173

Os Escolhidos - The 100 - Vol 0 - Kass Morgan

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Livro The 100

Citation preview

  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercialdo presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site:LeLivros.us ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Traduo deRodrigo Abreu

    1 edio Rio de Janeiro, 2014

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Morgan, KassThe 100 [recurso eletrnico] / Kass Morgan

    traduo Rodrigo Abreu. - 1 ed. - Rio de Janeiro : Galera 2014.Traduo de: The 100

    Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    1. Fico americana. 2. Livros eletrnicos. I. Abreu, Rodrigo, 1972. II. Ttulo.ISBN 978-85-01-02606-4

    14-10787

    M846c CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

    Ttulo original em ingls: The 100Copyright 2013 by Aloy Entertainment Publicado mediante acordo com Rights People, London.

    Todos os direitos reservados.Proibida a reproduo, no todo ou em parte, atravs de quaisquer meios.

    Os direitos morais do autor foram assegurados.Texto revisado pelo novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Composio de miolo: Abreus System Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000que se reserva a propriedade literria desta traduo.

    Produzido no Brasil

    Seja um leitor preferencial Record.

    Cadastre-se e receba informaes sobre nossos lanamentos e nossas promoes.Atendimento e venda direta ao leitor:

  • [email protected] ou (21) 2585-2002.

  • Para meus pais e avs, com amor e gratido

  • CAPTULO 1Clarke

    A porta de correr se abriu, e Clarke soube que era hora de morrer.Seus olhos se fixaram nas botas do guarda, e ela se preparou para a descarga de

    medo, a inundao de pnico desesperado. Mas, enquanto se apoiava sobre o cotovelo,desgrudando sua camisa da cama encharcada de suor, tudo o que sentiu foi alvio.

    Ela tinha sido transferida para uma cela individual depois de atacar um guarda, mas,para Clarke, no existia algo como uma solitria. Ela ouvia vozes em todos os lugares.Elas a chamavam dos cantos de sua cela escura. Preenchiam o silncio entre as batidasde seu corao. Gritavam das mais profundas reentrncias de sua mente. No era a morteo que ela desejava, mas, se aquela fosse a nica forma de silenciar as vozes, entoestava preparada para tal.

    Ela tinha sido Confinada por traio, mas a verdade era muito pior do que qualquerum poderia imaginar. Mesmo se, por algum milagre, ela fosse perdoada em seurejulgamento, no haveria um verdadeiro indulto. Suas lembranas eram mais opressivasdo que as paredes de qualquer cela.

    O guarda limpou a garganta enquanto transferia o peso de um p ao outro: Prisioneira nmero 319, por favor, levante-se.

    Ele era mais novo do que ela tinha esperado, e seu uniforme ficava folgado em seucorpo magro, entregando seu status de recruta recente. Alguns meses de raes militaresno foram suficientes para fazer sumir o fantasma da subnutrio que assombrava aspobres naves externas da Colnia, Walden e Arcadia.

    Clarke respirou fundo e se colocou de p. Estique seus braos disse ele, tirando um par de algemas do bolso de seu

    uniforme azul.Clarke tremeu quando a pele dele roou na sua. Ela no via outra pessoa desde que a

    tinham trazido para a nova cela, muito menos tocado numa. Esto muito apertadas? perguntou, seu tom brusco abrandado por uma nota de piedade que fez o peito de Clarkedoer. H muito tempo nenhuma pessoa alm de Thalia, sua antiga companheira de cela enica amiga no mundo, lhe mostrava alguma compaixo.

    Ela balanou a cabea. Ele prosseguiu: Apenas sente-se na cama. O doutor est a caminho. Vo fazer isso aqui? perguntou Clarke com a voz rouca, as palavras arranhando

    sua garganta.Se um mdico estava vindo, significava que estavam dispensando seu rejulgamento.

    Aquilo no deveria ser uma surpresa. De acordo com a lei da Colnia, adultos eramexecutados imediatamente aps a condenao e menores eram confinados atcompletarem 18 anos, quando recebiam uma ltima chance de se defenderem. Masultimamente as pessoas estavam sendo executadas horas depois de seus rejulgamentospor crimes que, h alguns anos, teriam sido perdoados.

    Ainda assim, era difcil acreditar que eles realmente fariam aquilo em sua cela. De

  • uma forma perversa, ela estava contando com uma ltima caminhada at o hospital emque passou tanto tempo durante seu estgio mdico uma ltima chance de vivenciaralgo familiar, mesmo que fosse apenas o cheiro do desinfetante e o zumbido do sistemade ventilao antes de perder a capacidade de sentir para sempre.

    O guarda falou sem olhar em seus olhos: Preciso que voc se sente.Clarke deu alguns passos curtos e se empoleirou rigidamente na borda da cama

    estreita. Embora ela soubesse que a solitria distorcia sua percepo do tempo, era difcilacreditar que estava ali, sozinha, h quase seis meses. O ano que ela tinha passado comThalia e a terceira companheira de cela, Lise uma garota com a expresso fechada quesorriu pela primeira vez quando levaram Clarke embora , tinha parecido uma eternidade.Mas no havia outra explicao. Hoje tinha que ser seu aniversrio de 18 anos, e o nicopresente esperando por Clarke era uma seringa que paralisaria seus msculos at que seucorao parasse de bater. Depois disso, seu corpo sem vida seria lanado no espao, comoera o costume na Colnia, deixado para vagar infinitamente pela galxia.

    Um vulto apareceu na porta, e um homem alto e esbelto entrou na cela. Embora ocabelo grisalho na altura dos ombros cobrisse parcialmente o broche no colarinho de seujaleco, Clarke no precisava da insgnia para reconhec-lo como o consultor-chefe demedicina do Conselho. Ela tinha passado a maior parte do ano anterior ao confinamento sombra do Dr. Lahiri, e no era capaz de contar o nmero de horas que tinha ficado ao seulado durante cirurgias. Os outros aprendizes invejavam a posio de Clarke e tinham sequeixado de nepotismo ao descobrirem que o Dr. Lahiri era um dos amigos mais prximosde seu pai. Pelo menos tinha sido antes de seus pais serem executados.

    Ol, Clarke disse ele de forma agradvel, como se a estivesse cumprimentandono refeitrio do hospital e no numa cela de deteno. Como voc est?

    Melhor do que estarei em alguns minutos, imagino.O Dr. Lahiri costumava rir do humor negro de Clarke, mas dessa vez ele franziu a

    testa e se virou para o guarda: Voc pode tirar as algemas e nos dar um momento, por favor?O guarda se moveu de forma desconfortvel: No devo deix-la desacompanhada. Voc pode esperar do lado de fora da porta falou o Dr. Lahiri, com uma

    pacincia exagerada. Ela uma garota desarmada de 17 anos. Acho que serei capaz demanter tudo sob controle.

    O guarda evitou os olhos de Clarke enquanto removia as algemas. Ele assentiurapidamente para o Dr. Lahiri enquanto saa da cela.

    Voc quis dizer que sou uma garota desarmada de 18 anos disse Clarke,forando o que ela achou ser um sorriso. Ou voc est se transformando num daquelescientistas malucos que nunca sabem em que ano estamos?

    Seu pai era assim. Ele se esquecia de programar as luzes circadianas em seuapartamento e acabava indo trabalhar s 4h da manh, muito envolvido com sua pesquisapara notar que os corredores da nave estavam desertos.

    Voc ainda tem 17 anos, Clarke falou o Dr. Lahiri, da forma calma e lenta que

  • ele normalmente reservava a pacientes acordando de uma cirurgia. Voc est nasolitria h trs meses.

    Ento o que voc est fazendo aqui? perguntou ela, incapaz de dominar o pnicoque surgia em sua voz. A lei diz que vocs tm que esperar at eu ter 18 anos.

    Houve uma mudana de planos. Isso tudo que fui autorizado a dizer. Ento voc tem autorizao para me executar, mas no para falar comigo? Ela

    se lembrou de observar o Dr. Lahiri durante o julgamento de seus pais. Naquela poca, elatinha lido sua expresso carrancuda como uma mostra de sua reprovao ao processo,mas agora no tinha mais certeza. Ele no tinha se manifestado em defesa deles.Ningum tinha. Ele tinha simplesmente ficado sentado ali calado enquanto o Conselhodeclarava que seus pais, dois dos mais brilhantes cientistas de Phoenix, tinham violado aDoutrina Gaia, as regras estabelecidas depois do Cataclismo para garantir a sobrevivnciada raa humana. E quanto aos meus pais? Voc os matou tambm?

    O Dr. Lahiri fechou os olhos, como se as palavras de Clarke tivessem setransformado em algo visvel. Algo grotesco.

    No estou aqui para mat-la disse ele, calmamente. Ele abriu os olhos e entoapontou para o banco no p da cama de Clarke. Posso? Quando Clarke norespondeu, o Dr. Lahiri seguiu adiante e se sentou para ficar de frente para ela: Possover seu brao, por favor?

    Clarke sentiu seu peito se contrair e se forou a respirar. Ele estava mentindo. Aquiloera cruel e perverso, mas tudo acabaria em um minuto.

    Ela esticou o brao na direo dele. O Dr. Lahiri colocou a mo no bolso de seu jalecoe tirou um pano que tinha cheiro de antissptico. Clarke se arrepiou quando ele o esfregouna parte interna de seu brao.

    No se preocupe. Isso no vai doer.Clarke fechou os olhos.Ela se lembrou da expresso angustiada com que Wells tinha olhado para ela

    enquanto os guardas a escoltavam para fora das cmaras do Conselho. Embora a raiva quetinha ameaado consumi-la durante o julgamento tivesse h muito tempo se esgotado,pensar em Wells enviou uma nova onda de calor por seu corpo, como uma estrelaagonizante emitindo um ltimo raio de luz antes de se apagar e se transformar em nada.

    Seus pais estavam mortos, e era tudo culpa dele.O Dr. Lahiri segurou o brao dela, seus dedos procurando a veia.At breve, me e pai.Ele segurou mais firme. Estava na hora.Clarke respirou fundo ao sentir uma picada na face interna de seu pulso. Pronto. Voc est preparada.Os olhos de Clarke se abriram rapidamente. Ela olhou para baixo e viu um bracelete

    de metal preso em seu brao. Ela passou o dedo sobre ele, se encolhendo ao sentir o queparecia ser uma dzia de pequenas agulhas pressionando contra sua pele.

    O que isso? perguntou ela freneticamente, se afastando do mdico. Apenas relaxe respondeu ele com uma indiferena irritante. um

    transmissor vital. Ele vai acompanhar sua respirao e a composio de seu sangue,

  • recolhendo todo tipo de informao relevante. Informao relevante para quem? perguntou Clarke, embora ela j pudesse

    sentir o tipo de resposta na massa crescente de terror em seu estmago. Tivemos alguns progressos empolgantes falou o Dr. Lahiri, soando como uma

    imitao vazia do pai de Wells, o Chanceler Jaha, fazendo um de seus discursos do Dia daLembrana. Voc deveria estar muito orgulhosa. tudo por causa de seus pais.

    Meus pais foram executados por traio.O Dr. Lahiri olhou para ela com desaprovao. H um ano, aquilo teria feito Clarke se

    encolher de vergonha, mas agora ela mantinha seu olhar firme. No estrague isso, Clarke. Voc tem uma chance de fazer a coisa certa, de

    compensar pelo crime escandaloso de seus pais.Um estalo seco foi ouvido quando o punho de Clarke se chocou contra o rosto do

    mdico, seguido de um som oco quando a cabea do homem bateu na parede. Segundosdepois, o guarda apareceu e torceu as mos de Clarke nas costas dela.

    O senhor est bem? perguntou ele.O Dr. Lahiri se sentou lentamente, esfregando seu maxilar enquanto examinava

    Clarke com uma mistura de raiva e prazer: Pelo menos sabemos que voc ser capaz de se garantir entre os outros

    delinquentes quando chegar l. Chegar aonde? grunhiu Clarke, tentando se soltar das mos do guarda. Estamos esvaziando o centro de deteno hoje. Uma centena de criminosos

    sortudos vai ter a chance de fazer histria. Os cantos de sua boca se contorceram numsorriso malicioso. Voc vai para a Terra.

  • CAPTULO 2Wells

    O Chanceler tinha envelhecido. Apesar de fazer menos de seis semanas desde altima vez que Wells tinha visto seu pai, ele parecia anos mais velho. Havia novos fiosbrancos em suas tmporas, e as rugas em volta de seus olhos estavam mais profundas.

    Voc finalmente vai me contar por que fez aquilo? perguntou o Chanceler comum suspiro cansado.

    Wells se moveu em sua cadeira. Ele podia sentir a verdade tentando se arrastar parafora. Ele daria quase qualquer coisa para apagar a decepo no rosto de seu pai, mas nopodia arriscar no antes de saber se seu plano imprudente tinha realmente funcionado.

    Wells evitou o olhar de seu pai ao examinar a sala ao redor, tentando memorizar asrelquias que poderia estar vendo pela ltima vez: o esqueleto de guia empoleirado nummostrador de vidro, as poucas pinturas que tinham sobrevivido ao incndio no Louvre e asfotos das lindas cidades mortas cujos nomes nunca pararam de causar calafrios em Wells.

    Foi um desafio? Voc estava tentando se exibir para seus amigos? O Chancelercontinuou no mesmo tom grave e constante que ele usava em audies do Conselho, entolevantou uma sobrancelha para indicar que era a vez de Wells falar.

    No, senhor. Voc foi acometido por um acesso temporrio de insanidade? Voc estava

    drogado? Havia um leve toque de esperana em sua voz que, em outra situao, Wellspoderia ter achado divertido.

    Mas no havia nada engraado na expresso nos olhos de seu pai, uma combinaode fadiga e confuso que Wells no via desde o funeral de sua me.

    No, senhor.Wells sentiu um impulso passageiro de tocar o brao do pai, mas algo alm das

    algemas em seus pulsos o impedia de esticar o brao por cima da escrivaninha. Mesmoquando eles tinham se juntado ao redor do portal de lanamento, dando seus ltimos esilenciosos adeuses me de Wells, eles nunca diminuram os 20 centmetros de espaoentre seus ombros. Era como se Wells e o pai fossem dois ms e a carga de seu pesaros repelisse.

    Foi alguma espcie de declarao poltica? Seu pai franziu a testa levemente,como se a ideia o atingisse como um golpe fsico. Algum de Walden ou Arcadia oobrigou a fazer isso?

    No, senhor disse Wells, engolindo sua indignao.Seu pai tinha aparentemente passado as ltimas seis semanas tentando remodelar

    Wells como uma espcie de rebelde, reprogramando suas memrias para ajud-lo acompreender por que o filho, anteriormente um aluno exemplar e agora o cadete maisgraduado, tinha cometido a infrao mais pblica da histria. Mas nem mesmo a verdadeseria suficiente para diminuir a confuso na cabea dele. Para o Chanceler, nada poderiajustificar atear fogo na rvore do den, a muda que tinha sido trazida a Phoenix logo antesdo xodo. No entanto, para Wells, aquilo no tinha sido uma escolha.

  • Assim que tinha descoberto que Clarke estaria entre os cem enviados Terra, eletivera que fazer algo para se juntar a eles. E, como o filho do Chanceler, apenas a maispblica das infraes o levaria ao confinamento.

    Wells se lembrou de si mesmo se movendo entre a multido na Cerimnia deLembrana, sentindo o peso de centenas de olhos sobre ele, sua mo tremendo ao tirar oisqueiro de seu bolso e criar uma centelha que brilhou com fora na penumbra. Por ummomento, todos tinham olhado em silncio enquanto as chamas envolviam a rvore. E,mesmo enquanto os guardas corriam em sua direo num caos repentino, ningum tinhasido capaz de se enganar sobre quem eles estavam arrastando dali.

    O que diabos voc estava pensando? perguntou o Chanceler, olhando para elecom descrena. Voc poderia ter incendiado todo o salo e matado todos que estavamali.

    Seria melhor mentir. Seria mais fcil para seu pai acreditar que Wells estava agindoem resposta a um desafio. Ou talvez ele devesse tentar fingir que estava drogado.Qualquer desses dois cenrios seria mais palatvel para o Chanceler do que a verdade que ele tinha arriscado tudo por uma garota.

    A porta do hospital se fechou atrs dele, mas o sorriso de Wells permaneceucongelado, como se a fora que tinha sido necessria para levantar os cantos de sua bocativesse danificado permanentemente os msculos de seu rosto. Atravs da nvoa dasdrogas, sua me tinha provavelmente pensado que seu sorriso parecia real, e isso era tudoo que importava. Ela tinha segurado a mo de Wells enquanto as mentiras se derramavamde dentro dele, amargas, porm inofensivas. Sim, papai e eu estamos bem. Ela noprecisava saber que eles mal tinham trocado algumas poucas palavras em semanas.

    Quando voc estiver melhor, vamos terminar A histria do declnio e queda doimprio romano. Os dois sabiam que ela nunca chegaria ao ltimo volume.

    Wells saiu do hospital e comeou a cruzar a plataforma B, que estavamisericordiosamente vazia. quela hora, a maioria das pessoas estava nos seminrios, notrabalho ou no Entreposto. Ele deveria estar numa aula de histria, normalmente suamatria favorita. Ele sempre tinha amado as narrativas sobre cidades antigas como Romae Nova York, cujos triunfos deslumbrantes apenas eram rivalizados pela magnitude desuas runas. Mas ele no podia passar duas horas cercado pelos mesmos companheiros deseminrio que tinham enchido sua fila de mensagens com condolncias vagas edesconfortveis. A nica pessoa com quem ele podia falar sobre sua me era Glass, masela andava estranhamente distante.

    Wells no sabia muito bem quanto tempo tinha ficado parado em frente portaantes de perceber que tinha chegado biblioteca. Ele permitiu que o scanner examinasseseus olhos, esperou o sinal e ento pressionou seu polegar contra a tela. A porta se abriuapenas por tempo suficiente para que Wells entrasse e ento se fechou atrs dele comum baque arrogante, como se tivesse feito um enorme favor a Wells apenas por deix-loentrar.

    Wells soltou o ar enquanto o silncio e as sombras o envolviam. Os livros quetinham sido trazidos a Phoenix antes do Cataclismo eram mantidos em grandesmostrurios sem oxignio, que retardavam significativamente o processo de deteriorao,

  • e essa era a razo para eles terem que ser lidos na biblioteca e apenas por algumas horasde cada vez. O enorme salo era escondido das luzes circadianas, num estado de perptuapenumbra.

    Desde quando ele conseguia se lembrar, Wells e a me passavam as noites dedomingo ali, sua me lendo em voz alta para ele quando ele era pequeno, depois os doislendo lado a lado enquanto ele ficava mais velho. Mas, medida que sua doena progrediae suas dores de cabea ficavam piores, Wells tinha comeado a ler para ela.

    Eles tinham acabado de comear o volume dois de A histria do declnio e queda doimprio romano na noite anterior sua internao no hospital.

    Ele ziguezagueou entre corredores estreitos at a seo de lngua Inglesa e ento ata de Histria, que ficava escondida num canto escuro no fundo do salo. A coleo eramenor do que deveria ser. O primeiro governo colonial tinha conseguido que textos digitaisfossem carregados em Phoenix, mas, menos de cem anos depois, um vrus apagou amaior parte dos arquivos digitais, e os nicos livros que restaram foram aqueles emcolees privadas bens de famlia passados dos colonos originais aos seusdescendentes. Ao longo do ltimo sculo, a maioria das relquias tinha sido doada biblioteca.

    Wells agachou at seu olho ficar na altura dos Gs. Ento pressionou seu polegarcontra a trava, e o vidro se abriu com um chiado, rompendo o lacre a vcuo. Ele esticou amo at o interior para pegar Declnio e queda, mas parou no meio do caminho. Queriacontinuar lendo para poder ser capaz de contar a sua me sobre o livro, mas aquilo seriaequivalente a chegar ao seu quarto do hospital com sua placa memorial e pedir a opiniodela sobre o que seria escrito nela.

    Voc no deve deixar o mostrurio aberto disse uma voz atrs dele. Sim, obrigado disse Wells, de forma mais seca do que gostaria que soasse. Ele

    se colocou de p e se virou, encontrando uma garota de aparncia familiar olhando paraele. Era a aprendiz de mdica do hospital. Wells sentiu uma pontada de raiva dessa fusodos mundos. A biblioteca era aonde ele ia para se esquecer do cheiro enjoativo doantissptico, do bipe do monitor cardaco que, longe de um sinal vital, se parecia com umacontagem regressiva para a morte.

    A garota deu um passo atrs e inclinou a cabea, seu cabelo claro caindo para umlado.

    Ah. voc. falou ela. Wells se preparou para o chilique de reconhecimento e osrpidos movimentos oculares que significavam que ela j estava mandando mensagens aseus amigos em seu implante de crnea. Mas os olhos dessa garota focaram diretamentesobre ele, como se estivessem olhando apenas para seu crebro, arrancando as camadaspara revelar todos os pensamentos que Wells tinha intencionalmente escondido. Vocno queria aquele livro? Ela acenou com a cabea para a prateleira em que Declnio equeda estava guardado.

    Wells balanou a cabea. Lerei outra hora.Ela ficou em silncio por um momento: Acho que voc deveria lev-lo agora. O maxilar de Wells enrijeceu, mas, quando

  • ele no disse nada, ela continuou. Eu costumava v-lo aqui com a sua me. Voc devialev-lo para ela.

    S porque meu pai est frente do Conselho, no quer dizer que eu possa violaruma lei de trezentos anos disse ele, permitindo apenas uma sombra de desdm paratornar seu tom mais pesado.

    O livro ficar bem por algumas horas. Eles exageram sobre os efeitos do ar.Wells levantou uma sobrancelha: E eles exageram sobre o poder do scanner de sada? Havia scanners na maioria

    das portas pblicas de Phoenix, que podiam ser programados para quaisquerespecificaes. Na biblioteca, o aparelho monitorava a composio molecular de cadapessoa que saa, para garantir que ningum sasse com um livro em suas mos ouescondido debaixo de suas roupas.

    Um sorriso se acendeu no rosto da menina. Resolvi isso h muito tempo. Ela olhou para trs em direo ao corredor

    sombrio entre as estantes de livros, ento enfiou a mo no bolso e tirou um pano cinza. Isso impede o scanner de reconhecer a celulose no papel. Ela o ofereceu a ele. Toma.

    Pode pegar.Wells deu um passo atrs. As chances de essa garota tentar envergonh-lo eram

    muito maiores do que a probabilidade de ela ter um pedao de tecido mgico escondidoem seu bolso.

    Por que voc tem isso?Ela deu de ombros: Gosto de ler em outros lugares. Quando ele no disse nada, ela sorriu e esticou

    sua outra mo. Apenas me d o livro. Eu vou tir-lo daqui e o levar ao hospital.Wells ficou surpreso consigo mesmo ao entregar o livro a ela. Qual o seu nome? perguntou ele. Para saber com quem voc ter uma dvida eterna? Para saber quem culpar quando for preso.A garota colocou o livro debaixo do brao e esticou a mo: Clarke. Wells respondeu, esticando a mo para apertar a dela. Ele sorriu, e dessa vez

    no doeu. Eles mal conseguiram salvar a rvore. O Chanceler olhou fixamente para Wells,

    como se estivesse procurando um sinal de remorso ou satisfao, qualquer coisa que oajudasse a entender por que seu filho tinha tentado atear fogo nica rvore trazida deseu planeta devastado. Alguns dos membros do Conselho queriam execut-lo na mesmahora, menor de idade ou no, sabia? S fui capaz de poupar sua vida ao fazer com queconcordassem em envi-lo Terra.

    Wells soltou o ar, aliviado. Havia menos de 150 jovens no Confinamento, ento eletinha imaginado que levariam todos os adolescentes mais velhos, mas at esse momentoele no tinha certeza de que seria mandado na misso.

    Os olhos de seu pai se arregalaram com surpresa e compreenso enquanto eleolhava fixamente para Wells:

  • Era isso que voc queria, no era?Wells balanou a cabea.O rosto do Chanceler se contorceu. Se soubesse que voc estava to desesperado para ver a Terra, eu poderia ter

    conseguido que voc se juntasse segunda expedio. Assim que determinssemos queera seguro.

    Eu no queria esperar. Quero ir com os primeiros cem.O Chanceler estreitou os olhos levemente enquanto examinava o rosto impassvel de

    Wells: Por qu? Voc mais do que qualquer um sabe dos riscos. Com todo o devido respeito, foi voc quem convenceu o Conselho de que o inverno

    nuclear tinha acabado. Voc disse que era seguro. Sim. Seguro o suficiente para os cem criminosos condenados que morreriam de

    qualquer forma disse o Chanceler, sua voz em uma mistura de condescendncia edescrena. Eu no quis dizer que era seguro para meu filho.

    A raiva que Wells vinha tentando asfixiar se inflamou, reduzindo sua culpa a cinzas.Ele sacudiu as mos para as algemas fazerem barulho:

    Acho que sou um deles agora. Sua me no gostaria que voc fizesse isso, Wells. S porque ela gostava de

    sonhar com a Terra no quer dizer que gostaria que voc se colocasse em perigo.Wells se inclinou para a frente, ignorando a presso do metal afundando em sua

    carne. No por causa dela que estou fazendo isso falou ele, olhando diretamente nos

    olhos de seu pai pela primeira vez desde que tinha se sentado. Embora eu realmenteache que ela ficaria orgulhosa de mim.

    Era parcialmente verdade. Ela tinha um lado romntico e teria incentivado o desejo deseu filho de proteger a garota que ele amava. Mas seu estmago se contorceu ao pensarna possibilidade de sua me saber o que ele realmente tinha feito para salvar Clarke. Averdade faria colocar fogo na rvore do den parecer uma pegadinha inofensiva.

    Seu pai olhou para ele: Voc est me dizendo que todo esse desastre por causa daquela garota?Wells balanou a cabea lentamente: minha culpa ela estar sendo mandada para l como um rato de laboratrio. Vou

    garantir que ela tenha a maior chance de sair viva.O Chanceler ficou em silncio por um momento. Mas quando falou novamente, sua

    voz estava calma: Isso no ser necessrio. O Chanceler tirou algo da gaveta de sua escrivaninha

    e o colocou na frente de Wells. Era uma argola de metal na qual estava fixado um chip dotamanho do polegar de Wells. Cada membro da expedio est nesse momento sendoequipado com uma dessas pulseiras explicou seu pai. Elas mandaro informaes devolta nave para podermos acompanhar sua localizao e monitorar seus sinais vitais.Assim que tivermos provas de que o ambiente receptivo, comearemos a recolonizao. Ele forou um sorriso sinistro. Se tudo correr como planejado, no demorar muitoat que o resto de ns desa para se juntar a vocs, e tudo isso ele apontou para as

  • mos acorrentadas de Wells ser esquecido.A porta se abriu, e um guarda entrou: Est na hora, senhor.O Chanceler concordou com a cabea, e o guarda cruzou a sala para colocar Wells de

    p. Boa sorte, filho disse o pai de Wells, assumindo sua rispidez caracterstica.

    Se algum capaz de tornar essa misso um sucesso, voc.Ele esticou a mo para apertar a de Wells, mas ento a abaixou ao perceber sua

    falha. Os braos de seu nico filho ainda estavam acorrentados s costas.

  • CAPTULO 3Bellamy

    claro que o desgraado convencido estava atrasado. Bellamy batia com o p nocho impacientemente, sem se importar com o eco que ressoava pelo depsito. Ningummais ia ali; qualquer coisa valiosa tinha sido levada h anos. Todas as superfcies estavamcobertas de lixo peas sobressalentes de mquinas cujas funes h muito tempotinham sido esquecidas; papel moeda; infinitos emaranhados de cabos e fios; telas emonitores rachados.

    Bellamy sentiu a mo de algum em seu ombro e se virou, levantando os punhospara proteger o rosto enquanto esquivava para o lado.

    Relaxe, cara falou Colton enquanto ligava sua lanterna, apontando o feixe de luzbem nos olhos de Bellamy. Ele examinou-o com uma expresso entretida em seu rostolongo e estreito. Por que voc quis que nos encontrssemos aqui embaixo? Ele sorriude forma desdenhosa. Procurando pornografia dos homens das cavernas emcomputadores quebrados? No vou julgar. Se eu ficasse preso com o que se passa poruma garota l em Walden, eu provavelmente desenvolveria meus prprios hbitosindecentes.

    Bellamy ignorou a implicncia. Apesar da nova funo de seu ex-amigo como guarda,Colton no tinha chance com nenhuma garota, independentemente de em qual nave elamorasse.

    Apenas me diga o que est acontecendo, certo? falou Bellamy, se esforandopara manter seu tom leve.

    Colton se recostou na parede e sorriu: No deixe o uniforme engan-lo, irmo. Eu no me esqueci da primeira regra dos

    negcios. Ele esticou a mo. Pode passar para mim. voc quem est confuso, Colt. Sabe que sempre cumpro minha parte. Ele

    bateu com a mo no bolso que guardava o chip carregado com os pontos de raoroubados. Agora me conte onde ela est.

    O guarda sorriu de forma maliciosa, e Bellamy sentiu algo apertar seu peito. Elevinha subornando Colton para obter informaes sobre Octavia desde que ela tinha sidopresa, e o idiota sempre parecia ter prazer em dar ms notcias.

    Vo envi-los hoje. As palavras atingiram Bellamy com um baque. Colocaramum dos mdulos de transporte da plataforma G para funcionar. Ele esticou a monovamente. Agora chega. Essa misso sigilosa e estou arriscando meu pescoo porvoc. Cansei de brincadeira.

    O estmago de Bellamy embrulhou enquanto uma srie de imagens piscava diante deseus olhos: sua irmzinha presa numa velha jaula de metal, arremessada pelo espao amilhares de quilmetros por hora. Seu rosto ficando roxo ao lutar para respirar o ar txico.Seu corpo enrugado cado, to imvel quanto...

    Bellamy deu um passo para a frente.

  • Sinto muito, cara.Colton estreitou os olhos: Por qu? Por isso.Bellamy dobrou o brao, ento acertou um soco bem no maxilar do guarda. Houve um

    estalo alto, mas ele no sentiu nada alm de seu corao disparado enquanto observavaColton cair no cho.

    Trinta minutos depois, Bellamy estava tentando entender a cena estranha diante dele.Suas costas estavam encostadas parede de um amplo saguo que levava a uma rampangreme. Condenados entravam aos montes usando jaquetas cinza, levados rampa abaixopor um punhado de guardas. Ao fundo, estava o mdulo de transporte, uma geringonaredonda equipada com fileiras de assentos com travas de segurana, que levaria os pobrese indefesos jovens Terra.

    Tudo aquilo era completamente doentio, mas ele imaginava que era melhor do que aalternativa.

    Embora voc devesse ter a chance de um rejulgamento no seu aniversrio de 18anos, h cerca de um ano praticamente todos os rus juvenis vinham sendo consideradosculpados. Sem essa misso, eles estariam contando os dias at suas execues.

    O estmago de Bellamy embrulhou quando seus olhos se fixaram sobre uma segundarampa e, por um momento, ele se preocupou com a possibilidade de ter deixado de verOctavia. Mas no importava se ele ia v-la embarcar. Os dois se reuniriam em poucotempo.

    Bellamy puxou as mangas do uniforme de Colton. Ele mal cabia na roupa, mas atagora nenhum dos outros guardas parecia notar. Estavam concentrados na parte maisbaixa da rampa, onde o Chanceler Jaha falava com os passageiros.

    Vocs receberam uma oportunidade sem precedentes de deixar o passado paratrs dizia o Chanceler. A misso em que vocs esto prestes a embarcar perigosa,mas sua bravura ser recompensada. Se vocs tiverem sucesso, suas infraes seroperdoadas e vocs sero capazes de comear novas vidas na Terra.

    Bellamy mal conseguiu evitar bufar. O Chanceler tinha muita cara de pau de ir at alie vomitar qualquer baboseira que o ajudava a dormir noite.

    Estaremos monitorando seu progresso muito atentamente para mant-los emsegurana continuou o Chanceler enquanto os prximos dez prisioneiros enchiam arampa, acompanhados por um guarda que fez uma breve saudao para o Chanceler antesde depositar seu carregamento no mdulo de transporte e subir a rampa de volta paraesperar no saguo. Bellamy examinou a multido procura de Luke, o nico waldenita queele conhecia que no tinha se transformado em um completo babaca depois de se tornarum guarda. Mas havia menos de uma dzia de guardas na plataforma de lanamento; oConselho tinha claramente decidido que o sigilo era mais importante do que a segurana.

    Ele tentou no bater com o p no cho de forma impaciente enquanto a fila deprisioneiros seguia descendo a rampa. Se ele fosse descoberto fazendo se passar porguarda, a lista de infraes seria infinita: suborno, chantagem, roubo de identidade,conspirao e o que mais o Conselho decidisse acrescentar lista. E, como ele tinha 20

  • anos, no haveria Confinamento para ele; vinte e quatro horas depois do anncio de suasentena, ele estaria morto.

    O peito de Bellamy se contraiu quando um familiar lao vermelho apareceu no fundodo saguo, por entre uma cortina de cabelo preto lustroso. Octavia.

    Durante os ltimos dez meses, ele tinha sido consumido por preocupaesagonizantes sobre o que estava acontecendo a ela no Confinamento. Ser que ela estavarecebendo o suficiente para comer? Ser que estava encontrando formas de se manterocupada? Manter a mente s? Embora o Confinamento fosse brutal para qualquer um,Bellamy sabia que aquilo seria infinitamente pior para O.

    Bellamy tinha praticamente criado sua irm mais nova. Ou pelo menos tinha tentado.Depois do acidente de sua me, ele e Octavia tinham sido deixados sob os cuidados doConselho. No havia precedentes sobre o que fazer com irmos com as rgidas leispopulacionais, um casal nunca tinha permisso para ter mais do que um filho e, algumasvezes, nem para ter um , ento ningum na Colnia entendia o que significava ter umirmo ou uma irm. Bellamy e Octavia viveram em lares coletivos diferentes durantemuitos anos, mas Bellamy sempre tinha cuidado dela, lhe passando escondido raesadicionais toda vez que ele vagava por uma das instalaes restritas de armazenamento,confrontando as meninas mais velhas falastronas que achavam que seria divertido pegarno p da rf bochechuda com grandes olhos azuis. Bellamy se preocupava com elaconstantemente. Sua irm era especial, e ele faria qualquer coisa para lhe dar a chance deter uma vida diferente. Qualquer coisa para compensar o que ela teve de suportar.

    Enquanto o guarda de Octavia a levava at a rampa, Bellamy escondeu um sorriso.Embora os outros jovens se arrastassem passivamente pelo saguo enquanto sua escoltaos levava na direo do mdulo de transporte, estava claro que era Octavia que estavaditando o ritmo. Ela se movia intencionalmente, forando seu guarda a encurtar seu passoenquanto ela descia a rampa calmamente.

    Ela na verdade parecia melhor do que da ltima vez que ele a tinha visto. Eleimaginou que aquilo fazia sentido. Ela tinha sido condenada a quatro anos de Confinamento,at um rejulgamento no seu aniversrio de 18 anos que certamente levaria suaexecuo. Agora ela estava recebendo uma segunda chance na vida. E Bellamy faziaquesto de garantir que ela aproveitasse.

    Ele no se importava com o que precisaria fazer. Ele iria Terra com ela.A voz do Chanceler ribombava sobre o clamor dos passos e dos sussurros nervosos.

    Ele ainda se portava como um soldado, mas seus anos no Conselho tinham lhe dado umbrilho de poltico.

    Ningum na Colnia sabe o que vocs esto prestes a fazer, mas, se forem bem-sucedidos, todos ns lhe deveremos nossas vidas. Sei que vocs faro o melhor possvelem nome de si mesmos, de suas famlias e de todos a bordo dessa espaonave: toda araa humana.

    Quando o olhar de Octavia se fixou sobre Bellamy, seu queixo caiu de surpresa. Elepodia ver sua mente se agitando para compreender a situao. Ambos sabiam que elenunca seria selecionado como guarda, o que significava que ele tinha que estar ali comoimpostor. Mas exatamente quando ela comeou a mover os lbios para mandar um aviso,

  • o Chanceler se virou para se dirigir aos prisioneiros que ainda estavam descendo a rampa.Octavia virou a cabea relutantemente, mas Bellamy podia ver a tenso em seus ombros.

    Seu corao acelerou quando o Chanceler terminou suas observaes e gesticuloupara que os guardas terminassem de carregar os passageiros. Ele tinha que esperar omomento exato. Se agisse cedo demais, haveria tempo para arranc-lo de dentro. Seesperasse demais, Octavia seria arremessada no espao na direo de um planeta txicoenquanto ele permaneceria para enfrentar as consequncias de atrapalhar o lanamento.

    Finalmente, foi a vez de Octavia. Ela se virou e olhou em seus olhos, sacudindo acabea levemente: um aviso claro para ele no fazer nada estpido.

    Mas Bellamy vinha fazendo coisas estpidas durante toda sua vida e no tinhanenhuma inteno de parar agora.

    O Chanceler acenou com a cabea para uma mulher com um uniforme preto. Ela sevirou para o painel de controle ao lado do mdulo de transporte e comeou a pressionaruma srie de botes.

    Grandes nmeros comearam a piscar na tela.A contagem regressiva tinha comeado.Ele tinha trs minutos para passar pela porta, descer a rampa e entrar no mdulo de

    transporte, ou perderia sua irm para sempre.Quando os ltimos passageiros foram carregados, o clima no saguo mudou. Os

    guardas prximos a Bellamy relaxaram e comearam a conversar em voz baixa entre si.Do outro lado da plataforma, na outra rampa, algum soltou uma risada irritante.

    2:48...2:47...2:46...Bellamy sentiu uma mar de raiva crescer dentro dele, momentaneamente

    dominando seus nervos. Como esses babacas podiam rir enquanto sua irm e outros 99jovens estavam sendo enviados no que poderia ser uma misso suicida?

    2:32...2:31...2:30...A mulher junto ao painel de controle sorriu e sussurrou algo para o Chanceler, mas

    ele franziu a testa e virou para o outro lado.Os guardas de verdade tinham comeado a subir a rampa e encher o saguo. Ou eles

    achavam que tinham coisas melhores a fazer do que testemunhar a primeira tentativa dahumanidade de voltar Terra ou achavam que o velho mdulo de transporte ia explodir eestavam procurando um local seguro.

    2:14...2:13...2:12...Bellamy respirou fundo. Estava na hora.Ele abriu caminho na multido com empurres e passou por trs de um guarda

    parrudo cujo coldre estava preso de forma descuidada em seu cinto, deixando o cabo daarma exposto. Bellamy tomou a arma e desceu correndo a rampa de carregamento.

    Antes que qualquer um soubesse o que estava acontecendo, Bellamy acertou umacotovelada na barriga do Chanceler e passou um brao em volta de seu pescoo, osegurando numa chave de brao.

    A plataforma de lanamento explodiu em gritos e passos pesados, mas antes quequalquer um tivesse tempo de alcan-lo, Bellamy posicionou o cano da arma contra atmpora do Chanceler. De forma alguma ele atiraria no desgraado, mas os guardas

  • precisavam pensar que ele no estava de brincadeira.1:12...1:11...1:10... Todos para trs gritou Bellamy, intensificando o aperto. O Chanceler gemeu.

    Houve um apito alto, e os nmeros piscantes mudaram de verde para vermelho. Faltavamenos de um minuto.

    Tudo o que ele precisava fazer era esperar at que a porta do mdulo de transportecomeasse a se fechar, ento empurrar o Chanceler para fora do caminho e pular paradentro. No haveria tempo para impedi-lo.

    Deixem-me entrar no mdulo de transporte ou eu atiro.O salo ficou em silncio, a no ser pelo som de uma dzia de armas sendo

    engatilhadas.Em trinta segundos, ou ele estaria seguindo para a Terra com Octavia ou voltando a

    Walden num saco morturio.

  • CAPTULO 4Glass

    Glass tinha acabado de acionar a trava de seu assento quando ouviu uma rajada degritos. Os guardas estavam cercando dois vultos perto da entrada do mdulo detransporte. Era difcil ver atravs da massa de uniformes que se movia, mas Glass viu derelance a manga de um terno, um pouco de cabelos grisalhos e o brilho de metal. Entometade dos guardas ajoelhou e levantou suas armas at seus ombros, dando a Glass umaviso desobstruda: o Chanceler estava sendo mantido como refm.

    Todos para trs gritou o captor, sua voz tremendo.Ele estava usando um uniforme, mas claramente no era um guarda. Seu cabelo era

    muito mais comprido do que o oficial, sua farda no era do tamanho certo e a formadesajeitada de segurar a arma mostrava que ele nunca tinha sido treinado para us-la.

    Ningum se moveu. Eu disse para trs.O entorpecimento que tinha tomado conta de seu corpo durante a longa caminhada

    de sua cela plataforma de lanamento derreteu como um cometa de gelo passando pelosol, deixando uma tmida trilha de esperana. Ali no era o seu lugar. Ela no podia fingirque eles estavam prestes a partir numa aventura histrica. No momento em que o mdulode transporte se separasse da nave, o corao de Glass comearia a se partir. Essa aminha chance, pensou ela repentinamente, com excitao e terror disparando dentro dela.

    Glass soltou a trava de seu assento e se levantou num pulo. Alguns outrosprisioneiros notaram, mas a maioria estava ocupada observando o drama que sedesenrolava no alto da rampa. Ela correu at o outro lado do mdulo de transporte, ondeoutra rampa levava at a plataforma de carregamento.

    Eu vou com eles gritou o rapaz enquanto dava um passo para trs na direoda porta, arrastando o Chanceler com ele. Eu vou com a minha irm.

    Um silncio chocado recaiu sobre a plataforma de lanamento. Irm. A palavra ecoouna cabea de Glass, mas, antes de ela ter tempo de processar seu significado, uma vozfamiliar a tirou de seus pensamentos.

    Deixem-no ir.Glass olhou rapidamente para o fundo do mdulo de transporte e congelou,

    momentaneamente chocada por ver o rosto de seu melhor amigo. claro que ela tinhaouvido os boatos ridculos de que Wells tinha sido confinado, mas no tinha dadoimportncia. O que ele estava fazendo ali? Enquanto ela olhava para os olhos cinzentos deWells, que estavam fixados com ateno sobre seu pai, a resposta veio at ela: ele deveter tentado seguir Clarke. Wells faria qualquer coisa para proteger as pessoas com quemse importava, acima de tudo Clarke.

    E ento houve um rudo ensurdecedor um tiro? e algo dentro dela estalou. Semparar para pensar ou respirar, ela saiu correndo pela porta e comeou a subir a rampaapressadamente. Lutando contra o impulso de olhar para trs, Glass manteve a cabeaabaixada e correu mais rpido do que j tinha corrido em toda sua vida.

  • Ela tinha escolhido o momento perfeito. Durante alguns segundos, os guardas ficaramimveis, como se a reverberao do disparo tivesse travado suas juntas.

    Ento eles a viram. Prisioneiro em fuga! gritou um deles, e os outros rapidamente se viraram em

    sua direo.O movimento rpido ativou os instintos fixados em seus crebros durante o

    treinamento. No importava se ela era uma garota de 17 anos. Eles tinham sidoprogramados para no dar importncia ao cabelo louro esvoaante e aos grandes olhosazuis que sempre tinham feito as pessoas quererem proteger Glass. Tudo o que eles viamera uma condenada em fuga.

    Glass se jogou pela porta, ignorando os gritos furiosos que a seguiam de perto. Eladisparou pelo corredor que levava de volta a Phoenix, seu peito inflando, sua respiraovindo em arfadas cansadas.

    Voc! Pare nesse instante! gritou um guarda, seus passos ecoando atrs dela,mas Glass no parou. Se corresse o suficiente, e se a sorte que vinha fugindo dela durantetoda sua vida finalmente desse o ar de sua graa, talvez ela pudesse ver Luke uma ltimavez. E talvez, apenas talvez, conseguisse fazer com que a perdoasse.

    Ofegante, Glass cambaleou por um corredor com portas sem placas. Seu joelhodireito falhou e ela se apoiou na parede para se equilibrar. O corredor estava comeando aficar desfocado. Ela olhou em volta e foi capaz de distinguir apenas o formato de um dutode ventilao. Enganchou seus dedos debaixo de uma das lminas e puxou. Nadaaconteceu. Com um gemido, ela puxou novamente, sentindo a grade de metal ceder. Entoa escancarou, revelando um tnel de metal escuro cheio de canos com aparncia antiga.

    Glass subiu no pequeno peitoril, ento se arrastou de barriga para baixo at quehouvesse espao para levantar os joelhos at o peito. O metal estava frio contra sua peleque ardia. Com seu ltimo miligrama de fora, ela se arrastou para mais dentro do tnel efechou o duto de ventilao atrs dela. Manteve os ouvidos atentos a sinais deperseguio, mas no havia mais gritaria nem mais passos, apenas a batida desesperadade seu corao.

    Glass piscou na quase escurido, tentando entender onde ela estava. O espaoapertado se estendia nas duas direes, cheio de poeira. Aquela tinha que ser uma dastubulaes originais, de antes de a Colnia construir seus novos sistemas de circulao efiltragem de ar. Glass no fazia ideia de aonde aquilo a levaria, mas no tinha outrasopes. Comeou rastejar para a frente.

    Depois do que pareceu horas, com os joelhos dormentes e as mos queimando, elachegou a uma bifurcao. Se seu senso de direo estivesse certo, ento o tnel esquerda levaria a Phoenix e o outro seguiria paralelo ponte suspensa na direo deWalden. E de Luke.

    Luke, o rapaz que ela amava e que tinha sido obrigada a abandonar h tantos meses.Sobre quem ela tinha pensado durante cada noite no Confinamento, to desesperada porseu toque que quase sentia a presso de seus braos em volta dela.

    Ela respirou fundo e seguiu pela direita, sem saber se estava indo na direo daliberdade ou da morte certa.

  • Dez minutos depois, Glass deslizou silenciosamente para fora do duto de ventilao edeixou seu corpo chegar ao cho. Deu um passo para a frente e tossiu enquanto umanuvem de poeira envolvia seu rosto, grudando na pele suada. Ela estava em algumaespcie de depsito.

    medida que seus olhos se ajustavam escurido, formas comeavam a sematerializar na parede palavras, Glass percebeu. Ela deu mais alguns passos adiante, eseus olhos se arregalaram. Havia mensagens entalhadas nas paredes.

    Descanse em pazIn memoriamDas estrelas aos cusEla estava na plataforma de quarentena, a seo mais antiga de Walden. Quando a

    guerra nuclear e biolgica ameaou destruir a Terra, o espao tinha sido a nica opopara aqueles suficientemente afortunados para sobreviver aos primeiros estgios doCataclismo. Mas alguns sobreviventes infectados conseguiram entrar nas cpsulas detransporte apenas para se verem barrados de Phoenix, abandonados para morrer emWalden. Agora, toda vez que existia a menor ameaa de doena, qualquer um queestivesse infectado era colocado em quarentena, afastado do resto da populao vulnervelda Colnia, o que sobrara da raa humana.

    Glass tremia ao se mover rapidamente na direo da porta, rezando para que noestivesse emperrada por causa da ferrugem. Para seu alvio, ela foi capaz de abri-la, ecomeou a correr pelo corredor. Tirou a jaqueta molhada de suor; com sua camisetabranca e sua cala modelo priso, ela podia se passar por uma operria, algum da reade saneamento, talvez. Ela olhou de forma nervosa para o bracelete em seu pulso. Nosabia se ele funcionaria dentro da nave ou se apenas deveria transmitir informaes daTerra. De qualquer forma, ela precisava descobrir uma forma de tirar aquilo o mais rpidopossvel. Mesmo se evitasse as passagens com scanner de retina, todos os guardas naColnia estariam procurando por ela.

    Sua nica esperana era que eles estivessem esperando que ela corresse de voltapara Phoenix.

    Eles nunca adivinhariam que ela viria para c. Glass subiu a escadaria principal deWalden at chegar entrada da unidade residencial de Luke. Ento virou em seu corredor edesacelerou, esfregando as mos suadas na cala, repentinamente mais nervosa do quetinha estado no mdulo de transporte.

    Ela no conseguia imaginar o que ele diria, a expresso em seu rosto quando a vissena porta de sua casa depois de seu desaparecimento, mais de nove meses antes.

    Mas talvez ele no tivesse que dizer nada. Quem sabe, assim que a visse, assim queas palavras comeassem a se derramar da boca de Glass, ele a silenciaria com um beijo,contando com seus lbios para lhe dizer que tudo estava bem. Que ela estava perdoada.

    Glass olhou para trs e saiu cuidadosamente pela porta. Ela no achava que algum atinha visto, mas tinha que ser cuidadosa. Era incrivelmente grosseiro abandonar umaCerimnia de Unio antes da bno final, mas Glass no achava que seria capaz depassar mais um minuto sentada ao lado de Cassius, com sua mente suja e seu bafo aindamais podre. Suas mos bobas faziam Glass se lembrar de Carter, o traioeiro colega de

  • apartamento de Luke que s deixava seu lado nojento sair das sombras quando Lukeestava no planto da guarda.

    Glass subiu a escadaria na direo da plataforma de observao, tomando o cuidadode levantar a barra do vestido a cada passo. Tinha sido uma tolice gastar tantos pontos derao juntando os materiais para o vestido, um pedao de lona que ela tinhaescrupulosamente costurado a uma combinao prata. Aquilo parecia completamente semsentido quando Luke no estava ali para v-la.

    Ela odiava passar a noite com outros rapazes, mas sua me se recusava a deixarGlass ser vista num evento social sem um par e, at onde ela sabia, sua filha era solteira.

    Ela no conseguia entender por que Glass no tinha fisgado Wells. Por mais queGlass lhe explicasse que no tinha aquele tipo de sentimento por ele, sua me sempresuspirava e murmurava alguma coisa sobre no deixar alguma menina cientista malvestidaroub-lo. Mas Glass estava feliz por Wells ter se apaixonado pela bela, apesar de umpouco sria demais, Clarke Griffin. Ela apenas gostaria de poder contar a verdade suame: que ela estava apaixonada por um lindo e brilhante rapaz que nunca poderiaacompanh-la a um concerto ou a uma Cerimnia de Unio.

    A senhorita me concede esta dana?Glass se assustou e virou. Quando seus olhos se fixaram num par de familiares

    olhos castanhos, seu rosto se abriu num grande sorriso. O que voc est fazendo aqui? sussurrou ela, olhando ao redor para se

    assegurar de que eles estavam sozinhos. Eu no podia deixar aqueles garotos de Phoenix ficarem com voc s para eles

    disse Luke, dando um passo para trs para admirar o vestido. No quando voc estlinda assim.

    Voc sabe em que tipo de confuso voc vai se meter se o descobrirem? Deixe que tentem me pegar. Ele passou os braos em volta da cintura de Glass

    e, enquanto a msica no andar de baixo ficava mais alta, a rodou no ar. Bote-me no cho! falou Glass, parte um sussurro, parte uma risada enquanto

    batia de brincadeira no ombro dele. assim que mocinhas so ensinadas a falar com cavalheiros admiradores?

    perguntou ele, usando um terrvel sotaque falso de Phoenix. Vamos l disse ela, sorrindo enquanto segurava a mo dele. Voc realmente

    no deveria estar aqui.Luke parou e a puxou para mais perto dele: Onde quer que voc esteja onde eu deveria estar. muito arriscado falou ela suavemente, levantando seu rosto at o dele.Ele sorriu: Ento melhor garantirmos que valeu a pena. Ele posicionou a mo atrs da

    cabea de Glass e levou seus lbios at os dela.Glass levantava a mo para bater uma segunda vez quando a porta abriu. Seu

    corao pulou.L estava ele, seu cabelo louro e seus olhos de um castanho profundo, exatamente

    como ela se lembrava deles, exatamente como eles apareciam em seus sonhos todas as

  • noites no Confinamento.Os olhos dele se arregalaram de surpresa. Luke sussurrou ela, toda a emoo dos ltimos nove meses ameaando

    domin-la. Ela estava desesperada para lhe contar o que tinha acontecido, por que ela tinhaterminado com ele e desaparecido. Que ela tinha passado cada minuto dos ltimos seismeses de pesadelo pensando nele.

    Que ela nunca tinha deixado de am-lo. Luke disse ela novamente, uma lgrimaescorrendo por sua bochecha. Depois de incontveis vezes que tinha se desesperado emsua cela, murmurando seu nome entre soluos, parecia surreal dizer aquilo para ele.

    Mas antes que ela tivesse a chance de capturar qualquer uma das palavrasborboleteando em sua mente, outro vulto apareceu na porta, uma garota com cabelo ruivoondulado.

    Glass?Glass tentou sorrir para Camille, a amiga de infncia de Luke, uma garota que era

    to prxima dele quanto Glass era de Wells. E agora ela estava aqui... no apartamento deLuke. Claro, pensou Glass, com amargura. Ela sempre tinha imaginado se havia algo maisdo que Luke tinha admitido na relao entre os dois.

    Voc gostaria de entrar? perguntou Camille com uma educao exagerada.Ela envolveu a mo na de Luke, mas Glass sentiu como se os dedos de Camille

    tivessem afundado em seu corao. Enquanto Glass tinha passado meses no Confinamentosofrendo por Luke at que a ausncia dele parecesse uma dor fsica, ele tinha seguidoadiante com outra pessoa.

    No... no, est tudo bem disse Glass, sua voz rouca. Mesmo se elaconseguisse encontrar as palavras, seria impossvel dizer a Luke a verdade agora. Ver osdois juntos tornou ainda mais ridculo o fato de ela ter vindo de to longe, de ter arriscadotanto, para ver um rapaz que j tinha seguido com sua vida.

    Apenas passei para dizer oi. Voc apenas passou para dizer oi? repetiu Luke. Depois de quase um ano

    ignorando minhas mensagens, voc achou que podia simplesmente dar um pulo aqui? Ele nem estava tentando esconder a raiva, e Camille soltou sua mo. O sorriso dela foi sefechando numa careta.

    Eu sei. Eu... sinto muito. Vou deixar vocs dois em paz. O que est realmente acontecendo? perguntou Luke, trocando um olhar com

    Camille que fez Glass se sentir ao mesmo tempo desesperadamente tola e terrivelmentesolitria.

    Nada falou Glass rapidamente, tentando e no conseguindo evitar que sua voztremesse. Falo com voc... vejo voc... Ela interrompeu o que estava falando com umsorriso fraco e respirou fundo, ignorando o apelo furioso de seu corpo para ficar perto dele.

    Mas, exatamente quando se virou, ela viu de relance o uniforme de um guarda.Respirou fundo e virou o rosto enquanto o guarda passava.

    Luke apertou os lbios enquanto olhava para algo logo atrs da cabea de Glass. Eleestava lendo uma mensagem em seu implante de crnea, Glass percebeu. E pela formaque seu maxilar estava enrijecendo, ela teve a sensao nauseante de que era sobre ela.

  • Os olhos dele se arregalaram com compreenso e ento horror. Glass disse ele, com a voz rouca. Voc foi Confinada.No era uma pergunta. Glass assentiu.Ele voltou seu olhar para Glass por um momento, ento suspirou e esticou o brao,

    colocando a mo nas costas dela. Ela podia sentir a presso de seus dedos atravs dotecido de sua camiseta fina e, apesar da ansiedade, sua pele se arrepiou com o toque dele.

    Vamos l disse ele, a puxando em sua direo. Camille deu um passo para olado, parecendo irritada enquanto Glass cambaleava para dentro do apartamento. Lukerapidamente fechou a porta atrs deles.

    A pequena sala de estar estava escura Luke e Camille estavam no lado de dentrocom as luzes apagadas. Glass tentou afastar as implicaes daquele fato enquantoobservava Camille se sentar na poltrona que a bisav de Luke tinha encontrado noEntreposto. Glass se movia de forma desconfortvel, sem saber se sentava. Ser ex-namorada de Luke de alguma forma parecia mais esquisito do que ser uma condenada emfuga. Ela tivera seis meses no Confinamento para se acostumar ficha criminal, masGlass nunca tinha imaginado como seria entrar nesse apartamento se sentindo umadesconhecida.

    Como voc fugiu? perguntou ele.Glass parou. Ela tinha passado todo seu tempo no Confinamento imaginando o que

    diria a Luke se um dia tivesse a chance de v-lo novamente. E agora que tinha finalmenteconseguido voltar at ele, todos os discursos que tinha praticado pareciam fracos eegostas. Ele estava bem; ela podia ver isso agora. Por que lhe contaria a verdade, a noser para recuper-lo e ficar menos solitria? Ento, com uma voz trmula, Glassrapidamente lhe contou sobre os cem e sua misso secreta, a situao com o refm e aperseguio.

    Mas ainda no compreendo. Luke olhou para trs em direo a Camille, quetinha desistido de fingir que no estava prestando ateno. Por que voc foi Confinadaem primeiro lugar?

    Glass afastou o olhar, incapaz de encar-lo enquanto seu crebro buscavadesesperadamente uma explicao. Ela no podia lhe contar; no agora, quando ele tinhaseguido com sua vida. No quando era to bvio que ele no sentia o mesmo em relao aela.

    No posso falar sobre isso disse ela em voz baixa. Voc no entend... Est tudo bem. Luke a interrompeu bruscamente. Voc deixou bem claro que

    h muitas coisas que no sou capaz de entender.Por um breve momento, Glass desejou ter permanecido no mdulo de transporte com

    Clarke e Wells. Apesar de estar parada ao lado do rapaz que amava, no conseguia seimaginar sentindo mais solido na Terra abandonada do que nesse momento.

  • CAPTULO 5Clarke

    Durante os primeiros dez minutos, os prisioneiros estavam muito agitados por causado tiroteio para perceber que estavam flutuando pelo espao, os nicos humanos a sair daColnia em quase trezentos anos. O guarda impostor tinha conseguido o que queria: tinhaempurrado o corpo inerte do Chanceler para a frente exatamente quando a porta domdulo de transporte estava fechando, e ento se jogado num assento. Mas pelaexpresso chocada em seu rosto plido, Clarke percebeu que tiros nunca tinham sido partede seu plano.

    Ainda assim, para Clarke, ver o Chanceler levar um tiro era menos alarmante do queo que ela tinha visto nos momentos antes de aquilo acontecer.

    Wells estava no mdulo de transporte.Quando ele apareceu na porta pela primeira vez, ela teve certeza que era uma

    alucinao. A chance de ela ter enlouquecido na solitria era infinitamente maior do que achance de o filho do Chanceler acabar no Confinamento. Ela j tinha ficado suficientementechocada quando, um ms depois de sua prpria condenao, a melhor amiga de Wells,Glass, tinha aparecido numa cela da mesma fileira da dela. E agora Wells tambm? Aquiloparecia impossvel, mas no havia como negar. Ela o tinha visto se levantar num saltodurante o impasse, ento se encolher em seu assento quando a arma do guarda deverdade disparou e o impostor entrou correndo pela porta, coberto de sangue. Por ummomento, um velho instinto quis que ela corresse at Wells e o confortasse. Mas algomuito mais pesado que a trava de seu assento mantinha seus ps enraizados no cho. Porcausa dele, ela tinha visto seus pais serem arrastados at a cmara de execuo.Qualquer dor que ele estivesse sentindo no era menos do que ele merecia.

    Clarke.Ela olhou para o lado e viu Thalia sorrindo para ela, algumas fileiras sua frente. Sua

    antiga companheira de cela se contorceu em seu assento, a nica pessoa no mdulo detransporte que no estava olhando fixamente para o guarda. Apesar das circunstnciassinistras, Clarke no conseguiu resistir e sorriu de volta. Thalia tinha aquele efeito. Nosdias depois da priso de Clarke e da execuo de seus pais, quando seu pesar parecia tointenso que ficava difcil respirar, Thalia tinha na verdade feito Clarke rir com suaimitao do guarda convencido cujo andar arrastado se empertigava toda vez que eleachava que as garotas estavam olhando para ele.

    ele? perguntou Thalia sem emitir som, acenando com a cabea na direo deWells.

    Thalia era a nica pessoa que sabia tudo; no apenas sobre os pais de Clarke, massobre a coisa indizvel que Clarke tinha feito.

    Clarke balanou a cabea para sinalizar que agora no era a hora de falar sobreaquilo. Thalia gesticulou novamente. Clarke comeou a falar para ela parar com aquiloquando os propulsores principais comearam a funcionar, arrancando as palavras de suaboca.

  • Tinha realmente acontecido. Pela primeira vez em sculos, humanos tinham sado daColnia.

    Ela olhou para os outros passageiros e viu que todos tambm tinham ficado calados,um espontneo minuto de silncio em homenagem ao mundo que eles estavam deixandopara trs.

    Mas o clima solene no durou muito. Durante os vinte minutos seguintes, o mdulode transporte se encheu com o burburinho nervoso e muito excitado de cem pessoas que,at poucas horas atrs, nunca nem tinham pensado em ir Terra. Thalia tentou gritar algopara Clarke, mas suas palavras se perderam na balbrdia.

    A nica conversa que Clarke foi capaz de acompanhar foi a de duas garotas suafrente, que discutiam a respeito da probabilidade de o ar na Terra ser respirvel.

    Eu preferiria cair morta de uma vez a passar dias sendo envenenada lentamente disse uma delas de forma sinistra.

    Clarke de certa forma concordava, mas manteve a boca fechada. No havia motivopara especular. A viagem Terra seria curta; em poucos minutos eles conheceriam seudestino.

    Clarke olhou para fora das janelas, que agora estavam se enchendo de nuvenscinzentas. O

    mdulo de transporte sacudiu repentinamente, e o zumbido de conversas deu lugar auma srie de exclamaes.

    Est tudo bem gritou Wells, falando pela primeira vez desde que as portas sefecharam. esperado passarmos por turbulncia ao entrarmos na atmosfera da Terra... Mas suas palavras foram cobertas pelos berros que tomaram conta da cabine.

    A trepidao aumentou, seguida de um zumbido estranho. A trava de Clarke seafundava em sua barriga conforme seu corpo era arremessado de um lado para o outro,ento para cima e para baixo e depois de um lado para o outro novamente. Ela seengasgou quando um cheiro ranoso chegou ao seu nariz, e percebeu que a garota suafrente tinha vomitado. Clarke fechou os olhos com fora e tentou se manter calma. Tudoestava bem. Aquilo tudo acabaria em um minuto.

    O zumbido se transformou num uivo penetrante, marcado por um estalo nauseante.Clarke abriu os olhos e viu que as janelas tinham rachado e j no estavam mais cheiasde nuvens cinzentas.

    Elas estavam cheias de chamas.Pedaos de metal incandescente comearam a voar sobre eles. Clarke levantou os

    braos para proteger sua cabea, mas ainda podia sentir os detritos queimando seupescoo.

    O mdulo de transporte sacudiu ainda mais forte e, com um estrondo, parte do tetofoi arrancada.

    Houve um estalo ensurdecedor seguido de um baque que enviou ondas de dor portodos os ossos em seu corpo.

    To rpido quanto comeou, aquilo tudo tinha terminado.A cabine estava escura e silenciosa. Fumaa saa do buraco onde o painel de controle

    estivera, e o ar ficou espesso com o cheiro de metal derretido, suor e sangue.

  • Clarke se contorceu enquanto mexia com os dedos das mos e dos ps. Estavadoendo, mas nada parecia estar quebrado. Ela soltou sua trava e se levantou aindatremendo, se segurando ao assento chamuscado para se equilibrar.

    A maior parte das pessoas ainda estava em seus assentos, mas algumas estavamcadas para os lados ou esparramadas no cho. Clarke apertou os olhos enquantoexaminava as fileiras procura de Thalia, seu corao acelerando toda vez que seus olhosparavam sobre um assento vazio. Uma percepo aterrorizante surgiu na confuso dacabea de Clarke. Alguns dos passageiros tinham sido arremessados para fora na queda.

    Clarke caminhou com dificuldade, cerrando os dentes por causa da dor que subia porsua perna.

    Ela chegou at a porta e a puxou com o mximo de fora que conseguiu. Entorespirou fundo e passou o corpo pela abertura.

    Por um momento, ela percebeu apenas cores, sem formas. Listras de azul, verde emarrom to vibrantes que seu crebro no era capaz de processar. Uma lufada de ventopassou por ela, fazendo sua pele se arrepiar e inundando seu nariz com cheiros que Clarkeno era capaz de comear a identificar. A princpio, tudo o que foi capaz de ver foram asrvores. Havia centenas delas, como se todas as rvores da Terra tivessem vindo lhes daras boas-vindas. Seus enormes galhos estavam levantados na direo do cu, que tinhauma cor azul cheia de vida. O solo se estendia por todas as direes dez vezes maisextenso do que a plataforma mais comprida da nave. A quantidade de espao era quaseinconcebvel, e Clarke repentinamente sentiu sua cabea leve, como se estivesse prestes aflutuar para longe dali.

    Ela percebeu vagamente algumas vozes atrs dela e se virou, avistando alguns dosoutros saindo do mdulo de transporte.

    lindo sussurrou uma garota de pele escura enquanto se abaixava para passara mo trmula sobre a grama verde brilhante.

    Um rapaz baixo e parrudo deu alguns passos claudicantes para a frente. A atraogravitacional na Colnia deveria imitar a da Terra, mas, comparada verdadeira, ficavaclaro que no tinham conseguido acertar em cheio.

    Tudo est bem disse o garoto, com uma mistura de alvio e confuso na voz. Poderamos ter voltado h muito tempo.

    Voc no sabe disso respondeu a menina. S porque podemos respirar agora,no significa que o ar no seja txico. Ela se contorceu para ficar de frente para ele emostrou seu pulso, gesticulando com seu bracelete. O Conselho no nos deu essascoisas como joias. Eles querem ver o que acontece conosco.

    Uma menina menor que vagava perto do mdulo de transporte gemeu enquantocolocava a jaqueta sobre a boca.

    Voc pode respirar normalmente falou Clarke para ela, olhando ao seu redorpara ver se Thalia j tinha aparecido. Ela esperava ter algo mais reconfortante para dizer,mas no havia como saber quanta radiao ainda estava na atmosfera. Tudo o que elespodiam fazer era esperar e torcer.

    Voltaremos logo disse seu pai enquanto enfiava seus longos braos no palet deum terno que Clarke nunca tinha visto antes. Ele caminhou at o sof onde ela estava

  • enroscada com seu tablet e bagunou seu cabelo. No fique fora at tarde. Eles tmsido rigorosos com o toque de recolher recentemente. Algum problema em Walden, acho.

    No vou a lugar nenhum disse Clarke, apontando para seus ps descalos e acala cirrgica que ela usava para dormir. Para o cientista mais famoso da Colnia, oraciocnio dedutivo de seu pai deixava um pouco a desejar. Embora ele passasse tantotempo envolvido com sua pesquisa, era improvvel que ele no soubesse que uniformes demdico no eram considerados a alta moda entre garotas de 16 anos.

    De qualquer forma, seria melhor se voc ficasse longe do laboratrio falou elecom um descaso calculado, como se a ideia tivesse acabado de passar por sua cabea.

    Na realidade, ele falava aquilo umas cinco vezes por dia desde que tinham se mudadopara o novo apartamento. O Conselho tinha aprovado seu pedido por um laboratrioparticular feito sob encomenda, pois o novo projeto de seus pais exigia que elesmonitorassem experimentos durante a noite.

    Prometo disse Clarke a eles, com pacincia exagerada. s porque perigoso se aproximar dos materiais radioativos explicou sua

    me de onde estava, em frente ao espelho, arrumando o cabelo. Especialmente sem oequipamento adequado.

    Clarke repetiu sua promessa at eles sarem, ento foi finalmente capaz de voltar aseu tablet, embora no conseguisse evitar se perguntar preguiosamente o que Glass esuas amigas diriam se soubessem que Clarke estava passando a noite de sexta-feiratrabalhando numa dissertao. Clarke normalmente era indiferente ao seu seminrio deLiteratura Terrena, mas esse trabalho tinha despertado seu interesse. Em vez de mais umtrabalho previsvel sobre a viso mutante da natureza na poesia pr-Cataclsmica, seututor tinha lhes pedido para comparar e contrastar as febres por vampiros nos sculosXIX e XXI.

    Ainda assim, embora a leitura fosse interessante, ela deve ter apagado a certaaltura, porque, quando se sentou, as luzes circadianas estavam mais fracas e a sala deestar havia se transformado em um amontoado de sombras desconhecidas. Ela selevantou e estava pronta para seguir para seu quarto quando um som estranho perfurou osilncio.

    Clarke congelou. Quase soava como um grito. Ela se forou a respirar fundo; deviasaber que no era uma boa ideia ler sobre vampiros antes de dormir.

    Clarke se virou e comeou a descer o corredor, mas ento outro som surgiu umguincho que causou calafrios em sua espinha.

    Pare com isso, Clarke se reprimiu. Ela nunca conseguiria ser uma mdica se deixassesua mente pregar peas nela mesma. Estava apenas perturbada por causa da escuridoainda desconhecida do novo apartamento. Pela manh, tudo voltaria ao normal. Passou apalma da mo em frente ao sensor na porta de seu quarto, e estava prestes a entrarquando ouviu novamente um gemido angustiado.

    Com o corao batendo forte, Clarke se virou e seguiu pelo longo corredor que levavaao laboratrio. No lugar de um scanner de retina, havia um teclado. Clarke passou osdedos sobre o painel, brevemente se perguntando se seria capaz de adivinhar a senha,ento agachou e pressionou o ouvido contra a porta.

  • A porta vibrou quando outro som zumbiu no ouvido de Clarke. O ar ficou preso emsua garganta. Isso impossvel. Mas quando o som veio novamente, ficou ainda maisclaro.

    No era apenas um grito de angstia. Eram palavras. Por favor.Os dedos de Clarke voaram sobre o teclado enquanto ela digitava a primeira coisa

    que veio sua mente: Pangea. Esse era o cdigo que sua me usava para arquivosprotegidos. A tela apitou e uma mensagem de erro apareceu. Em seguida ela digitouElysium, o nome de uma cidade subterrnea mtica na qual, de acordo com as histriasque os pais contavam para as crianas dormirem, humanos se refugiaram depois doCataclismo. Outro erro. Clarke vasculhou sua memria, buscando palavras que ela tinhaarmazenado. Seus dedos pairavam sobre o teclado. Lucy. O nome do vestgio homindeonascido na Terra mais antigo que os arquelogos tinham descoberto. Ela ouviu uma sriede campainhas baixas, e a porta de correr se abriu.

    O laboratrio era muito maior do que ela tinha imaginado; maior do que oapartamento inteiro e repleto de fileiras de camas estreitas, como no hospital.

    Os olhos de Clarke se arregalaram enquanto passavam de uma cama para outra.Cada cama tinha uma criana. A maioria delas estava deitada, dormindo, conectada a

    vrios monitores de sinais vitais e suportes para soro, embora alguns estivessemrecostados em travesseiros, mexendo em tablets em seus colos. Uma pequena menina,que dificilmente tinha mais de 2 anos, estava sentada no cho ao lado de sua cama,brincando com um urso de pelcia esfarrapado enquanto um lquido transparente pingavade uma bolsa de soro em seu brao.

    O crebro de Clarke disparou em busca de uma explicao. Essas tinham que sercrianas doentes que exigiam cuidado permanente. Talvez elas estivessem sofrendo dealguma doena rara que apenas sua me sabia como curar, ou quem sabe seu paiestivesse prximo de inventar um novo tratamento e precisasse de acesso a elas 24

    horas por dia. Eles deveriam saber que Clarke ficaria curiosa, mas como a doenaera provavelmente contagiosa, tinham mentido para Clarke a fim de mant-la emsegurana.

    O mesmo grito que Clarke tinha ouvido do apartamento surgiu novamente, dessa vezmuito mais alto. Ela o seguiu at uma cama do outro lado do laboratrio.

    Uma garota de sua prpria idade uma das mais velhas no salo, Clarke percebeu estava deitada de barriga para cima, com o cabelo louro-escuro espalhado em volta deseu rosto com formato de corao. Durante um momento, ela simplesmente olhou paraClarke.

    Por favor disse ela. Sua voz tremeu. Ajude-me.Clarke olhou para a etiqueta no monitor de sinais vitais da menina. PACIENTE 121. Qual o seu nome? perguntou ela. Lilly.Clarke ficou parada ali de forma constrangida, mas quando Lilly chegou para trs nos

    travesseiros, Clarke se abaixou para sentar na cama ao lado dela. Ela tinha acabado decomear seu treinamento em medicina e ainda no tinha interagido com pacientes, mas

  • sabia que uma das partes mais importantes de ser um mdico eram os modos junto cama.

    Tenho certeza de que voc poder ir para casa logo falou ela. Assim quevoc estiver se sentindo melhor. A menina puxou os joelhos at o peito e enterrou acabea, dizendo algo muito abafado para Clarke poder distinguir. O qu? perguntou.

    A menina olhou por cima do ombro, se perguntando por que no havia umaenfermeira ou um aprendiz de mdico substituindo seus pais. Se algo acontecesse a umadas crianas, no haveria ningum para ajud-las.

    A garota levantou a cabea, mas no olhou para Clarke. Ela mordeu o lbio enquantoas lgrimas em seus olhos recuavam, deixando um vazio em seu lugar.

    Quando ela finalmente falou, foi com um sussurro: Ningum nunca melhora.Clarke reprimiu um calafrio. Doenas eram raras na nave; no tinha havido nenhuma

    epidemia desde o ltimo surto que eles tinham colocado em quarentena em Walden.Clarke olhou em volta, procurando algo que indicasse o que seus pais estavam

    tratando, e seus olhos se fixaram sobre um enorme monitor na parede do outro lado dosalo.

    Dados piscavam por todos os lados, formando um grande grfico. Paciente 32. Idade7.

    Dia 189. 3.4 Gy. Contagem de hemcias. Contagem de leuccitos. Respirao.Paciente 33. Idade 11. Dia 298. 6 Gy. Contagem de hemcias. Contagem de leuccitos.

    Respirao.A princpio, Clarke no deu ateno aos dados. Fazia todo sentido que seus pais

    monitorassem os sinais vitais de crianas doentes sob seus cuidados. S que Gy no tinhanada a ver com sinais vitais. Um Gray era uma medida de radiao, um fato que ela sabiamuito bem, pois seus pais vinham investigando os efeitos da exposio radiao hanos, parte da tarefa em andamento de determinar quando seria seguro para que oshumanos voltassem Terra.

    O olhar de Clarke se fixou no rosto plido de Lilly enquanto uma percepoassustadora saa de um buraco escondido de sua mente. Clarke tentou escond-la de volta,mas ela se enroscou em sua negao, sufocando todos os pensamentos a no ser averdade, que era to aterrorizante que ela quase vomitou.

    A pesquisa de seus pais no era mais limitada cultura de clulas. Eles tinhampassado a fazer testes em humanos.

    Sua me e seu pai no estavam curando essas crianas. Eles as estavam matando.Eles tinham pousado em alguma espcie de clareira, um espao em forma de L

    cercado por rvores.No havia muitos ferimentos graves, mas eram suficientes para manter Clarke

    ocupada. Durante quase uma hora, ela usou mangas de jaquetas e pernas de calasrasgadas como torniquetes improvisados e pediu para as poucas pessoas com ossosquebrados ficarem deitadas sem se mover at que ela encontrasse uma forma de produzirtalas. Seus suprimentos estavam espalhados pela grama, mas, embora ela tivessemandado vrias pessoas procura do ba de medicamentos, ele no tinha sido recuperado.

    O mdulo de transporte danificado estava na ponta mais estreita da clareira e,

  • durante os primeiros quinze minutos, os passageiros tinham se amontoado em volta dosdestroos em brasa, muito assustados e chocados para dar mais do que alguns passostrmulos. Mas agora eles tinham comeado a se dispersar. Clarke no tinha avistadoThalia nem Wells, embora ela no soubesse muito bem se aquilo a deixava mais ansiosaou aliviada. Talvez ele estivesse por a com Glass.

    Clarke no a tinha visto no mdulo de transporte, mas ela tinha que estar ali emalgum lugar.

    Como voc est se sentindo? perguntou Clarke, voltando a envolver o tornozeloinchado de uma bela menina de olhos arregalados e com uma fita vermelha puda nocabelo escuro.

    Melhor disse ela, limpando o nariz com a mo e involuntariamente espalhando osangue do corte em seu rosto. Clarke tinha que achar gaze de verdade e antissptico. Elestodos estavam sendo expostos a germes que seus corpos nunca tinham encontrado, e orisco de uma infeco era alto.

    Volto num instante. Clarke lhe ofereceu um sorriso rpido e se levantou. Se oba de medicamentos no estava na clareira, aquilo significava que ele provavelmenteainda estava no mdulo de transporte. Ela correu de volta at os destroos que aindasoltavam fumaa, dando a volta enquanto procurava a forma mais segura de entrarnovamente. Clarke chegou ao fundo da nave, que estava a apenas alguns metros da linhadas rvores, e sentiu um calafrio. As rvores ficavam to juntas nesse lado da clareiraque suas folhas bloqueavam a maior parte da luz, criando sombras intricadas no solo quemudavam de forma quando o vento soprava.

    Seus olhos se estreitaram quando focaram em algo que no se movia. No era umasombra.

    Uma garota estava cada no cho, aninhada contra as razes de uma rvore. Ela deviater sido arremessada pelos fundos do mdulo de transporte durante a aterrissagem. Clarkepartiu em sua direo e sentiu um soluo se formar em sua garganta quando reconheceu ocabelo curto e encaracolado da menina e as sardas em seu nariz. Thalia.

    Clarke correu e ajoelhou ao lado dela. Sangue estava jorrando de um ferimento nalateral de suas costelas, manchando a grama debaixo dela de vermelho-escuro, como se aprpria terra estivesse sangrando. Thalia estava respirando, mas suas arfadas eramcansadas e curtas.

    Vai ficar tudo bem sussurrou Clarke, segurando a mo sem fora de sua amigaenquanto o vento farfalhava sobre elas. Prometo, Thalia, vai ficar tudo bem.

    Aquilo soava mais como uma reza do que uma garantia, embora ela no tivessecerteza de para quem estava rezando. Os humanos tinham abandonado a Terra em seumomento mais sombrio; ela no se importaria com quantos morreriam tentando retornar.

  • CAPTULO 6Wells

    Wells tremeu no frio do fim da tarde. Nas poucas horas desde que eles tinhampousado, o ar tinha ficado cada vez mais frio. Ele se aproximou da fogueira, ignorando osolhares maliciosos dos dois rapazes arcadianos que o cercavam. Em cada noite que tinhapassado no Confinamento, ele tinha cado no sono sonhando em chegar Terra comClarke. Mas, em vez de segurar sua mo enquanto eles admiravam o planeta,maravilhados, Wells tinha passado o dia organizando os suprimentos queimados e tentandoesquecer a expresso que cruzou o rosto de Clarke quando ela o viu. Ele no esperava queela jogasse seus braos em volta dele, mas nada poderia t-lo preparado para a expressode puro dio em seus olhos.

    Acha que seu pai j bateu as botas? perguntou um garoto de Walden algunsanos mais novo do que Wells enquanto os rapazes sua volta riam.

    O peito de Wells se apertou, mas ele se forou a permanecer calmo. Podia encararum ou dois dos pequenos delinquentes sem nem suar. Tinha sido o campeo inconteste docurso de combate corpo-a-corpo durante o treinamento para oficial. Mas ele era apenasum contra 95 96 se contasse Clarke, que era possivelmente menos f de Wells do quequalquer um no planeta nesse momento.

    Quando eles foram levados ao mdulo de transporte, ele tinha ficado consternado porno ver Glass l. Para o choque de todos em Phoenix, Glass tinha sido Confinada no muitodepois de Clarke, embora, por mais que ele tivesse pressionado seu pai, Wells nuncadescobrira o que ela tinha feito. Ele gostaria de saber por que Glass no tinha sidoselecionada para a misso. Embora ele tentasse se convencer de que ela tinha sidoperdoada, era muito mais provvel que ainda estivesse no Confinamento, contando os diasat seu aniversrio de 18 anos. Pensar naquilo fez seu estmago se revirar.

    Ser que o Chanceler Jnior acha que ele pode reivindicar primazia sobre toda acomida? perguntou um rapaz arcadiano cujos bolsos estavam abarrotados deembalagens de nutrientes que ele tinha recolhido durante o tumulto aps a queda.

    Segundo os clculos de Wells, parecia que eles tinham sido enviados com oequivalente a menos de um ms de comida, que desapareceria rapidamente se as pessoascontinuassem a embolsar tudo que achavam. Mas aquilo no podia ser verdade; tinha quehaver mais um container em algum lugar.

    Eles achariam a comida quando acabassem de organizar os destroos. Ou que ele espera que faamos a cama para ele caoou uma menina mida

    com uma cicatriz na testa.Wells os ignorou, levantando os olhos para o cu azul profundo. Era realmente

    espantoso.Apesar de ter visto fotografias, ele nunca tinha imaginado que a cor seria to vvida

    assim. Era estranho pensar que um cobertor azul composto de nada mais substancialdo que cristais de nitrognio e luz refratada o separava do mar de estrelas e do nicomundo que ele conhecia. Wells sentiu seu peito doer pelos trs jovens que no tinham

  • sobrevivido para ver tudo isso. Seus corpos estavam do outro lado do mdulo detransporte.

    Camas? falou um garoto, bufando. Pode me dizer onde vamos encontrar umacama nesse lugar.

    Ento em que merda de lugar devemos dormir? perguntou a garota com acicatriz, olhando para a clareira como se esperasse que um alojamento fosse aparecernum passe de mgica.

    Wells limpou a garganta: Nossos suprimentos incluam barracas. Apenas precisamos acabar de organizar os

    containers e recolher todas as peas. Enquanto isso, deveramos mandar alguns batedorespara procurar gua, assim saberemos onde montar acampamento.

    A menina fez questo de olhar para todos sua volta. Isso parece bom para mim disse ela, causando mais risadas.Wells tentou se forar a permanecer calmo: A questo : se estivermos prximos de um crrego ou de um lago, ser mais

    fcil para... Ah, sim. Uma voz grave o interrompeu. Cheguei bem a tempo da aula.Wells olhou para o lado e viu um rapaz chamado Graham andando na direo deles.

    Alm de Wells e Clarke, ele era a nica pessoa de Phoenix, embora parecesse conhecer amaioria dos waldenitas e dos arcadianos pelo nome e de eles o tratarem comsurpreendente respeito. Wells no queria imaginar o que ele teve que fazer para mereceraquilo.

    Eu no estava dando nenhuma aula. Estou apenas tentando nos manter vivos.Graham levantou uma sobrancelha: Isso interessante, levando em considerao que seu pai no para de condenar

    nossos amigos morte. Mas no se preocupe, sei que voc est do nosso lado. Elesorriu para Wells. No mesmo?

    Wells olhou para ele com precauo, ento assentiu de forma breve: Claro. Ento prosseguiu Graham, seu tom amigvel contrastando com o brilho hostil

    em seus olhos , qual foi sua infrao? Essa no uma pergunta muito educada, voc no acha? Wells tentou mostrar

    o que ele esperava ser um sorriso enigmtico. Sinto muito. O rosto de Graham assumiu uma expresso de horror fingido.

    Voc precisa me perdoar. Veja bem, quando voc passou os ltimos 847 dias da sua vidatrancado no fundo de uma nave, voc tende a esquecer o que considerado uma conversaeducada em Phoenix.

    847 dias? repetiu Wells. Acho que podemos presumir que voc no foiConfinado por errar nas contas das ervas que voc provavelmente roubou do armazm.

    No disse Graham, dando um passo na direo de Wells. No fui. Amultido se calou, e Wells foi capaz de ver algumas pessoas se movendo de formadesconfortvel enquanto outras se aproximavam, ansiosas. Fui Confinado porassassinato.

    Os dois se olharam fixamente. Wells manteve sua expresso cuidadosamente

  • desprovida de emoo, se recusando a dar a Graham a satisfao de ver o choque em seurosto.

    Ah? falou ele, de forma indiferente. Quem voc matou?Graham sorriu friamente. Se voc tivesse passado algum tempo com o resto de ns, saberia que essa no

    considerada uma pergunta muito educada. Houve um momento de silncio tenso antesde Graham mudar de enfoque. Mas eu j sei o que voc fez de qualquer forma. Quandoo filho do Chanceler encarcerado, a notcia corre rpido. No me surpreende que vocno confesse. Mas agora que estamos tendo uma conversa agradvel, talvez voc possanos contar exatamente o que estamos fazendo aqui embaixo. Talvez voc possa nosexplicar por que tantos dos nossos amigos continuam sendo executados depois de seusrejulgamentos. Graham ainda estava sorrindo, mas seu tom tinha ficado grave eperigoso. E por que agora? O que fez seu pai decidir nos mandar para c de repente?

    Seu pai. O dia todo, imerso na novidade de estar na Terra, Wells tinha quase sidocapaz de se convencer de que aquela cena na plataforma de lanamento o som seco dodisparo, o sangue brotando como uma flor escura no peito de seu pai tinha sido umsonho assustador.

    claro que ele no vai nos dizer continuou Graham, zombando. Vai, soldado? acrescentou com uma saudao debochada.

    Os arcadianos e waldenitas que vinham observando Graham se viraram ansiosamentepara Wells, a intensidade de seus olhares fazendo sua pele se arrepiar. Obviamente, elesabia o que estava acontecendo. Por que tantos jovens estavam sendo executados nosseus aniversrios de 18 anos por crimes que poderiam ter sido perdoados no passado. Porque a misso tinha sido preparada e levada a cabo com pressa antes que houvesse tempopara planejar adequadamente.

    Ele sabia melhor do que qualquer um, porque era tudo sua culpa. Quando vamos poder ir para casa? perguntou um menino que no parecia ter

    muito mais do que 12 anos. Wells sentiu uma inesperada pontada de pena da medesolada que ainda estava em algum lugar na nave. Ela no tinha ideia de que seu filhotinha sido arremessado no espao na direo de um planeta que a raa humana tinhaabandonado.

    Ns estamos em casa disse Wells, forando tanta sinceridade quanto podia emsuas palavras.

    Se ele dissesse isso o suficiente, talvez comeasse a acreditar.Ele quase tinha perdido o concerto aquele ano. Sempre tinha sido seu evento favorito,

    a nica noite em que as relquias musicais eram tiradas de suas cmaras de preservaoa vcuo. Assistir aos msicos, que passavam a maior parte de seu tempo praticando emsimuladores, arrancarem notas e acordes das relquias era como testemunhar umaressurreio. Esculpidos e soldados por mos mortas h muito tempo, os nicosinstrumentos que tinham sobrado no universo produziam as mesmas melodiasexorbitantes que um dia tinham ecoado pelos sales de concerto de civilizaesarruinadas. Uma vez por ano, o Salo do den se enchia de msica que tinha durado maisdo que o tempo da humanidade na Terra.

  • Mas enquanto Wells entrava no salo, um grande espao oval limitado por uma janelapanormica curva, o pesar que vinha vagando em seu corpo durante a ltima semana sesolidificou em seu estmago. Normalmente ele achava a vista incrivelmente bela, mas,naquela noite, as estrelas cintilantes que cercavam a Terra coberta por nuvens o fizeramse lembrar de velas numa viglia. Sua me amava msica.

    Estava lotado como sempre, com a maioria da populao de Phoenix conversandoanimadamente. Muitas das mulheres estavam ansiosas para estrear novos vestidos, umaproeza cara e potencialmente enlouquecedora dependendo do tipo de recortes txteis quevoc encontrava no Entreposto. Ele deu alguns passos adiante, causando uma onda desussurros e olhares sugestivos na multido.

    Wells tentou focar na parte da frente do salo, onde os msicos se reuniam sob arvore que deu o nome ao Salo do den. A lenda era que o broto tinha sobrevividomilagrosamente ao incndio da Amrica do Norte e tinha sido carregado para Phoenix logoantes do xodo. Agora ela alcanava o topo do salo, seus galhos finos se esticando maisde dez metros em cada direo, criando uma cobertura de folhas que escondiaparcialmente os msicos com um vu de sombras tingidas de verde.

    Aquele o filho do Chanceler? perguntou uma mulher atrs dele. Uma novaonda de calor subiu at suas bochechas j coradas. Ele nunca tinha se tornado imune aorastro de reaes atrasadas e aos olhares curiosos que ele arrastava por onde passava,mas essa noite aquilo parecia insuportvel.

    Ele se virou e comeou a andar na direo da porta, mas congelou quando algumsegurou seu brao. Ele se virou e viu Clarke olhando para ele com surpresa: Para ondevoc est fugindo?

    Wells sorriu de forma sombria: Parece que no estou no clima para escutar msica.Clarke olhou para ele por um momento, ento colocou a mo na dele: Fique. Como

    um favor para mim. Ela o acompanhou at dois assentos vagos na ltima fileira. Preciso que voc me diga o que estamos escutando.

    Wells suspirou ao se sentar ao lado de Clarke. Eu j lhe disse que eles vo tocar Bach falou ele, olhando ansiosamente para a

    porta. Voc sabe do que estou falando. Clarke entrelaou os dedos nos dele. Esse

    movimento, aquele movimento. Ela sorriu. Alm disso, sempre aplaudo na horaerrada.

    Wells apertou sua mo de leve.No havia nenhuma necessidade de apresentao ou anncio. Desde o momento em

    que as primeiras notas soaram, o pblico ficou em silncio, o arco do violinista acabandocom o burburinho enquanto passava sobre as cordas. Ento o violoncelo se juntou, seguidodo clarinete. No havia percusso essa noite, mas no importava. Wells podiapraticamente ouvir a batida oca dos duzentos coraes pulsando no ritmo da msica.

    assim que sempre imaginei que soaria um pr do sol sussurrou Wells. Aspalavras fugiram de sua boca antes que ele tivesse tempo de pensar, e ele se preparoupara uma expresso de tdio, ou pelo menos um olhar confuso.

  • Mas a msica tambm tinha lanado seu feitio sobre Clarke. Eu adoraria ver um pr do sol murmurou ela, descansando a cabea em seu

    ombro.Wells passou a mo distraidamente pelo cabelo sedoso dela. Eu adoraria ver um pr do sol com voc. Ele se curvou e beijou sua testa. Oque voc vai fazer daqui a 75 anos? sussurrou ele. Vou limpar minha dentadura disse Clarke, c