Os cocos_ uma manifestação em três momentos do séc XX

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    A brincadeira do coco:dana e poesia afro-brasileira na Paraba

    OMUITOSOSDANADORES e cantadores de coco na Paraba, poden-do ser encontrados em diferentes localidades da capital, do litoral edo interior do estado (1). Danados e cantados, os cocos no con-

    tam com estudos recentes rigorosos e sistemticos que permitam analisarsua diversidade. Por causa das diferenas ocultadas sob essa designao,parece mais apropriado atribuir-lhes um tratamento plural, equivalendo adizer que sob o mesmo nome podem se revelar mais do que mltiplasformas de uma nica manifestao cultural; podem se apresentar diferentesprticas poticas de mais de um sistema literrio.

    Mrio de Andrade em A literatura dos cocos, estudo publicado emOs cocos, refere-se dificuldade de preciso mediante nomenclatura:

    Antes de mais nada convm notar que como todas as nossas formaspopulares de conjunto das artes do tempo, isto cantos orqustricos emque a msica, a poesia e a dana vivem intimamente ligadas, o coco anda pora dando nome pra muita coisa distinta. Pelo emprego popular da palavra meio difcil a gente saber o que coco bem. O mesmo se d com moda,samba, maxixe, tango, catira ou cateret, martelo, embolada eoutras. (...)

    Coco tambm uma palavra vaga assim, e mais ou menos chega a seconfundir com toada e moda, isto , designa um canto de carter extra-urbano. Pelo menos me afirmou um dos meus colaboradores que muitatoada chamada de coco (2).

    A potica que se desenvolve atualmente na dana ou na brincadeirado coco (conforme a denominao dos participantes), no que se refere aocanto, a esquemas mtricos, rmicos e a aspectos temticos, tem se revela-

    Os cocos: uma manifestao

    cultural em trs momentosdo sculo XXMARIAIGNEZNOVAISAYALA

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    do distinta daquela encontrada nos cocos cantados por emboladores oucoquistas, isto , duplas de repentistas que se apresentam diante de um

    pblico de ouvintes. Neste ltimo caso, em que os cocos aparecem disso-ciados da dana, sendo cantados em desafio, os emboladores improvisamseus versos, cada qual utilizando um instrumento de percusso (pandeiroe, hoje mais raramente, ganz) para marcar o ritmo, que faz fluir a poesia.O confronto se d de modo a cada coquista procurar ridicularizar mais seucompanheiro por meio de comparaes grotescas, provocando o riso daplatia. A maneira como os cantadores de coco se dirigem ao pblico nemsempre respeitosa ou formal. Basta no receberem o dinheiro no chapuou obterem uma quantia pequena daqueles que compem sua platia, paraa ridicularizao tambm se voltar contra o pblico.

    J nos cocos que motivam e acompanham indissociavelmente a dan-a, a poesia no obedece aos mesmos cnones de composio. No estoalicerados na disputa que granjeia a preferncia do pblico ora para um,ora para outro poeta repentista. A ironia e o grotesco tal qual se desenvol-vem nos cocos de embolada apenas cantados ao acompanhamento de pan-deiro no so caracterizadores dos cocos cantados durante a dana. Nabrincadeira do coco h ironia, h ambigidade, h momentos de crticasocial, mas a construo dos versos e o sentido da poesia diferente. Apoesia, neste caso, configura-se como um dentre vrios elementos indis-pensveis para o canto e a dana. Nos cocos danados predomina o coleti-

    vo: para que haja a dana preciso gente para (a)tirar os cocos e pararesponder dentro da roda de danadores, gente que toque os instrumen-tos, gente que saiba os passos que caracterizam a dana e esteja disposta aentrar na roda.

    O interesse atual pelo estudo dos cocos na Paraba surgiu devido sdificuldades para sua caracterizao. As diferenas de contexto, a naturezados cocos (dana coletiva, cano ou canto em desafio), as vrias formaspoticas e a diversidade de nomes (coco praieiro, coco de roda, coco deembolada etc.), s vezes levam a supor que se trata de mais de uma mani-festao cultural sob a mesma denominao.

    Vrios estudiosos assinalam a origem negra dos cocos africana, parauns, alagoana, para outros , mas no chegam a examinar cuidadosamenteos aspectos que do aos cocos uma identidade cultural afro-brasileira. Sofortes as marcas da cultura negra nos cocos, especialmente nos danados:os instrumentos utilizados, todos de percusso (ganz, zabumba ou bumbo,zamb, caixa ou tarol), o ritmo, a dana com umbigada ou simulao deumbigada e o canto com estrofes seguidas de refro cantado pelo solista e

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    pelos danadores. Esses elementos aparecem tambm no batuque, no sam-ba-leno paulista, no jongo, no samba de partido alto, no samba de roda

    da Bahia.Ao iniciarmos a pesquisa de campo, tnhamos como objetivos princi-

    pais reunir depoimentos de coquistas e danadores, registros da dana e docanto em desafio em seus contextos de produo para, a partir da experin-cia e das maneiras de avaliar daqueles que esto intimamente relacionadoscom os cocos, obter informaes fundamentais para um conhecimento maisabrangente da situao atual dessa manifestao de cultura afro-brasileirano Nordeste. Tais objetivos continuam vlidos, pois as informaes maisrecentes encontradas em livros pouco ou nada nos auxiliam em nossa bus-ca. J os cantadores e danadores, ao explicarem em que consiste a dana

    ou o canto, tm possibilitado reunir esclarecimentos raramente encontra-dos nas publicaes sobre os cocos.

    Os dados parciais da pesquisa trazem elementos para uma reflexosobre as condies da dana atualmente, permitindo-nos verificar:

    se h desagregao dos grupos de danadores, a ponto de reduzir ococo a fragmento de cultura;

    se o coco caracterizado como dana de negro, qualificao que,dependendo do contexto no qual surge, pode ter significados anta-

    gnicos: ora como rejeio, ora como afirmao de uma identidadecultural. Associada ao ltimo aspecto, tem se imposto a anlise dosdiferentes tipos de preconceito (tnico, cultural, social etc.) e a veri-ficao das situaes e condies que colocam os cocos em relaocom outros tipos de dana e de poesia populares e de outras minoriasna Paraba.

    Mrio de Andrade e os cocos

    A documentao sobre os cocos reunida por Mrio de Andrade noNordeste entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, em contato direto

    com os cantadores, complementada pela colaborao de amigos e alunos,antes e depois da viagem, constitui parte significativa de um livro sobre amsica popular no Nordeste, Na pancada do ganz, que ficou inacabado.

    O convvio com os tiradores de coco, em particular Chico Antnio(Pedro Velho, RN) e Odilon do Jacar (Guarabira, PB), deixou impressesprofundas neste escritor sensvel potica popular. Oneyda Alvarenga, emseu estudo introdutrio a Os cocosde Mrio de Andrade, observa:

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    (...) Nos 245 Cocos reunidos neste livro, a expresso na pancada doganz, definidora da funo do instrumento como apoio no s do ritmo,

    mas da inveno msico-potica em seu conjunto, aparece exclusivamente,e sempre heptasslabo completo, nos Cocos de Chico Antnio, que, se nofor o dono dela, sem dvida a fonte do nome escolhido (...) (3).

    L-se no incio da Introduo ao inacabado Na pancada do ganz:

    Este no um livro de cincia, evidentemente, um livro de amor.Estaro sempre muito enganados os que vierem buscar nele a sistemticados fatos musicais e poticos do Nordeste. (...)

    O que vale aqui a documentao que o povo do Nordeste me for-neceu. Procurei recolher esses documentos, da maneira, essa sim, mais cui-

    dadosa, mais cientfica. Segui, na colheita folclrica, todos os conselhos eprocessos indicados pelos folcloristas bons. Ouvi o povo, aceitei o povo,no colaborei com o povo enquanto ele se revelava. De resto, trabalhosanteriores j tinham me dado certa prtica desse pesadssimo esforo derecolhedor (...).

    certo que, depois de realizada a colheita, ela dirigiu em grandeparte o caminho das minhas leituras. E destas, surgiram as notas que guar-necem o livro. Mas porm com essas crticas, exemplos, variantes, ligaes,no pretendi fazer obra de etngrafo, nem mesmo de folclorista, que issono sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namoradachegando. Se acaso algumas constncias me interessaram mais, se algumanova eu terei fixado, foi sempre por essa preciso que tem o amante verda-deiro, de conhecer a quem ama. No tanto pra compreender o objetoamado em si mesmo, como pra se identificar com ele e milhormente poderservi-lo e gozar (4).

    Embora no se considere pesquisador, Mrio de Andrade, neste tex-to citado como em outros escritos, sempre explicita o seu mtodo de tra-balho, reconhecendo em seu estudo procedimentos cientficos, semprevalorizados por ele.

    Pode-se afirmar que o material reunido por Mrio de Andrade , semdvida, o primeiro registro sobre os cocos feito com o rigor do mtodocientfico, mas conservando marcas da paixo, do carinho e das sensaesdo escritor, nunca ocultadas quando se tratava da cultura popular brasilei-ra. Como ressalta Oneyda Alvarenga,

    (...) Mrio de Andrade cercou de todas as garantias informativastudo quanto fez: anotou lugares, datas, circunstncias da pesquisa, obser-

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    vaes sobre os informantes e a qualidade da colaborao deles; grafoumelodias e textos com honestidade paciente, controlando seu trabalho por

    diversos meios e obtendo assim a maior exatido atingvel fora do registrofonogrfico, que alis, nos idos de 1928, no era recurso ao alcance dosnossos estudiosos e nem mesmo dos de outros pases. Realmente, o frutodas pesquisas de Mrio de Andrade constitui at hoje o maior e melhoracervo de msica folclrica brasileira registrada por um pesquisador sozinhoe por grafia musical direta (5).

    O registro dos cocos, iniciado por Mrio de Andrade em 1928, ga-nhou continuidade dez anos depois com a Misso de Pesquisas Folclricasdo Departamento de Cultura do Municpio de So Paulo, expedio inici-ada em janeiro de 1938 e concluda em julho do mesmo ano. Os quatro

    pesquisadores da Misso Lus Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pachecoe Antonio Ladeira foram escolhidos por Mrio de Andrade (na poca,diretor do Departamento de Cultura e chefe da Diviso de Expanso Cul-tural) para fazer uma ampla documentao sobre danas e potica popularno Nordeste e Norte do pas.

    A equipe, altamente qualificada, recebeu orientao metodolgicade Mrio de Andrade; de Dina Dreyfus ento Dina Lvi-Strauss , quehavia ministrado o Curso de Etnografia(6) no Departamento de Cultura,ensinando, entre outras questes, a utilizar a fotografia, o filme e o fongrafocomo complemento importante s observaes diretas em campo; alm de

    instrues minuciosas de Oneyda Alvarenga, diretora da Discoteca PblicaMunicipal, para a organizao do material coletado.

    Munidos de aparelhagem de grande qualidade tcnica e de formaosegura para um desempenho com rigor cientfico, os integrantes da Missovisitaram mais de 30 localidades em pelo menos 20 cidades na Paraba,onde permaneceram mais de dois meses: entre 23 de maro (quando che-gam trs dos integrantes da Missoa Joo Pessoa) e 30 de maio de 1938.Alm da Paraba, visitaram algumas cidades de outros estados do Nordestee do Norte: Pernambuco, Piau, Cear, Maranho e Par, reunindo uma

    quantidade fantstica de registros. Dentre as manifestaes documentadasna Paraba por meio de gravao de discos, fotos, filmes e anotaes emcadernetas, esto muitos cocos encontrados em diferentes locais: Joo Pes-soa, Patos, Pombal, Sousa, Itabaiana, Areia, So Francisco e Baa da Traio.

    lvaro Carlini, em Cante l que gravam c: Mrio de Andrade e aMisso de Pesquisas Folclricas de 1938,informa:

    As coletas da expedio no Estado da Paraba superaram todas ex-pectativas: cerca de 30 gneros folclricos musicais, mais de 700 melodias

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    gravadas distribudas em aproximadamente 100 discos de vrias dimen-ses; mais de 500 fotografias; cerca de 10 filmes cinematogrficos; uma

    grande quantidade de objetos de fatura popular (ex-votosdemadeira, ins-trumentos musicais, vestimentas caractersticas, entre outros), alm de umainfinidade de anotaes escritas pelos componentes da equipe (7).

    O conhecimento do material reunido por Mrio de Andrade e pelospesquisadores da Misso de Pesquisas Folclricasfoi possvel graas ao em-penho de Oneyda Alvarenga, que dedicou mais de 20 anos de sua vida organizao dos inditos de Mrio de Andrade e do acervo da Missoe divulgao de parte do que foi documentado. O acesso a essa documenta-o, iniciado h cinco anos, possibilitou-me a reunio de dados que, asso-ciados a informaes e estudos de Mrio de Andrade organizados por

    Oneyda Alvarenga em Os cocose ao vasto acervo constitudo por meio depesquisa de campo realizada pela equipe sob minha coordenao, permi-tem bases seguras para o estudo comparativo dessa manifestao de msi-ca, dana e poesia por registros feitos na Paraba em diferentes momentosdo sculo XX.

    No que se refere aos cocos colhidos pela Missona Paraba, poucacoisa foi divulgada. Os estudos de Mrio de Andrade, a documentaoreunida por ele e os registros feitos pela Misso de Pesquisas Folclricascons-tituem, at o momento, a maior amostragem a que tive acesso sobre oscocos, s superada quantitativamente pelos registros efetuados por nossa

    equipe de pesquisadores.

    O vis regionalista e outras formas de estudo

    Fora a documentao de Mrio de Andrade e da Misso de PesquisasFolclricas, o nico livro dedicado ao coco na Paraba o de Altimar deAlencar Pimentel, O coco praieiro(8). Embora o ttulo proponha um estu-do mais abrangente, o autor limitou-se a estudar a dana encontrada nomunicpio de Cabedelo, onde desenvolveu muitos registros e estudos so-bre as diferentes manifestaes culturais populares ali encontradas. A pu-

    blicao fornece informaes gerais sobre a dana do coco com base emparte da bibliografia disponvel sobre o assunto e uma antologia de versoscolhidos em Cabedelo, complementada por dados sobre componentes degrupos da dana que forneceram os versos reunidos no livro.

    Trata-se, portanto, de abordagem parcial com o objetivo bsico dedivulgar a existncia da dana em apenas uma localidade do estado daParaba, no se propondo assim a uma sistematizao ampla e criteriosasobre os cocos.

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    Os dados mais recentes de que tivemos notcia consistem em fichasde poucos grupos de danadores de coco, encontradas dentre vrias outras

    de diferentes manifestaes de cultura popular no estado. Constam de le-vantamento desenvolvido na dcada de 70 sob a orientao de professoresvinculados ao NUPPO (Ncleo de Pesquisa e Documentao da CulturaPopular) da Universidade Federal da Paraba.

    Alm das fichas, algumas informaes resumidas aparecem em livrossobre a cultura popular da Paraba, como a Cartilha do folclore paraibano:escolas do 2 grau, organizada por Jos Nilton da Silva (9), Paraba emritmo de folclore; danas e cantigas, de Dinalva Frana (10) e Variaes dofolclore na Paraba, de Reinaldo de Oliveira Sobrinho (11), mas em ne-nhum deles h elementos que permitam captar a situao atual dos cocos.

    Autores que estudam os cocos, danados ou apenas cantados, encon-trados em diferentes estados do Nordeste, entre eles Jos Alosio Vilela,Abelardo Duarte, Jos Tenrio Rocha e Altimar de Alencar Pimentel, apre-sentam um ponto comum no que se refere origem dessa manifestao dacultura popular. Todos so unnimes em afirmar que o coco possui origemalagoana, tendo da se difundido por toda a regio, sofrendo aqui e alideterminadas modificaes quanto ao modo de apresentao, seja com re-lao dana ou ao canto. Suas teses parecem-nos pouco convincentes,dada a ausncia de rigor na explicitao das fontes, sejam elas escritas ouorais, resultantes de investigao bibliogrfica ou de observao direta.

    Os trabalhos refletem uma forte tendncia de abordagem calcada emespeculaes que mais parecem preocupadas em encontrar uma origemdentro da regio (no caso, Alagoas), o que demonstra um vis regionalista,em alguns casos com matizes ufanistas que muito guardam de provincianoe ideolgico. Admitindo a importncia da influncia negra recebida pelococo, Jos Alosio Vilela, em O coco de Alagoas, inicialmente apresentado em

    1951 como Memriaao ICongresso Brasileiro de Folcloreno Rio de Janeiro e

    depois publicado em livro, tambm atesta de forma implcita a origem alagoanadessa manifestao popular de canto e dana, medida em que a relaciona

    com as prticas culturais dos negros do Quilombo de Palmares, hoje regioinserida no estado de Alagoas. Deve-se lembrar, no entanto, que na pocada existncia do Quilombo de Palmares a diviso territorial era outra: nohavia o estado de Alagoas, mas a capitania de Pernambuco, de grande ex-tenso.

    O livro de Vilela, como os dos demais autores mencionados, torna-setambm pouco convincente por no precisar as fontes a partir das quaisextrai suas concluses. Vejamos:

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    Depois de inmeras investigaes, recolhi recentemente em Viosa(Alagoas) uma tradio que vem firmar definitivamente a origem negra do

    coco.Diz esta tradiode que tomei conhecimento atravs de um velho

    proprietrio do Distrito de Ch Preta, que o coco foi inventado pelos ne-gros dos Palmares.

    (...) os negros sentavam-se no cho, colocavam o duro coco secosobre uma pedra e batiam com outra at que ele rachasse.

    A grande quantidade de negros empenhada neste servio provocavanas pedras uma zuada (sic) enorme que se misturava com os seus costumei-ros alaridos.

    E em meio a estas barulhentas reunies, alguns comeavam a cantar,outros levantavam-se e davam incio a um forte sapateado e os demaisuniformizavam a pancada das pedras para acompanhar aquele estranhoritmo que surgia.

    E os negros renovavam sempre a brincadeira e a coisa virou costume,pois a quebra do coco terminava sempre em cantiga e em dana (12).

    Como possvel constatar pela transcrio do trecho, o autor norelaciona a figura do velho proprietrio com o fato por ele narrado, nem

    sequer informa se essa tentativa de caracterizar o coco como atividade vin-culada ao trabalho (que se configura como canto e dana de trabalho, maisparecendo uma justificativa em forma de lenda) foi encontrada por inter-mdio desse nico informante ou reiterada por outros.

    Resumindo, observa-se que Vilela, assim como os demais autorescitados, no se preocupa em adotar um mtodo que permita a continuida-de de estudo e o acompanhamento da histria da manifestao cultural,verificando as suas possveis transformaes.

    Apesar das restries aqui apontadas, sobressai, como ponto positivo

    nos trabalhos referidos, o interesse revelado pelos autores em apresentarsubstancial repertrio de cocos, embora incorrendo nas mesmas falhas noque concerne explicitao das fontes.

    J o procedimento de Mrio de Andrade bem diferente do adotadopelos autores mencionados. Em O turista aprendiz(13), edio organiza-da por Tel Porto Ancona Lopez, aparecem referncias a Chico Antnio,cantador que encantou Mrio de Andrade na dcada de 20, quando estepassou pelo Nordeste. Nesses escritos, como em outros reunidos no j

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    citado Os cocos, Mrio de Andrade preocupa-se em ser fiel ao descrever omaterial por ele colhido, precisando a maneira como teve acesso aos textos,

    lugares e pessoas envolvidos.A manuteno dos nomes dos artistas populares bem como dos

    dados sobre eles (local de origem, onde vivem, formas de trabalho etc.) nos trabalhos escritos ou nas anotaes de campo permite que, em mo-mentos futuros, novos pesquisadores venham a retomar os caminhos aber-tos por outros anteriormente. Foi o que aconteceu com Chico Antnio que,em 1979, trs anos aps a publicao de O turista aprendiz, redescobertopor Defilo Gurgel, pesquisador do Rio Grande do Norte. A partir de en-to, vrios estudiosos procuraram o cantador, j idoso, para entrevistas enova documentao (gravaes em disco, em programas de televiso, vdeos,

    filmes). Exemplo disso so o nmero de Estrada Nova(14),dedicado aoProjeto Chico Antnio e seu meio e a Entrevista com Chico Antniode Raimunda de Brito Batista, de 1980, que integra sua dissertao demestrado intitulada Vida do cantador: o texto e a pesquisa de Mrio deAndrade, defendida em 1985 e posteriormente publicada em livro (15).

    A situao atual dos cocos na Paraba

    Ao iniciarmos a pesquisa em maio de 1992, tnhamos referncias degrupos de danadores de coco em trs bairros de Joo Pessoa e em trs

    municpios: Cabedelo, Lucena e Baa da Traio. Em poucos meses multi-plicavam-se as informaes de datas e locais onde haveria a dana ou aapresentao dos coquistas.

    Extrapolamos os limites iniciais e conseguimos, dividindo os inte-grantes da equipe em vrios grupos, registrar depoimentos e cocos emSanta Luzia, Pilar, Utinga (municpio de Mulungu), Guarabira, Vertente eCaiana dos Crioulos (municpio de Alagoa Grande), Vrzea Nova e ForteVelho (municpio de Santa Rita), bairros de Monte Castelo e Camala,Praia do Jacar e Praia do Poo (municpio de Cabedelo), Fagundes (mu-nicpio de Lucena), Jacar de So Domingos (prximo Baia da Traio,

    municpio de Rio Tinto), Praia de Jacum e Gurugi (municpio do Con-de), alm de diversos locais do municpio de Joo Pessoa (Torre, Bairrodos Novais, Alto do Cu, Porto de Joo Tota e Praia da Penha). Dispomosde informaes sobre grupos de dana e cantadores de coco em muitascidades, ainda no contatados.

    At o momento foram gravadas em fitas cassete aproximadamente150 horas de cocos acompanhados da dana e cocos de improviso, de de-poimentos de danadores, de cantadores de embolada e de tiradoresou

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    atiradoresde coco, como so denominados os responsveis pelos versosdurante a dana, alm de mais de dez horas de registros em vdeo, a partir

    dos quais foi produzido recentemente na Universidade Federal da ParabaA brincadeira dos cocos, vdeo de 18 minutos dirigido por Elisa Maria Cabral,uma realizao do Projeto Integrado Literatura e memria cultural: fontespara o estudo da oralidade(16).

    As informaes disponveis, fruto da pesquisa de campo e da organi-zao dos dados, indicam a existncia de cocos danados ou apenas canta-dos em muitas cidades da Paraba. H diferenas marcantes entre a poti-ca dos cocos apenas cantados e a daqueles encontrados na dana. A pesqui-sa tem permitido verificar as variaes dos cocos pelo estudo dos contextosem que so encontrados, por depoimentos de danadores e cantadores, e

    por registros sonoros e em vdeo, cotejados com dados disponveis na pe-quena bibliografia sobre a dana.

    A brincadeira do coco tem sido encontrada no espao urbano dacapital e de cidades do interior da Paraba, na rea litornea de maior oumenor densidade populacional em que grande a concentrao de pesca-dores e trabalhadores rurais de usinas ou de plantaes de coco, na zonarural de cidades do interior, em assentamentos de trabalhadores rurais, emcomunidades negras isoladas e em aldeias indgenas. Em algumas localida-des apenas existe regularmente na memria de ex-cantadores ou ex-danadores, como presenciamos na Praia da Penha, municpio de Joo

    Pessoa.

    No h calendrio fixo para a ocorrncia da dana, mas, quando ocorre, em ambiente festivo, como os dias dos santos de junho (So Joo e SoPedro), julho (SantAna), janeiro (Santos Reis), dos santos padroeiros decidades e povoados, em fins de semana, noite, nas horas de folga dotrabalho, e em eventos polticos, a convite de candidatos que se servem dasmanifestaes populares como atrativo para seus interesses eleitoreiros.

    Quando se busca o entendimento do que a brincadeira do coco porintermdio de seus cantadores e danadores, vo surgindo peas de um

    grande quebra-cabeas que revelam, entre fios da memria, a maneira comoconstrem a sua histria, vinculada intimamente com as suas vidas, com ahistria de seus versos, de seus cantos, de seus passos. Com a convivnciaacentuada, vai se revelando a histria oculta de um coco ou outro, o quemotivou sua criao, quem fez os versos, quem escolheu a melodia.Relativiza-se a idia corrente de anonimato e vo surgindo elementos osquais permitem considerar em que consiste o improviso. Ora significa cria-o a partir de certas circunstncias, ora a maneira criativa de inserir um

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    verso da tradio em situaes presentes, fazendo o j conhecido surgircomo algo novo porque se encaixa em uma ocorrncia nova, o que lhe

    atribui um novo sentido.Vrios cantadores associam a dana a um tempo longnquo; alguns

    mencionam o tempo da escravido no qual se alternam dor, sofrimentocom castigos e trabalho forado, e a alegria das danas.

    Seu Manuel Ventinha, mestre cantador do bairro da Torre, Joo Pes-soa (PB), vincula a dana a um tempo e local distantes, imprecisos e depoistenta estabelecer um primeiro lugar para o coco no Brasil:

    (...) Esse coco de roda, exatamente, primeiramente isso veio da ban-da da frica, n? Isso negcio de africano, n? por isso que eu digo,

    primeiro Estado onde foi inventado o coco de roda foi a Bahia, porque aBahia foi lugar de mais escravos. Acho que sim, no incio do Brasil, achoque foi, n? (17).

    Sua explicao no pra a. Tomando como exemplo os passosmiudinhos que caracterizam sua maneira prpria de danar, comenta:

    Eles pegavam um jabu com couro de gato, de maracaj e batendo edanando dentro da senzala, n? Com aquele fogo feito na senzala e comque eles se divertiam (...) E no podiam danar com uma corrente no p,no , passado o cadeado o camarada no podia se largar pra danar. Eles

    tinham somente que fazer aquele passo.J Dona Lenira, cantadora e danadora do coco de Gurugi, munic-

    pio do Conde (PB), moradora em um assentamento rural aguardando ottulo de posse do pedao de cho em que seu av, seu pai, seus tios eirmos trabalharam, militante na luta pela terra onde sempre trabalhou eviveu duramente, tambm d sua explicao:

    O coco muitas vezes um recado. Era um recado, n, que... antiga-mente, eles no podiam... eles como escravos eles no podiam desabafarcom o senhor e eles desabafavam em lamentos. De noite, em noites, eles ali

    brincando e eles desabafavam.Muitos dos cocos por ela cantados guardam a lembrana de confron-

    tos e dificuldades:

    Lengo tengo lengo tengoeu morro de trabalharde dia t na enxadade noite tarrafear

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    Samba negrobranco no vem c

    se vierpau h de levar

    Negro rachar os psde tanto sapatearde dia t no aoitede noite pra batucar

    Dona Lenira, ao refletir sobre os cocos, os associa sua vida e desua comunidade, argumentando:

    Quer dizer que a luta... a mesma luta que continua hoje... nodia-a-dia. A gente de dia t na luta e de noite forma um coco e vamosbatucar, vamos danar, vamos se divertir, n?

    E com orgulho afirma:

    (...) uma brincadeira que vem dos negros, escravos, somos des-cendentes desse povo e no podemos deixar cair a tradio.

    Hoje em Gurugi, ao lado dos versos que lembram situaes de traba-lho difcil em outros tempos, os cantadores e danadores do o seu recado,

    alertando para questes presentes. Vejamos alguns cocos:

    J estou cansadode trabalhar no roadomas estou desanimadono vejo nada ir pra frente

    Trabalhadorno pra ficar contente

    que o Plano do Realveio acabar com a gente

    Eu moro l na Agrovilamora Pedro e Joo,Jos e Marias no tamos mais satisfeito(s)

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    porque o prefeitono bota energia

    Seu Aloisiono Conde fez um turismobotou praia de nudismopros banhistas se banhar

    Deu em Manchetede Norte para o Sulquem quiser ver gente nv em Tambaba olhar

    H tambm espao para versos lricos que destacam momentos dedoura e de harmonia com a natureza:

    De que lado sai o solsai de ponta do coqueiro sol, lua, que vento traioeiro

    So muitos os temas e motivos do coco. Da mesma maneira, somuitos os tipos de coco, conforme a classificao daqueles que participamda brincadeira. H denominaes que surgem devido maneira de tocar,de danar, em uma ou em outra localidade.

    So muitos os nomes, os detalhes, os mistrios envolvidos neste uni-verso pouco conhecido da brincadeira. Recentemente encontrei uma pro-fuso de cocos solicitados, danados e cantados por entidades quecostumeiramente baixamem alguns rituais afro-brasileiros encontrados naParaba. Aqueles que j no fazem mais parte desse nosso mundo de co-muns mortais so recebidos alegremente no espao sagrado do ritual reli-gioso e festejam danando, cantando cocos que rememoram o trabalhodifcil do tempo de cativeiro, magia, momentos de intensa vivacidade que

    os mantm em contato, reduzindo distncias, aproximando mundos diver-sos, matando a saudade, em grande solidariedade entre vivos e... encanta-dos.

    Esta uma outra situao do coco. Cocos costumeiramente encon-trados na brincadeira, quando aparecem na gira(como denominada adana nos cultos afro-brasileiros) ganham feitio de orao, isto , de pontocantado:

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    Uma visitade bom corao

    Me d um abraoe um aperto de mo

    E ll acaugalo canta de manhcarneiro quando se molhase deita e sacode a l

    Fui tomar banhono Rio da Curim

    s cinco horas da manheu avistei a donzela

    Olhei pra elameu corao palpitouse ela fosse o meu amordaria palma e capela

    Cantadores, danadores e a brincadeira

    A grande maioria dentre os danadores e cantadores contatados en-contra-se na condio de trabalhador pobre, e parcela significativa em si-tuao de pobreza absoluta, o que ocorre com a maioria dos negros brasi-leiros e seus descendentes.

    Tanto em bairros da periferia da capital, quanto em cidades do inte-rior da Paraba, a equipe de pesquisadores encontrou danadores, mestrese cantadores morando em casebres de taipa, muitos sem luz eltrica, semgua tratada, alguns sem cadeiras ou tamboretes, sem panela de metal (fer-ro, alumnio ou lata), demonstrando o estado de privao em que (so-bre)vivem.

    Problemas de moradia (no ter posse da terra, no ser proprietrio dacasa) so comuns, a ponto de integrantes da equipe terem ouvido, em umadas localidades visitadas, um cantador dizer Fulano o nosso propriet-rio, referindo-se ao dono da terra.

    Sem as garantias mnimas de cidadania muito difcil ter autonomiapara desenvolver atividades culturais independentemente de interfernciasde grupos de poder proprietrios rurais e polticos.

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    Por relatos dos entrevistados e dos pesquisadores foi possvel detec-tar a que ponto a dana discriminada e porque muitos jovens, emborasaibam, no querem danar o coco.

    Danadores e cantadores de coco de Forte Velho (municpio de Santa Rita, PB), 1998

    FotosRosemaryGondim

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    Danadores e cantadores revelam-se magoados por presenciarem aperda de interesse pela dana, tanto pelos mais velhos, quanto pelos jo-

    vens. A dana muitas vezes depreciada por quem no integra o conjuntode danadores e cantadores sendo considerada atividade de preto velho,sem vergonha, pobre e cachaceiro. Por isso, vrias pessoas que apreciam adana e o canto afastam-se da manifestao com medo da discriminao.

    Muitos dos entrevistados demonstraram em seus relatos uma valori-zao do passado do tipo antes era mais animado; hoje ningum se inte-ressa. A valorizao do passado procedimento muito comum em relatossobre cultura, e em particular, sobre cultura popular. No caso dos cocos, amanifestao passa por um processo de mudana. Desses entrevistados,vrios se submeteram migrao interna. Ao se deslocarem de uma cidade

    para outra, l encontraram pessoas com histrias semelhantes, que tam-bm tinham as mesmas preferncias culturais. Neste sentido, os cocos ser-viam como elemento integrador e tambm como componente de uma afir-mao de identidade cultural. O mesmo no ocorre com os componentesda nova gerao. Os filhos e netos dos danadores, alm de no teremvivido experincia semelhante de migrao, bem ou mal encontram-se in-tegrados (no emprego, na escola, nas atividades de lazer hoje comuns atodos os jovens na zona rural ou urbana, entre eles assistir a programas deTV, ir a forrs, acompanhar as danas da moda como lambada, funk, terpreferncia por msicas tocadas no rdio e repetidas infindavelmente nos

    aparelhos de som particulares). Quando participam das atividades culturaispopulares como a brincadeira do coco, desenvolvidas nas comunidades ondemoram, muitos jovens reagem temendo, depois, a ridicularizao feita porcolegas da escola. Aceitam participar de apresentaes pblicas quandodanadores e cantadores so caracterizados como grupo folclrico, o quepossibilita, s vezes, ver suas imagens veiculadas pela televiso.

    Danadores e cantadores de todas as idades adoram ser fotografadose filmados. Tambm no se mostram inibidos diante dos gravadores. Sen-tem-se valorizados. Quando h alguma forma de registro, em especial fo-tos, os jovens enchem a roda. H um desejo muito grande de ser visto, de

    no ser annimo. Mas no dia-a-dia, sem pesquisadores por perto, o inte-resse parece no ser o mesmo em todas as localidades visitadas. Quando oscocos so considerados como dana de velhos fica difcil a reproduo dosistema cultural; se os jovens no participam continuamente de algumaforma (aprendendo a danar, a cantar, a tocar), prejudica-se a continuida-de da manifestao.

    H tambm uma preferncia pela ciranda em vrias localidades visita-das. So raros os grupos que s danam cocos, sem altern-los com a ciran-

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    da, dana muito popular na Paraba e no Nordeste. Segundo alguns depoi-mentos, os cocos aparecem depois da meia noite. Antes, s ciranda. Estar

    oculto em outra dana leva-nos a pensar que em alguma poca a brincadei-ra do coco pode ter sido reprimida. Abrigados em outra dana, os cocosestariam driblando a represso (ou, mais recentemente, a discriminao),recurso semelhante ao utilizado pelos rituais afro-brasileiros, que se desen-volviam sob a fachada do catolicismo.

    A equipe tambm encontrou a dana em comunidades negras isola-das e em aldeias indgenas. Na aldeia indgena visitada, os cocos alterna-vam-se com o tor, com a ciranda e com o forr.

    Pode-se afirmar que a brincadeira do coco dana de minorias discri-minadas, por diversas condies: pela etnia (negros, ndios e seus descen-dentes), pela situao econmica (pobreza, s vezes extrema), pela escola-ridade (iletrados ou semi-alfabetizados), pelas profisses que exercem nasociedade (agricultores com pequenas propriedades ou sem terra, assenta-dos rurais, pescadores, pedreiros, domsticas, copeiras de escolas). A danapassa por diferentes formas de interferncia, qualquer que seja seu contexto,porque difcil qualquer autonomia cultural em regio de forte controlepoltico, como o Nordeste, onde se aguam as formas de dependncia de-vido pobreza extrema da populao. Aqui, o pobre costumeiramente submetido a algum ou a algum grupo de poder, salvo rarssimas situaes.

    No que se refere relao entre sujeitos, estabelecida pela pesquisade campo, h ainda algumas questes que merecem ser destacadas.

    Cultura, experincia, solidariedade, memria

    A proximidade com as pessoas que participam intensamente da brin-cadeira do coco tocando instrumentos, tirando cocos (isto , propondo osversos mais tradicionais ou criando novos que vo ampliar o repertrioexistente) e ensinando a resposta para aqueles que esto danando em roda,permite apreender mltiplos componentes desse universo da oralidade emque experincia, solidariedade, alegria so fundamentais.

    s vezes possvel descobrir ocorrncias em que cantadores edanadores se valem da escrita para manter sua literatura oral. Anotar emum papel qualquer um coco desconhecido para no esquecer e somar aosj familiares ou colecionar o repertrio em cadernos manuscritos um dosrecursos para salvar do esquecimento, quando a memria (e a dos compa-nheiros) fraquejar com a idade ou ainda como instrumento para auxiliaroutros, mais novos, que queiram cantar cocos.

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    O ato de usar a escrita como apoio da memria oral procedimentoque permite a seguinte avaliao: aqueles que participam do universo da

    oralidade tm conscincia de que a escrita um poderoso instrumento eque pode servir para resguardar o oral do esquecimento. Pode parecerparadoxal mas, neste caso, a escrita posta a servio da oralidade.

    Tal proximidademencionada ainda h pou-co, que permite certosachados, no se consegueapenas estando presentenos dias de festa ou deentrevista. Ela constru-

    da por atos dos pesquisa-dores os quais, ao mesmotempo em que vo entran-do na intimidade das pes-soas, vo se mostrando,vo se deixando conhecerno convvio acentuado:dizemos porque estamosali, o que pensamos sobreos mais diversos assuntos,

    quando interrogados oque pretendemos fazercom as imagens, com asgravaes, com os estudose mostramos os resulta-

    dos, mesmo que ainda em suas etapas preliminares, principalmente osaudiovisuais, mediante sesses de vdeos nos lugares onde os cantadores edanadores moram. Deixamos cpias de fitas cassete gravadas em festas,reprodues de fotografias, dos vdeos. bom lembrar que este retornono habitual entre pesquisadores de campo. Em geral chegam e rapida-mente levam o que querem, devassando vidas e prticas culturais. Algunspagam pelas informaes.

    Ns preferimos construir uma relao de troca com base em valoresde uso a nos rendermos ao modelo da estrutura de mercado, em que tudoresulta em mercadoria. Pesquisar do jeito que escolhemos trabalhoso eobriga a ir em sentido contrrio ao tempo do relgio. Rendemo-nos aoutras temporalidades marcadas pelas relaes entre pessoas, por afinida-des que se estabelecem por um convvio que se constri no apenas pela

    Meninas danando coco no bairro da Torre(Joo Pessoa, PB), 1992

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    necessidade do conhecimento cientfico e, seguramente, sempre samosenriquecidos. Impossvel sair dessa experincia sem marcas, quando se

    movido por um desejo muito grande de entender diferenas culturais, di-ferentes temporalidades.

    Em um ambiente de carncia, no qual fal-tam condies financeiras, solues para proble-mas de sade, educao, moradia e emprego, pa-ralelamente, sobrae esbanjada uma riqueza emtermos de auxlio mtuo, solidariedade, compan-heirismo nas horas de dor e de alegria. Essaalternncia entre carncia e abundncia, entre oque falta e o que sobra nem sempre resulta em

    tenso explicitada pela palavra. Essa solidarieda-de muito grande, fundada em vida comunitriacom fortes laos de afetividade que se constrino dia-a-dia difcil, no mutiro cotidiano da vidaem que uma mo lava a outra, responsvelpela fora que supera as dificuldades e refaz onimo atravs da alegria dos momentos festivosem que se dana, em que se ri, em que se divertepara agentar as novas dificuldades de sempre. essa resposta alegre que mantm vivos muitos

    dos brasileiros e d o troco dominao pelaprpria insistncia em se manterem em p, rin-do. Por outro lado, a atitude de solidariedadeconstante revela a disposio de sempre incluiros estranhos em seu convvio. Tal hospitalidade ao outro a porta poronde passa tambm a dominao. Isso porque a cultura popular tem comotrao distintivo a incluso. Como extremamente participativa, devido vida comunitria que lhe garante a existncia, essa cultura popular, ao in-cluir, traz para seu interior formas de dominao. Acomoda, vamos dizerassim, traos das culturas dominantes a seu modo.

    Por sua vez, a cultura hegemnica, fundada no universo da escrita,tem traos diametralmente opostos vida comunitria: o individualismo e,por extenso, a solido, o tdio, a angstia. Em um movimento intenso eobsessivo de excluso do que contrasta com seus propsitos, os agentes dacultura hegemnica investem na homogeneizao, forma extrema de eli-minar as diferenas. Esto sempre anunciando a morte da cultura popularou ento decretando o seu desaparecimento. A escola, uma das instituiesmais poderosas da cultura hegemnica, longe de ser um espao democrti-

    Seu Manuel Ventinha, 1992

    Fotoscortesiadaautora

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    co para a reflexo sobre as diversidades culturais de um pas, oprime, ridi-culariza aqueles que so filhos de pais analfabetos, participantes desse uni-

    verso da oralidade. Mascara a dominao com o aparente interesse pelofolclore, reinventando nas aulas de portugus, de forma redutora, a tradi-o de contar histrias. De rico canal de transmisso de experincias, onarrar popular fica limitado a temas engraadinhos ou a tcnicas didticaspara tentar moldar o futuro leitor de histrias escritas. Nas aulas de educa-o fsica e de educao artstica se faz a inveno da tradiode danaspopulares em solues estereotipadas, que se cristalizam em esboos malfeitos de passos e gestos que, no contexto original, levam dcadas para seconstruir.

    Essa falsa incluso, esse procedimento hipcrita quanto s diferenas

    culturais mal encobre o indisfarvel desejo de excluir o que diferente e oque segue um outro caminho e uma outra organizao que no aqueladitada pela cultura dominante.

    Estudar a literatura popular na escola, na universidade s tem senti-do, a nosso ver, se for para estabelecer um confronto com esses mecanis-mos de excluso tpicos da cultura hegemnica. S tem sentido se for parasairmos dessa experincia menos ignorantes e mais humanizados.

    esse conhecimento que buscamos no Laboratrio de Estudos daOralidade. Procuramos mostrar, em nossos ensaios, o que apreendemos e

    aprendemos tentando extrair, sempre que possvel, uma durao que beirao potico, sem perder a percepo crtica dessa realidade que, primeiravista, parece igual, repetida, mas intrigantemente complexa. E esses ver-sos, esses cantos, esses gestos, essas falas, esses rostos, esses flagrantes apa-rentemente fugazes instalam-se em nossos trabalhos, esto incrustados muitofundo em cada um dos participantes do grupo de pesquisa. Cada qualcarrega, sua maneira, esses ecos que so muito fortes e para sempre.

    Notas

    1 Os cocos vm sendo estudados na UFPB desde abril de 1992, inicialmente pelaequipe de pesquisadores do projeto integrado Representao do Oprimido naLiteratura Brasileira, por meio do subprojeto A situao atual dos cocos naParaba. A pesquisa recebeu financiamento do Centro de Estudos Afro-Asiti-

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    cos/Fundao Ford durante um ano, entre 1992 e 1993, e do CNPq de 1992a 1996, ininterruptamente. Atualmente os estudos continuam a ser desenvolvi-dos no LEO (Laboratrio de Estudos da Oralidade) por pesquisadores do pro-

    jeto integrado Literatura e memria cultural: fontes para o estudo da oralidade,com apoio do CNPq a partir de maro de 1996.

    2 ANDRADE, Mrio de. Os cocos. Prep., introd. e notas de Oneyda Alvarenga.So Paulo, Duas Cidades; Braslia. INL/Fundao Pr-Memria, 1984, p. 347(grifos meus).

    3 ALVARENGA, Oneyda. Explicaes. In: Mrio de Andrade, op.cit., p. 10.

    4 ANDRADE, Mrio de, op. cit., p. 387-388.

    5 ALVARENGA, Oneyda. Explicaes, id., ib., p. 17-18 (grifos deAO).

    6 Conforme resumo das aulas do Curso de Etnografia institudo pelo Departa-mento Municipal de Cultura e dirigido pela Sra. Lvi-Strauss, acervo da Disco-teca Oneyda Alvarenga.

    7 CARLINI, lvaro. Cante l que gravam c: Mrio de Andrade e a Misso dePesquisas Folclricas de1938. So Paulo, 1994. Dissertao (mestrado), Depar-tamento de Histria, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Uni-

    versidade de So Paulo, p. 333.

    8 PIMENTEL, Altimar de Alencar. O cocopraieiro; uma dana de umbigada. 1.ed.: Joo Pessoa, Caravela 1964; 2. ed.: Joo Pessoa, Editora Universitria/

    UFPB, 1978. 9 SILVA, Jos Nilton da (org.). Cartilha do folclore paraibano: escolas do 2

    grau. Joo Pessoa, Secretaria da Educao e Cultura, 1988.

    10 FRANA, Dinalva. Paraba em ritmo de folclore. Joo Pessoa, Secretaria daEducao e Cultura do Estado da Paraba, 1988.

    11 OLIVEIRA Sobrinho, Reinaldo de. Variaes do folclore na Paraba. Joo Pes-soa, s.d.

    12 VILELA, Jos Aloisio. O coco de Alagoas. Macei, Museu Tho Brando; UFAL,1980, p. 17 (grifos meus).

    13 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz. Tel Porto Ancona Lopez (org.).So Paulo, Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976.

    14Estrada Nova. Instituto Nacional do Folclore/Funarte, janeiro de 1983.

    15 ANDRADE, Mrio de. Vida do cantador. Ed. crtica Raimunda de Brito Batis-ta. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Villa Rica, 1993. (Obras de Mrio de

    Andrade, v. 25).

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    16A brincadeira dos cocos. Direo de Elisa Maria Cabral. Coordenao da Pes-quisa de Maria Ignez Novais Ayala. O vdeo recebeu oprmio Banco do Nor-deste do Brasilna XXIVJornada Internacional de Cinema da Bahia. Salvador,1997.

    17 Esta citao, e as demais, encontram-se no acervo do LEO (Laboratrio deEstudos da Oralidade). Foram obtidas em pesquisa de campo por diferentesintegrantes do projeto entre 1992 e 1997.

    RESUMO NESTEARTIGO analisada uma manifestao popular desenvolvida emdiferentes locais do estado da Paraba, principalmente por negros e seus descen-dentes. Nela se entrelaam literatura oral, msica, canto e dana. Os cocos foram

    registrados com rigor cientfico nas dcadas de 20 e 30 devido iniciativa deMrio de Andrade, de que resultou uma ampla documentao. A preocupao emorganizar um rico acervo sobre os cocos, fundamentado em observao direta eregistros por meios mecnicos e eletrnicos em campo, com procedimentos tcni-cos e metodolgicos que permitam anlises criteriosas dessa manifestao de cul-tura popular nordestina, buscando ressaltar suas especificidades, motivou a pes-quisa que vem sendo desenvolvida desde 1992 na Paraba. Neste artigo reconhe-ce-se a importncia dos acervos constitudos por Mrio de Andrade e pelos inte-grantes da Misso de Pesquisas Folclricasda Discoteca Municipal de So Paulo,sintetiza-se questes relacionadas manifestao de poesia, canto e dana no pre-sente, considerando-se o contexto em que vivem os danadores e cantadores, o

    significado que a brincadeira do coco tem para eles, a ponto de se configurar atcomo afirmao de identidade. Analisa-se, ainda, a situao da cultura popularnuma sociedade em que a escrita hegemnica, explicitando a perspectiva mili-tante adotada nesta pesquisa.

    ABSTRACT THISARTICLEFOCUSES on a popular manifestation which grew in severalparts of Paraba State, mainly among blacks and their descendants. Oral literature,songs and dances are interwoven in that manifestation known as coco. Cocos

    were first recorded, using scientific methods, in the 20s and 30s thanks to Mriode Andrades initiative, which produced a large documentation. The wish to or-ganize a precious heap of information on cocos, based on direct observation

    and field recording with mechanical and electronic instruments, using techniquesand methods which may allow judicious analyses of that Northeastern culturalmanifestation, in an attempt to point out its characteristics, has been the motivationof our research going on in Paraba since 1992. In this article the importance ofthe documentation amassed by Mrio de Andrade and the members of the Missode Pesquisas Folclricas of So Paulos Municipal Phonograph Record Collectionis acknowledged; questions related to current poetry, song and dance manifestationsare summed up, taking into account the dancers and singers life contextualization,the special meaning which the coco play has for them nearly becoming an identity

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    affirmation. Furthermore, the popular cultural condition is analyzed within itssocial setting in which writing is hegemonic, making thus explicit the militantpoint of view adopted in this research.

    Maria Ignez Novais Ayala professora da Universidade Federal da Paraba. Coor-dena a pesquisa do projeto integrado Literatura e memria cultural: fontes para oestudo da oralidade, do Laboratrio de Estudos da Oralidade do Curso de Ps-Graduao em Letras da UFPB. O artigo aqui apresentado integra o livro aindaindito por ela organizado: Os cocos da Paraba: dana, poesia, alegria e devoo.