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Língua Portuguesa 9.º ano www.escolavirtual.pt © Escola Virtual 1 / 6 A Palavra Mágica Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa os dinheiros das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça – mesmo da velha –, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada livros ou cadernos ao filho que andava na instrução primária. Silvestre encolhia os ombros, não tinha nada com isso. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz. Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-se, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa: – Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão? – Homem! – clamava o Silvestre, de mão pacífica no ar. – Calma aí, se faz favor. Falei por falar. – E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu. – Faço o que posso – desabafou o outro. – E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre-diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é. A Palavra Mágica

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    A Palavra Mgica Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ningum. Se s vezes guerreava, com palavras

    azedas para c e para l, era apenas com os fundos da prpria conscincia. Vivo, sem filhos,

    dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquiet-lo era a maneira de alijar bem

    depressa os dinheiros das rendas. Semeava to facilmente as economias, que ningum via

    naquilo um sintoma de pena ou de justia mesmo da velha , mas apenas um desejo urgente

    de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derret-lo em

    vinho, que o Carmelo no comprava nada livros ou cadernos ao filho que andava na instruo

    primria. Silvestre encolhia os ombros, no tinha nada com isso. As moedas rolavam-lhe para

    dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no stio, a

    paz.

    Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colrica com o Ramos da

    loja. Fora o caso que ao falar-se, no correr da conversa, em trabalhadores e salrios, Silvestre

    deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada

    no era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discrdia, facilmente,

    abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia o Ramos, ferido

    de espora, atacou de cabea baixa:

    Que autoridade tem voc para falar? Quem lhe encomendou o sermo?

    Homem! clamava o Silvestre, de mo pacfica no ar. Calma a, se faz favor.

    Falei por falar.

    E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importncia. Sabe l voc o que a vida, sabe l nada.

    No tem filhos em casa, no tem quebreiras de cabea. Assim, tambm eu.

    Fao o que posso desabafou o outro.

    E eu a ligar-lhe. Realmente voc um pobre-diabo, Silvestre. Quem parvo quem o ouve.

    Voc um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem voc, Silvestre amigo?

    Um incuo, no fim de contas. Um incuo o que voc .

    A Palavra Mgica

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    Silvestre j se dispusera a ouvir tudo com resignao. Mas, palavra incuo, estranha ao seu

    ouvido montanhs, tremeu. E cautela, no o codilhassem por parvo, disse:

    Inoque ser voc.

    Tambm o Ramos no via o fundo ao significado de incuo. Topara por acaso a palavra, num

    dilogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de

    ferro, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o

    vocbulo ainda quente da refrega, a comunic-lo freguesia:

    Chamou-lhe tudo, o patife. S porque o pobre entendia que a jorna de um homem fraca.

    Que era um paz de alma. E um inoque.

    Que isso de inoque?

    Coisa boa no . Queria ele dizer na sua que Silvestre no trabalhava, que era um lombeiro,

    um vadio.

    Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a

    mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como no estava

    inteiramente previsto:

    Seu bbedo ordinrio. Seu inoque reles.

    Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha j tinta de carrasco. E desde a, inoque

    significou, como de ver, vadio e bbedo.

    Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para todas as

    molstias dos pobres. Pedra de queimar carbnculos, unguentos de encoirar, solda para

    costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo s primeiras experincias, as drogas

    falharam.

    Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas. E

    como o vocabulrio dos pobres era curto, algum se lembrou da palavra milagrosa do Ramos.

    Pelo que inoque significou trampolineiro ou ladro dos finos. Mas como havia ainda os ladres

    dos grossos, no foi difcil meter dentro da palavra mais um veneno.

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    Como, porm, as desgraas e a clera do povo pediam cada dia termos novos para se

    exprimirem, incuo foi inchando de mais significaes. Quando o Rainha deu um tiro de

    caadeira, num dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, inoque,

    por ser um devasso e um assassino de caadeira. Da que fosse fcil meter tambm no inoque o

    assassino de faca e a croia de porta aberta.

    Incuo dera volta aldeia, secara todo o fel das discrdias, escoara todo o dio da populao.

    A moca grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma terrvel, quase desleal, que s se

    usava quando se tinha despejado j toda a cartucheira de insultos. At que o Perdigo dos

    Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de feira,

    e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos chamejantes,

    perdido, j no quente da refrega, o taberneiro atirou-lhe o verbo da maldio. Houve quem

    achasse desmedida a vingana do homem. Perdigo arreou:

    Inoque ser voc.

    Tambm ele no sabia que veneno tinham despejado na palavra; mas, pelo sim pelo no,

    aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as peles da matana, e abalou com ele

    pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por l a descarregar o dio das gentes.

    At que um dia voltou a entrar na aldeia, agora pela ponte sul que dava para a Vila, e no pela

    ponte norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais

    estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando deitava um

    pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razes com o fregus. O dono do caneco

    correu uma mo amiga pelas costas do vagabundo:

    L ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostes.

    No me faa festas que eu no sou mulher, seu noque reles.

    E incuo significou um nome feio para um homem. Ento o ajudante, ou o que era, do

    caldeireiro, tentou deitar gua na fogueira.

    Cale-se tambm voc, seu noque ordinrio. A mim no me mata voc fome como fez a seu

    pai.

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    Porque incuo tambm queria dizer parricida. Ento o Ramos, que passava perto, tomou a

    palavra excomungada nas mos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que j l tinha

    dentro. Um cheiro ptrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de todos em redor.

    Com os dedos da memria, o caldeireiro foi tirando do ventre do vocbulo restos de velhos

    significados, maldies, dios, desesperos. Incuo era bbedo, ladro, incendirio,

    pederasta, e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como poa ou bolas. Para o calo da

    gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo, soube-se um dia que

    significava ainda escroque, souteneur, e mais.

    A aldeia em peso tremeu. Era possvel a qualquer apanhar com o palavro na cara e ficar

    coberto de peste. Eis porm que uma vez o filho do Gomes, que andava no colgio da Vila,

    insultado de inoque por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se noite de ver no

    dicionrio a fundura verncula da ofensa. Procurou inoque. No vinha. Procurou noque.

    Tambm no vinha. Furioso, buscou toa, quinoque, moque, soque. Nada. Quando a me o

    procurou, para ver se estudava, encontrou-o s marradas no dicionrio. Choroso, o rapaz

    declarou:

    O meu pagnon chamou-me inoque, me. Queria saber o que era. Mas no vem no dicionrio.

    No vejas! clamou a mulher, de braos no ar. Deixa l! No te importes!

    Mas que quer dizer?

    Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religio e mais coisas ms. No vejas!

    Comearam ento a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a injria de

    noque, inoque e finalmente de incuo, consoante a instruo de cada um. Como a palavra

    estropiada era um termo brbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a verso da injria em

    linguagem correta, sendo essa verso que instrua os autos.

    Chamou-me noque.

    Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?

    Pois queria dizer que eu era ladro.

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    E escrevia-se ladro. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos

    de assassino, devasso, ou bbedo. Ora um dia foi o prprio Bernardino da Fbrica que

    moveu um processo ao guarda-livros pela injria de incuo. Metida a questo nos trilhos

    legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada

    firme no agressor. Mas a, o juiz atirou uma palmada coxa curta, clamou:

    Homem! Agora entendo eu. Noque era incuo!

    E admitindo que o vocbulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num dicionrio recente, o

    ltimo modelo de ortografia e significados. Ento pasmou de assombro perante o escuro

    mistrio que carregara de plvora o termo mais benigno da lngua: incuo significava apenas

    que no faz dano, inofensivo. E ps o dicionrio aberto diante da ofensa de Bernardino. O

    industrial carregou a luneta, e longo tempo, colrico, exigiu do livro insultos que l no

    estavam.

    Nada feito repetia o juiz. O homem chamou-lhe, corretamente, pessoa incapaz de fazer

    mal a algum.

    Mas h a inteno ops o advogado, mais tarde, quando se voltou ao assunto.

    H o sentido que toda a gente liga palavra.

    Nada feito insistia o juiz. Incuo inofensivo, at nova ordem.

    Ento o advogado desabafou. Tambm ele sabia, como toda a gente culta, que incuo era um

    pobre-diabo de um termo que no fazia mal a ningum. Sabia-o, com um saber analtico, desde

    as aulas de Latim do seu Padre-Mestre. Mas no ignorava tambm que o dio humano nem

    sempre conseguia razes para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva,

    era um pendo desfraldado no pau alto do dio. Bernardino fora ofendido. Mas podia amanh

    querer ofender e as razes serem curtas para o seu rancor. Uma palavra informe, soprada de

    todos os furores, seria ento a melhor arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na

    dureza brbara do pau. Incuo era uma maravilha para a ltima defesa da racionalidade

    humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se todos os rancores e maldies.

    Incuo era um benefcio social. No havia que emendar-se a vida pelo dicionrio. Havia que

    forar-se o dicionrio a meter a vida na pele.

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    Cultive-se o incuo. Salvemo-lo, para nos salvarmos.

    Desgraadamente, porm, os receios do advogado eram vos. A vida, de facto, emendara o

    dicionrio. Como bola de neve, incuo rolara do dio alto dos homens e longo tempo levaria a

    derreter ao calor da compreenso e da justia. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter

    encontrado a correspondncia verncula da injria do pagnon, tentou reabilitar a palavra

    excomungada.

    Esbaforido, foi com o dicionrio aberto no stio maldito, da me para o pai, do pai para os

    amigos. Mas ningum o entendeu. Noque ou incuo era um antema

    verde de pus.

    Que importa o que dizem? clamou o herosmo do rapaz. Podem chamar-me inoque ou

    incuo, que no ligo. Agora sei o que quer dizer.

    Dias depois, porm, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe outra vez com o termo

    nefando. Toda a gente conhecia j a opinio do dicionrio. Mas o furor era sempre mais forte do

    que um simples livro impresso.

    Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes no dormiu, preocupado apenas em descobrir uma

    maneira eficaz de esborrachar o colega, para ter mais tento na lngua.

    Verglio Ferreira, A Palavra Mgica, in Contos, Bertrand Ed.