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1 Organizando o debate: dirigentes públicos no Brasil 1 Regina Silvia Pacheco 2 Este texto tem a pretensão de organizar os termos do debate sobre dirigentes públicos no Brasil. Isto porque o tema tem sido tratado sob ângulos que, a nosso ver, não contribuem para atualizar o debate e fazê-lo dar conta dos desafios atuais que envolvem o Estado e suas organizações. O tratamento deste tema é marcado por dois legados: um legado histórico, informado pelas práticas tradicionais de nomeação de dirigentes públicos no Brasil; um legado analítico, constituído pela predominância do paradigma clássico da administração, que permanece como referência antitética àquelas práticas (Pacheco, 2003). Assim, muitas vezes o debate parece não avançar pois remete sempre a uma inadequação histórica dos políticos brasileiros ao agirem no sentido exatamente inverso do que prega a boa teoria: esta, fundada na separação entre política e administração; aqueles, fazendo amplo uso dos cargos de livre nomeação como instrumentos do jogo político-partidário, ou ainda como expressões ainda mais retrógradas do patrimonialismo, via nepotismo ou práticas clientelistas. O legado histórico é só nosso, enquanto o legado analítico é compartilhado por grande parte dos autores que se dedicam aos temas da organização e funcionamento do Estado. Há evidências de outras práticas, no jogo das nomeações pelos políticos? Sustentaremos neste texto que sim, já relatadas pela literatura, mas que permanecem esquecidas, pois prevalece no debate a visão de que o jogo foi sempre vicioso. Há também outras abordagens analíticas sobre o tema, que buscaremos sintetizar. Procuraremos sistematizar os termos do debate, buscando estabelecer as distinções necessárias, de forma a desagregar o tema e contrapor os argumentos a algumas evidências. Não é propósito do texto comprovar hipóteses empiricamente; pretendemos contribuir para reescrevê- las, de forma a facilitar novos estudos empíricos sobre o tema. O legado histórico O uso das nomeações como moeda de troca do jogo político-partidário ou associado ao clientelismo é tema dominante na literatura. A visão que predomina sobre o tema fixa, como legado histórico, as práticas clientelistas e a politização como critérios únicos utilizados pelos sucessivos governos no Brasil, nas três esferas de poder, para a nomeação de dirigentes. Ignora, assim, análises mais detalhadas, que apontaram uma variedade de critérios de nomeação e a combinação entre eles, como estratégias utilizadas pelos políticos. Além disso, tende a não diferenciar, no argumento, as práticas utilizadas para a ampliação do quadro de funcionários públicos, tipicamente clientelistas, das estratégias de nomeação para cargos de direção. Cirstalizou-se,assim, no debate, uma visão simplista e nebulosa sobre o tema. 1 Trabalho apresentado ao I Congresso CONSAD de Gestão Pública, realizado em Brasília de 26 a 28 de maio de 2008, como parte integrante do painel “SOBRE DIRIGENTES PÚBLICOS: O QUE HÁ DE NOVO NO BRASIL?” 2 Professora da EAESP-FGV – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Contato: [email protected]

Organizando o Debate - Dirigentes Públicos No Brasil

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PACHECO, Regina Silvia. Organizando o debate: dirigentes públicos no Brasil. I Congresso CONSAD de Gestão Pública, Brasília, 2008.

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Organizando o debate: dirigentes públicos no Brasil 1

Regina Silvia Pacheco 2

Este texto tem a pretensão de organizar os termos do debate sobre dirigentes públicos no Brasil. Isto

porque o tema tem sido tratado sob ângulos que, a nosso ver, não contribuem para atualizar o debate e

fazê-lo dar conta dos desafios atuais que envolvem o Estado e suas organizações. O tratamento deste

tema é marcado por dois legados: um legado histórico, informado pelas práticas tradicionais de

nomeação de dirigentes públicos no Brasil; um legado analítico, constituído pela predominância do

paradigma clássico da administração, que permanece como referência antitética àquelas práticas

(Pacheco, 2003). Assim, muitas vezes o debate parece não avançar pois remete sempre a uma

inadequação histórica dos políticos brasileiros ao agirem no sentido exatamente inverso do que prega a

boa teoria: esta, fundada na separação entre política e administração; aqueles, fazendo amplo uso dos

cargos de livre nomeação como instrumentos do jogo político-partidário, ou ainda como expressões

ainda mais retrógradas do patrimonialismo, via nepotismo ou práticas clientelistas. O legado histórico é

só nosso, enquanto o legado analítico é compartilhado por grande parte dos autores que se dedicam aos

temas da organização e funcionamento do Estado.

Há evidências de outras práticas, no jogo das nomeações pelos políticos? Sustentaremos neste

texto que sim, já relatadas pela literatura, mas que permanecem esquecidas, pois prevalece no debate a

visão de que o jogo foi sempre vicioso. Há também outras abordagens analíticas sobre o tema, que

buscaremos sintetizar. Procuraremos sistematizar os termos do debate, buscando estabelecer as

distinções necessárias, de forma a desagregar o tema e contrapor os argumentos a algumas evidências.

Não é propósito do texto comprovar hipóteses empiricamente; pretendemos contribuir para reescrevê-

las, de forma a facilitar novos estudos empíricos sobre o tema.

O legado histórico

O uso das nomeações como moeda de troca do jogo político-partidário ou associado ao clientelismo é

tema dominante na literatura. A visão que predomina sobre o tema fixa, como legado histórico, as

práticas clientelistas e a politização como critérios únicos utilizados pelos sucessivos governos no Brasil,

nas três esferas de poder, para a nomeação de dirigentes. Ignora, assim, análises mais detalhadas, que

apontaram uma variedade de critérios de nomeação e a combinação entre eles, como estratégias

utilizadas pelos políticos. Além disso, tende a não diferenciar, no argumento, as práticas utilizadas para a

ampliação do quadro de funcionários públicos, tipicamente clientelistas, das estratégias de nomeação

para cargos de direção. Cirstalizou-se,assim, no debate, uma visão simplista e nebulosa sobre o tema.

1 Trabalho apresentado ao I Congresso CONSAD de Gestão Pública, realizado em Brasília de 26 a 28 de maio de

2008, como parte integrante do painel “SOBRE DIRIGENTES PÚBLICOS: O QUE HÁ DE NOVO NO BRASIL?” 2 Professora da EAESP-FGV – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Contato: [email protected]

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Dentre as análises mais detalhadas sobre o tema, podemos destacar as de Schneider (1991) e

Geddes (1994). O primeiro, estudando a designação de dirigentes durante o período militar, apontou os

aspectos positivos do sistema de nomeações existente na administração pública brasileira, que permitia

a circulação dos altos escalões, diferentemente do modelo clássico, onde os postos de direção são

reservados aos funcionários de carreira daquele mesmo órgão. Este autor considerou o sistema de

nomeações como um dos fatores que contribuíram para o alcance de resultados econômicos obtidos no

período; destacou a circulação como quebra de vínculos corporativos e estímulo para a orientação

desses dirigentes para resultados: “Fazer as coisas leva a uma promoção mais rápida do que defender a

instituição” (Schneider, 1991, p.61).

O estudo de Geddes (1994) é provavelmente a referência mais abrangente sobre o tema das

estratégias de nomeação no Brasil. Tendo realizado um estudo comparativo em seis países latino-

americanos 3, para o período 1945-1993, excluindo regimes militares, a autora identifica variações

significativas entre os diferentes governos, num mesmo país. No Brasil, seu “índice de estratégia de

nomeação” levou-a a classificar as preferências presidenciais como “altamente politizadas” nos governos

Dutra (1946-51), Goulart (1963-64) e Sarney (1985-1990); “mistas ou compartimentadas” (recorrendo à

competência como principal critério para os postos-chave, combinada com nomeações políticas para os

demais postos) nos governos Vargas (1951-54), Kubitschek (1956-61) e Collor (1990-92); “anti-

partidárias” (ignorando os partidos de sustentação) nos governos Café Filho (1954-55) e Quadros (1961).

Se Geddes não tivesse encontrado variações nas práticas dos governos e dos partidos políticos

no poder, talvez não tivesse entitulado seu livro “Dilema dos políticos”: caso a lógica fosse única, a de

espoliação, não estaríamos diante de um dilema, mas sim de uma escolha única. Para a autora,o dilema

dos políticos – presidentes e seus parceiros de coalizão – se expressa por meio do conflito entre a

necessidade de sobrevivência política imediata e os interesses coletivos de longo prazo quanto à

performance econômica e estabilidade do regime; para os partidos que sustentam uma coalizão no

poder, o dilema resulta também do problema da ação coletiva – nenhum partido da coalizão dispõe-se a

abrir mão de suas indicações políticas, mas todos os partidos sabem que, se o desempenho dos

dirigentes for pífio, aumentarão os riscos de quebra da coalizão, situação em que todos os seus

integrantes perderiam tudo (Geddes, 1994, p.17-8).

Outros estudos mostram como, historicamente no Brasil, os governos utilizaram a prática de

nomeação extensiva para empregos públicos de baixa qualificação como instrumento do jogo clientelista,

mas poupando setores considerados estratégicos. Dentre eles, Martins (1993) refere-se a um “duplo

padrão”: a combinação de baixos salários e baixa qualificação, especialmente nos empregos públicos na

área social, com acesso meritocrático e salários adequados para os altos escalões da burocracia, na

área econômica e na diplomacia. Para o autor, o sucesso do projeto nacional-desenvolvimentista deveu-

se em parte à estratégia de manter os altos escalões da burocracia e os cargos de direção das grandes

empresas estatais “relativamente livres das investidas clientelistas” (Martins, 1993:17) – estratégia que

3 Os países analisados foram, além do Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela.

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prevaleceu nos governos Vargas (2º governo) e JK, tendo sido aprofundada pelos militares por meio da

ênfase à tecnocracia e à expansão do setor paraestatal.

Outros autores apontam na mesma direção: Nunes (1997), retomando a pesquisa realizada para

o período 1945-73 por Santos (1982), considerou que, com exceção do governo Goulart 4, “a lógica

clientelista dos partidos políticos não invadiu os escalões técnicos de muitas agências importantes. A

patronagem parece ser mais influente na burocracia tradicional e no âmbito dos governos estaduais e

prefeituras” (Nunes, 1997, p.91). Para Nunes (1997, p.92), “o núcleo mais técnico do Estado foi insulado

contra a patronagem. Mais uma vez esse processo de insulamento foi mais dramático durante o regime

militar”.

Mais do que lógica única, a relação Estado-sociedade no Brasil reflete a combinação de quatro

“gramáticas” segundo definição de Nunes (1997): à gramática tradicional (clientelista) somam-se outras

três gramáticas modernizantes (corporativismo, insulamento burocrático, universalização de

procedimentos). Referindo-se ao período pós-1945, o autor afirma: “Se o clientelismo era influente em

muitos níveis, o insulamento burocrático era central em muitos outros.” (id., p.92).

Cabe então aqui a primeira distinção: as práticas clientelistas marcaram a constituição dos

quadros de funcionários, mais do que a nomeação de dirigentes – pelo menos em determinados setores

do Estado. O spoil-system poupou áreas estratégicas, ou ilhas de excelência, cujos quadros e dirigentes

tiveram atuação decisiva para as realizações de governo, durante o nacional-desenvolvimentismo e a

correspondente expansão do Estado brasileiro.

A complexidade das análises e a diversidade das realidades encontradas pelos autores acima

citados contrasta com a persistência e dominância da visão homogeneizadora sobre o tema – segundo a

qual, no Brasil, os cargos de livre nomeação sempre foram preenchidos segundo a lógica clientelista ou

como instrumento do jogo político-partidário. Veremos, adiante, como esses autores classificaram os

diversos critérios utilizados para as nomeações; nem sempre encontraram critérios políticos ou

clientelistas como o fator exclusivo das nomeações.

O legado analítico

A produção acadêmica sobre administração pública elegeu como um de seus principais temas a relação

entre política e administração – tanto na tradição norte-americana, inaugurada por Woodrow Wilson

(1887), quanto na européia, a partir dos escritos de Weber (1969) 5. Muitas vezes assumindo um viés

4 “O Governo Goulart, segundo os dados de Wanderley Guilherme dos Santos, violou esta regra, utilizou o núvleo

tecnoburocrático como moeda política e patrocinou as mais altas taxas deinstabilidade para o núcleo técnico em todo o período pós-45” (Nunes, 1997, p.92). 5 Uma corrente entre autores norte-americanos, liderados por Lynn Jr., discordam da interpretação de que a

separação entre política e administração estivesse presente na obra dos clássicos; segundo aquele autor, a visão dicotômica entre política e administração foi forjada nos anos 1950, a partir do emprego do termo por Sayre (1958, citado por Lynn, 2001). No entanto, tal debate parece bastante circunscrito à academia norte-americana; a literatura de maior difusão identifica, nos clássicos, a separação entre política e administração, como conteúdo estruturador da área de conhecimento sobre administração pública.

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normativo, autores defenderam uma nítida separação entre políticos e burocratas, apontando a

importância da constituição das burocracias de Estado por meio das chamadas “reformas do serviço

civil” que, nos países desenvolvidos, precederam a expansão das atividades do Estado ao longo do

século XX. Análises mais recentes sobre os países menos desenvolvidos apontam a ausência de tais

burocracias profissionais de Estado como sério obstáculo ao desenvolvimento (Evans e Rauch, 1999) –

visão compartilhada por organismos internacionais e por muitos autores nacionais.

A pesquisa comparada de Aberbach, Putnam e Rockman (1981) representou um marco neste

debate, ao substituir os termos da dicotomia entre políticos e burocratas por um continuum, destacando

a figura híbrida do burocrata por sua participação no processo decisório 6. No ano anterior, um outro

estudo trouxe evidências que alteraram a visão clássica sobre a suposta separação ente políticos e

burocratas: Lipsky (1980) publicou Street-level Bureaucracy, destacando o amplo poder discricionário

dos funcionários envolvidos diretamente na prestação dos serviços, aproximando implementação e

formulação da política pública – fases que, segundo o paradigma clássico da administração, seriam

separadas e atribuídas respectivamente aos burocratas e aos políticos. Estas duas obras mostravam os

limites da visão recorrente sobre o caráter neutro da burocracia; não tiveram, no entanto, impacto no

debate sobre a alta direção pública, que continuou colocando o tema em termos de insider (funcionário

de carreira) ou outsider (em geral, visto como sinônimo de político).

Outros dois desenvolvimentos marcaram as análises em torno da burocracia, impondo restrições

à sua visão virtuosa: a teoria da escolha racional, atribuindo aos burocratas o rent-seeking e alertando

quanto ao risco permanente de captura (Buchanan e Tullock, 1965; Krueger, 1974); a teoria democrática,

discutindo os imperativos da accountability e a necessidade de controle sobre a burocracia (Przeworski,

1996; Loureiro, 2001). Segundo tais perspectivas, “orientando-se por padrões de conduta formalistas,

quase sempre auto-referidos, as burocracias governamentais freqüentemente atuam de forma

autônoma, ou são capturadas por interesses particularistas de clientelas específicas. Configuram, assim,

uma situação bem distante do tipo ideal construído por Weber” (Loureiro, 2001, p.50).

Muitos estudos se seguiram apontando o desempenho de papéis políticos pelos burocratas,

especialmente em regimes presidencialistas, como nos Estados Unidos, onde “a situação de autoridade

dividida encoraja os funcionários a jogar um Poder contra o outro e mesmo atuar como um ‘Poder

autônomo’” (Loureiro, op.cit., p.52). Ackerman (2000, p.710), comparando o sistema norte-americano ao

britânico, mostra clara preferência por Westminster, onde os altos funcionários têm o Primeiro Ministro

como chefe e pautam-se pela reputação que obtêm por meio da qualidade do aconselhamento que

prestam; já o sistema norte-americano, segundo o autor, gera incentivos distintos, que levam os

administradores públicos a procurarem alianças no Congresso como meio de impor sua agenda ao

Presidente.

6 Os autores compararam a atuação de funcionários de carreira e políticos em sete países: Estados Unidos, Grã-

Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda e Suécia.

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Apesar da grande difusão destes trabalhos, tidos desde então como referência em várias

temáticas de pesquisa, sua visão crítica sobre a burocracia não chegou a ser incorporada no debate

sobre dirigentes públicos. No Brasil, ainda predomina a visão de que os dirigentes públicos deveriam ser

funcionários de carreira, integrantes da burocracia de Estado, uma vez que esta é considerada sempre

virtuosa e defensora do interesse público, enquanto que os nomeados externos são identificados com a

“politização indevida” 7.

No Brasil, os estudos existentes sobre o tema estiveram vinculados à tradição de pesquisas

sobre elites no poder. Enfatizaram, em geral, a formação dos gabinetes presidenciais (Amorim Neto,

1994) e interessaram-se em traçar a origem social dos ministros. A recente pesquisa de D’Araujo (2007)

filia-se a esta tradição, estendendo a análise emprírica aos ocupantes de cargos de direção na

administração pública federal durante o governo Lula e tratando-os como “a elite do poder”.

Outro enfoque trata da relação entre políticos e burocratas, analisando o provimento de cargos

no alto escalão do governo federal a partir da Nova República (Loureiro et al., 1998). Os autores rejeitam

a visão dicotômica sobre política e burocracia e afirmam que a literatura “procura geralmente estabelecer

uma resposta tecnocrática, tentando separar radicalmente a atuação técnica dos

funcionários,considerada meritocrática, do padrão imposto pelos políticos, classificado quase sempre

como clientelista. Esta tendência possui um forte peso na América Latina e, em particular, no Brasil”

(Loureiro, Abrucio e Rosa, 1998, p.48). Os autores classificam os ocupantes dos cargos de alto escalão

como policymakers, compatível com o fato de analisarem o perfil de ocupantes de cargos em ministérios;

não se propõem a discussão sobre dirigentes públicos. Sua contribuição, no entanto, é fundamental, pois

expressam com clareza uma visão distinta da que prevalece na literatura sobre a dicotomia políticos x

burocratas.

Desenvolvimentos recentes

No cenário internacional, o debate avançou por caminhos separados, de um lado entre autores ligados à

gestão pública, de outro os cientistas políticos. Os últimos, interessados pelas instituições, tomam a

burocracia como um todo e discutem as formas de controle que podem fazer os burocratas responderem

às preferências dos políticos; não distinguem, em geral, a figura do dirigente público. Os primeiros vêm

identificando a emergência desta nova figura.

As reformas empreendidas a partir dos anos 1980, com a Grã-Bretanha na dianteira, trouxeram

à cena um novo ator, cuja importância foi expressa pelo slogan “let the managers manage”. Dito de outra

forma, “não há management sem managers ... as reformas (em curso) exigem dirigentes” (Longo, 2007,

p.168). Como um dos componentes de um conjunto de mudanças na organização e funcionamento do

Estado, voltadas ao atingimento de resultados com eficiência, a gestão passou a concentrar boa parte

dos esforços de reforma. Assim, agencification, contratualização de resultados, orçamento por produtos,

contabilidade gerencial, ao lado de mudanças na gestão de recursos humanos, foram sendo introduzidos

7 Expressão utilizada por Abrucio (2007).

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no setor público, ao mesmo tempo em que consolidava-se o espaço da direção, ocupada por

profissionais cujas atribuições e competências distinguiam-se tanto dos políticos como dos burocratas.

Segundo Longo (2007), a emergência deste novo ator, o dirigente público, tem raízes nos

mesmos processos de transformação que levaram à crise do paradigma weberiano; as mudanças teriam

levado a um novo imperativo para a legitimidade do Estado – antes baseada no cumprimento da lei,

agora “deve ser cada vez mais complementada pela legitimidade uqe deriva da eficácia” (Longo, op.cit.,

p.166). Citando Richards (1994), Longo desenvolve o argumento de que a lógica do período precedente,

onde tanto políticos como profissionais conquistavam legitimidade pela expansão do Estado do bem-

estar, foi superada pela crise de recursos e restrição dos gastos públicos, impondo a “necessidade de

introduzir disciplina no sistema”, abrindo assim espaço para “a incorporação dos managers, portadores

dos valores e saberes próprios da racionalidade econômica” e permitindo “orientar a administração na

produção de melhoras de eficiência” (Longo, 2007, p.167).

Para o autor, mesmo em países que não passaram por reformas profundas e cuja cultura

administrativa é distinta daquela dos países anglo-saxões ou escandinavos, “o formato dual

(políticos/funcionários) é um modelo insuficiente e ameaçado; o que encontraremos, na maioria dos

casos, é um espaço por preencher: o espaço que corresponderia ao exercício de uma função diretiva

pública” (Longo, id., p.168). E acrescenta: “o espaço da gestão pública é disputado ... pelos dois atores

tradicionais – a classe política e a função pública profissional ... (mas) nenhum deles pode responder

adequadamente aos desafios apontados” (ibid., p. 168).

O dirigente público, como dito, pauta sua atuação pela racionalidade econômica, mas de

maneira distinta do administrador de empresas: seu desafio é criar valor público (Moore, 1995). Este

modelo de direção pública foi desenvolvido pela Kennedy School of Government; daí decorrem as

competências desejadas deste novo ator, o dirigente público, e os conteúdos e formatos dos programas

de desenvolvimento voltados a este segmento.

No Brasil, são poucos os estudos que adotam o dirigente público como categoria analítica

(Pacheco, 2002; De Bonis, 2008). O tema foi introduzido por Bresser Pereira, na proposta de reforma

gerencial do Estado, defendendo maior flexibilidade a ser concedida aos administradores, em troca da

cobrança de resultados; apontou o que chamou de “os dois mitos de Brasília”, o mito das carreiras e o

mito dos DAS (cargos de livre nomeação), como focos que desviavam a atenção do problema principal:

o Estado precisa de administradores, não apenas de burocratas organizados em carreiras, explicitando

ainda que os avanços da administração empresarial seriam úteis sempre que adaptados ao setor público

e aos valores republicanos (Bresser Pereira, 1996)..

A partir daí, a ENAP desempenhou importante papel no desenvolvimento do tema: apoiou alguns

projetos de pesquisa 8; realizou pesquisa sobre as competências dos ocupantes de cargos de direção no

governo federal; por meio da cooperação internacional trouxe especialistas da Inglaterra, França,

8 Dentre eles, o de Loureiro et al. (1998).

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Espanha e Canadá, para tratar de gerenciamento no setor público e o papel dos dirigentes e gerentes

públicos 9. No Congresso do CLAD, em 2002, Pacheco (2002) e Longo (2002) organizaram um “painel-

manifesto” atraindo grande audiência 10. No mesmo ano, Figueroa (2002) realiza para o BID Banco

Interamericano de Desenvolvimento pesquisa comparada sobre os sistemas de dirigentes públicos no

Brasil, Chile, Colômbia e República Dominicana. E Gaetani (2002) discute o tema sob a perspectiva das

estratégias de governo – escolher entre insiders (funcionários de carreira) ou outsiders (externos à

máquina).

Insiders ou outsiders?

Vários países começaram a tratar separadamente um conjunto de “dirigentes públicos profissionais,

sujeitos ao mandato político, mas aos quais se reconhece uma esfera própria de decisão, que é

estabelecida conforme padrões estabelecidos em contratos baseados no princípio de responsabilidade

por resultados” (Longo, 2007, Laegreid, 2000). O Reino Unido, em 1996, criou o Senior Civil Service,

com 3.000 cargos superiores da administração britânica, incluindo todos os diretores executivos de

agências, alguns recrutados fora do serviço civil mediante contrato de resultados por tempo determinado

e renovável, a maioria com contrato por tempo indeterminado, todos remunerados segundo desempenho

(Longo, 2007); vários outros países seguiram a mesma direção (OECD, 2003).

Nessa perspectiva, as análises sobre o papel e competências requeridas dos dirigentes públicos

não se confundem com o debate sobre a origem desses quadros – internos ou externos às carreiras de

Estado. Os desdobramentos apontam como recrutar e selecionar os melhores candidatos para os

postos de direção, como criar sistemas de incentivos ao alcance de resultados, como avaliá-los, como

remunerá-los. E hoje as pesquisas já fazem balanços de mais de uma década de experiência dos

sistemas de executivos públicos.

Parte da pesquisa empreendida por Aberbach, Putnam e Rockman foi atualizada e publicada em

um número especial de Governance em 2003 11. Na introdução, Aberbach (2003) assinala mudanças

modestas quanto aos achados anteriores: uma participação maior e crescente de mulheres dentre os top

administrators; a menor importância da formação em direito como requisito para ocupar os postos de

direção, em países cuja tradição era fortemente jurídica, como na Alemanha e Suécia, com importância

crescente do alinhamento político; e a tendência contrária nos Estados Unidos (Aberbach, 2003ª), onde

desponta uma maior orientação técnica e jurídica entre os top administrators, “menos orientados para

proteger interesses de clientelas específicas ou grupos de sustentação política” (constituencies). As

mudanças mais pronunciadas ocorreram na Grã-Bretanha, com o processo de criação de agências

9 Dentre os especialistas, Serge Alecian e Dominique Foucher, cujo livro tornou-se importante referêmcia sobre

gerenciamento no setor público (Alecian e Foucher, xxx) e Francisco Longo, cujo livro também tornou-se referência na gestão de recursos humanos no setor público (Longo, 2007). 10

Título do painel: “No hay cambio sin directivos: desarrollo de competencias de dirección para una nueva gestión pública”. VII Congresso Internacional do CLAD, Lisboa. 11

Ver Govenance 16(3), July 2003.

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executivas (agencification), o aumento do número de nomeados externos (political appointees), um

aumento geral no grau de subordinação de burocratas e a importância crescente dos think tanks como

fontes alternativas de policy advice (Wilson e Baker, 2003).

Ackerman (2000, p.706-708), aponta problemas que afetam os top administrators nos EUA: os

political appointees, cuja grande maioria tem experiência substantiva no setor público, enfrentam

problemas derivados da curta permanência à frente de seus postos (dois anos, em média), o que,

combinado com o “fator Washington’ 12, gera stress e muitas vezes faz do trabalho no governo um

trampolim em busca de uma colocação mais segura. A principal diferença, em relação ao modelo

britânico, é o grau de previsibilidade conferido pelo contrato plurianual de desempenho – e não com o

fato de o administrador ser insider ou outsider.

Ackerman aponta outros dois problemas: o longo tempo para preencher os cargos vagos 13 e a

‘porta giratória’ na saída (o trabalho no setor privado) 14. O primeiro aspecto, como mostra a experiência

do Chile, requer soluções temporárias, pois o processo realmente requer tempo – média de 6,3 meses

no Chile para o provimento de um dirigente 15. E o segundo aspecto não é exclusivo de outsiders: é

comum ocorrer também com funcionários, depois de ocuparem altos postos em governos, licenciarem-se

e buscarem colocações fora – seja pela melhor remuneração,ou porque não seriam chamados a ocupar

cargos de direção sucessivos caso haja grande alternância no poder.

Gaetani (2002, p.272), no entanto, parece associar maior risco de corrupção aos outsiders e não

integrantes das carreiras federais. Comentando o “fator Brasília” – a necessidade de mudar-se para uma

capital administrativa cujos serviços e vida cultural são considerados, por muitos, pouco atrativos – o

autor afirma: “Brasília é também um problema quando se trata de trazer quadros que não são do

Executivo Federal, outsiders ou de outros níveis de governo. Sem um pacote de incentivos adequado, o

resultado é um recrutamento de qualidade discutível e o aumento da propensão a problemas

decorrentes de corrupção, má gestão de gastos públicos, captura e outros” . Tal visão nos parece

equivocada – pressupõe que haja correlação entre incentivos e probidade. O problema tem mais a ver

com política remuneratória para quadros dirigentes do que com propensão de não-brasilienses a

corromperem-se.

Nomeações x carreiras

12

Semelhante ao “fator Brasília” - a mudança para uma capital administrativa. 13

De 6 a 20 meses, segundo estudo do GAO General Accounting Office realizado em 1994 junto a 5 grandes ministérios, Air Force, Navy e EPA Environmental Protection Agency. 14

Segundo o autor, regras de conduta ética como a quarentena ou a proibição de trabalhar no mesmo setor são iniciativas que reduzem mas não eliminam o problema (Ackerman, 2000, p.709). 15

Desde 2004 o Chile adotou um sistema inovador de escolha dos dirigentes, que prevê ampla divulgação do posto, definição das competências requeridas para o cargo, processo seletivo com a escolha de 3 a 5 candidatos, e submissão dos elegíveis à decisão final do chefe do Poder Executivo. Ver: Bau Aedo (2005); Lavanderos eSilva (2008); Costa (2007).

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No Brasil, grande parte do debate sobre dirigentes públicos envolve, além de aspectos relativos ao

conjunto de cargos de livre nomeação, temas referentes às falhas de estruturação das carreiras e

remuneração no setor público. Como mostrou Bresser Pereira (1996), as carreiras são sistematicamente

desmontadas por pressões corporativas que conseguem aumentar os salários iniciais – diminuindo a

amplitude salarial da carreira. Por outro lado, a “síndrome da isonomia” (Barbosa, 1996, p.88) impõe

sérios limites a que sejam definidas e implementadas políticas salariais diferenciadoras. Esses são

fatores que confluem para a utilizaçãodos cargos de livre nomeação como complemento salarial de

funcionários de carreira, confundindo ainda mais o debate sobre dirigentes públicos.

Os argumentos utilizados pela ministra da Casa Civil, ao buscar explicar o aumento do número

de cargos de livre nomeação no governo Lula, exemplificam a confusão: a ministra Dilma Roussef

defendeu o aumento do número de cargos como medida voltada à profissionalização do serviço público,

justificando: “Assim cria-se uma meritocracia; se não fizermos isso, perderemos nossos melhores

quadros." (FolhaOnline, 04out07).

Em ocasião anterior, o governo Lula justificou a criação de 2.793 cargos com a necessidade de

substituir funcionários que haviam sido terceirizados pelo governo anterior 16. Assim, misruram-se vários

problemas existentes na gestão de recursos humanos na administração pública, o que não contribui para

um debate mais consistente sobre a nomeação de dirigentes públicos.

O fato de não termos nunca concluído a constituição de uma burocracia meritocrática, é também

um fator que impede avanços no debate sobre dirigentes públicos. O argumento recorrente é o da

“necessidade de profissionalização do serviço público”, que algumas vezes é utilizado para usar

nomeações como complementação de salário, como visto acima, outras significa defender a reserva de

cargos de direção para funcionários de carreira. A política de concursos anuais, iniciada pelo Ministro

Bresser Pereira à frente do MARE Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado a partir de

1995, aumentos salariais diferenciados, a política de capacitação permanente, e a tentativa de criar a

carreira em Y 17 foram algumas iniciativas de profissionalização do setor público, sem passar pelo

monopólio dos cargos de direção aos funcionários de carreira.

Sem parti-pris por funcionários ou outsiders, o então ministro Bresser Pereira adotou medida

com o objetivo de diminuir as diferenças remuneratórias, antes existentes em prol do funcionário de

carreira, para possibilitar trazer pessoas de fora da máquina como dirigentes, em condições mais

próximas das oferecidas aos funcionários; tais medidas, no entanto, foram revertidas pelo governo Lula,

16

Ver Medida Provisória nº 163, de 23/1/2004, convertida pelo Senado na Lei nº 10.869, de 13/5/2004. 17

Carreira em Y, à semelhança da existente em empresas privadas, oferece ao funcionário a possibilidade de avançar não apenas por meio de cargos gerenciais, mas também por meio de reconhecimento à excelência técnica. Na administração federal, a tentativa foi introduzida com a criação das FCTs – Funções Comissionadas Técnicas, a partir do ano 2000.

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voltando a ter diferenças superiores a 50% favoráveis a funcionários de carreira ao assumirem cargos de

livre nomeação, em comparação aos vindos de fora do Estado 18.

Quantitativos x poder de nomeação

Há uma tendência geral de clarificar as diferenças entre nomeados temporários e executivos públicos.

Os primeiros, birds of passage, vêm e vão com a mudança de governo, têm funções de assessoria, são

integrantes de gabinetes ministeiriais e presidenciais e estão ligados a atividades de formulação de

políticas ou interlocução política. Já os executivos públicos d irigem organizações prestadoras de serviço

público, têm metas a atingir, estipuladas por meio de contratos de resultados firmados com as

autoridades políticas (ministros). Há países em que os dois grupos são political appointees – nomeados

livremente pelo executivo; em outros, o estatuto de senior civil servants distingue o segundo grupo e cria

regras específicas para recrutamento e avaliação.

Assim, as comparações em torno dos quantitativos de dirigentes públicos ou de political

appointees são ainda bastante confusas, da mesma forma a comparação em termos de ratio (nº de

nomeados x habitantes ou nº de nomeados x nº de funcionários permanentes). Para os Estados

Unidos, no executivo federal, há referência a 1.350 poliical appointees (Longo, 2007, p.169), 3.048 ou

6.000 19. Para outros países, estima-se os seguintes números: Nova Zelândia, 36; Grã-Bretanha, 170;

Alemanha, 500; França,600; Coréia, 1.325 20.

A análise de Light (1995) é inicisiva: não é o quantitativo que importa, e sim a possibilidade de

nomear pessoas externas ao serviço público para níveis muito baixos na estrutura da administração; os

números não importam tanto como a distribuição na hierarquia. Segundo o autor, o problema não reside

no número absoluto de ‘assessores presidenciais”; “os números não importam tanto como o modo pelo

qual se distribuem na hierarquia”.

Este é um dos problemas no Brasil, onde um simples coordenador de equipe pode ser trazido

não apenas de fora do serviço público, mas aí há limites a respeitar, como também de fora da

organização – e aqui o problema não se limita ao debate em torno de insiders ou outsiders. O governo

federal pode exercer ampla margem de discrecionalidade ao nomear: são cerca de 70 mil posições 21,

ainda que majoritariamente reservadas a funcionários – mas estes podem ser trazidos de fora da própria

organização, de fora do poder executivo, ou mesmo de qualquer esfera de governo, sendo funcionário

18

Ver Boletim Estatístico de Pessoal, dados referentes à remuneração de DAS, comparando a remuneração integral à remuneração média resultante da soma do salário de origem e da parcela referente ao cargo. O Boletim está dsiponível em www.servidor.gov.br , Publicações. 19

Cifras citadas por Geoffrey Shepherd em correspondência para o IPMN International Public Management Network (outubro;2007), a partir de estudos do Banco Mundial realizados respectivamente por Nick Manning e Suzanne Dove, no ano de 2000, e por ele mesmo em 2007. 20

Cifras citadas por Geoffrey Shepherd – ver nota anterior. 21

O número passou a serpublicado mensalmente no Boletim Estatístico de Pessoal a partir do governo Lula – um grande avanço quanto à transparência para tratar o tema das nomeações de governo.

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ou aposentado do setor público. O poder de nomear, assim amplo, abre possibilidade de acomodação de

interesses político-partidários ou mesmo de cooptação (Pacheco, 2008).

Critérios de nomeação

Trataremos aqui de resumir os critérios de nomeação utilizados pelos governos para nomeação de

dirigentes, retomando os trabalhos anteriormente citados. Veremos que os autores os consideram

legítimos, tendo identificado, na maior parte dos casos empíricos analisados, u uso combinado das

distintas estratégias, às vezes com o predomínio de uma delas em setores específicos ou governos

específicos.

Para Geddes (1994), o dilema dos governantes está em escolher entre a necessidade de

sobrevivência política imediata (uso das nomeações como investimento político) e os interesses coletivos

de longo prazo quanto à performance econômica e estabilidadedo regime (como investimento

econômico) - e o conflito resulta de que “a sobrevivência do presidente depende tanto da performance

econômica quanto do apoio político” (p.18); para os partidos que integram a coalizão de governo, o

dilemaé ainda resultante do problema da ação coletiva. A autora refere-se ainda ao critério da lealdade

do nomeado ao nomeador, que não exclui, no entanto, o critério técnico; pesam aqui diferenças entre

partidos políticos, pois nem todos atraem apoiadores que reúnam expertise técnica e gerencial, além de

experiência.

As escolhas, portanto, serão influenciadas pelo contexto político: segundo a autora, “presidentes

fortes e seguros”, que não enfrentam ameaças de golpés militares, ou grande competição de rivais

dentro de seus partidos, ou indisciplina partidária de seus aliados (de seu próprio partido ou de outros

partidos da coalizão), praticam “estratégias de nomeação que contribuem para o desenvolvimento de

competência burocrática” (Geddes, 1994, p.22), baseadas em critérios técnicos e competências

gerenciais. Note-se que tais critérios não correspondem à clivagem insiders x outsiders, pois referem-se

às competências dos escolhidos e ao macro-contexto político.

Schneider (1991, p.127-130) elabora três critérios (“nomeações ideiais típicas”) em geral usados

combinadamente. Os critérios são: representatividade (de partidos políticos, grupos de interesse ou

arranjos federativos associados a critérios geográficos); confiança (lealdade pessoal e afinidade entre o

nomeado e o nomeador, em geral desenvolvida em experiência prévia de trabalho conjunto) e técnica

(reputação e expertise no seu campo específico de atuação e conhecimento dos processos operacionais

da área).

Segundo o autor, “a maioria dos noemadores prefere uma variedade de tipos: gente de

confiança para assessores mais próximos e intermediários, gente mais técnica para os lados misteriosos

das atividades do órgão e gente representativa quanto o apoio e coordenação externa são cruciais. Em

alguns casos, os nomeadores conseguiram combinar critérios de confiança e técnicos para conseguir

uma competência partidária, o que promoveu políticas eficazes” (id., p.129-130).

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Loureiro et al. (1998) consideram apenas dois grupos de critérios de nomeação: os critérios

burocráticos (os que seguem regulamentos previamente estabelecidos, dentro de uma carreira, como

senioridade) e os critérios políticos (que abrangem também afinidades pessoais, orientações teóricas ou

ideológicas comuns, e não apenas o jogo partidário). Apontam que o pertencimento à carreira do próprio

órgão nem sempre é fator positivo para acesso aos cargos de dirigentes, seja por serem considerados

mais conservadores, ou por serem vistos como defensores dos interesses de sua corporação e não

suficientemente fiéis a quem os indicou – observação compatível com as análises de Schneider, já

referidas anteriormente.

Gaetani (2002, p.274) elenca como motivos de escolha, ressalvando não ser uma lista exaustiva

de critérios: “um conjunto de habilidades e competências específicas, uma boa rede de contatos, o

conhecimento do mapa de ameaças e oportunidades no setor específico, uma reputação de liderança

e/ou credibilidade, e um perfil empreendedor ou conservador”.

Conclusões: reescrevendo as hipóteses

Após mais de uma década de experiência dos sistemas de alta direção, praticados nos países que

lideraram os movimentos de reforma, cabe cotejar os critérios descritos pelos autores citados ao

conjunto de competências específicas de direção que orientam os processos seletivos de dirigentes. No

caso inglês, o modelo adota seis campos básicos de competências de direção: 1) dar propósito e

direção; 2) produzir um impacto pessoal; 3) pensar estrategicamente; 4) conseguir o melhor das

pessoas; 5) aprender e melhorar; 6) centrar-se no serviço (Longo, 2002). No Canadá, foram definidos

cinco grupos de competÇencias, que se desdobram em níveis de complexidade diferentes segundo o

nível gerencial: 1) intelectual (capacidade cognitiva e criatividade); 2) construção do futuro (visão); 3)

gestão (gestãopela ação, compreensão organizacional, trabakho em equipe, parceria); 4) relacional

(relações interpessoais, comunicação); 5) pessoal (vitalidade e resistência ao stress, ética e valores,

flexibilidade, auto-confiança, conhecimento de sistemas, políticas e programas de governo).

Há experiências em curso, no Brasil, que privilegiam a seleção de dirigentes por meio de

processos que valorizam competências, experiência e visão de futuro para a organização – por exemplo,

a seleção de dirigentes para as organizações sociais ligadas ao Ministériode Ciência e Tecnologia,

implementada há já dez anos. Minas Gerais também tem inovado, adotando práticas de certificação de

gerentes, além da contratualização de resultados com dirigentes de entidades – um dos componentes

importantes para mudar o relacionamento entre autoridade política e dirigente para o foco em

desempenho. Ao mesmo tempo, as nomeações para o governo federal, no governo Lula, têm utilizado

critérios claramente políticos.

Não se trata de reeditar a crença na separação entre política e administração,como fica claro na

análise da experiência chilena: “El Sistema de Alta Dirección Pública, a diferencia de lo que algunos

erróneamente puedan pensar, no pone fin a los cargos de exclusiva confianza del Presidente de la

República. Los altos directivos públicos son considerados cargos de exclusiva confianza. El Sistema de

Alta Dirección Pública, es una moderna herramienta de apoyo al Presidente del República para

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seleccionar a los profesionales mas idóneos y calificados para dirigir las instituciones públicas, a través

de procesos de selección abiertos y transparentes”. (Bau Aedo, 2005, p.62-63). O imperativo é

desenvolver análises que dêem conta dos desenvolvimentos em curso, e não apenas repitam o legado

histórico. Para isso, é necessário reescrever as hipóteses de pesquisa sobre o tema dos dirigentes

públicos no Brasil, distinguindo de quem se fala (conceituar os dirigentes como categoria analítica), que

competências detêm e que ethos lhes dá identidade, os critérios de escolha utilizados pelos governantes

e a combinação entre eles, remetendo ainda aos aspectos das instituições políticas que condicionam e

favorecem o alto poder de nomeação que hoje detêm o Executivo federal.

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