãe estende-se sobre as normas de conduta no convívio social, ad propinquos senioruni tuorum.

―Em relação aos ilustres, gloriosos e nobres parentes e próximos do teu poderoso e régio senhor, diz Dhuoda, se chegares à honra de compartilhar do

serviço na corte real ou imperial com os teus companheiros de armas, ou se chegares a ocupar em qualquer parte um cargo, testemunha-lhes estima, respeito, amor e veneração, e em qualquer negócio atinente aos seus interesses, mostra-lhes em tudo uma dedicação firme, desprendida e oportuna, que comprometa a tua inteira fidelidade, de corpo e alma. Lembra-te da atitude exemplar de Davi quanto a Jônatas, filho do rei Saul‖.19

Dhuoda aconselha ao filho a submissão às regras do serviço, a fidelidade ao seu senhor, Carlos, sisque fidelis seniori tuo Karolo, quem quer que ele seja,

quisquis ille est, observa, já que, então, a realeza de Carlos, o Calvo, não era reconhecida na França meridional, em virtude da sua luta contra Pepino de Aquitânia. Essa obediência deveria estender-se aos seus nobres parentes dos dois sexos, nascidos da linhagem real. Guilherme, como todos aqueles que estavam a serviço do poder real, deveria secundá-lo fielmente com todas as forças. Dhuoda roga ao Deus Altíssimo que ilumine e inspire a todos, para que saibam promover a paz, reger, proteger e governar energicamente o mundo e o povo, a serviço de Deus

e dos santos, assim como defender os súditos dos ataques das tropas inimigas que irrompiam de todos os lados, e unificar firmemente em Cristo a santa Igreja de Deus na verdadeira religião.

No capítulo IV do Manual, acrescenta Dhuoda que, se Guilherme se consevar no temor e no amor inspirados pela fidelidade para com o seu pai e o seu senhor, para com os grandes e todos os seus pares, mais velhos e mais novos, sem ofendê-los e sem se imiscuir nas suas contendas, o espírito de temor do Senhor repousará

certamente sobre ele.20 Na corte real, o jovem Guilherme convivia com os aristocratas mais ilustres,

assim como com outros jovens servidores, semelhantes a ele, e com oficiais mais modestos, incumbidos de múltiplas funções. Dhuoda, sabendo disso, previne o filho quanto à maneira de agir em relação aos nobres mais ilustres, ad optimates ducum, aos grandes e aos pequenos, ut cum maioribus et minoribus flectas. Tocante aos grandes dignitários e aos seus conselheiros, ela recomenda que o filho lhes testemunhe afeição e devotamento e lhes observe humildemente os nobres

exemplos, procurando aprender deles e dos homens criteriosos, sensusque capaces, tudo o que ele puder apreender de bom com o auxílio do Pai Todo Poderoso. Dhuoda adverte, ainda, Guilherme a que proceda de tal forma que, sem incorrer em

19 Ib., p. 166. 20 Ib., p. 216.

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infidelidade para com os seus senhores, possa levar uma vida feliz, digna de elogio, na dignidade e na distinção.

Dhuoda aconselha ao filho a atenção para com as pessoas mais novas e de posição mais modesta, dizendo-lhe para colaborar com elas, trocar grandes e

pequenos serviços, e honrá-las não só com palavras mas com ações, tudo fazendo com uma expressão afável. Em suma, Guilherme deve esforçar-se por ser sempre caridoso para com todos, os grandes e os pequenos, pois assim receberá um benefício recíproco e a honra conveniente. Ademais, sempre e em qualquer ocasião, é preciso saber exercer a compaixão fraterna.

XI

Na última parte do capítulo III do Manual, discorre Dhuoda, de modo afetuoso e inteligente, sobre o respeito devido aos sacerdotes, De reverentia sacerdotum. Ela mostra cuidadosamente ao filho Guilherme a distinção sobrenatural dos ministros de Jesus Cristo. É preciso venerá-los, diz ela, pois eles foram escolhidos por Deus para o seu serviço, e foram constituídos como intercessores pelos nossos pecados. São os bispos e os padres que abrem para os homens as portas do céu, alimentam-nos com a palavra de Deus e com o pão eucarístico, perdoam em nome

de Deus os seus pecados e rogam constantemente pela sua salvação. Pode ser que alguns deles, observa, revelem não estar à altura do caráter sagrado do seu ministério, mas nesse caso ―não os julgues temerariamente, nem te compete repreendê-los, como muitos o fazem... Deus é quem lhes conhece o coração, assim como os de todos nós. Reconhecemos, no entanto, a dignidade da vida deles, transparente através da sua palavra, do seu pensamento, do seu olhar, da sua atividade e dos seus frutos. Respeita-os e ama-os sempre, recomenda Dhuoda.

Escolhe entre eles os teus conselheiros e escuta os que vires estarem especialmente unidos a Deus. Se a conduta de algum sacerdote não te parecer conveniente (repete), não a critiques jamais, pois diz a Sagrada Escritura ‗Não toqueis nos meus cristos, nos meus ungidos, isto é, naqueles que me são consagrados; não façais mal aos meus profetas‘ (Salino 115, 15)... Tu, meu filho, venera-os, como já te disse, e se porventura tiveres prevaricado, corrige-te‖.21

Dhuoda tinha a convicção profunda do cristão lúcido e fervoroso, de que

fomos criados para Deus, e de que só nele o nosso coração pode encontrar repouso, como dizia Sto. Agostinho. Sabia estarmos neste mundo de passagem, num campo de experimentação, de prova, de tribulações, mas de esperança, de aprendizado da verdade e do caminho da salvação. A nossa luz vem de Cristo, imagem palpável do

21 ―Tu tamen, fili, uenerare eos, ut praedixi, et si aliquid deliqueris, emenda‖. Dhuoda, Manuel pour

mon fils, p. 194-196. Numa alusão feliz à ―recomendação‖ que o futuro vassalo faz ao suzerano pela immixtio manuum, Dhuoda diz ao filho que não titubeie em ―recomendar-se‖ aos sacerdotes da sua

confiança: In manus honestorum sacerdotum, te non pigeas commendare. Ib. p. 194.

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Pai, que nos ilumina e fortalece com o dom do Espírito Santo. Se seguíssemos os seus mandamentos, poderíamos viver em paz e na concórdia, apesar de todos os tropeços e fraquezas. Em todas as épocas, no tempo de Dhuoda, como nos dias de hoje, o escândalo dos cristãos e as misérias da parte humana da Igreja defluem da

incoerência de vida dos que se dizem cristãos mas não pautam a vida, de feito, pela doutrina de Jesus Cristo. Foi o que percebeu muito bem um contemporâneo de Dhuoda, Jonas, bispo de Orleães que, no capítulo XI do seu tratado De institutione regia, denuncia a incoerência existencial de tantos cristãos da época carolíngia, exortando-os à conversão sincera e à emenda da vida.

XII

Jonas morreu no ano de 842 ou 843, talvez precisamente quando Dhuoda terminava a redação do seu Manual. No seu tratado De institutione regia, composto em 831, Jonas dirige-se ao seu antigo rei, Pepino de Aquitânia, como um bispo que escreve sobre política, para lhe dizer o que deve ser um rei, um governante, e as obrigações que lhe incumbem, enquanto cristão.

No capítulo XI do opúsculo, Jonas disserta sobre a incoerência existencial de muitos cristãos que professam a fé com palavras, mas não a traduzem nas ações,

não a manifestam na conduta. ―A lei de Cristo, escreve, não se destina a ser observada apenas pelos clérigos, mas por todos os fiéis. Todavia, prossegue, a profissão de fé é negligenciada em muitas coisas e por muitos, por causa dos prazeres carnais, das múltiplas vaidades do mundo e de perversíssimos costumes. Em muitos cristãos de hoje, afirma, a prática da vida cristã deixa muito a desejar. Assim, à doutrina dos Apóstolos antepõe-se o amor dos negócios terrenos; ao espírito de desapego e de beneficência, a avareza. O resfriamento da caridade e a

cobiça dos bens alheios são preferidos à distribuição misericordiosa dos próprios bens. Em vez de orações, prefere-se o prazer da carne, a curiosidade dissipadora e as formas de divertimento mais variadas. Em vez da primitiva comunidade dos bens, aferram-se os cristãos, com raríssimas exceções, às suas posses, olvidados da função social da propriedade.22 Os primeiros cristãos faziam as suas refeições com alegria e simplicidade, entoando louvores a Deus, enquanto agora poucos são os que as fazem sem se entregarem à maledicência, ao fingimento, aos insultos, de

olhos postos nos bailarinos, entretidos com piadas torpes, conversas desonestas e com outras inúmeras futilidades que entorpecem e desfibram o espírito cristão. Os antigos cristãos tomavam o alimento e louvavam a Deus; os atuais exigem variedade de acepipes, preparados refinadamente, e louvam a habilidade dos

22 Jonas D‘Orléans et son De Institutione Regia. Étude et Texte critique par Jean Reviron. Paris,

Librairie Philosophique J. Vrin, 1930, p. 168: ―Ouae autem illis erant communia, nunc quibusdam ita sunt propria ut perraro in alterius ex hiis quicquam retorquetur usus‖. A tradução deste passo, feita com

certa largueza, e fiel ao pensamento do autor.

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cozinheiros... Homens promulgam leis que os súditos acatam; Deus, o Criador de todas as coisas, Providência eterna e imutável, promulgou a lei, visando à salvação das almas e, no entanto, os homens a desprezam, não a querendo ouvir, e se, porventura, a escutam com o ouvido do corpo, não a captam com o da alma; e se

lhe prestam atenção, não a põem em prática (...) Percebe-se, pois, claramente que a profissão de fé cristã nos tempos modernos (sic) não é feita por muitos de modo religioso e devoto, tal como o faziam os primeiros cristãos.23

Dhuoda tinha plena consciência dessa situação e, por isso, cuidou de orientar o filho Guilherme, e de alentá-lo na trilha da autêntica vida cristã, insistindo em que a fidelidade ao pai e ao senhor só se pode assegurar, quando enraizada no conhecimento e na prática da doutrina de Cristo.

Dhuoda permanece como exemplo para as mães cristãs de todas as épocas

e o seu Manual não tem apenas interesse histórico, mas continua a ser fonte de inspiração e modelo de educação cristã.

23 ―Perspicue sane animadverti potest quod professio Christiana modernis temporibus a plerisque

non sic devote ac religiose colitur, sicut a priscis colebatur Christianis‖. Ib., p. 169.

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8

AS RAÍZES DA HIEROCRACIA NO “DE INSTITUTIONE REGIA” DE JONAS DE

ORLEANS

JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA Dptº de História da U.F. de Goiás

Marcel Prelot define magistralmente a hierocracia ou sacerdotalismo como

doutrina e regime político, segundo o qual ―determinados homens consagrados a Deus pelo sacramento da Ordem exercem sobre os outros homens, por instituição divina, um poder mais eminente que existir possa (...)‖1

Embora essa teoria tenha sido aperfeiçoada e ampliada na Baixa Idade Média e ganho uma sistematização completa e definitiva no século XIV, especialmente nas

obras políticas de Egídio Romano, Tiago de Viterbo e Álvaro Pais, suas origens indiscutivelmente remontam aos escritores da Alta Idade Média.

Pretendemos mostrar e analisar neste artigo a contribuição de Jonas de Orleans, através de seu tratado De Institutione Regia, à elaboração posterior da mencionada doutrina.

Entretanto, o bispo aurelianense, muito mais do que um filosofo-politico no sentido escrito da palavra, foi um pastor dedicado não apenas às

questões relevantes da época em que vivieu, como também extremamente zelosos e preocupado com a salvação eterna do rebanho que lhe havia sido confiado por Deus.

Hauriu ele suas idéias na Escritura e nos ensinamentos dos Padres da Igreja, fato esse que sugere aparentemente que desconhecia a literatura filosófico-político-jurídica elaborada pelos pensadores greco-romanos. Havia, no entanto, urna razão para essa atitude assumida por nosso antístite.

Por tais motivos estruturamos este trabalho em três partes, de modo a facilitar a compreensão do leitor e também do estudioso.

1 As doutrinas políticas. Lisboa: Presença, 1973, v. 2, p. 283.

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1 — JONAS DE ORLEANS E SUA ÉPOCA

Jonas Aurelianense nasceu na Aquitânia no último quartel do século VIII. Na mesma região cresceu, estudou e foi ordenado sacerdote. Durante algum tempo esteve a serviço de Pepino, monarca daquele território, localizado no centro-sul e ocidental da Gália. No entanto, logo preferiu afastar-se da corte, devido à inveja e às calúnias levantadas contra sua pessoa por outros funcionários palatinos.

Governava o Império Romano do Ocidente, Luís ―O Piedoso‖, filho e

herdeiro de Carlos Magno (768-800/814). Todavia, ―l‘édifice politique construit par Charlemagne était grandiose et fragile... lês forces centrifugues dês vieilles traditions germaniques travaillent contre l‘unité realisée, le développement de la recommendation et de la vassallité orientaient lês institutions vers le particularisme... au temps de Charlemagne, la justice et la paix, avec tout leur sens religieux, étaient sauvegardées par le toutpuissant empereur. Il s‘était attribué ce rôle... Il avait confudue l‘Église et l‘Empire em as personne, Il avait

voulu promouvoir la justice chrétienne et assurer la paix religieuse, au même titre qu‘il levait lês impôts et dirigeait sés armées: son pàle sucesseur devait en subir les conséquences...‖2

Luís ―O Piedoso‖ foi ungido e coroado imperador pelo papa Estêvão IV (816-817) em Reims, cidade onde normalmente eram sagrados os antigos reis merovíngios. Com esse gesto, o sumo pontífice reafirmou o destacado papel do papado na condição de restaurador do império do Ocidente, fato esse realizado por seu antecessor, Leão III (796-816), no Natal de 800, quando coroou Carlos Magno.

O imperador, embora não possuísse os dotes de estadista de seu pai, mostrou-se bem mais piedoso do que ele, guardando enorme respeito para com a Sé Apostólica, fazendo inúmeras doações às igrejas e aos mosteiros e, influenciado por são Bento de Aniano, apoiou efetivamente uma reforma religiosa e cultural, principalmente no âmbito do clero regular.

Em 817, Luís I firmou um pacto com o papa Pascoal II(817-824), pacto esse que reiterava as doações que primeiramente seu avô Pepino ―O Breve‖ e depois

seu pai, tinham feito à Igreja Romana, relativas à formação territorial do ―Patrimonium Petri‖. E ficou estabelecido também que os imperadores não se imiscuiriam no governo do Estado Pontifício, exceto em caso de rebelião, e tampouco interfeririam nas eleições papais, direito esse que cabia exclusivamente ao clero e ao povo romano.

O papado, por sua vez, assegurava novamente à casa de Heristal o direito sobre as coroas franca e imperial. A aliança entre a Cruz e a Espada ia se

consolidando firmemente.

2 2 ARQUILLIÈRE, H. X. L‘augustinisme politique. Paris: J. Vrin, 1972, p. 170-176.

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Ainda naquele mesmo ano, Luís I, após uma enfermidade longa e grave, repartiu seus domínios entre os filhos. Lotário, o mais velho, seria co-imperador, herdando, após a morte do pai, a coroa e o cetro imperiais. Luís ―O Germânico‖, recebeu a Baviera, a Caríntia e a Boêmia, Pepino governaria a

Aquitânia, e Bernardo, um sobrinho, que já exercia o governo da Lombardia, nele permaneceu. Lotário, na condição de primogênito deveria exercer uma suserania sobre os irmãos mais novos, medida essa que assegurava, ao menos na aparência, uma unidade imperial. Tais disposições estão contidas na Ordinatio Imperii promulgada em 817.3

Mas em outubro de 818, Luís I ficou viúvo e cinco meses mais tarde casou-se com Judite, uma nobre alemã. Quatro anos mais tarde, nasceu dessa união, Carlos, herdeiro sem herança, porque todas as terras imperiais já haviam sido

repartidas entre seus irmãos mais velhos. Em 821, o presbítero Jonas foi eleito e sagrado bispo de Orleans, sucedendo a

Teodulfo à frente daquele bispado. Luís I necessitava para aquela metrópole um prelado sábio, piedoso, culto e leal à coroa imperial, face às tendências etno-culturais impregnadas de separatismo e às rebeliões promovidas freqüentemente pela nobreza há muito tempo. E Jonas soube comprovar e retribuir a confiança depositada em sua pessoa: ―estimé des grands ecclésiastique ou laïques, à quelque

parti qu‘ils appartinssent, universellement respecté pour l‘élévation de son caractère, son talent, sa pieté et son érudition, il sera frequemment amené à prendre part aux affaires générales de l‘Empire, sans cesser d‘accorder tous ses soins au peuple qui lui est confié, et particuliérement aux monastères qui relèvent de son autorité (...)‖.4

Na Páscoa de 823, o sumo pontífice Pascoal II coroou imperador o jovem príncipe Lotário, herdeiro presuntivo, na basílica de S. Pedro, como que lhe

sugerindo que o império era uma criação do papado. No ano seguinte, aquele pontífice romano faleceu, sucedendo-lhe Eugênio III(824-827), candidato da nobreza romana e apoiado também por Wala, monge de Corbie, primo do imperador, e um dos próceres da tese política relativa à unidade imperial. O novo papa solicitou a Luís I a aprovação de sua escolha para ocupar a Sé Apostólica, fato esse que não havia acontecido nas duas últimas eleições pontifícias. Lotário foi enviado a Roma para presidir às cerimônias de entronização papal.

3 GIORDANI, M. C. História do mundo feudal, v. 1. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 115: ―(...) mais que uma partilha, essa ordinatio representava um verdadeira Constituição sobre a imediata sucessão ao

trono de Luís, na qual se consagrava um princípio intermediário entre a antiga idéia bárbara, que

considerava o poder como um bem privado ao qual cada filho tinha direito por ocasião da morte do pai

e o conceito unitário, que recusa todo o direito aos irmãos mais moços (...)‖. 4 REVIRON, J. Les idées politico-religieuses d‘un évèque du IXe. siècle. Jonas de Orleans et son ―De

Institutione Regia‖. Paris: J. Vrin, 1930, p. 26-27.

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Nesse interim, Jonas dedicou-se principalmente às atividades inerentes ao seu ofício de pastor. Dirigiu sua atenção de modo especial à abadia de S. Maximino, contribuindo não apenas para a ampliação de seu edifício e para o embelezamento de sua igreja, mas também para o reforço da disciplina

monacal, incentivando os monges à prática das virtudes cristãs e deles exigindo o cumprimento do tríplice voto e ainda a observância do lema proposto por S. Bento de Núrcia: ―Ora et labora‖.

Em março de 825, o prelado aurelianense, com a autorização de Jeremias, arcebispo de Sens, seu metropolitano, e com a anuência de Luís ―O Piedoso‖, assegurou à abadia de São Maximino o direito de promover livremente as eleições abaciais, e ainda o de poder administrar com autonomia os seus próprios bens, direitos esses que contribuíam para afastar qualquer espécie de ingerência laica em

assuntos de competência eclesiástica, bem como frear a cupidez da nobreza. No entanto, o fato mais importante é que a obtenção desses privilégios redundavam na preservação dos valores espirituais e morais da vida religiosa.

Pouco depois, apesar dos protestos dos habitantes de Orleans, Jonas autorizou a transferência das relíquias de S. Maximino, fundador do mencionado mosteiro, da referida cidade para a igreja da abadia.

Ainda em 825,o bispo Walcaud de Liège, conhecedor da erudição de Jonas,

solicitou-lhe que escrevesse um livro concernente à biografia de S. Huberio, cujos restos mortais iam ser trasladados do oratório de S. Pedro para o monastério de Andaine. Nosso antístite prontamente atendeu à solicitação do colega bispo, escrevendo a Vita Sancti Huberti et Historia Translationis.5

Ao que consta, dentre as obras do prelado aurelianense, tais opúsculos são os mais antigos de toda sua produção literária, que chegou a nossos dias e a Vita ―n‘est qu‘une refonte d‘une Vita plus ancienne (du VIIIe siècle) écrite en un latin

barbare dont les hommes de la Renaissance carolingienne avaient peine à s‘accommoder...‖.6

Ludovico I, sumamente inclinado às questões e aos assuntos religiosos, estava preocupado com as repercussões do ―Movimento Iconoclasta‖ no Ocidente, por causa das teses defendidas por Cláudio de Turim, adversário convicto do culto prestado às imagens.

A referida questão havia ganho tão grande número de simpatizantes que o imperador, com a aprovação do papa Eugênio II, em novembro de 825, convocou

o 6º sínodo de Paris, a fim de solucionar definitivamente o problema no âmbito da Cristandade latina. O monarca e o arcebispo Jerernias incumbiram Jonas de, a partir das atas da assembléia, elaborar uma síntese da mesma, que seria

5 ED. SMEDT, VAN HOOFF DE BACKER, Acta Santorum I, Paris, 1887, p. 806-817. 6 REVIRON, J. Op. cit., p. 39.

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encaminhada à Sé Apostólica, a fim de que o sínodo pudesse vir a ser aprovado pelo santo padre.

Ludovico I na carta de encaminhamento ao papa da citada síntese, teceu muitos elogios a Jonas e a Jeremias, sugerindo ao sumo pontífice que, se o

mesmo assim o desejasse, poderia enviar os dois prelados a Constantinopla, a fim de ambos poderem tomar parte naquela controvérsia que agitava o Império Bizantino há quase cem anos, com a certeza de que a defesa da veneração das imagens sairia vitoriosa, graças à erudição e à habilidade na arte de argumentar, possuídas por aqueles bispos.7

É bem possível que nessa época, devido a tais circunstâncias, Jonas tenha escrito a obra intitulada De Cultu Imaginum,8 na qual de modo especial externou seus pontos de vista acerca dessa e de outras questões teológico-pastorais. Mas seu

objetivo primordial consistiu em refutar as teses do herege Cláudio de Turim. Nosso prelado fundamentou-se com grande brilho na tradição cristã, alicerçada parcialmente na Patrística, e de outro lado mostrou uma vez mais sua erudição clássica, citando inúmeros autores pagãos que discorreram sobre a importância estética da iconografia greco-romana.

A citada obra se compõe de três partes. Na primeira delas, Jonas demonstra que Cláudio de Turim, recusando venerar as imagens, se opunha à tradição

cristã, devendo, pois, ser tido na conta de herege. Na segunda parte, nosso bispo justifica a razão de ser do culto prestado à Santa

Cruz, por se tratar do símbolo mais importante da redenção humana, e na terceira parte defende o tradicional costume cristão relativo às peregrinações aos lugares santos de veneração religiosa.

Durante esses primeiros anos como pastor dos orleanenses, Jonas escreveu também a obra De Institutione Laica1i.9

O conde Matifrid, governante do condado, solicitou ao seu antístite que o ensinasse a respeito dos deveres cristãos concernentes ao estado matrimonial. Nosso prelado logo o atendeu, escrevendo o citado livro. Tal obra de natureza moral e didático-pastoral pode ser resumida nos seguintes pontos essenciais: 1 — O Cristianismo estabelece várias normas sobre o matrimônio, normas essas comentadas, ampliadas tanto pelos Padres da Igreja quanto pelo Magistério eclesiástico. 2—O batizado tem a obrigação de conhecê-las e observá-las. 3 — Deve fazer isso, tendo sempre diante de si mesmo a salvação eterna, e se vier a

transgredir as referidas normas, estará fadado à condenação perpétua.

7 Op. cit., p. 31. 8 MIGNE, PL., CVI, p. 307-388. 9 MIGNE, PL, CVI, p. 121 -1 80.

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Jonas, nesse tratado, além de apresentar seus pontos de vista originais sobre outros assuntos relacionados com o tema principal, nos oferece ainda preciosas informações históricas acerca do longínquo século IX.

O imperador Luís I também serviu-se do bispo aurelianense como diplomata,

incumbindo-o de resolver inúmeros desentendimentos entre nobres e eclesiásticos. Um deles particularmente merece nossa atenção. Os monges de Fleury-sur-Loire haviam recebido em doação de Pepino ―O Breve‖ (742-768) os direitos sobre a ―villa‖ de Surchamps. Todavia, alguns nobres da vizinhança passaram a cobrar impostos dos religiosos sobre a mesma, agindo ilegalmente.

Jonas com muita habilidade os convenceu a respeitar a força do direito e o problema foi resolvido a contento. Tal episódio demonstra claramente a atitude da nobreza franca em querer aumentar seus domínios ou tentar resolver o

problema dos secundogênitos, ou ainda ampliar suas rendas, à custa do que pertencia à Igreja.

Um outro fato digno de nota ressalta os dotes diplomáticos do piedoso bispo. Os monges da abadia de Saint Denys não conseguiam se entender quanto à melhor pessoa para exercer o encargo de abade. Em 829, por ocasião de duas assembléias, não chegaram a nenhum acordo, mas posteriormente, em 832, Jonas conseguiu apaziguar os religiosos e encaminhar satisfatoriamente a solução do agitado

problema, possibilitando assim a continuidade do programa de reformas concernentes à vida monástica.

Em 829, Luís I promoveu vários sínodos com esse mesmo objetivo, os quais se realizaram em Lyon, Mogúncia, Toulouse e Paris, este último ocorreu em junho daquele ano. Nesse sínodo entre outros assuntos discutiu-se também sobre a origem e o fundamento do poder régio e novamente Jonas foi incumbido de redigir as atas da assembléia. Tais documentos foram aprovados na dieta imperial ocorrida

em Worms, no mês de agosto seguinte. No decorrer da mesma o imperador resolveu oficializar a idéia que acalentava há algum tempo, isto é, repartir novamente seus domínios, anteriormente distribuídos entre os filhos mais velhos, de modo que o caçula, Carlos, viesse igualmente a possuir um reino. Tal território abrangeria a Alsácia, a Récia, parte da Alemanha e parte da Borgonha.

A Dieta de Worms, não sem alguma resistência, aprovou a idéia do imperador. Os ideólogos da unidade imperial, especialmente Wala e o bispo Agobardo de Laon, achavam-na um absurdo. Assim, pouco depois, Lotário e seus dois irmãos se

rebelaram contra Luís I, declarando-lhe guerra.10

10 GIORDANI, M. C. Op. Cit., P. 129: ―Para compreendermos o caos e a rebeldia resultantes da

partilha de 829 convém esclarecer que a mesma não implicava somente em modificação territorial das partes já atribuídas aos três filhos mais velhos. Na realidade essa modificação acarretava o

rompimento de uma longa cadeia de juramentos de fidelidade que se havia estabelecido em torno de

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O imperador foi derrotado pelos três filhos mais velhos e aprisionado, mas um bom número de nobres germânicos que lhe era fiel conseguiu primeiramente resgatá-lo e depois reconciliar os adversários. Ludovico I, em seguida, castigou alguns dos vassalos rebeldes, a fim de que o mau exemplo não propalasse.

A fidelidade e a devoção de Jonas para com o imperador, face a tão graves acontecimentos, levaram-no a tomar da pena e escrever a Epístola ao Rei Pepino e o De Institutione Regia, oferecidas ao mencionado rei, com vista a sedimentar a reconciliação entre pai e filho e a evitar um novo conflito entre os membros da família imperial, divergência essa que geraria inúmeros prejuízos à população do império, à Igreja e ―pour l‘exhorter à accomplir son devoir de prince chrétien. Ce devoir, il l‘a déjà formulé lui même — selon toutes probabilités — dans le livre II des Actes du concile de Paris, et il lui suffira de transformer en traité cette oeuvre

de circonstance (...)‖.11 Como o problema político não havia sido resolvido, nova rebelião de Lotário,

Luís e Pepino ocorreu em 833. O choque decisivo entre Ludovico I e seus filhos revoltosos deu-se entre Basiléia e Estrasburgo. O imperador foi traído por seus vassalos, os quais se bandearam para o lado dos príncipes rebeldes. O soberano, percebendo que uma vitória havia-se tornado impossível, preferiu a 30 de junho daquele ano se entregar a Lotário como prisioneiro.

O papa Gregório IV havia acompanhado o co-imperador à Gália em abril. Alguns bispos, fiéis a Luís I, entre os quais podemos presumir com alguma probabilidade de certeza se encontrava Jonas, escreveram uma carta ao sumo pontífice, censurando-o por querer interferir pessoalmente num problema de natureza política que não era de sua competência e fazendo-o lembrar-se de que agiam dessa forma por serem vassalos do imperador.

O fato é que o santo padre, ao tomar a decisão de ir à Gália e envolver-se

naquela contenda familiar com graves conseqüências para o império, tinha a intenção de salvaguardar a paz e a unidade indiscutivelmente proveitosas à Igreja, ao papado e a todos em geral, apoiando-se no que havia sido estabelecido na ―Ordinatio‖ de 817, e quiçá demonstrar igualmente que o império era uma criação de fato e de direito da Sé Apostólica.

Um outro aspecto, ao menos ligado indiretamente ao tema que nos propusemos abordar, é a controvérsia referente ao princípio de autoridade que, no interior da ordem clerical, não devia sob hipótese alguma ser quebrada, isto é, o

sumo pontífice, chefe dos clérigos e na condição de sucessor legítimo de S. Pedro, detém e exerce os poderes que o Príncipe dos Apóstolos recebeu de Cristo, quer

cada um dos três herdeiros. Essa transferência de suserania provocava descontentamentos e irritava uma multidão de interessados (...)‖. 11 REVIRON, J. Op. cit., p. 56.

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dizer, possui a plenitude do poder, enquanto os demais prelados tem somente uma parcela do mesmo, exercendo seus poderes sacramental e jurisdicional apenas em suas respectivas dioceses.

Respondendo àqueles bispos, Gregório IV é incisivo nesse aspecto: ―(...) Vós,

escrevendo ao romano pontífice (...) o chamais de irmão e de papa, enquanto teria sido muito mais conveniente manifestar-lhe exclusivamente a reverência devida a um pai (...). Não podíeis ter-vos esquecido de que a direção das almas que compete ao sumo pontífice é mais importante do que o governo imperial, que é algo temporal (...). Acrescentais — o que é digno de vergonha — ter receio de que viemos, sem motivo algum, lançar uma excomunhão presunçosa, ultrajante e aviltante à autoridade imperial (...). Pergunto-vos (...): o que é mais humilhante para o poder imperial, realizar obras dignas de uma excomunhão ou sofrer a

própria sentença? (...) Com referência específica a este caso, vos indago: como pode ficar intacta a honra da Sé Apostólica, quando vedes em nossa atitude apenas motivos de repreensão e de censura. Com efeito, não há maior ofensa injusta ao representante do bem-aventurado Pedro, quando a sua própria Sé é aviltada (...). É verdade que acrescentais que devemos nos lembrar do juramento de fidelidade que prestamos ao imperador. Se o fizemos, queremos de fato evitar sermos perjuros, ao denunciar tudo que vem fazendo contra a unidade e a paz da Igreja e do reino (...)‖.

―Alegais ainda que a primeira divisão do reino deve agora ser mudada segundo a conveniência da situação. Ora, isso é duplamente falso. Em primeiro lugar porque não é oportuno, antes pelo contrário, inconveniente, pois tal mudança é a causa e a origem de perturbações, de dissensões, de agitações, de pilhagens e de todos os outros males, o que seria muito enfadonho citá-los detalhadamente, sem contar as inumeráveis quebras de juramento de fidelidade e as lutas praticadas contra a paz.

―Em segundo lugar, porque não sabeis ainda se a ‗Ordinatio Imperii‘ será alterada ou mantida inviolável pelo verdadeiro rei e senhor, pois a mudança que declarais realizada conforme a oportunidade dos acontecimentos se revela manifestamente contrária à vontade de Deus, visto a mesma ser a causa de muitos pecados (...)‖.

―Tivestes a ousadia de acrescentar em vossa carta que, se não ficarmos de acordo convosco, vossas igrejas não estarão unidas a nós, ao contrário, far-nos-ão tamanha oposição que não teremos condições de cumprir com nosso encargo de

Pastor em vossas dioceses e não poderemos excomungar ninguém (...). Como podeis opor-vos a nós bem como vossas igrejas, quando cumprimos uma missão de paz e de unidade, que são dons de Cristo, e ainda exercemos o ministério do próprio Cristo! Ignorais que os anjos cantaram que a paz havia sido prometida na terra aos homens de boa vontade? (...) Não podeis separar aquela pessoa, que é verdadeiramente um membro de Cristo, do corpo e da cabeça que é o próprio

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Senhor (...). Dizemo-vos tudo isto para vos fazer cientes de que não podeis separar a Igreja das Gálias e da Germânia da Unidade (...)‖.

―Quanto às ameaças que dirigistes aos vossos irmãos no episcopado, que nos seguem, dizendo-lhes que vossa posição é irrevogável, manifesta igualmente vossa

espantosa presunção... Por acaso as decisões tomadas por homens devotados não devem ser retratadas em face daquelas outras pessoas que perseveram no caminho reto? Ou melhor, as ações julgadas más nesta vida por acaso não virão a ser reexaminadas no momento do julgamento de Deus? (...)‖.12

Em seguida à prisão de Ludovico I e de seu filho caçula, Carlos, os três irmãos mais velhos, seus vassalos Wala e os bispos Ebbon de Reims e Agobardo de Laon, decidiram que o imperador devia abdicar em favor de Lotário, o Primogênito.

Os bispos decidiram também que o monarca devia fazer uma penitência

pública em face de seus crimes-pecados, em conseqüência dos quais, segundo os especialistas em Direito Eclesiástico daquela época, se tornava incapaz de estar à frente do império, legitimando-se dessa forma a transferência do poder, aos olhos da sociedade. Ficou decidido igualmente que tais procedimentos viriam a ocorrer numa Assembléia a realizar-se no mês de outubro, na cidade de Compiègne.

A assembléia do alto clero e dos grandes vassalos fiéis a Lotário se reuniu no lugar e na ocasião acertados. As atas da mesma se perderam. Restou o processo

concernente à penitência pública imposta a Ludovico I. Face à crise política, foram aqueles prelados, liderados por Wala, Ebbon e Agobardo, que atuaram como juízes do governante.

Apresentaram eles como justificativa para tal procedimento em primeiro lugar o fato de, na condição de sucessores dos Apóstolos, serem vigários de Cristo e detentores do ―Poder das Chaves‖; em segundo lugar, estavam a exercer um dever e um direito inerente ao seu encargo pastoral, pois o imperador, na condição de

membro da Igreja, se afastara do caminho reto, sendo passível de tal sanção eclesiástica; em terceiro lugar, o múnus episcopal lhes impunha vigiar e cuidar de que nenhum membro do seu rebanho viesse a se perder eternamente; e por último, o interesse e o bem-estar de todas as pessoas que viviam no Império e a Igreja estavam ameaçados se a unidade e a paz fossem rompidas. Finalmente, referidos bispos frisavam que o registro daquela medida, seu fundamento e as causas que a motivaram, deviam ser anotados e conservados para o futuro, com vista a dirimir todos os equívocos possíveis.

As acusações contra o imperador se resumiam nas seguintes: 1 — incompetência para governar o império que lhe foi confiado por Deus; 2— culpado de homicídio por ter deixado que Bernardo, seu sobrinho e rei da Itália, fosse assassinado em 818; 3— ―Perturbator Pacis‖, ao contribuir para que as pessoas,

12 In: MGH. Epistolae, v. 5, p. 228-230.

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seus súditos, cometessem perjúrios, transgredindo a ―Ordinatio Imperii‖; 4 — desprezo a religião cristã, pelo fato de não ter observado as tréguas pascais, ao realizar uma expedição militar desnecessária em 830, contra os inimigos fronteiriços; 5 — ter cometido injustiças contra alguns de seus vassalos, ao violar

as leis divina e humana, se apossando de seus bens, apesar de os mesmos estarem a avisá-lo de que seus inimigos lhe preparavam armadilhas; 6 — ter empreendido inúmeras expedições militares sem motivo, causando assim homicídios, perjúrios, sacrilégios, adultérios, roubo e opressão aos pobres; 7—ter falhado na missão de guia do povo cristão quanto ao mesmo poder vir a alcançar a salvação eterna.13

No fundo, o julgamento do imperador era uma questão política, mas naquele distante momento histórico em que interesses, ideais e perspectivas religiosas e temporais se confundiam, que os âmbitos de atuação das autoridades espiritual e

secular se compenetravam, os prelados haviam tornado aquela decisão, movidos pelo zelo da justiça cristã, impondo-a na esfera secular.14

Ludovico I abdicou solenemente na igreja de S. Medardo de Soissons e em seguida, na condição de penitente público, se retirou para um mosteiro. ―Tantos ultrajes y afrontas disponen al pueblo en su favor. Contra los vehementes opúsculos de Agobardo escribe Rabano Mauro De Reverentia filiorum erga patrem et subditorum erga reges‖.15

Os bispos fiéis a Luís ―O Piedoso‖ conservaram do regime carolíngio a fidelidade ao princípio de suserania e vassalagem e à ordem hierárquica estabelecida. Mais do que isso, tinham eles em suas mentes, de modo claro, que a política é uma ciência e uma arte com vista a promover o bem comum e individual, segundo a conjuntura possível. Realistas como eram, sabiam muito bem das peculiaridades etno-culturais das populações que habitavam os territórios que constituíam o império, e como o mesmo havia sido estruturado por

Carlos Magno, com o passar do tempo e de acordo com as circunstâncias históricas, tornava-se impossível manter uma unidade rigidamente centralizadora, que aliás não dispunha de meios, tais como um exército e um aparelhamento jurídico para superar a estrutura feudal.

O monismo proposto e alegado pelos ideólogos da almejada unidade imperial, por Lotário e seus partidários e por Gregório IV, era contraditório em si mesmo, porque na prática um problema bem sério, com desdobramentos

13 Cf. ARQUILLIÈRE, H. X. Op. cit., p. 172-174. 14 Idem, ibidem, p. 179: dès lors que Louis le Pieux s‘en acquittait mal, qu‘il laissait péricliter l‘unité

politico-religieuse réalisée par l‘Empire, dès lors que le bien public se confondait avec les vertues

chrétiennes, la logique reprenait ses droits, et les juges officiels du péché devaient — timidement

d‘abord — affirmer la prépondérance du Sacerdoce sur le prince prévaricateur, dans l‘Empire christianisé (...)‖. 15 LLORCA et al. Historia dela Iglesia Catolica. Madri: BAC, 1963, p. 95.

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ulteriores, surgia sem uma perspectiva de solução: quem devia possuir e exercer a preeminência política nessa sociedade ou nesse império: o sumo pontífice ou o imperador? Ainda era possível tentar aplicar a solução apresentada pelo papa Gelásio alguns séculos antes?

Jonas conhecia muito bem a fonte de inspiração às teses de Gregório IV, mas preferiu ficar ao lado de Luís I e contra o papa, em primeiro lugar porque julgava que o romano pontífice estava a extrapolar o âmbito de sua atuação específica, violando também os antigos cânones eclesiásticos. Em segundo lugar, ainda que pesassem contra o imperador suas limitações pessoais, ele era justo, humilde e havia-se empenhado em restabelecer a disciplina monacal, em proteger a Igreja contra as espoliações e as arbitrariedades da nobreza, em assegurar a realização com autonomia das eleições episcopais e abaciais, em praticar a justiça, fonte de

toda a paz verdadeira. Ademais, nosso prelado era muito justo e fiel para abandonar seu amigo num momento difícil, visto ser muito mais pastor de almas do que filósofo-político.

Em 834, Luís ―Germânico‖ e Pepino da Aquitânia, temerosos pela falta de apoio unânime do episcopado e de boa parte da população do império, se rebelaram contra Lotário e marcharam contra o mesmo. O novel imperador, sem condições militares de vencê-los, preferiu fugir para a Itália.

Ludovico I foi então novamente coroado imperador na catedral de Metz em março de 835 e pouco depois, apesar de uma aparente reconciliação com os bispos que lhe haviam infligido a sanção eclesiástica, ―au concile de Thionville (Jonas) fut chargé de dicter la sentence de déposition d‘Ebhon, archevêque de Reims, coupable d‘avoir trempé dans la revolte de Lothaire (...)‖.16

Em 837, Ludovico I, repartindo novamente o Império, concedeu ao seu caçula, Carlos, uma vasta região que compreendia as antigas Austrásia e Nêustria da época

merovíngia. Nesse mesmo ano, Jonas escreveu um outro opúsculo intitulado De Rebus Ecclesiasticis non Invadendis,17 cujo teor se aproxima bastante do conteúdo registrado nas atas do sínodo celebrado em Aix-la-Chapelle, redigidas pelo próprio bispo aurelianense. Nessa oportunidade, os prelados gauleses, retomando as decisões do sínodo de Paris, protestaram enfaticamente contra a nobreza, especialmente a da Aquitânia, que tentava se apossar das terras e dos bens eclesiásticos para resolver seus problemas, recorrendo inclusive à violência.

Não sabemos se tais documentos influenciaram Pepino a resolver efetivamente

esse problema, pois o rei veio a falecer em dezembro de 838 e a Aquitânia em 839 foi confiada a Carlos, por ordem de Luís ―O Piedoso‖, que desrespeitou os próprios

16 REVIRON, J. Op. cit, p. 33. 17 Tal obra também foi dedicada ao rei Pepino da Aquitânia.

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direitos dos netos àquela herança territorial. Na mesma ocasião, Lotário foi novamente reconhecido como futuro imperador.

A 20 de junho de 840 Ludovico I morreu. Desta vez, Carlos e Luís II, como também iria passar à História, não aceitando a preeminência do irmão mais velho

sobre eles, declararam-lhe guerra. A batalha decisiva entre os rivais deu-se nas proximidades de Auxerre, a 25 de junho de 841. Os irmãos mais novos, vitoriosos, celebraram um pacto de aliança mútua contra Lotário. Essa aliança ficou conhecida como ―Juramento de Estrasburgo‖, tendo sido assinada em 14 de fevereiro de 842 e redigida em duas vias, uma delas em ―francês‖ arcaico e a outra em ―alemão‖ arcaico, misturados com palavras latinas, de modo que os respectivos vassalos e súditos dos dois reis pudessem saber claramente o que havia sido estabelecido entre ambos.

Finalmente, em agosto de 843, Lotário, Luís e Carlos assinaram o tratado de Verdun (sur Meuse), repartindo entre eles, de comum acordo, o império carolíngio. Lotário conservou o título imperial e ficou com um território que se estendia da Frísia à Campânia, na Itália. A região a leste do mesmo, que abrangia parte da atual Alemanha e porções de alguns países vizinhos, coube a Luís ―O Germânico‖. A região a oeste da parte da que coube a Lotário, abrangendo a Marca da Espanha e a França, menos a Provença e Borgonha atuais, coube a Carlos.

Não se sabe ao certo quando Jonas de Orleans faleceu. Os estudiosos divergem entre si propondo várias datas. Sua morte ―est certainement antérieure au concile de Germigny (septembre ou octubre 843) où, comme signataire des résolutions, figure Agius, évêque d‘Orleans élu en 843 d‘après les Actes de Verneuil...‖.18

2- UMA NOVA COSMOVISÃO POLÍTICO-SOCIAL E O “DE INSTITUTIONE REGIA”

Como tivemos ocasião de ver na parte imediatamente anterior deste trabalho, a primeira metade do século IX foi um período histórico em que houve muitas soluções políticas contraditórias para os problemas emergentes no interior da Cristandade latina.

Essas contradições decorreram em parte devido às novas transformações pelas

quais a sociedade passava, mas também ao modo como os homens daquela época refletiam sobre a mesma, a partir de uma bagagem cultural de idéias e valores, cujos princípios haviam sido estabelecidos há muitos séculos e aos poucos estavam a ganhar nova interpretação.

18 REVIRON, J. Op. Cit., p. 34.

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Examinaremos agora rapidamente algumas dessas transformações no plano sócio-político no domínio do pensamento, a fim de tornar mais fácil a compreensão do De Institutione Regia.19

Uma longínqua e importante mudança consistiu no seguinte: os reis

merovíngios, e depois os carolíngios, eram cristãos e procuraram bem ou mal agir como tal, e assim igualmente a alta nobreza. Todavia, quando os interesses pessoais ou familiares ou ainda os do reino estavam em jogo, não hesitavam em transgredir os princípios ditados pelo Cristianismo e desrespeitavam os direitos da Igreja, por exemplo, sendo omissos no cumprimento dos seus deveres, ou não apenas lançando mão das terras e bens eclesiásticos, como também interferindo direta ou subrepticiamente nas eleições episcopais e abaciais. Esses fatos irão se repetir com enorme freqüência nos séculos X e XI, especialmente nos territórios

pertencentes ao ―reich‖ germânico. Um outro dado relevante é que, apesar do ―Renascimento Carolíngio‖, os reis

e os nobres continuaram, sob o ponto de vista intelectual, vivendo na ignorância, e os prelados e os monges, embora súditos dessas personalidades, tendo consciência de sua superioridade cultural, tanto no que tange ao saber divino quanto profano, continuaram a desempenhar uma parcela do poder político, direta ou indiretamnete, não paenas em suas dioceses e domínios abaciais, mas ainda

exercendo a função de assessores ou inspetores (missi dominici) dos monarcas. Quanto ao pensamento político, os autores daquela época, inspirando-se na

Bíblia, em Agostinho, em Gregório Magno e Isidoro de Sevilha, ao mesmo tempo em que defendiam a tese de igualdade humana, admitiram igualmente a escravidão como decorrência da queda de nossos primeiros pais e das injustiças que advieram posteriormente de tal acontecimento.

Os pensadores daquela época não aludiram em seus escritos à origem natural

do estado, tratada amplamente pelos filósofos e juristas greco-romanos, mas consideram inprescindível a existência da autoridade publica, pois em seguida ao pecado original e à desordem causada pelo mesmo, não houve outro meio eficaz, ao longo da Historia da Humanidade, para manter a segurança coletiva e individual, através das leis e das armas, e proporcionar a todos o bem comum.

Todos os sutores comumente admitiram que o poder político tinha uma origem divina, de modo que os súditos em geral deviam respeitá-lo, considerando assim a rebelião como um pecado. No entanto, o exercício desse poder não era ilimitado e

absoluto, porque os homens aos olhos de Deus são iguais e os batizados só tem um Senhor, que é o próprio Criador do universo. Tal concepção explica o fato de os escritores da época em exame terem recorrido com tanta freqüência à Historia de

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Neste trabalho nos servimos da edição de J. REVIRON, publicada em seu estudo.

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Israel narrada na Escritura, como uma lição e ao mesmo tempo modelo para a Cristandade, especialmente quanto ao comportamento político-social, estabelecido pela Antiga Lei, que devia ser imitado não só pelos reis, mas também pelos súditos, porque Israel prefigurava a Igreja/Cristandade e os israelitas o novo povo

de Deus, de forma que, à semelhança do que havia acontecido outrora, a má conduta e transgressão à lei de Cristo traria aos fiéis desgraças e infortúnios.

Por causa também desse paradigma os autores da época detiveram-se muito mais na análise dos deveres do rei para com os seus usditos, do que na reflexão acerca dos direitos e privilégios inerentes à sua condição de monarca, enfatizando que ele tinha o dever de observar a Justiça, fazer com que a mesma fosse respeitada por todos, através do cumprimento das leis seculares e cristãs por todos. Pouca importância deram ao patrimônio jurídico romano, visto não

estarem mais a viver no tempo dos Padres da Igreja, cidadãos do Império Romano. Outra era a ocasião histórica, outra a sociedade com novos valores, hauridos especialmente no Cristianismo.

Como tais autores refletiram sobre essa sociedade mais concretamente? Para um bom número deles, entre os quais nosso antístite, a única sociedade que admitiam como tal era a Igreja, à qual leigos e clérigos pertenciam desde o instante de seu Batismo, pois a Igreja é o Corpo Místico de Cristo, cuja Cabeça é o próprio

Senhor ressuscitado e cujo corpo é constituído pelos fiéis. A doutrina em questão é de são Paulo,20 mas a compreensão que dela tiveram não era mais restrita, como à época do Apóstolo, mas total e abrangente.

Os poderes espiritual e secular haviam sido estabelecidos no interior da Igreja e não no mundo, conforme o papa Gelásio I, ao final do século V, havia escrito ao imperador Anastácio. O poder secular estava sob o controle do rei e o espiritual sob a responsabilidade dos bispos, incluindo o papa.

E tendo-se em vista a mentalidade profundamente religiosa do homem do medioevo, imbuído de uma visão transcendente da realidade, como perante a missão salvífica desempenhada pelos sacerdotes, missão essa mais relevante do que a exercida pelo rei e demais autoridades seculares, os presbíteros, se assim ojulgassem necessário, podiam interferir na atuação meramente secular dos monarcas, aconselhando-os, censurando-os e questionando sua conduta.

Ademais, insistimos novamente, política e religião caminhavam lado a lado, sendo que às vezes se interpenetravam, outras vezes se confundiam, visto a Pátria

Celeste consistir na meta final, por excelência, que devia ser alcançada por todas as pessoas. O fim imediato, isto é, os meios e condições materiais e espirituais para que o objetivo maior fosse atingido, tinham de ser proporcionados pela realeza e pelos ministros do altar. Dessa maneira, pensamento político e ação significavam a

20 Cf. 1Cor 2. 14-15 idem 12, 12-13; Rm 8,8-11; Ef2, 15; Gal 6,5.

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práxis de uma moral a ser vivida através da prática das boas obras que a fé impunha (e impõe) a todo batizado.

Entretanto, é importante ressaltar que as mudanças na maneira de pensar, especialmente a que mencionamos no último parágrafo, não principiaram a ocorrer

somente no século IX. Na verdade, remontam inicialmente ao longínquo século IV e, mais tarde, ao período em que as províncias ocidentais do império romano foram se transformando nos reinos bárbaros.

Primeiramente, quando o Estado romano passou a interferir nos assuntos doutrinários e disciplinares da Igreja, porque os mesmos tinham desdobramentos políticos, sociais e econômicos na vida do Império. E, à guisa de ilustração, basta mencionar como exemplos as heresias ariana e monofisita; então bispos começaram a propor uma teoria segundo a qual as duas esferas jurisdicionais de

poder tinham que estar separadas, conforme a natureza específica de sua função. O contexto político era bem outro daquele ao qual nos referimos nas últimas páginas.

S. Ambrósio identificou as aportações ciceronianas (estóicas) com as bíblicas acerca da ordem natural com a ordem cristã, no que tangia à origem dos poderes espiritual e secular, ambos originados em Deus, e à lei moral que norteia o ser humano peregrino neste mundo.

S. Agostinho deu um passo mais longe, transformando a lei, ou melhor o

conceito de lei estóica no conceito de lei eterna, universal, imutável e fruto da vontade divina, abarcando tanto a ordem natural quanto a moral. Esta lei está inscrita como lei natural na alma racional do homem. Entretanto o bispo de Hipona havia constatado que em muitas circunstâncias a lei positiva, promulgada pelas autoridades constituídas, não se adequava plenamente à lei eterna, fato esse que o levou a criticar severamente o Estado romano, considerado por ele como o mais perfeito dos estados seculares, isto é, não cristianizados.

S. João Crisóstomo foi mais longe ainda, afirmando explicitamente a superioridade do sacerdócio em relação à realeza: ―... Ao rei foram confiados os corpos, ao sacerdote as almas... aquele impõe, este exorta... um utiliza as armas materiais, o outro possui as espirituais. Este principado é maior do que o primeiro. Daí o rei inclinar sua cabeça perante as mãos do presbítero, e através da leitura de todo o Antigo Testamento constatamos que os sacerdotes ungiam os reis...‖.21

Mas tanto os acima referidos Padres da Igreja bem como, antes deles, Cristo, os apóstolos e apologistas, sempre admitiram a legitimidade do poder secular e a

sociedade politicamente organizada no Estado, exortando os fiéis a obedecerem às autoridades constituídas. Igualmente não se nota nos seus escritos, muito menos no Novo Testamento, a intenção ou o desejo de impor ao Estado romano a lei cristã

21 MIGNE, PG, LVI; p. 125.

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no lugar da lei civil e substituir os fins próprios da política pela meta sobrenatural da religião ensinada por Nosso Senhor Jesus.

Algum tempo mais tarde, com o esfacelamento da região ocidental do império, paralelamente à cristianização e romanização dos povos germânicos, levada a cabo

pela Igreja, o novo contexto histórico veio possibilitar a transformação da natureza soteriológica da ―lex christiana‖ em ―lex publica‖.

Ademais, como a lei sempre é formulada a partir de uma concepção própria a respeito da sociedade que ela mesma pretende ordenar, não se pode olvidar que as nações germânicas, ao se organizarem em remos autônomos, tinham absorvido muito mais os valores culturais e morais cristãos do que os romanos: ―EI pensamiento jurídico está siempre orientado por un pensamiento político, o por lo menos siempre debe ser entendido dentro de ese marco (...)‖.22

Nesse novo contexto histórico, Isidoro Hispalense foi o grande mentor das transformações a que estamos aludindo. Afirmava ele que o poder temporal e a lei ditada pelo mesmo estavam subordinados à religião. O soberano temporal não é completamente independente na sua esfera de atuação própria, porque, na condição de batizado, estava subordinado e vinculado aos princípios doutrinários e morais definidos pela fé, ensinados e interpretados pelo magistério eclesiástico. A única realidade social que existia era a Igreja, não este ou aquele reino, e da

mesma faziam parte todos os fiéis, pouco importando sua função social ou a ordem a que pertenciam.

Para Isidoro de Sevilha o principal dever do rei consistia em fazer com que a lei cristã fosse observada fielmente, e quem a transgredisse tinha de ser punido com severidade pelo príncipe, pois Deus lhe confiou esse ministério, bem como o de proteger a Igreja (instituição)/Cristandade e os ministros eclesiásticos a fim de que estes desempenhassem o melhor possível a sua missão de conduzir todos a

Pátria Eterna. Em suma: ―los fines naturales de la sociedad cuyo cumplimento debería cuidar y velar el gobernante temporal han desaparecido para quedar totalmente absorvidos por los flues sobrenaturales. La lex cuyo guardián es el príncipe, es ahora la lex christiana y el logro de los objectivos de esta última posterga toda otra meta socio-política que no tenga que ver directamente con las metas de la sociedad cristiana. (...)‖.23

O De Institutione Regia perfilha essa mundividência, essa nova forma de pensar. O tratado é precedido de uma epístola dedicatória ao rei Pepino da

Aquitânia. Convém observar que, embora a mesma se apresente eivada de expressões de humildade da parte do próprio autor, relativas a si próprio, e de

22 BERTELLONI, C. F. ―La memamórfosis de la ‗Lex Data‘ em la Segunda Patristica.‖ In: Anuário de Filosofia Jurídica y Social, 6 (1 986):82. 23 Idem, ibidem, p. 101.

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excessivos louvores ao monarca a que se destina, não se trata de urna atitude bajulatória gratuita; de fato, além de tal procedimento fazer parte das normas de etiqueta daquela época, é principalmente uma ―captatio benevolentiae‖ de um soberano que já demonstrou repetidas vezes estar a transgredir a práxis cristã, e,

por isso mesmo, terá que vir a ser advertido com severidade pelo pastor, a quem compete o dever de contribuir incisivamente para que todos os fiéis de seu rebanho, inclusive o próprio rei, alcancem a bem-aventurança. A epístola contém, pois, belíssimos ensinamentos filosófico-morais e religiosos, antecipando aspectos do conteúdo que será tratado na obra.

O opúsculo tem 17 capítulos e ―sostanzialmente ripropone una parte degli atti del concilio regionale tenutosi a Parigi l‘anno 829...‖.24 Esta é uma das fontes próximas do Prelado aurelianense ao redigi-lo. A outra é o De

Institutione Laicali. A propósito do que estamos a comentar, o especialista J. Reviron cotejou os três textos, tendo em vista mostrar as semelhanças e os elos de ligação entre os mesmos.25

A Bíblia é, no entanto, a fonte por excelência onde nosso prelado hauriu seus conhecimentos e inspiração. Encontramos na obra em exame 55 transcrições do Antigo Testamento, especialmente do Deuteronômio, dos Provérbios, do II Livro dos Reis, do Exodo e dos profetas Isaías, Amós, Daniel e Jeremias. Há 37 citações

literais do Novo Testamento, tiradas particularmente dos Evangelhos de Mateus, Lucas e João, da 1ª Epístola de S. Pedro, das cartas de Paulo aos Romanos, a Tito, da 1ª a Timóteo e da 1ª de S. João.

Jonas cita os Padres da Igreja 31 vezes, especialmente S. Isidoro de Sevilha (Etimologias e Sentenças), S. Agostinho e S. Gelásio, papa.

O De Institutione, de acordo com seu conteúdo, pode ser dividido em duas partes. A primeira compreende os oito capítulos iniciais, cujo conteúdo reveste-se

de mais de uma característica filosófico-moral, onde o autor discorre, entre outros assuntos, sobre a sociedade cristã, como ela está organizada e é dirigida, quais as pessoas que no seu interior desempenham a função ou encargo social mais relevante, o que significa para a mesma o ministério da realeza, qual deve ser a conduta de um rei cristão, quais são as suas principais obrigações, quais são as conseqüências de um bom ou de um mau governo para o soberano e para os seus súditos, qual a origem do poder secular, e enfim como os súditos têm de se comportar cm relação ao rei.

A segunda parte da obra se estende do capítulo 9º ao 17º e reveste-se essencialmente de um caráter religioso-moral. Jonas dirige-se não apenas ao rei

24 PAPES, A. ―Dottrine Politiche nell‘Età Carolingia e nel Secolo Décimo‖. In: Salesianum, 40(1978):504. 25 Op. cit., p. 48-50.

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Pepino, mas aos fiéis em geral, falando da importância da prática da caridade, da obediência às leis divinas, considerando-as inclusive com o melhor caminho para solucionar os problemas e conflitos cotidianos e meramente seculares, da oração comunitária na igreja, do respeito que se deve ter para com Deus,

especialmente em sua casa. O 17º e último capítulo, em perfeita consonância com a epístola, haurido no

livro V, capítulo 24 da Cidade de Deus de S. Agostinho, nos apresenta a figura, o modelo perfeito de um soberano cristão que efetivamente pode se considerar feliz.

De conformidade com nosso propósito inicial, nós nos ateremos à análise dos 8 primeiros capítulos na próxima parte deste estudo. Mas, a fim de compreendermos melhor o opúsculo de Jonas, prestemos atenção à oportuna observação de H. X. Arquillière, renomado conhecedor do pensamento político

medieval: ―Du commencement à la fim de son traité, Jonas évolue dans une atmosphère surnaturelle. Morale et politique sont pour lui intimement unies. On peut même dire qu‘elles ne se distinguent pas. La politique est une application de la morale chrétienne. Il a composé son De Institutione Regia avant tout pour assurer le salut du roi. Il ne peut entrevoir cette fin suprême que dans la fidelité la plus complète aux enseignements de l‘Église(...)‖.26

3 — ASPECTOS DA HIEROCRACIA NO DE INSTITUTIONE REGIA

Alcançar a paz neste mundo e a vida eterna são os objetivos primordiais do homem medieval, de forma que seus valores se hierarquizaram a partir desta concepção e perspectiva. A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, a sociedade cristã, cuja cabeça é o próprio Senhor, tem como objetivo precípuo proporcionar-lhe,

enquanto membro da mesma, desde o instante em que foi batizado, os meios para alcançar a Pátria Celestial.

Deus estabeleceu para o governo da Igreja os poderes sacerdotal e secular.27 Os prelados, detentores do poder das chaves (―O que ligardes sobre a terra será ligado nos céus (...)‖ Mi. XVIII, 18) e pregadores da Boa Nova (―Ide, pois, e ensinai a todos os povos batizando-os (...)―, Mt. XXVIII, 28), ocupam nesta sociedade um lugar mais importante em relação aos reis, porque no dia do julgamento hão de

prestar contas a Deus também pelos monarcas que estiveram sob os seus cuidados, na condição de pastores de todos os fiéis, que fizeram parte do rebanho que lhes foi confiado por Deus.

26 L‘augustinisme politique. Paris: J. Vrin, 1972, p. 151. 27 PAPES, A. art. cit., p. 505: ―I vescovi della Francia settentrionale hanno condotto il mondo a

semplice momento terreno della Chiesa, hanno cosi ridotto l‘intera storia ecclesiastica (...)‖.

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Mas a preeminência do sacerdócio sobre a realeza repousa principalmente nas finalidades da missão episcopal, entre outras, no caráter ético da mesma, quer dizer, na supervisão ou vigilância que deve ser exercida sobre a atuação política dos reis e de seus auxiliares, de acordo com os princípios estatuídos

pela religião e moral cristã, das quais são ao mesmo tempo os pregadores, mestres, intérpretes e juízes.

Essa atitude de vigilância e supervisão no que concerne ao comportamento do rei quanto ao dos fiéis é perene, não ocasional, porque o mistério da salvação só terminará na ―consumação dos tempos‖, visto os homens necessitarem freqüentemente de guias ao trilharem o caminho da fé rumo à bem-aventurança, a fim de que ―nenhuma das ovelhas se perca‖ devido às suas fraquezas.

Os bispos, no entanto, limitar-se-ão a admoestar e a aconselhar os fiéis e no

caso de transgredirem a Lei de Cristo, deverão sofrer as sanções eclesiásticas, isto é, castigos de natureza espiritual, como os jejuns, as mortificações e outras formas de penitência, conforme a gravidade das faltas cometidas, isto porque a natureza da autoridade sacerdotal é essenciahmente espiritual.

É indiscutível que Jonas sabia muito bem que o rei é o chefe do povo, e cada prelado, incluindo ele mesmo, era um súdito como as demais pessoas, de modo que nas questões seculares, tinha a obrigação de acatar suas ordens; mas nosso

antístite tinha consciência, melhor do que ninguém, de que, se as medidas tomadas pelo poder temporal comprometessem a salvação, devia obedecer mais a Deus do que aos homens, porque os ―jura coelestia‖ sobrepujam infinitamente as ―mundanae leges‖.

O bispo aurelianense salienta que, apesar de em seu tempo, como também acontece em todos os momentos históricos, haver sacerdotes indignos e negligentes quanto à fidelidade ao desempenhar sua missão, merecem toda honra e respeito,

por causa do carisma indelével recebido no dia da ordenação presbiteral e do encargo recebido inerente ao mesmo. É por esse motivo, lembra ele ao rei Pepino e aos seus subordinados, que as pessoas que ofendem ou fazem mal aos servos de Deus estão a injuriar o próprio Cristo. Além disso, a própria autoridade eclesiástica dispõe de meios para advertir e corrigir os relapsos ministros do altar, não precisando normalmente que a realeza interfira nesse problema e noutros assuntos relativos ao âmbito clerical.

Nestes dois primeiros capítulos da obra em apreço vêem-se esboçados

claramente o suporte básico do sacerdotalismo e as suas teses mais relevantes. O final do segundo capítulo do De Institutione Regia introduz a preocupação

especial do pastor aurelianense: O que é ser rei na Cristandade? — Antes de mais nada, o soberano é um cristão, um batizado, e como tal está sob a responsabilidade espiritual dos bispos, tendo a obrigação de ouvir e executar seus conselhos, à semelhança dos demais fiéis.

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Em segundo lugar, o rei tem o compromisso de proteger e defender a Igreja e seus ministros. Portanto, a realeza é um ―ministerium‖ no interior da ―Ecclesia‖ da mesma forma que o sacerdócio. Aliás, a unção régia, ministrada aos monarcas francos desde Clóvis (496), indicava que os mesmos exerciam um encargo

especial, em nome de Deus, junto ao povo, encargo esse semi-religioso, sem, no entanto, transformá-los em membros do clero.

Apesar de Jonas não fazer referência explícita à unção dos reis, é por estas razões que o soberano deve ser piedoso, justo e misericordioso ao exercer seu encargo, pois se não possuir tais virtudes será um tirano, isto é, um mau governante.

É evidente que é a justiça cristã que o rei deve cultivar e praticar cotidianamente, a qual absorveu a antiga justiça natural, porque a Revelação

esclareceu os dados fornecidos pela luz da razão, da mesma maneira que a Igreja, àquela época, tinha absorvido no seu interior a sociedade política organizada, sem tentar, ainda ao menos naquele momento histórico, controlar as funções próprias e específicas do poder secular.

O rei para governar bem deve observar primordialmente a lei de Cristo contida no Novo Testamento, e justamente com toda sua família empenhar-se na prática das virtudes cristãs, dando assim um ótimo exemplo para os súditos. O

Deuteronômio contém igualmente algumas normas de comportamento que o bom soberano tem de respeitar se quiser viver com retidão. Deve pois, guiar-se pela palavra de Deus, julgar os subordinados com eqüidade, ser misericordioso para com todos, esforçando-se ao máximo, com o auxílio da graça celestial, para assegurar ao povo a concórdia, a paz e os outros recursos, através dos quais possa vir a atingir seu fim último. A piedade, a justiça e a misericórdia são as três virtudes morais que um bom soberano cristão deve praticar se quiser ser

reconhecido como tal e se almeja merecer a plenitude da vida. Pelo contrário, se o rei for devasso, ambicioso, parcial ao proferir seus

julgamentos, soberbo e orgulhoso, hípócrita e incorreto, não cumprindo as obrigações inerentes a seu ministério, incluindo-se entre seus deveres, o de zelar pela salvação dos cidadãos do reino, merece a denominação de tirano.

A transcrição de uma longa passagem atribuída a S. Cipriano, bispo de Cartago e mártir do século III, no corpo do 3º capítulo da obra em tela, mostra claramente qual deve ser o comportamento ético-político de um soberano cristão,

quanto à observância e à prática da justiça. Jonas a considera algumas vezes num sentido distributivo, por exemplo, a

defesa das viúvas, dos órfãos, dos forasteiros, a aplicação do castigo a ser imposto aos adúlteros, aos assaltantes, aos parricidas, aos ímpios, aos perjuros. Outras vezes toma a justiça como a eqüidade judiciária, por exemplo, o monarca deve sempre

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julgar sem fazer acepções, não oprimindo quem quer que seja, coibindo os abusos do poder e as arbitrariedades eventualmente cometidas por seus filhos ou parentes.

A observância de tal programa indiscutivelmente conduzirá o trono, o reino e a população à paz, à concórdia e à prosperidade. Aliás, a paz é fruto da justiça e esta

equivale à lei divina, e quando a mesma não é respeitada, Deus, que é a própria justiça, castiga o soberano e a coletividade infligindo-lhe várias espécies de punições: os inimigos avançam sobre as fronteiras, as adversidades climáticas prejudicam a lavoura, a pecuária e o comércio, e se o Senhor permite que tudo isso aconteça é porque ele também é o criador e o ordenador de tudo o que existe.

O antístite aurelianense concebe e atribui à justiça cristã um sentido mais globalizante ainda, considerando como obrigação do rei, não apenas a defesa da pátria, como proporcionar alimento para o povo, cuidar dos desvalidos, assegurar o

direito à herança aos que fazem jus à mesma, manter o equilíbrio da natureza, enfim propiciar a paz e o bem-estar para todos.

No entanto, se o rei não praticar a justiça, além de pessoalmente não vir a ser recompensado por Deus com a eternidade feliz, deverá arcar também com o ônus das falhas e omissões cometidas por seus súditos, face à sua irresponsabilidade. Seus filhos e descendentes correrão o risco de não vir a herdar o trono, talvez pelo fato de a dinastia vir a ser destituída do poder.

A insinuação referida acima, nos parece uma admoestação sutil ao rei Pepino, em vista não somente de sua negligência com relação às arbitrariedades perpetradas pela nobreza contra a Igreja da Aquitânia, como também e principalmente ao seu desrespeito para com o próprio pai, Luís ―O Piedoso‖. ―Jonas voit son devoir — qui est de faire avancer le règne de la justice, par la sanctification des consciences, royales ou autres (...), Il se pose en conseiller responsable plutôt qu‘en homme d‘Êtat (...)‖.28

A seguir, o bispo de Orleans, inspirando-se em Isidoro de Sevilha, recomenda que o rei seja humilde e simples, porque o Mestre impôs a todos os seus discípulos que também praticassem as virtudes da humildade e da simplicidade e ainda porque, como se sabe muito bem, o fastígio, os privilégios, as benesses proporcionadas àqueles que exercem o poder os levam quase sempre a agir arrogante e orgulhosamente, esquecendo-se de que um dia, como as demais pessoas, pouco importando sua condição sócio-econômica, se transformarão em comida para os vermes.

Por último, nosso prelado afirma que o rei cristão, semelhantemente a alguns dentre os antigos reis de Israel, há de ser santo, isto é, seja capaz tanto de se autogovernar quanto coibir os impulsos e inclinações sensuais de seu povo, visto que o desregramento moral do soberano, além de ser um péssimo exemplo para os

28 REVIRON, J. Op. Cit., p. 87.

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súditos, pode induzi-los igualmente a se comportar de maneira muito pior do que o próprio monarca. Mas esse comportamento da população atrairá sobre si mesma o castigo divino, de ter que suportar os maus governantes.

Portanto, o rei é juiz e deve ser justiceiro e assim tem que proceder sempre.

Notamos, de acordo com esta concepção, o amálgama de duas correntes de pensamento, de um lado a idealizada pela Filosofia Política greco-romana e de outro a produzida pela Teologia Política hebraica, aperfeiçoada com os valores do Cristianismo, modelo esse que acaba prevalecendo. Por isso Jonas pensa que o rei ―doit être un juste, et un roi juste, au sens où ces expressions sont données dans l‘Ancient Testament, en y ajoutant toute la perfection qu‘apporte l‘Evangile, et comportant jusqu‘à la protection des églises, la vie selon Dieu, et même la regularité dans la prière (...)‖.29

A missão específica do rei consiste em governar com justiça e eqüidade a parcela do povo de Deus que lhe foi confiada pelo próprio Criador, esforçando-se com todo empenho para que o mesmo viva em paz e concórdia. Ele a concretiza efetivamente protegendo, em primeiro lugar, as igrejas locais organizadas em seu território bem como os seus ministros, de modo que possam desempenhar a contento o ministério sacerdotal, e depois zelando também pela segurança e bem-estar das viúvas, dos órfãos e de todos os indigentes.

Seus súditos devem respeitá-lo e temê-lo de tal forma que não atentem contra a justiça, mas se isto vier a acontecer, o criminoso terá de ser corretamente punido, a fim de que ninguém pense que, se por ventura transgredir as leis, ficará impune.

O governante, não se esquecendo de que recebeu aquela missão de Deus, tem de cumpri-la fielmente e lembrar-se a cada instante de que no dia do Juízo há de prestar contas a Deus de todos os seus atos. Por essa razão ainda é necessário e oportuno que o rei seja muito criterioso ao escolher entre as pessoas de bem seus

colaboradores, pois quando estes são maus, negligentes e relapsos no cumprimento de suas tarefas, os desvalidos e os pobres são os mais prejudicados face à penúria singular em que vivem. Daí o monarca ter igualmente a obrigação de fiscalizar a atuação de seus funcionários.

Jonas fundamenta e comprova suas teses citando passagens dos Provérbios e do Livro da Sabedoria, não sem falar também a respeito do que acontecerá com os maus soberanos, após esta caminhada terrena.

O quarto capítulo da obra em exame termina com uma citação textual de

Isidoro de Sevilha, na qual transparece uma vez mais, de forma bem evidente, a absorção do objetivo imanente do poder régio no fim transcendente em que a Igreja foi investida. Em resumo ―le pouvoir séculier n‘est qu‘un prolongement nécessaire

29 Idem, ibidem, p. 85.

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de l‘autorité ecclésiastique. C‘est le bras séculier. Le sacerdoce a pour mission faire prévaloir dans le monde la justice surnaturelle, condition du salut (...)‖.30

Os capítulos 5º e 6º do De Institutione Regia continuam a tratar a respeito dos funcionários reais, pois o monarca sozinho não poderá desempenhar bem todas as

tarefas inerentes à sua missão e encargo específico. O bispo aurelianense propõe e insiste que o rei, ao escolher os duques e os

condes, que tinham de fazer principalmente justiça em seu nome nas regiões que lhes fossem confiadas, deveria ser muito criterioso, por vários motivos: a fim de que os cargos a serem desempenhados pelos mesmos redundassem no proveito geral de todos e da nação; em segundo lugar, para que os bons pudessem viver em paz e os maus recebessem as necessárias punições; por último, de maneira que o próprio soberano, o responsável único e exclusivo pela escolha dos colaboradores

mais diretos, não tivesse de vir a prestar contas a Deus pelas omissões, injustiças e desmandos por eles cometidos, na ocasião do julgamento derradeiro. É evidente que o Senhor os castigará por causa das faltas individuais que vierem a cometer, mas o rei será punido com muito mais severidade porque tem uma obrigação pessoal bem maior, particularmente em relação às pessoas econômica e socialmente menos favorecidas.

Jonas enumera, a seguir, as qualidades que o rei tem de considerar ao

escolher os condes e duques, de forma que possam vir a desempenhar satisfatoriamente os encargos que lhes forem confiados. Exclui ele de imediato que tal designação se fundamente nos laços de parentesco, de amizade e na troca de favores, sugerindo que as pessoas sejam prevalentemente cristãs verdadeiras, nos atos e nas palavras, dignas a toda prova, incorruptíveis, magnânimas, imparciais e equânimes, de modo especial quando estiverem a julgar o seu próximo, não se esquecendo jamais de que são a ele idênticas em natureza e de

que irão desempenhar esta ou aquela função em benefício de todos e não para explorar e dominar os outros em proveito próprio.

Se o rei e seus auxiliares forem injustos, falsos, impiedosos, avarentos, soberbos e corruptos, mais cedo ou mais tarde, atrairão os castigos divinos. As Sagradas Páginas ensinam e alertam os governantes que o Senhor pode tardar ao agir, dando mais uma oportunidade ao pecador de se converter, mas nunca deixará de fazê-lo. Portanto, se quiserem de fato que a monarquia seja estável, que a nação e o povo vivam em paz, felizes e prosperem, têm de desempenhar-se na prática do

bem, manifesta no amor a Deus e aos pobres, as viúvas e aos órfãos, de acordo com o que preconiza a lei cristã.

A preocupação fundamental do bispo aurelianense no 7º capítulo da obra em tela, consiste em salientar enfaticamente que os poderes secular e espiritual, no

30 ARQUILLIÈRE, H. X. Op. cit., p. 150.

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interior da Cristandade, se originam e provêm de Deus, Senhor e Ordenador do universo. Trata-se, pois, de uma graça celestial, a qual o Pai concede, movido por amor e bondade, a quem deseja. Esta é, por sinal, uma doutrina paulina,31 e Jonas arrola como provas a alicerçar sua tese inúmeras passagens da Escritura Sagrada,

descartando assim a concepção greco-romana democrático-ascendente, acerca da origem imediata da autoridade política.

Os progenitores até podiam ser o meio natural utilizado por Deus para que o poder régio fosse transmitido a alguém. Entretanto, o bispo de Orleans sabia muito bem que, de acordo com o pensamento comumente aceito em sua época, uma pessoa se tornava efetivamente apta a reinar após ter sido ungida com o óleo do Crisma, sinal visível de que a mesma havia-se tornado recipiendária de uma graça divina específica para desempenhar aquele ministério singular.

A unção transformava o rei numa espécie de ―Vicarius Dei‖ não só colocando-o numa ―estrecha relación con la misma divindad y inversamente (o) desligaba cada vez más del pueblo (...)‖,32como lhe assegurava a obediência relativamente irrestrita de todos os súditos, clérigos e leigos, e lhe facultava naquela condição interferir, se lhe parecesse necessário, nas questões e assuntos pertinentes ao âmbito espiritual.

Assim, visto o poder régio ser uma graça divina, o monarca tinha de

corresponder à mesma, governando os súditos com Deus e em seu nome, de modo justo, piedoso, reto e misericordioso, de forma a no outro mundo reinar para sempre com o Rei dos reis.

Ora, se nosso prelado tivesse feito qualquer referência, por mínima que fosse, à unção régia, estaria minando sua teoria, especialmente não perdendo de vista que Pepino da Aquitânia vinha agindo de tal maneira que demonstrava não estar correspondendo à graça divina que recebera. Não é à toa que Jonas repete

insistentemente ao longo do tratado que o soberano tinha como principais obrigações cuidar da salvação eterna de seus súditos, proteger a Igreja e seus ministros, aplicar retamente a justiça e velar pelos pobres, viúvas, órfãos e demais necessitados.

Quanto ao fato de haver maus governantes, o antístite aquitânio, o explica recorrendo uma vez mais à Bíblia e a Isidoro Hispalense: Deus somente permite que eles reinem como um castigo para expiar os pecados cometidos pelo povo.

É por causa desses motivos, citados nos parágrafos anteriores, que Jonas, ao

discorrer no 8º capítulo de seu tratado, a respeito dos deveres do povo para com o soberano, enfatiza não apenas a obrigação da obediência, da submissão, do apoio e

31 1Cor 15, 10: ―Pela graça de Deus sou o que sou‖. 32 ULLMANN, W. Principios de gobierno y política em la Edad Media, Madrid: Ed. Revista de

Occidente, 1971, p. 123.

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do auxílio, mas ainda o compromisso de rezar pela salvação do governante, atitudes essas queridas e estabelecidas por Deus na lei cristã (a fim de que isso tudo venha a reverter em proveito geral da nação) sobretudo se o rei for mau, pois suportar as provações com amor e confiança na misericórdia celestial é igualmente

uma prova de aceitação da lei evangélica. Essa devia ser a atitude de Pepino em relação a seu pai, Luís ―O Piedoso‖, e o bispo de Orleans é perfeitamente coerente ao desenvolver sua teoria, a partir dos princípios que estabeleceu para a mesma.

A prova mais notória dessa coerência entre os princípios teóricos e a ação no De Institutione Regia está enunciada no capítulo 3º. A lei cristã impõe como primeiro mandamento o amor a Deus e a prática da caridade fraterna. O Senhor deu-nos um exemplo de amor infinito enviando à terra seu Filho para nos redimir.

O que falta, especialmente nos círculos mais elevados do poder, é a

caridade, também da parte de alguns membros do clero, pois muitos altos funcionários do reino, hipócritas, levados pela ganância, inveja, astúcia e maldade, estavam se digladiando uns aos outros, causando assim enorme prejuízo à Cristandade e ofendendo a Deus e ao próprio rei. Eles, no entanto, jamais deviam se esquecer de que, se continuassem a se comportar dessa forma, ao invés de receber a recompensa duradoura na eternidade, estariam fadados a sofrer castigos atrozes para sempre.

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HINCMAR, ARCEBISPO DE REIMS, E OS DOIS PODERES

NACHMAN FALBEL Universidade de São Paulo

A história literária da Alta Idade Média teve momentos de raro brilho, através de figuras humanas que marcaram seu tempo pelos debates que provocaram e deixaram à posteridade um legado de idéias que serviram para alicerçar atitudes e posturas das instituições que compunham a sociedade daquele período.

Hincmar, arcebispo de Reims (c. 806-882) deve ser incluído na galeria dos homens que fizeram sua época, ainda que a historiografia, através dos tempos, o tenha visto como uma personalidade controvertida que escapa a uma compreensão

unilateral mas, ao contrário, se presta a múltiplas interpretações, onde luzes e sombras se revezam com o mesmo peso e a mesma importância, para definir a sua atuação. Talvez possamos dizer, que sua atuação eclesiástica suplantou a sua obra literária que no fundo seria julgada como um complemento, ou melhor definido, como inteiramente associada às questões que o preocuparam e tivera que enfrentar durante sua tormentosa vida e carreira eclesial.

Desvendar o pensamento de Hincmar sobre os dois poderes, o espiritual e o

temporal, e suas mútuas relações exige uma leitura ampla de sua obra, pois o nosso arcebispo não focalizou o tema em um escrito especial, mas aqui e acolá nos deparamos com expressões, frases longas, bem como capítulos que refletem uma preocupação em definir e delimitar o papel e o relacionamento entre regnum e sacerdotium, partindo de uma observação, muitas vezes apriorística, e assentada na tradição, sobre os objetivos e as funções que cabe a cada um preencher na sociedade humana e cristã. As inúmeras batalhas que teve de enfrentar e os

confrontos que marcam a sua biografia com as resultantes literárias dos mesmos abrangem escritos de caráter teológico, litúrgico, homilético, canônico e histórico que propiciam informações sobre sua ampla atividade e influência, bem como revelam as múltiplas facetas de seu pensamento quanto à questão central que nos preocupa em nosso estudo.

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De origem nobre, ele foi educado em Saint Denis e passaria a fazer parte da famosa abadia beneditina que o levaria, graças ao seu talento pessoal, a ascender em 845 ao arcebispado de Reims. Após ter recebido uma educação primorosa sob a orientação do abade Hilduino, a quem honrará como tendo

sido seu mestre, ele será tirado do mosteiro para a corte de Luís ―O Piedoso‖, que o serviu com sua amizade ao ponto de o levar a reformar aquele mosteiro e restabelecer a disciplina monástica.

As circunstâncias da ascensão de Hincmar ao bispado de Reims são ainda matéria para controvérsias historiográficas e alguns estudiosos acreditam que ele foi imposto por Carlos ―o Calvo‖, no sínodo de Beauvais, por estar muito próximo ao imperador, como conselheiro que era e homem da corte real. Mas suas atitudes provam que ele tinha um espírito independente e não poderia ser considerado

apenas como um mero funcionário da política real. A descrição que temos de sua eleição mostra que ela foi inteiramente regular: ―um decênio havia passado após a deposição deste mesmo Ebon, quando os bispos diocesanos da província de Reims se reuniram no sínodo de Beauvais e obtiveram o consentimento do senhor glorioso rei Carlos e com o acordo do arcebispo de Sens e do bispo de Paris e o consentimento de todos os co-bispos... Hincmar, monge do venerável mosteiro de Saint Denis, que com um decreto canônico do clero e do povo da igreja de Reims,

foi ordenado bispo daquela igreja metropolitana‖.1 Ebbon, antecessor de Hicmar, havia sido deposto dez anos antes e os seus

partidários, que eram clérigos ordenados após a sua deposição, estariam interessados em difundir rumores sobre a ilegitimidade da ordenação de Hincmar. Sabemos que Ebbon nunca se conformou com sua deposição e uma luta partidária entre os dois homens continuou durante muito tempo até o falecimento do arcebispo deposto, em 851. A questão também foi levada a Roma, como não

poderia deixar de ser e, na época, o imperador Lotário I havia assegurado ao papa Sérgio II(844-847) a autorizar a convocação de um sínodo em Trier para decidir quem deveria ser considerado o verdadeiro arcebispo. O sínodo de Trier na verdade nunca chegou a se reunir naquele local, mas em Paris, no fim de 846 e a questão foi decidida em favor de Hincmar. Carlos ―o Calvo‖ enviou em seguida as atas do sínodo a Sérgio II, que havia nesse ínterim falecido, sendo sucedido por Leão IV e que se inteirou de seu teor. Hincmar ainda no primeiro ano de sua função episcopal enfrentaria a hostilidade de Lotário I, que no fundo derivava do

1 PL 125.392: Transacto autem decennii tempore post depositionem ipsius Ebonis, convenerunt

episcopi remorum dioceseos ad synodum belvacensium civitatis et obtinuerunt consensum domini

Karoli regis gloriosi, quendam ex diocesi Sennensi et parrochia Parisiaca, apud archispiscopum et

civitatis ipsius episcopum, caeterosque provinciae elusdem coepiscopos (...). Hincmarum venerabilis monasterii sanclorum Dionysii sociorumque eius monachum, quem cum decreto canonico cleri et

plebis remorum ecclesiae eidem metropoli ordinaverunt episcopum‖.

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atrito existente entre os descendentes da casa carolíngia, ou melhor, das más relações entre aquele imperador e seu irmão, Carlos ―o Calvo‖. Um motivo de atrito entre o arcebispo e o imperador foi a conduta de um vassalo de Lotário I, Fulkrich, que repudiou injustificadamente sua esposa, desposando ilegalmente uma

outra mulher. Hincmar o excomungou e possivelmente o imperador não acatou de bom grado a iniciativa do arcebispo de Reims. Mas o difícil relacionamento mudaria a partir de 847, quando o imperador intervém em seu favor, escrevendo a Leão IV para recebê-lo da melhor forma possível, pois pretendia ir a Roma, ao mesmo tempo que solicita o pallium para o arcebispo.2 Essa mudança pode-se explicar em boa parte devido ao encontro havido entre os dois irmãos, Lotário e Carlos, naquele mesmo ano de 847, em Meersen, onde ambos os reis restabeleceram as pazes, renunciando às hostilidades anteriores. O arcebispo de

Reims afirmar-se-á na verdade como um mediador acatado entre os descendentes da casa carolíngia e nesse papel ele se destacará como mentor do poder espiritual até o fim de seus dias. Fulkrich, o vassalo indisciplinado de Lotário será perdoado e fará penitência mas cairá novamente em pecado e será novamente excomungado, mas este procurará o papa Leão IV em Roma e será um dos fautores que levará a envenenar o relacionamento entre ambos.

O papa Leão IV não teve um bom relacionamento com Hincmar e mesmo que

houvesse motivos objetivos para tanto — como o caso de Fulkrich — nos parece que a causa primordial residia na excessiva independência do arcebispo em relação ao primado de Roma. E isso se revela claramente na reação papal ao chegar aos seus ouvidos o rumor de que Hincmar, no caso de Fulkrich pretendia, se fosse o caso, de excomungar a Lotário. Aqui se tratava já de atingir, segundo o papa, direitos ou prerrogativas que competiam somente a Roma, o que explica a epístola que Leão IV enviou aos bispos do reino de Carlos ―o Calvo‖, onde ele ataca

acremente a atitude de Hincmar, recriminando o orgulho do ex-monge que havia se proposto a viver sob a regra de São Bento mas, movido pela ambição, usurpou, contra os cânones, a sede de Reims‖.3 Porém, mais importante é outra carta endereçada a Lotário, que Leão IV escreveu ao imperador, dizendo que o arcebispo ―se apropriou da unção do Senhor, que consagrou publicamente a sé apostólica com o óleo da bendição, como se fosse um bem pessoal e teve a audácia de lançar o anátema sobre todo ser humano contra todo o direito divino, bem como humano‖.4 Trata-se, para Leão IV, de manter um princípio com implicações mais

profundas, que é o direito exclusivo de Roma excomungar e absolver e que não deve ser usado com leviandade ou abuso, pois se trata da comunhão com a

2 MGH Epistolae Aevi Karolini III, p. 609-611. 3 MGH, E. A. K. III, p. 605. 4 MGH, E. A. K. III, p. 605.

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cristandade, que visa à salvação das almas. Possivelmente o arcebispo de Reims via a excomunhão ou o anátema como um meio pedagógico para manter as ovelhas no bom caminho, seguindo uma tradição presente já há séculos passados na igreja gaulesa e também na espanhola. Mas há algo mais significativo atrás da

questão da excomunhão e que é a concepção da qual o papa Leão IV é seguidor, de que no mundo cristão há duas cabeças que a regem, isto é, a do papa e a do imperador, que devem ter a exclusividade de atender as questões mais importantes que tangem a cristandade. Quando meses mais tarde, Leão IV se recusa a aceitar as decisões do concílio de Soissons (853), que depôs os clérigos ordenados por Ebbon, vemos que a argumentação, para não o fazê-lo, se assenta sobre três tipos de argumentos: a) o sínodo reunido não é suficientemente amplo ou considerado geral; b) os legados pontifícios não foram convidados; e c) ―nenhuma carta

imperial não nos foi apresentada que nos chamasse a atenção especialmente sobre a vossa atuação‖.5 Podemos inferir que as palavras da resposta papal são coerentes com a doutrina que acentua o papel do imperador, como o único interlocutor entre os demais reis e príncipes e que se deve reconhecer como intermediário para a Santa Sé. Em outras palavras, o imperador Lotário, ungido pelo Papa, está acima dos demais reis e é dele que se deve esperar qualquer sinal de entendimento sobre questões que concernem à cristandade, assim como a última palavra deve caber a

Roma, ―a fim de que o privilégio da sede apostólica não se desfaça‖.6 No fundo encontramos aqui uma acusação ao arcebispo de Reims de atentar contra os direitos da sé apostólica e que faz parte de um processo que vem sendo elaborado desde Gregório IV, que tem por finalidade restaurar o prestígio de Roma, e do poder pontifical, o que se pode constatar pelos atos de intervenção na Gália e outros gestos daquele sumo pontífice, e que atingiria seu clímax durante o pontificado de Nicolau I. Nesse sentido, no arcebispado de Hincmar notamos ainda

um conflito de concepções entre Leão IV e o clero da França Ocidental, que quer afirmar que para Roma o império é uno e o único responsável é o que recebeu a unção pontifical e que a Igreja é una e Roma é o centro de todas as decisões, em especial aquelas que concernem ao imperador e ao destino comum do império. A realidade do século IX não facilita e nem sempre permite a concretização dessa concepção, devido à fragmentação geográfica que em boa parte é provocada pelas invasões de vários povos vizinhos que exigem a reação militar dos príncipes locais, bem como o estabelecimento de alianças políticas que criam ―estados‖

independentes, com poder local assessorado por clérigos que participam no jogo do poder. Mesmo Roma se encontra nessa situação, mas a doutrina dos direitos e da competência jurídica de Roma, ou a afirmação de seu primado, vem de longe, pelo

5 Sobre o concílio da Soissons e a resposta de Leão IV, veja-se MANSI, XIV, col. 886-887. 6 MGH. E. A. K. III, p. 590.

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menos desde Gelásio I, no século V. Este havia introduzido os princípios do direito romano na instituição eclesiástica, tomando-o como base de seu legalismo através de uma elaboração doutrinária, que se faz com o decorrer do tempo, com o auxílio de resoluções conciliares que estabelecem os textos que servirão de modelos

usados para todo e qualquer caso e quando for necessário. Em sua essência tal postura jurídica é conservadora, pois se apóia sobre tradições estabelecidas e consagradas nas resoluções conciliares, que servem de fundamento à lei canônica. O papel de Roma nesse sentido é o de zelar pela lei, ao par do direito papal de intervir universalmente para manter a uniformidade da doutrina e impedir a difusão ou a aceitação dos erros que bispos ou clérigos venham a cometer nos locais onde atuam. A compilação de decretos do tipo, assim chamado, Decretum Gelasianum ou de um corpus de leis canônicas como a Dionysio-Hadriana, e que são aceitos

como possuidores de autoridade jurídica por todos, permitem a intervenção romana para assentar questões ou problemas que normalmente eclodem na sociedade cristã, seja no ordo laicalis ou no ordo sacerdotalis.

A proteção da ortodoxia exige, portanto, um corpusjurídico tirado do Direito Romano, dos concílios e da compilação de Decretais que justificam e fornecem os argumentos para a intervenção papal, para as sentenças e sanções que serão promulgadas.

Mas no século IX, além do juridismo gelasiano tradicional e já incorporado à atuação da sede apostólica, vemos a introdução de um novo elemento adicional àquele, que é o valor e o papel da unção imperial realizada pelas mãos do sumo pontífice e que na interpretação de Leão IV, bem como na dos papas que o sucedem, como veremos mais adiante, outorga o direito exclusivo de responsabilidade moral do primeiro sobre o segundo. Hincmar aceitará e respeitará esta concepção, que estabelece o tipo de relações que deverá haver entre clérigos e

laicos, mas sua atuação independente, como arcebispo de Reims, porá em guarda muitas vezes o papado contra si. O hábito de se dirigir diretamente a Roma, sem passar pelo imperador Lotário, poderia ser também uma causa para aumentar a hostilidade de Leão IV, imbuído das prerrogativas do papado, conforme assinalamos acima. Podemos compreender o espírito de Hincmar ao lermos na crônica de Flodoard, a Historia Remensis ecclesiae,7 que Hincmar estava convicto de que o bispado de Reims, entre os privilégios que possuía, desde tempos antigos; tinha também a primazia entre os primados da Gália, e ele não conheceu nenhuma

que fosse superior a ela, senão a de Roma, que confirmou e reconheceu os direitos da igreja de Reims, esperando que essa postura nunca mudaria.

A convicção da primazia da igreja de Reims não é suficiente para explicar a conduta do arcebispo em vários momentos de sua agitada vida episcopal.

7 PL, 135 e MGH SS, XIII, p. 405-599.

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Encontramos, em vários de seus desencontros com clérigos e laicos de seu tempo, a manifestação de traços de caráter e personalidade que revelam excessiva dureza para com os seus coepíscopos, como no caso de Gottschalk, contra o qual moveu uma cruel guerra teológica sobre a questão da predestinação, escrevendo tratados

polêmicos e condenando-o nos concílios, sem mostrar qualquer sentimento de piedade cristã. A obstinação em não aceitar os clérigos ordenados por Ebbon, que levou a demarches prolongadas ao ponto de indispor Hincmar com alguns papas, mostra um homem com um nível de intransigência fora do comum. Os choques havidos com Rothado, bispo de Soissons, com Hincmar de Laon, seu sobrinho, e outros, tendem a revelar traços de pouca humanidade.

A participação de Hincmar em assuntos seculares se deu naturalmente a partir da sua ordenação como arcebispo de Reims, e nessa condição Carlos ―o Calvo‖ o

levou a ser um dos mentores importantes do reino que se encontrava convulsionado por lutas internas que os filhos de Luís ―o Piedoso‖ herdaram. O talento de Carlos ―o Calvo‖ em administrar o reino já havia se manifestado no período da guerra civil, que exigiu do jovem monarca coragem e inteligência para enfrentar uma situação particularmente difícil, onde dever-se-ia assegurar a defesa das fronteiras, conquistar vassalos fiéis, que se mostravam inseguros e impor o seu governo. A partilha de Verdun, de 843, não eliminou a questão da fidelidade das

grandes famílias aristocráticas, que se bandeavam de um reino a outro, segundo uma disposição do jogo de alianças em que entravam interesses locais. Grandes famílias que não se identificavam com Carlos passaram a outros remos e se instalaram em outros territórios, e pequenos nobres que permaneceram em seu reino, nem sempre mantinham-se fiéis, se bandeando de um campo a outro. A reorganização administrativa era um imperativo, nessas circunstâncias, e essa tarefa implicava inevitavelmente no destronamento do poder de famílias

tradicionais que aumentavam a sua hostilidade contra o novo rei. Poucas foram as famílias poderosas que se mantiveram ao seu lado, e quando o fizeram a luta entre elas para manterem sua influência na corte e em relação ao rei contribuía para aumentar os distúrbios do reino. Os Welffs, aparentados com a casa real e os parentes de Ermentrude, esposa do soberano, constituíram-se em grupos que procuraram liderar essa influência e os choques acabaram por ser inevitáveis, alternando-se no poder. O alto clero, o único preparado e capaz de assumir um papel mentor numa sociedade rude e guerreira, ao mesmo tempo que caótica e

contraditória, se preocupava em criar normas e critérios morais para orientar o reino e os homens que estavam à testa do poder. Loup de Ferrières, um dos clérigos ilustres daquele tempo, escrevia a Carlos ―o Calvo‖,8 lembrando ao rei

8 Loup de FERRIÈRES, Correspondance. L Levillain, T. I, Paris, 1927, p. 145 apud J. Devise,

Hincmar, Archevêque de Reims, 1976, t. 1, p. 287.

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―que todos possuem a noção que o bem comum e o interesse geral são preciosos entre todos, de modo que procurem se esforçar de o alcançar acima de seus próprios desejos. Que ninguém permita desprezar as leis divinas e as leis humanas, pelo menos aquelas que são justas, para que a impunidade dos malfeitores não

provoque a multiplicação dos vícios‖. Os clérigos mais atentos ao estado de desagregação social, que as lutas internas provocavam, procuraram impor o critério da lei e do bem público como um modelo social a que o monarca deveria aspirar e que poderia encontrar seu paradigma na sociedade bíblica, entre o povo de Israel. Nithard, em sua crônica, História dos filhos de Luís ―o Piedoso‖ também lembrava que em tempos anteriores, isto é, de Carlos Magno, a paz e a concórdia reinavam em todo lugar, mas no presente, ao contrário, as discussões e as querelas eclodem incessantemente.9

O que se nota, nessas circunstâncias, é o esforço do clero em moralizar a função real e também o esforço em colocar a importância da realeza como um árbitro que permita a consolidação social, garantindo o respeito e assegurando a estabilidade. O tema do respeito à lei não somente era necessário para evitar o caos em que a sociedade carolíngia havia mergulhado, mas também para se chegar à paz a que desde o tratado de Verdun e Coulaines, em 843, aspiraram no momento em que fora estabelecido. Em 858, o ano em que se deu a crise mais aguda daquele

regime, era mais do que natural reforçar o conceito de rei justo como sendo aquele que respeita as leis e evita toda e qualquer ação arbitrária.10 O respeito às leis aparece como um momento de importância no acordo de Coulaines onde Carlos ―o Calvo‖ declara que ―Deus me ajudando, respeitarei a lei particular de cada um, tal como foi conhecido aos vossos antepassados no tempo de meus predecessores‖.11 O capítulo IV do acordo de Coulaines repete explicitamente que cada um deverá zelar para ajudar o rei a não cometer atos de arbitrariedade,12 o que em outras

palavras significa colocar como aspiração ideal terminar com a anarquia e impor o reino da lei. Os precedentes mais próximos dessa linha de pensamento, que emana fundamentalmente do clero da época, poder-se-ão encontrar no concilio de Paris, de 829, inspirado em idéias de Jonas de Orleans, que podem ser interpretadas como uma tentativa de impor limitações ao poder real. Mas, mais do que essa, conforme podemos observar em Hincmar de Reims, se encontra subjacente uma idéia moral de restabelecimento das virtudes através da ordem ou da lei que tem muitas vezes um significado prático de restituição de bens e propriedades espoliadas das igrejas

9 NITHARD, Histoire des fils de Louis le Pieux, p. 143-145 apud J.D. op. cit., p. 287. 10 J. DEVISSE, ―Essai sur l‘histoire d‘une expression qui a fait fortune: consilium et auxilium au IXe.

siècle‖. Le Moyen Age, 1968 p. 179-205. 11 MGH Capitularia II, 398: ―Legem vero unicuique competentem, sicut antecessores sui in tempore meorum praedecessorum habuerunt, faciente deo, me observaturum perdono‖. 12 MGH Capitularia II p. 398.

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pelo poder real e pelos grandes senhores, e a garantia de que as honras e as dignidades não estarão mais sujeitas à arbitrariedade do imperador ou de seus conselheiros, o que de fato se deu durante os últimos anos antes de 843.

Para Carlos ―o Calvo‘, impor uma política de conciliação social atendendo os

interesses dos grupos mais influentes dentro de seu reino não era fácil, considerando-se principalmente a delicada situação política em que se encontrava devido à invasão dos normandos, à rebelião na Aquitânia e ao jogo de interesses particulares que moviam os grandes senhores. Foi em 855 a morte de Lotário I, que era um fator de equilíbrio entre os remos e suas nobrezas durante vários anos, mesmo levando-se em conta os sucessos militares entre 848 e 851 e após a tentativa de estabelecer a ordem no reino em 853-854, em particular com a legislação de 853, que previa a restituição dos bens da Igreja e a participação do

clero na imposição da paz social, bem como na fixação de regras para evitar a passagem de criminosos de um reino a outro e tudo isso com o auxílio da legislação canônica emanada dos concílios ou sínodos locais.13

A crise desses anos se acentua à medida que as invasões escandinavas se intensificam a partir de 856,14 aliada aos perigos que recaem sobre o reino com a revolta aristocrática na Neustria, com o despertar da guerra na Aquitânia e os apelos que são feitos para que Luís ―o Germânico‖ intervenha nos negócios do

reino. Hincmar desempenha um papel vital como conselheiro e diplomata que procura conciliar os sediciosos. Um sínodo e uma assembléia, convocados em Quiersy, em 857, dão instruções aos bispos e comitês sobre as sanções eclesiásticas que deverão recair sobre os homens livres que encorajam a indisciplina e as desordens, obrigando-os a levar os faltosos ao juízo real. Os missi dominici também deverão ―anotar todas as sentenças jurídicas que se lhes fazem conhecer; que divulguem a todos os capítulos consagrados a tais questões por nossos

antecessores, reis e imperadores, e por nós mesmos‖.15 A organização de textos ou compilações jurídicas se faz notar nesse tempo e a política adotada para restaurar a ordem também apela para a educação moral e a ameaça espiritual, onde se lembram as penas eternas que sofrerão aqueles que são culpados de morte sem se reconciliarem a tempo. Além da coleção de textos jurídicos que as novas capitularia freqüentemente citam, tais como a de Ansegiso (827) e a de Benedictus Levita (prov. 848-850), interessante é um documento sinodal emanado de Quiersy, que provavelmente foi inspirado por, senão de direta autoria de Hincmar,16 onde se

encontra uma admonitio recheada de textos escriturísticos, canônicos e patrísticos,

13 MGH Capitularia II p. 268. 14 F. Lot, ―La grande invasion normande de 856 a 882‖. Bibliothèque de L École de Charres,

1908, p. 5-62. 15 MCII, Capitularia II, p. 286. 16 PERTZ, Neues Archiv, XVIII, p. 303ss.; MCH, Capitularia II p. 287-289.

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condenando os fautores de desordens e em especial aqueles que se apropriam dos bens alheios. Era o momento de lembrar e admoestar aqueles que se haviam apropriado dos bens eclesiásticos, como uma preocupação constante do episcopado, dos clérigos em geral, e de Hincmar de Reims. Entre 857 e 860, se

examinarmos os escritos de Hincmar, veremos que se desenvolve já uma doutrina que visa a assegurar e defender a propriedade eclesiástica da rapina e da intervenção do poder secular, que se encontra na adinonitio citada, e que penetra também nas Falsas Decretais, uma compilação que foi elaborada com o mesmo fim de eliminar a interferência do poder secular em assuntos eclesiásticos e já se encontra em uso no concílio de Soissons de 853. Há vários indícios que apontam a origem das Falsas Decretais como sendo da região de Reims e proximamente ao ano de 850, isto é, em pleno período do arcebispado de Hincmar: do mesmo modo

como o arcebispo a preocupação central da coleção é a eleição canônica dos bispos, assim como a isenção dos clérigos de serem submetidos às cortes civis, bem como a questão que era objeto das preocupações maiores do clero da época, isto é, a apropriação dos bens eclesiásticos.

Desde 829, ou seja, no concílio de Paris, os vários sínodos fazem referências e formulavam suas queixas em relação a propriedades ou bens eclesiásticos e fazem exortações para que sejam devolvidos, após terem sido alienados pelo rei e os

potentiores da sociedade carolíngia. A propriedade eclesiástica passará a ser definida como patrimônio dos pobres, votos dos fiéis e preço dos pecados, como o diz o concílio de Paris: ―res ecciesiqe... vota... fidelium pretia peccatorum et patrimofia pauperum‖17 provavelmente sob a influência de um tratado de autoria de Juliano Pomerus,18 retórico e gramático africano do século V e que escreveu o De vita contemplativa19 A influência de Pomerus, sem dúvida, se fez sentir sobre o clero carolíngio do século IX, que formula a idéia de que o clérigo deve abandonar

qualquer ambição de propriedade por ser apenas o seu preboste ou administrador, ao qual ela é confiada, pertencendo a mesma à coletividade. O clérigo deve deixar os seus bens aos seus familiares, aos pobres ou à sua igreja e se faz pobre entre os pobres por amor à pobreza: ―... Qui omnia sua aut parentibus relinquit aut pauperibus distribuit aut ecclesiae rebus adiunxit et se in numero pauperum paupertatis amore constituit‖.20 A mesma concepção encontramos no concílio de Aix, de 836: ―Convém que os prelados saibam que os bens eclesiásticos lhe são confiados não como bens próprios, mas pelo Senhor, para atender as necessidades

dos outros; e que eles saibam também, de acordo com um texto de Prósper (o De

17 MGH, Concilia II p. 623. 18 Sobre ele vide P. RICHÉ, Education et culture dans l‘Occident barbare. VIe-VIIIe. siècles.

Paris, 1962, p. 70. 19 PL 59, p. 411-520. 20 PL 59, p. 455.

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vita contemplativa, atribuído muitas vezes a Próspero de Aquitânia do século V, c.390-c.465), que os bens da Igreja não são senão os votos dos fiéis, o preço dos pecados, o patrimônio dos pobres‖.21

Em oposição ao apetite cada vez maior de bens materiais da nobreza, a Igreja

da época opunha uma concepção do uso coletivo dos bens que a mesma detinha, tentando refrear a cobiça dos setores laicos e imunizando o clero dos males que assolavam o século. O desmembramento dos bens eclesiásticos e a sua introdução no sistema feudal contradizia esses ideais de auto-contenção social, mas que, por isso mesmo, procurava disciplinar-se e ao mesmo tempo proteger-se da cupidez generalizada entre os homens. Hincmar se referia, e os autores da admonitio de 857 a essa questão assim como outros clérigos o farão em seu tempo com a mesma ênfase, incluindo-se entre eles Loup de Ferrières e Wenilon

de Sens.22 De outro lado, nesses anos em que o processo de feudalização da Igreja, e da sociedade carolíngia como um todo, é extremamente acelerado, devido ao desmembramento interno e à grande repartição de terras, em que fervilham as ambições da aristocracia, não é fácil conduzir uma política que harmonize os três remos e os descendentes de Luís ―o Piedoso‖. Hincmar se vê colocado no centro dos acontecimentos e o rei Carlos necessita e solicita o seu conselho para poder agir corretamente no meio desse redemoinho que envolve

associações de famílias poderosas, ou ―partidos‖ que disputam o poder. O casamento de Lotário II, sobrinho de Carlos ―O Calvo‖ e Teutberga, é resultado dessas tentativas de associações por interesse e que visa a reforçar o poder, mas que levará em pouco tempo ao repúdio da esposa e exigirá uma posição firme do arcebispo de Reims. O seu escrito De divortio Lotharii regis et Teutbergae reginae ele redigirá em 860, e lá também encontraremos elementos para se conhecer sua concepção sobre a realeza. Do mesmo modo, a política de

casamentos levou anteriormente a que Carlos ―o Calvo‖ casasse sua filha Judith com Edilulfo, rei dos saxões ocidentais. A grande fermentação partidária fez com que o rei Carlos tolerasse o desejo de divórcio de seu sobrinho, justamente às vésperas da crise do ano 858, Hincmar e Rodolfo, tio de Carlos ―o Calvo‖, nobre que caíra em desgraça, são vistos como suspeitos de apoiarem a Luis ―o Germânico‖, que mantém contatos e tratativas com o arcebispo de Reims, devido à permanência de uma situação de conflito generalizado entre os carolíngios. Ademais, a suspeita em relação ao arcebispo de parte de seu rei aumenta na

medida que Hincmar pede a Luis ―o Germânico‖ para proteger os bens que a Igreja de Reims possui nas fronteiras orientais. A invasão de Luís naquela região é condenada por Hincmar, que procura dissuadi-lo a não interferir militarmente

21 MGH, Concilia II, p. 709. 22 LEVILLAIN, op. cit. I p. 183, p. 201 -203, p. 105; também PL 125, p. 793-794.

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nos territórios pertencentes ao seu irmão, propondo uma conferência geral entre as partes interessadas, incluindo os grandes senhores, os bispos e os reis, para chegarem a uma solução pacífica em relação às questões que os separam.23

Do inverno de 857 em diante os vassalos de Carlos ―o Calvo‖ demonstram a

sua infidelidade, debandando para o lado de Luís ―o Germânico‖, entre eles Alard, abade de Saint-Omer, os descendentes do duque Childebrando, de Roberto ―o Forte‖ e outros, ao ponto de, na primavera de 858, restarem ao seu lado nobres de menos importância, além da poderosa família dos Welffs. Hincmar atuará para a convocação, em março de 858, de um conselho para assegurar a fidelidade dos que restaram e ao mesmo tempo preparar as operações militares contra os Normandos que assolavam o reino e faziam numerosas vítimas, entre as quais se encontravam vários bispos. Em Quiersy se procuram retomar os compromissos assumidos

anteriormente em Coulaines, mas com a garantia, através da renovação da fidelidade, de respeitar as relações estabelecidas entre rei e vassalos para o bem do reino. O compromisso de fidelidade é dirigido na verdade ao poder real e não à pessoa de Carlos ―o Calvo‖, e como veremos mais adiante, essa distinção é parte da concepção que Hincmar tem da realeza ou do poder secular. Pois o compromisso não é em relação a uma pessoa mas em relação à instituição, e por isso mesmo a traição é condenada como um ato em favor de alguém, isto é, de um

indivíduo, que no caso é interpretado como um ser egoísta que não visa ao bem coletivo ou à ordem social. Essa ordem social é que está em jogo, e é preciso defendê-la, pois ela se legitimou pela vontade divina, que confiou a Carlos a gestão de seu reino, sem que ele se impusesse pela força ou por qualificação honorífica em relação aos outros homens. Há aqui uma nuance de pensamento que merece a nossa atenção sob o aspecto da teorização de Hincmar sobre o poder secular que é o da visão particular da dissolução ou quebra de fidelidade a uma ordem social

desejada por Deus, como num esforço de separar o poder da pessoa que o exerce e estabelecer um novo tipo de relação entre o poder e os que lhe são sujeitos. Sob a perspectiva desses últimos vemos que as formulações no compromisso de Quiersy também são inovadoras, pois elas adotam noções que não são comuns na época sob o prisma conceitual, prometendo conservar o lugar que foi atribuído a cada um, no reino, e a ordem à qual pertence cada pessoa: ―... unumquemque vestrum secundum suum ordinem et personam honorabo et salvabo...‖24 Do mesmo modo se acentua o que já havia se definido em Coulaines sobre o arbítrio da lei que

deverá se manter para cada um assim como a justiça à qual tem direito: ―...unicuique competentem legem et iustitiam conservabo...‖25 Misericórdia e

23 PL 126 10: ‗...ut frater vester et omnes fideles illius ante fideliumque vestrorum praesentiam in

rationes tempore et loco congruo venissemus (...)‘. 24 MGH, Capitularia II, p. 296. 25 MGH, Capitularia II, p. 296.

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eqüanimidade serão as qualidades que o rei deverá exibir em seu governo após esse compromisso: ―...qui illam necesse habuerit et rationabiliter petierit, rationabilem misericordiam exhibebo... Et pro nullo homine ad hoc... per studium aut malivolentiam vel alicuius indebitum hortamentum deviabo...‖26 O rei confirmava

sua responsabilidade pelos compromissos assumidos obrigando-se a reparar todo e qualquer dano que venha causar ou qualquer injustiça que venha a cometer: ―...et si per fragilitatem contra hoc mihi subreptum fuerit, cum hoc recognovero voluntarie illud emendare curabo‖.27

Um elemento ainda que não inteiramente inovador aparece no Pacto de Quiersy de 858, e que de certo modo levou os historiadores a interpretarem de maneira diversa o seu significado, é o fato de ele se ater mais a valores abstratos do que a mencionar vantagens políticas concretas ou atendendo as exigências e

interesses dos participantes, se bem que esse objetivo, como em todo pacto, não ficou obliterado. A mão de Hincmar segurou o cálamo que redigiu o texto, porque encontraremos em outros escritos seus o mesmo mosaico de idéias e valores que devem orientar o poder temporal, sobre o regnum. A lei, a justiça, a misericórdia, a ordem social, acatada e respeitada pelos fiéis, permitirá ao rei governar o reino que lhe foi confiado pela divindade e por sua vez ele, como rei, deverá garantir sua estabilidade eliminando qualquer arbitrariedade. O arcebispo de Reims parte de

valores morais cristãos para formular um compromisso e um comportamento social sacramentado por textos e não por pessoas, ainda que seja impossível desconhecer o papel importante e de primeira ordem que exercem os laços de dependência pessoal que caracterizam o feudalismo emergente na época. A expressão ―consilio et auxilio‖ que aparece no texto redigido por Hincmar, e lembrado no acabado estudo que Jean Devisse fez sobre o nosso personagem, é parte primordial do juramento de fidelidade que o vassalo deve prestar ao seu

senhor,28 ainda que o autor não considere no caso o valor do juramento feudal, mas a moral cristã que o rege.

Não podemos no marco limitado de um estudo, que visa apenas a entender as concepções ou idéias de Hincmar sobre os dois poderes, nos deter na descrição da atividade multifacética do arcebispo de Reims e acompanhar os desenvolvimentos políticos dos filhos de Luís ―o Piedoso‖, e seus descendentes nos remos carolíngios. O que nos levou a esboçar a ligeira descrição dos eventos feitos até aqui foi preparar o pano de fundo para uma compreensão melhor de suas idéias. E

os acontecimentos nos interessam na medida em que eles permitem a Hincmar

26 MGH, Capitularia II, p. 296. 27 MGH, Capitularia II, p. 296. 28 J. Devisse HINCMAR. Archevèque de Reims, t. I. p. 309.

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expor seu pensamento em confronto com os mesmos e a apresentar os fundamentos espirituais para chegar às soluções.

O pensamento eclesiológico de Hincmar nesse sentido pode ser extraído de seus escritos e certos autores, como Y. Congar, o fizeram com extrema

competência29 e a quem devemos a elucidação de alguns aspectos de seu pensamento. Para os homens da Alta Idade Média a Igreja, em um sentido mais limitado, deve ser vista como uma societas sanctorum, na medida em que os pecadores não a integram, mas ela é uma societas sacramentorum, num sentido mais amplo, incluindo a todos os que vivem e estão ligados a ela pelo menos até que seus atos não os tenham levado aojulgamento divino. Por outro lado, essa Igreja universal transcendente encerra duas partes, uma já salva, que são os anjos, os puros, os justos e que em parte já se encontram junto à divindade, e que

podemos considerá-la invisível, e de outro lado a grande multidão de homens que ainda peregrinam na terra e aspiram pelos céus.30 Segundo J. Devisse, Hincmar designa somente a esses últimos depopulus christianus e constitui a sua parte visível, conceito esse que deve ser entendido em todas as suas implicações. Hincmar usa o conceito como denotando um corpo coletivo que tem a vocação para a salvação, ainda que a falta adâmica tenha liberado forças que lutam contra a harmonia da Criação sob a liderança de Lúcifer. O drama universal da luta entre o

bem e o mal no tempo e no espaço, da luta metafísica no plano individual e social, é um reflexo do que se trava entre a ordem divina e o caos diabólico, compreendendo a Igreja visível como um todo, incluindo sacerdotes e laicos. Como outros pensadores, Hincmar explica a existência de uma hierarquia social se dever ao pecado: ela é necessária à salvação do populus christianus, do mesmo modo que os órgãos de um corpo onde cada um preenche uma função para a saúde de todo o organismo. Ordem e paz são qualidades indispensáveis para uma

sociedade normal, pois são valores desejados por Deus e mantêm o ser humano próximo à divindade, longe do pecado, e tudo que contribui para alterar este estado de coisas é na essência diabólico, levando a romper a própria aliança com Deus. A falta individual pode ser reparada pela confissão, mas ela pode também ter uma dimensão social que leva a romper a ordem e a paz ao ponto de ameaçar toda a vida social. Sob esse aspecto, a guerra desenfreada e sem sentido, o roubo, a violência constituem uma séria ameaça a toda a cristandade ou ao povo cristão. A sociedade pode, no plano terrestre, se manter solidária no pecado ou na observação

da lei divina que, se forem respeitadas e obedecidas, a levarão à redenção, porém

29 L‘Ecclésiologie du haut Moyen Age. Paris, 1968. 30 PL 126, 455 ―(...) ab universali ecclesia quae partim iam in caelo cum deo regnat, partim

autem adhuc in terris peregrinatur et ad patriam caelestem suspirat (...)‖.

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se não o forem a levarão à destruição, pois o diabo a pressiona interruptamente para que isso aconteça.

O conceito de povo cristão aqui se configura como uma entidade elevada acima de toda organização social ou de sua composição humana pelo fato de se

destinar a um fim, isto é, à salvação ou à redenção. Mas o ―antigo inimigo‖, expressão usada freqüentemente por Hincmar para designar o diabo, sempre está à espreita para fazer perder os homens no pecado e tem um papel primordial na vida social, pois o forte desejo de grandeza, avaritia sublimilatis,31 a falsificação, o engano, são os meios de que ele se utiliza para subverter a harmonia entre os homens, desde o dia em que ele se separou da caridade divina e com seus ardis resolveu escarnecer das palavras de Deus: ―façamos o homem à nossa imagem‖, propondo a Adão e Eva que se assemelhassem à divindade. Com a queda de Adão,

que o transformou em ser humano sujeito ao pecado, o diabo passou a se fazer presente na história, adquirindo um poder atuante, devido ao pecado individual, caminhando através do tempo, desde a Criação. O diabo intervém na vida do homem individual para eliminar-lhe o desejo de fazer o bem, mas ele também é a causa para a origem e difusão da heresia.32 Todo o imaginário medieval sobre a figura do diabo podemos encontrar na obra de Hincmar, onde se multiplicam as citações de autores anteriores a ele e que lhe servem de fonte de consulta, desde

Sto. Agostinho até Gregório ―o Grande‖. O diabo está presente no cotidiano da vida social e é ajudado em sua ação múltipla por um exército de auxiliares visíveis e invisíveis. Eles são os monstros que os homens desenham em sua imaginação, mas que se manifestam na realidade e convivem com os seres terrestres. Eles perturbam a vida conjugal e provocam desavenças e malentendidos entre as criaturas, e por trás dos desvios e pecados humanos encontraremos a sua ação.33 Mas o homem pode se opor às suas ações maléficas, se assim o quiser, pois ele tem

o dom do livre arbítrio e portanto é responsável em querer aceitar a caridade ou o dever perante Deus para combater o demônio, ainda que nem sempre o homem possa distinguir com clareza a sua intenção, podendo, nesse caso, fracassar no intento de impedir sua ação.34 Porém, isso implica num questionamento inevitável sobre a responsabilidade única do ser humano frente aos acontecimentos, e na medida em que ele é ignorante ou não informado em relação ao pecado, menos responsável ele será. Daí a importância do sacerdote, do arcebispo que deverá advertir canonicamente um pecador e do pároco que na sua função deverá advertir

aqueles que estão sob sua orientação, a fim de preveni-los contra o pecado e as

31 PL 126, p.617. 32 PL 125, p. 481 e482. 33 PL 125, p. 683, 684, 717, 906. 34 HINCMAR, nos Annales Bertiniani, In MGH, SS 1 p. 105 relata uma situação na qual Carlos

―o Calvo‖ é ferido por um jovem por obra do diabo, ―diabolo operante‖.

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faltas que poderão praticar. Prevenir, informar e corrigir faz parte do sacerdócio em todos os níveis da Igreja, e também é o modo pelo qual se pode e deve lutar contra o diabo. E no fundo a questão maior na vida social é de impedir que os homens caiam nas malhas do demônio e para tanto é necessário aproximá-los das normas

divinas e humanas, para que as respeitem e as sigam. Os fracos, os orgulhosos, os que roubam os bens eclesiásticos são os predispostos a caírem em suas mãos e serem subjugados por ele, conseguindo escapar, se renunciarem em ato e intenção de suas atitudes35 e para tanto o homem deve ter consciência do demônio, que muitas vezes lhe promete em troca de uma má ação certas vantagens materiais ou de outra natureza. Portanto, para Hincmar o diabo está presente na vida dos homens por dois tipos de ação, isto é, na primeira ele não é diretamente o responsável e somente o malefício diabólico se manifesta em forma natural, tal

como nas catástrofes da natureza. Na outra o demônio procura a adesão e a cumplicidade do homem individual e que acaba resultando em danos sociais pela amplitude que poderá adquirir. Mas qual será o papel da divindade em relação ao demônio? Para Hincmar, Deus todo-poderoso impõe limites a sua atuação ainda que sua tolerância escape ao entendimento humano.36 O homem, porém, tem um modo seguro de se proteger dele, estando próximo a Deus através da oração, que é o melhor instrumento para se afastar da presença diabólica, e o demônio sabe

muito bem disso!37 Mas voltemos à concepção de Igreja, ou de poder espiritual que se pode

vislumbrar através da obra de Hincmar, a começar do conceito de populus christianus, que vimos anteriormente. Podemos inferir que para ele a Igreja não se restringe às ordens clericais, mas ela é o imenso corpo dos que creram e crêem em Cristo, seja qual for sua situação social.38 Sob esse aspecto existe apenas um soberano, o Cristo-rei, onde todas as hierarquias não são senão seus ministros, e a

unidade da Igreja depende da vontade de Cristo em orientar os homens, e sem nenhuma dependência do poder de um homem seja lá quem for.39 Esta Igreja, cuja unidade essencial se faz pela fé em Cristo e através de Cristo, por ser seu corpo místico, é chamada nas Escrituras Sagradas por múltiplos nomes: reino dos céus, mulher, esposa, esposo, pomba, dileta, vinha, ovelha, cidade, torre, coluna, firmamento, casa, templo, corpo de Cristo, e muitos outros mais40 e ela não se

35 PL 126, 130-131, 125, 1075; 125, 759. 36 PL 126, 123; 125 677. 37 PL 125, 906. 38 PL 125, 458. 39 PL 125, 817. 40 PL 125, 817.

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localiza em nenhum lugar em especial, mas está espalhada pelos quatro cantos do mundo, simbolizados pela túnica de Cristo, distribuída em quatro partes iguais.41

Essa unidade essencial que se faz pela vontade e o ensinamento de Cristo e pela ação do Espírito Santo também se manifesta no plano doutrinal e no material.

No plano doutrinal, todas as resoluções para Hincmar encontram um instrumento de expressão, que é o sínodo ou o concílio, onde a ação divina atua para ordenar a vida da Igreja, o que sob esse aspecto é uma concepção dominante no século IX. No plano material ou concreto, Hincmar dá uma importância primordial à aplicação universal à legislação que regulamenta o cotidiano da instituição eclesiástica e sua atuação social, o que já vimos anteriormente quando se trata de eliminar as barreiras diocesanas que limitam a ação de excomunhão ou outra qualquer que leva os fautores a escaparem, fugindo para outro lugar. Nessa visão,

Hincmar vê nos clérigos os ministros espirituais da ordem divina sobre a terra, e constitui a Igreja visível, distinta da república ainda que não inteiramente separada.42 Esta Igreja visível se divide em ordens, ou constitui uma ordem, como vimos mais acima, e as funções mais importantes são exercidas pelos bispos, ainda que na sua concepção a Igreja seja o conjunto dos clérigos e laicos que são fiéis a Cristo. Aparentemente Hincmar, como boa parte dos pensadores eclesiásticos do seu tempo, desconhece e não dá a devida importância à atuação dos padres

paroquiais, pois poucas são as referências que se fazem nos textos sobre os mesmos. De fato, a grande anarquia reinante na Igreja, que caracterizou os séculos anteriores, é superada paulatinamente e a partir de Leão IV se dá uma afirmação cada vez maior do primado jurisdicional de Roma e sua supremacia. O processo não foi simples, pois era necessário se livrar da tutela bizantina, fazer frente à pressão militar dos Lombardos e sanear financeiramente a Santa Sé, e tudo isso foi conseguido com a aliança feita com os carolíngios, com um controle dos territórios

e bens pontifícios. A aliança com o poder imperial e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que respaldasse a ambição de supremacia e primado permitiu ao papado do século IX impor a Igreja como uma instituição da sociedade cristã ocidental. Hincmar via na centralização romana, assim como o autor das Falsas Decretais, um poder inegavelmente positivo, ainda que se devesse ressaltar a atuação e o papel do arcebispado na hierarquia eclesiástica. Isso levou a certos autores a interpretarem erroneamente o arcebispo de Reims como adversário de Roma, o que de fato nunca ocorreu e em todos os seus escritos temos abundantes

expressões de submissão e reconhecimento de Roma como cabeça de toda a Igreja43 e muitas outras.44

41 PL 125, 419. 42 PL 126, 185: ―(...) episcopalem auctoritatem et regalem potestatem (...) ecclesiam et rempublicam (...)‖. 43 PL 125, 786: ―(...) de urbe Roma orbis scilicet capite (...)‖.

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Hincmar não somente insiste no primado de Roma e na sua posição de ―mãe de todas as igrejas,45 mas ele também lembra que todo bispo deve orar especialmente pelo sucessor de Pedro.46 Em seus escritos ele desenvolve a própria história da passagem do primado de Jerusalém a Roma: devido à sua infidelidade47

Deus indicou a Roma por nova cabeça da Igreja.48 O poder de ligar e dissolver, que Pedro recebeu e que permitiu aos seus sucessores adquirirem o poder sobre todas as igrejas e o primado, também obriga a todo cristão a avaliar se se encontra em sintonia com a fé de Roma e na obediência às suas decisões.49 Por isso, ela é una e a função dos bispos é de manter esta unidade,50 que fundamenta o primado romano, sem ambicionar criar um modo de agir que se afaste dele. Historicamente os bispados de Antioquia e o de Alexandria são obras dele e seus sucessores continuaram a criar em outros lugares expandindo-se assim a Igreja por todo o

orbe, porém com um início dado em Roma, pelo Príncipe dos Apóstolos. Mas aqui temos que prestar atenção para uma nuance que Hincmar introduz nessa doutrina e que o levará a se afastar de uma concepção monárquica da Igreja, fugindo de certo modo de uma visão tradicional da doutrina que estabelece o primado de Roma e o poder papal. Essa interpretação ele já a havia introduzido no concílio de Paris, de 829, onde se usa a expressão, em relação aos bispos, ―successores apostolorum‖,51 o que vale dizer que houve uma divisão entre Pedro e seus sucessores de um lado,

e dos Apóstolos e seus sucessores de outro lado, do poder de ligar e dissolver,52 talvez fundamentada em João XX, 22-23, que pode levar idéias de que todos os Apóstolos compartilham do poder de ligar e dissolver, e esse poder se estende a todos aqueles que são designados para exercer um ministério dentro da Igreja, devido aos pecados dos homens e à penitência.53

Mas não nos iludamos, ainda que em um dado momento nos pareça que Hincmar adote uma postura de uniformização da Igreja e a abolição de sua

hierarquia, isto na realidade não ocorrerá, pois na prática esse igualitarismo nem

44 PL 125, 165: primae et sanctae sedis romanae (...)―; PL 125, 211: ―consulentes ante omnia sicut et

prima est in tolo orbe, omnium ecclesiarum mater, sanctam catholicam et apostolicam romanorum ecclesiam (...)‖, e ainda PL 125,212: quae non ab homine neque per hominem sed Dominum Jesum

Christum (...) ita et haec sancta sedes omnium civitatum meruit principatum‖; PL 125, 214; PL 125,

352; PL 125, 434 e outros lugares. 45 PL 125, 1038. 46 PL 126, 339. 47 PL 125, 211-212. 48 PL 125,213: ―(...) non ab apostolis sed ab ipso domino salvatore nostro primatum obtinuit (...)‖. 49 PL 126,610. 50 PL 125, 699; 126, 610. 51 MGH, Concilia I, p. 610-611. 52 PL 126, 362, 609; 872-873: PL 125, 1107. 53 PL 126, 609: ―Omni igitur electorum ecclesiae, iuxta modum culparum vel poenitentiae,

ligandi ac solvendi datur auctoritas‖.

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sequer atingirá o ordo, dos bispos, que ele formula como uma verdadeira hierarquização de responsabilidades e apesar de todos os bispos pertencerem ao mesmo ordo, alguns dentre eles foram designados, por Roma, para deterem poder superior ao de outros, pois a sua dignitas não é a mesma.54 Portanto, entre Roma e

os bispos existe uma intermediação que são os arcebispos ou metropolitas, que os tornam na Igreja uma aristocracia espiritualmente elevada que se encontra logo abaixo do Papa. A autoridade de Roma se exerce desse modo sobre a grande massa dos bispos com a mediação dos arcebispos ou dos metropolitas, e a província é a unidade administrativa sob a sua orientação. Portanto, perante o metropolita, todos os bispos são responsáveis pela sua gestão temporal e espiritual.

Poderíamos resumir a visão de Hincmar sobre a estrutura da Igreja como sendo uma monarquia pontifical fundada sobre os privilégios morais e jurídicos

que pretendiam possuir os sucessores Pedro, e que nem sempre os tiveram, aliada a uma igualdade muito maior dos bispos sucessores dos Apóstolos sob a orientação moral de Roma, e que na prática, até aquele momento, não conseguiu eliminar a sua dispersão em células isoladas, com uma estrutura provincial adaptada àqueles tempos, devido às dificuldades de locomoção, e que representam as três possibilidades para ela subsistir e auto-governar-se. Roma aspira a controlar as igrejas locais do modo mais eficiente com a ajuda administrativa ou governamental

do império, na medida em que se estabelece, a partir de Carlos Magno, ainda que de facto nunca tal pretensão chegou a ter um conteúdo pleno, pois o império se esfacelou, pouco após. Os papas da época, como Leão IV, pensavam que bastava a ascendência espiritual sobre os príncipes para fazê-los cumprir com as determinações de aspiração de unidade da cristandade. Nicolau I, que manteve uma longa correspondência com Hincmar, e manteve um relacionamento duro com o arcebispo em questões internas da igreja, tinha uma visão mais realista, nesse

sentido, e voltou sua ação à própria melhoria do corpo místico de Cristo, procurando intervir nas questões religiosas, com grande sucesso e mostrando sua autoridade a príncipes e clérigos. Hincmar reconheceu a sua autoridade impositiva e compreendeu que tudo depende de Roma, na medida em que todo ensinamento e julgamento deva ser submetido a ela.55 Somente Roma garante os privilégios de

54 PL 126,326: ―Quod si ordo generalis est omnibus episcopis, non tamen communis est dignitas

omnibus‖. 55 MGH, E. K. A., 154, epístola a Nicolau I: ―Et haec dico (...) praeiudicans summae sedis apostolicae

et sancti apostolatus vestri potestatem in aliquo, cui in omnibus sum (...) oboedire paratus; sed quia summae auctoritati vestrae obsequium praestare me puto cum ea quae sentio, aut ad probationem aut

ad correctionem humiliter sapientiae vastrae magisterii pando‖.

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cada igreja, somente ela determina com sua autoridade doutrinal as verdades a ensinar e somente ela tem o poder de criar novos bispados.56

Mas a autoridade de Roma não deve se exercer arbitrariamente e penetrar nos detalhes do cotidiano, que é da atribuição do clero local, que devido ao

contato permanente com a realidade está melhor qualificado para conhecer a totalidade das questões que surgem em determinado lugar, mas de qualquer modo qualquer julgamento que se fizer deverá seguir o ensinamento de Roma e a observação dos cânones. Hincmar chega a aconselhar ao seu sobrinho, bispo de Laon, que siga as instruções ou a orientação que se encontram nos textos emanados do papado romano para que não caia em erro.57 Quanto aos metropolitanos, têm como dever de supervisionar, com a ajuda dos bispos, a adequação desses textos à realidade, pois eles não devem agir sem o consenso e

o conselho dos bispos de sua província.58 Em outras palavras Hincmar reafirma o valor da ―lei‖ ou dos cânones, como

sendo a linguagem suficiente para permitir aos metropolitas e bispos atuarem sem a direta intervenção de Roma, a não ser em casos que os cânones não permitem, por não os terem previsto julgá-los. Como os cânones ou a lei são conhecidos universalmente pelo clero, ela se presta, portanto, a regular a vida cotidiana das dioceses sem a necessidade de apelar ao julgamento de Roma. O direito dos

concílios, os cânones, permitem enfrentar as questões do dia-a-dia da Igreja universal, e eles são aplicados a todos os seus territórios, incluindo-se entre eles também Roma. Hincmar parece adiantar-se em direção a um conciliarismo bem antes do tempo em que este efetivamente surgirá.

Mas a valorização da lei através das resoluções conciliares também leva a supor a autoridade romana, pois que os concílios reunidos sob a aprovação de Roma, ou em presença de seus legados, mesmo não sendo universais, mas desde

que Roma tenha aceito sua legislação, são válidos universalmente.59 Notamos em várias passagens dos escritos de Hincmar que ele acentua sempre a importância da

56 MGH E. K. A,, 158: ―Sciens privilegium metropolitanae sedis remorum (...) in summo

privilegio sanctae sedis romanae manere et privilegium esse sedis romanae (...)‖; PL 126, 231-

232: ―Quatenus ab huius sanctae sedis auctoritate nostra sana (...) intellegentia confirmatur a qua fidei ac religionis sumpsit initium et cottidie, gratia Deo, sumit augmentum (...)‖. 57 PL 126, 390: (...) Suscipe ad instructionem illas epistolas, quas beatissimi papae diversis

temporibus ab urbe Roma pro diversorum patrum consolatione dederunt, legendas venerabiliter,

et serva sacra concilia, quae sedes apostolica et omnis sequitur ecclesia, inviolabiliter‖. 58 PL 126, 427: ‗(...) quoniam alia sunt quae metropolitanus sine consilio atque consensu

omnium coepiscoporum provintiae agere non debet (...)‖. 59 PL 126 361: ―Claret etiam hac causa, ut praedixi, universales ac generales synodos nominari,

cum plures episcopi, quam in quibusdam praefatis synodis fuerint congregati, apostolicae sedis iussione et imperiali convocatione: sicut Sardicensis synodus, in qua ab Hesperiis partibus

plusquam trecenti convenerunt episcopi. Et in Africanis synodis (...)‖.

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legislação canônica e também tenta justificá-la historicamente, dizendo que a Igreja ao sair da clandestinidade deveria regulamentar sua vida em todos os aspectos, desde o culto, ao dogma, assim como a sua organização hierárquica, obrigando-se, portanto, a reunir os grandes concílios sob a iniciativa de Roma, o que lhe dá o

mérito histórico de reunir a legislação em coleções que abrangem os cânones conciliares que devem ser aceitos e venerados.60

Mesmo que nos pareça haver contradição nas coleções conciliares, elas são resultado das circunstâncias em que foram redigidas, mas isso não elimina a sua extraordinária unidade, pois são inspiradas pelo mesmo Espírito Santo.61

Essas resoluções conciliares ou coleções não se podem ignorar e elas obrigam a todos os clérigos e igrejas, e Hincmar por várias vezes lembra o cânone 20 do decreto de Celestino I, na Dionysio-Hadriana, ―nulli sacerdoti suos liceat canones

ignorare...‖. A Dionysio-Hadriana também incluía a legislação africana que se mostrava autônoma em relação a Roma e novamente dando ao metropolita o poder de supervisionar junto com seus bispos os cânones e seus julgamentos sem apelar diretamente a Roma a priori. É importante destacar que o nosso arcebispo vê a necessidade de remeter qualquer julgamento a uma decisão que não seja de uma pessoa, mas sempre várias, apoiando-se em Mateus XVIII 20: ―Ubicumque fuerint duo vel tres in nomine meo congregati ibi ero in medio eorurn‖.62 Para ele o papa,

ainda que seja o sucessor de Pedro e mesmo considerando-se o seu primado, poderá se enganar, se estiver só. A legislação emanada dele, ou sejam, os decretos papais, são complementos práticos que se aplicam à legislação conciliar e no caso de surgir qualquer questão não prevista na legislação, a seus olhos a melhor solução é a reunião de um concílio. Um forte apego à legislação e ao direito emamado de tempos em tempos dos concílios e dos decretos complementares e que formam um imenso corpus imutável que deve reger a Igreja, é a atitude de

Hincmar em um momento em que Nicolau I se esforçava em centralizar o corpo místico e no momento em que a doutrina das Falsas Decretais se difunde amplamente, das quais ele faz certo uso, com uma interpretação original e própria. Hincmar considera as Falsas Decretais terem sido escritas antes dos grandes concílios e em ocasiões diversas em que se deviam dar respostas a questões que surgiam no momento.63 Quando Nicolau I repreendeu os bispos da Francia

60 PL 126, 445 ―(...) In nostris codicibus quos ab apostolica sede maiores nostri acceperunt, sequendos

per ordinem usque ad Africanum concilium pro canonibus recipiendis venerandis (...)‖. 61 PL 126, 354: ―Unde sunt plura non solum in canonibus atque in romanorum pontificum decretis, sed

in veteris ac novi testamenti sanctis scripturis eodem Spiritu inspiratis quo et sacri promulgati sunt

canones, quae quidem inter se contraria esse videntur, et non sibimet sunt contraria, sed pro temporum

et rerum ac qualitale causarum disposita vel disponenda‖. 62 PL 125, 749; PL 126,206. 63 PL 126, 446‖ ―Ipsas autem epistolas, ut praedixi et saepe dicere necessitas ipsa compellit (...)‖.

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occidentalis de não acatarem certas decretais, sob o pretexto que elas não figuram nas coleções canônicas, talvez se referindo às Falsas Decretais,64 Hincmar argumenta que antes de Nicéia, os julgamentos vinham a Roma mas que após, o papa Inocêncio dispôs que os assuntos não viessem senão após julgamento, apenas

para que fossem examinados,65 recaindo novamente o peso para o julgamento conciliar ou sinodal e afirmando mais uma vez a concepção que o Papa é um primaz entre os primazes ou um patriarca entre os patriarcas, tão a gosto do arcebispo de Reims, e não um monarca universal. Recorrendo a argumentos históricos e a uma legislação originária de Roma ou aprovada e incorporada por ela, Hincmar pensa demonstrar que entre o arbítrio de uma monarquia centralizadora e a dispersão anárquica onde cada bispo faz o que bem entender se encontra uma estrutura ou um elo de equilíbrio melhor adaptado aos tempos em

que vive, que é a província metropolitana orientada pelo mesmo. A unidade do povo cristão é desse modo assegurada pelo acatamento ou a adesão a uma lei que rege toda a Igreja. Todo bispo é responsável pela execução das leis canônicas em sua diocese, com a reserva de não cometer ou justificar erros e de ferir direitos que deverão levar a apelar a um elo superior e em última instância a Roma. Assim podemos entender as diferenças que se manifestaram e que levaram ao choque entre Nicolau I e o arcebispo de Reims no caso particular do bispo Rothado de

Soissons, acusado de negligência canônica e indisciplina frente à proibição do reino, de manter contato com Luís ―o Germânico‖, ou ainda pelo fato de ser complacente com Gottschalk no debate sobre a predestinação.

Mas não foi o único motivo para o desencontro havido entre Hincmar e Nicolau I, pois a interminável questão dos clérigos ordenados pelo seu antecessor Ebbon levou o papa a proceder a uma revisão do assunto em 865. E nos parece claro que um papa do porte de Nicolau I jamais poderia aceitar o papel atribuído

por Hincmar aos metropolitas ou aos arcebispos, nos quais via o elo que permitia regrar os assuntos locais com eficiência, do mesmo modo que não poderia admitir a autonomia de cada província ou diocese reconhecendo o papa apenas como superior. O vigor intervencionista e centralizador de Nicolau I também estava assentado numa concepção, que não toleraria elos intermediários, sejam eles formulados por Hincmar ou pelo patriarca bizantino Photios, que também provocou crise de 867, e que o levou o papa a apelar à união dos bispos do Ocidente contra os gregos. Esse mesmo Papa Nicolau I é uma personalidade forte,

que pretende afirmar o poder espiritual frente à sociedade cristã e que na feliz expressão de Walter Ullmann66 atinge um grau elevado no processo da

64 V. P. FOURNIER, ―Étude sur Fausses Décrétales‖ In: Revue d‘Histoire ecclésistique, 1907, p. 21. 65 PL 126,355. 66 A History of Political Thought: The Middle Ages. London, 1965 p. 76.

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clericalização do pensamento político, processo esse que se iniciou desde a coroação de Luís ―o Piedoso‖, por Estêvão IV, como ―imperador dos Romanos‖. Naquele ato o simbolismo da unção foi associado ao da coroação, colocando o rei sob a graça divina, o que não ocorreu anteriormente com a coroação de Carlos

Magno, no Natal de 800, quando Leão III, sem o caráter litúrgico e eclesiástico o havia coroado como imperador. Com Lotário I, filho de Luís ―O Piedoso‖, foi adicionada à cerimônia de coroação um detalhe, a entrega da espada, símbolo do poder e da força, que o novo imperador recebia das mãos do papa, indicando que ele deveria proteger e defender a este, e que para Agobardo de Lyons, um dos arcebispos influentes da época, teria o significado indicar ao monarca ―a subjugação das nações bárbaras, a fim de poderem abraçar a fé, e estender as fronteiras do reino dos fiéis‖. Com Nicolau I a clericalização do pensamento

político atinge um grau mais elevado no sentido de outorgar ao poder papal um significado não anunciado anteriormente, pois para ele os sumos-pontífices foram instalados como príncipes sobre a terra. Nicolau I reafirma que não há quem possa julgar o papa e que todos os cristãos são seus súditos, recebendo o poder das mãos papais. Com isso o poder jurídico supremo é atributo único e exclusivo do papa, cujos decretos são aplicáveis a todo cristão. A doutrina petrina da sucessão direta ele adiciona a ―societas omnium fidelium‖ que deverá ser orientada por leis

promulgadas por ele, ou seja, o herdeiro de Pedro. Para ele, na coroação imperial era concedido ao imperador o direito de governar, o direito de usar a espada, para ―a exaltação e paz de sua mãe, a santa e apostólica Igreja‖. A sociedade dos fiéis de laicos e clérigos, equivalente ao povo cristão de Hincmar, é possível e se preserva na fé em Cristo e se essa união for rompida toda a sociedade se arruinará. Portanto, os príncipes deveriam ser instruídos com essa fundamentação sobre os seus deveres, a começar pelo extermínio da heresia. Por outro lado, ele inferia que as

leis eclesiásticas ou canônicas que regem a sociedade dos fiéis, têm precedência sobre leis promulgadas pelo príncipe, já que elas não podem contradizer os princípios canônicos, devendo estar em harmonia com a fé exposta pela Igreja. A lei deve ordenar a sociedade e não perturbá-la, visando aos seus fins últimos que são a imposição dos valores cristãos e a salvação. Caso ele não o fizer desse modo e suas leis ferirem essas finalidades, ele poderá ser desobedecido, sem que isso possa ser interpretado como rebeldia, já que esta só pode ser sancionada pela autoridade espiritual. E, de acordo com Nicolau I, um rei que se mostra tirano, se

equipara ao nível de um herético, assim como alguém que não obedece aos decretos papais também o será. O legalismo ou o juridismo típico do século IX, que encontramos em Hincmar, leva Nicolau I a formular uma doutrina centralizadora do poder espiritual ou uma monarquia papal extremada e oposta ao pensamento de Hincmar, como vimos, que defende o poder mediador dos metropolitas, herdeiros dos Apóstolos.

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Para Hincmar, o ministeriun real, como função humana, não é senão uma delegação divina para o governo dos assuntos temporais e não confere nem direitos nem privilégios pessoais. Como outros pensadores do período carolíngio, ele acentua o exemplo social de que deve revestir-se seu poder com as virtudes cristãs

da justiça e da piedade, e nesse sentido Hincmar em nada inova sobre os seus contemporâneos ou pensadores que o antecederam. Poderíamos dizer que em boa parte os contemporâneos do arcebispo de Reims são unânimes em afirmar que o rei para governar o deve fazer de acordo com os princípios do cristianismo, respeitando as leis emanadas de seu governo e de seus ancestrais. Novamente o respeito à lei e o peso que ela assume na vida social, se encontra como fundamento básico no pensamento de Hincmar, no que concerne ao poder temporal. O interessante, e talvez seja o aspecto original de sua elaboração, é a descrição que

ele faz para se entender o mecanismo que leva à origem do poder temporal. Ele possivelmente admite a existência de um estado natural, antes da queda de Adão, onde todos os homens viviam em liberdade e numa situação de igualdade, até que o erro adâmico rompesse esse estado e os homens sofressem as conseqüências do pecado. A vinda de Cristo introduziu uma segunda ruptura na vida dos homens, trazendo aos seres humanos a esperança de novamente se associarem, no futuro, à eternidade de Deus, na condição deles se adaptarem às regras sociais que Cristo

veio trazer sobre a terra, pretendendo com elas criar uma ordem social coerente, desejada pela divindade, em contraste com a desordem anterior. A concepção gelasiana, no De anathematis vinculo,67 de que anteriormente à vinda de Cristo os homens eram revestidos de poderes aparentemente idênticos aos que são exercidos hoje em dia pelos reis e sacerdotes, isto é, o de Melquisedek,68 é historicamente encerrada com a vinda de Cristo, que em sua pessoa, a última desse período, reunirá em si o rex-sacerdos. Após, os dois poderes se dissociarão e nenhum

sacerdote poderá ser rei, do mesmo modo nenhum rei poderá reivindicar a função sacerdotal. Hincmar recorre a Gelásio I muitas vezes em sua obra literária e dá a devida importância à função real, colocando-o à testa da sociedade humana e como responsável por todos, sendo que ela não poderia dispensá-la. Mas a função, por ser indispensável à vida social, jamais poderá ser utilizada em proveito de uma pessoa e portanto, se ela se exerce com correição, a monarquia é plenamente justificável, enquanto que se ela decair e for exercida com excessos de uma tirania, ela romperá o seu sustento moral e provocará uma volta à anarquia individual. Para

Hincmar, a divisão de responsabilidades formulada por Gelásio I é justificável na medida em que ambas funções se mantêm em comunhão e cooperem uma com a

67 PL 59, p. 108-109. 68 PL 125, p. 1007.

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outra.69 Alguns de seus contemporâneos, como Rabano Mauro, poderiam chegar a formular que a instituição real é uma instituição de origem humana, para mostrar que a sacerdotal, por ser divina, é a mentora da vida social e está acima da outra. Por outro lado, encontramos no papa João VIII, que virá a coroar Imperador dos

Romanos a Carlos ―o Calvo‖, ―por privilégio da sede apostólica‖, que a escolha do imperador era feita por inspiração celestial ou ―indicado e desejado por nós e chamado por Deus‖; em outras palavras, Roma era a criadora de todos os reis, os juízes e os clérigos de todo o mundo.70 Hincmar se mantém fiel à fórmula gelasiana e não permite nenhum desequilíbrio entre as funções responsáveis pelo mundo e outorgadas pelo Cristo, mas sempre distinguindo entre a função e o indivíduo que a exerce em um e ou outro caso. Essa comunhão se faz de modo que o clero aporta à sociedade a informação de que ela necessita para poder

sobreviverem Deus e o rei assegura uma conduta correta dos homens e ajuda assim o clero a guiá-los em direção à salvação. O clero corrige os erros por sanções corretivas e o rei combate as suas conseqüências sociais pelo gládio judicial, tornando os seus empenhos indissociáveis.71

Mais concretamente, a função episcopal gera a ordem eclesiástica e a função real a res-publica.72 E quanto à res-publica, temos de entender que Hincmar segue as pegadas de Sto. Agostinho, no De civitate Dei, XIX, 21, que considera a

res-publica um estado de direito ou justo e que permite ao seu povo obedecê-lo, do contrário ela não poderá ser assim denominada. Para tanto, nela impera a lei de Cristo, que visa à salvação, de modo que o povo não se encontra alienado do aparato político que o orienta e governa, e ambos fazem parte da Igreja mística. O conceito de res-publica é amplo e engloba toda a cristandade, mas cada príncipe governa, com a ajuda de ministros laicos e eclesiásticos, um território do povo cristão que Deus lhe confiou para administrar, constituindo-se desse modo

no governo temporal do mesmo.73 A gestão temporal é limitada, pois para a orientação de questões políticas importantes é necessário recorrer aos dois ministérios para que se chegue a uma decisão clara e de acordo com o ensinamento divino, O ministério laico, que é da atribuição dos reis, se distingue perfeitamente do dos clérigos e suas responsabilidades, que tangem aos assuntos temporais, exigem uma colaboração da Igreja e requerem daqueles que se alçam

69 PL 126,248. 70 MANSI, XVII A, 347. 71 PL 125, 772: Quoniam episcopalis auctoritas praedicando vita et verbo et regia dignitas

regendo ac corrigendo praesse et prodesse omnibus debent (...) episcopus medicinali mucrone

(...) et rex iudicali gladio (...). 72 PL 126, 181: ― (...) quia rex et episcopus simul esse non potest et sui antecessores ecclesiasticum ordinem, quod suum est et non rempubilcam quod regum est, disposuerunt (...)‖. 73 PL 126,314, onde Hincmar substitui a ―regalis potestas‖ gelasiana por ―principalis potestas‖.

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ao poder uma moral elevadíssima. Aproximadamente, em 869, Hincmar escreveu um texto a pedido especial de Carlos ―o Calvo‘, com o título De cavendis vitiis et virtutibus exercendis, que de certa forma visa a responder à insegura posição do rei quanto à sua atuação através de um questionamento sobre o valor das obras de

misericórdia e sobre a epístola e seu conteúdo, escrita por Gregório I a Recaredo, rei dos visigodos.74 Hincmar tem a oportunidade de desenvolver seu pensamento sobre o poder temporal, redigindo um texto de edificação moral e meditação espiritual, que sirva de guia ao monarca. Carlos, diz Hincmar, que foi bondosamente dotado de inteligência por Deus, deverá fugir das tentações terrestres, meditando constantemente sobre sua conduta e visando à glória da alma. O importante é a reta intenção para que se chegue ao caminho da salvação. A função do rei serve de exemplo a toda a sociedade que modela sua conduta

sobre ela, portanto devendo ser o rei mais impecável que os demais homens, levando as suas virtudes a um alto grau de perfeição, tem como modelo de conduta a Cristo. Entre os vícios e virtudes que no homem se encontram em permanente luta, devem-se interpor as boas ações e a caridade para se atingir a conversão total a Deus, com o auxílio da penitência e da eucaristia.

Portanto, a regia dignitas, que é outorgada com a unção no ato de sua coroação, implica numa responsabilidade moral exemplar e se assenta sobre as

virtudes fundamentais da ―iustitia-pietas‖ que Hincmar amplia para caracterizar as qualidades que o rei necessita ter: mansuetude, paciência e caridade.75 E, portanto, se o rei governa de acordo com a piedade e a moral cristã, ele pode ser considerado ―rex... a recte agendo...‖ cuja expressão é lembrada no concílio de Paris, de 829. Hincmar foge do esquema tradicional do equilíbrio que deve haver entre os oito vícios e as oito virtudes, que freqüentemente aparecem na literatura moralista ou nos ―espelhos dos príncipes‖, que servem de orientação moral para bem governar.

O mal dos males, para ele, é a cobiça, o desejo dos bens terrestres, seguindo assim o versículo paulino, 1 Timóteo VI, 10, que ele menciona em seu texto.76 O arcebispo estaria aqui seguindo de perto as advertências vetero-testamentárias quanto à cobiça dos reis que Samuel havia feito ao ungir a Saul como rei de Israel e que seria a própria condenação dos vícios próprios à monarquia, onde quer que ela se encontre. O apego às coisas terrestres e a concupiscência desenfreada é a raiz de todo o mal e por isso ela deve ser condenada como vício social por excelência, que leva a conseqüências graves, como o esmagamento dos pobres e a arbitrariedade

dos que governam.77 A ambição sem limite provoca o orgulho e a cegueira moral, entre outros leva à glutonice e à luxúria, e em outros à inveja, à cólera, todos eles

74 PL 125, 857-930. 75 PL 125, 1016. 76 PL 125, 869: ―quoniam avaritia non una quaelibet sed ea culpa est de qua omnes oriuntur‖. 77 PL 125, 868-871

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males que têm sua origem no apego aos bens terrestres.78 O De cavendis passa a ser um verdadeiro tratado sobre a conduta moral que deve nortear a dignidade real, a regia dignitas, muito próximo ao De institutione regia, de Jonas de Orleans, onde se poderão encontrar idéias comuns ao texto de Hincmar.

Porém em Hincmar, além de encontrar-se uma exposição sobre o dever moral do rei, ainda que não sistematicamente, podemos captar em seus escritos idéias relativas ao poder temporal, a regia potestas. Sem dúvida, o substrato dessas idéias se encontra nas Escritas Sagradas, e o que nós podemos denominar como teoria política medieval, no fundo, se baseia na utilização de exemplos tirados daquela fonte principal com complementos históricos posteriores ocasionais. Em Hincmar o rei, como qualquer outro homem ligado a uma função elevada, eleito por Deus para exercer o poder, está ligado a um compromisso moral com a divindade, mas

também ele assume compromissos contratuais com os homens e as instituições humanas e acima de todos eles o respeito pelas leis.79 A ordem social, portanto, é resultado dos compromissos assumidos pelo rei em relação àqueles que são seus súditos e fiéis. Mas como a ordem social é desejada por Deus, como vimos anteriormente, a quebra dos compromissos de parte do rei constituem uma violação natural da ordem divina. A tirania, portanto, é uma violação da ordem social ou uma violação dos compromissos assumidos e das leis humanas.80 A conclusão

desse raciocínio é de que o monarca pode ser submetido a sanções legais, se não esquecermos que o fundamento da lei é a moral cristã, igualmente válida a todo e qualquer ser humano vivendo na sociedade. Mesmo que ele elabore a lei, sua conduta perante a mesma será julgada por Deus, desde que lhe foi confiada a tarefa de zelar por ela e pelos que lhe foram confiados, e seus atos serão avaliados pela divindade.81 Assim, o rei não tem a liberdade absoluta de se conduzir como quer e não tem a liberdade de agir arbitrariamente ou de romper com seus compromissos

e assim, como já vimos em relação ao poder espiritual, a decisão confinada a apenas uma pessoa não é a ideal, portanto melhor que se a faça com o conselho de outros, contanto que eles sejam qualificados para zelar pela lei moral cristã. Novamente sentimos a importância que Hincmar dá ao conselho ou à junta de assessores que rodeiam o rei, para evitar que este cometa erros, pois ainda que ―secundum voluntatem Dei regit‖, Deus não pode determinar sua boa ou má conduta política, o que também pode ter sido uma concepção inspirada pelas Escrituras Sagradas.82 Nessa concepção o papel do rei vem a ser o de manter o

equilíbrio social em uma ordem desejada por Deus e que pode se alterar devido a

78 PL 125, 872-875; 878. 79 PL 126, 119 ―(...) Vos elegi ad rugimen regni sub conditione debitas leges servandi‖. 80 PL 125,700. 81 PL 125, 700-701. 82 PL 125, 988 e 1085.

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decisões arbitrárias ou a urna conduta pessoal incoerente com o ideal social cristão. Nesse caso, obedecer ao rei justo e piedoso é obedecer a Deus e aceitar urna ordem estabelecida pela divindade.83 Houve momentos em que essa obediência se mostrou como uma imposição histórica, momentos como os dos conflitos de

Carlos ―o Calvo‘, com as sucessões no território da Lorena ou com o bispo Hincmar de Laon, que atinge a autoridade real em 868, e leva o papa a ameaçar o rei com a excomunhão saindo Hincmar, de Reims, em sua defesa, em cartas escritas em seu nome e em nome do rei, a Adriano II.84 Para Hincmar, quando se trata de julgar um rei, e no caso, Carlos ―o Calvo‖ não se julgava culpado, ―nec confessus, nec accusatus‖,85 o papa não é um bispo diferente dos outros.86 Quando Hincmar sai em sua defesa, em defesa de um rei que ele considera cristão, erudito e respeitador de todas as regras,87 ele não teme em dizer ao papa que ele ameaçou o

monarca sem um julgamento e em o fazendo ele extrapolou em seus direitos, chegando a ser arbitrário.88 O equilíbrio social também pode ser alterado nesse caso quando a arbitrariedade papal se manifesta e tenta impor sua vontade.89 Para Hincmar, a intervenção papal no reino, ―regni et saecularia negotia‖,90 revela o desprezo pela função real constituída por Deus e cujo gladio está a serviço dos inocentes.91 Em boa parte o arcebispo de Reims, que falava pela boca de Carlos ―o Calvo‖, estava expressando a tradicional hostilidade do clero carolíngio a qualquer

intervenção pontifical no reino ocidental, mas de outro lado ele procurava chamar a atenção ao papel que o sumo-pontífice deveria assumir no sentido de aconselhar e corrigir a conduta dos reis e ajudá-los a se manterem no caminho da retidão.92 O sucessor de Nicolau I, Adriano II, fora mais a fundo na aplicação da doutrina do poder espiritual como mentor da sociedade cristã, e em particular na doutrina petrina que afirmava terem os decretos dos sucessores de Pedro a mesma força como se fossem emanados de Cristo, já que Pedro foi seu herdeiro. Mas antes de

retomarmos o pensamento de Hincmar, devemos chamar a atenção para o fato de que Adriano II, assim como outros papas, desde Leão IV ou mesmo Gregório VII, estava imbuído de que a Igreja deveria se libertar do sistema denominado de

83 PL 126, 988. 84 PL 124, 876-881 e 881-896. 85 PL 124, 877. 86 PL 124,881. 87 PL 124, 879. 88 PL 124, 879. 89 PL 124, 878: ―Nec talis est doctrina catholica ut propere vel huiusmodi causa rex, corrector

iniquorum, a sedis apostolicae communione debeat separare‖. 90 PL 124, 877. 91 PL 124, 880: ―(...) quae me regem a Deo constitutum et gladio ex utroque parte acuto ultore scilicet nocentium et defensore innocentium (...)‖. 92 PL 124, 877.

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―igreja-propriedade‖, dependente do proprietário da terra que recebia o consentimento de construir em sua propriedade uma igreja, permanecendo a mesma como um bem e com o conseqüente direito de indicar um clérigo para servi-la. Esse sistema, que passou a atingir igrejas rurais e episcopais, naturalmente

vinculava os clérigos às necessidades familiares dos nobres que os empregavam. A investidura laica, que foi o grande mal de certos remos europeus, em especial dos territórios germânicos, foi em boa parte decorrente desse sistema que os papas procurarão corrigir. Portanto, não é de estranhar a reação havida de Nicolau I e Adriano II em relação aos assuntos relativos ao poder nos remos carolíngios.

Hincmar, que assumiu uma posição moderada ou equilibrada, justificando-a teoricamente, como vimos acima, não deixou de expressá-la, como redator das cartas de Carlos ―o Calvo‖ ao Papa Adriano II, logo após as ameaças e as ofensas

em linguagem agressiva contra o monarca, e a ameaça de excomunhão, exigindo deferência ao rei e lembrando a fórmula de Gelásio.93 Hincmar afirma coerentemente a necessidade dos dois poderes colaborarem, dentro de suas funções, para a edificação do povo cristão, sem que o sumo-pontífice e o clero abusem de seus direitos para depor ou punir um rei. No fundo, se o rei não é um tirano, e se vê a si mesmo como um ser humano igual a outros frente a Deus, e também é humilde, ele, elevado à função pela divindade, possui um poder imenso

que merece a aceitação da Igreja enquanto não for arbitrário e ferir as regras que fundamentam a ordem social. Em Hincmar, a colaboração ou a comunhão dos dois poderes em suas funções, separados após Cristo, servem para orientar o povo cristão em direção à sua salvação.

93 PL 124, 877. ―et apostolicae sedis pontifex et reliqui Dornini sacerdotes nobis quae a Deo sunt constituta exhibcant (...)‖, ―Servate ergo nostrae regiae potestati quae nostra sunt et liceat nobis

servare vestrae pontificali auctoritate quae vostra sunt‖.

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A TEOCRACIA IMPERIAL NO FIM DA ALTA IDADE MÉDIA

Departamento de História e do Curso de Mestrado em Filosofia Política da UFG

Durante aproximadamente um século os reis e imperadores germânicos exerceram um controle sobre a Societas Christiana e especialmente sobre o Papado. Vários fatores de natureza diversa contribuíram para isso. Iremos tratar de alguns deles em face de sua relevância no tocante ao tema em apreço. Entretanto, parece-nos mais importante, com vista ao mesmo propósito, examinar e analisar os fundamentos teóricos da realeza germânica e da monarquia imperial e como a primeira pôde se transformar na segunda.

Um desses fundamentos se alicerçava na concepção teocrática do poder. Mas para fazermos tal análise será preciso recuar no tempo a fim de que entendamos como paulatinamente os medievais vieram a absorvê-la.

Entretanto, o significado de Teocracia, ainda hoje, não é bem entendido pelos estudiosos do pensamento político medieval,1 entre os quais há um grupo que entende aquele termo como tendo sido o regime político, o governo, exercido pelos dirigentes eclesiásticos, os quais teriam praticado um verdadeiro dirigismo político sobre os governantes seculares na esfera regular de atuação destes. No entanto,

essa concepção é bastante longínqua da que admitimos como a mais correta. Em primeiro lugar, teocracia designa etimologicamente ―o governo exercido

por Deus‖ e nada além disso. Num sentido mais preciso, essa palavra designa o governo exercido em nome da ou das divindades. Afastamo-nos, pois, das fronteiras cronológicas da Idade Média, porque houve regimes teocráticos na Antiguidade. O Egito antigo teve um regime teocrático, pois os faraós, além de se

1 BARBOSA, João Morais. ―Fundamenti teorici della hierocracia nel pensiero politico del Tardo Medioevo‖. In: SOUZA, José A. de C. R. de. Org. Temas de Filosofia Medieval. Santos:

Universitária Leopoldianum, 1990, p. 257-277, particularmente: p. 259-260.

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considerarem a encarnação viva de Horus, ou de Amon-Rá ou de Aton, se diziam igualmente filhos de um ou de outro deus e, graças a essa concepção puderam estabelecer e exercer um regime político absolutista sobre todo o povo egípcio, que perdurou inclusive durante o Período Helenístico, teoria essa que, diferentemente

do que sucederá na Idade Média, afastava completamente a hipótese dum questionamento sobre a legitimidade do poder.

Ademais, o poder tinha a sua justificação na transcendência, na metapolítica, o que colocava o dirigente, fosse quem fosse, numa posição inquestionável. Neste aspecto, aliás, a teocracia régia do final da Idade Média ostentou certa semelhança com a teocracia egípcia, conquanto tenha havido muitas diferenças entre ambas.

Os reis de Israel/Judá governaram o seu povo em nome de Javé. E os hierocratas medievais, ao sustentar sua teoria, nunca se esqueceram de que os

israelitas, por vontade expressa de Javé, primeiramente foram dirigidos por sacerdotes, e só mais tarde ele permitiu, não aquiesceu favoravelmente, que tivessem um rei, por causa de seus pedidos insistentes com aquele propósito.

Os monarcas israelitas também eram então ungidos com o óleo bento, gesto esse que indicava não apenas o sinal de uma escolha divina, mas também que eles tinham uma especial missão, até certo ponto espiritual, a desempenhar junto ao Povo de Deus. Portanto, o poder temporal em Israel, como no Egito Antigo, tinha

uma causa eficiente, uma origem divina, e, assim, sua natureza era espiritual. A unção régia e imperial, comum no período medieval, perpetuaria semelhante concepção, segundo a qual os potentados seculares dispunham dum poder a seu modo também espiritual e miraculoso.2

Os imperadores do Baixo Império, influenciados pela herança cultural das monarquias helenísticas, também exerceram um regime teocrático, ora em nome do Sol Invicto, ora de Mitra ou ainda em nome do próprio Júpiter, exigindo de seus

súditos, inclusive dos ministros, a prosquinese e o beijo na barra do manto escarlate, por sinal, um dos símbolos do poder divino que pretendiam exercer.

Constantino Magno (306-337) e seus sucessores cristãos também procederam de acordo com tal concepção, considerando-se lugar-tenentes de Deus na terra. Além da sobredita herança cultural religiosa que conheciam muito bem, serviram-se igualmente da própria doutrina apostólica para reforçá-la. O início do capítulo XIII da Carta de Paulo aos Romanos a fundamentava:

―Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que

não venha de Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à

ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam metem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres

então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios, pois ela é

instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o mal, teme,

2 BLOCH, M. Les Rois Thaumaturges, Paris: Gallimard, 1983, em especial: p. 28-260.

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porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e

punir quem pratica o mal. Por isso, é necessário submeter-se não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. É também por isso que pagais

impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desincumbem com zelo

do seu oficio. Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a

quem é devida: a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida(...)‖.3

O primeiro versículo antes citado sugeria precipuamente que o Apóstolo acreditava na legitimidade e na incontestabilidade do poder universal do Imperador. A par disso, ainda, a intenção de Paulo, ao redigir esse passo, foi a de

dissuadir os cristãos de manter um comportamento diferente que correspondesse à sua posição singular na sociedade romana, enquanto formavam um povo eleito. Isso, porém, jamais devia eximi-los da obediência aos príncipes seculares, mesmo que estes fossem seus opressores.

Igualmente uma passagem de São Pedro:

―Sede submissos a toda a instituição, por amor do Senhor, seja ao rei como

soberano, seja aos governadores como enviados por ele para punirem os malfeitores e encomiarem os bons. Tal é a vontade de Deus: que, fazendo o bem, tapeis a boca à

gente insensata e ignorante, agindo como homens livres, e sem abusar da liberdade

como máscara de nequícia, mas como servos de Deus. Respeitai a todos, amai os

irmãos, temei a Deus, honrai o rei.4

O preceito expresso no final desse texto apostólico, servia também para impor, como princípio diretivo religioso e proveniente da autoridade divina, a obediência da parte dos cristãos, na condição de súditos de Roma, ao dirigente máximo do império.

Em suma, o poder político do imperador devia sua legitimidade à vontade de Deus, criador e senhor de todo o universo. E, se este princípio de ordem universal era querido por Deus, o poder político, ao inserir-se nessa ordem, tornava-se legítimo através duma instância transmundana, eterna.5

Além desse fundamento religioso da teocracia imperial, ela se baseava ainda em aspectos culturais dessacralizados ou puramente políticos.

Os imperadores, termo esse que designava o comandante supremo do exército,

apoiados na literatura jurídico-política de então, eram igualmente considerados como príncipes, isto é, os primeiros dentre os cidadãos e detentores da auctoritas. Essa condição lhes assegurava supremamente exercer todos direitos nas esferas administrativa, militar, legislativa e judiciária e usufruir de enormes privilégios inerentes ao cargo que ocupavam.

3 Cf. Rm 13,1-7. 4 Cf. 1 Pd 2,17. 5 Cf. a propósito, ROPS, Daniel. ―Omnis Potestas a Deo. L‘Origine du pouvoir civil et sa relation

à 1‘Église‖. In: Recherches des Sciences Religieuses, 56(1968):43-85.

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Tais direitos se exteriorizavam, entre outros, nos seguintes postulados: a decisão do príncipe tem força de lei; o príncipe está solutus legibus, cujo significado preciso tem enorme relevância para a compreensão do nosso tema. O primeiro deles indicava que o imperador era a fonte, a origem, a

causa eficiente das leis, as quais simplesmente emanavam duma decisão sua, o que equivale, acreditamos, a um progressivo enfraquecimento do direito abstrato e à correspondente expansão dum conjunto de leis provenientes, de um lado, da vontade casuística do chefe político, e de outro, na jurisprudência dos ―experts‖ à essas leis.

O segundo princípio queria dizer que o príncipe estava isento de obedecer às leis por ele mesmo promulgadas; que estava radicalmente separado da sociedade que dirigia, isto é, acima dela, e que a autoridade eminente que

exercia não provinha de seus integrantes. Assim, o imperador era a fonte imediata de onde emanavam as leis e a justiça interpretativa delas próprias, e ipso facto o chefe supremo do império.

Mas é preciso reiterar que o imperador devia sua autoridade e tal preeminência a Deus, a quem tinha o dever moral de prestar contas de seus atos políticos.

Disto se originaram duas conseqüências destinadas a se confrontarem ao longo da Idade Média: 1) o rei/imperador só tinha de obedecer a Deus, ficando assim

liberto de todo e qualquer compromisso com a sociedade que governava; 2) se o rei/imperador tinha o dever de prestar contas a Deus de seus atos, isto o colocava sob a responsabilidade daqueles que, neste mundo, eram os intérpretes especiais da palavra de Deus e seus representantes, a saber, os prelados e particularmente o papa. Noutras palavras, a teocracia régia, ao apoiar-se em postulados de natureza religiosa colhidos no Cristianismo, abria o caminho à hierocracia.

Entretanto, ainda estamos nos referindo às épocas de Constantino, Teodósio

―O Grande‖ (379-395) e Justiniano (527-565), os quais, fundamentados em todo esse aparato ideológico, e igualmente levados por razões políticas, v.g., a unidade do império, com freqüência assumiram comportamento cesaropapista, quer dizer, interferiram nos assuntos e questões doutrinário-eclesiásticas, isto é, de natureza eminentemente espiritual, portanto, da esfera de competência exclusiva da Igreja e de seus dirigentes. Tal procedimento, aliás, foi uma característica marcante dos imperadores bizantinos que mais tarde os sucederam. O Imperium Universale doravante tinha de ser sempre um Imperium Christianum.

Nos capítulos iniciais deste livro, tivemos a ocasião de examinar qual foi a reação das autoridades eclesiásticas, face a essa ingerência dos imperadores e reis nos assuntos da Igreja, acentuadamente marcada tanto pela insistência no tocante às características próprias dos poderes espiritual e secular quanto às suas esferas específicas de atuação e às respectivas finalidades.

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Isto não significou, porém, que, mais tarde, após a desagregação das províncias ocidentais do Império, a nobreza e os reis visigodos, merovíngios e lombardos e seus prepostos tivessem deixado de se imiscuir nos assuntos eclesiásticos, quando julgavam que era necessário e tinham meios de o fazer, a

ponto, inclusive, de indicar direta ou indiretamente os dignitários eclesiásticos, e de lançar mão dos bens da Igreja.

A teocracia no Ocidente europeu ganhou novo impulso com a Restauratio do Império Romano em 800. Carlos Magno, na noite de Natal daquele ano, foi coroado imperador do Ocidente.6 Mas não nos esqueçamos de que foi o Papa Leão III (795-816) que efetivou aquele ato.

A teocracia imperial fez-se acompanhar igualmente de seu corolário inseparável, o cesaropapismo. Apesar do respeito, da colaboração mútuos e

recíprocos que havia entre o imperador e o papa no governo da Cristandade, o imperador interferiu em questões de natureza religiosa, tanto no âmbito da disciplina eclesiástica, quanto na esfera da liturgia, da doutrina e da evangelização compulsória de povos pagãos, porque essas questões tinham implicações políticas.

O cesaropapismo imperial se consolidou também graças a dois outros fatores: 1) Algum tempo antes de ser coroado imperador, Carlos tinha instituído a

figura político-jurídica dos missi dominici (um leigo e um eclesiástico), os quais

fiscalizavam a atuação governamental religiosa e temporal de todos os dirigentes subalternos (respectivamente bispos e condes, marqueses e duques) em seus domínios, informando-o acerca da atuação dos mesmos, com vista não apenas a reforçar seu poder, dotado simultaneamente duma dimensão temporal e espiritual, mas também com o propósito de o tornar mais eficiente.

Todavia, não nos esqueçamos também de que Carlos era o supremo mandatário do Imperium, mas este identificava-se teoricamente com a

Christianitas e com a própria Ecclesia, três perspectivas diferentes duma única realidade.7

2) Os primeiros carolíngios estavam convictos de que desempenhavam igualmente a função de protectores Ecclesiae. Por isso, usufruíam do direito de intervir nos assuntos eclesiásticos. À guisa de exemplo, basta lembrar a ação de Pepino ―O Breve‖ (743/751-768) no tocante ao papado, e o motivo da própria vinda de Carlos Magno a Roma no ano de 800, como o atestam as fontes.

Em suma, a ideologia imperial carolíngia, embora tivesse cometido alguns

equívocos, misturando as duas esferas de poder, conseguiu unir firmemente as

6 Cf. o célebre livro de HALPHEN, L. Charlemagne et l‘Empire Carolingien. Paris: Albin

Michel, 1968. 7 Cf. WECKMANN, L. El Pensamiento politico medieval y las basis para um nuevo derecho

internacional. Mexico: UNAM, 1950.

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realidades mais profanas com a autêntica vida espiritual. Os vassalos e vavassalos dos imperadores e os fiéis da Igreja eram os mesmos e formavam um único povo.

A justiça que faziam aplicar, por mais rude que fosse, mantinha a ordem e a paz pública, querida por Deus, conditiones sine quibus non era possível que a

Igreja pudesse levar a bom termo a sua missão, graças à qual as pessoas poderiam alcançar a Beatitude. Mas ―Le système ne fonctionait que duns la mesure où la hierarchie cléricale et l‘aristocratie collaboraient à une oeuvre commune sous l‘autorité de 1‘empereur (...) il importait que le mêmes familles fournissent le personel de gouvernement de l‘Eglise comme de l‘Empire (...)‖.8

Todavia, com a desagregação do império carolíngio, no início do século X, a Igreja Romana não apenas perdeu seu protetor, mas ainda acabou sendo tutelada pela aristocracia italiana que, muitas vezes conduziu ao trono de Pedro pessoas

indignas de exercer o cargo de sumo pontífice. Esta situação contribuiu para que em toda cristandade latina, mais ou menos intensamente, surgissem e se espalhassem por toda parte as assim chamadas chagas da Igreja: a simonia, o nicolaísmo e a investidura, corrompendo o clero.

Essa idéia de protector Ecclesiae, como algo da competência do poder real, que mais tarde será reassumida pelos soberanos germânicos, é justamente o elo de ligação entre os componentes políticos já examinados, com o terceiro e último

ingrediente a ser analisado por nós, a fim de que seja possível compreender claramente o assunto que inicialmente nos propusemos a abordar.

A monarquia germânica, sob o ponto de vista político- institucional, de um lado, era herdeira de algumas tradições culturais próprias — por exemplo, o fato de ela ser, em princípio, eletiva e não exclusivamente hereditária, fato esse que, ao menos teoricamente, limitava o poder régio, exceto se o seu detentor fosse militarmente muito poderoso.

O mais importante poder político do rei germânico era o mundeburdium, graças ao qual ele era considerado o protetor, o justiceiro e o pacificador (chefe militar) do reino. Assim, as medidas judiciárias, militares e administrativas, por exemplo, que tinham de ser tomadas de acordo com aqueles misteres, eram de sua inteira responsabilidade e lhe asseguravam o direito de ouvir, consultar e requisitar quem e quantas pessoas necessitasse, pois os vassalos e vavassalos tinham o dever de lhe prestar auxilium et consilium.

Ele igualmente possuía o bannum, mediante o qual podia ordenar qualquer

coisa a todos os súditos. Por outro lado, a concepção que os germânicos tinham da realeza, graças à

atuação do clero regular e secular, também absorveu alguns aspectos ideológico-políticos da civilização romana, como já tivemos ocasião de mostrar.

8 PAUL, Jacques. L‘Église et la culture en occident, IXe. - XIIe. siècles. Paris: PUF, 1986, p. 162, v. 1.

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Há ainda mais duas idéias que completam essa herança e sobre as quais iremos falar agora. Tratam-se da pax romana e da ecumene universal. Malgrado a desagregação e a ruína das províncias ocidentais do império romano, transformadas em reinos independentes, e a tentativa efêmera de Justiniano I de

reintegrá-las ao território, com os propósitos de coibir novas invasões e de abastecer o Oriente com os recursos naturais que as outras possuíam, o antigo ideal da pax romana somado à idéia de império universal, levado a termo por Alexandre (334-323 a.C.), César (100-44 a.C.), Augusto (27 a.C.-14 d.C.), Trajano (98-114) estavam bem vivos na memória do clero, o qual achava ser possível estabelecer um ecumenismo universal em que a civitas terrena espelhasse a civitas caelestis, e onde auctoritas imperial fosse igualmente geradora do Direito, da Justiça e da Paz. Testemunha esse fato uma frase que se encontra num tratado de direito do final do

período merovíngio: O imperador é aquele que exerce uma preeminência sobre todo mundo, sob sua autoridade se encontram os monarcas dos outros reinos.9

O clero também contribuiu para realimentar a concepção que os germânicos tinham da realeza, com outros aspectos da tradição cristã. Exemplifica bem este componente o fato de os reis se considerarem como tal, gratia Dei, expressão típica da teocracia cristã, a qual significava que tinham sido escolhidos por Deus para governar todos os seus súditos. Os seus pares eleitores, quer dizer, os outros

principais líderes da aristocracia militar, tinham servido de simples instrumento humano para a concretização e atualização da escolha divina. E ―al depender de la gracia divina el rey estabelecia una estrecha relación con la misma divindad y inversamente se desligaba cada vez más del pueblo (...)‖.10

O fundamento para aquela fórmula e postulado também se radicava numa frase paulina: ―Pela graça de Deus sou o que sou‖,11 a qual denotava simultaneamente o seguinte: a) o que cada pessoa é, não o é por causa de seus

méritos ou do favor de outrem, mas exclusivamente devido à bondade divina. b) Os reis, enquanto recipiendários da graça divina, julgavam usufruir duma comunhão mais íntima, particular e exclusiva com Deus.

A teocracia régia, tal como a hierocracia, integrava-se na concepção descendente do poder: este provinha do Alto, nunca da vontade do povo ou sequer de alguma instância humana de organização político-social, fosse ela, por exemplo, os príncipes eleitores. Nesta circunstância a ideologia teocrática afastava o povo do acesso ao poder. Ademais, recusava a antiga noção grega e

romana de cidadão, vigente ao menos até o fim do Principado (192), substituindo-a pela de súdito. Noutras palavras, não admitia a perspectiva

9 Cf. DHONDT, J. La Alta Edad Media, Madrid: Siglo XXI, 1973, p. 199. 10 ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1971, p. 123. 11 Cf. lCor. XV, 15.

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horizontal do poder associada à concidadania, optando pela vertical, perfeitamente correspondente à hierarquia vassálico-feudal.

Aquela frase do Apóstolo, neste novo contexto político, tendia a reforçar ainda mais o poder real, originado, como dissemos, na vontade divina. Mas, as graças

celestiais tinham sido transmitidas por Cristo, aqui neste mundo, à Igreja, cujos dirigentes eram os seus próprios dispensadores. Esta situação era, pois, o escolho principal com que se defrontava a teocracia régia, porque movia-se no território conceptual dos adversários hierocratas.

De tal concepção acerca da origem divina e da natureza espiritual do poder real adivinham algumas conseqüências:

a) Os reis germânicos se consideravam Vicarii Dei, isto é, dado que ele não podia estar presente no meio de seu povo, escolhia um representante para governá-

lo em seu nome. A unção régia, como se fosse um sacramento especial, era o sinal visível mediante o qual o rei estava apto a exercer o seu ofício e fora transformado num christus Domini gozando de uma situação político-social bastante singular, conforme Samel tinha descrito em seu livro.12

b) Somente os reges eram competentes para designar alguém para exercer uma tarefa qualquer e podiam conceder favores aos seus súditos. Estes, desde que se tornassem indignos de exercê-las ou de merecê-los, poderiam vir ser

destituídos do cargo ou perder aquele privilégio. c) Os súditos em geral não estavam aptos a exercer quaisquer das

responsabilidades régias, conquanto pudessem ser convocados a compartilhar de seus encargos e gozar dos benefícios e privilégios inerentes ao mesmo.

Havia, pois, na Germânia um ambiente propício para a restauração de antigas idéias e aspirações políticas.

Foi Oto I quem deu o grande passo inicial com vista a restaurar o império e a

teocracia no mundo latino medieval. Filho do rei Henrique I (919-936), antigo duque da Saxônia, e da princesa vestfaliana Matilde, sucedeu o pai em 936.

Na verdade, o novo monarca naquela ocasião tornou-se o primus inter pares, isto é, o primeiro entre os demais príncipes germânicos, em cujos territórios predominava uma unidade etno-cultural que assegurava para os mesmos uma política homogênea, impedindo a sua desagregação em subfeudos, embora esses grandes territórios ou ducados, a saber — o da Baviera, o da Saxônia, o da Francônia, o da Lorena e o da Suábia — tivessem se aglutinado bem mais tarde do

que os domínios francos ou italianos. Logo no início de seu governo, Oto I passou a agir diferentemente de como

seu pai procedia, o qual costumava agradar os poderosos duques, ouvindo-os

12 Cf. lSm. 8, 1.8; 10, 1,6.

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acerca da indicação de prelados e abades. Seu interesse pessoal e o da monarquia o conduziram noutra direção.

O rei sabia muito bem que o vicariato régio-divino lhe assegurava não apenas exercer uma suserania sobre leigos e clérigos, mas também regular tudo o

que fosse do interesse tanto da religião e da administração eclesiástica, quanto da política, de modo que, se as circunstâncias assim o exigissem, podia inclusive controlar até mesmo a ação dos prelados, apesar de não ignorar também que os bispos eram ungidos para desempenhar o munus de pastores do rebanho, tarefa essa, porém, que no seu entender se limitava apenas à cura animarum, isto é, à pregação da palavra, à distribuição dos sacramentos e à realização de obras pias em favor dos fiéis.

Então, com vista a neutralizar o poder paralelo dos duques, Oto I, e, depois, os

seus sucessores, à frente do reino germânico e do império, cientes daqueles aspectos ideológicos antes citados, relativos ao seu poder político, adotaram uma medida engenhosa e inovadora que consistiu primeiramente em conceder aos bispos de Colônia, Spira, Magdeburgo e Mogúncia o direito de exercer em suas dioceses o poder judiciário secular, o de cobrar impostos e o de cunhar moedas, transformando esses prelados em ―novos condes‖ do reino. ―L‘évèque de proprietaire foncier qu‘il était, devient prince territorial. Bref, le pouvoir des

hommes d‘Église sur les terres et sur les personnes s‘étend (...)‖.13 A par disso, Oto I e, mais tarde, os seus sucessores passaram a defender o clero

e as religiosas dos seus inimigos, isto é, dos ambiciosos duques, os quais, para aumentar o seu poder ou recompensar os seus aliados, tinham se apossado pela força, e continuavam a fazê-lo, das propriedades e doutros bens eclesiásticos, e rompido com a coesão que havia entre as igrejas germânicas, cujos líderes tinham nostalgia da ordem e unidade que imperara na época dos primeiros carolíngios. Os

reis germânicos, portanto, estavam convencidos de que agindo dessa maneira faziam-lhes justiça, porque se tratava dum grupo social indefeso, cujos cânones lhes proibiam severamente empunhar armas, até mesmo para salvar a própria vida.

Em seguida, com referência às eleições episcopais, Oto I aparentou observar o que estabeleciam os cânones: era da alçada do clero e do povo da diocese vacante indicar um novo bispo para a mesa. Entretanto, a prática eram bem outra. O rei supervisionava diretamente as eleições, ou através de legados observadores que chegavam a sugerir aos eleitores quem ele desejava que ocupasse aquele cargo.

Uma vez efetuada a eleição, o soberano enviava o báculo do prelado falecido ao bispo eleito, o qual o procurava e lhe prestava juramento de fidelidade.

13 PAUL, Jacques. L‘Église et la culture..., p. 197: ―De 967 à 1060, pendant un siècle environ, la

chapelle fournit la moitié des évèques (...)‖.

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Oto I e seus sucessores também imitaram o que os antigos reis francos já

tinham feito antes com membros do clero. Sem escrúpulo algum passaram a investi-los nas prelaturas e abadias vacantes, beneficia, a fim de recompensá-los pelos serviços prestados à coroa e porque desfrutavam de sua inteira confiança.

Esses eclesiásticos, recrutados em quaisquer dioceses,14 tinham primeiramente trabalhado na chancelaria régia/imperial sob a liderança do arquicapelão. Bruno, por exemplo, irmão do rei, foi arcebispo de Colônia e após a rebelião e derrota de Guilherme ―O Ruivo‖, foi feito duque da Lorena. Guilherme, filho bastardo de Oto I, foi arcebispo de Mogúncia e mais tarde chanceler do império.

Assim procedendo, os reis germânicos, de um lado, colocavam os prelados sob o seu patrocinium e de outro, se tornavam ―proprietários‖ destas igrejas ou daquelas abadia, passando a ter um enorme interesse em conservar intacto o seu

patrimônio e manter a integridade física de seu administrador, além de efetivamente atuarem como monarcas, cuja autoridade tinha de se estender sobre todos os negócios do reino.15

Ademais, a maior parte dos monarcas germânicos, interessados no bem-estar espiritual de seus súditos, julgava necessário indicar para as prelaturas as pessoas mais idôneas e aptas a desempenhar aquele munus, ato esse, aliás, em perfeita harmonia com uma mundividência sócio-política funcional e tripartida,

ideologicamente elaborada pelos próprios membros do clero e alicerçada filosoficamente no neoplatonismo.

Essas medidas criaram um estreito vínculo de ligação entre os dignitários eclesiásticos e os reis germânicos, pois eles institucionalizaram ―una capa social compuesta de hombres poderosos cuyos intereses coincidieran totalmente con los de la corona (...)‖.16

Todavia, se os bispos-condes obtiveram uma parcela do mundeburdium e do

banum real, bem como prestígio e riquezas, suas obrigações não eram poucas: deviam aconselhar o rei quando requisitados para tanto e, se fosse o caso, até permanecer junto dele; deliberavam com os nobres nos capitula sobre todos os problemas do reino, e mais tarde do império; quando necessário tinham a obrigação de recrutar e fornecer tropas ao rei; deviam administrar e proteger as cidades-dioceses que governavam; tinham de educar na fé e nos bons costumes os seus habitantes, clérigos, monges, religiosas e leigos.

14 Idem, ibidem: p. 177. 15 ULLMANN, Walter. The growth of papal government in the Middle Age. London: Methuen,

1955, p. 231-232: ‗(...) the ninth and tenth centuries had not only wilnessed the exuberant growth

of the proprietary church system, which, from an ideological point of view, is charcterized by the

application of the Teutonic idea of protetion to the individual churches, but also the application of the true monarchic principle to all the important bishoprics (...)‖. 16 DHONDT, J. Op. cit. p. 206.

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Embora, no princípio, nem todos os eclesiásticos tivessem dado apoio irrestrito a essa medida política de Oto I e de seus sucessores, a qual veio lhes possibilitar gradualmente exercer enorme influência sobre os territórios vizinhos que lhes estavam adscritos, nomeadamente a Polônia, a Hungria e a Itália setentrional,

porque tal gesto provocava uma confusão inevitável entre a missão própria dos bispos, e as novas atribuições seculares para as quais estavam sendo nomeados, todavia ela fortaleceu a ―igreja nacional germânica‖, cuja maior parte do clero, piedoso e culto,17 mais tarde, aos poucos, acabou aceitando-a, visto essa política contribuir para a reforma da vida clerical, principiada no mosteiro de Cluny e irradiada por seus monges, contra a simonia e o nicolaísmo.

Mas somente a existência desses interesses recíprocos entre o rei e o alto clero não explica a ampliação do seu poder. Ele também estava convicto de que

precisava fortalecer plenamente a monarquia e a pureza dos valores morais e religiosos do Cristianismo, de modo especial entre os clérigos.

Foi em 954 que Oto I conseguiu finalmente dar um golpe de misericórdia na alta nobreza germânica ao derrotar uma coligação chefiada pelos duques da Baviera, Suábia e Francônia, os quais instigaram seu próprio filho primogênito, Liodolfo, a se rebelar contra o pai e a tentar arrebatar-lhe o trono.

Antes, porém, ele tinha gradualmente dilatado as fronteiras do reino ao vencer

eslavos, poloneses e húngaros. Estes últimos foram derrotados na batalha de Lechfeld (9 de agosto de 955), após a qual ele foi aclamado por suas tropas pater patriae, imperator e Koeningheil. A legitimidade oriunda do sangue real se juntou aquela intrínseca ao próprio poder numa sociedade cristã de guerreiros: a pessoa que o obtém pelas armas o conseguiu mediante uma graça divina. A eleição, a hereditariedade e as vitórias militares eram, portanto, fatores associados e complementares legitimantes do poder.

Nos países conquistados, o rei passou igualmente a difundir o Cristianismo, granjeando assim o apoio total do clero germânico à sua política e, ainda, o respeito e a admiração dos bispos de Roma, os quais há algumas décadas enfrentavam uma situação política bastante incômoda.

No século X, a Península Italiana estava fragmentada em vários pequenos domínios feudais, dentre os quais, de norte para sul, o reino da Lombardia, cujos titulares se julgavam reis da Itália, o marquesado da Túscia, o ducado de Espoleto (Adriático), o Patrimonium Petri (Tirreno), os principados de Cápua, Benevento e

Salerno, e o condado da Apúlia. Toda Calábria, então, era domínio bizantino, e a Sicília estava nas mãos dos muçulmanos.

17 Cf. PAUL, Jacques. L‘Église e la Culture..., p. 209-212: O autor baseado em fontes, cita um número considerável de santos e piedosos bispos germânicos que exerceram seu apostolado em

várias regiões da nação.

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Os senhores desses territórios, visando a ampliar seus domínios e o poder político, viviam em constantes lutas entre si. As possessões pontifícias e Roma também foram alvo dessa ambição, especialmente da parte dos duques espoletanos Teofilato, Alberico I e II, os quais se apossaram da Cidade dos Césares e

entronizaram na Sé Romana parentes, amigos e partidários, muitos dos quais levavam uma vida bem pouco edificante, fato esse que não os recomendava para dirigir o papado. Apesar disso, ninguém contestava a preeminência espiritual da Sé Apostólica sobre as demais, a ponto de os arcebispos eleitos, para poderem exercer a liderança sobre os seus sufragâneos, solicitarem ao bispo de Roma que lhes enviasse o pálio abençoado. Além disso, há muito, ele era instado a se pronunciar, em grau de instância última de apelo, sobre todos os processos envolvendo eclesiásticos e assuntos espirituais. Por conseguinte, controlar o papado significava

exercer uma parcela considerável de poder sobre a Cristandade. Pouco antes de morrer, em 954, Alberico II fez com que a nobreza romana

e o papa Agapito II (946-955) jurassem que aclamariam papa seu filho Otaviano, com 18 anos, já ―Senador e Príncipe de todos os Romanos‖. Foi isso o que realmente aconteceu, e o jovem tomou o nome de João XII (955-963).18

Algum tempo depois, Berengário II, rei da Lombardia, com fito de dilatar os seus domínios, ameaçou conquistar o Patrimonium Petri. Então, quase no

final de 961, o pontífice solicitou a Oto I que viesse à Itália socorrê-lo, pois, como ele havia libertado as igrejas germânicas da tirania dos duques, igualmente libertaria o papado da tutela dos potentados italianos.

Em seu íntimo, o rei tencionava obter para si o trono imperial, dado que o mesmo estava legalmente vago, conquanto Berengário I (t 924), Rodolfo II, rei da Borgonha (922-926), Hugo da Provença (926-947), seu filho Lotário (948-950), casado com a princesa Adelaide, filha de Rodolfo da Borgonha, tivessem

reivindicado para si o título de imperadores do Ocidente. Por sinal, em 951 Oto I já tinha dado um grande passo naquela direção, ao vir

à Itália, atendendo à convocação de Adelaide, a quem Berengário II queria impor que casasse com seu filho, Adalberto, com o fito de, mediante a linhagem, legitimar suas aspirações ao trono. Oto I facilmente venceu os inimigos, transformando-os em seus vassalos, casou com Adelaide e se proclamou rex Francorum et Italicorum, confiando a Berengário II o governo da Itália setentrional e central. O rei germânico também viera à Itália com o propósito de

mostrar sua força aos bizantinos que aspiravam dilatar seu território em direção ao centro da península, o que representava uma certa ameaça à sua pretensão.

Além disso, se Oto I conseguisse tomar-se imperador, obteria para si uma posição nitidamente superior à dos outros duques germânicos e passaria a

18 Cf. LLORCA, B. et al. Hisoria de la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1963, p. 121, v. 1.

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controlar o sumo pontífice, a fim de que este não viesse a prejudicar a política da coroa, sustentada no clero que o apoiava, dado que o papa, na condição de chefe supremo da Igreja in spiritualibus o era igualmente de todo o clero germânico que lhe devia obediência.

Antes mesmo de vir a ser coroado imperador, Oto I mandou fazer uma coroa para si, cujos detalhes espelham muito bem a concepção teocrática acerca do poder que exercia: ―quatre plaques ornées de pierres, l‘avant se rapportant aux douze Apôtres, l‘arrière aux douze tribus de Juda, les deux côtes à l‘Apocalypse; entre elles quatre émaux évoquent lês prophètes et les rois de l‘Ancient Testament (...) Du front a la nuque, un arc unique surélève a fim de permettre ia parte d‘une mitre sous la couronne exactement comme pour les grands prêtres d‘Israel. Comme eux aussi, les souverains revêtaient une centuire munie de clochettes et sourtout un

‗manteau céleste‘ où sur le fond bleu, étaient brodés en fil d‘or les signes du zodiaque et les figures de l‘Apocalypse (...) avant même sa naissance l‘Empire était marqué d‘une imitatio sacerdotii (...)‖.19

Dois símbolos expressivos da autoridade ―quase‖ episcopal do imperador eram usados desde a época de Carlos Magno. Tratava-se da virga, uma espécie de báculo, e o anel, que simbolizava o matrimônio entre ele e o seu povo.

Oto venceu Berengário II e, antes mesmo de ser sagrado, se comprometeu a

proteger o papa, a Igreja Romana e suas possessões.20 Finalmente, em 2 de fevereiro de 962, ele foi ungido no peito e no braço e coroado Imperador Romano por João XII. Durante a cerimônia ambos firmaram um pacto em que foram reiteradas a proteção a ser dispensada à Sé Romana da parte do imperador, e a colaboração recíproca.

Mas Oto I e seus assessores viam a sagração a coroação imperial numa outra perspectiva. O que contava mesmo eram os êxitos precedentes. Aliás, o monge

Windukind de Corvey, ao escrever sua História dos Saxões em 967, sugeria que aquele gesto papal foi algo meramente acessório, mediante o qual o sumo pontífice reconheceu uma situação de direito.

O monarca estava convicto de que Deus, e apenas ele, o recompensava com aquela dignidade pelos serviços que fizera em benefício da propagação da fé, ao derrotar os inimigos da Christianitas, conquistando o carisma de vitorioso (heil, de acordo com a mais genuína tradição teutônica, e por defender o papado. Além disso, ele era o mais poderoso monarca de então, de modo que

o ato pontifício não passava de ―a necessary formality of a declaratory

19 NOEL, J. François. Le Saint Empire, Paris: PUF, 1971, p. 97. 20 Cf. LLORCA B. et al. Op. cit. p. 122-123.

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character. The substance of this emperorship was monarchic and autonomous, according to the imperial stand point (…)‖.21

O Papa, ao contrário, pensava de outra maneira. Num documento de 12 de fevereiro,22 firmou que coroara o imperador porque tinha trazido ao seio da

Cristandade povos pagãos, como os húngaros e eslavos, à semelhança do que Carlos Magno tinha feito antes com os saxões e lombardos, e em agradecimento pela proteção que ele tinha dispensado à Igreja Romana, a mãe de todas as igrejas, contra seus inimigos, solicitando depois, a coroa imperial ao sucessor de Pedro. Era, portanto, a universalidade da Igreja Romana, cujo bispo conferia a dignidade imperial romana a alguém apto a exercê-la, que tornava universal o poder imperial. O novo Império pedia fundamento à transcendência divina (relembremo-nos do axioma paulino ―non est pot estas nisi a Deo‖) e era por isso mesmo um império

sagrado. Mas, no nosso entender, a universalidade imperial dos teóricos do final da Alta Idade era de natureza mais profunda: tratava-se de imperar universalmente, não apenas enquanto se governava o universo territorial, mas principalmente enquanto o poder imperial submetia a si a universalidade do que de humano existe em cada homem individual. Noutras outras palavras, admitida a existência do Imperium universale, era preciso resolver a questão: quem era o seu legítimo chefe, já que a bicefalia na condução da Societas Christiana se afigurava inaceitável, pois,

―Um corpo com duas cabeças é uma espécie de monstro‖, repetiram-no à saciedade os tratadistas medievais. Aqui estava o fulcro dos conflitos entre o poder espiritual e o poder temporal ou, se utilizarmos a expressão comumente aceita, entre o Sacerdotium e o Imperium.

Todavia, Oto I queria assegurar que os seus descendentes viessem a ser igualmente imperadores pelo fato de serem reis germânicos. Ele imaginava que modificada a situação política italiana, os bispos de Roma poderiam agir de outro

modo. Por isso, com o fito de reforçar ainda mais seu papel de protector et advocatus Ecclesiae Romanae, reconfirmou as doações territoriais que Pepino ―O Breve‖ e Carlos Magno (768/800-814) haviam feito ao papado, no tocante à formação do Patrimonium Petri e, por outro lado, invocando um decreto de Luís ―O Piedoso‖ (814-840), sancionado em 824 (Constitutio Ludovici), de acordo com a qual os papas eleitos não podiam ser coroados como tal antes de prestarem um juramento de fidelidade aos missi imperiais, renovou essa determinação. Esta lei ficou conhecida como Privilegium Otonis e, graças à mesma, cabia ao imperador

dar a palavra final a respeito da pessoa indicada para assumir o papado. Assim, foi eliminado o perigo de ruptura da política cesaropapista adotada por aquele monarca para a Germânia e territórios sob o seu controle.

21 Cf. Crônica do Analista Saxão, MGH Script, p. 616, v. 6. 22 ULLMANN, Walter. The Growth..., P. 237-238.

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Um dos mais importantes ideólogos de Oto I era o monge Adso de Montier en Der,23 adepto da reforma cluniacense. Segundo ele, o novo Imperium Christianum sucedia agora os grandes impérios de outrora, inclusive o romano e o carolíngio. Ele, porém, se identificava com a Cristandade e a Igreja, de modo que, se viesse a

periclitar, ela correria o risco de se desintegrar. Por isso, o imperador devia ser também o bracchium Romanae Ecclesiae, e nesta condição passava a ter a obrigação de lutar pela reforma da Igreja, a fim de que os valores religiosos e morais do Cristianismo, difundidos por um clero piedoso e santo, revitalizassem a Cristandade e o império.

Como é evidente, as expressões acima referidas faziam igualmente parte do léxico da hierocracia, que nelas via a subordinação do império à Igreja, devendo-lhe aquele obediência e submissão a esta. Mas Oto I, como aliás todos os

defensores da teocracia régia, procuravam inverter a situação, tornando-se eles os autênticos chefes da Christianitas, mesmo em questões espirituais. Ao utilizarem, porém, a mesma terminologia que os hierocratas, conseguiam afinal, como já o fizemos notar várias vezes, reforçar teoricamente a supremacia da Igreja.

No entanto, pouco tempo depois, João XII passou a intrigar com Berengário II, Adalberto e seus partidários, inimigos do imperador. Oto I derrotou uma vez mais os adversários e depois (963) regressou a Roma. Convocou um sínodo no qual o

papa fugitivo, acusado de traidor e ingrato, veio a ser deposto. Ninguém quis defendê-lo, segundo Liutiprando de Cremona,24 por causa de seu comportamento dissoluto e porque as acusações que pesaram contra ele eram de natureza moral. Em seu lugar, o imperador indicou o antipapa Leão VIII (963-965)

Oto I, com vista a fortalecer ainda mais o poder político de sua dinastia, fez com que seu filho Oto (955-983) fosse sagrado e coroado imperador no natal de 967 por João XIII (965-972), e em 972 o casou com Teófano, sobrinha do

imperador bizantino João Tizimizes (969-976). Oto II sucedeu o pai no trono germânico e imperial em maio de 973.

Acrescentou ao seu título Imperator Augustus o termo romanorum. Seu período de governo foi marcado por inúmeras campanhas militares na Itália, visando de um lado, a submeter a nobreza que habitava a parte setentrional e central da península, a qual ciosa de sua antiga liberdade e autonomia não aceitava a suserania teutônica, e, de outro, a conquistar a parte meridional, então ocupada por islâmicos, os quais algum tempo antes haviam expulso os bizantinos daquela região.

O jovem imperador não foi bem sucedido em suas metas. No tocante aos maometanos do sul da Itália, em 13 de julho de 982, ele primeiramente lhes infligiu

23 Historia Ottonis. MGH Ss. p. 342, v. 3. 24 ULLMANN, Walter. The Growth..., p. 236.

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uma derrota, matando o Emir Abulkassem. Todavia, um novo contingente reagiu à ocupação, e Oto II, para não ser morto, preferiu fugir.

Pouco depois, os duques germânicos e os eslavos, informados daquele fato, se aproveitaram do mesmo para se rebelarem. O imperador se preparou lentamente

para regressar à Germânia e enfrentar os rebeldes, mas tendo sido acometido de malária veio a falecer em Roma a 7 de dezembro de 983.

Oto III naquela ocasião tinha quatro anos. Por isso, sua avó e sua mãe tiveram de exercer a regência até que ele alcançou a maioridade. Durante esse tempo, elas ainda lhe propiciaram uma educação religiosa e profana da melhor qualidade possível, inspirada na cultura romano-bizantina, contando para tanto com o apoio de Gerberto de Aurillac, arcebispo de Reims, um dos homens mais cultos de sua época, convidado a ser preceptor do jovem príncipe.

Oto III ao assumir de fato o poder, em 995, retomou a política cesaropapista de seu avô com o fito de consolidar o restabelecimento do império cristão ou da Cristandade imperial. Inspirando-se igualmente nas idéias de Adso de Montier en Der, estava convicto de que a renovatio Imperii Romanorum, em toda sua grandeza e esplendor era o caminho para atingir aquela meta. ―Como imperador se sentia llamado a dirigir el mundo conforme a la voluntad de Dios, pero en la Iglesia sólo vio una servidora suya y consideró al papa practicamente como uno

de sus obispos (...)‖.25 Todavia, desde a morte de seu pai e durante a sua menoridade, os líderes

políticos da Itália setentrional e de Roma, ciosos de sua autonomia, conseguiram libertar-se da tutela germânica. Para o imperador era inadmissível que a península e sua mais famosa cidade não estivessem sob o seu controle político.

Por isso, no final de 997, aproveitando-se de uma rebelião dos romanos contra o jovem Papa Gregório V (996-999), seu sobrinho, ferrenho adversário da simonia

e do nicolaísmo e partidário convicto da reforma eclesiástica e da restauração imperial, Oto III, à frente dum poderoso exército, marchou para a Itália, restabelecendo e impondo sua autoridade em toda a região. Desde então, passou a residir em Roma.

Na sua ausência da Germânia, incumbiu os bispos-condes e os marqueses de governá-la e de proteger as igrejas da Polônia e da Hungria e as fronteiras do nordeste e leste contra as incursões magiares e eslavas.

Entretanto, pouco depois Gregório V faleceu. O Imperador então indicou o

arcebispo Gerberto para a Sé Apostólica, o qual tomou o nome de Silvestre II (999-1003).26

25 DHONDT, J. Op.cit. p.211. 26 A propósito desse Papa, sugerimos ao leitor consultar o terceiro capítulo do livro de FOCILLON,

Henri. L‘An Mil. Paris: A. Colin, 1952.

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Em 17 de janeiro do ano 1000, Oto III acrescentou ao seu título de Imperator Romanorum o de Servus Jesu Christi, à semelhança do que fizera o Apóstolo dos Gentios, e pouco depois (1001) o de Servus Apostolorum.

Aquele primeiro título significava que o imperador, como Paulo, se

considerava um sacerdote-missionário e que seu império tinha o dever de propagar o Cristianismo junto aos povos pagãos que viviam ao seu redor. Mas denotava, outrossim, que a identificação entre os dois impérios exigia uma unidade de liderança para a Cristandade, cujo chefe supremo nas esferas temporal e espiritual era ele próprio, dado que se julgava ao mesmo tempo rex et sacerdos, como o Cristo pantokrator/hiereus bizantino, de quem era o vicarius, de quem provinha diretamente o sacerdócio que exercia.

O título Servus Apostolorum ressaltava a idéia de que o imperador também

era protector Ecclesiae Romanae e, como tal, não apenas tinha a obrigação de guardá-la contra seus inimigos, externos ou internos, mas também dotá-la com um patrimônio sólido que lhe assegurasse a preeminência sobre as demais igrejas da Cristandade. É exatamente isso que sugere um diploma imperial de 1001, em que Oto III também aproveitava do ensejo para recusar o Constitutum Constantini como um documento autêntico e legítimo, não lhe atribuindo nenhum valor legal e, por isso mesmo, fazia então uma nova doação territorial

ao papado: ―Oto, servo dos Apóstolos e, conforme a vontade de Deus Salvador, Augusto Imperador dos Romanos.

―Proclamamos Roma capital do mundo e reconhecemos que a Igreja Romana é a mãe de todas as igrejas. Todavia, não ignoramos também que, durante muito tempo, o desleixo e a incompetência de seus pontífices embaçaram os títulos de sua clareza.

―Com efeito, eles não apenas venderam e alienaram desonestamente as

possessões de são Pedro fora da Cidade, mas também, e dizemos isso com enorme tristeza, os bens que eles possuíam em nossa própria cidade imperial e, ainda, eles os transferiram ilegalmente para o uso comum, a troco de dinheiro. Eles espoliaram São Pedro, São Paulo e seus próprios altares, e em lugar de repararem o seu ato continuam a semear muita confusão.

―Alguns papas, aliás, desprezando os preceitos dos santos pontifíces e desdenhando a Igreja de Roma, ampliaram sua arrogância a ponto de querer estender seu poder apostólico sobre a maior parte de nosso império. De fato, não se

preocupando com o que estavam a perder por causa de seu crime, movidos por sua vaidade esbanjadora e desejosos de obter novos bens, uma vez que tinham dilapidado os próprios, voltaram sua atenção para os bens alheios, isto é, os nossos e o de nosso império.

―A bem da verdade é preciso esclarecer que, segundo as mentiras forjadas por eles mesmos, um certo cardeal-diácono, chamado João, alcunhado de ―sem

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dedos‖, redigiu uma bula de ouro, da qual constava um privilégio que, falaciosamente, dizia ser muito antigo e da autoria de Constantino Magno.

―Igualmente pretendem comprovar que há textos, de acordo com os quais um certo Carlos doou a São Pedro bens pertencentes ao nosso domínio (...)‖.

―Portanto, recusando esses privilégios mentirosos e esses textos fictícios, mediante nossa liberalidade, nós concedemos a são Pedro os bens que nos pertencem, não os bens que lhe pertencem como se fossem nossos.

―Também, por devoção a são Pedro, e conforme o desígnio de Deus, nós elegemos papa o senhor Silvestre, nosso mestre, o ordenamos e o criamos sumo Pontífice, e igualmente, em respeito ao Papa Silvestre, nós oferecemos a são Pedro bens de nosso domínio público, a fim de que possua aquilo que ele vier a ofertar a nosso imperador Pedro, na condição de seu discípulo.

―Por conseguinte, em sinal de estima a nosso mestre, o papa Silvestre, nós oferecemos e doamos a são Pedro oito condados, para que ele os possua por amor a Deus e a são Pedro, a fim de obtermos a nossa própria salvação e a sua, e para que os administrando nosso império e seu pontificado sejam prósperos (...)‖.27

A Doação de Constantino era uma falsificação da qual não podia fluir direito algum. A Doação Otoniana, ao contrário, era uma dádiva da onipotência imperial e, mais do que isso, era um decreto em que o imperador reconhecia os

serviços que tinha recebido de seu antigo mestre Gerberto, agora feito papa, graças à vontade imperial.

Mas ela significava muito mais do que uma simples declaração acerca de sua competência imperial e apostólica. Trazia à luz de maneira evidente, a função de Oto III como supremo monarca e protetor da Igreja.

Todavia, a fundamentação teórica para a concepção do poder que Oto III exercia e do império que governava continuavam sendo os ensinamentos do

Cristianismo, cujos ministros, especialmente o sumo pontífice, eram os dispensadores das graças celestiais, o que deixava um flanco aberto para os teóricos da Hierocracia. Por isso, seu Império ―could call itself Roman only as result of accepting papal ideology, according to which the Roman empire was dispensed by the pope. In either sense the ideological weakneess of Otto‘s position is apparent. It was a governmental theory which bore all germs of its own destruction within itself (…)‖.28

Entretanto, em 23 de janeiro de 1002, Oto III faleceu prematuramente no

castelo de Paterno, Itália, sem deixar herdeiros. Os tronos germânico e imperial foram então ocupados pelo duque

Henrique da Baviera, aparentado com o imperador desaparecido.

27 MH Diplomata Regum et lmperatorum Germaniae. p. 819, v. 2. 28 ULLMANN, Walter. The Growth..., p. 246.

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Henrique II(1002-24) preferiu redirecionar a política germânico- imperial com o fito de consolidar as fronteiras do norte e do leste; por isso, não se incomodou com as questões políticas italianas, indo a Roma apenas duas vezes, durante seu governo, uma das quais em 1014, para ser coroado imperador.

Entretanto, os títulos que ele se atribuiu —servus servorum Christi et Romanorum Imperator augustus secundum voluntatem Dei et salvatoris nostrique liberatoris — denotavam não apenas a idéia que fazia acerca da origem de seu poder imperial, quase sacerdotal, conquanto a expressão servo dos servos de Cristo fosse um plágio de um entre os títulos que os papas se davam, mas também o papel que lhe cabia como monarca. Dado que Cristo lhe confiara o governo do populus christianus, ele tinha a obrigação de lhe propiciar bons pastores, os quais simultaneamente deviam ser os seus mais dedicados auxiliares. Seu principal dever

consistia em trabalhar pela renovação moral e religiosa de seus súditos. Por isso, o soberano deu todo apoio à reforma eclesiástica empreendida por

bispos e monges, estendendo-a aos mosteiros de Hersefeld, Reichneau, Corvey e Gandersheim. Outrossim, interferiu diretamente nas eleições episcopais e abaciais, indicando pessoas idôneas como prelados e abades. Ainda convocou e presidiu muitos sínodos para tratar das questões religiosas, morais e disciplinares do clero e dos fiéis, pois sabia que tais procedimentos ainda contribuíam para o

fortalecimento de seu poder. Os papas, devido às freqüentes crises da política ítalo-romana, consentiam

naquele comportamento do imperador, porque de certa forma se consideravam impotentes para cumprir com todos os seus deveres em territórios longínquos.

Henrique II, por ocasião de sua primeira visita a Roma (1014), com a anuência do Papa Bento VIII (1012-24) convocou um sínodo que se reuniu em Ravena, durante o qual foram destituídos de seus cargos todos os clérigos que

não tinham sido canonicamente ordenados. Pouco depois, exigiu que todos os bispos e abades prestassem contas relativas aos bens que lhes haviam sido confiados para administrar.

Por causa das investidas bizantinas contra o Patrimonium Petri e dos conflitos entre a aristocracia italiana, em 1020, Bento VIII solicitou ao imperador que regressasse à península e o defendesse. Henrique II atendeu à convocação, assegurando à Igreja Romana a proteção de que necessitava. Nessa mesma oportunidade, ele reconfirmou as doações territoriais que seus

antecessores haviam feito ao papado, mas reiterou seu direito quanto a aprovar a pessoa eleita para a Sé Apostólica.

Uma vez mais o imperador e o pontífice convocaram, reuniram e presidiram um sínodo em Pavia, durante o qual todos os sacerdotes e bispos nicolaítas que haviam distribuído bens eclesiásticos entre seus filhos foram destituídos de suas funções e intimados a restituí-los.

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Henrique II faleceu perto de Göttingen, na Alemanha. Conrado, duque da Francônia, foi eleito e depois ungido e coroado rei

germânico em Mogúncia em 8 de setembro de 1024. Ao contrário de seu antecessor, ao eleger e investir bispos e abades, considerou apenas suas habilidades

políticas, não se importando muito se os escolhidos eram virtuosos, impolutos, caridosos e piedosos, requisitos minimamente indispensáveis para o exercício da tarefa de pastor.

Essa atitude do imperador se explica, porque ele entendia que a renovado imperialis, acima de tudo, tinha de ser política. Para tanto, era necessário dar-lhe um outro suporte teórico, que consistiu na renovatio legum romanorum. Noutras palavras, Conrado II tentou governar seus domínios, inspirando-se na antiga legislação romana. Por isso, ele foi o primeiro dos imperadores a

estimular os estudos de Direito Romano. Em 1027, ele foi coroado imperador pelo Papa João XIX (1024- 33). Por causa

de o imperador praticar a investidura, com fins meramente políticos, ao falecer, em 1039, tinha contra si a antipatia dos prelados alemães adeptos mais radicais da reforma religiosa e moral do clero e de toda a Cristandade a partir da Igreja.

Seu filho, Henrique III(1039-56), em seguida, foi eleito rei e antes mesmo de vir a ser coroado imperador passou a usar o título de Rex Romanorum, indicando

com isso que o fato de ter sido escolhido como soberano germânico o fazia igualmente o senhor do império.29

O novo Imperador não descurou dos assuntos meramente políticos, continuando, para tanto, a servir-se da colaboração do Alto clero, mas, retomando o procedimento da maior parte de seus antecessores, teve o cuidado de escolher pessoas dignas de exercer os ministérios pastoral e pontifício, pois convicto de que igualmente era o vicarius Dei, tinha a obrigação de também zelar pela vida

espiritual e moral de todos os seus súditos, clérigos e leigos. Em 1046, a Itália central e Roma estavam novamente conturbadas por uma

guerra envolvendo a nobreza local, papas e antipapas. Henrique III resolveu ir à península com suas tropas, a fim de restabelecer a ordem, no que foi bem sucedido. Com relação à Igreja, convocou um sínodo a se reunir em Sutri para tratar de seus problemas. Durante o mesmo, depôs o Papa Gregório VI (1045-46) e os antipapas Silvestre III e seu antecessor Bento IX. Em seguida, fez eleger sumo pontífice seu amigo, o bispo Suitger de Bamberg, o qual tomou o

29 FOLZ, R. L‘Idée d‘Empire en Occident du Xe au XIVe Sièck. Paris: Aubier, 1953, p. 82 ―Dès la

mort de son père, on voit Henri III s‘intituler Rex Romanorum, comme s‘il voulait affirmer que, dès

son avènement en Germanie, il était, avant même de ceindre le diadème des Césars, le souverain de l‘Empire romain: ce titre qui garantit la succession de la lignée royale à l‘Empire, exprime en dernière

analyse un rapprochement toujours plus grand entre le regnum et l‘Imperium (...)‖.

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nome de Clemente II(1046-47). No dia de Natal, após o término do sínodo, Henrique III foi coroado imperador.30

Todavia, nesse ínterim o grupo clerical defensor da reforma da Igreja a partir de si mesma havia crescido e se fortalecido a tal ponto que em 1049 conseguiu

eleger papa um de seus partidários, Leão IX (1049-54). Esse dado e a morte prematura de Henrique III em 1053, legando o trono alemão a seu filho Henrique (IV) com apenas quatro anos de idade, permitiu que o mencionado grupo reformista aos poucos assumisse efetivamente o governo da Igreja e retomasse o pensamento hierocrático em sua primeira e mais genuína aspiração: cabia à Igreja e aos seus dirigentes, especialmente o papa, na condição de caput clericorum, cuidar de seus próprios assuntos e interesses. Mas naquela sociedade, certamente agora, sob o aspecto da concepção política, mais cristocêntrica do que teocêntrica, por

acaso não caberia também ao sumo pontífice vir a ser o seu monarca? Se os próprios imperadores germânicos haviam reforçado o primado magisterial da Igreja Romana, não era incoerência negar-lhe o primadojurisdicional, ambos integrantes do mandatum petrino?

30 ULLMANN, Walter. The growth... p. 251: ―Sutri signifies the consummation of the monarch‘s

supreme protetective functions: Christendom had to be protected against these unworthy individuals‖.

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Coleção FILOSOFIA da EDIPUCRS:

1 - ZILLES, Urbano

Fé e razão no pensamento medieval

2 - STREFLING, Sérgio R.

O argumento ontológico de S. Anselmo

3 - SOUZA, Draiton G.

O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach

4 - WOLLMANN, Sérgio

O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes

5 - PAVIANI, Jayme

Escrita e linguagem em Platão

6 - CIRNE-LIMA, Carlos R. V.

Sobre a contradição

7 - BIRCK, Bruno Odélio

O sagrado em Rudolf Otto

8 - OLIVEIRA, Manfredo Araújo de

Sobre a fundamentação

9 - PEREIRA, Julio Cesar R.

Epistemologia e Liberalismo

10 - DE BONI, Luis A.

Bibliografia sobre filosofia medieval

11 - ZILLES, Urbano

O racional e o místico em Wittgenstein

12 - ZITKOSKI, Jaime José

O método fenomenológico de Husserl

13 - OLIVA, Alberto

Conhecimento e liberdade

14 - CALDAS, Sérgio

A teoria da história en Ortega y Gasset a partir da razão histórica

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206

15 - PIZZI, Jovino

Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa

16 - FLICKINGER, Hans-Georg / Wolfgang Neuser

A teoria de auto-organização: as raízes da interpretação construtivista do

conhecimento

17 - MEISTER, José A. F. Amor x Conhecimento. inter-relação ético-conceitual em Max Scheler

18 - RABUSKE, Edvino A.

Filosofia da Linguagem e Religião

19 - SILVA, Ursula Rosa da

A Linguagem muda e o Pensamento falante: sobre a Filosofia da Linguagem em

Maurice Merleau—Ponty

20 - PELIZZOLI, Marcelo Luiz

A relação ao outro em Husserl e Levinas

21 - ZILLES. Urbano

Teoria do Conhecimento

22 - SARDI, Sérgio Augusto

―Diálogo‖ e Dialética em Platão

23 - DE BONI, Luis A.

Lógica e Linguagem na idade Média

24 - PAIM, Antonio

Problemática do Culturalismo

25 - LUFT, Eduardo

Para uma crítica interna ao sistema de Hegel

26 - TIBURI, Marcia

Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W. Adorno

27 - GRINGS, Dom Dadeus

O homem diante do universo

28 - NEUSER, Wolfgang A infinitude do mundo

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207

29 - RIBEIRO, Eduardo Ely Mendes

Individualismo e verdade em Descartes

30 - BOMBAS SARO, Luiz Carlos

Ciência e mudança conceitual

31 - ZILLES, Urbano

Gabriel Marcel e o existencialismo

32 - VÁRIOS

Fundamentalismo

33 - SOUZA, José Antonio de C. R. de

O Reino e o sacerdócio