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PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA - CICLO
DE ALFABETIZAÇÃO - AVALIAÇÃO NACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO:
UMA ENGRENAGEM BIOPOLÍTICA CIRCULAR A SERVIÇO DO
NEOLIBERALISMO
MACHADO, Rosimar I.
LOCKMANN, Kamila.
Universidade Federal do Rio Grande
FURG/RS
Introdução
No papel de diagnosticar os resultados da educação brasileira, a estatística vem,
ao longo do tempo,apresentando dados sobre a educação e produzindo conhecimento
para o Governo1 agir e gerenciar os riscos sobre a população escolar brasileira. Ao
produzir conhecimento estatístico se materializam alguns discursos, como os que se
referem às avaliações em larga escala como aquelas capazes de aferir a qualidade da
educação no Brasil. Como reflexo disso, a estatística tem se tornado central, articulando,
impulsionando e fazendo operar, na atualidade, algumas políticas, entre elas as de
alfabetização, para gerenciar os riscos sobre o sujeito não alfabetizado. Tais políticas
vêm se deflagrando por meio de Programas de formação continuada em massa, a
exemplo de nossa discussão, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC). O PACTO é um programa de formação continuada destinado aos professores
alfabetizadores que articula outras duas políticas: a de implantação do Ciclo de
Alfabetização de três anos, bem como, a política de avaliação, por meio da
implementação da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) destinada aos alunos
concluintes desse Ciclo de alfabetização.
1Governo grafado com G maiúsculo refere-se a uma instituição do Estado que centraliza ou toma, para si,
a caução da ação de governar e, governamento é a própria ação ou ato de governar que se espalha,
microfisicamente, pelo tecido social. (VEIGA-NETO, 2002, p.16).
Constitui-se assim, a problemática investigativa que nos propomos a analisar:
como a tríade constituída pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na idade certa, pelo
Ciclo de Alfabetização e pela Avaliação Nacional da Alfabetização vem operando sobre
o sujeito docente? Que paradoxos e efeitos essa tríade produz na escola contemporânea?
A partir disso, olhamos para essa tríade com suspeita, problematizando alguns
discursos que se apresentam como verdades em nosso tempo, a saber: de que tais
políticas garantem a qualidade da educação brasileira. Com base nisso, focalizaremos as
discussões desse artigo no funcionamento desta tríade de políticas e deixaremos a
discussão sobre os paradoxos e efeitos para outro momento.
Para isso, optamos por realizar uma análise documental objetivando mostrar,
como se constitui essa tríade e como se materializam alguns discursos que a colocam
em movimento. A análise documental foi realizada a partir dos seguintes documentos:
Plano Nacional de Educação 2014-2024, a partir da Lei nº 13.005, de 25 de junho de
2014; o Documento básico: Avaliação Nacional de Alfabetização, que torna pública a
proposta do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep) da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA); a Portaria n° 867, de 4 de julho
de 2012, que Institui o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, suas ações e
diretrizes gerais; o Livreto Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, que
apresenta de forma resumida os objetivos do Programa; o Caderno de apresentação:
Formação do professor alfabetizador de 2012, que discute de forma aprofundada a
formação continuada dos professores alfabetizadores; o Caderno de apresentação,
material de formação de 2015 que retoma os objetivos do programa desde 2012 e
apresenta a ampliação da formação dos professores para as demais áreas do
conhecimento; e o documento: Elementos Conceituais e Metodológicos para definição
dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização (1º, 2º e 3º
anos) do Ensino Fundamental, que organiza a proposta curricular do 1º ao 3º anos do
Ensino Fundamental em duas partes: os Fundamentos Gerais do Ciclo de Alfabetização,
os Direitos e Objetivos de Aprendizagem, o Desenvolvimento por Área de
Conhecimento e Componente Curricular de Língua Portuguesa.
A análise documental apoia-se na perspectiva pós-estruturalista, principalmente,
a partir das contribuições do pensamento de Michel Foucault, utilizando os conceitos de
discurso e biopolítica como ferramentas para analisar essa tríade de políticas. Dessa
forma, compreendemos que os discursos são “práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam” (FOUCAULT, 1995, p.56), e por isso, não simplesmente
descrevem tais objetos, mas produzem efeitos que moldam as maneiras de ser e de agir
dos sujeitos envolvidos nessas práticas discursivas.
Assim é relevante num primeiro momento apresentar de acordo com nossa
análise como esta tríade de políticas se constitui e logo após, como ela opera nos anos
iniciais do Ensino Fundamental.
Como se constitui a tríade PNAIC-CICLO-ANA?
As estatísticas disponíveis apontam um cenário decepcionante para os
primeiros anos de educação escolar no Brasil. De acordo com o Censo
Demográfico 2010, 15% dos brasileiros aos oito anos de idade são
analfabetos. A Prova ABC, uma avaliação amostral feita em 2011 pelo
Movimento Todos pela Educação, em parceria com o Instituto Paulo
Montenegro/Ibope e a Fundação Cesgranrio, também encontrou resultados
desanimadores. (GOMES, 2013, p.3).
Na tentativa de alfabetizar todas as crianças até os oito anos de idade e modificar
o quadro alarmante da alfabetização no país, a criação do PNAIC vem evidenciar o
quanto as estatísticas vêm moldando as possibilidades de ação e incidindo sobre a
criação de novas políticas no Brasil. O Programa de formação continuada, denominado
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é um exemplo dessas possibilidades
de ação. Em discussão na Câmara dos Deputados, em Brasília, Gomes (2012) destaca
que é num cenário desanimador, com base nas estatísticas, que se visualizou a
alfabetização como precária no Brasil e se instituiu o PNAIC. Com o compromisso de
alfabetizar todas as crianças do I Ciclo em Língua Portuguesa e Matemática até os oito
anos de idade, o Pacto também tem como uma das ações realizar avaliações externas
para concluintes do 3º ano do Ensino Fundamental e apoiar a gestão pedagógica de
estados e municípios que tenham aderido ao Programa (BRASIL, 2012, p. 11).
Assim, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é um
compromisso formal assumido pelos governos federal, do Distrito Federal,
dos estados e municípios de assegurar que todas as crianças estejam
alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino
Fundamental [...]. (BRASIL, 2015, p.19).
Pelo compromisso que os municípios e estados assumiram com o Governo
Federal, a partir do Plano Nacional de Educação (PNE), o objetivo é atingir a meta de
alfabetizar todas as crianças brasileiras, no máximo até os oito anos de idade. Com base
nessa meta o PNAIC foi implantado no país reestruturando, universalizando e
padronizando, dentro do período de quatro anos (2012-2016), a formação continuada
dos professores alfabetizadores em busca de contemplar a meta nº 5 do atual PNE 2014-
2024.Com a operacionalidade do PNAIC o debate sobre o ciclo de alfabetização de três
anos ganha espaço e destaque retomando a discussão de ampliação do Ciclo de
Alfabetização nos três primeiros anos como um único bloco destinado à alfabetização
conforme já orientava o Parecer CNE/CEB nº 11/2010 e Resolução CNE/CEB nº
07/2010 para a ampliação do ensino fundamental de nove anos. (BRASIL, 2010).
No Brasil, a ideia de ciclo de alfabetização não é recente, ela se difundiu a partir de
1980, considerando-se os dois primeiros anos do Ensino Fundamental como um bloco
de alfabetização, definido por alguns estados como Ciclo de Alfabetização e, por outros,
Ciclo Básico de Alfabetização. Essa difusão ocorreu após a publicação das pesquisas de
Emílio Ferreiro e ganhou destaque na discussão de uma política para assegurar a
qualidade da alfabetização das crianças brasileiras (BARRETO; SOUSA, 2005, p. 664).
Barreto e Sousa (2005) relatam que eram escassos os estudos que se referiam a
resultados envolvendo o ciclo ou seus impactos no cotidiano escolar, mas existiam
dados nacionais colhidos pelo Saeb, no período entre 1995 e 2003, ou seja, saberes
estatísticos que indicavam menor rendimento dos alunos do ensino fundamental nas
regiões mais pobres e maior rendimento nas regiões mais desenvolvidas, justamente
aquelas em que estavam concentradas as escolas com ciclos. (BARRETTO E SOUSA,
2005, p.681). As autoras trazem essa discussão para mostrar que embora algumas
escolas em algumas regiões do país tenham adotado o regime de ciclo não se pode
atribuir a eles os baixos resultados, tendo em vista, que no Brasil, no período citado, é
majoritário o regime seriado. Essa referência ao baixo rendimento dos alunos também
foi apresentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p.27).
[...] resultados obtidos em pesquisa realizada pelo SAEB/95, baseados em
uma amostra nacional que abrangeu 90.499 alunos de 2.793 escolas públicas
e privadas, reafirmam a baixa qualidade atingida no desempenho dos alunos
no ensino fundamental em relação à leitura e principalmente em habilidade
matemática.
Dessa forma, alguns estudos e os dados apresentados naquela época nos
mostram como a estatística vem impulsionando um movimento pela implantação do
Ciclo no país, em busca da melhoria da qualidade de ensino nos anos iniciais, e assim,
nos mostrando a centralidade e a relevância que o saber estatístico exerce ao longo do
tempo atravessando e impulsionando sempre novas políticas com o objetivo de
gerenciar os riscos sobre uma determinada população. Esta mesma lógica discursiva
sobre a contribuição do ciclo para melhoria do ensino é observável também no
documento que define os Elementos Conceituais e Metodológicos para o
desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização, bem como, é uma das ações direcionadas
também pelo PNAIC, porém com um detalhe diferente.
E a proposta do Ciclo da Alfabetização é de não retenção não apenas no
primeiro, mas também no segundo ano do Ensino Fundamental, por se
entender que os três anos são fundamentais para as crianças participarem de
situações com as práticas relativas à linguagem, a apropriação do sistema de
escrita e os conhecimentos das demais áreas curriculares que a ajudem a
situar-se no mundo e que representem as possibilidades de serem ampliados,
posteriormente, ao longo da escolaridade (BRASIL, 2012, p.32).
Nas atuais políticas para a alfabetização, a ideia de que o ciclo contribui com a
melhoria da alfabetização é a mesma, porém o diferencial está na ampliação e
flexibilização do tempo de aprender para três anos, sendo dois anos passíveis de não
retenção, sendo esse o discurso que sustenta a operacionalização do PNAIC,
reorientando toda uma política de formação continuada de professores em busca de
universalizar em todo o país uma proposta pedagógica para o Ciclo de Alfabetização.
Para a implantação desse Ciclo de três anos, o Ministério da Educação prevê a
organização do currículo a partir da publicação do documento intitulado: Elementos
Conceituais e Metodológicos para Definição dos Direitos e Objetivos de Aprendizagem
e Desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização das crianças brasileiras em idade escolar.
O documento faz parte dessa política pública para alfabetização a partir da MP
586/20122, que foi anunciada pela Presidente da República no mesmo dia do
lançamento do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), em
novembro de 2012. (BRASIL, 2012).
2 Convertida na Lei nº 12.801, de 24 de abril de 2013. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro da União
aos entes federados no âmbito do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e altera as Leis
nos 5.537, de 21 de novembro de 1968; 8.405, de 9 de janeiro de 1992; e 10.260, de 12 de julho de 2001.
O documento que orienta o currículo no Ciclo de Alfabetização chega aos
professores alfabetizadores atribuindo uma re (organização) curricular, pautando o que
cada aluno tem o direito de aprender em cada ano. Ele representa, para as redes, um
documento que norteia o currículo, trazendo uma característica de base nacional comum
para ser desenvolvida em todo o país no ciclo de alfabetização, definindo com clareza e
precisão o para que ensinar, o que ensinar, como, ensinar e quando ensinar. (BRASIL,
2012).
Portanto, a partir do Pacto Nacional pela Alfabetização na idade certa, continua-
se depositando no ciclo a expectativa de que todas as crianças se alfabetizem, fazendo
da garantia do direito à alfabetização uma dívida histórica de alfabetizar todos os jovens
e crianças do país (BRASIL, 2012) e isso, nos induz a olhar para o Ciclo como um
espaço, um tempo, uma trajetória, colocados em destaque, para revolucionar a qualidade
da educação brasileira e garantir a alfabetização plena de todas as crianças brasileiras.
Neste papel, de modificar os índices de alfabetização no Brasil, as avaliações em
larga escala também ganham destaque materializando alguns discursos pela melhoria da
qualidade da educação no país.
Assim, a ANA será realizada anualmente e terá como objetivos principais:
I) Avaliar o nível de alfabetização dos educandos no 3º ano do Ensino
Fundamental.
(II) Produzir indicadores sobre as condições de oferta de ensino.
III) Concorrer para a melhoria da qualidade do ensino e redução das
desigualdades, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas
diretrizes da educação nacional (BRASIL, 2013, p.07).
Veiga-Neto (2012) destaca que vivemos, na atualidade, um delírio
avaliatórioagonístico, onde podemos perceber a invasão de práticas avaliativas por toda
a parte. Talvez possamos dizer que, nunca antes na história do Brasil, tenhamos
vivenciado um momento com tamanha proliferação de avaliações em larga escala,
direcionadas para as mais diversas etapas da Educação Básica e Superior, assim como
para medir o desempenho de diferentes sujeitos escolares: alunos, professores, gestores,
secretários de educação, entre outros.
Ao se constituir em uma articulação, essa tríade PNAIC-CICLO-ANA além de
reestruturar a formação continuada dos professores alfabetizadores, também vincula o
compromisso dos municípios em aferir os resultados da alfabetização em Língua
Portuguesa e Matemática por meio de avaliação universal em larga escala a ser
realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP) para os concluintes do 3º ano do ensino fundamental (BRASIL, 2012) e com
isso, engendra o compromisso de elevar os índices de alfabetização nas redes de ensino.
Considerando-se que as ações do PNAIC ainda estão em processo de
implementação, esta primeira avaliação tem como objetivo principal realizar
um diagnóstico, de modo a servir como “linha de base” para a
implementação das políticas previstas no Pacto, auxiliando na orientação
permanente da formação de professores alfabetizadores. Sendo assim, a ANA
não poderá ser reduzida a um instrumento para medir e classificar alunos,
escolas e professores, mas deverá possibilitar a verificação das condições de
aprendizagem da leitura, escrita e matemática no âmbito do Ciclo de
Alfabetização do Ensino Fundamental. (BRASIL, 2013, p.14).
Dessa forma, o principal objetivo da ANA conforme seu Documento Básico se
materializa como linha de base para a implementação das políticas previstas no Pacto,
projetando a ideia de produção de novos dados estatísticos sobre a alfabetização no
Brasil, pois é aplicada como uma forma de medir os efeitos do PNAIC, ou seja, de
avaliar e analisar se os índices de alfabetização produzidos anteriormente ao Pacto se
modificaram. Assim, por meio da ANA a estatística age sobre o ciclo de alfabetização
produzindo resultados que vão impulsionar novas ações que vão operar para gerar novos
resultados e consequentemente gerar novas estatísticas e produzir novos saberes
estatísticos.
Nesse sentido, a estatística tem se mostrado uma modalidade chave para
produzir conhecimento e governar uma população, conforme destacaram Popkewitz e
Lindblad (2001, p.3), nos mostrando sua centralidade nos modos e nas ações de
conduzir uma população, tendo em vista, que as estatísticas são representadas por
números que definem trajetórias e sinalizam onde as políticas de um estado devem
intervir, ou seja, as estatísticas fornecem informações para um Governo raciocinar e
gerenciar as relações entre alguns fenômenos sociais e educacionais.
Assim, por meio do saber estatístico é possível conhecer os sujeitos escolares de
forma coletiva e pensar em estratégias de governamento para gerenciar os riscos em
massa e conduzir, regular um determinado grupo. Nesse movimento de governamento
das condutas dos sujeitos escolares, trago os dois processos que Lockmann (2013, p.93)
destacou nesse gerenciamento: o de inteligibilidade e o de operacionalidade. O primeiro
caracteriza-se pela produção de dados estatísticos para conhecer uma população. O
segundo, por colocar em funcionamento determinadas ações para agir e operar sobre
essa população. Ao compreender que esses dois movimentos estão intrinsecamente
articulados a seguir realizamos uma aproximação com nossa discussão para mostrar
como tais políticas de alfabetização também se configuram a partir desses movimentos,
de inteligibilidade e de operacionalidade e fazem operar, um tipo de engrenagem3, ou
melhor, um conjunto de procedimentos e de estratégias que num fluxo movimenta três
políticas ao mesmo tempo para governar, controlar, gerenciar alunos, professores e
gestores do Ciclo de Alfabetização.
Como essa tríade opera?
Com base na problematização feita até o momento durante uma breve
contextualização dessas políticas de alfabetização é possível perceber que a tríade
PNAIC-CICLO-ANA vem realizando um movimento circular para gerenciar os riscos
produzidos pela não alfabetização das crianças brasileiras, na trajetória escolar de seis a
oito anos de idade. É neste contexto que discorremos sobre o conceito de biopolítica
para analisar como essa tríade opera. O conceito de biopolítica aqui se torna relevante,
uma vez que, nos ajuda a compreender como são pensados esses riscos e ações para o
ciclo de alfabetização, permitindo uma comparação entre o movimento produzido por
essa tríade e a ideia de fluxo4 que produz um movimento circular biopolítico.
Aproximando a discussão do pensamento de Foucault (2005, p.292) é preciso
compreender que a noção de biopolítica lida com uma população na medida em que
trabalha com um corpo múltiplo, com inúmeras cabeças, e por isso, é necessariamente
numerável. É essa nova forma de governar a população que podemos observar no
movimento produzido por essa tríade o qual passamos a denominar como um fluxo
3Cabe ressalvar, que no tempo entre a elaboração do resumo e do texto completo o pensamento se
movimentou e substituímos o conceito de engrenagem por fluxo, pois entendemos que o conceito de
engrenagem se associa mais fortemente à sociedade disciplinar e não é essa a ênfase que vemos em
operação nessas políticas. Já o conceito de fluxo nos abre possibilidades para associá-lo ao movimento da
tríade PNAIC-CICLO-ANA que como um conjunto de procedimentos e estratégias é destinado a dirigir a
conduta dos sujeitos envolvidos no Ciclo de alfabetização. Assim, é possível associá-lo com as relações
existentes em uma sociedade de controle, como a nossa, que passou a se configurar a partir do nascimento
da biopolítica. Em relação à emergência da Sociedade de Controle ver Gadelha, 2009. 4Tal comparação é possível porque o conceito de fluxo representa um movimento de modo contínuo e
circular daquilo que segue em curso.
circular biopolítico. Tal nomeação foi utilizada porque percebemos um movimento
contínuo e circular desenvolvido por essas políticas que estão em curso no Brasil, as
quais vêm controlando a alfabetização nos anos iniciais e produzindo novos objetos de
saber, tal como o saber estatístico. Assim, o conceito da biopolítica foi se constituindo
para Foucault (2005), como uma tecnologia de governo, uma ação de governar com a
intenção de gerenciar uma dimensão coletiva, e o trazemos aqui para mostrar como este
conceito tem contribuído para a compreensão de como se articulam as atuais políticas
de alfabetização no Brasil, uma vez que, a biopolítica se ocupa desses processos
relacionados ao controle do homem na coletividade, estabelecendo, portanto, uma
regulação sobre a população. Para compreender e conhecer melhor essa população é
preciso não apenas descrevê-la, mas quantificá-la para governá-la, então, necessita-se da
produção de múltiplos saberes, como a estatística, a qual, neste contexto, passa a ser
produzida pela ANA, que representa na tríade um mecanismo que mensura, numera e
classifica a aprendizagem das crianças. Assim a ANA produz um saber estatístico em
relação a esse corpo múltiplo que compõe o Ciclo de Alfabetização e o PNAIC.
A partir desse primeiro movimento de aproximação e conhecimento dos
documentos que norteiam a alfabetização no Brasil, foi possível perceber, portanto, que
a tríade constituída pelo PNAIC, pelo Ciclo de Alfabetização e pela ANA constitui-se
num conjunto de procedimentos e estratégias da prática de governar neoliberal que
passamos a denominar como fluxo circular biopolítico. Fluxo porque produz esse
movimento contínuo articulando tais políticas que se impulsionam reciprocamente.
Circular, porque esse movimento inicia pela estatística, ou seja, pelo diagnóstico da
situação da alfabetização no Brasil, medindo, calculando os riscos, conhecendo a
população analfabeta, produzindo saber estatístico e, portanto desenvolvendo o
movimento de inteligibilidade referenciado por Lockmann (2013). Biopolítico porque,
para gerenciar os riscos na dimensão coletiva, molda as ações docentes e conduz uma
população.
Com base nessa discussão, esse fluxo de políticas em torno da alfabetização
pode ser considerado como uma tecnologia de poder da biopolítica citada por Foucault
(2005), porque se caracteriza num mecanismo que assume diferentes funções, mas que
tem o objetivo regulador da população. Essas funções vão tratar de “previsões,
estimativas, estatísticas e medições globais” (FOUCAULT, 2005, p. 293), que
interferem de certa forma, nas ações que são prescritas aos sujeitos do ciclo de
alfabetização, e vai ser a partir dessas ações que racionalidade do sujeito governado vai
ser o combustível para esse fluxo manter um movimento contínuo, de modo que o
Governo interfira indiretamente. Essa é uma característica peculiar da tríade, que
alimenta um compromisso, o da responsabilização por melhores resultados. Com isso, a
responsabilização dos resultados não está mais nas mãos de quem governa, mas nas
mãos dos próprios governados, que devem concorrer para a transformação da educação
do país.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Após contextualizar um recorte de nossa análise documental, podemos dizer,
então, que esse fluxo circular biopolítico ao passo que faz emergir um saber estatístico
para o Ciclo de Alfabetização, coloca esse saber como foco central dos discursos para a
melhoria da qualidade da educação no país. Com isso, retomamos que o conceito de
biopolítica atravessa, acompanha e é muito relevante nesta discussão, uma vez que
conversa conosco durante os caminhos percorridos nesta pesquisa, que lida com uma
parte da população escolar, que é o ciclo de alfabetização, nos permitindo evidenciar
como a tríade PNAIC-CICLO-ANA vem funcionando e o porquê passa a se constituir
para nós como um fluxo circular biopolítico, porque não simplesmente conduz as
condutas dos sujeitos escolares no ciclo de alfabetização, mas controla, regula, governa,
envolve uma sucessão de ações políticas para constituir um saber estatístico e induzir a
criação e efetivação de outras novas políticas para a Educação da Infância no Brasil.
Portanto, ao considerar esse fluxo como um conjunto de procedimentos e
estratégias da racionalidade neoliberal contemporânea ressalvamos que o objetivo da
estatística remete a ela mesma e tem colocado professores, escolas, municípios em
competição com todos e consigo mesmo, no momento em que coloca o saber estatístico
da alfabetização como foco central para controlar os índices de alfabetização no país. O
que nos resta nesta discussão é nos colocar à espreita e elocubrar na continuidade da
pesquisa sobre os efeitos e paradoxos que o fluxo dessa tríade está produzindo na escola
contemporânea.
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