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www.abdpc.org.br OS PODERES DO JUIZ NO COMMON LAW* *Artigo publicado na REPRO – Revista de Processo nº. 180, ano 35, fevereiro de 2010. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. Resumo: O presente artigo aborda alguns conceitos e elementos que caracterizam o Common Law e o distinguem do Civil Law; apresenta pontos interessantes e de relevância no cenário processual civil daquele sistema e faz uma exposição sobre os poderes do juiz ingressando, inclusive, na perspectiva de sua atuação em ações de natureza coletiva. Palavras chaves: Common Law – Civil Law – Equity Law – overruling – precedents – class actions - Poderes do Juiz – Ações coletivas – Precedentes - Força vinculante – Sistema jurídico The present article encompasses some concepts and elements, which characterize Common Law and distinguish it from Civil Law. Furthermore, this work presents relevant and interesting topics of Common Law Civil Procedure, besides providing an explanation regarding the legal powers a Judge is entitled of, including his authority over collective claims. Keywords: Common Law – Civil Law – Equity Law – overruling – precedents – class actions - Judge’ powers – Collective Claims – Precedents – Authoritative Precedent – Legal System Sumário: 1. Introdução. 2. Civil Law e Common Law 3. Do Common Law 4. Equity Law versus Common Law 5. Os poderes do juiz no Common Law 5.1. Class Action e os poderes do juiz 6. Bibliografia Márcio Louzada Carpena Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da PUC/RS Mestre em Direito Professor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da PUC/RS Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil Advogado

Os Poderes do juiz na Common Law pronto - abdpc.org.br Poderes do juiz na Common Law... · Mostra-se absolutamente claro que, sob a óptica de divisão de sistemas jurídicos mundiais,

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OS PODERES DO JUIZ NO COMMON LAW*

*Artigo publicado na REPRO – Revista de Processo nº. 180, ano 35, fevereiro de 2010. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais.

Resumo: O presente artigo aborda alguns conceitos e elementos que caracterizam o Common Law e o distinguem do Civil Law; apresenta pontos interessantes e de relevância no cenário processual civil daquele sistema e faz uma exposição sobre os poderes do juiz ingressando, inclusive, na perspectiva de sua atuação em ações de natureza coletiva.

Palavras chaves: Common Law – Civil Law – Equity Law –

overruling – precedents – class actions - Poderes do Juiz – Ações coletivas – Precedentes - Força vinculante – Sistema jurídico

The present article encompasses some concepts and elements, which

characterize Common Law and distinguish it from Civil Law. Furthermore,

this work presents relevant and interesting topics of Common Law Civil

Procedure, besides providing an explanation regarding the legal powers a

Judge is entitled of, including his authority over collective claims.

Keywords: Common Law – Civil Law – Equity Law – overruling –

precedents – class actions - Judge’ powers – Collective Claims – Precedents

– Authoritative Precedent – Legal System

Sumário: 1. Introdução. 2. Civil Law e Common

Law 3. Do Common Law 4. Equity Law versus Common

Law 5. Os poderes do juiz no Common Law 5.1. Class

Action e os poderes do juiz 6. Bibliografia

Márcio Louzada Carpena

Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da PUC/RS Mestre em Direito

Professor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da PUC/RS Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil

Advogado

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1. Introdução

A realização de um estudo específico sobre um assunto ligado ao Common Law,

por um pesquisador inserido e acostumado com as regras da Civil Law, como é o nosso caso,

muito especialmente no que se refere às disposições e orientações de nível processual ou

procedimental, o que ora se propõe, sem sombra de dúvida, apresenta-se absolutamente

instigante e desafiador, porquanto envolve não somente diferente perspectiva cultural, social e

econômica a respeito do processo, mas principalmente outra visão jurídica, cuja correta

compreensão prescinde de um natural afastamento de idéias e conceitos pré-absorvidos à luz

do sistema já conhecido (Civil Law).

Por certo, quando se olha outro sistema, é preciso abrir a mente e, para tanto,

dentro do possível e em dadas situações, deixar de lado conceitos e dogmas que, de forma

inexorável, ainda que subconscientemente, temos presentes por virtude da própria concepção

que guardamos a respeito do cenário em que estamos inseridos e com os quais, na qualidade

de operadores, interagimos diariamente. Caso contrário, não só se mostra difícil a absorção

das novas idéias que serão encontradas, como também prejudicadas poderá restar a

compreensão a respeito de alguns pontos que se apresentam fundamentais à inteligência de

todo novo ordenamento estudado e, ao fim, o verdadeiro propósito do estudo investigativo.

Por óbvio que a realização de uma comparação de sistemas jurídicos, quando

bem feita, tem, com certeza, relevância científica e pragmática, na medida em que, por conta

dela, se passa a ter uma concepção a respeito de outras formas de conceber o direito, como

ciência voltada à solução de conflitos sociais, o que, sob o ponto de vista processual, se

afigura de notável valia. Outrossim, o conhecimento de direito comparado pode servir de base

para reflexão de novas técnicas e procedimentos o que, em sede de direito instrumental, se

revela extremamente importante. Ainda, dentro de uma perspectiva de globalização da

economia, a correta percepção sobre outros sistemas jurídicos se mostra de todo conveniente,

mormente diante das atuais influências1, que decorrem até mesmo da velocidade dos tempos

modernos, que uns têm gerado sobre os outros.2

1 Neste sentido, vide: MOREIRA, José Carlos Barbosa. A revolução processual Inglesa. In: Temas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense. Nona série, 2007; MOREIRA, José Carlos Barbosa. O processo civil contemporâneo: um enfoque

comparativo. In: Temas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense. Nona série, 2007; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. In: Temas de Direito Processual. Rio de

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De todas as possibilidades que se evidenciavam presentes e que poderíamos

adotar neste ensaio, optamos por seguir um viés de cunho pragmático, fazendo uma

abordagem específica sobre a atuação dos juízes na condução de um processo judicial no

Common Law, deixando de lado, dentro do possível, questões meramente teóricas ou

acadêmicas.

Tem o presente estudo, pois, a pretensão de apresentar ao leitor uma noção a

respeito do processo civil no Common Law e, em especial, da atuação do magistrado nesse

sistema com influência e de origem anglo-saxã. Para tanto, julgamos necessário, num

primeiro momento, situar o leitor sobre alguns conceitos e elementos que identificam,

caracterizam e diferem o Common Law daquele outro sistema por nós conhecido, qual seja, o

da Civil Law. Numa segunda oportunidade, ingressamos na abordagem de alguns pontos de

relevância processual daquele sistema, a bem de melhor situar o examinador sobre as

particularidades e premissas daquele conjunto jurídico até, num terceiro momento, atingirmos

propriamente a questão de fundo, vale dizer, os poderes do juiz neste ordenamento diverso.

2. Civil Law e Common Law

Mostra-se absolutamente claro que, sob a óptica de divisão de sistemas

jurídicos mundiais, tem-se verificado uma separação, realizada pela doutrina e pela academia,

entre aquele de origem romano-germânica, que se denomina, em língua inglesa, Civil Law e

outro, de origem anglo-saxã, chamado Common Law.3

Janeiro: Forense. Sétima série, 2005; SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law introdução ao direito nos EUA. 2ª edição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000. 2 Como bem registra Sérgio Gilberto Porto: “Hodiernamente, em face da globalização – a qual para o bem ou para o mal indiscutivelmente facilitou as comunicações - observa-se um diálogo mais intenso entre as famílias romano-germânicas e a da common law, onde uma recebe influência direta da outra. Da common law para civil law, há, digamos assim, uma crescente simpatia por algo que pode ser definido como uma verdadeira "commonlawlização" no comportamento dos operadores nacionais, modo especial, em face das já destacadas facilidades de comunicação e pesquisa postas, na atualidade, a disposição da comunidade jurídica. Realmente, a chamada "commonlawlização" do direito nacional é o que se pode perceber, com facilidade, a partir da constatação da importância que a jurisprudência, ou seja, as decisões jurisdicionais, vêm adquirindo no sistema pátrio, particularmente através do crescente prestigiamento da corrente de pensamento que destaca a função criadora do juiz.” (PORTO, Sérgio Giberto, Civil Law, Common Law e Precedente vinculante. Estudo em homenagem ao professor Egas Moniz de Aragão. Disponível na home Page da Academia Brasileira de Direito Processual Civil - http://www.abdpc.org.br/textos/artigos/html/Artigo%20final.htm. Acesso em 09.12.2007.) 3 Outros sistemas jurídicos se evidenciam pelo mundo, tais como o antigo sistema da antiga União Soviética, o sistema muçulmano, indiano, do extremo oriente, judaico, da África e de Madagascar, de fortes componentes ligados à religião. (SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law introdução ao direito nos EUA. 2ª edição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 26).

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De fato, há uma tranqüila convergência científica no sentido de se definirem

esses dois sistemas principais4 do mundo contrapondo-os com base na forma como elegem

suas fontes primárias.

Em geral e em análise apertada, tem-se compreendido a Civil Law como um

sistema jurídico que tem por fonte primária, ostentando posição de relevância como fonte de

solução de conflitos sociais, a lei, vale dizer, a norma jurídica escrita, positivada; já por

Common Law tem-se entendido o sistema cujo elemento norteador, a base da estrutura

jurídica, são os casos julgados, isto é, as decisões judiciais já proferidas, cujas soluções

empregadas se apresentam vinculantes, ou seja, têm de ser obrigatoriamente observadas em

julgamentos posteriores5.

Evidentemente que a diferença entre os dois sistemas, no entanto, não se

resume somente a isso; muito pelo contrário, são muito maiores e envergam, pela própria

forma como cada um particularmente encara a posição da Justiça, o dever de cumprimento

das decisões judiciais e a própria disposição jurídica como forma de regular condutas sociais.

Além disso, a posição dos juízes de primeiro grau (que, por exemplo, nos Estados Unidos são

eleitos pelo povo), do Ministério Público e dos advogados, como protagonistas de cada

sistema, passa, sob o ponto de vista instrumental, a ser bem diferente em cada sistema o que,

por si só, já se apresenta como fator contundente de certo afastamento deles. Outrossim, a

visão de um processo inquisitorial, com atuação efetiva do juiz na busca da verdade e

interessado na realização da prova (típica ocorrência dentro da Civil Law), em contraponto

com um processo adversarial, em que aos advogados cabe a estratégia e a arte de produzir a

prova sem a intervenção ou “consulta” ao juiz (principalmente nos Estados Unidos), bem

contrasta os dois universos jurídicos.

O sistema da Civil Law, hoje, é empregado nos países de tradição romano-

germânica, entre os quais aqui se destacam, a título meramente de exemplo, a Alemanha, o

Brasil, a Espanha, a França, a Itália e Portugal. Já o Common Law, também conhecido

impropriamente como sistema inglês ou britânico, não se limita à Inglaterra, também sendo

empregado nos Estados Unidos (com exceção do Estado da Lousiana, que é partidário da

4 Se fez referência a “principais sistemas” porquanto se verifica que são os dois (da família romano germânica e o de tradição anglo-saxã) mais utilizados quantitativamente no mundo, bem como os países que adotaram são aqueles que, hoje, ostentam grande relevância na esfera da economia mundial. 5 FISS, Owen. Um Novo Processo Civil estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 45 e seguintes.

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Civil Law), na Austrália, no Canadá (com exceção de Quebec) e na Índia, além de outros

países colonizados pela Coroa britânica.

3.Do Common Law

Para se compreender o Common Law, com certeza, a primeira premissa que o

investigador da Civil Law deve ter muito clara é de que aquele sistema jurídico é baseado em

outros valores e princípios de atuação dos protagonistas do processo judicial, evidenciando-se,

de início, que a óptica jurídica sobre a própria figura do advogado ocupa posição muito

diversa daquela por nós conhecida no sistema em que atuamos.

Com efeito, lá o advogado é visto e admitido como um elemento de

“fiscalização de condutas sociais” e, assim sendo, de controle de posturas, tendo profunda

atuação capitalista. Uma vez verificando alguma lesão a direito, passa o attorrney (advogado)

a poder atuar em favor da parte prejudicada contra o ofensor com intuito de buscar a devida

compensação financeira para vítima, e para tanto (e aí vem a peculiaridade) deverá ele

(advogado) inclusive financiar a causa, pagando não só as custas processuais, mas também as

despesas da própria dilação probatória – chamada discovery. A atuação contenciosa, nesses

termos, deságua, de início, em uma atividade, para nós, “estranha”, mostrando-se, no entanto,

justificável dentro da visão econômica e capitalista fortemente desenvolvida dentro de alguns

países integrantes do Common Law, como é o caso, principalmente, dos Estados Unidos.

Considerando justamente que inexiste um instituto similar à Assistência

Judiciária Gratuita brasileira e que os advogados devem propor as demandas e suportar os

custos do seu processamento, nos Estados Unidos, acaba ocorrendo um filtro natural de

demandas judiciais, já que, por óbvio, nenhum advogado ou escritório de advocacia vai

patrocinar um processo, pagando os altos custos disso, sem acreditar na causa. A advocacia é

vista abertamente como um negócio, sendo, destarte, comum se evidenciar grandes bancas

voltadas para, em princípio, a lucrativa (mas também perigosa) atuação contenciosa.

É pelos altos custos das demandas e pelo fato de se deferir ao advogado os

ônus do processo que, em verdade, há naquele sistema uma grande quantidade de transações e

investidas para se evitar a propositura de demandas. Na maioria dos casos, quando há fatos e

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provas para uma ação, os advogados preferem fazer acordos a custeá-la para, posteriormente,

se sujeitarem ao resultado, que, no início, é absolutamente incerto e dependerá de vários

fatores, guardando-se, sempre, ainda que dentro de uma idéia de obrigatoriedade de adoção de

precedentes, certa carga de subjetividade no tocante à aplicação de tal decisum à causa sub

exame, com base na constatação ou não de identidade de fatos e da problemática jurídica.

Outros fatores peculiares, tais como a possibilidade de o juiz transformar, em

dadas circunstâncias, uma ação civil individual em coletiva (class action) - ou descaracterizar

uma ação como sendo coletiva empregando efeitos apenas individuais -, também fomentam

consideravelmente realizações de transações.

Peculiaridade à parte, dentro desse sistema há a possibilidade (hoje,

basicamente só nos Estados Unidos) de evidenciar-se o processo, dependendo da sua

natureza, ser conduzido perante um júri civil, o que, por certo, o torna mais dispendioso e

mais demorado.

No Common Law, antes de se ter uma jurisdicização da lide, evidencia-se uma

fase de comunicação entre os advogados das partes, por meio da qual eles expõem as suas

pretensões e até mesmo indicam as provas que têm ou que irão produzir, o que permite um

sopesamento de riscos pelos procuradores, antes de irem a juízo bancar um processo caro,

desgastante e demorado. Dessa sorte, é que muitos acordos acabam sendo firmados

extrajudicialmente.

Dentro deste universo jurídico têm, pois, os advogados posição de destaque,

passando o juiz a ostentar, contrariamente ao que ocorre na Civil Law, uma posição mais

discreta e até mesmo passiva em dadas situações (como, por exemplo, na coleta da prova).

Isso não quer dizer, em absoluto, que o juiz não tenha poderes dentro do

Common Law. Muito pelo contrário. Tem poderes, como se verá adiante, inclusive, para

adequar e flexibilizar o procedimento processual à realidade do caso específico, o que, por

certo, em muitas ocasiões o torna imprevisível para as partes.

A atuação do juiz, todavia, encontra limites diante das decisões anteriormente

proferidas pela Corte, em outras oportunidades e demandas, que eventualmente se encaixem

na situação jurídica então posta sob sua apreciação e jurisdição. Com certeza, esta questão é

fundamental e nela se encontra todo o fundamento do Common Law, que o distancia da Civil

Law.

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De fato, naquele sistema tudo gira em torno das decisões judiciais já

proferidas, não propriamente pelo mérito da decisão em si, mas, sim, pelas vinculações que

ostentam em relação a todos os casos que, posteriormente, se assemelharem àquele julgado.

Vale dizer, a decisão judicial emanada e transitada em julgado passa a ser um precedente com

uma força tamanha que torna obrigatório o seu acatamento para todos os casos posteriores a

ele que se enquadrem à mesma realidade fática.

Conforme registra em obra específica Guido Fernando da Silva Soares, uma

decisão judicial neste sistema, por derradeiro, tem dupla função, quais sejam:

“1.)Decide o caso sub judice e faz coisa julgada (res judicata é expressão corrente nos EUA), dizendo os doutrinadores dos EUA que assim se cria o direito, como o legislador, porém limitado às questões em controvérsia (issues) e às partes; neste particular, nada de diferente existe quanto ao sistema romano-germânico, salvo no que diz ao poder de “criação”de direito por parte do juiz; 2.) Tem um efeito além das partes ou da questão resolvida ( e aqui reside a tipicidade da Common Law), pois cria o precedente, com força obrigatória para os casos futuros. Na verdade, o precedente não é uma regra abstrata, mas uma regra intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual, o conhecimento das razões da decisão é imprescindível; não se pode aplicar um precedente fixado em matéria de motivos para divórcio, por exemplo, à resolução de uma questão que verse sobre contratos ou obrigações alimentícias!”6

Uma decisão judicial, segundo a perspectiva de tal sistema, ostenta: a) os fatos

narrados ou visualizados pelo juiz; b) os princípios do direito aplicados ao fato; e c) o

julgamento baseado numa combinação dos dois primeiros elementos (“a” e “b”). O que

realmente vincula são os princípios do direito aplicados ao fato (“b”) e não a decisão em si

(“c”). A decisão em si (“c”) interessa somente à parte que participou do processo; já os

princípios de direito aplicáveis a determinados fatos (“b”) interessam a toda sociedade,

porquanto representam a interpretação da justiça sobre aquela situação, vinculando o juiz para

todos os casos idênticos posteriores.7

A análise de aplicação de um precedente a determinado caso, no entanto, não é

matéria tão simples quanto possa imaginar um operador da Civil Law, bastando dizer que

requererá não somente uma precisa investigação, mas também uma boa qualificação técnica

6 SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law Introdução ao Direito nos EUA, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª. Ed. p. 40 7 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law – Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Fabris. 2007, p. 125.

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para apresentação e comparação dos casos em juízo. Tanto nos Estados Unidos quanto na

Inglaterra a pesquisa e o estudo sobre os precedentes se apresentam de forma vital para o

exercício da advocacia contenciosa e também da atuação judicial, sendo, pois, objeto de

análise minuciosa nas faculdades de Direito.

Pelo fato de o caso decidido ter importância continental, o percurso de análise

dos fatos e da causa propriamente dita é matéria árdua, sendo que, de início, o precedente se

apresenta como mero ponto de partida, ficando a critério do juiz decidir se ele se enquadra

naquela questão sub judice ou não, fato que, por certo, conta com certo subjetivismo

(distinguishing). Na prática, cotejam-se os grupos de casos semelhantes para ao fim decidir

qual precedente mais se afeiçoa ao caso concreto.

Edward Re, professor da Universidade de Nova Iorque, a propósito bem

leciona neste sentido:

“É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra. Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz no sistema do common law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-lo moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão ao caso concreto que tem diante de si. O processo de aplicação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do princípio, é mais do que apenas um verniz; representa a contribuição do juiz para o desenvolvimento e evolução do direito”8.

É por razões históricas, e de longa data, que o Common Law se caracteriza pela

eleição do precedente como fonte primária, sendo tal força vinculativa das decisões, como se

registrou, elemento central de tal estrutura jurídica. De se registrar que os precedentes

ostentam o condão de vincular a decisão proferida aos casos posteriores, ainda que tal decisão

não pareça a mais correta. Essa circunstância é, inclusive, criticada e posta como ponto fraco

pelos próprios seguidores do Common Law já que, em determinadas oportunidades, pode

gerar situações teratológicas. Lembre-se, por exemplo, do precedente polêmico existente na

Inglaterra, cujo conteúdo dizia que “não era crime o estupro dentro do casamento”. Tal

precedente levou, de fato, muito tempo para ser alterado.9

8. RE, Edward D. Stare Decisis. trad. Ellen Gracie Northfleet. In: Revista Forense v. 327, p. 38. 9 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law – Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Fabris. 2007.

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O seguimento de um precedente para os integrantes do Common Law é, pois, a

materialização do que já foi definido e que, por tal razão e para manter a segurança jurídica,

não pode ser modificado. É que, segundo a concepção existente, uma vez tendo sido a

situação julgada, a sociedade já teria absorvido aquela decisão como norma de conduta não

sendo razoável então, posteriormente, alterá-la.

A previsibilidade dos julgamentos, com base nos precedentes é, dentro do

sistema, um elemento extremamente valorizado representando a sua não-aplicação, ao fim e

ao cabo, uma “quebra de confiança” no próprio conjunto jurídico que regula a sociedade.

Sérgio Gilberto Porto, com a propriedade que lhe é peculiar, bem frisou uma

série de explicações registradas pela doutrina norte-americana para a utilização da idéia de

precedente vinculante. Convém, pois, destacar os argumentos:

“(a) Na mesma jurisdição, o direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais. Para desenvolver o direito uniformemente e através do sistema judicial, as Cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores. Trata-se, pois, do prestígio ao valor ‘segurança jurídica’. (b) Em segundo lugar, justiça imparcial e previsível significa que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia. (c) Em terceiro lugar, se na prática fosse de outra forma, isto é, não fossem as decisões judiciais previsíveis, o planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção. (d) Em quarto lugar, stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, a qual incrementa a credibilidade do poder judicante junto à sociedade. (e) Em quinto lugar, além de servir para unificar o direito, serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face do padrão prefixado de comportamento judicial. Em resumo, a existência da doutrina da stare decisis acredita implementar - modo claro - qualidade e segurança na prestação do serviço justiça e, por decorrência, melhorar o convívio social.”10

Na concepção de um investigador da Civil Law, pode-se dizer que os

precedentes do Common Law atuam como normas reguladoras das condutas sociais, e a

negação de aplicação desses precedentes a um determinado caso em que, a priori, incidiria,

seria uma verdadeira negativa à previsibilidade e segurança jurídica, as quais se mostram

imprescindíveis para garantir a desejada paz social.

10 PORTO, Sérgio Giberto, Precedente vinculante. Estudo em homenagem ao professor Egas Moniz de Aragão. Disponível na home Page da Academia Brasileira de Direito Processual Civil - http://www.abdpc.org.br/textos/artigos/html/Artigo%20final.htm. Acesso em 09.12.2007.

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Na Inglaterra, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, eventual

revogação de precedente, em determinadas situações, tem efeito ex tunc, motivo pelo qual há

uma resistência ainda maior da que se verifica em outros países para se desconsiderá-lo.

Analisando a questão, Andréia Vieira bem expôs:

“[...] Ao lado do fato de se criar certeza para a Common Law, outras razões para não se revogar precedentes são os problemas financeiros e contratuais que disso decorreria. Pode ser até que, em certas circunstâncias, um fato que antes era lícito venha a ser considerado Ilícito pelo sistema da revogação. O mesmo não acontece com os precedentes que sejam revogados por estatutos. A revogação por Estatuto, assim como se dá na maior parte dos países da família romano-germânica só opera com efeito ex nunc, ou seja, não há retroatividade.”11

Há, de fato, verdadeira resistência quanto à aplicação do “abandono do

precedente” (overruling), porque, sendo o precedente uma fonte de direito e, logo, um

instrumento de regulação social, a sua não incidência em determinado caso fático específico a

que, em tese, seria aplicável representa uma violação à base do próprio sistema.

Evidentemente que, por estas razões, no overruling o esforço argumentativo do

juiz deve ser muito maior do que na situação em que meramente aplicaria o precedente.

Há, todavia, que se fazer uma distinção entre precedente e precedente

vinculante. O juiz norte-americano, por exemplo, estará vinculado aos precedentes da Corte

onde se situar a sua jurisdição, bem como da Suprema Corte, não tendo, todavia, de obedecer

a precedentes de tribunais outros, ainda que se situem dentro dos Estados Unidos. De igual

sorte, por exemplo, um juiz federal não estará obrigado a decidir da mesma forma como

decidiu uma Corte Estadual, porquanto se trata de esferas distintas e que, por certo, não se

sobrepõem e não geram dever de observância.

Tem-se que uma decisão terá força vinculante, segundo anota com propriedade

Ugo Mattei, quando houver: 1) identidade de fato; 2) Já tenha sido adotado em Corte da

11 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law – Os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: Fabris. 2007, p. 127-128.

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mesma jurisdição; 3) Não tenha sido modificado ou revisto, isto é, não tenha sido superado

por entendimento mais atual; e 4) quando a matéria jurídica se apresenta idêntica.12

Um precedente que se mostre não vinculante, seja pelo fato de não

corresponder à mesma realidade, mas apenas análoga, seja por não pertencer à Corte da

mesma jurisdição, ou por qualquer outra razão, pois, expõe-se como mero elemento de

argumentação jurídica, de persuasão. É, de fato, um mero ponto de partida, um princípio a ser

observado sem que o fim (resultado) da demanda com ele convirja. Escrevendo sobre o tema,

Leonardo Lima bem registrou: "O precedente só terá força vinculante se houver identidade

com base nos fatos ou nas questões de direito suscitadas (binding ou leading precedents), caso

contrário servirá apenas de elemento persuasivo (persuasive precedents)"13

Tal posição é igualmente referida por Guido Fernando da Silva Soares ao

lecionar:

“A autoridade (authority), ou melhor dito, a força de impor-se a futuros casos dos

cases laws, segundo a doutrina, pode ser dividida em duas classes: a) persuasive, em geral de decisões de cortes de jurisdição paralela (mesma jurídicas de outros Estados) ou de votos vencidos ou minoritários da mesma corte ou de cortes superiores, e a determinados assuntos(...); b) binding authority, as decisões das cortes superiores da mesma jurisdição ou as decisões da mesma corte.”14

Na interpretação de um precedente, dentro do Common Law, clássica é a

distinção entre holding (chamado na Inglaterra de ratio decidendi) e de dictum

(originariamente derivado da expressão obter dictum). O holding diz respeito ao que foi

discutido e argüido perante o juiz e para cuja solução foi necessário “fazer” (criar/descobrir) a

norma jurídica; diz respeito ao cerne da questão, isto é, a solução jurídica para o caso fático15.

Já dictum diz respeito a tudo aquilo que se afirma na decisão, mas que não é decisivo para o

12 MATTEI, Ugo. Stare decisis: il valore del precedente giudiziario negli Stati Uniti d’America, Milano, Giuffrè, 1988, p. 3. 13 LIMA, Leonardo D. Moreira. Stare decisis e súmula vinculante: um estudo comparado. Disponível em: http://sphere.rdc.puc-rio.br/direito/revista/online/rev14_leonardo.html#_ftnref3, acessado em 07.12.2007, às 20:30 14 SOARES, op. cit, p. 42 15 Em palestra proferida em Congresso da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, José Rogério Cruz e Tucci, abordando a questão da súmula vinculante, bem frisou: “O que vincula é a fundamentação, é a regra jurídica constante da fundamentação. Por isso, no sistema da common law, quem trata deste assunto, volta-se a atenção para a ratio decidendi, ou seja, a regra jurídica aplicável a um caso similar, a um caso análogo. Então, há necessidade – e aí entra o papel do advogado, que é muito importante – de evidenciar a hipótese semelhante ou destoante. Esse é o método da common law chamado distinguishing. Esse método de verificar se efetivamente as causas de pedir são similares ou não. Esqueçam o dispositivo. O dispositivo não vincula nada. É lógico que ele é iluminado pela causa de pedir. A súmula vinculante, a exemplo dos princípios sumulados hoje, tem, do ponto de vista formal, esse mesmo desenho. É a regra jurídica que deve ou não ser aplicada no caso análogo. Então, não tenho este receio de estratificação. Disponível em : http://209.85.207.104/search?q=cache:aP4Z7eQx4B0J:www.tj.rs.gov.br/institu/c_estudos/doutrina/congresso_direito_processual_civil/Dr_Jose_Rogerio_C_e_Tucci_06_02_2006.doc+tucci+jos%C3%A9+rog%C3%A9rio+common&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=2&gl=br. Acesso em 10/12/2007, às 01h:34min)

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deslinde da controvérsia, sendo, pois, elementos persuasivos e, talvez, no caso, confortadores

da decisão proferida.16

Na hipótese em que se verifica a “derrogação” de um precedente, pode-se dizer

que ocorreu de ele se deslocar da posição de holding para a posição de dictum, ou seja,

continua presente no sistema não com forca vinculante, mas, sim, como mero elemento de

persuasão, cujas idéias e valores poderão ser analisados como elementos a auxiliar a

construção de uma nova tese ou mesmo novo precedente.

Nesses termos é que os precedentes apresentam sua importância dentro do

Common Law, cabendo lembrar, entretanto, que em cada país eles guardam suas

peculiaridades. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Suprema Corte não se vincula aos seus

precedentes, servindo, pois, como mero dictum, muito embora seja raro ela negar suas

orientações já lançadas, conforme bem aponta José Carlos Barbosa Moreira17.

4. Equity Law versus Common Law

Antes de nos aprofundarmos a respeito dos poderes do juiz no Common Law, a

distinção existente entre este e a Equity Law, muito embora tenha mais relevância histórica do

que prática nos dias atuais, merece ser abordada, porque, ainda, é um ponto de referência

dentro daquele sistema.

Com efeito, nos primórdios, o Common Law se destinava a apreciar alguns

casos do povo que se mostravam relevantes, vale dizer, era um sistema voltado não para todas

as disposições litigiosas da sociedade, mas, sim, para algumas. De outro lado, tratava-se de

um sistema caro e altamente formal, excluindo, por várias razões, inúmeras lesões ou ameaças

de lesões a direitos.

Diante de tal realidade e tendo em vista que, naturalmente, o Estado precisava

tutelar todas as relações litigiosas, até para manter a paz e a organização social, criou-se,

como um efeito natural, o Equity Law, cujo propósito inicial era justamente o de evitar

16 SOARES, op. cit, p. 42. 17 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Suprema Corte norte-americana: um modelo para o mundo? In: Temas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense. Oitava série, 2004, p. 239.

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negativa de tutela estatal para aquelas questões que não tinham previsão de tutela ou não

tinham cabimento dentro do Common Law.

O Equity Law, assim, pode ser compreendido como uma resposta ao sistema de

“injustiça”, ou melhor, como forma de evitar-se que lesões ou ameaças de lesões a direito

ficassem à margem de uma tutela estatal. Por certo, o Equity acabou se desenvolvendo como

um sistema paralelo para todas aquelas situações que não se enquadravam dentro do Common

Law, seja por falta de previsibilidade ou mesmo de acessibilidade, uma vez que, entre outras

coisas, como se disse, este se apresentava com um sistema cujo custo era extremamente alto.

Conhecido como sistema “fora da lei”, o Equity Law era baseado na

consciência, no bom senso. Equity significa igualdade, que provém do latim equitas (justiça),

derivação de equs (justo, imparcial).

O Equity desenvolveu-se principalmente para o direito de propriedade, direito

dos contratos e também para questões relativas às garantias, e com o tempo ganhou forte

expressão dentro do próprio Common Law, inclusive com decisões que serviam de base de

consulta a esta.

No século XIX, na Inglaterra, houve a fusão entre Common Law e Equity Law

por conta da Judicarute Acts. Nos Estados Unidos, em 1938, as diferenças que existiam entre

actons at Law e suits in equity foram extintas pelo que se denominou Civil Actions.

Há na experiência forense uma referência que se faz até os dias de hoje,

inclusive por virtude destas disposições históricas entre o Common Law e o Equity Law,

segunda a qual todas as questões que têm previsibilidade se incluem no Common, ficando as

demais questões relegadas ao Equity. Nesses termos, por exemplo, uma pretensão cuja tutela

seja voltada ao ressarcimento em função de perdas e danos se inclui dentro do Common Law,

ao passo que uma pretensão cujo norte seja a obtenção de tutela na forma específica (decree

of specific performance) inclui-se na amplitude da Equity.

Talvez, na interpretação de um estudioso da Civil Law, a figura da Equity

possa ser vista como um elemento capaz de ampliar os poderes de cautela e de condução do

processo pelo juiz para garantir um resultado justo.

No panorama processual, o discernimento prático entre Common Law e Equity

Law igualmente se manifesta, bastando dizer que, por exemplo, em matéria probatória, pelo

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sistema do Common Law, incumbe às partes apresentar as suas provas, ao passo que pelo

Equity tem o juiz a possibilidade de interferir para bem de assegurar um resultado equânime.

Pode o juiz, na Equity, v.g., valer-se do seu poder para determinar que uma parte apresente

certos documentos ou mesmo mande buscá-los e apreendê-los (discovery order).

5. Os poderes do juiz no Common Law

Pela liberdade e abertura do Commom Law, na esfera processual, é dado ao

juiz conduzir a demanda da forma que julgar mais adequada para conseguir resolver a

controvérsia dentro daquilo que entender mais justo. Tal amplitude e flexibilidade, como se

disse linhas atrás, dão ao magistrado poderes notáveis, o que, por alguns, é visto como um

problema dentro do sistema, uma vez que, em determinadas situações, dependendo da

ideologia do magistrado pode, na prática, resultar em situações desastrosas.18

Tem-se que, de qualquer sorte, em tese, os limites da atuação do juiz se

encontram dentro de grandes conceitos, tais como respeito ao direito de defesa, direito de

produção de prova, direito da parte de ser ouvida, devido processo legal, entre outros. Há nos

Estados Unidos precedentes, por exemplo, que garantem a toda pessoa humana residente

naquele país o direito irrestrito ao Due Processo of Law, bem como a não violação de seus

direitos fundamentais, tais como, o direito à vida, à liberdade, à livre expressão, ao ir e vir, à

propriedade individual, etc.

Pode-se afirmar que a atuação do juiz parece estar mais voltada à proteção de

sua imagem de imparcial perante a sociedade do que propriamente atrelada ao seguimento de

alguma orientação doutrinária ou normativa. Nos Estados Unidos essa posição de proteção da

imagem fica exacerbada, uma vez que a legitimidade do juiz deriva do voto dos cidadãos.

No Common Law americano, há uma repulsa a aspectos inquisitoriais, seja no

processo civil, seja criminal, de forma que se exige moralmente uma neutralidade absoluta do

juiz, como se fosse um árbitro que meramente controla o jogo.

18 O fato de se considerar o juiz o “livre” condutor do processo, acaba, de fato, justificando determinadas decisões que podem ser parciais, daí por que se diz que, na prática, o juiz, pela sua força, pode potencializar ou despotencializar uma demanda, segundo a sua posição ideológica.

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É em face da flexibilidade (limitada, todavia, aos precedentes e aos próprios

princípios da ampla defesa, da razoabilidade, do devido processo legal, dentre outros) que se

fala que judge made law, ou seja, o juiz faz a norma.

Tal posição ganha relevo, de outro lado, pelo fato de não existirem em várias

situações recursos processuais para a parte se insurgir contra a decisão proferida (não há, por

exemplo, na maioria dos estados norte-americanos, recuso idêntico ao agravo de instrumento

brasileiro para atacar decisões de cunho interlocutório).

O processualista brasileiro Antonio Gidi, professor da Universidade Houston,

nos Estados Unidos, com toda a autoridade em obra específica sobre o direito daquele país,

bem leciona:

“As normas processuais americanas são regidas em uma linguagem desconcertantemente ampla, deixando uma larga margem de discricionaridade ao juiz de primeiro grau. Essa flexibilidade é a marca registrada do direito americano e permite ao juiz adaptar o processo às peculiaridades de cada caso. Por um lado, isso faz do direito processual americano extremamente sensível às circunstâncias de cada caso concreto e essa pode ser considerada a razão do sucesso das ações coletivas. Por outro lado, pode deixar as partes reféns das convicções pessoais de cada juiz.”19

Em sede de equity, no pleito de injuctions, por exemplo, que nada mais é do

que uma ação de caráter mandamental cujo propósito é a obtenção de uma ordem no sentido

de compelir a parte adversa a fazer ou não-fazer algo, vê-se que o juiz está autorizado a

deferir ordens mandatórias (ordenando que se faça) ou proibitórias (ordenando que se

abstenha), muitas vezes sem instrução prévia, liminarmente, decisão esta contra a qual

inexiste recurso previsto(!)20. O mesmo acontece também, nos casos de specific performance,

vale dizer, em ação de caráter mandamental lastreada em contrato, cujo objetivo do requerente

é obter a execução específica de uma obrigação.

Interessante notar que, no Common Law, o deferimento de uma liminar, da

mesma sorte com que ocorre na Civil Law, está jungido à presença de determinados elementos

autorizadores, os quais, de igual maneira, dependem da interpretação da prova e até de certa

subjetividade.

19 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 18. 20 Vale dizer que, no Brasil, dificilmente se admitiria a outorga a um juiz do poder de deferir medidas liminares sem que contra tal decisão caiba algum recurso com intuito de cassação ou mesmo reforma do decisum, o que bem revela a diferença de “cultura jurídica” entre o nosso sistema e o da Common Law.

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Mas, é necessário dizer que, no universo jurídico anglo-saxão, ao juiz não só é

dado o poder de conduzir o processo da forma que julgar mais adequada, como também de

fazer valer as suas decisões. Com efeito, as possibilidades que se abrem ao juiz para efetivar

suas ordens no caso de contempt of court são realmente amplas.

O instituto do contempt of court significa o desrespeito de alguém para com a

autoridade do órgão judicial, podendo derivar tanto de uma ação quanto de uma omissão.

Significa, em verdade, uma afronta ao povo e à dignidade da jurisdição, a qual não pode ser

tolerada, devendo, sim, ser punida exemplarmente.

O contempt of court é dividido, no sistema norte-americano, em civil ou

criminal. Diz-se que é civil, quando o ato de desacato é voltado a prejudicar o adversário, isto

é, quando fulcrado em resistir à satisfação do direito alheio; é criminal, quando destinado

prioritariamente a prejudicar a atuação jurisdicional, denegrindo a “reputação do juiz ou

tribunal”. Nesses termos, por certo, pode-se verificar o civil contempt no processo penal,

assim como também é possível verificar-se um criminal contempt num processo civil21.

Evidenciada a existência de contempt of court, o juiz tomará as medidas

judiciais que julgar mais acertadas, verificando-se a possibilidade de aplicação de sanções

cujo propósito pode ser coercitivo ou punitivo.

Dentre as sanções que se observam, as multas (as quais não têm limite) se

destacam como as mais efetivas a atingir o resultado desejado. A prisão daquele que se opõe à

decisão judicial, não somente é uma possibilidade, como uma realidade, sendo muito

prestigiada dentro de tal conjuntura jurídica.

A Suprema Corte norte-americana quanto à legitimidade das punições com

base no contempt of court frisou em voto do Juiz Field

21 Aliás, neste diapasão Araken de Assis leciona: “O contempt criminal consiste na ofensa à dignidade e à autoridade do tribunal ou de seus funcionários, gerando obstáculo ou obstrução ao processo, tornando-o mais moroso. Por via de conseqüência, o ato provocará má reputação do órgão judiciário. Pode ocorrer em processos civis ou penais, independentemente do procedimento concreto adotado. Exibe nítido caráter punitivo, a um só tempo reprimindo o autor da ofensa e dissuadindo a ele ou a outras pessoas de comportamento similar. (...) o contempt civil consiste na omissão de certo comportamento prescrito pelo tribunal, a favor de uma das partes. Em síntese, é o mau comportamento, idôneo a prejudicar, impedir ou frustrar o direito alheio, a exemplo do que acontece com a desobediência a injuction.(...) Legitima-se a parte atingida a requerer a aplicação da respectiva sanção, mas nada inibe a atuação ex officio do juiz” (ASSIS, Araken de. O Contempt Of Court no Direito Brasileiro. Revista de Processo, n° 111. São Paulo, Revista dos Tribunais, julho/setembro de 2003, pág. 18.)

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“O poder para punir é inerente a todas as Cortes; sua existência é essencial, para a preservação da ordem em procedimentos judiciais e para (...) a devida administração da justiça. No momento em que as Cortes dos Estados Unidos da América passaram a existir e foram investidas de jurisdição, sobre qualquer assunto, elas se tornaram detentoras de tal poder.”22

Sem dúvida, a abertura do sistema permite que o juiz aja da maneira que lhe

parecer mais correto não somente para atingir o fim último do processo (satisfazer aquele que

tem razão), mas também para permitir que ele se desenvolva corretamente. No que se refere à

discricionariedade do juiz no Direito norte-americano, Antonio Gidi bem frisou: “Em face da

extrema flexibilidade dos poderes discricionários do juiz, diversas medidas podem ser

tomadas visando à superação de dificuldades. O limite é apenas o da criatividade das partes e

do juiz.” 23

A figura do contempt of court representa, sem dúvida, uma norma geral em

branco autorizando sanções e punições por atos de desacato à força do juiz, se empregando a

todos aqueles que de alguma forma causam embaraço ou resistem o cumprimento das

decisões judiciais.24

De outra banda, importante registrar que os poderes do juiz se encontram

muito mais voltados à condução do processo do que à formação da prova. Aliás, nesse aspecto

a posição do magistrado passa a ser justamente oposta, uma vez que, dentro do adversarial

system (sistema adversarial), incumbe às partes a produção das provas, não lhes sendo lícito

influenciar, solicitar ou indicar a sua produção. A atuação do magistrado, na fase probatória,

tem que ser a mais neutra possível, cabendo lembrar o caso de certo juiz inglês que, há

décadas, teve anulado o julgamento que presidia por haver feito muitas perguntas às

testemunhas – comportamento reprovado como violador da garantia do fair trial.25

Hoje, no que tange às provas, a posição dos poderes do juiz na Inglaterra está

mais amadurecida e ampla, distanciando-se sensivelmente da empregada nos Estados Unidos.

É que, ao passo que naquele país se admite, (por conta da Civil Procedure Rules de 1999),

22 GOLDFARB, Robert L. The Contempt of court. New York: Columbia University Press. 1963, p. 23. 23 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 183. 24 Em verdade, a redação do parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil brasileiro foi claramente influenciada pela perspectiva de tal instituto, lamentando-se, todavia que, pela postura legislativa, o contempt of court brasileiro tenha ficado com suas forças limitadas à multa equivalente a até 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, o que, em dadas circunstâncias (onde a causa, por exemplo, tem valor de alçada ou inestimável), mostra-se inaceitável enquanto veículo inibitório e de punição a condutas indesejadas que maculam a imagem do Poder Judiciário. 25 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A revolução processual Inglesa. In: Temas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense. Nona série, 2007, p. 75.

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que o juiz emita instruções no sentido de especificar as questões para as quais deseja a prova,

a maneira como deve ser ela apresentada em juízo (rule 32.1.), ou solicite informações

adicionais a respeito da prova (rule 18.1.), nos Estados Unidos, não se concebe tal tipo de

intervenção.

Conforme bem assinala José Carlos Barbosa Moreira, aos advogados norte-

americanos, de forma alguma lhes agrada a participação ativa do magistrado no momento da

colheita das provas orais, porquanto tal situação ocasiona o “roubo” da cena em que os

advogados pretendem ser os protagonistas. Segundo refere, “essa idiossincrasia é capaz de

induzir numerosos magistrados a timbrar na autocontenção, notadamente nos Estados Unidos

onde os juízes são eleitos: aqueles que se candidatam à reeleição não se dispõem com

facilidade a alienar a simpatia da classe dos advogados, cuja influência eleitoral costuma ser

apreciável.”

A posição da questão probatória dentro do Common Law é absolutamente

particular e se revela muito interessante no que, nos Estados Unidos, se denomina the law of

evidences, instituto que em realidade é visto e estudado não como um elemento dentro da

conjuntura processual, mas, sim, um ramo do Direito, assim ensinado nas Law School.

Com efeito, the law of evidences, é o ramo do Direito que cuida das regras, das

características e, principalmente, das peculiaridades a respeito da produção, condução e

análise da prova dentro do processo, desde a sua investigação até mesmo a sua forma de

apresentação ao juiz ou ao júri. Dispõe-se, por exemplo, a analisar as provas aceitas em juízo;

o ônus da prova (burdem of proof); os direitos, deveres e impedimentos das testemunhas,

entre outros prismas ligados à prova.

A propósito, cabe dizer que nos Estados Unidos, principalmente, percebe-se

uma grande valorização da prova testemunhal, verificando-se, inclusive, a necessidade de

defesa de documentos escritos por meio de testemunhas -, o que, para nós brasileiros, até

certo ponto causa perplexidade. Por exemplo, não raramente, médicos são chamados em juízo

para defender atestados ou laudos que assinaram, sendo inquiridos a respeito dos fatos

relativos à realidade vivenciada pela parte em favor de quem fora dado o documento. As

perguntas são direcionadas pelos advogados, cabendo ao juiz meramente afastar questões

impertinentes ou despropositadas.

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Na análise da prova, o juiz tem o poder de descartar a denominada second

hand evidence, isto é, aquele relato que diz respeito ao que o depoente não vivenciou ou

assistiu, mas, sim, ao que ouviu dizer de terceiros que vivenciaram a situação. O second hand

evidence apresenta-se como um princípio muito valorizado e estudado como um divisor de

águas no que diz respeito à prova.

Importante notar em sede de avaliação de questões probatórias daquele

sistema, que as testemunhas podem ser instruídas pelos advogados, porquanto se tem

compreendido que elas têm um comprometimento com a parte em favor da qual vão depor.

Tal fato, no entanto, não quebra a higidez da estrutura jurídica tampouco a macula, visto que

se impõem, por outro lado, enormes sanções para o caso de flagrantes de inverdades ditas em

juízo, sanções estas que podem atingir, inclusive, os próprios advogados da causa e abalar

suas imagens perante o Judiciário e a opinião pública. Há de se observar dentro desta

conjuntura, a figura do que lá se denomina Estoppel, que consiste no impedimento de uma

testemunha ou de uma parte negar, por preclusão, o que havia afirmado. O direito a Estoppel

pode, todavia, ser disponível pela parte adversa.

Mostra-se correto afirmar que nos Estados Unidos a posição do juiz em relação

à prova é muito mais “fria” do que aquela que, hoje, se percebe na Inglaterra. Por

conseqüência da Civil Procedure Rules, cujo objetivo foi tornar o processo inglês mais célere,

menos dispendioso e efetivo (procurando-se, com isso, afastar a insatisfação social que estava

até então se observando), o Direito inglês passou a ostentar uma tônica próxima da Civil Law

e contrária à visão do sistema adversarial, por meio do qual o juiz, assim como ocorre nos

Estados Unidos, tem uma posição mais distante. De fato, em face da legislação inglesa, agora,

expressamente incumbe ao juiz uma postura mais reguladora e condutora dos rumos do

processo, inclusive, na fase probatória.

Com efeito, o Civil Procedure Rules inglês, expressamente arrola uma série de

medidas que bem demonstram atualmente, de forma exemplificativa, os poderes do juiz

naquele país. É a regra n. 3.1. que registra caber ao juiz: dilatar ou encurtar prazos; adiar ou

antecipar audiências; ordenar à parte ou ao seu representante que compareça ao tribunal;

realizar audiências ou colher prova por telefone ou outro meio de comunicação oral direta;

determinar que se processe em separado parte da matéria litigiosa; suspender total ou

parcialmente o curso do feito, quer em termos genéricos, quer até a data ou acontecimento

especificado; reunir processos; julgar duas ou mais causas na mesma ocasião; ordenar o

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julgamento separado por qualquer questão; estabelecer a ordem em que as questões serão

decididas; excluir a apreciação de alguma; rejeitar ou proferir julgamento após decisão de

questão preliminar, entre outras disposições, calhando notar que as referências legais não são

taxativas, conforme dá a entender o próprio Civil Procedure Rules. 26

5.1. Class action e os poderes do juiz

A análise da atuação de um juiz norte-americano diante de uma class action,

sem sombra de dúvida, se mostra absolutamente pertinente para bem de se ilustrar o poder

que o sistema lhe defere.

De início cabe dizer que uma class action significa uma ação que visa a

proteger interesses coletivos, servindo como um instrumento de regulação da sociedade,

permitindo o acesso à justiça àqueles que, ordinariamente, não demandariam. Com efeito, as

class actions, típicas ações coletivas, são muito utilizadas contra ilícitos de pequeno potencial

ofensivo-financeiro individual, vale dizer, para situações em que não se apresenta viável

economicamente, sob a modalidade individual, propor uma ação.

Têm as class actions função educativa/pedagógica, sendo importante

instrumento a coibir abusos de direitos e atos ilícitos, bem como forma patente de inibição a

condutas contrárias a direitos. Sua importância se dá pela sua própria existência dentro do

sistema, sendo, segundo a óptica norte-americana, de menor relevância a análise a respeito do

enriquecimento de quem vai receber a indenização deferida; o propósito da ação é que a

conduta ilícita não fique impune, que seja punida, admitindo-se, inclusive, que todo o valor da

condenação seja consumido pelas custas, despesas processuais e pelos honorários dos

advogados que trabalharam na ação(!).

Por outro lado, as class actions, muitas vezes, representam um importante

instrumento em favor do requerido, uma vez que, em certas ocasiões, economicamente, mais

vale para ele ser demandado coletivamente do que de forma individual. É, pois, modalidade

26 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A revolução processual Inglesa. In: Temas de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense. Nona série, 2007, p. 75.

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de ação fulcrada também no conceito de economia processual, não só para o autor, mas

também para o réu.

Ao receber uma class action, ao juiz é dado analisar os requisitos de seu

cabimento e, se for o caso, certificá-la como tal. São requisitos para o recebimento de uma

ação com tal natureza: a) dizer respeito a um grupo numeroso, de forma que se apresente

impraticável a propositura de ação por todos os litigantes; b) haver identidade de questões de

direito e de fato entre os integrantes do grupo; c) haver identidade de pedidos ou de defesas

entre os integrantes do grupo; d) existir uma boa representação do grupo em juízo.

É possível que a ação seja proposta diretamente como class action ou de forma

individual, transformando-se depois em class action. É que, ao receber uma ação individual,

pode o juiz “recomendar” a sua transformação em coletiva, situação que, com efeito, depende

da concordância da parte autora, porque isso influenciará toda tramitação futura do processo,

bem como os custos daí decorrentes. Recebida a demanda como coletiva, várias despesas

ordinárias e extraordinárias passam a se fazer presentes, tais como a necessidade de notificar

todos os integrantes do grupo a respeito da existência da ação para que eles dela tomem

ciência e possam realizar o direito de auto-exclusão. Só notificar-se um universo de, por

exemplo, 100 mil pessoas tem um custo bastante alto, alterando o prisma da ação para o

advogado que, como se disse, é encarregado de suportar todas as custas.

Importante gizar que o juiz sempre nomeará um representante para o grupo

que, segundo a sua visão, seja capaz de verdadeiramente figurar como “defensor” dos anseios

daquela coletividade. Tem o juiz, igualmente o poder de modificar o representante do grupo a

todo e qualquer momento quando evidenciar que este não está agindo de acordo com os

interesses da massa. Esse representante será remunerado, em valor a ser fixado pelo juiz,

arcando com tal ônus o advogado que patrocinar a causa.

Por certo, uma class action se apresenta como uma aposta para o advogado e,

como tal, está sujeita a resultados favoráveis ou não. Os custos são altos e haverá o

procurador de ter capacidade de suportá-los ao longo de toda lide. Antonio Gidi fez

interessante observação que se apresenta ilustrativa em relação à situação ora referida:

“As despesas com a discovery em uma ação complexa podem chegar a vários milhões de dólares. Essas despesas são custeadas pelo próprio advogado, que

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somente será ressarcido em caso de procedência do pedido. Do ponto de vista do interesse do advogado é melhor obter um acordo o mais rapidamente possível, logo no início da disputa, antes de investir uma grande quantidade de tempo e dinheiro com a preparação do processo. Esse acordo precipitado pode até não ser a melhor opção para o grupo, mas pode render ao advogado ‘gordos’ honorários. Litigar a causa por mais tempo é uma estratégia comumente utilizada para exercer a pressão sobre a parte contrária, aumentar o poder de barganha e obter um acordo mais favorável para o grupo, mas pode também significar riscos desnecessários e despesas adicionais para o advogado e, ao fim, resultar-lhe mesmo numa compensação líquida inferior”. 27

De se notar, a propósito, que entre os poderes do juiz nesse tipo de ação se

destaca a possibilidade de substituir o próprio advogado ou a banca de advocacia

representante do grupo, acaso verifique, por exemplo, que não tem capacidade técnica ou

higidez financeira de custear o processo, o qual pode despender alguns milhões de dólares.

Não é incomum os juízes somente aceitarem advogados em ações coletivas baseando-se na

sua comprovação de solidez patrimonial e financeira. Tal fato, por certo, mostra-se

absolutamente estranho aos estudiosos da Civil Law que, sem dúvida, se sentiriam violados no

seu exercício profissional, acaso fossem afastados pelo juiz da causa em função, por exemplo,

de sua postura técnica ou da sua escassa ou insuficiente riqueza.

Em vez de substituir o advogado, pode o juiz, verificando a falta de vigorosa

tutela por parte daquele, negar ou revogar a class action. A falha na postura ética,

competência ou capacidade financeira de suportar as custas pode resultar na retirada da

certificação da ação como coletiva, passando a ter tramitação como ação meramente

individual. É possível que o juiz, diante da deficiência do causídico, descaracterize uma ação

como coletiva na própria sentença de mérito ou mesmo após ela.

Essa situação de retirada da certificação da ação, quando ocorre,

verdadeiramente, afigura-se catastrófica para o advogado do autor (que suportou as custas até

então) e para o réu que, ao longo da ação, investiu verdadeira fortuna na sua defesa e com

contratação de advogados para uma demanda que de coletiva, ao fim e ao cabo, transformou-

se em individual. Só os honorários pagos pelo réu aos seus advogados pode ter custado

algumas centenas de dólares a mais do que o valor a que foi condenado pagar ao demandante

individual, o que, por si só, mostra a desproporcionalidade da situação e a armadilha em que

pode se transformar tal demanda.

27 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 121.

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Por essas e por outras razões é que, em várias ocasiões, o réu apresenta

impugnações, na prática, ao representante do grupo e, às vezes, à higidez patrimonial dos

advogados adversos, a fim de forçar uma manifestação, desde logo, do juiz a respeito da

retirada de certificação, evitando que essa somente ocorra no final da lide, após ter sido

despendida verdadeira fortuna. Nada, todavia, garante que, sendo rejeitadas as alegações do

requerido nestes aspectos, ao fim, não vá o juiz rever sua posição.

É em razão dessas circunstâncias que para o réu, em dados casos, mais vale

fazer acordo do que se sujeitar aos riscos e aos custos do processo.

Em resumo, é correta a afirmação segundo a qual, numa class actions, o juiz

tem poderes ainda maiores do que se verifica normalmente, quando a ação passa a ser de

interesse coletivo. Analisando o procedimento desse tipo de ação, pode-se, resumidamente,

dizer que o juiz tem o poder de: a) redefinir o grupo (class redefinition), restringindo-o aos

membros adequadamente representados pelo candidato a representante; b) notificar o grupo e

convidar à intervenção outros membros para que substituam ou auxiliem o representante,

aperfeiçoando o requisito, ou para que informem o juízo se consideram o representante

adequado; c) convidar outros advogados para substituir ou auxiliar o advogado do grupo; d)

dividir o grupo em subgrupos; e) negar a certificação coletiva, permitindo o prosseguimento

na forma individual; f) garantir a execução da coisa julgada erga omnes aos beneficiados da

class action que foram notificados e que não exerceram o direito de auto-exclusão.

Evidentemente esses poderes dos juízes, na prática, podem ser utilizados de

forma imprópria, abusiva ou indesejada, como chegam a apontar alguns doutrinadores28,

todavia isso faz parte do sistema. Não do Common Law, mas, sim, de qualquer sistema que se

disponha a dar poder a alguém investido de legitimidade para julgar os demais e,

principalmente, de poder fazer valer a sua decisão. Claro que, quanto mais poder se dá,

maiores podem ser os efeitos nefastos das decisões “incorretas” ou “tendenciosas”. Isso, no

entanto, ao que nos parece, encontra-se bem dimensionado dentro do Common Law.

Seja como for, bem ou mal, o fato é que as class actions funcionam dentro do

sistema norte-americano atingindo, verdadeiramente, o propósito a que se propõem. Por meio

delas, a sociedade consegue “controlar” condutas sociais tidas por contrárias ao direito e, mais

do que isso, os juízes passam, como representantes do povo, a ostentar função peculiar no

28

GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais.

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controle da técnica e da qualidade dos profissionais que na ação atuam, garantindo uma boa

defesa dos interesses coletivos.

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