10
12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias venho parÜcipando, por ampliarem enormemente o debate entre pesquisadores e institui~óes da área. As institui~óes promotoras dos eventos e cursos (cada urna mencionada em nota, no início dos capítulos), que me obrigaram a sistematizar e a tornar inteligíveis minhas reflexóes em torno da história oral. E a Coordenac;ao de Aperfei~oamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ea Funda~ao Carlos Chagas Filho de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de ]aneiro (Faperj), que me concederam apoio financeiro para a participa~ao nos eventos academicos fora do país. A Capes e o CNPq ainda me concederam as bolsas de mestrado em antropologia social e doutorado em teoria da literatura, respectivamente, cursos fundamentais para minha forma~ao e que me permitiram tra~ar rela~óes entre a história oral e temas como o papel central do indivíduo, a hermeneutica e os fundamentos da narrativa, entre outros. olugardahistóriaoral:ofasdniodo vivido e as possibilidades de pesquisa * Ve ,f.X\ ó. #(f¡Q.rt) e omecemo' com urna imagem ce"amente [amilim a muita, pe,- soas: se quiséssemos fazer um filme reproduzindo passo a passo nossa vida, tal qual ela foi, sem deixar de lado os detalhes, gastaría- mos ainda urna vida inteira para assisti-lo: repelir-se-iam, na tela, os anos, os dias, as horas de nossa vida. Ou seja, é impossível assis- tir ao que se passou, seguindo a continuidade do vivido, dos even- tos e das emo~óes. E o que vale para nossas vidas vale evidente- mente para o passado de uma forma geral: é impossível reproduzi- lo em todos os seus meandros e acontecimentos os mais banais, tal qual realmente aconteceu. A história, como toda atividade de ; i * Este capitulo reÚne questóes que venho discutindo há algum tempo. O fascinio do vivido, inclusive a imagem do filme de nossa vida, já foi objeto do texto "História oral: uma rcncxao crítica", apresentado no paineI "Pesquisa, Memória e Documcnta<;ao", no VI Encontro Estadual de História da ANPUH - NÚcleo Regional de Minas Gerais, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, emjulho de 1988. A relac;ao entre história oral e o paradigma hermenéutico encontra-se resumida em "A vocac;ao totalizan te da história ora] e o exemplo da formac;ao do acervo de entrevistas do CPDOC", texto apresentado no X Congresso Internacional de História Oral, realizado no Rio deJaneiro, de 14 a 18 dejunho de 1998. O papel do individuo no traba]ho com a história oral, tambem tratado neste Último texto, ve~ me ocupando há muito tempo. A questao foi objeto da palestra "Individuo e biografia na história oral", proferida na mesa-redonda "O documento em história da psicologia: o oral e o textual", durante o III .9J.contro Clio-Psyché "Historiografia, psicologia e subjetividades", realizado pelo NÚcleo Cho- Psyché do Departamento de Psicologia Social e lnstitucional da Universidade do Estado do Rio

Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

12 Ouvir contar

Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

venho parÜcipando, por ampliarem enormemente o debate entre

pesquisadores e institui~óes da área. As institui~óes promotoras doseventos e cursos (cada urna mencionada em nota, no início dos

capítulos), que me obrigaram a sistematizar e a tornar inteligíveisminhas reflexóes em torno da história oral. E a Coordenac;ao de

Aperfei~oamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a

Funda~ao Carlos Chagas Filho de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio

de ]aneiro (Faperj), que me concederam apoio financeiro para a

participa~ao nos eventos academicos fora do país. A Capes e o CNPqainda me concederam as bolsas de mestrado em antropologia social edoutorado em teoria da literatura, respectivamente, cursos fundamentais

para minha forma~ao e que me permitiram tra~ar rela~óes entre ahistória oral e temas como o papel central do indivíduo, a hermeneuticae os fundamentos da narrativa, entre outros.

o lugardahistóriaoral:o fasdniodovividoe as possibilidadesde pesquisa*

Ve ,f.X\ ó. #(f¡Q.rt)

eomecemo' com urna imagem ce"amente [amilim a muita, pe,-soas: se quiséssemos fazer um filme reproduzindo passo a passonossa vida, tal qual ela foi, sem deixar de lado os detalhes, gastaría-mos ainda urna vida inteira para assisti-lo: repelir-se-iam, na tela,os anos, os dias, as horas de nossa vida. Ou seja, é impossível assis-tir ao que se passou, seguindo a continuidade do vivido, dos even-tos e das emo~óes. E o que vale para nossas vidas vale evidente-

mente para o passado de uma forma geral: é impossível reproduzi-lo em todos os seus meandros e acontecimentos os mais banais, talqual realmente aconteceu. A história, como toda atividade de

;i

* Este capitulo reÚne questóes que venho discutindo há algum tempo. O fascinio do vivido,inclusive a imagem do filme de nossa vida, já foi objeto do texto "História oral: uma rcncxao

crítica", apresentado no paineI "Pesquisa, Memória e Documcnta<;ao", no VI Encontro Estadualde História da ANPUH - NÚcleo Regional de Minas Gerais, realizado na Universidade Federal de

Minas Gerais, em Belo Horizonte, emjulho de 1988. A relac;ao entre história oral e o paradigma

hermenéutico encontra-se resumida em "A vocac;ao totalizan te da história ora] e o exemplo daformac;ao do acervo de entrevistas do CPDOC", texto apresentado no X Congresso Internacional

de História Oral, realizado no Rio deJaneiro, de 14 a 18 dejunho de 1998. O papel do individuo

no traba]ho com a história oral, tambem tratado neste Último texto, ve~ me ocupando há muitotempo. A questao foi objeto da palestra "Individuo e biografia na história oral", proferida namesa-redonda "O documento em história da psicologia: o oral e o textual", durante o III

.9J.contro Clio-Psyché "Historiografia, psicologia e subjetividades", realizado pelo NÚcleo Cho-Psyché do Departamento de Psicologia Social e lnstitucional da Universidade do Estado do Rio

Page 2: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

~~

14 Ouvir contar

pensamento, opera por descontinuidades: selecionamos aconteci-

mentos, conjunturas e modos de viver, para conhecer e explicar o

que se passou.

Urna entrevista de história oral nao é excer;ao nesse conjunto.

Mas há nela urna vivacidade, um tom especial, característico de do-

cumentos pessoais. É da experiencia de um sujeito que se trata; sua

narrativa acaba colorindo o passado com um valor que nos é caro:

aquele que faz do homem um indivíduo único e singular em nossa

história, um sujeito que efetivamente viveu - e, por isso dá vida a -as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tao distan-

tes. E, ouvindo-o falar, ternos a sensar;ao de ouvir a história sendo

contada em um contínuo, ternos a sensar;ao de que as descontinuida-

des sao abolidas e recheadas com ingredientes pessoais: emor;óes,

rear;óes, observar;óes, idiossincrasias, relatos pitorescos. Que in te-

ressante reconhecer que, em meio a conjunturas, em meio a estrutu-

ras, há pessoas que se movimentam, que opinam, que reagem, que

vivem, enfim! É como se pudéssemos obedecer a nosso impulso de

refazer aquele filme, de reviver o passado, através da experiencia de

nosso interlocutor. E sua presenr;a nos torna mais próximos do pas-sado, como se pudéssemos restabelecer a continuidade com aquilo

que já nao volta mais. Se our;o de um entrevistado um relato de seu

cotidiano vivido há 60 anos em minha cidade, acabo me identifican-

o lugar da hi\tlJlld (Jldl

do com ele, e, eu mesma,caminhando pelas ruas em meio a bundes l'senhores de chapéus.

Esse fascínio do vivido é sem dúvida em grande parte responsá-vel pelo sucesso que a história oral tem aicanr;ado nos últimos anos -sucesso que pode ser atestado pelo número crescente de pesquisado-

res, professores e estudiosos "fascinados" pela metodologia, que fre-qüentam os congressose seminários de história oral em todo o mundoe no Brasil especialmente.

É importante contudo saber que o que atrai, na história oral,nao Ihe é exclusivo e muito menos "novo" no mundo de hoje. Nestecapítulo procuro situar a história oral em relar;aoa alguns paradigmasque podem explicar o fascínio que ela exerce. Isso ajuda a estabelecerurna ViSaDcrítica do método e a identificar suas potencialidades emcasos em que ela pode valer a pena.

",

A naturezado fascínio

deJaneiro, de 27 a 29 de selembro de 2000. Também Iralci do assunto na conferencia "Hislória

oral e biograCia", proferida no Congresso de Hislória Oral, Fronteiras, Migrao;;óes e Culluras,realizado de 9 a 12 de julho de 2002, na cidade de Goiás, pelas universidades Federal e Estadualde Goiás, As possibilidades de pesquisa com história oral, arroladas aqui em nove itens, foram emparte desenvolvidas no texto "História oral na Alemanha: semelhano;;as e dessemelhano;;as na

constituio;;ao de um mesmo campo", apresen lado no Grupo de Trabalho Hislória e Memó.-ia, noXX Enconlro Anual da Associac;ao Nacional de Pós-Graduao;;ao e Pesquisa em Ciencias Sociais(ANPOCS), realizado de 22 a 26 deoutubro de 1996, em Caxambu (MG). Posteriormente, foram

apresentadas aos alunos do seminário "Arquivos e tradio;;óes orais", patrocinado pela Divisao de

Infomuo;;ao e de Informática da Uncsco, no ambilo do projeto "Reforo;;odas estruluras arquivísticas

nos paises lusófonos de África", ministrado por mim no Arquivo Histórico Nacional da Repúblicade Cabo Verde, na cidade de Praia, de 18 a 21 de novembro de 1996, e aos alunos do curso

"Fontes da história: prodUf;:ao e organizao;;ao de documentos", ministrado pelo CPDOC naFundao;;ao Getulio Vargas de outubro a dezembro de 1996. Finalmente, urna versao resumida

deste capítulo foi apresenlada na mesa-redonda "História oral: questóes teórico-metodológicas",no IV Encontro de História Oral do Nordeste "Espao;;o, Memória e Narrativa", realizado na

Universidade Federal de Campina Grande, Paraiba, de 23 a 26 de setembro de 2003.

Em muitos casos, a entrevista de história oral nos acena com a

chance, ou ilusao, de suspendermos, um pouco que seja, a impossibi-lidade de assistir a um filme contínuo do passado. Quando isso acon-

tece é porque nela encontramos a "vivacidade" do passado, a possibi-

lidade de revive-lo peJa experiencia do entrevistado. Nao é a toa que aisso muitos dao o no me de história (ou memória) "viva".

Mas concordamos todos que a impossibilidade de restabelecer

o vivido é coisa dada. Nao existe filme sem cortes, edir;6es, mudan~as

de cenário. Como em Um filme, a entrevista nos revela pedar;os do

passado, encadeados em um sentido no momento em que sao conta-

dos e em que perguntamos a respeito. Através desses pedar;os ternos a

sensar;ao de que o passado está presente. A memória, já se disse, é apresenr;a do passado.1

Em texto anterior, identifiquei essacombinar;ao entre, de um lado,a ilusao de restabelecimento do vivido e, de outro, o trabalho da memó-

ria em dar sentido ao passado como peculiaridade 'da história oral:

I Rousso, 1996, p. 94.

Page 3: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

16 Ouvir contar

o lugar da histÓII.10,,,1 1I

Mas acreditamos que a principal característica do documento

de história oral nao consiste no ineditismo de alguma informa-

~ao, nem tampouco no preenchimento de lacunas de que se

ressentemosarquivos de documentos escritos ou iconográficos,

por exemplo. Sua peculiaridade - ea da história oral como um

todo - decorre de toda urna postura com rela~ao a história e as

configura~oes sócio-culturais, que privilegia a recupera¡;:iiodo

vivido conforme concebidopor quemviveu.2

Ao combinar "vivido" e "concebido" tinha entao em mente duas

formas de apreensao do real que, segundo alguns autores, sao centrais

em nossa rela~ao com o mundo. "Concebemos" o mundo sempre de

modo descontínuo, agrupando e relacionando conceitas, justapondo

contradir;oes e procurando resol ve-las em sínteses. É o que o antropó-

logo Claude Lévi-Strauss chama de eixo "metafórico" de elaborar;ao

do real, especificamente aquele no qual operam os mitos. Dele nos

valemos em toda atividade do pensamento - seja o pensamento "sel-

vagem", seja o científico. Já o eixo contínuo de elaborar;ao do real

consiste num esforr;o de divisao infinitesimal da totalidade em partes,

como no caso da repetir;ao obstinada de gestos e palavras em um ri-

tUal. Esse eixo "metonímico", próprio do rito, segundo Lévi-Strauss,

procura recuperar a continuidade rompida pelo pensamento, refazen-do as pequenas unidades constitutivas do "vivido". Ainda que indis-

pensáve1 para a apreensao do real, esse esfor~o metonímico jamais

chega a seu termo; de acordo com Lévi-Strauss, ele está fadado ao fra-

casso - daí a rnistura de obstinar;ao e impotencia que o caracteriza.3

A identificar;ao dessasformas de eIaborar;aodo real pode ajud;tra compreender o fascínio da história oral. Repetir;oes e detalhes quefuncionam como divisoes infinitesimais em urna entrevista podem serparte do esforr;o obstinado e ao mesmo tempo impotente de refazer o

percurso do vivido. Por momentos podemos ter a impressao de que é

possível abolir as descontinuidades com o passado. Ao mesmo tempo,sabemos que o passado só "retorna" através de trabalhos de síntese damemória: só é possível recuperar o vivido pelo viés do concebido. É

claro que a história oral nao é a única manifestar;ao em que se combi-nam desse modo o contínuo e o descontínuo, mas, como já havia assi-nalado no texto citado, ela se ajusta a toda Urnapostura que valorizatal combinar;ao.

Passemos agora a dois paradigmas de nossa cultura nos quais ahistória oral encontra sustentar;ao, tao "infiltrados" em nosso modode ver o mundo que nem nos damos conta de sua existencia: o modode pensar hermeneutico e a idéia do indivíduo enquanto valor.

Hermeneutica:"compreenderé reencontrarOeu no tu"

A palavra "hermeneutica" designa um conjunto bastante diver-

sificado de questoes. Etimologicamente, remonta ao deus gregoHermes, representado com asas nos calcanhares, mensageiro entre osdeuses e os homens, mas também deus dos ladroes e das estradas.

Durante muito tempo, hermeneulica consistiu no esfon;o de interpre-tar;ao de textos - principalmente religiosos - e na definir;ao de regrasa serem seguidas para sua correta compreensao. Mais tarde, passou adesignar também urna pOstura filosófica. Importante, dentro desse

universo, é a nor;ao de círculo hermeneutico: a idéia de que o todofornece sentido as partes e vice-versa. Por exemplo: no processo decompreensao de urn texto, a palavra ganha sentido na frase, ao mesrnotempo em que a frase ganha sentido com as palavras.

Nas ciencias humanas, a hermeneutica passou a ter importan-cia a partir do final do século XIX, quando Wilhe)~n Dilthey 0833-1911), urn dos principais responsáveis pelo surgimento das ciencias

I1Ymanascomo universo distinto das ciencias naturais, a e1egeucomofundamento daquelas. Para Dilthey, as ciencias naturais tinham como

2 Albeni, 1990, p. s; grifado no original. A fórmula do "vivido conforme concebido por quem

viveu" já fazia pane do texto que apresentei no VI Encontro Estadual de História da ANPUH, emBelo Horizonte, em julho de 1988.

3Lévi-Strauss, 1971. Antes de Lévi-Strauss, Schopenhauer identificou duas formas de representa-910 pelas quais o sujeito apreende o mundo: a representa\;ao intuitiva, também chamada de

concreta, e a representar;ao abstrata, também denominada .pensado" (Gedachten). Nao sáo o

mesmo que o vivido e o pensado de Lévi-Strauss (ambas parecem ser da ordem do pensado), massua caracteriza9l0 é muito semelhante: de acordo com Schopenhauer, os conceitos da represen-

ta9l0 abstrata sáo como pequenas pe\;as de mosaico, que, por mais precisas e pequenas, nunca se

ajustarao á realidad e - ou seja, o pensado opera por descontinuidades. Já a representa\;aoconcreta assemelha-se a urna pintura (continua, portanto, em relar;ao ao que é representado)(Schopenhauer, 1818 e 1844).

Page 4: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

o lugar da hi\\tJlloI("..1 ,q

18 ouvir contar

fundamento a explicac;ao, enquanto as ciencias humanas se baseavam

na compreensao. Dilthey teve influencia decisiva nas formas de estUdar

o passado que relacionam temas e acontecimentos as condil;óes histó-ricas de seu aparecimentO e desenvolvimento. Para compreender o

homem, dizia, é necessário compreender sua historicidade - noc,;ao es-

tranha as categorias estáticas das ciencias naturais. O modo de pensar

hermeneutico, que nao se resume obviamente a filosofia de Dilthey,

consiste em valorizar o movimentO de se colocar no lugar do outro

para compreende-Io e em acreditar que as coisas (o passado, os 50-nhos, os textoS, por exemplo) tem um sentido latente, ou profundo, a

que se chega pela interpretac;ao.4Vm dos pontos de contatO mais claros enrre hermeneutica e

história oral é a categoria da vivéncia - para Dilthey, a menor unidade

das ciencias humanas, que sao epistemologicamente atreladas a vida.

A vivencia concreta, histórica e viva é o próprio ato, nao algo de que

estejamos conscientes - da deixa de ser vivencia quando observada,

porque a observac;ao atrapalha o fluir da vida Cao tOmar consciencia,fixamos o momentO e o que era continuo se tOrna estático). Essa me-

nor unidade é um dos termos da fórmula que, segundo Dilthey, torna

acessiveis os objetos das ciencias humanas: vivencia-expressao-com-

preensao. As produc,;óes humanas exprimem a vivencia e cabe aOhermeneuta compreender essas expressóes, de tal forma que a compre-

ensao seja o mesmo que lornar a vivenciar. "Compreender", diz Dilthey,

"é reencontrar o eu no tU."5 É alargar nosSOS horizontes em relac,;ao as

possibilidades de vida humana, é vivenciar outras existencias. E ele dáum exemplo, o de vivenciar o religioso: "Posso nao ter, durante minhaexistencia, a possibilidade de experimentar o religioso. Mas, a medida

que \eio as cartas e os escritos de Lutero e de seus contemporaneos,vivencio o religioso com urna energia e for<;a tais que hoje em dia

seriam impossiveis.,,6

Ora, podemos dizer que a postura envolvida com a história

oral é genuinamente hermeneutica: o que fascina numa entrevista é

a possibilidade de tornar a vivenciar as experiencias do outro, a

que se tem acesso sabendo compreeender as express6es de sua

vivencia. Saber compreender significa realizar um verdadeiro tra-

balho de hermeneuta, de interpretac,;ao. No caso de textos antigos,esse trabalho requer um estudo histórico e gramatical prévio, que

nos coloque na posic,;ao de um leitor da época. No caso de entrevis-

tas de história oral, ele também requer urna preparac,;ao criteriosa,

que nos transforme em interlocutores a altura de nossos entrevis-

tados, capazes de entender suas expressóes de vida e de acompa-nhar seus relatos.

Mas, como no caso do filme, o tornar a vivenciar a experien-

cia do outro nunca será completo. A compreensao é um processo deelevado esforc,;ointelectual que jamais chega ao fim, diz Dilthey. Ocor-

re o mesmo que na leitura de um romance: as cenas que já li escure-

cem, o passado perde a clarcza e a definic;ao. Quando retenho o en-

redo, só me resta urna visao geral das cenas. E assim se passa com acompreensao da vida: a hermeneutica nunca produz a certezademons trável.

Observe-se que esse "jamais chegar ao [¡m" a que está fadada a

compreensao também está na base do fascínio da história oral. Como

nenhuma interpretac,;ao é completa, haverá sempre espa<;o para no-

vas possibilidades, que, novamente, nao darao conta da totalidade, e

assim por diante. Mas se tomannos esse infinito de possibilidades ao

pé da letra, corremos o risco de cair em um relativismo exacerbado,

que confere validade a toda sorte de interpretac;6es: tudo se torna

possível, já que nao há certeza demonstrável. Essa espécie de verti-

gem pode chegar ao ponto de isentar o pesquisador de todo esforc;o

hermeneutico: sob a alegac;ao de que toda interpretac,;ao é apenas

urna possibilidade, basta colher e divulgar as express6es do vivido(isto é, as próprias entrevistas). Creio, contudo, que as entrevistas

tem valor de documento, e sua interpretac;ao tem a func,;aode desco-

brir o que documentam.7

'\ Ver, a respeilO da.hermeneutica e de Dilthey, Alberti, 1996.5 "Entwürfe zur Kritik der hislOrischen Vemunft" ("Esbo~os para a crítica da razáo histórica"),

Dilthey, 1959-1962, v. VII, p. 191.6lbíd., p. 214.

LA.respeito do valor de documento das entrevistas de história oral, ver os capítUlos seguíntesdestelivro. Sobre os riscos de UI11relativismo exacerbado na hermeneutica, ver Alberti. 1996.

Page 5: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

20 Ouvir contar

o indivíduocomovalor

o segundo paradigma claramente "infiltrado" na história oral, a

idéia do indivíduo como valor, também está relacionado a compreen-

sao hermeneutica. Quando Dilthey afirma que compreender é tOrnara vivenciar, é claro que pressupóe o indivíduo como locusdas vivencias(as originais e as depois compreendidas) - de outrO modo parece difí-cil "reencontrar o eu no tU". Esse indivíduo, assim como a hermeneuticacomo modo de pensar, é específico a cultura ocidental moderna. To-mar o indivíduo como valor nao é apenas considerá-Io urna entidadevalorizada em nossa cultura "individualista". É considerar que, em urnaordem hierárquica, ele é o termo superior a englobar o(s) inferior(es),

possuindo, portanto, urna capacidade de totaliza,ao. Como a culturaocidental é LUdomenos hierárquica, pois, na racionalidade moderna,

o que se pressupóe é a igualdade, ao invés da hierarquia, dá-se com oindivíduo moderno um interessante paradoxo: ele já nasceu como va-

lor englobante, apesar de firmado na igualdade; como totalizador, ape-sar de nivelado e fragmentado. Dito de outra forma: a cren~a no indi-víduo autónomo e igual perante os outros, que é também o indivíduo

único e singular, o ser psicológico, dá sentido a urna série de concep-

~óes e práticas em nosSO mundo. Basta ver que, em outras culturas,

igualdade, liberdade, singularidade psicológica etc. nao dao sentido a

práticas e modos de ser, para reconhecer que esse indivíduo é umvalor em nossa cultura, nao tendo nada que ver com urna suposta"natureza humana".8

É conhecido o alerta de Pierre Bourdieu para o fato de a indivi-

dualidade ser, na verdade, urna "formidável abstra~ao", que construí-

mos para nos afastar da fragmenta~ao do eu. O nome próprio, a assi-natura e a individualidade biológica provocam aquilo que Bourdieuchama de "ilusao biográfica", a ilusao de urna identidade coerente e

específica, embutida na idéia de vida como estrada, que segue urnaordem cronológica (com urna lógica prospectiva e retrospectiva) eobedece ao postUlado do sentido da existencia?

8 Sobre essa discussao, ver Duarle, 1983; Dumonl, 1966 e 1983; e Castro &: Araújo, 1977.9 Ver Bourdieu, 1996.

o lugar da históri,j (", d

Nao é difícil perceber como a história oral está ligada a e~~,'paradigma. Muitos autores atribuem a ela urna capacidad e d"totaliza~ao, principalmente quando confrontada com a fragmenta<;Ü(1de documentos escritos. Urna entrevista de história oral teria a van la-

gem de falar, de saída, sobre o passado, interpretando-o logo em den-sidade. lsso pode ser visto, como efetivamente o é por alguns autores,como um paradoxo: quanto mais moderna é a sociedade, quanLO maisrápida e fragmentada é a comunica~ao, tanto mais precisamos, paraen ten de-la, de formas "tradicionais" de explica~ao, isto é, narrativasorais, transmitidas de gera~óes mais velhas para mais novas, de modoa conservar a "identidade" e a construir os significados da sociedade.

Há um detalhe crucial, porém: o fato de o sentido e a identidadeem sociedades modernas pressuporem o indivíduo como ancora e ele-mento constitUtivo. Ao tempo indistinto, linear e racional do mundomoderno contrapóe-se a densidade de significados da biografia, capazde sintetizar os significados do passado.1O Se a história oral represen-ta urna op~ao totalizadora frente a fragmenla~ao de documentos es-critos é porque ela está cenlrada no individuo, que funciona, em nossacultura, como compensa~ao lotalizadora a segmenla~ao e aonivelamento em todos os dominios.

},

Práticas e valores muito "infiltrados" em nosso modo de ver o

mundo correm o risco de parecer coisa dada, verdades absolutas, co-muns a todas as culturas. É o que acontece com os dois paradigmasaqui destacados, O modo de pensar hermeneutico, que privilegia a

interpreta,ao do mundo com vistas a busca de um sentido profundodas coisas, inclusive da história e das biografias, é lao difundido - nos

livros, nos filmes, nos meios de comunica<;ao, na academia, nas lera-

pias etc. - que mal podemos imaginar que possa haver oulras possibi-lidades. O mesmo se pass a com o indivíduo como valor. Ambos saototalizadores, fixam sínteses e sentidos.

10Arespeilo desse papel central da biograna cm rela~aoa própria hislória, cscreveu Luiz í-emando"1Juarle: "A vida de cada sujeilo passa a ser medida na linha da flecha 1do lempo linear] e passa a

eonsliluir um microtempo fundamentaL.. a Hislória" (Duarlc, 1983, p. 37).

Page 6: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

22 Ouvir contaro Jugar da história or,,1 / I

o campo da história oral é acentuadamente totalizador; entre-vistado e entrevistadores trabalham conscientemente na elaborac;ao

de projetos de significac;ao do passado. II O esforc,;o é muito mais

construtivista do que desconstrutivista (inúmeras vezes ouvimos, com

efeito, que o entrevistado "constrói o passado"), e tem como base a

experiencia concreta, histórica e viva, que, grac;as a compreensao

hermeneutica, é transformada em expressao do humano. É importan-

te ter consciencia dessa "vocac;ao totalizan te" da história oral, em um

mundo em que a fragmentac;ao e a dissipac;ao de significados, o desa-

parecimento do sujeito e o privilégio da superficie (em detrimento da

profundidade) também estao na ordem do dia.12

Possibilidadesde pesquisa

Mas em que medida a experiencia individual pode ser represen-tativa? Até que pontO urna história de vida fornece informac,;óes sobre

a história da sociedade? Autores que defendem o uso da biografia noestudo da história consideram que as biografias de indivíduos comuns

concentram todas as características do grupo. Elas mostram o que é

estrutural e estatisticamente próprio ao grupo e ilustram formas típi-cas de comportamento. Mesmo urna biografia excepcional é capaz delanc;ar luz sobre contextos e possibilidades latentes da cultura - como

é o caso de Menocchio, o moleiro do livro O queijo e os vermes, de

Carlo Ginzburg. Como o próprio Ginzburg chamou a atenc;ao, a

excepcionalidade de Menocchio permite deduzir, "em negativo", o queseria mais freqüente.13

Biografias, histórias de vida, entrevistas de história oral, docu-

mentos pessoais, ennm, mostram o que é potencialmente possível em

determinada sociedade ou grupo, sem esgotar, evidentemente, todas

as possibilidades sociais. Mas o que faz um pesquisador procurar umindivíduo que tenha sido ator ou testemunha de determinado aconte-

cimento ou conjunLUra para fazer dele um entrevistado? Com certeza

a busca de alguma informac;ao e de algum conhecimento que aquele

indivíduo detém, e que o próprio pesquisador - mesmo que muito

bem informado e preparado - nao detém. Se nao, é evidente que naohaveria necessidade de se despender tempo e verbas na realizac;ao de

urna entrevista. Só convém recorrer a metodologia de história oral

quando os resultados puderem efetivamente responder a nossas per-guntas e quando nao houver outras fontes disponíveis - mesmo entre-vistas já realizadas - capazes de faze-Io.

E que tipo de informac;ao ou conhccimcnto sao esses que se

procuram em urna entrevista? Qual sua especifjcidade? Sem preten-der esgotar o rol, vejamos alguns campos de pesquisa em que a histó-.

l d . .1l4na ora po e ser Ul1 .

1. Histó,-ia do coudíano. Urna entrevista de história oral permitereconstituir decursos cotidianos, que geralmente nao esta o

registrados em outro tipo de [onte. O historiador Lutz Niethammer

Reconheceros paradigmas que estaona basedo sucessoda his-tória oral nao implica renunciar a sua capacidadede ampliar o conhe-

cimento sobre o passado.Ao comrário, saberem que lugar nos sitUa-mos ao trabalhar com determinada metodologia ajuda a melhor apro-

veitar seu potencial. A idéia de fundo aqui é: história oral nao é solu-c;ao para tudo; convém ter claro onde ela pode ser útil e delimitar

sobre o que vale a pena perguntar.

Urna das principais vantagens da história oral deriva justamente

do fascínio do vivido. A experiencia histórica do entrevistado torna o

passado mais concreto, sendo, por isso, atraente na divulgac;ao do

conhecimento. Quando bem aproveitada, a história oral tem, pois, um

elevado potencial de ensinamento do passado, porque fascina com a

experiencia do oUtro. Essemérito reforc;aa responsabilidade e o rigorde quem colhe, interpreta e divulga entrevistas.

11Nesse contexto, é bastante útil a nocao de projeto desenvolvida por Gilberto Velho como sendourna elaboracao conscienle e urna tentativa de dar sentido a experiencia fragmentada (Velho.1981).

12Aqui penso especificamente em movimentos opostos aos do paradigma hermeneutico que

surgiram a partir de fins do século XtX e mais acentuadamente no século XX,as vezes chamadosde "pós-modernos", e que lem em autores como Friedrich NielZsche, jacques Derrida, leanFrancois Lyotard, entre outros, seus expoentes.

13Levi, 1996.

H Sobre os campos e lemas que vem sendo estudadosa luz da história oral, ver tambémjanoni& Rosa, 1992/1993; Ferreira, 1994;joulard, 1996; e Alberti, 1997.

Page 7: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

o lugar da história or,¡I ) '.

24 Ouvir contar

(1985) faz a esse respeito algumas observar,;oes interessantes. Em

primeiro lugar, reconstituir o cotidiano nao é muito fácil, diz ele,porque geralmente as pessoas se lembram mais das ar,;oesnao mui-to óbvias ou evidentes, que, por isso mesmo, ficam na lembranr,;a.Desse modo, ao solicitarmos do entrevistado que reconstitua seucotidiano, há o risco de o resultado acabar sendo determinado pe-

las perguntas, que só conseguem trazer a lembranr,;a alguns aspec-tos da vida diária. Além disso, é preciso ter claro que a descrir,;aodo cotidiano sempre vem acompanhada de certa nostalgia, mistu-rada a sentimentos de pesar ou de alívio, que acabam marcando o

sentido da narrativa. Mas é possivel a um bom entrevistador obter

descrir,;oes precisas de rotinas. De um lado, porque elas estao con-solidadas na memória do entrevistado, que precisava dominá-Ias

para viver e trabalhar. De outro, porque elas geralmente sao infor-mar,;oes "inofensivas" que nunca precisaram ser interpretadas oureavaliadas ao longo da vida, ao contrário dos valores ou das expe-

riencias problemáticas - e é por essa razao que muitas vezes oentrevistado nao entende o sentido de perguntas sobre o cotidiano,

assunto por demais trivial e sem ligar,;aocom o sentido da históriade vida.15 A meu ver, algumas perguntas sobre o cotidiano sao in-

teressantes, para situarmos o entrevistado e seu passado. Pergun-tas exaustivas e detalhadas, no entanto, só deveriam ser feitas seisso realmente for importante para os propósitos da pesquisa, poisa entrevista acaba se tornando muito longa. Sugestoes de pergun-

tas sobre o cotidiano podem ser encontradas no apendice do livro

A voz:do passado, de Paul Thompson, que abrange assuntos comocasa, familia, rotina doméstica, refeir,;oes,relar,;aocom os pais, lazer,escola e vida profissional.16

2. História política. A metodologia de história oral é especialmenteindicada para o estudo da história política, entendida nao comohistória dos "grandes homens" e "grandes feitos", e sim como estu-do das diferentes formas de articular,;ao de atores e grupos, trazen-

do a luz a importancia das ar,;óes dos individuos e de suas estraté-

gias. Através de entrevistas de história oral, é possivel reconstituir

redes de relar,;ao, formas de socializar,;ao e canais de ingresso nacarreira, bem como investigar estilos politicos específicos a indivi-

duos e grupos Y3. Padroes de socialíz:a¡;lio e de trajetórias. Entrevistas de história oral

permitem o estudo de padroes de socializar,;ao e de trajetórias deindividuos e grupos pertencentes a diferentes camadas sociais, ge-

rar,;óes, sexos, profissóes, religioes etc.184. História de comunidades.A história oral pode ser utilizada como

metodologia de pesquisa para a reconstituir,;ao de trajetórias de co-munidades específicas, como as de bairro, as imigrantes, as campo-

nesas etc. Ela pode auxiliar também na investigar,;ao de genealogiasde determinadas familias dessas comunidades.

5. História de institui¡;oes. A metodologia de história oral pode serempregada no estudo da história de instituir,;oes do Estado, de or-

ganismos públicos e de empresas privadas. Nesse universo, ela per-mite a reconstrur,;ao de organogramas administrativos, o esclareci-mento de funr,;oes de diferentes órgaos, a recuperar,;ao de processosde tomada de decisao e investigar,;oessobre o esprit de corps dosfuncionários e sobre as relar,;oes entre diferentes gerar,;óes de traba-

Ihadores.19 As entrevistas podem também ajudar a esclarecer o

conteúdo, a organizar,;ao e as lacunas de arquivos existentes nasinstituir,;óes.20

6. Biografias. A história oral pode auxiliar na reconstituir,;ao de traje-

tórias de vida de pessoas cuja biografia se deseja estudar.

7. Históriade experiencias.Entrevistas de história oral podem ser usa-das no estudo da forma como pessoas ou grupos efetuaram e elabo-

raram experiencias, incluindo situar,;óes de aprendizado e decisoesestratégicas. Essa nor,;ao é particularmente desenvolvida em texlOS

alemaes, onde recebe o no me de Erfahrungsgeschichte ("história deexperiencia"), e aparece em combinar,;ao com a idéia de mudanr,;ade perspectiva (perspehtivenwechsel). Em linhas gerais, essas no-

15Nielhammer, 1985, p. 423-55. Zimmermann, 1992, lambém deslaca a reconslru~o de decur-50S cotidianos como parle das pOlencialidades da hiSlória oral.

16Thompson, 1992, p. 367-378.

17Veja-se, a esse respeilo, Camargo, 1994; e Ferreira, 1994.18Ver Zimmermann, 1992.~ Ver Ferreira, 1994.20 Tourlier-Bonazzi, 1996, p. 244.

Page 8: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

26 Ouvir contaro lugar da histón,¡ 01," JI

.'~:

c;óes significam o seguinte: entender como pessoas e grupos expe-rimentaram o passado torna possÍvel questionar interpretac;óes

generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas. UmestUdo de história oral sobre urna organizac;ao anarco-sindicalista

durante a guerra civil espanhola, por exemplo, desmistificou a idéia

antes predominante de autogestao operária, revelando clivagensinternas num período em que se supunha prevalecer a colabora-c;ao.21 E, na Alemanha, urna entrevista com um trabalhador que

ingressou no Partido Comunista Alemao nos anos 1920 revelou

que explicac;oes generalizantes dadas a influencia comunista sobreos trabalhadores da República de Weimar, corno a situac;ao do pro-letariado ou a influencia do aparelho partidário, podem nem sem-

pre corresponder as situac;oes específicas. A história desse entre-vistado mostra que, no processo de decisao que o levou a ingressar

no partido, importaram o exemplo do irmao mais velho e urna

posic;ao crítica com relac;ao ao catolicismo, em especial com rela-c;ao a determinado padre. Essa "história de experiencia" é, para

Niethammer, urna possibilidade de nos aproximarmos empirica-mente de algo como o "significado da história dentro da história" e

permite, de acordo com Zimmermann, questionar criticamente a

aplicac;ao de teorias macrossociológicas sobre o passado.22 A ca-pacidade de a entrevista contradizer generalizac;oes sobre o passa-

do amplia, pois, a percepc;ao histórica - isto é, permite a "mudanc;a

de perspectiva".

8. Registro de tradi(oes culturais. Entrevistas de história oral transmi-tem tradil;oes culturais, que vao surgindo a medida que o entrevis-tado delas se lembra: histórias, canc;oes, poemas, provérbios, mo-

dos de falar de um grupo, reminiscencias sobre antepassados e so-

bre territórios, informac;oes transmitidas de gerac;ao em gerac;ao

ou dentro de um mesmo grupo profissional etc. Há autores quefazem urna clara distinc;ao entre tradi<;:ao oral e história oral. A

primeira incluiria narrativas sobre o passado universalmente co-nhecidas em urna cultura, enquanto o testemunho ou a entrevista

de história oral se caracterizaria por versoes que nao sao ampla-mente conhecidas.23 Essa distinc;ao pressupoe, contudo, que a tra-

dic;ao oral seja imutável; ela nao considera que mesmo o passado"universalmente" conhecido é continuamente acumulado e disse-

cado. Assim, há todo um conjunto de pesquisadores que chama aatenc;ao para o fato de a tradi<;:aooral só se atualizar no momento

mesmo da narrativa, momento que determina, em grande parte,para que e como algo é narrado.24 Desse ponto de vista, tradic;aooral e história oral tem bastante proximidade, principalmente setomarmos as entrevistas como ac;óes (ou narra(oes), e nao somen-te como relatos do passado.

9. Históriade memórias.A metodologia de história oral é bastante ade-

quada para o estudo da história de memórias, isto é, de representa-<;:óesdo passado. Estudar essa história é estudar o trabalho de cons-

tiluic;ao e de formalizac;ao das memórias, continuamente negocia-das. A constituic;ao da memória é importante porque está atreladaa constrw;ao da identidade. Como assinala Michael Pollak, a me-

mória resiste a alteridade e a mudanc;a e é essencial na percepr;aode si e dos outros. Ela é resultado de um trabalho de organizac;ao ede selec;ao daquilo que é importante para o sentimento de unidade,

de continuidade e de coerencia - isto é, de identidade.25 E porquea memória é mutante, é possível falar de urna história das memó-rias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada através de en-

trevistas de história oral. Observe-se que estudar a constituic;ao de

memórias nao é o mesmo que construir memórias. Muitos pesqui-sadores que trabalham com história oral acham-se imbuídos da

missao de construir memórias, sem atentar para o próprio proces-so de sua constitui<;:ao,que muitas vezes oferece material riquíssimode análise.26

21Ver Garrido, 1992/1993, p. 40-41.22Niethammer, 1985; e Zimmermann, 1992.

23 Essa é, por exemplo, a opiniao de David Henige, resumida e comentada por Cohen, 1989.24 Essa posi{:ao é defendida por Cohen, 1989; e Cruikshank, 1996. Sobre o tema, ver tambémTonkin, 1992.

25 Ver Pollak, 1989 e 1992.

26Ver, por exemplo, a análise de Alessandro Portelli sobre a história da memória de um massacre

.-"corrido em 1944 na Itália (PorteIli, 1996). Sobre a história de memórias, ver ainda Rousso,1996 e 1997. E sobre questóes relativas ao processo de constituÍl;:ao de memórias, ver o capítu-lo 2 deste livro.

Page 9: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

...

28 Ouvir contar o lugar da história oral l')

Vale lembrar que as possibilidades de uso da história oral vaoalém das atividades de pesquisa e documenta~ao no ambito das cien-cias humanas. No ensino de história, por exemplo, alguns recursos

oferecidos pela história oral podem ser úteis: urna entrevista pode tor-nar o aprendizado mais fácil, porque trata de experiencias concretas,narradas de forma direta e coloquial, e os alunos também podem fazerentrevistas sobre as histórias da comunidade e das famílias. Além de

passar a conhecer essas histórias, o estudante desenvolve várias habi-lidades: o planejamento do trabalho, a prática de pesquisa e a capaci-dade de falar com pessoas desconhecidas.27 Entrevistas de históriaoral podem ser usadas com sucesso também em exposi¡;:óes, progra-mas de vídeo e em outros recursos de multimídia, como forma de

apresentar experiencias concretas sobre determinados acontecimen-tos e conjunturas.

Cardoso, Maria Margarida - 1998 - "A rua é minha casa"; in: Conferencia Interna-

cional de História Oral 00:1998: Riodejaneiro). Oral History: challengesJor

the21st ccntury;Xth International Oral History Conference,proceedings. Riodejaneiro, CPDOCIFGVIFiocruz, 1998, v.3, p. 1489-1496.

Castro, Eduardo Viveiros de &:Araújo, Ricardo Benzaquen de - 1977 - "Romeu e

julieta e a origemdo Estado",in: Velho,Gilberto(org.).Arte esociedade.Riodejaneiro, Zahar.

Cohen, David William - 1989 - "The undefining of orallradition". Ethnohistory.

American Society for Ethnohislory, Duke University Press, v. 36, n. 1, Winter1989.

Referenciasbibliográficas

Cruikshank,julie - 1996 - "Tradil;:aooral e história oral: revendo algumas ques-

toes",in: Ferreira,Marielade Moraes&:Amado,janaína (orgs.). Usos& abusosdahistória oral. Ríodejaneiro, FGY,p. 149-164.

DiJthey,Wilhelm- 1959-1962- Gcsammelte Schriften. Stuttgan, Teubner Verlags-gesellschaft.

- 1996 - "A existencia na história: revela~6es e riscos da hermeneutica".

EstudosHistóricos.Riodejaneiro, CPDOC-FGY,v.9, n. 17, 1996,p. 31-57 (dis-

ponível para download no Portal do CPDOC: www.cpdoc.fgv.br).

Duane, Luiz Fernando -1983 - "Tres ensaios sobre pessoa e modernidade". Bole-

tim do Muscu Nacional. Rio elejaneiro (41).

Dumont, Louis - 1966 - Horno hierarclticus. Paris, Gallimard.

Alberti, Verena - 1990 - História oral: a experiéncia do CPDOC. Rio deJaneiro, FGY.

Camargo, Aspásia - 1994 - "História oral e política", in: Ferreira, Marieta de

Moraes (org.), História oral emultidisciplinaridade. RiodeJaneiro, Diadorim!Finep, p. 75-99.

- 1983- Essaissur l'illdividualismc. Paris, Seuil.

Ferreira, Marieta de Moraes - 1994 - "Hislória oral: um inventário elaseliferen<;as",

in: Ferreira,Marielade Moraes(org.). Entre-vistas:abordagellseusosdahistóriaoral. Rio de janeiro, FGY,p. 1-13.

Garrido,joan de! Alcazar i. - 1992/1993 - "As fontes orais na pesquisa histórica:

urna contribui<;ao ao debate". Revista Brasileirade Histólia. Sao Paulo, ANPUH /

Marco Zero, v. 13, n. 25/26, sel. 1992/ ago. 1993, p. 33-54.

janotti, Maria eleLaureles Monaco &:Rosa, Zita de Paula - 1992-1993 - "História

oral: urna utopia?". RevistaBrasileira deHistória. Sao Paulo, ANPUH/ Marco

Zero, v. 13,n. 25/26, set. 1992/ ago. 1993, p. 7-16.

- 1997 - "Ensaio bibliográfico: obras coletivas de história oral". Tempo.

Revista do Departamento de História da Universidad e Federal Fluminense. Rio

deJaneiro, Re!ume-Dumará, v.2, n. 3,jun. 1997, p. 206-219.

Bourdieu, Pierre - 1996 [1986] - "A ilusao biográfica", in: Ferreira, Marieta de

Moraes &:Amado,Janaína (orgs.). Usos& abusosda história oral. Rio dejanei-

ro, FGY,1996, p. 183-191 (originalmente publicado em Actes de la Rechercheen

SciencesSociales, 1986).

joutard, Philippe - 1996 - "História oral: balan<;o da metodologia e da produ<;ao

-- nos últimos 25 anos", in: Ferreira, Marieta de Moraes &:Amado,janaína (orgs.)

Usos& abusosda Itistóriaoral. Riodejaneiro, FGY,p. 43-62.21Exemplos de experiencias do uso da história oral em sala de aula podem ser encontrados emSoares, 1998; e Cardoso, 1998.

Page 10: Ouvir contar o lugar da história oral: o fasdnio doarpa.ucv.cl/articulos/olugardahistoriaoral.pdf12 Ouvir contar Internacional de História Oral (ABHO e IOHA), de cujas diretorias

30 Ouvir contar o lugar da hi~t61ldu'dl i 1

Lévi-Strauss, Claude - 1971 - [homme nu. Paris, Plon.

Niethammer, Lutz -1985 - "Fragen-Anlworten-Fragen. Methodische Erfahrungen

und Erwagungen zur Oml Hislory", in: Nielhammer, Lutz {SrPlato, Alexander

von (org.). "Wirllriegen jetzt andere Zeiten ". AuFda Suche nael! da ErFahrungdes Vollles in NachFaschistischm Uindcrn. Lebensgeschichte und SoziaJkullur

im Ruhrgebiet1930bis 1960(Lusir),Bd.3., Berlin-Bonn,j.H. W DielzNachf.,p.392-445.

Tonkin,Elizabeth- 1992- Nan-atingourpasts.Thcsocial constructionof oral histOlY.Cambridge University Press.

Tounier-Bonazzi, Chantal - 1996 - "Arquivos: propostas metodológicas", in:

Ferreira, Maríeta de Moraes {SrAmado,Janaína (orgs.). Usos & abusos da histó-

ria oral. Rio deJaneíro, FGY,p. 233-245.

Levi, Giovam1i - 1996 - "Usos da biografía", in: Ferreira, Marieta de Moraes {Sr

Amado, Janaína (orgs.). Usos & abusos c/ahistória oral. Río deJaneiro, FGV,

p. 167-182.

Pol\ak, Michael - 1989 - "Memória, esquecimento, silencio". Esludos Históricos.

Rio deJaneiro, CPDOC-FGV, v.2, n. 3, p. 3-15.

VeJho, GiJberto - 1981 -Individualismo e cultura: notas para urna antropología dasociedade contemporfmea. Río deJaneíro, Zahar Editores.

Zímmermann, MichaeJ - 1992 - "Zeitzeugen", in: Rusínek, Bernd-A.; Ackermann,

Volker {SrEngelbrecht,Jórg (orgs.). Einführung in die Interpretation historischcr

Qucllen. Schwcrpunkt: Ncuzcit. Paderborn, Ferdinand Schóning, p. 13-26.

- 1992 - "MemÓria e identidade social". Estuc/os HistÓricos. Rio de

Janeiro, CPDOC-FGY, v. 5, n. 10, p. 200-215.

Portelli, Alessandro - 1996 - "O massacre de CiviteJla Val di Chiana (Toscana: 29

de junllo de 1944): milo, política, JULOe senso comum", in: Ferreira, Marieta de

Mames {SrAmado,janaína (orgs.). Usos ['" ahusosdahistóriaoral. RiodeJanei-1'0,FGV,1996, p. 103-130.

Rousso, Henry - 1996 - "A l11el11Órianao é l11aiso que era", in: Ferreira, Marieta de

Moraes {SrAmado,janaina (orgs.). Usos [", al)llsos da história oral. Rio deJanei-

1'0, FGY, p. 93-10 1.

- 1997 - "Usos do passado na Fran¡,:ade hoje", in: Simsoll, OIga Rodrigues

de Moraesvan (arg.). Osclnafloscolltemporémeosda históriaoral- 1996.Cam-pinas, Centro de Memória - Unical11p,p. 11-26.

Schopenhauer, Arthur. (l818, 1844, 11859J) "Die Well als Willc uno Vorslcllung"

IO mundo como vonladc e rcpresenta<,:ao], in: Wcr/¡c iu zdll! BÜnden.Zurich,

Diogcnes, 1977. v. 1-4.

Soares, Maria ¡nez Lemos Soares - ] 998 - "A hislÓria oral como principio educa-

tivo ou a memÚria como valor no ensino de histÓria", in: Conferencia [nterna-

cional de HistÓria Oral (10: 1998: Ria de Janciro). Oral Hislory: challengcs Ior

thc 21st cClllury; Xth Imernational Oral Hiswry Conference, proceedings. Rio

deJandro, CPDOClFGV/Fiocruz, 1998, v. 3, p. 1472-1478.

Thompson, Paul- 1992 - A voz do passado:hislária (J1'CI1.Rio deJaneiro, Paz e Terra.

[Tradu<;aodo original Thc voiccoIthe past - oral histOIY, publicado pela primci-ra vez cm [978.]