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ECONOMIA GLOBAL, MERCADORIZAÇÃO E INTERESSES COLECTIVOS CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC 2008 - 2009 SESSÃO 11 OS RICOS, EM TEMPO DE POBRES THE ONE PERCENT JAMAILA JONHSON NOTAS DE LEITURA Nicole Buffett neta de Warren Buffett

OS RICOS, EM TEMPO DE POBRES THE ONE PERCENT … · a matriz da pressão que ainda se faz hoje para a redução dos impostos sobre os rendimentos mais elevados. Milton Friedman critica

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

SESSÃO 11

OS RICOS, EM TEMPODE POBRES

THE ONE PERCENT

JAMAILA JONHSON

NOTAS DE LEITURA

Nicole Buffett

neta de Warren Buffett

ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/

SESSÃO 11

QUE MODELO, QUE POLÍTICAS,

QUE REGULAÇÃO PARA SAIR DA CRISE

9 DE JUNHO DE 2009

9 DE JUNHO DE 2009

AUDITÓRIO DA FACULDADE DE ECONOMIA

DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FILME/DOCUMENTÁRIO

OS RICOS, EM TEMPO DE POBRES (2006)

DE JAMIE JOHNSON

DEBATE COM

JÊROME CREEL

JAMES GALBRAITH

STUART HOLLAND

JOÃO SOUSA ANDRADE

ÍNDICE

I.

SOBRE O FILME

1. SINOPSE THE ONE PERCENT

2. THE ONE PERCENT

3. ENTREVISTA A JAMIE JOHNSON SOBRE THE ONE PERCENT

4. UMA DIVISÃO CRESCENTE: ABRINDO A LINHA DE RUPTURA

DO CAPITALISMO

5. JAMIE JOHNSON SOBRE THE ONE PERCENT

6. O RICO ESQUECIDO

II.

O PRÓXIMO CICLO:

A RAZÃO DE SER DO TÍTULO

ECONOMIA GLOBAL E OS MUROS DA REPARTIÇÃO

© The One Percent, 2006.

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I.

SOBRE O FILME

1. SINOPSE THE ONE PERCENT

Em 2003, com o filme Born Rich, Jamie Johnson traçou o perfil de vários jovens herdeiros, que falaram abertamente sobre um assunto tabu que foram ensinados a evitar: o dinheiro das suas famílias.

No seu novo filme, The One Percent, Johnson expõe este tabu a uma análise mais profunda, questionando a eficácia de um sistema que permite que exista um enorme fosso entre os americanos mais ricos e o resto da população. Como refere Johnson, um por cento dos americanos possui, aproximadamente, 40 por cento da riqueza do país, partilhando um património líquido que é superior ao património líquido dos restantes 90 por cento em conjunto. Embora os Estados Unidos tenha assistido, nos últimos 26 anos, ao maior boom na história das finanças, os maiores beneficiados foram aqueles que já estavam no topo, onde ainda permanecem.

Preocupado com o enorme fosso existente entre os ricos e o resto da população, Johnson identifica vários ícones do capitalismo, pressionando-os no sentido de expressarem as suas convicções e opiniões.

A ideologia neoliberal pode ser sintetizada pela ideia do trickle-down economics que vem dos tempos de Reagan e de Thatcher e tem também a chancela de Milton Friedman. Esta consiste no seguinte: quando se quer ajudar os pobres, então deve ajudar-se os ricos, pois estes com o transbordar

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da riqueza criada, gota a gota, ajudarão quem precisa e melhor que ninguém. Dito de outra forma, cuide o Governo do topo da pirâmide social onde estão as grandes empresas e os muito ricos, reduza-lhes os impostos, e espere que os seus investimentos derivados desta ajuda acabem por “pingar”, gota a gota, para quem está por baixo, os necessitados, os desempregados. É esta a matriz da pressão que ainda se faz hoje para a redução dos impostos sobre os rendimentos mais elevados.

Milton Friedman critica Johnson, depois deste sugerir o aumento dos impostos para os mais ricos, apelidando as suas ideias de socialistas e, com isto, termina abruptamente a entrevista que concedia ao realizador.

Outros são mais circunspectos, incluindo Paul Orfalea, que vemos dar uma esmola a um pedinte à porta da sua loja Kinko, e Karl Muth, um herdeiro de um banco de investimento, que vive com um símbolo tangível do ressentimento em relação à vizinhança depressiva de Chicago: um buraco de bala na janela do seu apartamento, sem dúvida disparada por um vizinho menos influente.

Outras personagens intrigantes do filme incluem Adnan Khashoggi, o bilionário que esteve no centro do escândalo dos anos 80, que envolveu o Irão e os Contras da Nicarágua; Roy Martin, um magnata da madeira de Louisiana que usa a sua bíblia como guia para a vida e para os negócios; Chuck Collins, um bisneto de Oscar Meyer, que deu a sua herança por motivos de ordem moral; Bill Gates sénior, pai consciencioso do homem mais rico do mundo; Cody Franchetti, um barão italiano e estadista socialista; e Alfie e Pepe Fanjul, empresários que enriqueceram com as plantações de cana-de-açúcar em Everglades, na Florida, vendendo o açúcar a um elevado preço, garantido pelo Governo.

Disponível em http://www.hbo.com/docs/programs/theonepercent/synopsis.html

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2. THE ONE PERCENT

“Nenhuma grande sociedade sobreviveu a uma tão grande disparidade na distribuição da riqueza; quem sabe se a nossa sobreviverá?”

Nancy Schafer (Direcção do Festival Tribecca)

Um filme extremamente simples e pessoal, The One Percent é um documentário que transcende os seus limites para se tornar cada vez mais universal e político. Continuando em termos de conteúdo e de estilo o seu primeiro doc., Born Rich, o realizador Jamie Johnson – herdeiro da fortuna Johnson & Johnson – vai muito mais além desta vez com este documentário. Parte de uma reflexão sobre os seus próprios sentimentos de culpa devido à sua condição abastada – os filmes contêm diversas entrevistas desde Steve Forbes a Ralph Nader até às vítimas do ciclone Katrina e a Milton Friedman, o economista que avançou com a ideia do trickle-down economics caracteristicamente associado à era Reagan nos Estados Unidos – para apresentar uma poderosa denúncia da estratificação social entre os que pertencem ao 1 por cento da população mais rica que detém 40 por cento da riqueza e a restante população norte-americana.

O filme começa com o testemunho de um amigo informado mas inconsciente da sua própria riqueza que comprara recentemente um apartamento grande e luxuoso em frente a um parque de estacionamento adjacente ao bairro social Cabrini, numa zona degrada de Chicago.

Johnson percorre as ruas com a sua câmara. Através de entrevistas a moradores de Cabrini Green, ficamos a saber como Chicago tem contribuído para a “gentrificação” (processo pelo qual as características socioeconómicas de moradores de um bairro se modificam em benefício de estratos sociais de maior rendimento) deste bairro – pura e simplesmente através do encerramento de escolas, de hospitais e dos serviços públicos.

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Recorrendo ao medo do crime e do narcotráfico como desculpa, os estratos sociais de maior rendimento têm pressionado os gabinetes de urbanização e planeamento para “limparem” esses bairros antigos da cidade de Chicago. Mas as entrevistas de Johnson mostram-nos um bairro onde várias gerações de famílias foram criadas e se estabeleceram – sem esperança de mobilidade de ascensão social mas ainda assim em harmonia uns com os outros – e onde os traficantes são apenas um por cento da população.

Mas são os “um por cento” mais ricos do país que têm o poder para determinar a afectação do espaço público. E este pequeno mas chocante facto – o encerramento deliberado de escolas para isolar e no limite abandonar os pobres – parece ser apenas uma pequena metáfora para aquilo que o governo federal faz a uma escala muito maior. Johnson exibe imagens desoladoras de milhões de pessoas abandonadas depois do furacão Katrina, recorrendo a técnicas de animação ao estilo de Michael Moore, para mostrar como e porque é que o país mudou desde os tempos do New Deal. Como é que processos governamentais de redistribuição da riqueza, que começaram logo com a Reaganomics na década de 80, mudaram drasticamente o caminho que os Estados Unidos tinham trilhado. Os filmes de Johnson, devido ao seu acesso privilegiado aos mais ricos dos super-ricos, mostram exactamente como esta camada da população consegue manter o seu domínio económico, a sua riqueza.

Mas Johnson também revela o outro lado do espectro. Numa viagem de táxi, Johnson conversa com um taxista informado e apanhado pelo funcionamento inerentemente injusto da indústria do açúcar na Florida. Quando Johnson admite que pertence a uma das famílias mais ricas do mundo, o taxista não se importa, não faz caso. Então sorri e diz: “o senhor pode achar isto engraçado, e eu também... com a diferença de que eu não tenho dinheiro”.

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E no filme The One Percent, mostra-se uma tendência que se está a espalhar por todo o mundo – chamemos-lhe o lado imoral da globalização, os Estados Unidos a exportar a nossa ideia do tricke-down economics. O estrato social dos cada vez mais ricos tem as suas mãos nos bolsos dos governos democráticos em todo o lado e meios para pressionar comissões e sub-comissões para redistribuírem terras, riqueza e poder a seu favor.

Neste campo, isto não é certamente nada de novo. Mas isto é imoral, mas isto está a acontecer no nosso tempo. E isto sensibiliza-me.

Uma das razões pelas quais o filme The One Percent me sensibilizou mais é porque – ao contrário de tantos outros filmes de crítica inflamada dos últimos seis anos – este realmente oferece-nos uma ideia. Uma via de saída, um modelo, um roteiro de como salvar este país.

No final do filme, Johnson conversa com Kevin Philips, autor de Wealth and Democracy: A political history of the American Rich, um verdadeiro economista humanista que nos lembra a Sociedade Progressista que se implantou depois da crise, depois da Grande Depressão.

Em tempo de grande pobreza, o nosso país não se levantou em rebelião. Nós não virámos nem a comunistas nem a socialistas, como muitos receavam. Em vez disso, por um breve período, no tempo de Roosevelt, as pessoas conseguiram ajudar-se umas às outras. O governo progressista começou a estabelecer sistemas de redistribuição da riqueza, através dos serviços sociais destinados a ajudar aqueles que deles precisavam. Um governo progressista – ou seja, um “grande” governo concebido para ajudar os 99 por cento do país que colectivamente partilhava apenas 40 por cento da riqueza.

Se o nosso país está a crescer na base deste regime que é organizado e controlado para favorecer os um por cento mais ricos, a nossa sociedade

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vai ter que despertar e tornar-se de novo uma sociedade progressista, todos nós. E todos em conjunto.

Pessoalmente, acho que vai ficar ainda muito pior antes que venha a tornar-se melhor, muito mais pessoas terão que sofrer antes de um número suficiente de pessoas se manifestar fortemente para mudar as coisas. Mas é bom ver um filme a lembrar-nos o New Deal e a era progressista como um modelo de sociedade em que nos poderemos, de novo, vir a transformar.

SubVerse, Film Reviews - “The One Percent” and “From Dust”, disponível emww.subverse.org/2006/05/08/film-reviews-the-one-percent-and-from-dust/.

3. ENTREVISTA A JAMIE JOHNSON SOBRE THE ONE PERCENT

Para a maioria dos estratos sociais de maior rendimento, perguntas sobre a sua riqueza geram silêncios e desconfiança. O mesmo não se passa com Jamie Johnson, herdeiro da fortuna da farmacêutica Johnson & Johnson. Para este, o realizador do documentário nomeado para um Emmy, o centro do seu trabalho é justamente a riqueza.

No seu primeiro documentário, Born Rich, ele revelou como dez filhos de famílias como os Trumps e os Newhouses gastam o seu tempo e as suas fortunas.

Desta vez, Jamie Johnson aponta a câmara para a sua própria família, no filme The One Percent, e mostra imagens raras do mundo escandalosamente secreto dos um por cento mais ricos dos Estados Unidos, um pequeno segmento da população que detém cerca de 40 por cento da riqueza do país. Através de várias entrevistas com figuras públicas como Bill Gates pai, o ex-Secretário de Estado do Trabalho Robert Reich e o economista Milton Friedman, Johnson explora a disparidade da distribuição da riqueza nos Estados Unidos.

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Johnson falou com a Forbes sobre a realização deste seu filme, a sua experiência de vida entre os super-ricos e porque é que o dinheiro é um tema sobre o qual ele não vai permanecer calado.

Forbes: O que é que o motivou para fazer este filme?

Jamie Johnson: Estudei bastante a desigualdade nos Estados Unidos e a crescente disparidade de rendimentos. E olhando à minha volta, via a riqueza da minha própria família a crescer e via também muitas das famílias ricas do nosso círculo pessoal a ficarem cada vez mais ricas, com muito mais capital e a gastarem mais dinheiro. A partir daqui, pensei: aqui está um tema interessante para explorar num filme.

P. O Jamie consegiu que o seu próprio pai, bem como outras pessoas espantosamente ricas, falassem consigo. Como é que conseguiu que estas pessoas se abrissem sobre um tema tão privado?

R. Não foi fácil. Foi necessária muita paciência, houve muita indecisão. Penso que há sempre qualquer coisa que leva a que muitas vezes as pessoas queiram falar das suas experiências pessoais, mas quando é em relação à riqueza, elas são, evidentemente, muito reservadas. Elas ficam muito preocupadas com a forma como as pessoas vão reagir ao que elas dizem. Por isso, levou tempo escrever cartas para conseguir ser recebido por algumas pessoas, mas eventualmente por fim reuni uma interessante lista de nomes.

Um dos momentos mais interessantes deu-se quando eu estava a seleccionar as pessoas para o filme e surgiu quando tentei falar com Adnan Khashoggi, um saudita negociante de armas que tinha sido o homem mais rico do mundo. Fiz inúmeros contactos com o seu antigo assistente ao longo de um ano antes sequer de o conseguir entrevistar e, finalmente, o seu assistente disse-me: “o chefe – é assim que chamam a Adnan – está em Paris e pode recebê-lo amanhã à tarde”.

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P. Então meteu-se no avião?

R. Sim, tive de me meter num avião e ir a Paris.

P. Suponho que vai ter críticos que vão chamar a isto a “má consciência, a culpa, de um jovem rico”? Como responde?

R. Que tanto economistas democratas como conservadores concordam que existe um fosso crescente na repartição da riqueza e que isto é um problema. Claro, eles têm diferentes soluções para resolver este problema. Penso que é importante pôr este assunto na agenda e discuti-lo publicamente; é importante fazer com que os ricos pensem nisso e que pensem em como resolver esta situação. Estas são as pessoas mais influentes na nossa sociedade e, portanto, devem trabalhar para resolver este problema e para chegar a uma via de solução. Por isto, não; não vejo isto como um problema de má consciência de menino rico, vejo isto como um problema legítimo e muitas pessoas na minha posição não estão dispostas a reconhecê-lo tão claramente como eu acho que deveriam e, portanto, eu estou a tentar fazer com que o façam.

P. Então, qual é a sua solução? O que propõe que se faça a respeito desta disparidade crescente?

R. Isso é uma boa questão. Uma das coisas interessantes para mim que aconteceram ao longo desta viagem, que foi fazer o filme, foi eu ter pensado que os académicos e os especialistas sobre o assunto que foram entrevistados teriam respostas concretas e que ofereceriam formas concretas de resolver o problema. Mas eles não as tinham. É um tema extremamente difícil.

As respostas mais interessantes? Algumas pessoas diziam, “Ouve, precisamos de tributar os mais ricos mais do que são. Eles estão a ficar cada vez mais ricos e a distanciarem-se cada vez mais da restante sociedade,

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isolando-se e criando esta tensão entre as classes sociais”. Ou ainda: “precisamos de oferecer melhores serviços sociais. Precisamos de padrões mais elevados na educação e nos cuidados de saúde. É isto que ajuda a sociedade e a classe média a crescer e a melhorar os seus níveis de vida; é disso que mais precisamos neste país”.

P. Jasmie Johnson incluiu no filme pessoas como Milton Friedman, que alegam não haver nada de errado com essa acumulação de riqueza, uma vez que é um produto do capitalismo. Como é que responde a isto?

R. Curiosamente, Milton Friedman disse que o crescente fosso na repartição da riqueza é mau para a sociedade.

P. Claro, a diferença em si, mas talvez não a acumulação de riqueza.

R. Ele tem uma solução diferente para o problema. Ele acredita que o que deve ser feito é reduzir os impostos, desregular a economia e permitir que famílias como a minha possam acumular tanta riqueza quanta lhes for possível de modo a que esta possa cair gota a gota, naturalmente, para as mãos da classe média e da classe mais desfavorecida.

P. Quem é a audiência que pretende alcançar com este seu filme? E que conclusões espera que tirem dele?

R. Acho que este filme é verdadeiramente para todos. Acho que as pessoas estão profundamente fascinadas pela riqueza e este filme abre uma janela para um mundo que elas normalmente nunca chegam a ver. Espero também que as pessoas ricas vejam este filme e pensem: “talvez seja altura de fazer alguns sacrifícios, talvez eu precise de assumir mais responsabilidades, talvez eu precise de pensar sobre a desigualdade nos Estados Unidos em vez de apenas me preocupar em aumentar a dimensão da minha fortuna”.

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P. E o que aprendeu ao fazer este filme? O que é que leva dele?

R. Aprendi que não discutir e não lidar com o assunto não resolve nada. E se atentarmos naquilo que aconteceu neste país nos últimos 25 a 30 anos, em que tivemos políticas económicas conservadoras com relativamente baixas taxas de imposição fiscal sobre os ricos, veja o que aconteceu: a disparidade na repartição da riqueza tem sido cada vez maior. O que estamos agora a fazer não está a funcionar, por isso acho que devemos reavaliar o problema e apresentar soluções reais que possam fazer a diferença.

Lacey Rose, “Q&A: Jamie Johnson on ‘The One Percent’”, Forbes, 20 de Fevereiro de 2008,

disponível em www.forbes.com/2008/02/20/wealth-jamie-johnson-biz-cx_lr_0219johnson1.html.

4. UMA DIVISÃO CRESCENTE: ABRINDO A LINHA DE RUPTURA

DO CAPITALISMO

Jamie Johnson, um herdeiro da fortuna da indústria farmacêutica baseou a sua carreira na riqueza da sua família, e até agora os resultados têm sido tudo menos maus. Em Born Rich, jovens abastados falam – com perspicácia, ingenuamente, ou de modo detestável – sobre as alegrias e as agonias das suas circunstâncias de vida. O filme deu a Jamie Johnson duas [merecidas] nomeações para os Emmys, e [ele] merecia-as. Para além disso, ganhou uma outra oportunidade de tentar a sua sorte novamente, desta vez com The One Percent, outro documentário que visa analisar as disparidades crescentes de riqueza que dividem o espírito americano.

Para atingir o seu objectivo, Jamie Johnson moveu-se entre as salas estilo Regência e os passeios gastos, passando pelos maiores beneficiários do capitalismo como pelas suas vítimas mais pobres. Johnson presta mais atenção ao primeiro meio, o que é revelador do seu à-vontade entre os da

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sua classe, ainda que o filme nos tente convencer da sua própria desilusão com este mesmo meio.

Jamie Johnson é brilhante quando se entusiasma. Embora fale seriamente sobre as desigualdades económicas com personalidades como Ralph Nader e o ex-Secretário de Estado do Trabalho Robert Reich, ele está no seu melhor quando consegue extrair expressões reveladoras de ignorância e de auto-satisfação dos mais ricos e poderosos.

Johnson fala, por exemplo, com Paul Orfalea, fundador da Kinko, sobre porque é que ele gostaria de ser ainda mais rico: “bem, um dia eu gostaria de ir à Lua e olhar para o planeta Terra e dizer: Oh, aquilo é parte do meu portfólio, faz parte da minha carteira de títulos”. O estilo de Michael Moore é visível também aqui. Eis como Orfalea fala dos seus actos de caridade pontuais: “eu não costumo dar dinheiro aos “sem abrigo”. Salvo no caso de essa pessoa estar a tocar música ou a tentar melhorar-se a si mesma, vendendo lápis ou fazendo alguma outra coisa; eu geralmente não lhes dou nada”.

Existe a possibilidade desses comentários terem sido tomados fora do seu contexto. Orfalea até pode estar a financiar seis orfanatos no Ruanda, mas qualquer que seja a verdade da sua filantropia, as suas palavras parecem confirmar que a ideia de que acarretam é para esquecer: os mais ricos são indiferentes para com os mais pobres e também imunes a qualquer julgamento.

No filme anterior de Johnson ficou claro que muitas vezes os mais ricos se metem em sarilhos e põem o pé na poça quando falam demais. Num momento particularmente surpreendente fica a saber-se que Nicole Buffett, neta de Warren E. Buffett, que trabalha numa agência de apoio a famílias abastadas em San Francisco, foi deserdada pelo seu avô pelo simples facto de participar neste filme. Ela recebeu uma carta em que o avô lhe explica que ele já não a considera como parte da família.

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O filme de Jamie Johnson perde com a sua insistência em tentar que o seu pai, James Loring Johnson, fale sobre a sua riqueza. Este não tem interesse nisso, e a insistência de Jamie Johnson acaba por parecer “perseguição” justificada pela sua condição abastada. Quando o gestor financeiro da família, Brian McNally, o afasta e lhe chama “arrogante menino rico a querer passar por pobre”, não nos incomoda, compreendemos bem e somos solidários com o realizador.

Alguma imaturidade volta a surgir mais à frente, principalmente quando Jamie Johnson pensa que nos está a dizer qualquer coisa que nós ainda não sabemos. O filme parte do pressuposto implícito que o espectador não tem a noção de que uma pequena percentagem da população americana – os um por cento – controla a maior parte da riqueza e que as pessoas pobres sofrem por causa disso. A justaposição das imagens da vida de gente rica e de gente pobre (ele visita clubes privados e Palm Beach, entrevista pessoas incluídas em projectos no South Side de Chicago e filma cenas da situação em Nova Orleães depois do Katrina) são tão abruptas e chocantes que o filme quase parece estar a dizer-nos: “Oh, My God! Há uma minoria que joga ‘croquet’ e há depois uma maioria que não tem nada e que não consegue mais do que conduzir táxis”.

Mas o filme The One Percent gera interesse, apesar de muitas ideias simplistas, ao mostrar, por exemplo, como os homens fortes do açúcar neste país adquiriram tamanha influência política a ponto de obter milhões e milhões em subsídios governamentais à medida que espezinham Everglades e exploram intensamente os trabalhadores. Jamie Johnson é um jovem abastado que não está a tentar lucrar com um produto. Na verdade, o filme mostra que ele se preocupa, ainda que ingenuamente, com uma assunto realmente importante.

Ginia Bellafante, “A Gaping Divide: Straddling Capitalism’s Fault Line”, New York Times,

21 de Fevereiro de 2008, disponível em http://www.nytimes.com/2008/02/21/arts/television/21bell.html.

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5. JAMIE JOHNSON SOBRE THE ONE PERCENT

Pode haver receios generalizados de uma iminente recessão nas mentes da maioria dos americanos, mas não existem entre os cidadãos mais ricos do país. Ao contrário do que se costuma pensar, muitos dos americanos mais ricos não estão mesmo nada preocupados com o enfraquecimento da economia, até o vêem com bons olhos.

Para eles, a crise no mercado da habitação, a recente descida do preço das acções e em geral a perda de poder de compra de milhões de americanos resultaram na redução do número de aristocratas ou, por outras palavras, têm diminuído a procura dos mais altos níveis de vida de luxo. Ironicamente, para os mega-ricos, a recessão traz consigo a capacidade de viver bem a um custo menor e com menos transtornos.

Durante os últimos oito anos, registei em documentários a vida dos ricos e o papel que eles desempenham na economia. Como um membro da família que fundou a empresa farmacêutica Johnson & Johnson, tenho conseguido um acesso fácil às famílias Whitneys, Vanderbilts, Forbeses, Gates, Buffetts e Bloombergs. Tenho visto em primeira mão como essas famílias geram as suas empresas e reagem a mudanças repentinas nos mercados e à evolução das condições económicas. E agora, com a ameaça de uma recessão no horizonte, ouço muitos deles a dizerem: “Finalmente, já não era sem tempo…”

Paul Orfalea, por exemplo, que é o fundador dos centros de fotocópias Kinkos e um dos entrevistados no meu filme The One Percent, falava-me de vez em quando num jacto pessoal a que tinha dado o nome de Challenger. De acordo com Paul, este era o avião ideal para ele, mas nunca chegou a utilizá-lo porque de todas as vezes que tentava viajar, era informado que o avião já estava fretado por alguém. A intenção original do Paul era disponibilizar o avião para voos charter de vez em quando para ajudar a cobrir as despesas

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anuais de manutenção, mas ele logo percebeu que a procura era tanta e as reservas feitas com tanta antecedência que ele [próprio] raramente tinha possibilidade de voar. Quando lhe perguntei qual o motivo subjacente a tanta procura, ele só apontou um culpado – a existência dos ciclos na economia.

Um outro indivíduo que entrevistei recentemente culpava aquilo a que chamou simplesmente de “Centa-milionários” pela quebra da exclusividade do seu mundo elitista. Para ele, as estrelas repentinas do mercado bolsista em expansão há sete anos não só superlotavam o espaço aéreo com aviões privados como também impulsionaram o preço dos bens imobiliários de alta gama. Comprar uma terceira casa em Hamptons tornou-se uma experiência onerosa para ele. Na opinião dele, houve demasiada procura de um momento para o outro e, embora ele pudesse facilmente arcar com os preços elevados praticados, considerava que os valores [tão] elevados eram ofensivos. Mas assegurou-me no final da nossa conversa que, logo que visse a recessão a bater à porta das pessoas, seria o primeiro a comprar.

Nos meus filmes sobre os imensamente ricos, tenho visto inúmeros casos de riqueza desmesurada que ilustram bem o escalonamento das desigualdades que flagelam o nosso país. Muitas vezes dei por mim a pensar que, depois de gravar cenas de jovens adolescentes ricos a dizerem aos seus colegas de escola menos afortunados: “Vai-te lixar, eu sou de Nova Iorque e poderia facilmente comprar a tua família, desaparece”, a situação não poderia vir a ser pior do que isto. Eu pensava que a habitual distinção entre ”as duas Américas” não era assim tão forte como se pensa.

Mas nos últimos tempos, ao ver os super-ricos a escaparem à recessão apercebi-me que estava errado ao supor que os indicadores de desigualdade não se tornariam ainda mais visíveis. Parece que o oposto é que é verdade: sob a ameaça de “apesar dos tempos difíceis”, os mega-ricos não sentem uma maior responsabilidade para reflectirem sobre os problemas em torno do crescente fosso da disparidade da repartição da riqueza; eles estão, na

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verdade, a tentar aumentar o volume das suas carteiras e a insularizar ainda mais os seus estilos de vida.

Eu esperava que a expectativa de uma situação económica bastante desfavorável levaria a que os ultra-ricos deixassem de pensar apenas em si mesmos e no aumento da sua própria fortuna. Infelizmente, porém, muitos deles não se preocupam nada com isso e, sem essa preocupação, o desequilíbrio na repartição só irá piorar com a recessão.

Jamie Johnson, The One Percent, 19 de Fevereiro de 2008, disponível em http://www.

huffingtonpost.com/jamie-johnson/the-one-percent_b_87459.html.

6. O RICO ESQUECIDO

O debate sobre o orçamento no Senado começou esta semana com um pano de fundo de guerra e de recessão, de crescente desemprego, de aumento das execuções das hipotecas, de disparo dos preços dos cuidados de saúde e da diminuição da cobertura de seguros – para citar apenas alguns dos grandes problemas nacionais. Mas para o Senador Blanche Lincoln, Democrata eleito pelo Arcansas, e para o Senador Jon Kyl, Republicano eleito pelo Arizona, a questão mais urgente é clara: as famílias mais ricas dos Estados Unidos precisam de ajuda. Agora.

Os dois senadores planeiam propor uma emenda para reduzir fortemente os impostos sucessórios do agregado de pessoas que constituem o um por cento das pessoas mais ricas dos Estados Unidos que ainda estão submetidas a estes impostos.

Os imaginários milionários seus vizinhos – os canalizadores, os mestres-de-obras, contabilistas, que acumulam uma riqueza substancial com o seu trabalho difícil e a sua vida modesta – não são os pretensos beneficiários com

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estes cortes nos impostos. O orçamento de Obama já cuida deles, porque mantém a lei actualmente em vigor que impõe que o imposto sucessório só se aplique a casais com valores patrimoniais superiores a 7 milhões de dólares ou a indivíduos com património de valor superior a 3,5 milhões de dólares. Isto significa que 99,8 por cento dos patrimónios nunca pagarão, mas mesmo nunca, um cêntimo sequer de imposto sucessório.

Os herdeiros dos restantes 0,2 por cento dos patrimónios são as pessoas por quem os senadores Lincoln e Kyl se preocupam tanto. A sua emenda aumentaria para 10 milhões de dólares o nível a partir do qual o imposto sobre heranças poderia ser aplicado. Por outro lado, ainda baixaria a taxa de imposição fiscal sobre heranças de 45 por cento para 35 por cento.

Face a todo o trabalho sério que enfrenta o Congresso, trata-se de um brutal desperdício de tempo ter que andar a rebater os falsos argumentos e retorcidas premissas de que partem os ardentes defensores dos cortes sobre os impostos sucessórios. Os colegas destes dois senadores no Senado devem rapidamente resolver esta questão e passar para as matérias urgentes.

Além da criação de uma falsa impressão de que o imposto sucessório pode ser aplicado a qualquer um – pelo facto de erradamente o chamarem ou equipararem a “um imposto sobre a morte” – os proponentes habitualmente denunciam a taxa de imposto superior a 45 por cento como confiscatória. Na verdade, o imposto sucessório aplica-se só à parte da herança que excede a isenção. Por conseguinte, mesmo os patrimónios com um valor de 20 milhões de dólares acabam por pagar só aproximadamente 20 por cento em impostos sucessórios.

Outro argumento enganoso é que o imposto sucessório representa dupla tributação. Na realidade, a maior parte da riqueza que é sujeita a impostos por morte nunca foi antes sujeita a tributação fiscal. E isto acontece porque esta riqueza é frequentemente acumulada sob a forma de mais-

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valias em títulos, bens imóveis e outros investimentos. Os ganhos sobre o capital não são taxados enquanto os referidos activos não forem vendidos. Obviamente, se alguém morre detendo dado activo que nunca foi vendido então nunca pagou impostos de mais-valias.

Se estes argumentos não forem suficientes para parar o show dos senadores Lincoln e Kyl, os legisladores devem considerar o seguinte: o imposto sucessório cria um grande estímulo para actos de filantropia, porque doações por caridade estão isentas do imposto sucessório. Na Terça-feira, o Sector Independente, uma coligação de instituições de caridade não partidária e que representa milhares de instituições de beneficência públicas, fundações privadas e grandes empresas especializadas em programas de acção social, exortava o Senado a rejeitar a emenda Lincoln-Kyl e manter os impostos tal como é proposto por Obama no seu texto de orçamento agora apresentado.

Finalmente, a redução do imposto sucessório para o nível agora proposto custaria adicionalmente 250 mil milhões de dólares, pois seria receita a que se teria que renunciar ao longo dos próximos dez anos, num momento em que a nação já tem que contrair pesados empréstimos para fazer face às suas verdadeiras necessidades. Estes dois senadores, Lincoln e Kyl, fizeram grande alarido quanto aos meios possíveis para compensar aquele custo. Ouçamos então o que eles nos têm para dizer e, uma vez conhecida a forma como arranjam então os 250 mil milhões de dólares, falaremos depois sobre as melhores formas de usar aquela poupança.

New York Times, Editorial, “The Forgotten Rich”, 2 de Abril de 2009,

disponível em http://www.nytimes.com/2009/04/02/opinion/02thu1.html.

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II.

O PRÓXIMO CICLO:

A RAZÃO DE SER DO TÍTULO

ECONOMIA GLOBAL E OS MUROS DA REPARTIÇÃO

A razão de ser deste título resulta da ideia de que a crise económica e financeira actual provém também de disfuncionamentos da economia real que se processaram ao longo destas três últimas décadas. Muitos destes disfuncionamentos são o resultado da flexibilização em todos os mercados e da desvalorização do salário como componente do rendimento fundamental na formação de expectativas económicas necessárias para se garantirem níveis de procura efectiva (consumo e investimento) capazes de assegurar um crescimento económico sustentado. Por outras palavras, as leis que determinam a repartição são centrais na crise de hoje. Nunca como agora David Ricardo esteve tão actual quando afirmou nos seus Princípios:

O produto da terra – tudo o que se extrai da sua superfície pela aplicação conjunta do trabalho, equipamento e capital – é dividido por três classes da comunidade, quer dizer, o proprietário da terra, o possuidor do capital necessário para o seu cultivo e os trabalhadores que a amanham.

Porém, cada uma destas classes terá, segundo o avanço da civilização, uma participação muito diferente no produto total da terra, participação esta denominada respectivamente renda, lucros e salários; esta situação dependerá principalmente da fertilidade da terra, da acumulação do capital e da densidade da população e da habilidade, inteligência e alfaias aplicadas na agricultura.

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O principal problema da Economia Política consiste em determinar as leis que regem esta distribuição.

Com este novo Ciclo é pois um longo trajecto que se quer percorrer, analisando quer as leis e os modos de regulação das diversas formações sociais que actualmente são determinantes na economia global quer as dinâmicas da produção a partir das regras de apropriação do excedente, questão central no debate sobre as causas estruturais da crise económica actual. Esta questão tem sido sistematicamente negligenciada pelo sistema capitalista de dominância financeira hoje predominante e também mais recentemente em muitas das discussões à volta desta crise. Procurar perceber, debater, as leis, as normas, as regras, que regulam a repartição em cada formação social na economia global é pois a base deste próximo Ciclo, que tem exactamente como tema Economia Global e os Muros da Repartição.

Um retorno aos grandes clássicos, à luz da realidade de hoje para a saída da crise ainda de amanhã é pois o ambicioso projecto a que nos propomos. Três pólos de atenção, os nossos vértices da crise actual, Europa, Ásia e os EUA, três zonas de referência. A Europa e as suas relações com o Leste e com África; os Estados Unidos e as suas zonas limítrofes sobretudo o México e a NAFTA, e a China e as suas contradições e as suas dinâmicas internas e externas com um modelo de crescimento assente na dinâmica do comércio externo e no aprofundamento das desigualdades da repartição, são assim os campos onde se pretende descortinar os muros da repartição a que aludimos. Para completarmos a análise destes temas não poderíamos deixar de abordar também o espaço e os muros do dinheiro que a repartição, a desregulação e a desregulamentação, têm criado e que têm constituído peça fundamental nos mecanismos dos quais resultou a crise mundial por que estamos a passar. Eis pois, em traços gerais, as linhas de orientação do Ciclo que nos propomos a partir de agora levar a cabo.

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Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Reitoria da Universidade de Coimbra

Teatro Académico de Gil Vicente

Caixa Geral de Depósitos

Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

2008 - 2009

Economia Global, Mercadorização e Interesses Colectivos

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota, Luís Peres Lopes e Margarida Antunes

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