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Os sentidos ocultos da obra de Dante Fausto José da Fonseca Zamboni (UNIOESTE) Resumo: Contrariamente à imagem que se difundiu durante muitos anos nos estudos literários, Dante não era um apaixonado que admirava a sua amada à distância, sem conseguir ao menos dirigir-lhe a palavra. A par de sua atividade intelectual, era um homem ativo e protagonista do complicado jogo político e religioso da sua época. A mulher amada, na sua obra, é símbolo da sabedoria a que alma quer se unir: Beatriz, Laura e Fiametta, as famosas musas de Dante, Petrarca e Boccaccio, são disfarces para um discurso filosófico-doutrinal que não se quer revelar abertamente ao público. Mas por que não se pode falar abertamente? Por que é necessário tecer uma teia de símbolos e alegorias para ocultar da “gente grossa” – como normalmente se referem os poetas do duecento e trecento italiano ao público leitor comum as principais concepções sobre o homem e a educação, isto é, a busca da sabedoria (ou filosofia)? Literatura, religião, filosofia e política se misturam nesta trama complexa e nos revelam uma concepção de leitura em que é possível distinguir vários sentidos em diferentes níveis de significação dentro de uma mesma obra. Palavras-chave: Alegoria; simbolismo; ocultação; mulher; filosofia. Riassunto: Contrariamente all’immagine che si è diffusa largamente negli studi letterari, Dante non era soltanto un uomo innamorato che ammirava a distanza la donna amata, senza riuscire nemmeno a rivolgerle una parola. Insieme alle sue attività intellettuali svolgeva un ruolo attivo cruciale nel complicato gioco politico e religioso della sua epoca. La donna amata, nella sua opera, è simbolo della sapienza alla quale l’anima vuole unirsi: Beatrice, Laura e Fiametta, le muse famose di Dante, Petrarca e Boccaccio, sono un artificio usato per coprire un discorso filosofico e dottrinale che non deve essere rivelato apertamente al pubblico. Ma perché non si può parlare apertamente? Perché è necessario occultare alla “gente grossa”, con un velo di simboli e allegorie, le principali concezioni sull’uomo e sull’educazione, cioè, la ricerca della sapienza (o filosofia)? Letteratura, religione, filosofia e politica si intrecciano in questa complessa rete e ci rivelano una concezione di lettura nella quale è possibile distinguere vari sensi in diversi livelli di significazione all’interno di un’unica opera. Parole chiavi: Allegoria, simbolismo, occultazione, donna, filosofia. Dante é, sob muitos aspectos, um representante típico, embora de alto nível, da mentalidade da filosofia escolástica medieval, que tem em Santo Tomás de Aquino seu maior representante. Dante teria transposto em versos as concepções morais, filosóficas e teológicas do sistema aristotélico-tomista (MANDONNET, apud GILSON, 1953). Além disso, como um dos maiores expoentes do Dolce stil nuovo, mantinha com a amada imortal Beatriz uma relação platônica, com conotações piedosas, meio adolescente e ingênua, própria desta época. O crítico Giorgio Petrocchi (apud MANACORDA, 1995, p. 17-18) assim resume a concepção amorosa do Dolce stil nuovo (doce estilo novo), a escola poética a que pertencia Dante:

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Os sentidos ocultos da obra de Dante

Fausto José da Fonseca Zamboni (UNIOESTE)

Resumo: Contrariamente à imagem que se difundiu durante muitos anos nos estudos literários,

Dante não era um apaixonado que admirava a sua amada à distância, sem conseguir ao menos

dirigir-lhe a palavra. A par de sua atividade intelectual, era um homem ativo e protagonista do

complicado jogo político e religioso da sua época. A mulher amada, na sua obra, é símbolo da

sabedoria a que alma quer se unir: Beatriz, Laura e Fiametta, as famosas musas de Dante,

Petrarca e Boccaccio, são disfarces para um discurso filosófico-doutrinal que não se quer

revelar abertamente ao público. Mas por que não se pode falar abertamente? Por que é

necessário tecer uma teia de símbolos e alegorias para ocultar da “gente grossa” – como

normalmente se referem os poetas do duecento e trecento italiano ao público leitor comum –

as principais concepções sobre o homem e a educação, isto é, a busca da sabedoria (ou

filosofia)? Literatura, religião, filosofia e política se misturam nesta trama complexa e nos

revelam uma concepção de leitura em que é possível distinguir vários sentidos em diferentes

níveis de significação dentro de uma mesma obra.

Palavras-chave: Alegoria; simbolismo; ocultação; mulher; filosofia.

Riassunto: Contrariamente all’immagine che si è diffusa largamente negli studi letterari, Dante

non era soltanto un uomo innamorato che ammirava a distanza la donna amata, senza riuscire

nemmeno a rivolgerle una parola. Insieme alle sue attività intellettuali svolgeva un ruolo attivo

cruciale nel complicato gioco politico e religioso della sua epoca. La donna amata, nella sua

opera, è simbolo della sapienza alla quale l’anima vuole unirsi: Beatrice, Laura e Fiametta, le

muse famose di Dante, Petrarca e Boccaccio, sono un artificio usato per coprire un discorso

filosofico e dottrinale che non deve essere rivelato apertamente al pubblico. Ma perché non si

può parlare apertamente? Perché è necessario occultare alla “gente grossa”, con un velo di

simboli e allegorie, le principali concezioni sull’uomo e sull’educazione, cioè, la ricerca della

sapienza (o filosofia)? Letteratura, religione, filosofia e politica si intrecciano in questa

complessa rete e ci rivelano una concezione di lettura nella quale è possibile distinguere vari

sensi in diversi livelli di significazione all’interno di un’unica opera.

Parole chiavi: Allegoria, simbolismo, occultazione, donna, filosofia.

Dante é, sob muitos aspectos, um representante típico, embora de alto nível, da

mentalidade da filosofia escolástica medieval, que tem em Santo Tomás de Aquino seu maior

representante. Dante teria transposto em versos as concepções morais, filosóficas e teológicas

do sistema aristotélico-tomista (MANDONNET, apud GILSON, 1953). Além disso, como um

dos maiores expoentes do Dolce stil nuovo, mantinha com a amada imortal Beatriz uma relação

platônica, com conotações piedosas, meio adolescente e ingênua, própria desta época.

O crítico Giorgio Petrocchi (apud MANACORDA, 1995, p. 17-18) assim resume a

concepção amorosa do Dolce stil nuovo (doce estilo novo), a escola poética a que pertencia

Dante:

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enquanto para os provençais Amor quis dizer homenagem fiel à beleza e

sabedoria da Senhora, e respeitosa súplica e fonte de virtude, os

representantes do Dolce stil nuovo purificaram e exaltaram até o limiar do

Céu aquela concepção. O amor tornou-se trepidante adoração de um ser

perfeito; a mulher [...] da Vita nuova é vista como um anjo, no qual há bem-

aventurança e conforto, em cuja bondade e beleza irradiam uma altíssima

espiritualidade; e o amor exalta no poeta o que nele há de melhor.

O máximo de contato de Dante com a sua Beatriz é uma saudação que ele recebe, e que

depois lhe será negada. Ainda assim, o poeta decide que a atividade mais digna de sua vida é

exaltar ao máximo o valor da sua amada, que em seguida morre repentinamente, ainda jovem.

O poeta decide não escrever mais nada enquanto não conseguisse criar algo que fosse

condizente com a glória de Beatriz no alto dos céus, que ele vê em sonho.

Então, após um longo silêncio, no exílio, vêm à luz a Divina Comédia – em que Dante,

depois de conhecer o destino dos pecadores no Inferno e acompanhar as almas que se purificam

no Purgatório, encontra Beatriz na glória triunfante do Paraíso – um sublime poema de amor

que não poderia deixar de se revestir dos aspectos morais e religiosos da sua época, como é

típico da literatura medieval.

Esta é uma visão bastante difundida, nas obras de crítica e nos materiais de ensino de

literatura italiana, do significado da literatura dantesca. No entanto, há estudiosos que apontam

aspectos dissonantes neste quadro que podem alterar completamente o sentido do conjunto. O

próprio Dante advertia, no IX canto do Inferno da Divina Comédia:

“O voi ch' avete gl' intelletti sani,

Mirate la dottrina che s'asconde

Sotto il velame degli versi strani.”1

Como foi entendida a concepção polissêmica de Dante, e as suas advertências quanto à

necessidade de se buscar o sentido mais profundo da sua obra? De um modo geral, percebe-se

que a crítica aceita mais facilmente a existência de uma significação filosófico-teológica mais

profunda na Divina Comédia, sem procurar aplica-la às outras obras do autor no seu conjunto.

Não se observa, igualmente, nenhum esforço sistemático de leitura que procure explorar os

1 Ó vós que tendes são o intelecto /olhai para a doutrina que se esconde/por sob o véu destes estranhos versos

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quatro sentidos de forma satisfatória: cada intérprete encontra um Dante compatível com suas

ideias preconcebidas, e o véu torna-se mais espesso do que nunca.

Adriano Lanza, no seu livro Dante e la gnose, traz uma relação das principais obras que

exploraram os sentidos que se escondem sob o véu da alegoria dantesca. Boccaccio, o primeiro

grande comentador de Dante, já dizia que na Divina Comédia há “sentidos profundíssimos

escondidos sob admirável suavidade”2. Os poetas, diz Boccaccio, devem imitar o quanto

possível os rastros do Espírito Santo, que “revelou os seus altíssimos segredos aos homens

futuros, fazendo-os falar sob um véu o que no tempo devido, sem nenhum véu, pretendia

mostrar”. Ao louvar a arte de Dante, portanto, Boccaccio louva a capacidade dos poetas de

esconder altíssimos segredos3. Acrescenta ainda o autor do Decameron4:

os poetas a esconderam sob coisas aparentemente contrárias a ela [à verdade];

e por isso fizeram fábulas como a melhor cobertura para que a sua beleza

atraísse aqueles que nem as demonstrações filosóficas, nem as persuasões

tinham podido atrair.

No século XV Landino, companheiro de Marsilio Ficino, acredita encontrar mistérios

divinos escondidos atrás das imagens da Divina Comédia. No século XVIII, A. M. Biscione

sustenta a necessidade de uma interpretação histórica e alegórica de Beatriz na Vita nuova,

assim como Gasparo Gozzi, que vê em Beatriz a personificação da Ciência divina. O poeta

Ugo Foscolo, já no século XIX, afirma que Dante pretendia ser um reformador da religião. Em

seguida, em 1932, Carlo Vecchione sustenta que a Divina Comédia é uma obra de iniciação,

como os grandes poemas antigos. Francesco Lomonaco, em 1836, levanta indícios de sentidos

heréticos camuflados na Divina Comédia.

O autor que mais contribui para difundir a imagem de um Dante esotérico é Gabriele

Rossetti. Ele chama a atenção para elementos unitários que perpassam toda a obra do escritor

florentino, como a presença de Beatriz, que na Vita nuova nos daria a melhor chave para a

compreensão do seu significado como uma iniciação, uma regeneração espiritual que assinala

o nascimento de uma nova vida. Beatriz seria símbolo da Sabedoria Santa ou Inteligência ativa,

a que a alma de Dante se une em místicas núpcias. A escrita de Dante seria toda convencional

para permitir a leitura correta a quem tivesse as chaves daquela linguagem. A morte de Beatriz

2 BOCCACCIO, Giovanni. Trattatello in laude di Dante. Disponível em http://www.classicitaliani.it/boccaccio/prosa/trattatello_prima_redazione.htm . Acesso em 30 nov. 2017. 3 Ibid. 4 Idib.

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seria a morte simbólica entre as duas vidas, a velha e a nova. Mesmo tendo suscitado muitas

reservas mesmo entre os seus seguidores, ele torna-se uma referência, um ponto de partida que

não poderia mais ser ignorado.

E. J. Delecluze (1848), Philarète Chasles (1847) e Eugene Aroux seguem os traços de

Rossetti, com destaque para este último, na obra Dante hérétique, révolutionnaire et socialiste

(1854). Aroux, um católico, dedica a obra ao papa Pio IX como uma peça de acusação: para

ele, Beatriz é uma entidade metafísica da fé heterodoxa do autor da Divina Comédia.

Outros autores o consideram um proto-maçon, um iniciado de uma sociedade secreta

(Reghelini, 1825); Peladan (1908) vê em Dante o autor do livro dos novos e verdadeiros

cristãos e Eliphas Levi (História da magia, 1914) considera a Divina Comédia uma epopeia

gnóstica e iniciática. Vincenzo Soro (1922) também sustenta a essência gnóstica do

pensamento dantesco. Dentre os autores que sustentam a existência de uma alegoria esotérica

na Divina Comédia está Arturo Reghini5 (1921).

Outro autor importante nesta cadeia é Francesco Perez que, em 1865, interpreta a

presença de Beatriz como Inteligência ativa que ilumina o intelecto possível, que seria a própria

Sabedoria de que falam as Escrituras. Ele encontra a confirmação da sua interpretação no

Benjamin Menor, de Ricardo de São Vítor, no que será seguido por Giovanni Pascoli (1902) e

Luigi Valli (1928).

Este último sustenta a ligação de Dante com o grupo dos Fedeli d’amore, cuja poesia

seria toda escrita num jargão secreto para expressar o amor pela Sabedoria Santa, que a Igreja

tinha esquecido ou ofuscado. A Vita nuova seria todo simbólica e iniciática, mas ele acredita

que os Fedeli d’amore estavam muito mais próximos da ortodoxia católica do que supunham

Rossetti e Aroux. Dante teria terminado por distanciar-se da seita, “facendo parte per sé stesso”

num itinerário mais pessoal e independente.

Alfonso Ricolfi (1933) coloca-se no mesmo filão interpretativo, chamando a atenção

para as infiltrações gnósticas das doutrinas de Avicena e Averróes na doutrina católica que

Dante recebe de Santo Agostinho, Ricardo de São Vítor e São Bernardo. Pode-se lembrar das

obras de Gaetano Scarlata (1929) e Cecco d’Ascoli (1955) nesta mesma tradição interpretativa.

5 L'allegoria esoterica in Dante. Pubblicato in «Nuovo Patto», settembre-novembre 1921; ristampato in Paganesimo, pitagorismo, massoneria a cura dell'Associazione pitagorica, Società Editrice Mantinea, Furnari (ME), 1986.

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Geitmann (1889) e J. Earl (1896), admitindo a interpretação simbólica de Beatriz,

acreditam na ortodoxia de Dante, ao contrário de Alfonso de Salvio (1936), que observa o

silêncio de Dante sobre as maiores heresias da sua época. René Guénon (1925) concorda com

a existência de um sentido iniciático na obra de Dante, trazendo observações interessantes

sobre a semelhança de concepções islâmicas com a estrutura do Paraíso. A obra representaria

a conquista ativa de estados sobre humanos.

Robert L. John (1946) sustenta a tese que Dante era um apoiador ou membro dos

templários; Willy Schwarz (1982) interpreta Dante sob o ponto de vista da Antroposofia e

Antonio Coen (1958) acredita que o objetivo dos Fedeli d’amore era conseguir uma

experiência de êxtase místico. Denis de Rougemont (1939), na célebre obra História do amor

no Ocidente, afirma que, apesar das incertezas que ainda restam quanto à hipótese de um Dante

herético, as pesquisas não cessam de confirmar a tese de Aroux.

Margarete Lochbrunner (1973, 1974, 1975) aponta diversos paralelismos entre a obra

de Dante e Maniqueu. Segundo a autora, o poeta teria fundido o maniqueísmo com a doutrina

da Igreja. Ernst Robert Curtius (1948), em Literatura Europeia e Idade Média latina, também

aceita a interpretação de um Dante esotérico, próximo ao gnosticismo, assim como Hugo

Friedrich (1974), que fala em neomaniqueísmo. Philippe Guibertau (1973) acredita que ele

teria pertencido a uma sociedade iniciática de tipo gnóstico, semelhante às tariqas islâmicas,

mas teria depois retornado à fé católica num sentido mais compreensivo e ecumênico. R. A.

Gutman (1977) assume uma posição semelhante. E. L. Fortin (1981), por sua vez, sustenta que

esta pode ser uma visão enganosa: há muitos enigmas na Divina Comédia, e o aparente retorno

à ortodoxia pode ser uma camuflagem compreensível numa época de perseguição religiosa.

Dante seria um mestre da dissimulação.

Ioan Couliano (1987), retomando as sugestões de Denis de Rougemont, expõe a

psicologia do Eros de caráter iniciático dos Fedeli d’amore. Há também interpretações de

Dante em clave hermético-alquímica (BREYER, 1957; CERCHIO, 1988 e MINGUZZI, 1988).

Para Paul Renucci (1965) as interpretações esotéricas de Dante persistem, mesmo

depois das críticas de muitos estudiosos de prestígio – como Umberto Eco, Asor Rosa e Maria

Pia Pozzato, em Idea deforme (1989) – porque em sua obra estão presentes todas as

características da literatura esotérica: o caráter iniciático, a graduação da consciência e a

distinção entre uma linguagem para os profanos e outra para os adeptos.

*

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Como se vê, Dante incita o leitor a buscar sentidos ocultos sob o véu da alegoria. Ele

considera “belíssima e utilíssima” a figura retórica da dissimulação, própria de um sábio

estrategista – que finge atacar de um lado para alcançar a vitória do outro – e dá exemplos de

como utiliza esta figura, ao interpretar um de seus poemas na obra O banquete. Ao falar dos

olhos e do sorriso da sua amada, ele diz que os “olhos da Sabedoria são as suas demonstrações

[...] e o seu riso são as suas ideias6, nas quais se manifesta a luz interior da Sabedoria, debaixo

de alguns véus” (Banquete, p. 279).

Neste mesmo livro, Dante explica que a “donna gentilíssima” é a filosofia, e que “Os

olhos desta Senhora são as suas demonstrações, que levadas aos olhos do intelecto, enamoram

a alma” (Banquete, p. 213). Por “donna gentile”, sem o superlativo, Dante designa "nobre alma

de engenho e livre no seu próprio poder, que é a razão. Por isso as outras almas não se podem

chamar senhoras (donne), mas servas, pois não são para elas, mas para os outros "

(Banquete, p. 278).

Portanto, quando Dante se dirige às “donne ch’avete intelletto d’amore”7, é provável

que estivesse se dirigindo a almas que tinham autodomínio racional sobre si mesmas. No

Banquete Dante pretende explicar o sentido oculto das canções, que “alguns não poderiam ver

se eu não falasse, porque estão ocultos sob a forma de alegoria. E isto não somente causará

prazer em se ouvir, mas um subtil ensinamento e assim falar e assim entender os escritos

alheios” (Banquete, p. 125).

Ao explicar a existência de vários sentidos numa mesma obra, Dante se reporta a uma

tradição hermenêutica muito bem conhecida desde os inícios da cristandade, que tem origens

tanto hebraicas como greco-romanas. Macrobius havia definido “quatro maneiras de exprimir-

se, ligando cada uma destas qualidade a um grande orador – Cicero, Salústio, Fronto (Frontão),

e Plínio o Jovem (DE LUBAC, pos. 513). O próprio Cristo falava em parábolas e contava seu

significado espiritual apenas aos discípulos, ensinando a interpretar as Escrituras como

prefiguração do Seu advento. Seguindo o seu exemplo, os padres da Igreja, com especial

destaque para os quatro maiores Padres latinos (Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São

Jerônimo e São Gregório Magno) e os quatro maiores Padres gregos (Santo Atanásio, São

Basílio, São Gregório de Nazianzo e São João Crisóstomo) explicavam as Escrituras em

6 No original, em italiano, persuasioni (persuasões) (p. 119). 7 “senhoras que tendes intelecção do amor”

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profundidade, explorando significados que iam muito além do sentido literal, que estavam

organizados em quatro níveis: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico.

Esta técnica interpretativa foi praticada e defendida por Ricardo de São Vítor (1110-

1173), que o nosso poeta considera um mestre e o coloca no Paraíso, no canto X, entre os

doutores da Igreja, “a flamejar de ardente espírito”, reconhecendo-o também como autoridade

a respeito dos estados místicos da alma, junto com São Bernardo e Santo Agostinho8. A própria

definição do Dolce stil nuovo, que é atribuída a Dante, parece provir textualmente de Ricardo

de São Vitor9. Este, por sua vez, ao interpretar o Cântico dos cânticos, diz que

a letra cobre o espírito assim como a palha cobre o trigo. Cabe ao jumento

alimentar-se da palha e ao homem alimentar-se do trigo. Aquele, portanto,

que se utiliza da razão humana é como aquele que despreza a palha dos

jumentos e se apressa em alimentar-se com o trigo do espírito. É útil que os

mistérios sejam cobertos com o invólucro da letra, pois, conforme está escrito,

"os sábios escondem a inteligência" (Prov. 10, 14). De fato, sob a cobertura

da letra, oculta-se a inteligência espiritual10.

Era bastante aceita, portanto, a concepção de que havia mistérios escondidos sob a letra

das Escrituras. No século XIII, a ideia de que as Escrituras poderiam ser interpretadas em

quatro níveis foi defendida por ninguém menos que Santo Tomás de Aquino11, considerado o

maior filósofo escolástico e a maior autoridade doutrinal da Igreja Católica. Na obra O

Banquete (p. 161-162) – que é uma obra de divulgação de conhecimentos filosóficos numa

linguagem acessível aos mais simples – assim o poeta define os quatro níveis de interpretação

de um modo que não destoa da tradição dos Santos Padres e dos filósofos escolásticos:

…os escritos se podem compreender e se devem expor principalmente em

quatro sentidos. Um, chama-se literal, e este é o que não vai além da própria

letra [...] O outro, chama-se alegórico, e este é o que se esconde sob o manto

das fábulas, e é uma verdade oculta sob uma bela mentira. Como quando

Ovídio diz que Orfeu amansava as feras com a cítara e atraía as pedras e as

árvores; o que quer dizer, que o homem sábio, com o instrumento da sua voz,

acalma e humilha os corações cruéis; e faz seguirem a sua vontade aqueles

que não tem ciência e arte; aqueles que não tem vida racional, são quase como

pedras.[...] O terceiro sentido chama-se moral; e este é o que os leitores devem

ir aplicando nos escritos para utilidade deles e dos seus alunos; como se pode

8 Epístola XIII a Cangrande dela Scala. 9 Ver Enciclopedia Dantesca, disponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/stil-novo_(Enciclopedia-Italiana)/ . Acesso em 27 nov. 2017. 10 Ricardo De São Vítor. Comentário ao Cântico dos cânticos. Disponível em http://cristianismo.org.br/r-cant00.htm . Acesso em 7 dez. 2017. 11 na Suma teológica, Q1, Art. 10 e em outros escritos (I Sent., prol., a. 5; IV, dist XXI, q.1, a.2, qa 1, ad 3; De Pot., q. 4, a. 1; Quodlib., III, q. 14, a. 1; VIII, q. 6; ad Gal., c. IV, lect. VII)

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entender no Evangelho quando Cristo subiu ao monte para se transfigurar,

que, dos doze Apóstolos, levou consigo três, o que moralmente se pode

entender que, para coisas muito secretas, nós devemos ter pouca companhia.

O quarto sentido chama-se anagógico; isto é, acima dos sentidos; temos este

sentido quando espiritualmente se expõe uma sentença, que, ainda no sentido

literal, mesmo para as coisas significadas, representa coisas espirituais da

glória eterna; como se pode ver naquele Canto do Profeta, que diz que na

saída do povo de Israel do Egito, a Judeia se fez santa e livre. E se bem que

seja verdadeiro segundo a letra, é claro, não menos verdade é também o que

espiritualmente se entende, isto é, que na saída da alma do pecado, ela se torna

santa e livre em suas faculdades. E em se demonstrando isto, sempre o literal

deve ir na frente, como aquele em cujo sentido os outros estão incluídos, e

sem o qual seria impossível e irrazoável entenderem-se os outros [...] pois que

em todas as coisas que tem dentro e fora, é impossível chegar-se à parte de

dentro, se antes não se passar pelo literal.12

A Divina Comédia foi composta levando em conta esta quádrupla significação, como o

poeta explica em carta (Epístola XIII) ao seu protetor, Cangrande della Scala:

O significado desta obra não é um só; antes, pode ser definida como tendo um

significado polissemos, isto é, com mais de um significado. De fato, o

primeiro significado é o que se tem da letra do texto, outro é o que se quis

significar com a letra do texto. O primeiro se diz literal, o segundo, contudo,

significado alegórico, moral ou anagógico13.

12 …le scritture si possono intendere e deonsi esponere massimamente per quattro sensi.

L’uno si chiama litterale, e questo è quello che non si stende più oltre che la lettera de le parole fittizie, sì come

sono le favole de li poeti.

L’altro si chiama allegorico, e questo è quello che si nasconde sotto ’l manto di queste favole, ed è una veritade

ascosa sotto bella menzogna: sì come quando dice Ovidio che Orfeo facea con la cetera mansuete le fiere, e li

arbori e le pietre a sè muovere; che vuol dire che lo savio uomo con lo strumento de la sua voce fa[r]ia mansuescere

e umiliare li crudeli cuori, e fa[r]ia muovere a la sua volontade coloro che non hanno vita di scienza e d’arte: e

coloro che non hanno vita ragionevole alcuna sono quasi come pietre.

E perchè questo nascondimento fosse trovato per li savi, nel penultimo trattato si mosterrà. Veramente li teologi

questo senso prendono altrimenti che li poeti; ma però che mia intenzione è qui lo modo de li poeti seguitare,

prendo lo senso allegorico secondo che per li poeti è usato.

Lo terzo senso si chiama morale, e questo è quello che li lettori deono intentamente andare appostando per le

scritture, ad utilitade di loro e di loro discenti: sì come appostare si può ne lo Evangelio, quando Cristo salio lo

monte per transfigurarsi, che de li dodici Apostoli menò seco li tre; in che moralmente si può intendere che a le

secretissime cose noi dovemo avere poca compagnia.

Lo quarto senso si chiama anagogico, cioè sovrasenso; e questo è quando spiritualmente si spone una scrittura, la

quale ancora [sia vera] eziandio nel senso litterale, per le cose significate significa de le superne cose de l’etternal

gloria sì, come vedere si può in quello canto del Profeta che dice che, ne l’uscita del popolo d’Israel d’Egitto,

Giudea è fatta santa e libera. Chè avvegna essere vera secondo la lettera sia manifesto, non meno è vero quello

che spiritualmente s’intende, cioè che ne l’uscita de l’anima dal peccato, essa sia fatta santa e libera in sua

potestate. E in dimostrar questo, sempre lo litterale dee andare innanzi, sì come quello ne la cui sentenza li altri

sono inchiusi, e sanza lo quale sarebbe impossibile ed inrazionale intendere a li altri, e massimamente a lo

allegorico. È impossibile, però che in ciascuna cosa che ha dentro e di fuori, è impossibile venire al dentro se

prima non si viene al di fuori: onde, con ciò sia cosa che ne le scritture [la litterale sentenza] sia sempre lo di fuori,

impossibile è venire a l’altre, massimamente a l’allegorica, sanza prima venire a la litterale…”. 13 Em latim, no original: “sciendum est quod istius operis non est simplex sensus, ymo dici potest polysemos, hoc est plurium sensuum; nam primus sensus est qui habetur per litteram, alius est qui habetur per significata

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Na explicação do soneto VII da Vita nuova Dante afirma que este tem “seu motivo

razoável assaz manifesto” quanto ao sentido aparente, mas que “entre as palavras com que se

manifesta a razão deste soneto há outras de sentido dúbio” e que

esta dúvida é impossível resolvê-la àqueles que não fossem fiéis ao Amor

(fedele d’amore) em tal grau, e àqueles que o fossem, torna-se claro aquilo

que explica as palavras duvidosas; mas não me fica bem esclarecer tal dúvida,

pois minhas palavras seriam inúteis ou então, excessivas (DANTE, s/d, p. 52-

53).

Ocorre que a expressão fedeli d’amore pode significar mais do que um movimento de

escritores que são amantes fiéis e apaixonados: segundo o estudioso de religiões comparadas

Mircea Eliade, trata-se de um movimento literário apenas na aparência, e que

implicava uma gnose oculta e, provavelmente, uma organização inciática [...]

cujos representantes estão atestados durante o século XII tanto na Provença

como na Itália, na Bélgica ou na França. Os fedeli d’amore constituíam uma

milícia secreta e espiritual cujo objeto era o culto da “mulher única” e a

iniciação no mistério do “amor”. Todos eles utilizavam uma “linguagem

oculta” (parlar cruz), a fim de que sua doutrina não fosse acessível à gente

grossa. (ELIADE, 1999, p. 142).

O grupo dos Fedeli d’amore, ao qual Dante provavelmente pertencia (VALLI,

ROUGEMONT, ELIADE) camuflavam de linguagem erótica e amorosa as suas doutrinas

políticas e religiosas. Os trovadores provençais, nos quais o nosso poeta se inspira, são

influenciados pela poesia árabe espanhola, com a qual fundem elementos célticos, gnósticos e

orientais. O filósofo Luigi Valli mostra como há um discurso de fundo religioso e iniciático

por trás da aparência de discurso amoroso na Vita Nuova, e como a interpretação nesta clave

permite a compreensão de muitas incoerências que aparecem no plano literal.

Denis de Rougemont, na célebre obra História do amor no ocidente, também mostra

como a literatura do escritor florentino se liga estreitamente aos trovadores eivados da heresia

cátara. No entanto, por ser uma literatura densamente simbólica e alegórica, é difícil definir até

que ponto é possível levar estas interpretações. Não há concordância entre os diversos

pesquisadores quanto a estes fatos, porque os Fedeli d’amore não mantinham registros dos seus

adeptos e de suas atividades – pelo contrário, primavam por manter o máximo de sigilo. Não

dá para saber também se em seu seio se cultivavam doutrinas heréticas ou ortodoxas, se bem

per litteram. Et primus dicitur litteralis, secundus vero allegoricus, sive moralis, sive anagogicus”. Disponível em https://la.wikisource.org/wiki/Epistulae_(Dantes_Aligherius)#XIII. , acesso em 8 dez. 2017.

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que o próprio sigilo sugira que deveria ser um conteúdo não aprovado por autoridades políticas

e eclesiásticas. Mas poderia tratar-se posições religiosamente ortodoxas combinadas com

oposição política, em que poderia resultar em perseguição política sob pretexto de combate às

heresias, como ocorreu naquela mesma época com a extinção dos Templários. Vários autores

afirmam que Dante teria sido um terciário da Ordem dos Templários, como atestaria uma

medalha disponível num museu de Viena14.

*

A posição política de Dante pode nos fornecer algumas pistas sobre o significado

efetivo de suas alegorias e sobre a sua posição no cenário político e religioso da sua época. Ele

teria sido defensor de ideias gibelinas, embora, oficialmente, ele fosse membro do Partido

Guelfo, da facção branca, que seria disfarçadamente gibelina.

O Partido Gibelino era favorável à independência do Império em relação à Igreja em todas as

questões políticas e considerava que, ao aceitar a doação de Constantino, a Igreja Católica se

corrompera. Muitos gibelinos, como os franciscanos espirituais e os cátaros, defendiam uma

Igreja pobre, em que o Papa não fosse senhor de territórios. Os gibelinos acreditavam que os

males da Igreja seriam sanados quando um Imperador dominasse o Papado e devolvesse a

supremacia ao Império (Fedeli, 2003).

O livro De monarchia, que trata da relação entre Império e Igreja, está muito próximo

das concepções gibelinas. O livro foi condenado à época pelo Papa João XXII e colocado no

Index das obras proibidas, posteriormente, em 1554, de onde só foi retirada no séc. XIX,

quando a Igreja já havia perdido seus territórios para o recém-criado Estado Italiano.

(GILSON, apud FEDELI, 2003).

Etienne Gilson considera a doutrina política de Dante contrária à de Santo Tomás, tendo

cindido a doutrina vigorante na Cristandade Medieval. Enquanto para Santo Tomás haveria

uma unidade hierárquica entre os poderes temporal e espiritual, com maior autoridade

conferida a esta última, para o autor da Monarchia “é preciso dar a César o que é de César, e a

Deus o que é de Deus”, o que significa a independência recíproca entre os dois poderes. Não

seria possível, portanto, conciliar a doutrina do maior representante da poesia italiana e de

Santo Tomás de Aquino:

Se isto é verdade, a ruptura doutrinária que separa os partidários da

supremacia temporal dos Papas e seus adversários não passa entre Roger

14 Cf René Guénon. O esoterismo de Dante. Vega, 1995.

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Bacon e Tomás de Aquino, mas entre Tomás de Aquino e Dante. Sob a

pressão da paixão política de Dante a unidade da cristandade medieval regida

pelos Papas bruscamente veio a se partir ao meio. O Imperador, doravante,

pode buscar seu fim próprio sem esperar do chefe da Igreja outra coisa que

não seja a sua bênção. Expulsa por toda a parte da ordem temporal, a

autoridade do Pontífice Romano se vê confinada exclusivamente à ordem da

graça. Esse Papa de Dante, que não depõe mais os príncipes, é bem

diferente daquele de São Tomás de Aquino. O mais notável, na atitude de

Dante, de outro lado, é que ele compreendeu com uma profundidade de

pensamento da qual é preciso louvá-lo, que não se pode subtrair totalmente

o temporal da jurisdição do espiritual, a menos que se subtraia totalmente a

filosofia da jurisdição da teologia. É por ter visto claramente isto, e por tê-lo

expresso nitidamente que Dante ocupa um lugar cardeal na história da

filosofia política da Idade Média. Porque, enfim, se a razão filosófica sobre a

qual se regula o Imperador fica, por pouco que seja, submetida à autoridade

dos teólogos, o Papa retomaria, por meio deles, a autoridade sobre o

Imperador que se tratava de lhe retirar. Comandando a razão, o Papa

comandaria, por isso mesmo, a vontade que é guiada pela razão. Assim, a

separação da Igreja e do Império pressupõe necessariamente a separação

da teologia e da filosofia, e é porque, da mesma forma que ele tinha

rompido em dois pedaços a unidade da Cristandade medieval, Dante

quebrava também ao meio a unidade da sabedoria cristã, princípio

unificador e elo da Cristandade. Sobre um e o outro desses pontos vitais,

esse pretenso tomista [Dante] feriu de morte a doutrina de São Tomás de

Aquino (GILSON, apud FEDELI, 2003).

É muito difícil considerar, a partir desta observação de Gilson, que a Divina Comédia possa

ser uma versificação da Suma teológica. Quanto aos papas da sua época Dante parece ter

colocado tanto Celestino V quanto Bonifácio VIII. O primeiro não é nomeado, mas a menção

“àquele que fez a grande recusa” costuma ser sempre interpretada como uma alusão a

Celestino, que abdicou da cátedra de Pedro no ano de 1294. Por ter sido um monge eremita e

pobre, teria suscitado grandes esperanças no seu pontificado como um retorno a Igreja pobre e

desligada do governo temporal. Bonifácio VIII, por sua vez, teria sido um dos responsáveis

pela renúncia do predecessor, aprisionando-o depois da renúncia para evitar que fosse

novamente proclamado papa pelos soberanos que estavam descontentes com a sua renúncia.

Bonifácio VIII, que escreveu a Bula Unam Sanctam (1302), afirmando a supremacia da Igreja

sobre o Império, é colocado no Inferno entre os simoníacos.

No ano de 1300, Dante foi um dos enviados pelos governantes da República Florentina a San

Giminiano para tentar refazer uma Liga "Guelfa" da Toscana, que se opusesse ao Papa

Bonifácio VIII. Neste mesmo ano, quando exercia o cargo de Prior de Florença, chegou uma

ordem do papa a seu Legado na Toscana, o Cardeal de Acquasparta, que excomungasse os

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governantes florentinos, suspendendo-os de suas funções, e confiscando os seus bens

(FEDELI, 2003). Dante perdeu o cargo antes que a ordem fosse executada: viu-se destituído

por uma manobra do papa e do rei da França, quando estava retornando de sua embaixada a

Roma, e teve que viver o resto da vida em exílio. Ele recusou-se a voltar para Florença, e tentou

convencer pessoalmente o imperador Henrique VIII a invadir a Itália, mas a morte do

imperador pôs fim às suas esperanças.

Considerações finais

O trecho da Divina Comédia que indica a presença da “doutrina que se esconde sob o

véu dos versos” não implica necessariamente algum tipo de esoterismo, uma vez que a

atribuição de quatro sentidos diferentes às escrituras era uma prática comum na Idade Média,

uma herança que remonta pelo menos ao início da cristandade. Ocorre, porém, o conhecimento

dos quatro níveis de significação foi praticamente esquecido no início da modernidade (DE

LUBAC, 1998), e a interpretação da Divina Comédia, justamente no momento em que

começaram a surgir os dantistas profissionais (especialistas na obra de Dante) sofreu um

esvaziamento e uma conformação aos cânones de uma crítica que buscava, sobretudo, rastrear

influências e esmiuçar os detalhes em relação ao contexto histórico de Dante, trazendo

informações minuciosas de cada personagem.

A interpretação alegórica da Divina Comédia foi retomada, em linhas gerais, no início

do século XIX, mas de uma maneira inicialmente tosca, o que levou muitos a desacreditar desta

clave interpretativa, seja pela sua novidade e estranheza, seja pelos resultados insatisfatórios e

exagerados da interpretação do significado alegórico.

Ainda não há clareza suficiente sobre a posição do poeta florentino na literatura da sua

época. Contudo, a representação de Dante como um típico discípulo da escolástica aristotélico-

tomista não é mais facilmente sustentável, e a sua poesia amorosa vai muito além da

representação de um amor casto e idealizado. É mister ver em Dante um homem ativo na vida

política e intelectual de um período decisivo da Idade Média, autor de uma literatura que não é

apenas um capítulo da sua vida privada, mas que se destinava a influenciar diretamente os

acontecimentos mais significativos da civilização europeia da sua época.

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Referências

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