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OS MEIOS DE CONTROLE DAS DECISÕES MONOCRÁTICAS DO RELATOR EM TRIBUNAIS Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais : estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. José Miguel Garcia Medina, Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, Luís Otavio Sequeira de Cerqueira e Luiz Manoel Gomes Júnior (coords). São Paulo : Revista dos Tribunais, 2008. MANTOVANNI COLARES CAVALCANTE Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Professor de Direito Processual Civil. Professor Conferencista do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Juiz de Direito. “Haverá decerto quem proteste por não ver nesta Conservatória Geral uma só máquina de escrever, para não falar de instrumentos mais modernos ainda, por os armários e as estantes continuarem a ser de madeira natural, por os funcionários ainda terem de molhar aparos em tinteiros e usarem mata-borrão, haverá quem nos considere ridiculamente parados na história, quem reclame do governo a rápida introdução de tecnologias avançadas nos nossos serviços, mas se é verdade que as leis e os regulamentos podem ser alterados e substituídos em cada momento, o mesmo não pode acontecer com a tradição, que é, como tal, tanto no seu conjunto como no seu sentido, imutável.” (trecho do discurso da personagem literária criada por José Saramago, que encarna a chefia do Cartório de Registro Civil, na obra Todos os nomes. São Paulo : Companhia as Letras, 2004. p. 204-205) 1. Tradição no Direito Processual Civil? Ora (direis), ouvir estrelas... Em tempo de mudança, como ocorre praticamente há quinze anos no Direito Processual Civil 1 , ouve-se aqui e acolá vozes a defender a tradição, atingida tão intensamente pelas ondas reformistas, que muitos dos conceitos e classificações até então firmados no âmbito da doutrina e da jurisprudência se revelariam inúteis, em total abandono da edificação processual construída ao longo de quase dois séculos 2 . A visão metafórica do que seria a tradição, captada pelo olhar saramaguiano dentro do universo cartorial, conforme o irônico trecho inicialmente destacado, bem que se aplica às lamúrias dos que defendem a imutabilidade das coisas, em verdadeira 1 A Lei 8.455/92, ao simplificar o procedimento da perícia judicial, é a primeira referência legislativa da chamada reforma do sistema processual civil, contabilizando-se, até o início do ano de 2007, nada menos do que 40 (quarenta) normas que delinearam um novo processo civil brasileiro, considerando-se as 35 (trinta e cinco) leis que alteraram o Código de Processo Civil, 1 (uma) Medida Provisória e mais 4 (quatro) leis extravagantes, isso sem falar na Emenda Constitucional nº 45, de 2004. 2 O trabalho de Oscar Von Bülow, denominado de A doutrina das exceções processuais e os pressupostos processuais (Die lehre von den prozesseinreden und die prozessvoraussetzungen), publicado em 1868, é considerado, na cronologia doutrinária, o ponto de referência do moderno pensamento científico em matéria processual; embora esclareça Carlos Alberto Alvaro de Oliveira que, “com a célebre polêmica entre Windscheid e Muther (1856-1867), começou-se a colocar na ordem do dia a questão da separação

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OS MEIOS DE CONTROLE DAS DECISÕES MONOCRÁTICAS DO RELATOR EM TRIBUNAIS

Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais : estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. José Miguel Garcia Medina, Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, Luís Otavio

Sequeira de Cerqueira e Luiz Manoel Gomes Júnior (coords). São Paulo : Revista dos Tribunais, 2008.

MANTOVANNI COLARES CAVALCANTEMestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Professor de Direito Processual Civil. Professor Conferencista do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Juiz de Direito.

“Haverá decerto quem proteste por não ver nesta Conservatória Geral uma só máquina de escrever, para não falar de instrumentos mais modernos ainda, por os armários e as estantes continuarem a ser de madeira natural, por os funcionários ainda terem de molhar aparos em tinteiros e usarem mata-borrão, haverá quem nos considere ridiculamente parados na história, quem reclame do governo a rápida introdução de tecnologias avançadas nos nossos serviços, mas se é verdade que as leis e os regulamentos podem ser alterados e substituídos em cada momento, o mesmo não pode acontecer com a tradição, que é, como tal, tanto no seu conjunto como no seu sentido, imutável.” (trecho do discurso da personagem literária criada por José Saramago, que encarna a chefia do Cartório de Registro Civil, na obra Todos os nomes. São Paulo : Companhia as Letras, 2004. p. 204-205)

1. Tradição no Direito Processual Civil? Ora (direis), ouvir estrelas... Em tempo de mudança, como ocorre praticamente há quinze anos no Direito

Processual Civil1, ouve-se aqui e acolá vozes a defender a tradição, atingida tão intensamente pelas ondas reformistas, que muitos dos conceitos e classificações até então firmados no âmbito da doutrina e da jurisprudência se revelariam inúteis, em total abandono da edificação processual construída ao longo de quase dois séculos2.

A visão metafórica do que seria a tradição, captada pelo olhar saramaguiano dentro do universo cartorial, conforme o irônico trecho inicialmente destacado, bem que se aplica às lamúrias dos que defendem a imutabilidade das coisas, em verdadeira

1 A Lei 8.455/92, ao simplificar o procedimento da perícia judicial, é a primeira referência legislativa da chamada reforma do sistema processual civil, contabilizando-se, até o início do ano de 2007, nada menos do que 40 (quarenta) normas que delinearam um novo processo civil brasileiro, considerando-se as 35 (trinta e cinco) leis que alteraram o Código de Processo Civil, 1 (uma) Medida Provisória e mais 4 (quatro) leis extravagantes, isso sem falar na Emenda Constitucional nº 45, de 2004. 2 O trabalho de Oscar Von Bülow, denominado de A doutrina das exceções processuais e os pressupostos processuais (Die lehre von den prozesseinreden und die prozessvoraussetzungen), publicado em 1868, é considerado, na cronologia doutrinária, o ponto de referência do moderno pensamento científico em matéria processual; embora esclareça Carlos Alberto Alvaro de Oliveira que, “com a célebre polêmica entre Windscheid e Muther (1856-1867), começou-se a colocar na ordem do dia a questão da separação

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sacralização do Direito Processual Civil, visando perenizar seus mecanismos já fixados por clássicas construções conceituais.

Falar em tradição, nesse segmento do direito, é desprezar a sua essência eminentemente técnica, a ultrapassar qualquer limite territorial, temporal e até mesmo cultural; e quem categoricamente assim se expressa é Alfredo Buzaid, ao justificar a remessa ao Congresso Nacional de um projeto de lei que se transformaria no então novo Código de Processo Civil de 1973, valendo ressaltar o seguinte trecho de suas explanações que integravam o referido projeto:

“Diversamente de outros ramos da ciência jurídica, que traduzem a índole do povo através de longa tradição, o processo civil deve ser adotado exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação do direito. As duas exigências antitéticas que concorrem para terceirizá-lo são a rapidez e a justiça. Conciliam-se essas tendências, estruturando-se o processo civil de tal modo que ele se torne efetivamente apto a administrar, sem delongas, a justiça.O processo civil, como conjunto de normas, não é, pois, um produto lidimamente nacional, que deve exprimir os costumes do povo; é, ao contrário, um resultado da técnica, que transcende as fronteiras do país e válido para muitas nações, porque representa uma aspiração comstaum da humanidade para a consecução da justiça. Os institutos tradicionais devem, portanto, subsistir na medida em que correspondem à racionalização do processo, cabendo à geração atual a coragem de romper com aqueles que são condenados pela ciência e pela lógica”3.

Desse modo, ao ser convidado para integrar o rol de privilegiados desta coletânea4 em homenagem a Teresa Arruda Alvim Wambier – estrela de primeira grandeza no cenário jurídico nacional – cuidei de pronto em pensar a respeito de um tema que guardasse sintonia com o ousado espírito de nossa sempre Professora5.

entre o direito processual e o direito material, destruindo-se a unidade da actio (compreensiva do direito material e processual)” (Efetividade e tutela jurisdicional. In: Polêmica sobre a ação. Fábio Cardoso Machado e Guilherme Rizzo Amaral (coords.). Porto Alegre : Livraria dos Advogados, 2006).

3 Anteprojeto do Código de Processo Civil. Apresentado ao Exmo. Sr. Ministro da Justiça e Negócios do Interior, pelo Professor Alfredo Buzaid. Rio Grande do Sul : 1964. S. Documentação Biblioteca do Ministério da Justiça. Registrado na Biblioteca do Senado Federal sob o no 1.507 do ano de 1982. p. 13.4 Louve-se a iniciativa de José Miguel Garcia Medina, Luiz Otávio Sequeira de Cerqueira, Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz e Luiz Manoel Gomes Júnior, que em boa hora tiveram a iniciativa de pensar esta coletânea.5 A doutrina de Teresa Arruda Alvim Wambier é pródiga em lições marcadas pelo destemor, com a garantia da mais elevada cientificidade. Basta citar, para não se alongar em sua quilométrica produção doutrinária – cuja extensão tem o inegável mérito de impressionar a todos pela marca simultânea da quantidade e da qualidade – a sua idéia de que seria rescindível decisão judicial trânsita em julgado, quando constatado o desrespeito a princípio jurídico, por ser mais grave do que a ofensa à lei (Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória : recurso extraordinário, recurso especial e ação rescisória : o que é uma decisão contrária à lei? São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001).

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E me parece de extrema relevância analisar a atual função do relator, não mais como mero integrante de tribunal, e sim como verdadeiro órgão jurisdicional, dotado de extensos poderes, impondo-se em conseqüência a construção de um sistema de controle que garanta o reexame de suas decisões, e que ao mesmo tempo não prejudique a celeridade processual. Eis o grande desafio.

Assim, para não correr o risco de dizer que perdi o senso, “eu vos direi no entanto” que é preciso ouvir estrelas, como sugere poeticamente Olavo Bilac6, de modo que tento perceber os recados dos astros, com o encanto das descobertas. E essa verdadeira nau a singrar os mares doutrinários em busca de um processo mais efetivo só conseguirá seu intento com o desapego à tradição.

O intuito deste trabalho, então, é o de aspergir algumas idéias a respeito dos atuais poderes do relator em tribunais, ainda que não se possa nesse instante particularizar as reais conseqüências desse novo enfoque. Seja. Abraço o temido e fascinante perigo, próprio de toda viagem rumo ao desconhecido.

2. A primeva função jurisdicional, quase imperceptível, do relatorHistoricamente, a estrutura recursal veio desenhada com a idéia do colegiado

como tentativa de superar a fragilidade de uma decisão lançada por único magistrado, e por isso mesmo a regra no sistema recursal seria a da previsão de tribunais para o reexame do feito, uma vez que o colegiado – composto por vários julgadores, dotados de maior experiência – dificilmente cometeria o mesmo erro do juiz singular.

Daí o delineamento constitucional quanto à existência de duas categorias de órgãos pertencentes ao Poder Judiciário: juízes e tribunais7. Os integrantes dos tribunais seriam os membros desse órgão, ou seja, como a própria terminologia sugere, os componentes das cortes de justiça simbolizariam apêndices conectados à estrutura do órgão plural, de sorte que toda matéria de cunho decisório deveria se submeter ao colegiado.

Por isso mesmo, o relator exercia função quase imperceptível, praticamente restrita à adoção de medidas impulsionadoras do feito, tais como dar vista dos autos à parte contrária, submeter o processo ao revisor, deferir juntada de documentos e outras atitudes meramente procedimentais.

Em conseqüência, agia isoladamente o relator em circunstâncias excepcionais, quase sempre pautadas por atos jurisdicionais sob o manto da urgência, naquelas situações onde não se podia aguardar a reunião do órgão colegiado, conferindo-se-lhe o poder provisório de concessão de medidas tidas como necessárias para evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação, como no caso de apreciação de pedido liminar em mandado de segurança de competência originária de tribunal.

6 “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, / Que, para ouvi-las, muita vez desperto / E abro as janelas, pálido de espanto...” (primeira quadra do soneto XIII da Via- Láctea).7 Constituição Federal de 1988: “art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I - o Supremo Tribunal Federal; I - A o Conselho Nacional de Justiça (incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004); II - o Superior Tribunal de Justiça; III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios”. Observe-se que, somente com a criação do Conselho Nacional de Justiça, mediante a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, quebrou-se a configuração original do texto, a inserir como órgão do Poder Judiciário o referido Conselho.

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O retrato desse cenário se põe estampado no Código de Processo Civil, ao considerar unicamente como julgamento de tribunal aquilo que se denomina acórdão8, vale dizer, decisão em tribunal só a decorrente da vontade da maioria dos integrantes de seus órgãos fracionários, seja Pleno, Órgão Especial, Seção, Turma ou Câmara, a depender a organização judiciária de cada tribunal.

O excesso de feitos submetidos aos órgãos de grau jurisdicional superior, especificamente o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, ocasionou o alargamento dos poderes do relator, a permitir-lhe no âmbito daqueles Tribunais não somente (I) decidir sobre a perda do objeto de pedido ou recurso, bem como (II) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente, e ainda (III) decretar a improcedência em questões predominantemente de direito contrárias à Súmula do respectivo Tribunal; e tudo isso por decisão monocrática do relator9.

A partir daí, sentiu-se a necessidade de se estender essa prática aos demais tribunais, e de modo bem tímido dilatou-se a atuação do relator10, até que se chegasse à grande mudança implantada com a criação do que denominei de provimento singular11, ao impor o julgamento do mérito do recurso pelo próprio relator quando a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior12.

A propósito, desde o início defendi que esse poder atribuído ao relator representa, na verdade, um poder-dever, pois embora a Lei fale em “poderá dar provimento ao recurso”, há que ser interpretada como “autorizado está o relator”. Ou seja, deve o relator se utilizar do provimento singular, se presentes os requisitos legais, não ficando a seu critério submeter ou não ao colegiado a questão, quando incidente uma das hipóteses autorizadoras do provimento.

Admitir o contrário seria tornar inócua a mudança, já que, deixando a critério do relator a submissão de questão ao colegiado, no caso em que a decisão recorrida estiver em desacordo com matéria sumulada ou entendimento dominante firmado pelo

8 Código de Processo Civil: “art. 163. Recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais”.9 Lei 8.038/90: “art. 38. O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal”.10 A Lei 9.139/95 deu nova redação ao art. 557 do Código de Processo Civil, passando a norma a ter o seguinte texto: “o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior”. A redação anterior do mencionado artigo era a seguinte: “se o agravo for manifestamente improcedente, o relator poderá indeferi-lo por despacho. Também por despacho poderá convertê-lo em diligência se estiver insuficientemente instruído”.11 Alterações no processamento de recursos. Revista dos Tribunais. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. n. 764.12 A Lei 9.756/98 alterou novamente o art. 557 do Código de Processo Civil, de sorte que a norma agora assim se expressa: “o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”.

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Supremo Tribunal Federal ou tribunal superior, tal opção implicaria na extensão do recurso à fase de apreciação pelo colegiado que se buscou eliminar na Lei.

Eis a nova era. O julgamento pelos tribunais não se dá exclusivamente sob a roupagem de acórdão. Inseriu-se no contexto processual outra modalidade de julgamento, distinto da sentença e do acórdão, que é a decisão monocrática do relator, equiparável ao acórdão, a gerar a mesma eficácia daquela espécie de julgamento.

Nesse contexto, o art. 163 do Código de Processo Civil está a merecer uma reforma, enfrentando essa nova realidade, e poderia ter a seguinte redação: “recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais, quando decorrente de colegiado; em se cuidando de julgamento feito pelo relator, tem-se decisão monocrática com a mesma eficácia de acórdão”.

Em conseqüência, na medida em que se percebe que o relator exerce função julgadora plena, tal como o colegiado, pode-se dizer que ele adquiriu a condição de órgão, deixando de ser unicamente um membro de tribunal.

3. O relator como órgão do Poder Judiciário, não mais como membro de tribunalConforme se viu, no atual contexto, existem duas vertentes jurisdicionais quanto

aos poderes do relator, quais sejam, (I) aquela relacionada com a possibilidade de concessão de medida de cunho interlocutório, resultante de situações urgentes onde se imponha a decisão provisória; e a outra, configurada por (II) decisões definitivas, com força de acórdão, seja (a) pela possibilidade de rejeição liminar do recurso, ou (b) apreciando-se o mérito de matéria, ao se negar provimento em questão sumulada ou pacificada em Corte superior ou dando provimento em matéria já enfrentada pelo próprio colegiado.

Ressalte-se que a decisão monocrática do relator, ao integrar a categoria de julgamento, com a mesma eficácia do acórdão, atendeu à exigência do fortalecimento do princípio da celeridade, hoje alçado a direito fundamental do jurisdicionado13.

Essa atual circunstância, onde se tem o relator como órgão do Poder Judiciário, na medida em que exerce função jurisdicional de julgamento, inclusive com análise do mérito, impõe a busca de um equilíbrio nesse binômio envolvendo celeridade e

13 A partir da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, o direito à duração razoável do processo passou a configurar entre o rol de direitos fundamentais, ao se inserir no art. 5º da Constituição Federal o inciso LXXVIII, discorrendo que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. É de se indagar se seria correta a inserção dessa garantia na Constituição Federal, eis que introduzida por Emenda, exatamente na fatia do texto constitucional onde constam os mais elevados princípios, imunes ao poder reformador derivado, de modo que não se sabe ao certo se, por ser introduzida pela Emenda 45/2004, o novo inciso teria o status de cláusula imodificável, por não ser do texto original, ou se estaríamos diante de uma nova categoria de direitos fundamentais, quais sejam, aqueles decorrentes de emenda constitucional, e por isso mesmo com a possibilidade de sofrer reforma por outra emenda, deixando de ser cláusula intocável. Por outro lado, ao se admitir que essa norma, introduzida por emenda, tenha a mesma força da norma original, abre-se um perigoso precedente quanto à possibilidade de alteração de direitos fundamentais, ainda que para acrescentar regra garantidora, e não para suprimir direitos. Ocorre que isso dependeria do viés na identificação do que seria criado e do que seria suprimido. Nesse caso, a introdução de um direito fundamental via emenda (direito à celeridade processual), acabou por mitigar outro direito também fundamental já existente por força do poder constituinte originário (direito à segurança, incluindo-se a jurídica). Fica a provocação aos que se dedicam com afinco ao estudo do Direito Constitucional, para destramar essa bifurcação interpretativa.

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segurança processual quanto à tramitação de recursos e ações de competência originária dos tribunais.

É que a própria formação do colegiado por ocasião do julgamento, com sua característica de pluralidade de opiniões, gera por si só um natural meio de controle das decisões dos tribunais, porquanto é mitigado o risco de erro por ocasião do enfrentamento da matéria, em face da multiplicidade de análise pelos diversos integrantes da instituição.

A decisão monocrática, ao contrário, pode padecer do mesmo vício que motivou o uso do recurso – a singularidade no exame da questão –, não se podendo afastar a existência de meios de controle dessa atividade isolada do relator, ainda mais em se cuidando de ação de competência originária, onde sequer existiu um exame prévio da lide por outro órgão de jurisdição inferior.

Essa metamorfose processual a qual se submeteu o relator, deixando de ser mero integrante de colegiado, para assumir a relevante e decisiva função jurisdicional como órgão julgador, gera como inevitável conseqüência a busca por meios de controle de sua atividade.

Um relevante meio de controle é o da necessidade de fundamentação desse julgamento monocrático, com a análise criteriosa das hipóteses de cabimento da exclusão do colegiado na apreciação da causa.

Daí porque não basta o relator simplesmente dar provimento a recurso sob o argumento de que a decisão recorrida entraria em confronto com súmula do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, ou com jurisprudência dominante dos mencionados tribunais. É indispensável que o relator demonstre em sua decisão que existe súmula dos referidos tribunais que entra em choque com a decisão atacada. Logicamente que isso é facilmente realizado, bastando a transcrição da súmula cuja colisão se alega.

A dificuldade pode acontecer em relação ao argumento da existência de confronto com decisão dominante do Supremo Tribunal Federal ou de tribunal superior, porque nesse caso a fundamentação de seu julgado há de ser não somente a de referência à existência de jurisprudência dominante, mas obrigatoriamente com a inclusão da prova de que o entendimento jurisprudencial cujo confronto se alega é, efetivamente, o que domina o pensamento do tribunal que o originou.

Para tanto, deve o relator se valer de fonte jurisprudencial ou doutrinária idônea, demonstradora desse domínio de entendimento do tribunal, realizando a devida transcrição ao longo de seu julgamento.

Além da fundamentação como meio de controle, outras ferramentas se encontram disponíveis para os que se sintam prejudicados com a decisão monocrática, tais como o pedido de reconsideração, o chamado agravo regimental – na verdade agravo inominado – e os sucedâneos recursais, destacando-se nesse contexto o mandado de segurança.

Convém destacar que o pedido de reconsideração só deve ser utilizado quando existe previsão expressa a respeito, sob pena de banalização dessa modalidade de pleito, a emperrar a fluência do processo.

É certo que, por mera liberalidade, muita vez o relator não põe obstáculo a pedidos de reconsideração, em virtude de praxe forense. Sob um enfoque eminentemente técnico, contudo, em se cuidando de decisão monocrática, somente há

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de se permitir pedido de reconsideração quando da conversão do agravo por instrumento em agravo retido, por se cuidar de decisão irrecorrível, prevista expressamente em lei essa via de reexame14.

Antes que possa causar assombro essa afirmação de que é possível a lei processual conferir à determinada decisão do relator a particularidade de ser irrecorrível, e evitar especulações a respeito de uma suposta inconstitucionalidade da norma de regência, é de se relembrar a existência do princípio da celeridade processual, cuja previsão expressa se encontra no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, daí porque a regra infraconstitucional está a prestigiar o Texto Maior.

Induvidosamente, o chamado agravo regimental é o utensílio processual por excelência para um efetivo controle da decisão monocrática, e que foi se aperfeiçoando na medida em que se dilatou a possibilidade de confecção de decisões monocráticas, devendo-se analisar tal mecanismo dentro do atual contexto de profusão das atividades isoladas do relator.

4. O agravo inominado, outrora regimentalÉ óbvio que a expressão agravo regimental, em relação ao recurso cabível

contra determinadas decisões proferidas de forma isolada por membros do colegiado, decorre da instituição expressa desse objeto processual em regimentos internos de tribunais. No caso do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, existe uma seção exclusiva dedicada ao agravo regimental15, dentro do capítulo destinado aos agravos, pertencente ao título XI da parte II do regimento que cuida exatamente dos recursos naquele Tribunal.

Sobre a origem desse agravo, Antonio José M. Feu Rosa lembra que “o processo, ao dar entrada em qualquer Tribunal, é distribuído a um relator. Enquanto não for submetido a julgamento, compete a esse relator dar todos os despachos e proferir todas as decisões envolvendo a matéria a ser apreciada pelo plenário. Toda e qualquer decisão desse relator é feita em nome do tribunal, turma ou câmara a que pertença. As partes que se julgavam prejudicadas com esse despacho do relator, passaram a requerer sua confirmação pelo tribunal ou órgão do mesmo. Daí surgiu a figura do ‘agravinho’, introduzido mais tarde nos regimentos dos tribunais sob o nome de ‘agravo regimental’”16.

E exatamente porque esse agravo surgiu por norma interna dos tribunais, e não mediante lei, firmou-se a idéia segundo a qual esse mecanismo serviria para se obter a integração do pensamento do tribunal, não se podendo dizer que seria um recurso no sentido técnico do termo.

Pode-se então indagar porque os tribunais costumam disciplinar tal agravo regimental, a começar pelo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, 14 Código de Processo Civil: “art. 527. Recebido o agravo de instrumento no tribunal, e distribuído incontinenti, o relator: (...) II - converterá o agravo de instrumento em agravo retido, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, mandando remeter os autos ao juiz da causa; (...) Parágrafo único. A decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo, somente é passível de reforma no momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar”.15 Seção II do capítulo III do título XI da parte II do Regimento Interno do STF.16 Revista Jurídica Consulex nº 2, de 1997.

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se fosse assim tão óbvia a inadequação do meio (regimento interno) para regular essa matéria (nitidamente processual) que está reservada à lei federal17.

Existe uma razão histórica para essa prática. A Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida contrariasse dispositivos desta Constituição ou negasse vigência de tratado ou lei federal; declarasse a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgasse válida lei ou ato do governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou desse à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal18.

Ficou ali também estabelecido que as causas acima mencionadas seriam indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no Regimento Interno, que atenderia a sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal, bem como caberia ao Regimento Interno estabelecer o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância de questão federal19.

Houve, assim, uma delegação da própria Constituição ao Supremo Tribunal Federal, possibilitando a edição de normas de natureza processual em seu regimento interno.

Rodolfo de Camargo Mancuso, a esse respeito, doutrina que “a outra técnica de que se valeu o STF para refrear o aumento excessivo do recurso extraordinário, foi a de criar, via regimental, certos óbices, aproveitando assim a ‘deixa’ então contida no art. 119, § 1o da Carta anterior (com redação da EC 7/77), onde se autorizava o STF a indicar as causas de que conheceria através de recurso extraordinário, ‘no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário ou relevância da questão federal’ (salvo no tocante às alíneas “b” e “c” do art. 119, III). (...) esses óbices regimentais têm hoje mero interesse histórico, já que a atual Constituição Federal não manteve, como a precedente, o poder ‘legiferante’ do STF, para indicar as causas de que conheceria, via recurso extraordinário”20.

Os demais tribunais do país parecem ter recebido a brisa desse alargamento de poder dado ao Supremo Tribunal Federal, de molde a fortalecer a idéia da criação de agravos regimentais. É certo que tal prática já advinha de antigo costume dos chamados agravinhos, mas essa medida recebeu uma robusta legitimação a partir da delegação dada pela Constituição de 1967 ao Supremo Tribunal Federal, alastrando-se a prática da previsão dos agravos em regimentos internos.

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, ao editar a Súmula 116, discorreu que “a Fazenda Pública e o Ministério Público têm prazo em dobro para interpor agravo regimental no Superior Tribunal de Justiça”, ficando clara a definição da natureza jurídica do agravo regimental como sendo a de recurso, pois os prazos privilegiados previstos no art. 188 do Código de Processo Civil somente são devidos na hipótese de

17 Constituição Federal: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho” (destaquei).18 Art. 119, III, da mencionada Constituição.19 §§ 1o e 3o d art. 119 da CF/67, sendo tal redação determinada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977.20 Recurso extraordinário e recurso especial. 5a. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998. pp. 53-54.

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contestação, computando-se em quádruplo quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público, e no caso de recurso, contado em dobro para os referidos entes.

Como ficou estabelecido que a Fazenda Pública e o Ministério Público têm prazo em dobro para interpor agravo regimental, significa, sob a óptica do Superior Tribunal de Justiça, que o agravo regimental tem a natureza jurídica de recurso.

Parece-me que, com o advento da norma contida no art. 39 da Lei 8.038/90, ao dispor que “da decisão do Presidente do Tribunal, de Seção, de Turma ou de relator que causar gravame à parte, caberá agravo para o órgão especial, Seção ou Turma, conforme o caso, no prazo de cinco dias”, houve uma mutação do antigo agravo regimental para essa nova roupagem, agora prevista em lei, sem qualquer denominação do recurso – ao contrário dos demais agravos, que são por instrumento ou retido nos autos – e daí ser possível qualificá-lo como agravo inominado.

Somente a tradição justificaria chamar essa ferramenta de agravo regimental, mas na verdade sua previsão agora é legal, e por isso mesmo o correto seria abandonar esse legado histórico – o que é absolutamente natural no universo do Direito Processual Civil, como já destacado anteriormente – para que se intitule de agravo inominado toda manifestação contrária às decisões monocráticas do relator, como alias há muito sugeria Theotonio Negrão, ao ressaltar que “a denominação agravo regimental é imprópria. Se o agravo está previsto em lei, deixa de ser regimental”21.

Lembra Milton Flaks que a expressão agravo inominado foi “cunhada por Frederico Marques para distinguir, no Código de Processo de 1939, uma modalidade de agravo das demais espécies nele previstas, com denominação própria: agravo de petição, agravo de instrumento e agravo no auto do processo”22.

E o agravo inominado é o típico meio de controle das decisões monocráticas do relator, porque conduz ao colegiado a questão com a desejada fluência recursal, eis que (I) possibilita ao relator o exercício do juízo de retratação na hipótese de se convencer quanto à razoabilidade dos argumentos do recorrente; e (II) ainda que o relator mantenha a decisão, submete a questão à apreciação do órgão plural, apresentando em mesa o recurso, de sorte a não gerar demora quanto ao enfrentamento da matéria pelo colegiado.

Existia ainda uma pendência quanto ao uso do agravo inominado em relação à decisão do relator que aprecia a chamada “liminar”23 em mandado de segurança de competência originária de tribunal, eis que a jurisprudência dominante sempre foi no sentido de considerar irrecorrível aquela decisão, basicamente pela a ausência de previsão expressa na Lei do mandado de segurança, o que acabou por gerar o entendimento firmado pela Súmula 622 do Supremo Tribunal, no sentido de que “não cabe agravo regimental contra decisão do relator que concede ou indefere liminar em mandado de segurança”.

21 Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, ainda em sua 28a edição, p. 1161.22 “Nova estrutura do agravo no processo civil”. Revista Forense. vol. 335. p. 133.23 Na verdade, a liminar é o adjetivo, não o substantivo. Por isso, a decisão é dada liminarmente, no limiar da ação, no início da ação. Jamais se deveria utilizar o termo como substantivo, ou seja, “o juiz concedeu a liminar”, e sim, “o juiz concedeu a decisão liminarmente”. Ocorre que o uso no dia-a-dia transformou a nomenclatura na própria substância do ato, como se vê não somente na doutrina como também na jurisprudência. E a Súmula 622 do STF confirma essa tendência de equívoco lingüístico.

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Um dos julgados que serviu de paradigma para a firmação dessa Súmula e que teve como relator o Ministro Evandro Lins e Silva, nos idos de 1966, firmava sua posição lastreada em frágeis premissas, quais sejam, as de que essa decisão do relator seria a definitiva e que a Lei do mandado de segurança não teria previsto qualquer recurso nessa situação24.

A partir daí, solidificou-se o entendimento no sentido da irrecorribilidade da decisão do relator ao apreciar pedido liminar em ação mandamental, embora a ausência de previsão expressa do recurso de agravo na Lei do mandado de segurança não fosse suficiente para a não adoção desse meio de controle das decisões monocráticas dos membros de tribunal, pois é cabível a utilização do arcabouço normativo do Código de Processo Civil como fonte subsidiária para se dar efetividade ao mandado de segurança.

Felizmente, é possível antever a revisão dessa idéia da irrecorribilidade da decisão do relator em mandado de segurança, já que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça recentemente firmou o entendimento de que cabe agravo regimental (rectius, inominado) contra decisão que indefere liminar ou a concede em mandado de segurança, diante dos argumentos expendidos em voto-vista pela Ministra Eliana Calmon25.

5. O mandado de segurança e a sala de espelhos paralelosÉ no mínimo inquietante a sensação de se perceber visualmente o infinito, ao se

ingressar naquelas salas onde se têm dois espelhos paralelos, um a mirar o outro, e o espectador ali no meio daquela alucinante vista, com a reprodução infinda de sua própria imagem.

Qualquer um que passa por essa experiência, é capaz de permanecer alguns minutos tentando saber até onde se pode enxergar o infinito em seu rastro de imagens provocantes, para se chegar à conclusão de que não se pode alcançar o inalcançável, e não fora a curiosidade visual, o ensaio representaria mera perda de tempo.

Pois bem. Sempre que vislumbro a utilização do mandado de segurança como meio de controle das decisões monocráticas do relator, me vem à mente a cena da sala de espelhos paralelos.

Há certa tolerância dos tribunais em se permitir o manejo do mandado de segurança contra a medida de natureza monocrática, embora exista a previsão do agravo inominado para deslocar o feito ao colegiado, ou mesmo nas situações onde expressamente é vedado o uso de recurso – como é o caso da decisão que converte o agravo por instrumento em agravo retido, e nas apreciações de pedidos liminares em mandado de segurança, conforme corrente acostada à Súmula 622 do STF.

É justamente aí onde se pode gerar o efeito dos espelhos paralelos. Porque esse mandado de segurança irá ser distribuído a outro relator, integrante do mesmo tribunal, e por isso em igual posição jurisdicional daquele cuja decisão se questiona, nada impedindo que da decisão do novo relator da recente ação mandamental também se interponha outro mandado de segurança, e nada obsta que isso se repita e se repita.

24 AG 38.315, 1ª Turma, julgado em 5/9/66, DJU de 22/2/67, RTJ 39/632. Na verdade, a decisão tida como paradigma faz referência a outro julgado anterior do STF (MSAg 9.146, relator Ministro Ribeiro da Costa, julgado em 13/9/61, DJU de 20/11/61).25 AgRg no MS 11.961, sendo que na sessão de 18/4/2007 a Corte Especial conheceu do agravo regimental, ficando adiado o julgamento do mérito do processo (Informativo 317 do STJ).

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O mais nefasto dessa prática, além de gerar a multiplicação de feitos e a insegurança jurídica, é a sintomática transformação de cada integrante do tribunal em órgão controlador, um dos outros, sem qualquer parâmetro que guarde o necessário respeito a um princípio recursal que é o da hierarquia jurisdicional.

Extremamente louvável, por isso, a recente decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, reiterando os precedentes daquela Corte, no sentido de “não admitir mandado de segurança contra suas próprias decisões jurisdicionais, inclusive as emanadas de qualquer de seus Ministros”26.

Essa importante lição da Corte Maior há de ser adotada quase que incondicionalmente. Parece-me que a utilização do mandado de segurança para questionar decisão monocrática de relator só se mostraria válida em situações de extrema gravidade, de forma excepcional, quando gritante a ofensa à ordem jurídica ao ponto de merecer a pronta intervenção pela via mandamental, ainda que dirigida a outro relator do próprio tribunal, como no caso de decisão monocrática não fundamentada.

6. Algumas sugestões para o aperfeiçoamento dos meios de controle das decisões monocráticas do relator

É importante a reavaliação do atual momento em que se firma como órgão do Poder Judiciário a figura do relator, com sua atuação monocrática mais intensa, de sorte a se lançar algumas sugestões que podem auxiliar na consolidação da tendência – a meu ver irreversível – de tornar seletiva a atividade do colegiado, deixando para o órgão plural as questões mais relevantes e polêmicas no âmbito dos tribunais, atribuindo-se ao relator a tarefa de decidir a maioria das questões como juízo singular.

6.1. O julgamento monocrático liminar de méritoA primeira sugestão consistiria na aplicação da regra existente no Código de

Processo Civil, desde a vigência da Lei 11.277/2006, que dispõe o seguinte:

“Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”.

Criou-se, com tal norma, a figura do precedente judicial de primeiro grau com eficácia interna, na medida em que a nova Lei autorizou o juiz a prolatar sentença liminar de mérito, quando a matéria já tenha sido enfrentada em casos idênticos, e em todos eles a decisão foi pela improcedência do pedido; além disso, há que se constatar a dispensabilidade de fato a ser provado.

É certo que, por não existir ainda o contraditório, a rigor não se poderia falar em matéria controvertida, eis que a lide – que é o resultado da controvérsia – surge exatamente por ocasião da contraposição ao pedido. Entretanto, o que o legislador quis dizer com a expressão “matéria controvertida” foi matéria a ser discutida em juízo, o que se percebe ao se fazer a leitura completa da norma.

26 AgRg no MS 25.365-7, relator Ministro Cezar Peluso, DJU 2/2/2007. Os precedentes citados são os seguintes: MS 24.399, relator Ministro Moreira Alves, DJU 9/4/2003; MS 24.885, relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJU 18/5/2004; e MS 25.026 e 25.070, relator Ministro Cezar Peluso, DJU de 8/9/2004 e 28/3/2005.

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Assim, a hipótese de cabimento dessa modalidade de sentença abrange a verificação desses dois requisitos, quais sejam, (I) a matéria a ser veiculada na sentença deve ser preponderantemente de direito e (II) naquele juízo, a questão jurídica em discussão já foi abordada anteriormente, dando-se pela improcedência do pedido.

Embora a norma jurídica se refira à questão unicamente de direito, há de se extrair o verdadeiro sentido da regra – que seria a de abraçar as matérias preponderantemente de direito e com fatos já provados –, em interpretação teleológica mais que adequada, que é a de impedir a formação de relação processual quando a matéria versada na inicial já foi anteriormente enfrentada pelo mesmo juízo, de sorte a dispensar a ouvida da parte contrária para a formação da convicção quanto à tese jurídica.

É elementar que se a questão exige prova dos fatos, a demonstrar que não se tem a mesma tese jurídica daquela firmada em precedente, não se pode dispensar a formação da relação processual e conseqüente instrução.

Todavia, quando a matéria, embora respaldada em fatos, revela que os fatos já se encontram suficientemente demonstrados com a inicial, tem-se que há uma preponderância da matéria de direito, de tal sorte que se pode dispensar a instrução – tanto que nesse caso se faz o julgamento imediato da lide após a defesa – e agora, com a inteligência do art. 285-A do Código de Processo Civil, esse julgamento imediato se faz no limiar da ação, pois seria totalmente inútil aguardar a defesa do requerido quando já se tem um precedente do próprio juízo desfavorável ao pedido.

Na verdade, a nova autorização para o julgamento liminar de mérito em matéria preponderantemente de direito com fatos previamente provados, e por conta da existência no mesmo juízo de total improcedência da matéria em caso idêntico, atende à moderna visão da teoria da ação, que de acordo com o magistério de Leonardo Greco, deve abranger o sentido de jurisdição “como freio às demandas inviáveis”, de tal sorte a concretizar o “direito do réu de não ser molestado por uma demanda injusta”27.

Por tudo isso, é perfeitamente viável a utilização, pelo relator, dessa regra processual, realizando um julgamento monocrático liminar de mérito em ação de competência originária do tribunal, valendo-se da analogia, até porque essa decisão estaria sujeita à análise pelo colegiado, mediante o uso do agravo inominado.

6.2. A eficácia temporal das medidas de urgência na ação rescisóriaOutra sugestão de controle das decisões monocráticas do relator consistiria na

criação de um elemento temporal em medida de urgência deferida pelo relator na ação rescisória, quando nesse feito se postulam medidas cautelares ou antecipatórias.

Sabe-se que atualmente é possível conceder antecipação da tutela ou medida cautelar, suspendendo-se a eficácia de uma decisão transitada em julgado, por conta da interposição de ação rescisória28.

Ora, o acórdão transitado em julgado, fruto de decisão colegiada, e apta a produzir todos os seus efeitos, pode vir a ter sua eficácia suspensa por simples decisão

27 A teoria da ação no processo civil. São Paulo : Dialética, 2003. pp. 15 e 73.28 Código de Processo Civil: “art. 489. O ajuizamento da ação rescisória não impede o cumprimento da sentença ou acórdão rescindendo, ressalvada a concessão, caso imprescindíveis e sob os pressupostos previstos em lei, de medidas de natureza cautelar ou antecipatória de tutela” (redação dada pela Lei 11.280/2006).

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monocrática do relator da ação rescisória, a caracterizar a atribuição de elevado poder a um órgão singular nesse contexto.

Daí que o ideal seria a de se estabelecer um fator condicionante para a duração da medida cautelar ou antecipatória concedida pelo relator na ação rescisória, que seria justamente o da confirmação pelo colegiado encarregado do julgamento da lide, em análise a ser feita na primeira sessão seguinte à concessão da medida, sob pena de caducidade da decisão do relator.

Ter-se-ia uma espécie de reexame necessário das decisões monocráticas tidas como urgentes, em ação rescisória, prestigiando-se o colegiado que firmou o julgamento anterior e que acabou por gerar a coisa julgada.

6.3. O recomendável ato de compartilhar com o colegiado as decisões monocráticas relevantes

Existe uma salutar prática no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que consiste em submeter ao colegiado as decisões relevantes, que possam gerar repercussões no âmbito daquele Tribunal, ainda que de cunho provisório, numa espécie de divisão de responsabilidade do relator.

A medida é notável por vários aspectos. Em primeiro lugar, colhem-se outros ângulos de visão sobre a matéria, na medida em que os demais integrantes da Corte se posicionam sobre o caso. Em segundo lugar, evita-se o recurso de agravo inominado contra a decisão que seria tomada no âmbito monocrático, antecipando-se a idéia do órgão plural a respeito daquele tema. E, por fim, dá-se a ampla publicidade quanto à avaliação da questão, na medida em que a sessão é pública, evitando-se a decisão lançada em gabinete.

A propósito, até mesmo quando a decisão é monocrática, mas em reexame posterior o relator percebe a relevância da causa, ou mesmo porque a urgência impunha a imediata decisão, não se podendo aguardar o dia da sessão, adota-se a postura de sujeitar o ato do relator a referendo do colegiado, razão pela qual se impede até mesmo o ataque da decisão pela via do agravo inominado29.

É importante ressaltar, porém, que essa prática só se justifica diante da relevância do tema ou pela complexidade da causa, porque do contrário se esvaziaria a função monocrática do relator. Na verdade, essa medida constitui típica atividade jurisdicional espontânea inserida no largo conceito de poder geral de cautela do juiz.

Seria extremamente recomendável, assim, que os tribunais passassem a adotar essa idéia de se compartilhar com o colegiado as decisões relevantes, ainda que se relacionem com pedidos acautelatórios ou antecipatórios, e não de decisão final do processo.

7. O fluxo perpétuo das coisas O estudo dessa matéria relacionada com os meios de controle das decisões

monocráticas do relator, como já se destacou, é algo eminentemente técnico, devendo estar imune à tradição, e passível, por isso mesmo, de aperfeiçoamento, em constante mudança.

29 É o que se pode ver, a título de recente exemplo, a MC em Ação Cautelar 805, relator Ministro Marco Aurélio, DJU 17/2/2006.

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Por essa razão, até nos detalhes aparentemente insignificantes não se pode mais permanecer com a visão do que era a forma de julgar pelos tribunais antes da solidificação do julgamento monocrático pelo relator. Basta mencionar a questão das anotações estatísticas. É imperioso que os tribunais passem a inserir como espécie de julgamento aquele realizado pelo relator, que é órgão, e não mais simples membro de tribunal.

Atualmente, é inegável que existem duas modalidades de julgamento no âmbito dos tribunais, quais sejam, a emanada do colegiado (órgão plural) e a decorrente da atividade do relator (órgão singular); ambas com a mesma importância.

Desse modo, a mudança de postura há de ser estimulada, desde a elaboração de estatística, até a conscientização de que esse novo sistema de julgamentos representa a sempre renovada tentativa de aperfeiçoamento da atividade jurisdicional. Afinal, como alertava Heráclito de Éfeso30, as coisas estão em movimento com um fluxo perpétuo, de modo que a lei fundamental do universo seria aquela que impõe a contínua transformação. De fato, tudo flui e nada fica como é, na vida e no direito.

30 Filósofo tido como pré-socrático, e que viveu por volta de 540 a.C. a 470 d.C., na Jônia, atual Turquia.

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