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Valeria Zeidan Rodrigues PANDEIROS: ENTRE A PENÍNSULA IBÉRICA E O NOVO MUNDO, A TRAJETÓRIA DOS PANDEIROS AO BRASIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- -graduação em Educação, Arte e Historia da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Educação, Arte e Historia da Cultura. Orientadora: Prof a Dr a Márcia Tiburi São Paulo 2014

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Valeria Zeidan Rodrigues

PANDEIROS: ENTRE A PENÍNSULA IBÉRICA E O NOVO MUNDO, A TRAJETÓRIA DOS

PANDEIROS AO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós--graduação em Educação, Arte e Historia da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Educação, Arte e Historia da Cultura. Orientadora: Profa Dra Márcia Tiburi

São Paulo 2014

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R696p Rodrigues, Valeria Zeidan.

Pandeiros : entre a Península Ibérica e o Novo Mundo : a trajetória dos pandeiros ao Brasil / Valeria Zeidan Rodrigues. – 2014.

160 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.

Referências bibliográficas: f. 66-70.

1. Pandeiros. 2. Frame drums. 3. Península Ibérica. 4. Idade Média. 5. Brasil colônia. 6. Árabes. 7. Judeus. 8. Cristãos. I. Título.

CDD 786.95

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VALERIA ZEIDAN RODRIGUES

PANDEIROS: ENTRE A PENÍNSULA IBÉRICA E O NOVO MUNDO, A TRAJETÓRIA DOS

PANDEIROS AO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- -graduação em Educação, Arte e Historia da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Educação, Arte e Historia da Cultura.

Aprovada em: 11 de agosto de 2014, com distinção e louvor.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________ Profa Dra Márcia Tiburi – Orientadora

Universidade Presibiteriana Mackenzie

___________________________________________________________ Profa Dra Elcie Masini

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________ Profa Dra Yara Caznok

Instituto de Artes – Univesidade Estadual Paulista

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A  José de Sousa Rodrigues

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AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho foi possível graças ao apoio de muitas pessoas, a quem deixo meu mais sincero agradecimento, em especial:

A Márcia Tiburi, professora dedicada e minha querida orientadora, por ter aceito percorrer comigo essa trajetória, acreditando no trabalho desde o início.

Ao Prof. Dr. Carlos Stasi, pela atenção a meu tema de pesquisa e pela orientação bibliográfica.

A Magda Pucci, querida companheira de pesquisas e descobertas musicais, que faz do Mawaca um laboratório sonoro vivo e atuante, pela bibliografia sugerida, leitura cuidadosa de meus textos e pelos comentários criteriosos.

A Gabriel Levy, companheiro de muitos sons, pela atenção da leitura e pelos comentários ao texto.

A Eduardo Vessoni, pela atenção e dedicação na realização de algumas das fotos deste trabalho.

Aos queridos companheiros do Programa Guri Santa Marcelina, em especial a Giuliana Frozoni, Ricardo Appezzato e Marta Bruno, por todo o incentivo, apoio e inspiração.

À querida amiga Paula Tura, companheira de vida acadêmica e pessoal, que sempre e incondicionalmente esteve presente.

A minha mãe, Maria Yeda Zeidan Rodrigues, e a meu pai, José de Sousa Rodrigues, pelo exemplo de perseverança e pelo apoio incondicional a minhas escolhas de vida, profissionais e acadêmicas.

A meu querido professor Yshai Afterman, pelas criativas, precisas e inspiradoras aulas de percussão oriental, riq, bendir e tof, em lap style e up style, que tanto concorreram para minha compreensão prática e musical dos frame drums.

Aos pandeiristas, percussionistas e frame drumers, cuja dedicação ao ofício musical tanto me encanta, inspira e motiva a continuar pesquisando, estudando e tocando.

A todos, obrigada por tudo.

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RESUMO

Este trabalho faz um levantamento histórico e cultural da trajetória dos

pandeiros desde a Idade Média, na Península Ibérica, até os primeiros duzentos

anos do período colonial brasileiro.

Palavras-chave: Pandeiros. Frame drums. Idade Media na Península Ibérica.

Brasil colônia. Árabes. Judeus. Cristãos.

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ABSTRACT

This work aims at the historical and cultural survey of tambourines in its path to

Brazil in a period from the Middle Age in the Iberian Peninsula to the first two

hundred years of the Brazilian colonial period.

Keywords: Tambourines. Frame drums. Midle Age in the Iberian Peninsula.

Colonial Brazil. Arabs. Jews. Christians.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES*

Figura 1 Frame drums de diferentes nacionalidades ................................................... 16 Figura 2 Conga cubana ................................................................................................ 22 Figura 3 Conga sem corpo ressonador – vista frontal .................................................. 22 Figura 4 Conga sem corpo ressonador – vista posterior .............................................. 23 Figura 5 Conga sem corpo ressonador – vista lateral .................................................. 23 Figura 6 Conga tradicional e a versão sem o corpo ressonador ................................... 23 Figura 7 Frame drum quadrado, século XII ................................................................ 32 Figura 8 Frame drum redondo com platinelas, século XIV ........................................ 32 Figura 9 Estatueta fenícia, 1000 a.C. ........................................................................... 34 Figura 10 Leopard dance – Çatal Huyuk, 5800 a.C. ...................................................... 34 Figura 11 Mulher árabe tocando um frame drum redondo, século XIII ........................ 37 Figura 12 Vaso de Tavira e detalhe destacando um tocador de frame drum quadrado,

século XII ......................................................................................................

39 Figura 13 Hagadá de Sarajevo, século XIV ................................................................... 41 Figura 14 Página 14 da Hagadá de Ouro, século XIV e detalhe da Hagadá de Ouro .... 41 Figura 15 Hagadá de Castilha, século XIV .................................................................... 42 Figura 16 Hagadá Kaufmann, século XIV ..................................................................... 42 Figura 17 Vaso grego, Ática, 340 a.C.-330 a.C. ............................................................ 44 Figura 18 Homem tocando frame drum quadrado, século XIII ..................................... 46 Figura 19 Miriam e outras mulheres judias tocando frame drums, cerca de 960 d.C. ..... 47 Figura 20 Mulher tocando frame drum redondo com platinela, século XIV ................. 49 Figura 21 Johann Nieuhoff. Negers Speelende op KalabaSen, 1682. Gravura ............. 58 Figura 22 Coroação da rainha negra na Festa de Reis, 1776 ......................................... 59 Figura 23 Carlos Julião. Coroação de um rei nos festejos de Reis, 1776 ...................... 59 Figura 24 Adufe e pandeiro juntos – detalhe da figura 22 ............................................. 60 Figura 25 Adufe e pandeiro juntos – detalhe da figura 23 ............................................. 60 Figura 26 Pandeiro de choro – vista frontal ................................................................... 72 Figura 27 Pandeiro de choro – vista posterior ............................................................... 72 Figura 28 Pandeiro de choro – vista lateral .................................................................. 72 Figura 29 Pandeirão do Maranhão – vista frontal .......................................................... 75 Figura 30 Pandeirão do Maranhão – vista posterior ...................................................... 75 Figura 31 Pandeirão do Maranhão – vista lateral .......................................................... 75 Figura 32 Tamborim – vista frontal ............................................................................... 76 Figura 33 Tamborim – vista lateral ................................................................................ 77 Figura 34 Tamborim e pandeiro da Congada José Alexandre, da cidade de Santo

Antônio do Monte, MG .................................................................................

77 Figura 35 Tamborins da Congada Congo Real de Luz, da cidade de Luz, MG ............ 78 Figura 36 Tar (1) ............................................................................................................ 81 Figura 37 Tar (2) ............................................................................................................ 81 Figura 38 38. Bodhrán tradicional – vista posterior ...................................................... 83 Figura 39 Bodhrán mais moderno – vista frontal .......................................................... 83 Figura 40 Bodhrán mais moderno – vista posterior ....................................................... 83 Figura 41 Baqueta para tocar bodhrán ........................................................................... 83 Figura 42 Bendir – vista lateral/frontal .......................................................................... 84 Figura 43 Bendir – vista lateral/posterior ...................................................................... 84

* As fotos de 69 a 74 foram tiradas por Eduardo Vessoni. As demais são do acervo pessoal da autora ou foram tiradas por ela no Festival Tamburi Mundi.

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Figura 44 Riq – vista frontal .......................................................................................... 85 Figura 45 Riq – vista posterior ....................................................................................... 85 Figura 46 Riq – vista lateral ........................................................................................... 85 Figura 47 Mazhar – vista frontal/lateral ........................................................................ 86 Figura 48 Mazhar – vista posterior/lateral ..................................................................... 86 Figura 49 Doyha – vista frontal ..................................................................................... 87 Figura 50 Doyha – vista posterior .................................................................................. 87 Figura 51 Doyha – vista posterior/lateral ....................................................................... 87 Figura 52 Daf – vista frontal .......................................................................................... 89 Figura 53 Daf – vista posterior ...................................................................................... 89 Figura 54 Daf – vista lateral ........................................................................................... 89 Figura 55 Adufe – vista frontal ....................................................................................... 91 Figura 56 Adufe – vista lateral ...................................................................................... 91 Figura 57 Tamburello – vista frontal ............................................................................. 92 Figura 58 Tamburello – vista posterior .......................................................................... 92 Figura 59 Tamburello – vista lateral .............................................................................. 92 Figura 60 Tammorra tradicional .................................................................................... 93 Figura 61 Kanjira – vista frontal ................................................................................... 94 Figura 62 Kanjira – vista frontal/lateral ........................................................................ 94 Figura 63 Pandereta gallega – vista frontal .................................................................. 95 Figura 64 Pandereta gallega – vista frontal/lateral ....................................................... 95 Figura 65 Pandeirão do Maranhão, daf, adufe, doyra, bendir, tamburello, riq,

pandereta gallega, pandeiro brasileiro, kanjira e tamborim .........................

96 Figura 66 Três figuras femininas em baixo relevo, Egito, 1185-1070 a.C. ................... 98 Figura 67 Mulher tocando daf, Pérsia, século XVII ...................................................... 98 Figura 68 Pintura em cerâmica greco-romana, 400-380 a.C. ........................................ 99 Figura 69 Bendir em posição vertical ou tradicional, também conhecida como Up

Style, Oriental Grip, Traditional Grip ou One Hand Under .........................

100 Figura 70 Riq em posição vertical ................................................................................. 101 Figura 71 Riq em skin position ...................................................................................... 101 Figura 72 Pandeiro brasileiro em posição horizontal ou European Grip, New Grip e

Thumb Over ...................................................................................................

101 Figura 73 Tar em posição sentada ou Lap Style, Knee position ou Sitting Position ..... 102 Figura 74 Tar em posição com mãos livres ou Free Hand Position ............................. 103 Figura 75 Frame drums apoiados por ferragens e suportes. Apresentação de Marla

Leigh durante o Festival Tamburi Mundi 2013 .............................................

104 Figura 76 Frame drums sustentados por ferragens e suportes. Tamburi Mundi

Festival 2013 .................................................................................................

104 Figura 77 Bula proposta por Glen Velez nas primeiras edições de seus métodos de

ensino .............................................................................................................

107 Figura 78 Exemplo da leitura rítmica proposta por Glen Velez em seus primeiros

métodos ..........................................................................................................

107 Figura 79 Exemplo dos métodos mais recentes de Glen Velez, que procuram incluir a

escrita ocidental .............................................................................................

108 Figura 80 Exemplo da bula que orienta a identificar os sinais musicais com os sons

do pandeiro brasileiro no método de Luiz Roberto Sampaio .....................

108 Figura 81 Exemplo de escrita musical para pandeiro no método de Sampaio .............. 109

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SUMÁRIO

ANTECEDENTES ............................................................................................... 10

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 Frame drums e pandeiros: contextualização ........................................................

15

1.1 Os frame drums na classificação dos instrumentos musicais ............................... 19

CAPÍTULO 2 Situação dos frame drums e pandeiros da Península Ibérica na Idade Media, antes de sua chegada ao Novo Mundo ..................................................................

25 2.1 História, música, sociedade e cultura na Península Ibérica medieval ................... 25

2.1.2 Conquista árabe da Península Ibérica ................................................................... 27

2.1.3 Panorama da cultura árabe frente à europeia durante a Idade Média ................... 28

2.2 Frame drums na Península Ibérica durante a Idade Media .................................. 31

2.2.1 Frame drums na Antiguidade ............................................................................... 33

2.2.2 Frame drums entre muçulmanos na Península Ibérica medieval ......................... 36

2.2.3 Frame drums entre judeus .................................................................................... 39

2.2.4 Frame drums no cristianismo medieval ................................................................ 43

2.2.5 Panderos e pandeiros na Idade Média .................................................................. 47

CAPÍTULO 3 Os pandeiros durante os primeiros anos de colonização no Brasil .......................

50

3.1 O pandeiro como herança árabe ............................................................................ 51

3.2 O pandeiro sob a influência dos cristãos novos .................................................... 54

3.3 O pandeiro como instrumento na catequização .................................................... 56

3.4 O pandeiro na iconografia brasileira colonial e a presença de escravos negros ... 57

COMENTÁRIOS FINAIS .................................................................................... 62

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 66

ANEXO A ............................................................................................................. 71

ANEXO B ............................................................................................................. 97

ANEXO C ............................................................................................................. 105

ANEXO D ............................................................................................................. 111

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ANTECEDENTES

Ao leitor que se depara com o título Pandeiros: entre a Península Ibérica e o Novo

Mundo, a trajetória dos pandeiros ao Brasil, pode parecer que a autora tem profunda ligação

com o pandeiro brasileiro. Na verdade, esta conexão existe por meio do grande interesse pela

música brasileira e por toda a variedade de elementos que a compõe como gêneros, ritmos,

melodias e instrumentos, dentre estes, sim o pandeiro. Na minha formação e atuação como

percussionista não me considero uma pandeirista como assim se reconhecem alguns

percussionistas que têm o pandeiro como seu principal instrumento de atuação musical.

Minha experiência como percussionista passou, primeiramente, por uma formação acadêmica

onde alguns instrumentos de percussão como tímpanos, marimba, vibrafone, entre outros que

compõem a formação clássica em uma orquestra ou conjunto de música de câmara, são

propostos como o principal conjunto instrumental a ser estudado e desenvolvido. Esta

formação meio “às avessas” do que normalmente acontece com um percussionista brasileiro

que hoje encontra na tradição oral e escrita os meios para se desenvolver no chamado

“instrumental de percussão popular”, me possibilitou desenvolver uma formação musical

sólida e um pensamento aberto a uma grande diversidade de repertório e gêneros, além da

curiosidade (ou muitas vezes da necessidade) de entrar em contato com um instrumental

bastante variado, a depender da solicitação que alguns compositores fazem em suas obras

escritas para percussão. Desta forma fui conhecendo o grande universo de instrumentos que

compõem a percussão, não apenas o instrumental clássico, mas também os instrumentos de

outras culturas, e descobrindo interesses e afinidades por alguns deles.

Quando, em 2007, fui convidada a participar do lançamento do primeiro CD do grupo

Mawaca - grupo dedicado à pesquisa e execução do repertório multicultural em conexão com

a música brasileira -, meu interesse pela música e pelo instrumental de percussão de outras

culturas aumentou progressivamente. Eu que havia cursado o bacharelado em percussão, com

uma formação bastante técnica voltada ao repertório erudito, naquele momento tive minha

participação restrita à execução das partes de vibrafone, mas o contato com o imenso universo

de sonoridades e timbres de tantos outros instrumentos de percussão que chegavam até mim

por meio de gravações, vídeos ou diretamente pelas mãos de outros percussionistas, logo me

despertou a curiosidade por me experimentar percussionista de alguns instrumentos pouco

usuais no Brasil como a tabla indiana, o derbaq árabe, as castanholas marroquinas e

espanholas e, finalmente, os pandeiros mediterrâneos e orientais, reconhecidos genericamente

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como frame drums, que tanto me impactaram e que continuam a despertar em mim interesse e

dedicação.

As dificuldades em adquirir estes instrumentos eram tão grandes quanto encontrar

professores que me ensinassem a tocá-los. Assim, em cada viagem internacional ou a cada

encontro com percussionistas em excursão pelo Brasil, fui adquirindo instrumentos e

conhecimento, sempre insuficientes aos olhos da necessidade infinita que a prática musical

exige dos músicos.

Aos poucos meu interesse se voltava para o que a mim se assemelhava a uma grande

família de pandeiros espalhados pelo mundo, e crescia a cada nova descoberta de um modelo

diferente destes instrumentos, vindo geralmente de uma região distante e com uma técnica

específica. Passei a incluir os pandeiros brasileiros nesta genealogia e a tecer comparações e

relações entre os frame drums orientais, mediterrâneos e os pandeiros brasileiros, buscando

relacioná-los a técnicas de execução, organologia, formas de segurar e sustentar o

instrumento, além do contexto histórico e cultural que os envolve.

Todo este interesse pelos frame drums me levou a um aprendizado musical

desenvolvido praticamente de forma autodidata, construído durante os últimos treze anos de

dedicação, pesquisa e estudo que me levaram a atuar em diversos grupos musicais passando

por repertórios de música antiga, árabe, judaica, região dos Bálcãs e Mediterrâneo, levando-

me também à criação do duo de voz e percussão “Fogueira das Rosas” em que pandeiros

brasileiros e frame drums mediterrâneos e orientais são protagonistas instrumentais no

acompanhamento de canções de diferentes gêneros e culturas que se mesclam.

Por fim, toda esta prática e o desejo de aprofundar meu conhecimento sobre as origens

ibéricas do pandeiro brasileiro me levaram a organizar algumas ideias por meio de uma tese

de mestrado, a mesma que se inicia com esta apresentação.

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12

INTRODUÇÃO

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas

pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz,

mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.

Giorgio Agamben

Quando hoje nos deparamos com alguém tocando um pandeiro em uma roda de choro,

numa embolada, nos palcos de um concerto de orquestra ou show de música pop, raramente

nos damos conta do percurso histórico e geográfico que foi preciso percorrer para que este

instrumento chegasse ao Brasil do século XXI sendo utilizado por percussionistas de distintas

formações que o tocam em diferentes gêneros musicais e nos mais variados espaços públicos

e contextos socioculturais.

Neste longo trajeto que provavelmente se inicia no período neolítico, o pandeiro

brasileiro chega ao século XXI como membro de um conjunto de instrumentos musicais

considerado um dos mais antigos da história, testemunho de muitas mudanças sociais,

políticas e religiosas ocorridas ao longo de séculos entre diferentes povos e países.

Em uma visão mais dinâmica e moderna, a Etnomusicologia procura reconhecer que o

estudo dos instrumentos, voltado para um olhar mais abrangente que considere também o

contexto social além dos aspectos puramente organológicos, pode contribuir para uma

compreensão do desenvolvimento humano em seus aspectos sociais, históricos, culturais e,

claro, musicais, visto que a música, em suas diferentes possibilidades de manifestações,

sempre esteve presente com a humanidade.1

Imigrando da Península Ibérica e adaptando-se ao novo mundo, os pandeiros são, com

o decorrer da história, aceitos e adotados nas novas sociedades formadas pelo convívio entre

conquistadores e conquistados, ajudando hoje a contar parte da história da formação cultural

de alguns povos do chamado Novo Mundo, entre estes, o povo brasileiro.

O título desta dissertação leva ao plural o substantivo “pandeiro” por acreditar que

mais de um pandeiro, em número e gênero, aportou ao Brasil, e como forma de demonstrar a

1 Assim procura nos esclarecer Margaret Kartomi quando cita os estudos de Norlind e Izikowitz voltados à classificação dos instrumentos musicais. KARTOMI, Margaret J. On Concepts and Classifications of Musical Instruments. Chicago: Chicago Press, 1990, p. 177.

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diversidade de exemplares deste instrumento que provavelmente estiveram presentes no

território brasileiro desde o período colonial, trazidos pelos primeiros colonizadores, também

estes muito distintos culturalmente conforme veremos mais adiante. Este é, portanto, o motivo

pelo qual o substantivo “pandeiro” é levado ao plural no título desta dissertação.

O pandeiro brasileiro não pode ser reconhecido apenas por um instrumento, mas por

vários, diferentes em nomes, formas, tamanhos e maneiras de se tocar. Praticamente um

mundo de variedades “pandeirísticas” habitando todas as regiões deste país.

Atualmente o pandeiro é reconhecido no Brasil como um dos instrumentos musicais

de maior identidade nacional, encontrado de norte a sul do país e utilizado em diferentes

manifestações culturais e contextos sociais. Este instrumento pode ser conhecido por

diferentes nomes, possuir tamanhos e formas de construção variadas, ser sustentado e tocado

de diversas maneiras e, ainda assim possui a mesma matriz ibérica.

Visto o tema central deste trabalho estar inserido no patrimônio de cultura material e

imaterial, sendo composto por uma rica teia de sons, formas e histórias, será necessário a

interação de algumas áreas de conhecimento que permitam a composição desta dissertação.

Para tanto, com o objetivo de traçar a trajetória que trouxe os pandeiros da Península Ibérica

ao Brasil durante o período colonial, será necessário contar com conteúdos relacionados à

História Cultural, História da Música, Iconografia Musical, Musicologia e Etnomusicologia.

A forma proposta para a apresentação deste trabalho será atemporal, dividida por três

capítulos que apresentarão conteúdos relacionados às distintas áreas de conhecimento que

servirão de suporte para a estruturação e embasamento do trabalho.

Desta forma, o primeiro capítulo apresenta algumas reflexões que nos levam a uma

compreensão acerca do que podemos atualmente considerar como frame drums e pandeiros a

partir de aspectos étnicos, culturais e organológicos propostos principalmente por Kurt Sachs

e Margaret Kartomi.

O segundo capítulo busca conhecer o passado histórico do pandeiro por meio de um

levantamento sobre a evolução dos frame drums e pandeiros na Península Ibérica medieval,

local e época imediatamente anteriores à vinda destes instrumentos ao Brasil por meio dos

colonizadores portugueses, buscando retratar aspectos sociais e culturais em que estes

instrumentos estiveram inseridos .

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14

O terceiro capítulo apresenta conexões e relações entre os pandeiros ibéricos dos

séculos XV e XVI e os pandeiros encontrados nos primeiros duzentos anos do período

colonial brasileiro, buscando referências literárias e iconográficas que ajudem a localizar o

pandeiro neste período em território brasileiro.

Os comentários finais apresentam uma síntese dos conteúdos abordados em cada

capítulo, conectando-os e buscando apontar alguns desdobramentos que relacionem os

pandeiros e frame drums do passado com alguns de seus descendentes brasileiros

contemporâneos

Os anexos A, B, C e D complementam o trabalho de pesquisa apresentando um

panorama geral e atual sobre alguns aspectos acerca dos frame drums e pandeiros, buscando

conectar e contemporaneizar estas informações com o conteúdo apresentado nos capítulos

anteriores. Desta forma, o Anexo A nos apresenta a uma seleção de pandeiros e frame drums

mais utilizados atualmente no Brasil e em diversos países, o Anexo B nos introduz a

diferentes possibilidades de sustentação para execução de frame drums e pandeiros, o Anexo

C nos apresenta a algumas formas atuais de aprender e ensinar a tocar os frame drums e

pandeiros, e o Anexo D nos põe em contato com as ideias e reflexões de alguns

percussionistas e pandeiristas brasileiros sobre a sua relação com os pandeiros e frame drums.

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15

CAPÍTULO 1

Frame drums e pandeiros: contextualização

Discorrer sobre os pandeiros brasileiros no século XXI exigiria investigações que

considerassem, primeiramente, sua presença nas manifestações culturais em território

nacional, analisando critérios como as diversas possibilidades de sustentação do instrumento,

técnicas de execução, sua relevância naquele contexto, os vários materiais usados em sua

construção, que pessoas tocam este instrumento e de que forma o aprenderam, por quais

nomes o instrumento é reconhecido, entre tantas outras questões relevantes.

Seria necessário considerar, ainda, o pandeiro presente no ambiente urbano e em

diversos gêneros como a música pop, MPB, instrumental, erudita contemporânea, choro,

samba, entre outros e sob muitos critérios a serem levantados.

Discorrer sobre o pandeiro hoje seria como mergulhar profundamente na cultura deste

país, pois este é um instrumento presente em quase todas as manifestações e gêneros em todo

o território brasileiro, um dos mais representativos instrumentos da identidade nacional,

mereceria uma tese à parte.

Todos os itens apresentados anteriormente, de grande relevância, não serão abordados

neste capítulo e nem tampouco nesta dissertação. A contextualização aqui proposta parte de

uma investigação contemporânea que leva em consideração os pandeiros brasileiros em

relação a alguns instrumentos de outras culturas que, por possuírem características

organológicas muito próximas, são agrupados em uma categoria conhecida por frame drums.

Os frame drums são reconhecidos por apresentarem em sua estrutura física uma

membrana esticada e presa a um aro, com um corpo ressonador de profundidade menor do

que o raio de sua membrana. Nesta categoria se enquadram instrumentos de diversos países,

especialmente destacados nesta dissertação os do Oriente Médio e Mediterrâneo, com

características adicionais peculiares, diferentes diâmetros para as membranas, construídos por

materiais distintos, utilizados em diferentes manifestações culturais e sociais, com técnicas

distintas de sustentação e execução, porem, mantendo-se todos identificados pelo mesmo

critério que os qualifica como frame drums.

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1. Frame drums de diferentes nacionalidades

A expressão de língua inglesa frame drums é, portanto, comumente usada para

representar o coletivo destes instrumentos e esta vem sendo também difundida entre outras

culturas que a adotam na falta de outra expressão ou palavra de mesmo sentido em seus

idiomas de origem.

Em português, frame drums poderia ser traduzido por tambores de moldura ou

tambores emoldurados, tambores enquadrados, tambores de armação ou ainda tambores de

aro. Uma destas traduções poderia representar a ideia do coletivo destes instrumentos a partir

da identificação de sua forma estrutural, mas nenhuma delas encontra espaço no uso comum e

cultural do idioma português.

No universo da prática musical brasileira nunca se ouviu alguém dizendo “eu vou

tocar um tambor emoldurado” ou algo semelhante, o que se escuta corriqueiramente é “eu vou

tocar pandeiro”. O contexto em que esta frase é dita é que irá identificar que pandeiro é este

que será tocado, se é um pandeiro de choro ou pandeiro de samba, por exemplo, dado o

caráter coletivo e abrangente da palavra pandeiro em nosso idioma.

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Na língua portuguesa falada no Brasil não se encontra, portanto, uma expressão

equivalente à ideia apresentada em língua inglesa para frame drums, o que nos leva, pouco a

pouco, a adotarmos também a expressão estrangeira quando nos referimos a este conjunto

instrumental, especialmente ao se remeter a esta categoria envolvendo instrumentos

estrangeiros.

Na ibérica Espanha é possível encontrarmos, como tradução para frame drums, a

expressão tambores de marco. Em Portugal, o pesquisador Ernesto Veiga de Oliveira (2000)

usa a expressão tambores de caixilho baixo para se referir a esses instrumentos, enquanto Rui

Silva (2012, p. 13), também português, faz a seguinte afirmação em sua dissertação de

mestrado: “Do nosso ponto de vista, não é necessário traduzir porque a expressão frame

drums já existe em português: Adufe ou Pandeiro”, e complementa esta afirmação atestando

que “em Espanha usa-se o termo pandero para frame drums” (Ibidem).

Após apresentarmos algumas definições e utilização para o termo frame drums,

passemos agora à palavra pandeiro. Este vocábulo encontra diversas fontes de definições,

todas complementares, mas nenhuma absolutamente esclarecedora e abrangente.

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antonio Geraldo da Cunha

(2012, p. 473), identifica a origem castelhana (pandero), o latim tardio pandorius, variante de

pandura, derivado do grego pandourion, pandoûra, e apresenta a seguinte descrição para o

verbete pandeiro: “instrumento musical de percussão feito de pele, que se tange com a mão”.

O Dicionário de Percussão, de Mário Frungillo (2002, p. 244), descreve o verbete

pandeiro: “nome de provável origem no latim tardio Pandorius, derivado do grego Pandoura

ou Pandouriun. É um “tamborete” com “platinelas” difundido praticamente em todo o

mundo”.

O Dicionário Grove de Música (SADIE, 1994, p. 697) define pandeiro como

“Pequeno tambor de fuste estreito com vãos laterais, onde soalhas ou guizos são presos, e

com membrana em um dos lados”.

Mário de Andrade (1989, p. 381) descreve o pandeiro como “Instrumento de

percussão, constituído por um aro de madeira, com soalhas – rodelas de metal -, e uma das

bases recoberta ou não por uma pele”.

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Estas definições nos dão uma ideia da abrangência e distanciamento temporal e

geográfico que envolve a palavra pandeiro, sendo reconhecida desde a antiguidade clássica e

apresentando o instrumento em larga escala territorial.

A partir deste levantamento e análises poder-se-ia pensar em adotar, neste trabalho, a

palavra portuguesa pandeiro como tradução para frame drums, representando o coletivo desta

categoria de instrumentos em território brasileiro e fora deste, abrangendo seus pares de

outras culturas e nacionalidades.

Apesar do aparente etnocentrismo que envolve uma opção como esta, a intenção seria

apenas a de reforçar o sentido literal de uma palavra que, mais do que apresentar um

instrumento nacional, serviria de tradução para o termo inglês frame drums, representando um

coletivo.

Caso levássemos em consideração apenas o aspecto organológico da palavra pandeiro,

talvez pudéssemos seguir adiante com a opção de usá-la como tradução para frame drums.

Porém, esta escolha foi descartada por entendermos que a palavra pandeiro representa mais do

que o formato de um instrumento, ela nos remete ao pandeiro da cultura brasileira, aos

pandeiros que são muitos, diversos e diferenciados, e por este motivo tem pouca

funcionalidade como termo genérico fora deste contexto nacional.

Para além da organologia, e independente de seu uso generalizado em momentos

históricos em países como Portugal e Espanha, conforme já foi citado, a palavra pandeiro está

hoje relacionada à cultura brasileira, ligada a manifestações, gêneros e técnicas próprias que

não poderiam ser transportadas como uso comum aos diversos instrumentos de outras culturas

tão distintas.

A falta, portanto, de uma palavra em português que represente o coletivo de

instrumentos de percussão de formato redondo, quadrado, triangular ou sextavado, com a

membrana esticada a uma estrutura de altura menor que seu raio, e que não se relacione a uma

cultura específica mas que abarque várias culturas, nos leva à opção de adotar nesta

dissertação o termo frame drums toda vez que quisermos nos referir a esta categoria de

instrumentos, agrupados pela classificação organológica, sem a intenção de identificá-los ou

relacioná-los a uma determinada cultura. Quando quisermos nos referir a um frame drum

específico, este será identificado pelo nome e cultura que o representa. O conteúdo dos Anexo

A foi elaborado na intenção de apresentar alguns deste instrumentos, nomeando-os e

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relacionando-os a suas culturas, identificando-os por algumas de suas peculiaridades de

forma, sustentação, execução e utilização.

Margaret Kartomi, etnomusicóloga especialista em organologia e professora na

universidade de Melbourne, apresenta-nos importantes considerações acerca de classificações

sobre instrumentos e termos empregados de forma genérica. No Prólogo do seu livro On

Concepts and classifications of musical instruments, Margaret chama a atenção para o

conceito de instrumentos como um fenômeno cultural, onde cada sociedade, ou época, atribui

valores e significados distintos para seus instrumentos musicais. As formas de classificação

dos instrumentos musicais que observam e elegem aspectos que são especialmente relevantes

culturalmente para o organizador do esquema classificatório, desconsiderando aspectos

sociais e culturais em que os instrumentos estão envolvidos, revelam-se, nos dias de hoje,

etnocêntricas e hierarquizantes. Como exemplo, ela cita:

[...] os dados conceituais selecionados em que, digamos, um escritor holandês baseia a classificação dos instrumentos de gamelão javanês seria naturalmente diferente do conceito em que um músico javanês construiria um esquema, embora ambos pudessem, inicialmente, selecionar a partir do mesmo conjunto de ideias a respeito do conjunto javanês. Inevitavelmente, o escritor holandês veria as coisas de maneira parcialmente eurocêntrica, à luz de seu próprio fundo musical e educacional, enquanto o músico javanês, se não tiver sido exposto a influências estrangeiras primárias ou secundárias, baseará sua classificação num conceito “javacêntrico” (KARTOMI, 1990, p. xv, tradução nossa).2

1.1 Os frame drums na classificação dos instrumentos musicais

Os instrumentos musicais passaram por diversas formas de classificação ao longo da

história, obedecendo aos valores e características de cada época de acordo com critérios

relacionados a aspectos sociais, políticos, religiosos, científicos e tecnológicos representativos

de cada período e cultura.

2 “[...] the selected conceptual data on which, say, a Dutch writer bases a classification of Javanese gamelan instruments would naturally be different from the concept on which a Javanese musician would construct a scheme, although both may initially select from the same pool of Javanese ideas about the ensemble. The Dutch writer would unavoidably view things in a partly Eurocentric way in the light of his or her own musical and educational background, while the Javanese musician, if totally unexposed to primary or secondary foreign influences would base his or her classification on a Javacentric concept” (KARTOMI, 1990, p. xv).

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A necessidade de organização do pensamento humano fez com que, ao redor do

mundo, cada cultura desenvolvesse seu próprio meio de classificar os instrumentos ou

conjuntos instrumentais, fossem estas culturas de tradição oral ou letrada.

Desta forma, muitos esquemas de classificação instrumental já foram propostos no

decorrer de períodos históricos e novas propostas continuam a ser elaboradas e apresentadas.

Outros, mais relacionados às culturas de tradição oral, estão sendo ainda percebidos e

estudados por pesquisadores.

De acordo com o exposto, não é possível que haja um único esquema correto de

classificação dos instrumentos, sempre há que se considerar os aspectos que são relevantes

para cada cultura, comunidade, momento histórico, ou até mesmo os interesses de quem

organiza e classifica as informações assim como de quem as interpreta.

É certo que alguns esquemas de classificação instrumental foram mais aceitos, ou

difundidos, do que outros. Nesse caso se enquadra a classificação proposta por Eric

Hornbostel e Curt Sachs (1961) apresentada na primeira metade do século XX e que continua

sendo referência para muitas pesquisas.

Nesse esquema, denominado Systematik der Musikinstrumente,3 os autores adotam

como principal critério de classificação a forma com que o som é produzido a partir de uma

fonte sonora, ou seja, a natureza do elemento que se põe em vibração para propagar o som.

De acordo com estes autores, os instrumentos musicais são divididos sob critérios

organológicos em quatro categorias: cordofones, aerofones, idiofones e membranofones.

Os cordofones são compostos por instrumentos em que cordas representam o material

posto em vibração para a produção sonora. Muitas são as possibilidades de gerar esta vibração

(friccionando ou beliscando) assim como são variados os materiais utilizados para a

confecção destas cordas (tripa animal, aço ou náilon) e o formato e material de sua caixa de

ressonância. Esta categoria engloba instrumentos muito conhecidos no Brasil como o violão e

o violino, entre outros representantes de culturas e épocas distantes como a cítara indiana e o

alaúde barroco.

3 Usou-se neste trabalho uma tradução para o inglês, de Hornbostel e Sachs (1961).

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Os aerófonos são popularmente identificados por instrumentos de sopro, onde o corpo

do instrumento é posto em vibração a partir de uma corrente de ar produzida por meio do

sopro do instrumentista.

Os idiofones compõem a categoria mais complexa, contendo os instrumentos mais

primitivos em que o corpo do instrumento representa o próprio elemento vibratório, podendo

ser estes compostos por percussão, beliscados, de sopro ou fricção. Como exemplo desta

categoria podemos citar o berimbau, o ato de bater palmas e o reco-reco.

Os membranofones podem ser facilmente identificados por tambores. Compostos por

uma ou duas membranas feitas geralmente por pele animal ou, nas versões mais

contemporâneas, por uma membrana sintética, estes instrumentos possuem uma caixa de

ressonância que pode variar em sua forma, material e tamanho, e onde a membrana está

diretamente fixada. Quando a caixa de ressonância destes membranofones possui altura

superior ou igual ao diâmetro da membrana é chamada de caixa tubular. De maneira inversa,

quando a caixa de ressonância é composta por uma altura inferior ao raio da membrana é

conhecida por caixilho, ou mais popularmente para os dias de hoje, como frame drums.

Eric Hornbostel e Curt Sachs (1961, p. 18, tradução nossa) descrevem os frame drums

dizendo que “a profundidade do corpo não excede o raio da membrana” e apresentam

algumas categorias: “[...] 211,31 frame drum sem alça; 211,311 frame drum com uma pele;

211,312 frame drum com pele dupla; 211,32 frame drum com alça (uma baqueta é presa à

armação de acordo com o seu diâmetro); 211,321 frame drum com pele simples e alça ,

211,322 frame drum com pele dupla e alça”.

Hornbostel e Sachs publicaram sua primeira versão do método de classificação de

instrumentos, o Zeitschrift für Musik, em 1914, na intenção de criar um esquema que pudesse

organizar por categorias e níveis, quantos fossem necessários, todos os instrumentos musicais

existentes no mundo, mesmo aqueles ainda desconhecidos ou inexistentes quando da criação

do método.

A partir desta classificação, que, mesmo mantendo uma intenção etnológica, considera

enfaticamente os aspectos organológicos dos instrumentos, os frame drums passaram a ser

reconhecidos e agrupados em uma mesma categoria.

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O esquema proposto por Hornbostel e Sachs desconsidera as peculiaridades

sociológicas, históricas e culturais envolvidas em cada um dos instrumentos que compõem o

grupo chamado de frame drums e não foi capaz de prever os avanços tecnológicos que

contribuíram para a invenção de novos instrumentos.

Para contextualizar esta afirmação citamos como exemplo o recente caso da criação de

uma versão de congas cubanas sem o corpo ressonador.

Uma conga cubana estaria classificada, segundo Hornbostel e Sachs, como um

membranofone de caixa tubular, por possuir a altura do corpo ressonador superior ou igual ao

diâmetro da membrana, como podemos notar na figura 2.

Graças às novas tecnologias de materiais e acústica, foi possível criar uma versão para

a conga cubana composta apenas de uma pele sintética presa à sua estrutura devendo esta ser

fixada a uma ferragem, que não substitui a função de corpo ressonador, apenas serve de

suporte ao instrumento para que o percussionista possa tocá-la de acordo com a técnica de

Congas (figuras 3, 4 e 5).

2. Conga cubana 3. Conga sem corpo ressonador – vista frontal

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4. Conga sem corpo ressonador – vista posterior 5. Conga sem corpo ressonador – vista lateral

6. Conga tradicional e a versão sem o corpo ressonador

Apesar da estranheza causada pelo protótipo de uma conga sem um corpo ressonador,

esse modelo vem sendo muito bem aceito entre os percussionistas, tanto pela facilidade de

transporte quanto pelas qualidades sonoras de timbre, afinação e intensidade. De acordo com

o esquema proposto por Sacks e Hornbostel, esse instrumento poderia ser considerado um

frame drum, pois atende às características organológicas dessa categoria, na qual “a

profundidade do corpo não excede o raio da membrana”. Mas, pode realmente esta versão de

uma conga cubana ser considerada um frame drum? Fica esta inquietação proposta como

reflexão para futuras investigações no campo da musicologia etnológica e organológica.

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Características morfológicas, antropológicas, sociológicas, históricas, performáticas,

além de elementos que determinem a qualidade do som dos instrumentos (como afinação,

extensão, timbre, duração, entre outros), são atualmente cada vez mais considerados quando

se pensa em classificação instrumental. Novamente Margaret Kartomi nos esclarece:

[...] em cem anos, ou desde que Mahillon publicou o primeiro esquema de classificação adequado a praticamente todos os instrumentos, mais de 20 outros foram criados. [...] Mas apenas o esquema Hornbostel e Sachs tornou- -se conhecido. No entanto, embora frequentemente elogiado e defendido na literatura, suas ferramentas são raramente aplicadas em classificações além do primeiro passo ou de posteriores numa divisão de 1 a 3 (1990, p. 199, tradução nossa).4

As ponderações apresentadas até agora entre o esquema proposto por Hornbostel e

Sachs e as mais recentes considerações acerca da classificação dos instrumentos musicais,

pretendem esclarecer que, apesar da compreensão e aceitação do senso comum sobre a

definição de frame drum por Hornbostel e Sachs, também considerada neste trabalho, aqui se

buscará acrescentar apontamentos sociais e históricos que apresentem alguns dos

instrumentos classificados como frame drums, sem, no entanto, ater-se estritamente a um

único esquema de classificação. Desta forma relacionamos os pandeiros brasileiros a seus

pares de outras culturas, por meio de características organológicas e sociológicas comuns e

incomuns que geram identidades numa dicotômica relação que ao mesmo tempo em que os

agrupa, também os separa por distinções.

Os Anexos A, B e C seguem buscando apresentar características complementares à

identidade de alguns destes instrumentos, incluindo, portanto, os pandeiros brasileiros.

Para mim, cada frame drum é representante cultural de um país ou comunidade,

carrega uma identidade permeada de histórias particulares e coletivas, um nome próprio em

sua língua local, está ativamente presente em funções sociais, festivas ou cerimoniais,

experimentando diferentes gêneros musicais. Apresenta peso e altura diferenciados, exigindo

uma postura distinta por parte do ser com quem interage, uma profusão de diversidades em

meio a uma mesma categoria, praticamente um ser, uma entidade local.

4 “[...] in the hundred years or since Mahillon published the first classification scheme suitable for virtually all instrument, over twenty other worthy schemes have been devised. […] Only the Hornbostel and Sachs scheme has become well known. Yet while it is frequently praised and defended in the literature, its tools are rarely applied in classifications beyond its first or its upper one to three steps of division” (KARTOMI, 1990, p. 199).

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CAPÍTULO 2

Situação dos frame drums e pandeiros da Península Ibérica na Idade Media, antes de sua chegada ao Novo Mundo

Após o preâmbulo do primeiro capítulo, nos dois subsequentes, retrocederemos

séculos, em busca de pistas que justifiquem a chegada dos pandeiros ao Brasil pelas mãos dos

primeiros colonizadores vindos da Península Ibérica.

O primeiro recuo temporal proposto será aquele que nos levará à Idade Média na

Península Ibérica, período imediatamente anterior ao descobrimento da América, o chamado

Novo Mundo, e a colonização deste território, que inclui o Brasil. Uma investigação sobre a

presença de frame drums e pandeiros nesta região peninsular em um período que antecede a

sua transferência para o Novo Mundo será útil para termos uma ideia sobre o contexto

histórico e cultural em que estes instrumentos estavam inseridos, além de apontar para uma

identificação de que tipo de frame drums chegaram posteriormente ao Brasil no início do

século XVI.

2.1 História, música, sociedade e cultura na Península Ibérica medieval

Ao iniciar uma pesquisa sobre a história da música ocidental durante o período

medieval, geralmente entendido entre os séculos V e XV, encontramos muitos dados sobre as

formas musicais, a evolução da escrita e dos instrumentos e as personalidades que se

destacaram. Essas informações estão focadas principalmente nos países como Alemanha,

Inglaterra, França, Holanda e Itália, por exemplo, que caminhavam para uma unidade

religiosa cristã, ao contrário do que acontecia na Península Ibérica no mesmo período,

dominado pelos árabes entre os anos de 711 até sua expulsão derradeira, por força da

Reconquista Cristã, em 1492.

Para ilustrar esse fato, recorremos a Donald J. Grout e Claude V. Palisca (2007), dos

mais conhecidos autores de história, que afirmam: “A história da música ocidental, em sentido

estrito, começa com a música da igreja cristã [...] se queremos compreender a música

medieval, temos de saber alguma coisa acerca da música dos povos da Antiguidade, em

particular, da teoria e prática musicais dos gregos” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 16/17).

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Essas afirmações logo no início da obra apresentam a opção dos autores por prosseguir

numa leitura da história da música ocidental que certamente excluirá outras regiões do

ocidente. Isso é o que acontece com a história musical da Península Ibérica desse mesmo

período, visto que a região estava sob o domínio muçulmano, fora do controle da igreja cristã

e que, além da influência grega em sua cultura musical, contava também com referências

orientais de árabes e judeus. Nessa opção, que nos parece muito mais religiosa e política,

Grout e Palisca (2007) não consideram a presença marcante de judeus e muçulmanos na Idade

Média da Península Ibérica, tampouco sua notada influência cultural e musical nessa região e

que também acabou migrando para o norte da Europa.

A pesquisadora portuguesa Ana Carina Marques Dias também percebe o quão

renegada é a influência cultural e musical árabe na história da cultura e música ocidental por

grande parte dos historiadores e apresenta esta preocupação em sua tese de doutorado

intitulada O Adufe – Contexto Histórico e Musicológico:

Quando iniciamos a leitura de uma história da música ocidental em busca das referências à influência oriental na música cristã medieval, encontramos dados que nos elucidam acerca da mudança do centro religioso para terras mais ao norte, exprimindo um claro afastamento das invasões islâmicas do sul… na interpretação dos autores, Ocidente é solo de domínio cristão, uma vez que a atenção à Península Ibérica é retomada com a exaltação dos instrumentos musicais na obra de Afonso X, já em pleno século XIII (DIAS, 2011, p. 5).

Para que possamos acompanhar a vinda dos pandeiros ao Brasil pelas mãos dos

colonizadores precisamos de um olhar mais atento às questões sociais e culturais daquela

época naquelas terras ao sul do continente europeu. É necessário entender quem eram estes

portugueses e os habitantes de Portugal naquele período, e qual cultura estava sendo cultivada

e desenvolvida naquelas terras pois são estes conteúdos que acabaram migrando para o Novo

Mundo, para o Brasil.

Compartilhando desta observação, cito o autor Henry Raynor que faz a seguinte

afirmação em seu livro História Social da Música:

A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não o pode uma peça, meramente como página impressa, pois ambas pressupõem executantes e ouvintes. Está, pois, aberta a todas as influências que a sociedade pode exercer, bem como às mudanças nas crenças, hábitos e costumes sociais (RAYNOR, 1986, p. 9).

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2.1.2 Conquista árabe da Península Ibérica

A Península Ibérica compreende o território formado por Portugal e Espanha e, como

todas as penínsulas, apresenta-se como uma faixa de terra que avança ao mar, cercada de água

por quase todos os lados e mantendo-se ainda ligada ao continente por um Istmo, uma faixa

de terra conectada ao continente. As penínsulas foram locais muito cobiçados e tiveram um

papel importante na história da formação dos povos pois eram escolhidas preferencialmente

por apresentarem boas condições para a navegação favorecendo o surgimento e

desenvolvimento de portos marítimos. Foi exatamente isto o que ocorreu com Portugal e

Espanha como território cobiçado por muitos povos devido a esta característica estratégica

que predispunha a uma situação de trânsito, intercomunicação, comércio e conflitos, seja por

situações étnicas ou sociais. Estas características contribuíram para a formação do povo

português e espanhol tanto quanto contribuiu para leva-los a um lugar de destaque no período

das Grandes Navegações.

A conquista da Península Ibérica pode ser entendida como parte do processo de

expansão muçulmana que começou na Península Arábica no século VII, passando ao norte da

África e Ásia Central. Em 711, os árabes, liderados pelo general Tariq bin Ziyad, invadiram

as terras do sul da Espanha com um exército formado por sete mil homens, berberes vindos

no norte da África que derrotaram os cristãos e os visigodos, habitantes daquelas terras,

iniciando o processo de conquista que não tardou mais do que dez anos para se estabelecer em

toda a Península Ibérica. A fortaleza que foi construída para abrigar o general, sobre uma

montanha de pedra, ainda hoje leva seu nome: Jabal Tariq, entendido por Gibraltar.

A progressão das terras conquistadas levou à tomada da cidade de Córdoba no ano de

756 por Abd al-Rahman que proclamou-se senhor da Espanha muçulmana e governou como

Emir, comandante militar, por mais de três décadas. Seu reinado marcou o início de um largo

processo de transformação que buscava igualar o novo território conquistado às glórias que o

império muçulmano oriental apresentava naquela época. A partir deste momento a presença

muçulmana na Península Ibérica seria significativa por quase oito séculos. Para manter o

controle sob estas terras por um período tão largo, os muçulmanos estabeleceram inicialmente

acordos territoriais, financeiros e religiosos com os líderes visigóticos, cristãos e judeus, mas

que logo progrediram para leis restritivas.

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A nova estrutura social passou a ser formada pela nobreza árabe, governante local que

mantinha seu exército de berberes norte africanos, escravos trazidos da África e do leste

europeu. Havia também judeus que viviam como comerciantes, artesãos, médicos ou

filósofos, além de cristãos praticantes ou conversos ao Islã chamados, na região hispânica do

Al-Andalus, de moçárabes ou muladíes respectivamente. Foram criadas leis, direitos e

impostos distintos para cada uma destas classes sociais, o que muitas vezes representou

motivo de revolta, fuga ou exílio.

2.1.3 Panorama da cultura árabe frente à europeia durante a Idade Média

Os árabes que vieram a ocupar a Península Ibérica possuíam àquela época um refinado

gosto artístico, literário e musical, avançada estrutura urbana, hábitos saudáveis de higiene

pessoal, além de um grande conhecimento sobre filosofia, medicina, astrologia, astronomia,

ciências matemáticas e agricultura.

Para exemplificarmos um pouco sobre o desenvolvimento técnico, científico e cultural

do Oriente Médio medieval, lembremos de alguns fatos marcantes como o da fabricação e

utilização do papel no mundo árabe que teve início no ano de 795 na cidade de Bagdá e que

facilitou a difusão de manuscritos e o intercâmbio de ideias e conhecimento além de servir de

estímulo para novas pesquisas, registros e traduções. A utilização do astrolábio como

instrumento medidor da altura dos astros acima do horizonte foi importante para o cálculo das

horas, para a astrologia, astronomia e cartografia, além de auxiliar em cálculos geométricos

que contribuíram para medir a altura de uma construção ou a profundidade de poços. O ábaco

foi outro importante e difundido instrumento usado para os cálculos aritméticos de adição,

subtração, subdivisão e multiplicação. O alambique (do árabe al-anbiq que significa vaso

destilatório) foi utilizado pelos árabes da idade média na destilação de bebidas para votos

espirituais, como a aguardente de vinho, e nas experiências alquímicas.

Nessas terras ibéricas o idioma árabe era considerado língua culta, falado também por

cristãos, judeus e moçárabes como segunda língua. Muitas palavras chegaram ao nosso

vocabulário contemporâneo como resquício da utilização da língua árabe deste período:

azeite, azeitona, álcool, álgebra, algodão, almofada, alquimia, açúcar, azulejo, berinjela,

limão, laranja, cenoura, alaúde, tambor, adufe, entre outras.

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Os árabes empreenderam muitos esforços para buscar e assimilar o conhecimento técnico e filosófico dos clássicos gregos e de outros povos e localidades como a China, Índia a Pérsia. A tradução de importantes textos sobre filosofia, astronomia e astrologia, entre outros provindos de distintas culturas, motivaram o aprimoramento e desenvolvimento da cultura árabe na idade média. Até o início do período das grandes navegações, quando todo este conhecimento já estava difundido por boa parte da Europa, especialmente entre os países que mais tiveram contato com a cultura árabe como Portugal e Espanha, o conhecimento técnico de muitas áreas, a filosofia, poesia, música e cultura foram muito valorizados e cultivados no mundo árabe.

O gênio dos árabes medievais estava em sua extraordinária receptividade a novas ideias, na capacidade de identificar e adotar o que fosse preciso de outras culturas – primeiro persa e hindu, depois grega – e de modificar e aperfeiçoar essas noções para atender às demandas práticas, intelectuais e, em especial, religiosas de seu tempo (LYONS, 2011, p. 183).

Espelhando-se na cidade de Bagdá, o exemplo de esplendor do mundo árabe medieval, os líderes governantes da Península construíram em Córdoba, capital do império árabe do ocidente, uma estrutura de vida que favoreceu o desenvolvimento artístico e cultural naquelas terras. Esta estrutura contava com ruas pavimentadas e iluminadas, médicos e cirurgiões, além de uma biblioteca com aproximadamente 400 mil livros. Bagdá terminou de ser construída no ano de 765 e foi projetada para ser um centro de intercâmbio científico e intelectual. Seu rápido e próspero crescimento produziu riquezas econômicas, culturais e um poder militar e imperial inimagináveis para a época e assim se manteve por muitos séculos, não lembrando em nada a Bagdá que conhecemos no século XXI. No ano de 948, Córdoba passou a ter uma população numerosa, muito acima da média de outras cidades da Europa, sendo considerada sem igual “[...] no Magreb e dificilmente no Egito, Síria ou Mesopotâmia, pelo tamanho de sua população, sua extensão, o espaço ocupado por seus mercados, a limpeza de suas ruas, a arquitetura de suas mesquitas, a quantidade de banhos e caravançarás” (IBN HAWQAL, 948 apud FLETCHER, 1992 apud LYONS, 2011, p. 187).5

Alguns autores, como Luis Soler, atribuem à tolerância religiosa dos árabes para com judeus e cristãos uma convivência pacífica entre estas três culturas na Península Ibérica medieval, o que possibilitou e facilitou o intercâmbio de trocas culturais. Num tempo em que as perseguições religiosas eram marcadas por conquistas, reconquistas e inquisições, esta atitude se apresentou como uma experiência muito diferenciada. Nas cidades de Toledo e Córdoba era possível observar os bons resultados desta tolerância conforme nos relata Soler:

5 IBN HAWQAL, 948 apud FLETCHER, Richard. Moorish Spain. New York: Henry Holt, 1992, p. 65.

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[...] eram cidades às quais se peregrinava a procura do saber e da ciência. Toledo, além do mais distinguia-se por ser a cidade na qual mais equilibradamente se distribuíam as três facções religiosas: muçulmana, cristã e judaica. Os judeus, descompromissados das rivalidades guerreiras que, de tempos em tempos, conflitavam as duas primeiras, tinham livre trânsito entre ambas, por cujo motivo vieram se constituir em pivô da reintegração do saber antigo ao Ocidente. Bons poliglotas, os judeus toledanos originaram verdadeiras dinastias de tradutores que vertiam ao latim, clássico ou vulgar, os tesouros artísticos e científicos das bibliotecas árabes e, também, das propriamente hebreias.6

Luis Soler afirma que esta experiência de convivência tri-racial inspirou hábitos na corte da Sicília onde o rei Rogerio II mantinha uma academia em que trabalhavam muçulmanos, judeus e cristãos. A universidade de Montpellier, fundada em 1181 no sul da França, também apostou nesta possibilidade e chegou a contar com docentes árabes para ensinar medicina ao lado de cristãos e judeus.

Foi especialmente notável o desenvolvimento e expansão agrícola ocorrido nas terras arabizadas da Península Ibérica. Movidos pelo desejo de igualar-se às glórias do centro do mundo muçulmano, ou até superá-las, os habitantes da península medieval empreenderam muitos esforços para aclimatar e transplantar espécimes nativas do oriente, desconhecidas do ocidente, a fim de cultivar jardins e uma variedade de frutas, legumes, verduras e ervas indispensáveis na culinária árabe.

Em contrapartida, o Ocidente do final do século XI apresentava uma estrutura social debilitada por uma violência desenfreada em que bandos de mercenários atacavam o campo e as cidades, sem obedecer a nenhuma lei que não fosse a de seus líderes. A medição do tempo era outro desafio que precisava de soluções que atendessem especialmente às necessidades da frequência diária de orações da Igreja Católica e auxiliasse a estabelecer as datas de festas cristãs. A mesma necessidade ocorreu com os árabes muçulmanos que deveriam rezar voltados a Meca e que, por este motivo, desenvolveram equipamentos e estudos astronômicos que os possibilitaram a medição do tempo em horas, dias, semanas e anos. Enquanto os árabes se aplicavam em estudos que atendessem a esta tarefa, os ocidentais testavam outros métodos, muitas vezes inexpressivos como a utilização de uma vela que, possuindo determinado diâmetro e altura, duraria quatro horas.

Na Europa medieval, o legado da cultura clássica estava praticamente esquecido, deixado como uma distante lembrança, latente apenas entre poucos estudiosos europeus:

6 Acreditando ter havido um erro de impressão, e não conceitual, corrigiu-se o primeiro parágrafo: o original “muçulmana, árabe e judaica”, mudou para “muçulmana, cristã e judaica” (SOLER, 1995, p. 47).

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“Textos valiosos se perderam por desatenção, foram destruídos nas guerras ou se tornaram ininteligíveis pela ignorância generalizada de candidatos a eruditos ou simplesmente pela perda da capacidade de ler em grego” (LYONS, 2011, p. 50).

Alguns mosteiros preservavam a cultura clássica e funcionavam como locais de estudos avançados, tal qual alguns epicentros culturais como a já citada universidade de Montpellier e a escola catedrática francesa de Tour, a primeira destas instituições a criar um currículo básico e que se transformou num modelo de centro intelectual da Europa.

Aos olhos dos árabes que conquistaram a Península Ibérica, os europeus que ali foram encontrados eram pessoas incultas, com pouco ou nenhum conhecimento sobre filosofia, medicina, astronomia e ciências, sem o domínio de técnicas de agricultura e com hábitos de higiene pessoal e saneamento precários.

A influência cultural árabe deixada especialmente na Península Ibérica por conta dos quase oito séculos sob domínio muçulmano, representou uma transformação significativa, com características de miscigenação muito particulares para aquele território e seus habitantes. Este legado contribuiu para a formação do povo espanhol e português, e foi levado ao Novo Mundo por meio de seus colonizadores.

Conforme afirma Lyons (2011, p. 182), “a transformação daquilo que havia sido um lugar atrasado sob o domínio dos visigodos numa indiscutível superpotência cultural europeia devia muito a suas origens no centro do mundo árabe”.

Este era o perfil dos novos habitantes conquistadores da Península Ibérica que, pelo desejo de seus comandantes, buscaram construir e transplantar para aquelas terras o melhor que o mundo árabe medieval pudesse oferecer.

2.2 Frame drums na Península Ibérica durante a Idade Media

Com base no que foi exposto anteriormente acreditamos que a civilização arábico ibérica do período medieval, conforme afirma Luis Soler, “no espaço de oito séculos, teve tempo suficiente para marcar hábitos, o sangue, o gosto e [...] o inconsciente coletivo dos povos ibéricos. Povos que iriam, na mesma hora em que se descolonizavam dos árabes, colonizar as Américas” (SOLER, 1995, p. 35).

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Entre tantos conteúdos culturais deixados como legado árabe na Península Ibérica,

encontramos no campo musical alguns elementos relevantes que denotam esta influência e

que podem ser reconhecidos por meio de estruturas musicais, gêneros e instrumentos que

posteriormente chegaram ao Novo Mundo trazidos pelos colonizadores.

A Europa medieval contava com poucos instrumentos musicais originais. A herança

greco-romana deixou na lira7 o melhor exemplo de instrumento de origem europeia para esse

período. Praticamente todos os instrumentos musicais encontrados na Europa medieval

vieram da Ásia ou do império islâmico que avançava sobre a Península Ibérica.8

A principal fonte de informações da pesquisa sobre instrumentos musicais desse

período é a iconografia, muito mais que a literatura. Entre os séculos X e XV, a maior parte

dessas representações está em forma de esculturas decorativas de edificações católicas ou

iluminuras de escrituras sagradas judaicas e católicas, assim como em objetos decorativos

islâmicos. Assim, a iconografia do período medieval na Península Ibérica fornece o principal

material de pesquisa sobre os frame drums, mostrando dois formatos: redondo e quadrado.

Também servem de referência algumas passagens de textos cristãos do Antigo Testamento,

entre outros poucos registros escritos.

7. Frame drum quadrado, século XII9

8. Frame drum redondo com platinelas, século XIV10

7 Nesse caso, a lira é um instrumento medieval de cordas similar a uma harpa (SACHS, 2006, p. 268). 8 “Nearly all the musical instruents of medieval Europe came from Asia [...] or from the Islamic empire... The direct heritage from Greece and Rome seems to have been rather insignificant, and the lyre is the only instrument that might possibly be considered European in origin” (SACHS, 2006, p. 260). 9 Escultura de uma mulher tocando um frame drum quadrado. Igreja de Santa Maria, Santander, século XII (MOLINA, 2010, p. 30).

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Esses instrumentos eram chamados de pandero, bandair, adufe, duff ou tof,

dependendo de seu formato e etnologia, e foram também genericamente identificados como

tympanum em sua origem latina medieval.

O pesquisador Mauricio Molina dedicou sua tese de doutorado ao tema dos frame

drums na Península Ibérica medieval e o manteve como título de sua publicação Frame

Drums in the medieval Iberian Peninsula. No início dessa obra, Molina afirma que as fontes

de pesquisa iconográficas e literárias revelam que os dois tipos de frame drum eram

popularmente tocados por muçulmanos, judeus e cristãos em eventos recreacionais, cívicos ou

paralitúrgicos durante a Idade Média na Península Ibérica. Esses instrumentos eram

geralmente tocados por mulheres que, dependendo de sua classe social ou das regras sociais,

eram vistas com simpatia ou desdém. Além de ser instrumentos musicais, os frame drums

ibero-medievais também apareciam na arte e na literatura como símbolos que reforçavam

alguns preceitos e preocupações sociais e culturais daquela sociedade medieval.11

Seguiremos apresentando algumas das características dos frame drums na

Antiguidade, passando aos medievais utilizados por muçulmanos, judeus e cristãos, três

culturas religiosas que coabitaram as terras da Península Ibérica e nela deixaram seu legado

cultural.

2.2.1 Frame drums na Antiguidade

Registros iconográficos e literários relatam a constante presença de frame drums por

toda a Antiguidade Oriental e Mediterrânea, geralmente associados a mulheres em rituais de

fertilidade e religiosos. Considera-se que os frame drums tenham sido muito utilizados pelos

povos antigos da Anatólia (atual Turquia), Pérsia (atual Irã), Suméria e Mesopotâmia (atual

Iraque), Fenícia ( partes do atual Líbano, Síria e Israel) Egito, Grécia e Roma.

10 Ao lado esquerdo, se vê uma mulher tocando pratos e, logo atrás, outra mulher com um grande frame drum redondo com platinelas metálicas. Ao lado direito, encontramos um homem tocando uma rabeca atrás de duas mulheres cantoras. (MOLINA, 2010, p. 44). 11 “The sources further reveal that both kinds of frame drums were popularly used throughout the Iberian Peninsula by Christians, Muslims, and Jews during recreational, civic, and paraliturgical events. The instruments were most commonly played by female performers, who, depending on their social class and role in society, were regarded either with sympathy or disdain. In addition to their role as musical instruments, medieval Iberian frame drums also functioned in art and literature as symbols, and as such, were used to reinforce and enhance social and cultural precepts and concerns” (MOLINA, 2010, p. 1).

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Alguns pesquisadores acreditam que a representação mais antiga de um frame drum,

assim como a de qualquer tambor, corresponde a uma pintura rupestre encontrada na Turquia

em 1960. O sítio arqueológico fica na antiga cidade de Çatal Huiuk e é de 5.800 a.c., ainda no

período Neolítico. Nessa pintura, vemos um grupo de figuras humanas vestidas com pele de

leopardo que dançam sustendo arcos e tocam instrumentos de percussão como um chocalho e

um frame drum, nas mãos de uma das últimas figuras que porta um objeto redondo.

9. Estatueta fenícia, 1000 a.C. (REDMOND, [entre 2011 e 2014])

10. Leopard dance – Çatal Huyuk, 5800 a.C.

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Entre as hipóteses sobre o surgimento dos frame drums na Antiguidade encontramos

uma que associa alguns utensílios agrícolas ao desenvolvimento do instrumento. Estes

utensílios seriam como peneiras para grãos ou bandejas feitas com pele ao fundo.

Apresentando uma estrutura de corpo, tamanho e forma de construção muito próximas ao que

hoje conhecemos como instrumento musical, estas ferramentas poderiam facilmente passar à

função musical, bastando inverter a posição horizontal utilizada ao serviço agrícola, para a

vertical. É importante lembrarmos que, estando os frame drums muito relacionados aos ritos

de fertilidade, seria coerente que uma boa colheita fosse imediatamente celebrada com música

e dança, transformando as ferramentas de trabalho em instrumentos musicais. Layne

Redmond afirma que os sumérios utilizavam a mesma palavra para designar um frame drum e

uma peneira para grãos, sem, no entanto, apresentar qual seja esta palavra (REDMOND,

1997, p. 47). Mauricio Molina, assim como Layne, também reconhece que peneira de gãos e

frame drum eram identificados pela mesma palavra, e a chama pelo nome de Adapa. Molina

identifica ainda outras palavras comuns tanto a utensílios agrícolas quanto a frame drums

como Ghirbal que, na região do Maghreb durante a Idade Média, significava literalmente “a

peneira” enquanto era também usado para designar um frame drum redondo com uma esteira

fixada atrás da pele. Na Península Ibérica, durante o século XIV, havia também uma palavra

em uso que designava tanto uma bandeja quanto um frame drum redondo. Esta palavra era

Pandero (MOLINA, 2010, p. 3).

A associação de imagens e textos antigos auxilia na interpretação de fatos ocorridos no

passado distante. Assim nos aponta Kurt Sachs ao relacionar a descoberta arqueológica de

uma estatueta feminina sustentando um frame drum com as mãos à mostra, datada de 2000

a.c., com um texto sumério datado de 2.400 a.c. que relata a participação musical da neta de

um rei em uma cerimônia no templo da Lua, em Ur, tocando um frame drum (SACHS, 2006,

p. 76). Sachs apresenta ainda alguns nomes que poderiam discriminar estes instrumentos

como balag-dit, timbutu, tibbu ou tambattam.

Este passado histórico seguiu vivo especialmente na cultura muçulmana e judaica

durante toda a Idade Média tal como ainda acontece nos dias de hoje. As conquistas e

colonizações árabes deste período levaram consigo, de forma prática e pulsante, a história dos

frame drums às terras dominadas que, por sua vez, a assimilaram e tornaram a repassá-la às

novas terras conquistadas e povoadas.

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2.2.2 Frame drums entre muçulmanos na Península Ibérica medieval

Os árabes muçulmanos absorveram muito da cultura musical e utilização dos frame drums oriundos dos povos da antiguidade, conforme apresentado no capítulo anterior.

O domínio árabe na Península Ibérica, chamado de período islâmico, passou por momentos distintos de mudanças políticas e sociais que geraram muitos intercâmbios culturais e levaram às distintas camadas sociais diversos fenômenos culturais e musicais.

Ana Dias aponta em sua pesquisa três períodos políticos importantes que serviram para definir o perfil musical dos árabes na Península Ibérica, especialmente na região do Al-Andalus: o inicial árabe-oriental, o tradicional autóctone, e o final hispano-árabe. Estes três períodos correspondem às “três idades da música” (a indefinição, o fascínio pelo já feito, e a criação de algo novo), como se esta pudesse ser representada por meio da aprendizagem humana em evolução com a maturidade (DIAS, 2011, p. 25).

Entre os anos de 565 a 636, pouco antes da conquista islâmica em 711, a música que era feita na região entre Portugal e Espanha continha elementos populares visigóticos coexistindo com o canto litúrgico gregoriano, além da cultura judaica e de músicas de procedência afro-oriental que chegavam por meio de migrações de pessoas do norte da África, em processo de dominação islâmica.

A partir da conquista árabe, um dos principais marcos para a cultura musical na Península Ibérica foi a chegada do músico Ziryab que revolucionou os hábitos e cultura geral da população, além de trabalhar pela área musical. Durante o século IX a corte de Córdoba buscava igualar-se em requinte e elegância à cidade de Bagdá e para isso acolhe as inovadoras ideias de Ziryab criando escolas, supostamente públicas, que revolucionaram os métodos de ensino. Atribui-se a ele a ampliação do repertório musical da época por meio do conhecimento de canções orientais, a introdução de dezenas de novos instrumentos orientais e berberes na prática musical ibérica, além de haver introduzido a quinta corda do Ud ou Alaude, a corda da alma. Segundo contam, quando Allah criou o homem, também criou o Alaúde com suas quatro cordas simbolizando, cada uma delas, os elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Ziryab teria introduzido a quinta corda na intenção de aproximar o homem da natureza por meio da alma, batizando-a de “a corda da alma”. Dentre os instrumentos introduzidos na Península Ibérica neste período é provável que possamos incluir o frame drum árabe nesta lista, o chamado Duff. Vale lembrar que o trânsito de pessoas entre a Península Ibérica, norte da África e Oriente Médio é anterior ao período de conquista islâmica e que, portanto, é possível que muitos elementos culturais, ao invés de terem sido

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introduzidos, tenham se fortalecido a partir desta dominação. É importante ressaltar a contribuição de al-Kindi, filósofo e contemporâneo de Ziryab que, seguindo um pouco da tradição greco-romana em paralelo com o pensamento católico, preocupou-se com a concepção mística e mágica da música. Também faz parte deste elenco o autor e filósofo Ibn Bayya, conhecido como Avenpace, que, após Ziryab, teria reformulado o ensino musica e escrito um tratado teórico sobre música, a perdida Epístola sobre a música. Ibn Bayya também propôs uma nova estrutura para as composições poético-musicais em formato intercalar entre parte instrumental e declamativa denominadas nouba e muwashshsah. Nesta época era prática comum a mescla de idiomas como o árabe culto, árabe dialectal, hebraico ou romance, nas estrofes de uma mesma canção como parte formal da estrutura musical, o que mais uma vez aponta para a diversidade cultural e para a tolerância entre os povos desse território no período medieval.

Pela orientação estética greco-romana da época, a prática musical cantada era preferível à instrumental mas, apesar disso, a prática musical instrumental desenvolveu-se muito devido ao grande interesse, instrumentos disponíveis e acesso ao aprendizado.

O ensino da música era especialmente voltado à formação das gawari, escravas e/ou concubinas de rica formação intelectual e artística, antes ou depois de ter sido compradas. As gawari sabiam caligrafar, cantar, declamar poesia, dançar e tocar vários instrumentos como ud, rebab e duff. O preço de uma gawari variava muito, de acordo com seus dotes e saberes.

11. Mulher árabe tocando um frame drum redondo, século XIII12

12 Essa figura aparece num dos vários medalhões de um pequeno cofre, no Museu da Catedral de Palma de Mayorca (DIAS, 2011, Anexos, Quadro I, p. 162).

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Apesar de a função musical estar muito centralizada na figura das gawari, aos poucos

homens e mulheres da comunidade passaram a se especializar na arte de tocar e cantar,

atuando em suas residências com animados concertos noturnos. No fim do século X, a cultura

musical tornou-se acessível a todas as classes sociais, e o ambiente artístico nas cidades do

Al-Andalus era intenso:

O ensino da música estava já bastante desenvolvido não só para as escravas artistas, mas também para as mulheres e homens islâmicos ou não. A dança e o canto eram uma e a mesma coisa, e surgem no início do século XI, as zambras ou samar, os serões musicais e artísticos que já não só se realizavam nas veladas noturnas dos palácios reais com as cem flautistas e alaudistas, mas também um pouco por todas as casas das famílias andalusas [...] (DIAS, 2011, p. 29).

No início da orientalização ibérica, os instrumentos de percussão eram considerados

vulgares e aos poucos foram sendo introduzidos no cotidiano de eventos e caindo no gosto

popular. Os frame drums árabes em uso eram o Tar, Ghirbal, Mizhar ou Mazhar e Bandayr,

além de outros instrumentos de percussão como darabuka e naqqara.13

A palavra árabe que foi mais utilizada com o mesmo sentido de frame drum, como

designação genérica para estes instrumentos, é duff. Esta palavra está relacionada

etimologicamente com o termo hebraico tof e historicamente com adapa suméria, conforme

veremos mais detalhadamente em capítulos posteriores. No início do período de dominação

árabe na Península Ibérica, o termo duff poderia representar tanto um instrumento redondo

quanto quadrado, com ou sem platinelas ou sinos, com pele em ambos os lados ou apenas em

um deles, tal era o uso genérico deste termo. Para identificar um determinado duff, alguns

autores não ibéricos do período medieval incluíram um adjetivo como em duff murabba (duff

quadrado), duff al-mudjaldjal (duff com sinos), duff maftuh (duff “aberto” e redondo) e duff

murabba maghluq (duff quadrado e “coberto”), estes dois últimos referindo-se a um frame

drum redondo com pele em um dos lados, e a um frame drum quadrado com pele em ambos

os lados, respectivamente. Outra forma de dar identidade a um determinado duff era chamá-lo

por um nome específico. Assim identificamos o Tar, após o século XIII, como um duff

redondo com uma pele, possivelmente com sinos ou platinelas; o Mizhar ou Mazhar, após o

século XI, poderia ser tanto quadrado quanto redondo; o bandayr, a partir do século XII, em

13 Darabuka é um instrumento de percussão com o corpo em formato de cálice, feito tradicionalmente de argila ou madeira e que usa como membrana pele de peixe ou cabra, entre outros animais. Naqqara é um tambor com o corpo baixo e arredondado, feito de argila cozida e com a parte superior coberta de pele animal, que é tocada com uma baqueta de madeira, geralmente usando um par do instrumento.

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formato redondo; e o Ghirbal como um duff redondo com uma esteira esticada atrás de sua

pele. A palavra Ghirbal também significava peneira e, conforme foi dito anteriormente no

tópico 2.2.1 nos remete a associações de origem agrícola do instrumento. O termo duff passou

a ser mais conhecido como um instrumento de formato quadrado quando a palavra bandayr,

ou o termo pandeiro, passou a identificar os instrumentos redondos a partir do século XII.

12. Vaso de Tavira e detalhe destacando um tocador de frame drum quadrado, século XII14

2.2.3 Frame drums entre judeus

A presença do povo judeu em território ibérico parece ser anterior aos árabes, romanos

e godos. É possível que os primeiros judeus tenham chegado por meio das armadas fenícias e

que após a tomada de Jerusalém pelos Romanos em 70 d.C., muitos outros tenham se

encaminhado à Península Ibérica ao encontro dos que ali já estavam. A convivência entre

judeus, cristãos e os outros povos em território ibérico na Idade Média foi muito conflituosa.

Chamava a atenção os contrastes entre aspectos físicos, crenças, modos de vestir e preceitos

morais judaicos e cristãos em meio à população corrente, o que gerava animosidade e intrigas.

Durante os primeiros anos da era Cristã os judeus exerciam destacada atividade comercial,

casavam-se com mulheres cristãs e possuíam escravos cristãos. Estes atos de superioridade

desagradavam aos cristãos de fé que não aceitavam que mulheres cristãs fossem convertidas

ou que até escravos cristãos fossem circuncisados. As reuniões de Concílios criaram leis que

restringiam tais atitudes e atividades judaicas chegando ao decreto de expulsão no ano 613 na

14 Vaso de cerâmica do século XII encontrado em Tavira, Algarve. Representa uma das mais importantes peças da arqueologia medieval portuguesa do período islâmico. Apresenta representações de animais, elementos militares, uma figura feminina e músicos, dentre estes um tocador de frame drum quadrado. Usado como elemento simbólico de bom augúrio nas cerimônias de matrimônio (DIAS, 2011, Anexos, Quadro I, p. 2).

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Espanha, à exceção daqueles que aceitassem a religião católica. Mesmo cristianizados, os

judeus que ali permaneceram continuaram fiéis a suas crenças e a exercer seus cultos no

interior de seus lares. Durante as batalhas de conquista árabe pelo território Ibérico, tomaram

posição contrária aos cristãos como forma de defesa ou represália e por contar com maior

tolerância dos muçulmanos a seus hábitos. A conquista árabe no ano de 711 estabeleceu uma

tolerância religiosa que amenizou os conflitos tornando a vida dos judeus mais próspera nos

territórios sob domínio muçulmano. Sobre esse aspecto Lúcio de Azevedo (1975, p. 5) afirma:

O domínio sarraceno manifestou-se aos hebreus tão fecundo em prosperidades materiais como em progressos, de maior valia, de ordem intelectual. Senhores do comércio em uma sociedade, guerreira, como a antecedente, continuavam a ser os detentores da riqueza. Nas cortes dos soberanos mosléns, alcançaram a máxima influência e exerceram altas funções, até a de primeiro-ministro. Ao mesmo tempo, em contacto com a civilização requintada que os invasores trouxeram à Península, poliram os costumes e a linguagem, aprenderam as ciências e a poesia.

Os judeus chamavam a Península Ibérica pelo nome hebraico de Sefarad e falavam

sefardi, também conhecido por ladino, uma mistura de palavras hebraicas com a língua da

região em que habitavam como castelhano, português, árabe e até mesmo catalão. A cultura

musical sefardita deixou um legado de canções em ladino que são muito apreciadas e

executadas até os dias de hoje, apresentando em suas letras, ademais o caráter religioso ou as

memórias de Israel, um retrato documental dos costumes e comportamentos da sociedade

sefardita medieval. Encontramos alguns exemplos nos seguintes versos:

Alabar quero al Dió, con tanyer y cante, siendo El mos pedrió Amistad avante de hombre merbane El mos escapó, y a Hamán lo enforkó, en una paída, non topó fuida15

Um dos registros mais representativos da presença de frame drums na Antiguidade e

Idade Média pode ser verificado em textos sagrados em hebraico, os mesmos que compõem o

Velho Testamento da bíblia católica. Em hebraico, os frame drums são chamados tof Miriam,

em alusão ao fato de Miriam tocá-lo em meio a outras mulheres, enquanto seguiam caminho

depois da travessia do Mar Vermelho, quando os judeus eram guiados por Moisés na fuga do

Egito. Essa passagem é relatada no Antigo Testamento, Êxodo 15,20. “Maria, a profetisa,

irmã de Aarão, tomou na mão um tamborim e todas as mulheres a seguiram com tamborins,

formando coros de dança” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2013).

15 Exemplo de estrofe em ladino extraído da canção “Alabar quero al Dió”, louvando a Deus por meio de cantos e danças por Ele nos haver salvado do inimigo Hamán, que acabou enforcado (COHEN; ADAMS, 2000).

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Alguns registros iconográficos feitos no período medieval ilustram essa passagem e

são geralmente encontrados no Velho Testamento da bíblia católica ou nas Hagadás judaicas,

textos lidos na noite do Pessach que contam a libertação do povo de Israel do Egito.

13. Hagadá de Sarajevo, século XIV16

14. Página 14 da Hagadá de Ouro, século XIV, e detalhe (BRITISH LIBRARY, s/s)17

16 Uma das mais belas hagadás medievais, essa foi encomendada como presente de casamento e é composta de 109 páginas confeccionadas em ouro, bronze e cores vivas sobre um pergaminho branco. Foi encontrada em Sarajevo no início do século XVI, após um longo percurso desde a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492 (A HADAGÁ DE SARAJEVO, 2003; SARAJEVO HAGADA 1). 17 Essa cena sugere um festivo encontro e nos mostra Miriam, irmã de Moisés, segurando um tof decorado com motivos islâmicos e rodeada por mulheres que dançam e tocam outros instrumentos. Além do tof quadrado que Miriam segura, há outro redondo.

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15. Hagadá de Castilha, século XIV18 16. Hagadá Kaufmann, século XIV19

As imagens 13, 14, 15 e 16 são de diferentes Hagadás do mesmo período e referem-se

todas à mesma passagem do Êxodo 15:20, em que Miriam sustenta um tof. É interessante

observar como o tof é representado em diversos formatos: no Hagadá de Sarajevo o vemos

redondo e com platinelas; o Hagadá de Ouro nos mostra dois formatos distintos para o tof, um

quadrado e outro redondo, dispostos lado a lado; no Hagadá de Castilha voltamos a encontrar

o tof de forma circular; e no Hagadá Kaufmann da Catalunha novamente o vemos em formato

quadrado. Esta análise aponta para a conclusão de que a palavra tof equivale ao que hoje

entendemos por frame drum, um termo genérico aplicado aos tambores de moldura sem

distinção de tamanho, formato ou ressonadores.

De acordo com Curt Sachs (2006, p. 108), o tof hebraico corresponde ao mesmo frame

drum da antiga Mesopotâmia e Egito, encontrado também na Grécia e Roma e teria sido a

matriz etimológica do duff árabe que gerou o Al-duff, o Adufe português.

18 Miriam tocando tof e dançando com duas mulheres israelenses (BRITISH LIBRARY, [12--?]). 19 Hagadá Kaufmann, Catalunha, século XIV, que mostra Miriam à esquerda tocando tof e duas outras instrumentistas tocando um alaúde e um órgão portátil para um coro de dançarinas (CRAVEIRO, 2013).

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O ano de 1492 marca a expulsão dos judeus das regiões de Castilha e Aragão e cinco

anos depois, em 1497, são os judeus de Portugal obrigados a converter-se ao cristianismo ou

abandonar o reino. Muitos conversos seguiram praticando os ritos judaicos às escondidas

formando grupos criptojudaicos que, no decorrer dos séculos XVI e XVII, seriam a base das

novas comunidades israelitas que migraram para outros países e continentes. A cultura judaica

sefardi manteve-se em prática e desenvolvimento até os dias de hoje em algumas

comunidades como ocorre em Tras-os-Montes, Portugal, onde é possível notar a presença do

Adufe, um frame drum quadrado com pele nos dois lados e ressonadores internos ou externos,

sendo ainda executado para acompanhar o canto feminino a capela como podemos observar

na canção O pandeiro, coletada e gravada por Judith Cohen e Tamar Adams (2000).22  

Viva quem toca o pandeiro, viva quem o tem na mão (2)  viva quem há de lograr(e) menina seu coração.  Este pandeiro que eu toco, não é meu, que é de María,  que mo deu para tocare, no dia de romaria.  Este pandeiro que eu toco, não se toca com a mão,  toca-se com anel douro, prenda do meu coração.  Pandeiro de quatro esquinas, é feito de pelh d’ovelha,  ontem comeu na carpaça, hoje toca com rebenta.

2.2.4 Frame drums no cristianismo medieval

O período medieval registra o crescimento do cristianismo e a perseguição aos infiéis.

Os primeiros trezentos anos da fé cristã foram marcados por bárbaras perseguições por parte

do Império Romano que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século I a.C. e que

viam no crescente numero de adeptos do cristianismo uma ameaça subversiva ao poder do

Império. A partir do século IV, sob o apoio do imperador romano Constantino, os ritos

cristãos começaram a ser definidos pelos líderes do cristianismo que se encontravam entre as

principais cidades do Império Romano. O cristianismo, fortalecido pelo apoio dos últimos

imperadores de Roma que pretendiam usar da crescente força da nova religião para fortalecer

o Império decadente, tornou-se a religião oficial do Império Romano em suas últimas

décadas, sobreviveu à queda do Império em 476 e seguiu conquistando poder e prestígio

durante toda a Idade Média.

22 O adufe pode ser tocado de formas distintas, dependendo da região de Portugal ou da Espanha. Essa canção dedicada ao pandeiro quadrado tem variantes nas regiões da Galícia e das Astúrias. É provável que o terceiro verso se refira a Miriam, a profetisa do Êxodo 15:20, pois na tradução latina da Bíblia Vulgata (a versão mais usada pelos tradutores para outros idiomas) seu nome é traduzido por Maria (COHEN; ADAMS, 2000).

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17. Vaso grego, Ática, 340 a.C.-330 a.C.23

Os registros iconográficos de frame drums foram muito comuns durante o período

greco-romano onde podiam ser vistos em afrescos, vasos, ânforas e outros utensílios, sempre

associados a imagens festivas e votivas em que, na maioria das vezes, eram vistos tocados por

mulheres.

Durante o primeiro século da era cristã estes registros sofreram restrições impostas

pelos líderes do cristianismo que não queriam associar a imagem destes instrumentos, apesar

de muito citados nos textos bíblicos do antigo testamento, às orgias e cultos pagãos voltados

aos deuses e deusas das religiões do período pré-cristão, além de ferir a crença cristã da época

de que o uso de instrumentos musicais durante as celebrações litúrgicas promovia uma

experiência sensual contrária aos objetivos de pureza espiritual que se buscava alcançar na

comunhão divina. Neste momento, a voz cantada em uníssono e sem acompanhamento

instrumental representou a única possibilidade de prática musical permitida pelos líderes

cristãos. Apesar da restrição imposta à prática instrumental, é possível encontrarmos

referências literárias sobre os frame drums em algumas obras como Etymologiarum (SACHS,

2006, p. 288; MOLINA, 2010, p. 15; 18; 56; LYONS, 2011, p. 55; 56; 146), escrita no século

setenta por Isidoro, bispo de Sevilla. Esta obra foi escrita em vinte volumes e se tornou o

compêndio ocidental mais conhecido e popular nas bibliotecas cristãs medievais durante

séculos. Em Etymologiarum, Isidoro reuniu extratos do conhecimento que julgava importante

23 Vaso de cerâmica grego encontrado em 1859 na cidade de Ática. Mostra três mênades (ou bacantes, seguidoras de Baco) indo em direção a um jovem sátiro. A segunda mênade à esquerda, destacada em branco, segura um frame drum (THE BRITISH MUSEUM, [18--?b]).

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ser preservado face a crescente onda de barbáries e invasões pelas quais passava a sua

Espanha natal. Nesta obra o bispo identifica o uso de frame drums no Antigo Testamento,

representado pela palavra tof em hebraico na Torah e tympanon em grego na Bíblia

Septuaginta, e utiliza o vocábulo tympanum para representar estes instrumentos no texto

escrito em latim, popularizando este termo na Bíblia Vulgata.

Nota-se uma certa contradição entre a imposta restrição à utilização de instrumentos

musicais durante os cultos por parte do cristianismo medieval e o que evidencia o Velho

Testamento nos textos em que cita a presença de instrumentos, sempre em ação musical de

louvor. Apenas os frame drums são mencionados quinze vezes em diferentes passagens do

Velho Testamento, afora os outros instrumentos que são destacados em outras passagens.

Alguns escritores da época como Casiodorus, Gregorio o Grande e Santo Agostinho,

encontraram um significado simbólico para a presença de frame drums no Antigo Testamento

em que a pele esticada de um animal morto, usada para confeccionar o instrumento, seria a

representação de nossa própria carne. Santo Agostinho tece outra relação simbólica

envolvendo o frame drum em que a carne do próprio Cristo crucificado é simbolizada por

meio da pele esticada sobre estrutura de madeira do instrumento (MOLINA, 2010, p. 10). A

partir deste entendimento simbólico dos frame drums citados no Antigo Testamento, este

instrumento deixa de ter uma conotação pagã associada aos ritos de fertilidade pré-cristãos e

passa a ter uma conotação simbólica messiânica.

Conforme foi dito anteriormente, os frame drums são citados em quinze passagens do

Antigo Testamento, porém com diferentes nomes a depender da tradução bíblica. Na Torah, o

livro sagrado do judaísmo que deu origem ao Antigo Testamento, eram chamados de tof. Na

Bíblia Septuaginta traduzida para o grego chamam-se Tympanon, e na tradução para o latim, a

bíblia Vulgate, são chamados de Tympanum.

A Bíblia de Jerusalém utiliza, em sua mais moderna versão de 2013, o termo

“tamborim” para traduzir a palavra hebraica tof ou o tympanon grego, visto sua tradução estar

baseada nos textos originais hebraico, aramaico e grego. No Brasil, a palavra “tamborim”

remete rapidamente ao pequeno frame drum tocado em rodas ou escolas de samba, assim

como pode também os frame drums quadrados tocados em algumas congadas de Minas

Gerais. Assim, parece coerente escolher “tamborim” como tradução nesse contexto, posto que

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os termos em hebraico, grego ou latim representam genericamente os frame drums medievais

redondos ou quadrados, como tamborim em português.24

18. Homem tocando frame drum quadrado, século XIII25

Maurício Molina (2010, p. 8) localizou as passagens em que os frame drums são

citados no Velho Testamento e as organizou em uma tabela de acordo com a tradução bíblica.

Destacamos algumas do Antigo Testamento na Bíblia de Jerusalém:

Labão persegue Jacó: “Por que fugiste secretamente e me enganaste em vez de me divertir , para que eu te despedisse na alegria e com cânticos, com tamborins e liras?” (Gn 31,27). A sagração de Saul: “Chegarás, então, a Gabaá de Deus onde estão os prefeitos dos filisteus e acontecerá que, entrando na cidade, defrontarás com um bando de profetas que vêm descendo do lugar alto, precedidos de harpas, tamborins, flautas, cítaras, e estarão em estado de transe profético” (I Sm 10,05). Origem da inveja de Saul: “Quando eles voltavam junto com Davi, depois de este ter matado o filisteu, as mulheres vinham de todas as cidades de Israel para cantar e dançar na presença do rei Saul, com tamborins e alegria ao som dos sistros” (I Sm 18,06). O livro da consolação- a restauração prometida a Israel. “Eu te construirei de novo e serás reconstruída, Virgem de Israel. De novo te enfeitarás com os teus tamborins, sairás em meio a danças alegres” (Ier 31,04) . Para a festa das tendas. “Elevai a música, soais o tamborim, a harpa melodiosa e a cítara: soai a trombeta pelo novo mês, na lua cheia, no dia da nossa festa” (Ps 81,03).

24 É comum encontrarmos Bíblias traduzidas do grego ou do latim que traduzem tympanon ou tympanu por “tímpano”, mas essa escolha é equivocada, visto que “tímpano” representa um grande tambor sinfônico que em nada lembra um frame drum ibérico medieval. 25 Detalhe da escultura localizada no Pórtico da Majestade da Igreja Colegiata de Santa Maria la Mayor de Toro, Castilla, século XIII (DIAS, 2011, Anexos, quadro III, p. 3).

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A travessia do Mar Vermelho pelos judeus em fuga do Egito foi comemorada ao som

de um frame drum, segundo conta o Êxodo 15:20, como vimos no capítulo 2. Essa passagem

também foi registrada em ilustrações como a que encontramos na Bíblia de León em

aproximadamente 960 d.C., a mais antiga representação ibérica cristã de um frame drum,

assim como de toda a Europa medieval (MOLINA, 2010, p. 24-25). Esse seria um manuscrito

moçárabe (cristãos praticantes que viviam em terras sob domínio árabe na Península Ibérica

medieval) em que vemos Miriam (traduzido por Maria na Bíblia Vulgata latina) em destaque,

junto a outras mulheres, todas segurando frame drums redondos, aparentemente sem nenhum

tipo de ressonadores como guizos ou platinelas.

19. Miriam e outras mulheres judias tocando frame drums, cerca de 960 d.C. (MOLINA, 2010, p. 24)

De acordo com o que foi apresentado neste capítulo, é possível notar uma significativa

presença de frame drums no universo cristão medieval, seja por meio de ilustrações ou

citações bíblicas.

2.2.5 Panderos e pandeiros na Idade Média

Durante a Idade Média na Península Ibérica, entre os séculos XI e XVI, o termo

pandero foi utilizado para representar os frame drums redondos com ou sem platinelas. A

partir do século XVI, a palavra pandero passou a ser usada genericamente para representar os

frame drums redondos ou quadrados, tal qual ocorreu com outros termos como duff ou

tympanum. O motivo pelo qual se utilizava palavras distintas para a mesma função é que cada

uma delas provinha de um idioma distinto. Desta forma, a palavra duff provinha do árabe,

tympanum do latim, e pandero do Romance, um dialeto proveniente do latim. Falava-se latim

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em ocasiões mais formais e romance em situações cotidianas, daí a distinção de uso das

palavras tympanum e pandero. É provável que a primeira menção do vocábulo pandeiro tenha

ocorrido em um manuscrito moçárabe do século XI como tradução do termo latino tympanum.

Apesar do frequente uso do termo pandeiro como designação genérica, alguns textos

medievais mencionam outros instrumentos atuando junto ao pandero, como o adufe, o que

indica uma tendência ao uso do vocábulo pandero para instrumentos redondos e aponta para a

utilização contemporânea das palavras adufe e pandeiro onde representam com frequência,

hoje em dia, um framde drum quadrado e outro redondo respectivamente.

Estudos linguísticos sugerem que o termo pandero pode ter surgido das palavras grega

pandura e sua derivação latina pandorius, ambas representando um instrumento greco-

romano de cordas da família do alaúde. Esta teoria está baseada em uma transformação

fonética onde a palavra latina pandorius evoluiu para o termo panduoro, posteriormente para

o castelhano antigo panduero e finalmente para o termo pandero (MOLINA, 2010, p. 60- 61).

Ainda sobre as mudanças fonéticas envolvendo a palavra pandero, Molina destaca o

surgimento do termo bandair no vocabulário árabe como derivação de pandero. A palavra

bandair teria surgido a partir da tentativa árabe de pronunciar a palavra pandero, incorporada

ao vocabulário ibérico, trocando a letra p pela b, visto a dificuldade de pronuncia do original

romance pelos árabes. A palavra bandair está relacionada ao instrumento que hoje

conhecemos como bendir, muito comum no Marrocos e norte da África, de acordo com a

descrição anterior no tópico 1.3.

Ainda de acordo com Molina, a palavra pandeiro surge no vocabulário galaico-

-português como derivação de pandero a partir do final do século XV. É provável que seu uso

tenha sido frequente junto ao vocábulo pandero, apesar de não aparecerem registros anteriores

ao mencionado por Frei João Alvarez no livro Vida do Infante D. Fernando no fim do século

XV. Também é possível que a palavra pandeiro tenha representado especialmente os

instrumentos redondos, assim como o bandair, e que, tendo o pandeiro migrado para o

continente americano e o bandair para o africano, tenham mantido o mesmo formato

arredondado que conhecemos no pandeiro brasileiro e no bendir marroquino.

O formato predominantemente arredondado com que o pandeiro era identificado podia

ser acrescido de ressonadores, geralmente platinelas metálicas, como podemos notar na figura

8. Os primeiros registros iconográficos apresentando um frame drum com platinelas na

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Península Ibérica podem ser encontrados no final do séc XIV, tornando-se cada vez mais

comuns no decorrer dos séculos XIV e XV sob a denominação de pandeiro, conforme

observamos na figura 20. Mauricio Molina chama a atenção para o fato de que, mais do que

uma mudança na produção iconográfica, o aumento dos registros de frame drums com

platinelas no decorrer daquele período denota uma transformação na concepção estética de

produção e escuta musical por meio dos frame drums (MOLINA, 2010, p. 41).

20. Mulher tocando frame drum redondo com platinela, século XIV26

26 A figura nos mostra uma mulher segurando um frame drum redondo com platinelas à direita e um homem com um fiddle ao seu lado, ambos estão em pé e tocam para o homem sentado à esquerda, provavelmente um nobre. Esta ilustração faz parte do manuscrito português denominado Cancioneiro de Ajuda produzido entre os séculos 1290 e 1330 contendo compilações de aproximadamente quatrocentos textos de canções conhecidas como Cantigas de Amigo, um dos tipos de repertório trovadoresco medieval (MOLINA, 2010, p. 42).

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CAPÍTULO 3

Os pandeiros durante os primeiros anos de colonização no Brasil

Nós somos uma contemporaneidade de milênios.

Luís da Câmara Cascudo

A formação étnica, social, cultural e econômica do povo brasileiro sempre foi motivo

de interesse para estudiosos destes temas e segue merecendo atenção e atualização de

pesquisas. Entre tantos temas de interesse, o pandeiro poucas vezes mereceu menção ou

destaque como elemento presente e contribuinte da identidade social e cultural do brasileiro.

Tampouco foi frequentemente mencionado em relatos e documentos históricos que pudessem

registrar sua presença e atuação. Por estes motivos encontramos poucos registros

iconográficos ou textuais, históricos ou contemporâneos, mencionando a presença deste

instrumento durante o início da colonização portuguesa no Brasil e, menos ainda, sua herança

ibérica moura e judaica mesclada de cristandade, temas de interesse e contribuição para o

desenvolvimento deste trabalho. Aqui trataremos de buscar e apresentar resquícios do

pandeiro durante os primeiros anos de colonização, em um recorte temporal de duzentos anos

compreendidos entre os séculos XVI e XVII. A escolha deste período se deve ao interesse de

buscar compreender como eram os primeiros exemplares dos pandeiros que chegaram ao

Brasil, por quais meios teriam aqui aportado, qual seria seu formato, função social e musical.

Conforme apresentado no capítulo 2, os frame drums e pandeiros tiveram participação

ativa no cotidiano popular, religioso e palaciano da Península Ibérica medieval entre árabes,

judeus e cristãos. Os poucos, porém representativos, registros iconográficos e textuais atestam

a presença de um conjunto variado de frame drums em que o pandeiro, redondo ou quadrado,

com ou sem elementos ressonadores, esteve muito presente na Idade Média portuguesa, época

e lar dos pré-colonizadores do Novo Mundo.

Foi necessária toda a contextualização anterior sobre a situação social, cultural e

religiosa da Península Ibérica medieval para que pudéssemos localizar e compreender a

atuação histórica dos frame drums e pandeiros, de que forma eram utilizado pelos habitantes

locais e em que circunstâncias, pois foi esta sociedade mesclada de cultura e religiosidade

cristã, muçulmana e judaica, que trasladou ao Novo Mundo na aventura da colonização.

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É comum identificarmos os primeiros colonizadores como portugueses. Mas, quem

eram os portugueses à época da colonização? Dentre alguns estudos sobre este tema,

destacamos os apontamentos feitos por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. O autor,

preocupado em identificar os antecedentes e predisposições do colonizador português, indica

um passado étnico e cultural diversificado pela presença de povos como gregos, romanos,

visigodos, além de judeus, berberes e mouros. Estes povos marcaram o caráter português

como povo indefinido entre Europa e África, uma gente mista na sua antropologia e cultura

(FREYRE, 2003, p. 265).

Adiante iremos acompanhar o traslado dos pandeiros ao Brasil durante os primeiros

duzentos anos de colonização por meio de árabes, judeus e cristãos, habitantes da Península

Ibérica medieval que de alguma forma aportaram ao Novo Mundo desde o início do século

XVI e que tinham os frame drums e pandeiros como instrumentos de sua cultura conforme foi

apresentado no segundo capítulo.

3.1 O pandeiro como herança árabe

Os tópicos 2.1.2 e 2.1.3 nos introduziram ao universo de influências culturais e

musicais exercidas pelo domínio árabe na Península Ibérica durante o período medieval.

Destacamos no tópico 2.2.2 a presença e utilização do duff, o frame drum árabe, do qual

derivou o termo Adufe, conhecido e utilizado em Portugal até os dias de hoje em algumas

comunidades, inclusive no Brasil. Os árabes não chegaram presencialmente no Brasil no

momento de sua colonização no início do século XV, mas sua herança desembarcou junto aos

primeiros colonizadores, marcados pela secular presença árabe em seu território.

De acordo com Gilberto Freyre, a presença de árabes e judeus na Península Ibérica foi

especialmente marcante para delinear os traços genéticos e culturais que contribuíram para a

formação do povo português às vésperas das grandes navegações. Durante o domínio árabe,

boa parte da população ibérica deixou-se influenciar pelo modo de vida, gostos e costumes

dos mouros. No momento em que a reconquista cristã retoma as terras invadidas e o domínio

da península, esta parte da população, já impregnada pelo sangue, cultura e saber árabe devido

a sua presença quase milenar, passa a constituir o substrato social, econômico e cultural da

população portuguesa.

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Quando aquela população socialmente móvel, mobilíssima mesmo, voltou à Europa cristã, foi trazendo consigo uma espessa camada de cultura e uma enérgica infusão de sangue mouro e negro que persistiram até hoje no povo português e no seu caráter. Sangue e cultura que viriam ao Brasil; que explicam muito do que no brasileiro não é europeu, nem indígena, nem resultado do contato direto com a África negra através de escravos. Que explicam o muito de mouro que persistiu na vida íntima do brasileiro através dos tempos coloniais. Que ainda hoje persiste até mesmo no tipo físico (FREYRE, 2003, p. 288).

A região do Algarve português viu-se livre do domínio árabe no ano de 1249,

duzentos e quarenta e três anos antes da tomada de Granada pelos reis católicos Fernando e

Isabel, e duzentos e cinquenta anos antes de os portugueses aportarem no Brasil. Poderíamos

nos perguntar se esta diferença de quase dois séculos e meio sem a presença árabe em terras

portuguesas teriam diminuído a ação da influência exercida durante os séculos anteriores pelo

domínio árabe na península. Para esta resposta contamos com o argumento comum entre

Gilberto Freyre e Luís Soler que dizem ter Portugal investido na expansão marítima após a

retomada de seu território e que com isso chegaram a dominar terras mouras, como Ceuta no

ano de 1415. Como consequência desta investida, a influência que era exercida pelos árabes

em território português quando dominadores, passou neste momento a ser exercida como

dominados por meio da presença de escravos árabes que atendiam aos senhores portugueses,

muito apreciadores das habilidades e cultura de seus servos.

No fim do século XV, houve dois importantes acontecimentos: a queda do império

árabe na Península Ibérica e a largada de Cristóvão Colombo rumo a uma jornada

transoceânica que o trouxe até o continente americano, o chamado Novo Mundo. Sobre esse

fato, Câmara Cascudo (1984, p. 15) comenta: “O mouro viajou para o Brasil na memória do

colonizador. E ficou. Até hoje sentimos sua presença na cultura popular brasileira”.

A presença moura a que se refere Câmara Cascudo pode hoje ser encontrada pelo

Brasil adentro em expressões do linguajar (é das arábias! Expressão de habilidade e astúcia),

interjeições (Arre! Tão comum entre os nordestinos), em manifestações culturais como as

Cheganças (combate entre cristãos e mouros), vestimentas (o uso da alpercata, ou apragata

como dizem os nordestinos referindo-se ao calçado milenar usado pelos árabes que o chamam

al-pargat), no preparo de doces e cuscuz, em contos populares (como o da Moura Torta),

costumes e superstições, entre tantas outras manifestações.

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No que diz respeito à música, Câmara Cascudo observa uma sensível presença

oriental, especialmente moura, na música da cultura popular brasileira, notadamente nas

canções do interior do sertão nordestino como nos cantos de aboio, na impostação vocal das

cantadeiras e no modalismo que frequentemente serve de estrutura para a construção de

melodias tradicionais.

Sobre este aspecto de influência no campo musical contamos com a pesquisa de Luis

Soler dedicada às origens árabes no folclore do sertão brasileiro, título de seu livro em que,

entre outros assuntos, o autor chama a atenção para a influência árabe em instrumentos como

o pífano que, por ser tocado de maneira transversal, denota sua origem arábico-andaluz visto

o uso corrente da flauta reta na Europa medieval. Outros instrumentos teriam a mesma

origem, como a rabeca, derivada do rebab árabe, e a viola, advinda do Al-úd que evoluiu para

e vihuela hispânica chamada de viola em terras portuguesas. Outra influência apontada por

Soler seria a forma de construção poética e musical utilizada pelos cantadores nordestinos,

derivada dos jograis medievais, estes influenciados pela cultura árabe peninsular. Os jograis

teriam sido intérpretes, colaboradores e até parceiros artísticos dos trovadores e ganhavam a

vida apresentando-se diante de um público para diverti-lo por meio da música, acrobacia, e

diversos outros meios, esperando receber algum pagamento em troca. Soler não faz nenhuma

menção ao pandeiro como instrumento derivado da cultura árabe, tampouco à sua presença e

utilização pelos cantadores advindos dos jograis, como seria de se supor. No entanto, Câmara

Cascudo faz a seguinte declaração sobre a origem árabe do pandeiro no Brasil:

Convenço-me de que o pandeiro e seus descendentes, mesmo sendo asiático, devem os espanhóis e portugueses aos mouros sua aclimatação. O pandeiro redondo ou retangular, adufe, o tamborim que os tupiniquins ouviram soar pelos marinheiros de Pedro Álvares Cabral em maio de 1500 nas praias de Porto Seguro, foram e são instrumentos inseparáveis dos cantos e danças mouras. Não estavam no Brasil do século XV, como estavam os tambores e trombetas. O português trouxera aquela oferta dos mouros, mouriscos, moçárabes, mudejares, bailarinos e cantadores, quando a Espanha era muçulmana e Portugal quase agareno. O adufe, que Maria, irmã de Moisés, com suas companheiras, tocou e cantou, festejando o afogamento egípcio no Mar Vermelho (Êxodo, 15,20), era percutido na cidade do Salvador no fim do século XVI e sempre por mão feminina, como ainda ocorre em Portugal na marcha das romarias e folgares do arraial (CASCUDO, 1984, p. 27-28).

De acordo com a citação de Cascudo, é possível supor que a tripulação que embarcou

com Cabral, e antes ainda com Colombo, rumo ao Novo Mundo tenha trazido consigo, além

dos mantimentos e utensílios necessários para a jornada, alguns objetos próprios de sua

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cultura voltados aos momentos de lazer e descontração, instrumentos musicais como a gaita,

rabeca, viola, tamborins e pandeiros. Acreditamos que desde os primeiros momentos da

colonização o pandeiro tenha estado presente em terras brasileiras, junto aos outros

instrumentos citados, e que tenha sido utilizado em momentos festivos e votivos tanto pela

tripulação das naus portuguesas quanto pela população que passou a habitar o Novo Mundo.

3.2 O pandeiro sob a influência dos cristãos novos

Entre a população destinada a habitar e colonizar as terras do Novo Mundo, é sabido

que houve um significativo contingente de cristãos novos, judeus forçadamente conversos ao

cristianismo em Portugal que vislumbraram uma possibilidade de prosperidade em terras

distantes àquelas que os oprimiam. Assim contou-se com a presença de judeus em terras

brasileiras desde o início da colonização. Ao contrário do que ocorreu com a influência árabe

que aqui chegou nos primeiros anos da colonização por meio apenas da memória e hábitos da

população ibérica, a presença judaica foi personificada pelos de sua origem, pelos judeus

conversos ao cristianismo, expulsos de Portugal e que para o Brasil colônia trasladaram.

Os judeus, também habitantes seculares da Península Ibérica conforme apresentado no

decorrer do capítulo 2, produziram, tanto quanto os mouros, traços marcantes e

inconfundíveis nos portugueses e estas características também vieram para o Brasil com seus

colonizadores lusitanos. Desta forma, a cultura judaica marcou os primeiros anos da

colonização brasileira por meio de uma dupla presença, a física e a de herança cultural.

Houve uma especial demanda migratória de cristãos novos para Pernambuco durante

seu domínio holandês, até 1654. Sob a promessa de maior liberdade cultural e religiosa por

parte da Holanda, os primeiros judeus a chegar nessas terras por meio da colonização

portuguesa facilitaram o acesso aos holandeses colaborando para o êxito da invasão. Em

1642, entraram em Pernambuco algumas centenas de judeus, muitos com boa formação

intelectual, entre estes, alguns rabinos. Com a expulsão dos holandeses e a retomada de

Pernambuco pela Coroa portuguesa, muitos judeus voltaram ao exílio, uns para a Holanda e

outros para possessões holandesas na América como a Guiana e as Antilhas. Toda essa

movimentação semita fez com que o tribunal do Santo Ofício, instalado na Bahia,

intensificasse suas ações persecutórias aos judeus de Pernambuco. Gilberto Freyre afirma que,

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longe do Tribunal do Santo Ofício, é provável que São Paulo tenha sido o lugar onde houve

maior miscigenação entre a população local e os cristãos novos (FREYRE, 2003, p. 80).

Traços da influência judaica nos hábitos e costumes do brasileiro já foram identificados por

pesquisadores como Câmara Cascudo (1984), mas esta dissertação não encontrou respaldo

documental que atestasse sua presença na cultura musical brasileira.

Ainda que não tenham sido localizadas fontes que apresentem a influência de

elementos da cultura judaica na música brasileira, ao contrário do que ocorreu com a cultura

árabe, este trabalho encontra espaço para supor que a significativa presença judaica no

período colonial brasileiro tenha deixado rastros também na cultura musical, mais

objetivamente no uso do pandeiro, o frame drum remanescente da cultura musical ibero

medieval que envolve, entre outros povos influentes, os judeus com o seu tof, conforme

descrito no capítulo 2.

A presença do tof, o frame drum hebraico, na Península Ibérica medieval já foi

destacada no tópico 2.2.3 que nos apresentou, inclusive, algumas reminiscências

criptojudaicas deste instrumento em comunidades portuguesas contemporâneas. Tais

comunidades fazem uso do Adufe, o frame drum quadrado de pele dupla que tem seu nome

derivado do al-duff, que por sua vez derivou do tof, e que também pode ser atualmente

encontrado em algumas congadas de Minas Gerais sob o nome de tamburim.

Novamente nos permitimos supor que o tof hebraico deva também ter encontrado

lugar e representação entre os cristãos novos que para o Brasil colônia vieram. Esta suposição,

conforme já foi dito, não encontra respaldo textual ou iconográfico original deste período e

isto provavelmente se deve ao fato de que os cristãos novos, mesmo em terras brasileiras,

continuaram sendo perseguidos e marcados, não deixando, por isso, rastros de suas práticas

culturais e religiosas que, ao que tudo indica, não deixaram de ser exercidas. Além disso, o

povo judeu, sua cultura e influências são ainda vistos sob o olhar quinhentista que destaca os

atributos negativos imputados pela historia e pelo cristianismo. Entende-se que sob este olhar

não interessa destacar aspectos que identifiquem influências judaicas na formação cultural

brasileira, o que minimiza a produção de pesquisas sobre este tema. O desenvolvimento de

tais hipóteses mereceria maior aprofundamento e destaque como tema em uma pesquisa

futura.

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3.3 O pandeiro como instrumento na catequização

Sabemos do grande interesse com que a Coroa Portuguesa investiu na formação

católica dos indígenas no Brasil por meio das ações de padres jesuítas durante dois séculos. A

Companhia de Jesus empenhou-se na catequização e educação indígena desconsiderando a

cultura e valores locais e impondo a religião e cultura lusitana, ensinando, além da doutrina da

fé aos jovens curumins, também a ler e escrever em latim, a cantar e a tocar instrumentos

musicais portugueses. Para a execução deste plano contaram ainda com a presença de crianças

portuguesas órfãs e mestiços filhos de colonos estimulando a aprendizagem dos curumins. Os

jesuítas perceberam que poderiam utilizar a música como eficiente instrumento catequizador e

uma de suas primeiras estratégias para isso foi elaborar um repertório de canções sacras com

letras em tupi. A catequização por meio da música pareceu um método tão eficaz que contou

ainda com um pedido de incremento de instrumentos musicais vindos de Portugal, registrado

pelo Pe. Francisco Pires:

Parece-me, já que eles gostam de música, que se tocássemos e cantássemos entre eles, os ganharíamos, pois existem diferenças entre o que eles fazem e o que nós fazemos e faríamos se Vossa Realeza nos provesse de alguns instrumentos para que aqui tenhamos (contando com alguns meninos que venham a conhecer as flautas, gaitas [...] e um par de pandeiros e chocalhos). Se viesse algum tocador de tambor e tocador de gaita para cá, parece-me que não haveria homem importante que não nos desse seus filhos para que os ensinássemos (GOMES, 1990-1991, tradução nossa).27

Encontramos alguns poucos textos da época que atestam a ação musical dos indígenas

executando instrumentos europeus. Dentre estes, contamos com os relatos do padre Cardim

que, na intenção de inspecionar o trabalho desenvolvido pelos jesuítas, percorreu algumas

regiões entre os anos de 1583 e 1590 registrando muitas passagens sobre o cotidiano

brasileiro no período colonial. Encontramos um de seus relatos citado por Darcy Ribeiro em

seu livro O povo brasileiro aonde o padre Cardim nos conta como eram recebidos os

visitantes nos povoados indígenas da época:

Os cunumis meninos, com muitos molhos de flechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita, e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do padre, dizendo em português, “louvado seja Jesus Cristo”. Outros saíram com uma

27 “Parézeme, según ellos son amigos de cosas músicas, que nosotros tañendo y cantando entre ellos los ganaríamos, pues diferencia ay de lo que ellos hazen a lo que nosotros hazemos y haríamos si V. Ra. Nos hiziesse proveer de algunos instrumentos para que acá teñamos (imbiando algunos niños que sepan tañer, como son flautas, y gaitas, y nésperas [...] y un par de pandeiros y sonajas). Si viniesse algun tamborileiro y gaiteiro acá, parézeme que no havría Principal que no diesse sus hijos para que los enseñassen” (GOMES, 1990-1991).

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dança d’escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro, tamboril e flauta, e juntamente representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris. Tudo causava devoção debaixo de tais bosques, em terras estranhas e muito mais por não se esperarem tais festas de gente tão bárbara (CARDIM, 1980, p. 145 apud RIBEIRO, 2006, p. 165/166).28

O propósito educativo e doutrinário com que a música foi tratada pelos jesuítas em

suas missões e colégios ajudou a introduzir o pandeiro na sociedade colonial brasileira,

tornando-o desde já um instrumento popular, acessível e presente em ritos e festas

comunitárias ou de religiosidade popular.

Apesar de não havermos encontrado textos ou imagens que descrevam o formato do

pandeiro neste período correspondente, podemos supor que sigam o modelo português que

poderia ser redondo ou quadrado, com ou sem guizos ou platinelas, conforme descrito no

tópico 2.2.5.

3.4 O pandeiro na iconografia brasileira colonial e a presença de escravos negros

O período colonial brasileiro apresenta um rico material iconográfico que nos dá a

ideia de como eram as paisagens e modos de vida da colônia. Este material encontra-se nos

álbuns de artistas viajantes, quadros, gravuras e esculturas que foram produzidos

significativamente a partir do século XIX com a abertura dos portos às nações amigas da

Coroa portuguesa, o que facilitou o acesso e deslocamento pela colônia à vinda de expedições

científicas, diplomatas, negociantes, engenheiros militares, e, entre estes, alguns talentosos

artistas que retrataram o cotidiano da colônia brasileira.

Os três primeiros séculos da colonização apresentam uma iconografia mais escassa

que foi sendo ampliada progressivamente à medida em que cresciam o interesse e acesso às

terras brasileiras. Encontramos, nesta dissertação, apenas um documento ilustrando a presença

do pandeiro no século XVII e nenhum para o século XVI. Devido a esta escassez de material

iconográfico voltada para um tema tão específico, optou-se aqui por avançar um século

adiante em busca de mais algum documento que pudesse ilustrar a presença do pandeiro no

Brasil colônia, o que resultou em uma escolha positiva.

28 CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP: 1980, p. 145.

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Apresentamos a seguir três documentos iconográficos que ilustram a presença dos

pandeiros no período colonial brasileiro. O primeiro deles, representado pela figura 21, é de

autoria de Johann Nieuhoff (1618-1672) e nos mostra em primeiro plano um casal de escravos

negros tocando instrumentos de percussão. O homem toca um reco-reco de cabaça e a mulher

toca um pandeiro redondo com platinelas enquanto dança.

21. Johann Nieuhoff. Negers Speelende op KalabaSen, 1682. Gravura29

29 O autor da imagem, Johann Nieuhoff, chegou ao Brasil em 1640 a serviço da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais e aqui permaneceu por nove anos, experiência que relatou em Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil (MOURA, 2012, p. 281).

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As aquarelas das figuras 22 e 23 são de Carlos Julião (1740-1811) que, mesmo tendo

nascido na Itália, serviu à Coroa Portuguesa como militar expedicionário nas colônias do

Marrocos, China, Brasil e Índia. São cenas de cortejo e coroação de rainha e rei negros

ocorridas na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Entre tantos

instrumentos musicais de origem europeia e africana, há um pandeiro redondo e outro

quadrado em cada figura, tocados por escravos negros. O quadrado se toca com uma baqueta,

como vemos hoje em algumas congadas mineiras, chamado pelos congadeiros de “tamburim”.

22. Coroação da rainha negra na Festa de Reis, 1776 (MOURA, 2012, p. 296)

23. Carlos Julião. Coroação de um rei nos festejos de Reis, 1776 (MOURA, 2012, p. 299)

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24. Adufe e pandeiro juntos – detalhe da figura 22

25. Adufe e pandeiro juntos – detalhe da figura 23

As figuras 21, 22 e 23 mostram pandeiros redondos com platinelas e quadrados

tocados com baqueta, entre os séculos XVII e XVIII no Brasil colônia, tal como estiveram

presentes na Península Ibérica medieval, como vimos no capítulo 2, todos ainda sustentados

na vertical, segundo a maneira tradicional de se tocar um frame drum (Anexo B).

Vendo esses pandeiros representados nas mãos de escravos negros, poderíamos supor

que tenham origem africana, posto não havermos encontrado documentação iconográfica que

os apresente em mãos de colonizadores portugueses. Como vimos, os documentos literários

fazem o contraponto dessa suposição, mostrando que o pandeiro chegou ao Brasil com os

primeiros navegantes e jesuítas, ainda na primeira metade do século XVI – antes, portanto,

dos escravos negros.

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Estes provinham de diferentes regiões da África e com idiomas, hábitos e costumes

muito distintos. Entre os diferentes grupos culturais de escravos negros trazidos ao Brasil,

vieram também aqueles de cultura islamizada como os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do

norte da Nigéria, conhecidos na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros

alufá (RIBEIRO, 2006, p. 102). Grande parte dos povos africanos que vieram ao Brasil não

contam, tradicionalmente, com um frame drum como instrumento musical presente em sua

cultura, à exceção dos negros islamizados que fazem uso dos frame drums em suas atividades

musicais como herança cultural do domínio árabe em seus territórios. Sabendo-se que os

negros trazidos ao Brasil como escravos eram transportados sem nenhum dos seus pertences,

apenas com a roupa do corpo, podemos supor que os negros islamizados teriam aqui se

reencontrado com o pandeiro trazido pelos portugueses e mantido com este instrumento uma

relação de identidade e aproximação cultural e musical observada nas figuras 21, 22 e 23.

Não contamos com informações que atestem a origem islâmica dos negros retratados

nestas gravuras, apenas podemos supor que estes sejam escravos islamizados devido a

localização das imagens, região de colonização holandesa na figura 21 e Rio de Janeiro nas

figuras 22 e 23, locais de maior concentração de escravos islamizados na colônia. É possível

também que estes personagens das gravuras pertençam a outras etnias, visto que estavam

todas misturadas nas senzalas conforme a estratégia praticada de desestabilização da

identidade cultural dos povos africanos que para o Brasil vieram, e que eles tenham ainda

incorporado o pandeiro a suas práticas conforme ocorreu com tantas outras apropriações

culturais devido às condições de convivência.

No terreno das suposições, aberto a pesquisas futuras, imagina-se que o pandeiro possa

ter sido incorporado nas senzalas tanto pelas mãos de escravos islamizados, que apresentavam

maior intimidade cultural com o instrumento, quanto por escravos de outras etnias que

passaram a assimilar o uso dos instrumentos musicais europeus, como nos mostra as aquarelas

de Carlos Julião (figuras 22 e 23). Em ambos os casos, mesmo que o pandeiro tenha sido

incorporado pelos escravos negros, como nos mostra a iconografia da época, o pandeiro

chegou ao Brasil junto aos primeiros colonizadores e jesuítas, ou seja, pelas mãos dos ibéricos

portugueses.

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COMENTÁRIOS FINAIS

Após apresentarmos o percurso que marcou a trajetória dos pandeiros ao Brasil desde

a antiguidade histórica, passando pela idade média na Península Ibérica até chegar ao Novo

Mundo no século XVI, retomaremos alguns pontos apresentados com o propósito de alinhá-

los e conectá-los.

Iniciamos esta trajetória levantando algumas referências contemporâneas sobre o que

podemos considerar como frame drums e pandeiros. Esta primeira etapa foi importante para

apresentar ou esclarecer algumas ideias e conceitos sobre estes instrumentos, tão citados no

decorrer dos capítulos posteriores. Observamos que o termo frame drums representa o

conjunto de instrumentos de percussão caracterizados por sua forma de construção que inclui,

basicamente, uma pele esticada a uma estrutura de profundidade menor do que o raio desta

pele. Historicamente o termo frame drums trata de agrupar os instrumentos a partir de uma

visão organológica e, o que pudemos observar é que, necessitamos acrescentar aspectos

socioculturais para que estes instrumentos tanto continuem a formar uma família, um coletivo,

quanto possam ser reconhecidos por suas identidades. Atualmente contamos com tecnologia

suficiente para construirmos instrumentos que dispensam o corpo ressonador para a projeção

sonora, sem descaracterizar seu timbre original, conforme foi apontado no exemplo de

construção de uma conga cubana sem o corpo ressonador do tópico 1.2. Este novo formato de

uma conga cubana atende a descrição organológica de um frame drum (pele presa a um aro ou

a um corpo de proporção menor do que o raio de sua pele) e, caso não considerássemos os

aspectos socioculturais e históricos envolvidos na classificação destes instrumentos, teríamos

um moderno protótipo de conga cubana integrando a família de frame drums. Com relação

aos pandeiros encontrados no Brasil, estes estão incluídos na categoria de frame drums tanto

por seu aspecto organológico quanto pelos socioculturais e históricos que o caracterizam e

identificam como instrumentos brasileiros. Todo o levantamento feito acerca da conceituação

de frame drums, levou-nos a decisão de, nesta dissertação, manter este termo como forma de

nos referirmos genericamente a este conjunto instrumental. Esse primeiro capítulo serviu a

intenção de nos preparar para os capítulos posteriores, apresentando-nos a uma nomenclatura,

conceituação e reflexões acerca dos instrumentos que viriam a ser citados, os frame drums e

pandeiros. O Anexo A serve como material complementar a esse capítulo, pois nos introduz a

alguns pandeiros e frame drums contemporâneos por meio de seu local de origem, nome,

formato e a algumas particularidades e aspectos sócioculturais dos instrumentos levantados.

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Após as reflexões e considerações sobre os frame drums e pandeiros na

contemporaneidade expostas no capítulo 1, recuamos alguns séculos em busca de pistas sobre

a origem ibero medieval dos pandeiros, expostas no capítulo 2. Este recuo foi necessário para

a compreensão de aspectos históricos e culturais sobre o povo que, logo após o período

Medieval, aportou em terras brasileiras, provindos da Península Ibérica e trazendo consigo

muito de seus hábitos e costumes, entre estes os pandeiros. Os testemunhos da presença de

frame drums e pandeiros na Idade Media Peninsular foram representados, principalmente, por

registros iconográficos que ilustraram a utilização de frame drums quadrados e redondos,

desde a antiguidade clássica, sendo tocados especialmente por mulheres em ocasiões

cerimoniais, festivas, palacianas e religiosas. Notou-se que estes instrumentos fizeram parte

da cultura do povo árabe que dominou a Península Ibérica por 780 anos, coabitando com

judeus, muçulmanos e cristãos, todos fazendo uso de frame drums. Estes instrumentos eram

chamados por diversos nomes que variavam de acordo com a sua origem árabe (duff), judaica

(tof), ou galaico-portuguesa (pandeiro). Para efeito de compreensão o conteúdo desse capítulo

foi dividido de forma a apresentar um panorama sociocultural do povo árabe à época da

dominação da Península Ibérica e sua contribuição para a construção cultural deste território

ocidental. Além dos árabes, representados especialmente pelos muçulmanos, a presença

judaica e cristã, coabitando o mesmo território, foi muito significativa para esta construção

cultural e, consequentemente, para a destacada presença dos frame drums e pandeiros. Ao

final do século XV a palavra galaico-portuguesa pandeiro era frequentemente utilizada para

representar especialmente os frame drums redondos em situação cotidiana, nas ocasiões

formais o mesmo instrumento era chamado de tympanum, seu nome em latim, a língua culta

do período. Os pandeiros passaram e ter, cada vez mais, elementos ressonadores como

platinelas, o que apontava para uma mudança de padrão da estética sonora da época e para o

protótipo do que hoje conhecemos como pandeiro no Brasil. Foram estes os instrumentos, já

denominados pandeiros pela sua utilização popular, não formal, em idioma galaico-portugues,

que aportaram ao Brasil no período colonial trazidos por aqueles que vieram de Portugal e

anteviram a forma arredondada e a utilização popular do que hoje conhecemos como pandeiro

no Brasil.

A trajetória dos pandeiros ao Brasil proposta por esta dissertação encerra-se com a

chegada destes instrumentos pelas mãos dos primeiros colonizadores e sua permanência,

desenvolvimento e utilização nos primeiros duzentos anos em território brasileiro, conforme

apresentado no capítulo 3. Foi preciso reconhecer quem teriam sido estes primeiros

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colonizadores que aportaram ao Novo Mundo vindos da Península Ibérica no final do período

Medieval, repletos de remanescentes influências culturais herdadas pela permanência árabe de

quase oito séculos no território peninsular conforme apresentado no capítulo 2. Estas

influências fizeram com que os árabes viajassem ao Brasil colônia por meio da memória,

hábitos e costumes do português que trouxe consigo os pandeiros em sua bagagem. Se por um

lado não se contou com a presença física de árabes no início da colonização brasileira, o

mesmo não se pode dizer dos judeus, cristãos-novos que aqui chegaram e que em muitos

casos seguiram com seus costumes de forma cripto-judaica. Este povo contava com um frame

drum chamado tof como um representativo instrumento de sua cultura, conforme abordado no

capítulo 2, e, desta forma, devem haver colaborado para a permanência e disseminação do

pandeiro no Brasil desde os primeiros anos de colonização. O pandeiro também chegou a

servir aos propósitos cristãos como instrumento de catequização jesuíta em terras brasileiras,

conforme relatos levantados por cartas da época. Nesta etapa contou-se novamente com

alguns testemunhos iconográficos e outros textuais como forma de documentar a presença e

utilização dos pandeiros em território brasileiro desde o início da colonização. A iconografia

em território brasileiro nos mostrou pandeiros redondos, com ou sem pele, com platinelas ou

quadrados tocados com baqueta em posição vertical sendo utilizados por uma massa popular,

basicamente de escravos e em ocasiões de festividades na rua. Aqui vemos cumprir a

promessa de utilização do pandeiro galaico-português como instrumento popular em lugar do

tympanum latim, tal qual ocorria no final do século XV na Península Ibérica. As mãos dos

índios catequizados ou dos escravos negros serviram para propagar a cultura e o gosto por

tocar estes instrumentos que, se chegaram ao Brasil pelas mãos de colonizadores ibéricos

impregnados da memória cultural árabe, por cristãos-novos e por padres jesuítas aqui se

disseminaram no gosto popular. Vale considerar também a forte contribuição que os escravos

islamizados vindos para o Brasil colônia exerceram pela permanência, desenvolvimento e

propagação do pandeiro, pois, mesmo não trazendo consigo nenhum dos seus pertences na

viagem dos navios negreiros, estes escravos islamizados carregaram a memória de sua cultura

e se reencontraram com o pandeiro em território brasileiro, um representativo instrumento da

cultura árabe e muçulmana.

De acordo com tudo o que foi apresentado pudemos notar que o pandeiro galaico-

português do final do século XV encontrou no Brasil um terreno fértil para sua propagação e

permanência. Os judeus e cristãos-novos, a memória cultural árabe do colonizador, os

escravos islamizados e os índios e crianças catequizados foram os personagens que trouxeram

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e/ou mantiveram o pandeiro e o interesse pela sua difusão em território colonial como

instrumento de aceitação popular. Os pandeiros são hoje encontrados de norte a sul do Brasil,

utilizados em diversas manifestações populares como na Folia de Reis, Congadas, Bumba-

meu-boi, Capoeira, Cavalo Marinho, em gêneros musicais como o Choro, o Samba, o Frevo e,

mais recentemente, na música pop. Cada uma destas manifestações e gêneros conta com um

pandeiro diferente em sua forma de construção, tamanho, forma de sustentação para a

execução musical e contexto sócio cultural, mas a todos chamamos pandeiro e possuem a

mesma origem que teve início com os povos da antiguidade, passando para a Península

Ibérica medieval e chegando ao Brasil e às terras do Novo Mundo de acordo com o que foi

apresentado nesta dissertação. Aqui se abre um espaço para o desenvolvimento desta pesquisa

que aponta para a continuidade desta trajetória dos pandeiros em território brasileiro após os

primeiros duzentos anos de colonização, sua disseminação nacional e utilização em tantas e

diferentes manifestações culturais da atualidade. Na primeira parte do Anexo A, apresentam-

-se sucintamente alguns dos atuais pandeiros brasileiros, contextualizando a trajetória, a

permanência, a transformação e a disseminação dos pandeiros, além de confrontar algumas

das diferenças entre eles.

O conteúdo levantado e as reflexões geradas ao longo de toda a construção desta

dissertação me levaram a perceber o quanto é possível se conhecer sobre um povo partindo de

um instrumento, neste caso musical, que o represente. O pandeiro é considerado um dos

instrumentos de maior identidade nacional e, por este motivo, o levantamento de fontes

históricas e culturais envolvendo este instrumento representou um mergulho na história

cultural do povo brasileiro. A trajetória dos pandeiros ao Brasil não se deu apenas por meio de

uma viagem transatlântica em caravanas portuguesas, é uma trajetória que percorreu séculos e

milênios viajando por muitos caminhos, regiões e culturas pelas mãos das pessoas envolvidas

com o fazer musical, artístico e cultural em que foram envolvidos os pandeiros.

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REFERÊNCIAS

A HAGADÁ DE SARAJEVO. Revista Morashá, n. 40, mar. 2003. Disponível em: <http://www.morasha.com.br/conteudo/artigos/artigos_view.asp?a=202&p=0>. Acesso em: 30 mar. 2014.

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ANEXOS

ANEXO A – Pandeiros e frame drums

Pandeiros

A palavra pandeiro é utilizada tanto em Portugal quanto no Brasil, referindo-se a

instrumentos bastante semelhantes, mas com funções e especificidades distintas. É possível

que em outros países colonizados por Portugal este instrumento também esteja presente e

identificado pelo mesmo nome. Esta pesquisa não percorreu o rastro destas informações,

limitando-se a tratar do pandeiro entre Brasil e Portugal.

O musicólogo português Veiga de Oliveira (2000, p. 276) classifica o pandeiro

português como um unimembranofone, sempre redondo “de aro monóxilo circular, com uma

ou duas filas de soalhas de lata que ficam à vista e jogam em pequenos rasgos nele abertos,

funcionando assim, além de membranofones, também como idiofones sacuditivos”. O autor

afirma ainda que o pandeiro já não é utilizado com muita frequência nos dias de hoje em

Portugal, podendo ser encontrado em ocasiões cerimoniais, especialmente nas celebrações de

natal, ou em festas populares.

No Brasil este instrumento ganha ares de expressividade, estando presente em diversas

manifestações culturais e festas populares tanto de comunidades rurais como urbanas. Apesar

de assumir o formato arredondado, apresenta muitas diferenças com relação ao seu diâmetro,

formas de sustentação e execução, a depender do contexto musical em que é empregado. O

pandeiro está fortemente presente em gêneros como o choro, samba, no jogo de capoeira, nas

emboladas, e vem se integrando também à musica pop nacional.

Adquirir um pandeiro no Brasil é tarefa simples, existem fábricas com seus

instrumentos patenteados e luthiers especializados na arte da fina construção deste

instrumento.

A depender do gênero em que o pandeiro será tocado, seu diâmetro, membrana, aro e

estrutura podem variar consideravelmente. O Choro, por exemplo, pede um pandeiro de dez

polegadas, com pele de couro, medianamente tensionada para permitir que os sons graves

sejam mais explorados, corpo em madeira e platinelas delicadas, conforme modelo

apresentado nas figuras 26, 27 e 28. Os grupos de samba e pagode costumam utilizar um

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pandeiro maior, geralmente de 12 polegadas ou mais, com pele de plástico bem tensionada e

com a estrutura do corpo também de plástico.

26. Pandeiro de choro – vista frontal

27. Pandeiro de choro – vista posterior

28. Pandeiro de choro – vista lateral

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É muito comum encontrarmos no Brasil os pandeiristas segurando o instrumento na

posição horizontal, uma raridade entre os frame drumers, mas uma marca característica da

execução do pandeiro no Brasil, principalmente nos centros urbanos. Este tema mereceria

maior investigação e aprofundamento, dada a expressiva diferença de forma de sustentação de

um pandeiro brasileiro em posição horizontal frente aos frame drums orientais e

mediterrâneos. Podemos aqui supor que esta forma de sustentação horizontal de um pandeiro

no Brasil tenha sido possivelmente desenvolvida pela presença de escravos africanos que, à

exceção dos escravos islamizados, não tinham tanta intimidade com a sustentação vertical

destes instrumentos e, por isso passaram a segurá-lo na posição horizontal simulando um

tambor ou atabaque, mais próximos de sua cultura original. Isto explicaria também os golpes

de mão utilizados para a execução da maioria dos pandeiros no Brasil, mais próximos dos

golpes utilizados para se tocar um atabaque e diferente dos frame drums que são tocados com

uma técnica que utiliza muito os dedos para sua execução instrumental. Estes temas foram

debatidos com alguns dos entrevistados no Anexo D, mas não foram suficientemente

abordados e desenvolvidos neste trabalho por merecerem maior aprofundamento e pesquisa

que validassem as hipóteses levantadas. Nas manifestações de cultura popular em que o

pandeiro é utilizado, é possível encontrarmos os pandeiristas sustentando o instrumento na

posição vertical, mais tradicional entre os frame drumers, como em Congadas, Folias de Reis

e Bumba-meu boi do Maranhão, conforme veremos adiante. As diferentes possibilidades de

sustentação de um pandeiro ou frame drum são apresentadas no Anexo B.

Para ver e ouvir:

• Jackson do Pandeiro. Chiclete com banana. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=EWjLg74cS4A>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Jorginho do Pandeiro. Chorando sem parar, 2011. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=kd-sbZGqhgA>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Pandeiro do Guello e Rebolo de Esteira do Sampaio. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=kU23shzJn3A>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Pandemônio (Marcos Suzano)/Lundu Característico (Joaquim Callado). Trio 3-63.

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=dIdV-Ak9hi0>. Acesso em: 6

jun. 2014.

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• Alexandre Gismonti e Sergio Krakowski. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=qHGAUUhSb6w>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Verde Lins & Pena Branca. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=pPlHMPcJziw>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Seguem-se outros modelos de pandeiros encontrados no Brasil, os frame drums

brasileiros.

Pandeirão do Maranhão

Este instrumento brasileiro é tradicionalmente utilizado no Bumba-meu-boi, uma

dança dramática comunitária com várias interpretações pelo Brasil adentro, mas que neste

caso refere-se ao Estado do Maranhão.

No Estado do Maranhão existem dois “sotaques” (termo que distingue os diferentes

estilos desenvolvidos neste Estado de acordo com o local, instrumentação musical,

indumentária, formas de cantar, dançar e atuar) chamados de “sotaque da ilha” e “sotaque de

Pindaré” em que enormes pandeiros são utilizados como parte da instrumentação e são

denominados “pandeirão do Maranhão”.

Estes instrumentos possuem aproximadamente cinquenta centímetros de diâmetro e

são construídos com variações de diâmetro para que diferentes alturas e afinações ocorram

durante a apresentação.

A pele do instrumento é de cabra ou bode e os pandeirões têm suas peles afinadas

quando são aproximados de uma fogueira, feita especialmente para esta finalidade. Estes

pandeirões são sustentados de forma vertical em duas posições distintas, uma delas acima do

ombro e a outra abaixo do quadril.

André Bueno descreve a execução dos pandeirões no “sotaque da Ilha” como:

[...] enormes pandeirões sustentados em frente ao rosto que, em formato de vinte a cem tocadores, produzem o som da “tropeada”: dialogam ritmicamente duplas e trios eventuais de pandeirões onde o mais grave dá o “murro” da marcação e os mais agudos dobram e “repicam” ou “retinem”, num processo similar ao dos surdos das escolas de samba (BUENO, 2001, p. 33).

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Já no “sotaque de Pindaré”, os pandeirões são tocados abaixados, rentes às pernas. Em

ambos os casos, os tocadores de pandeirões executam golpes vigorosos com toda a mão

direita espalmada na pele do instrumento, ora golpeando-o ao centro, ora nas bordas.

As festas de Bumba-meu-boi no Maranhão obedecem a um calendário distribuído

durante o ano e mobilizam centenas de pessoas pelas ruas.

Esse instrumento é reconhecido como um dos frame drums brasileiros e já mereceu

pesquisas e artigos em que foi citado também fora do Brasil.

29. Pandeirão do Maranhão – vista frontal 30. Pandeirão do Maranhão – vista posterior

31. Pandeirão do Maranhão – vista lateral

Para ver e ouvir:

• Trio de Pandeirões. Boi de Matraca. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=bgRHnhZuRx0>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Sotaque de Matraca. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=Vq3vShrJZXo>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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Tamborim

Talvez este seja o menor frame drum encontrado no Brasil e um dos menores do

mundo. Sua medida é de 15cm a 20cm de diâmetro, seu enquadramento pode ser feito de

madeira ou metal e a pele pode ser de plástico ou animal.

É um instrumento usado geralmente em gêneros como Bossa Nova e Samba, sendo

particularmente explorado nas Escolas de Samba onde é tocado em naipe.

Quando faz parte de um pequeno conjunto instrumental é geralmente tocado com uma

baqueta leve ou com o dedo indicador da mão direita enquanto a mão esquerda, que sustenta o

instrumento quase em posição horizontal ou num ângulo de 45 graus, também participa da

execução musical utilizando o dedo indicador na parte interna do instrumento para produzir

sons mais abafados.

Nos naipes de Escolas de Samba o Tamborim é um dos instrumentos mais agudos de

todo o conjunto instrumental e para se produzir os sons agudos e fortes o percussionista

utiliza uma baqueta plástica de três hastes, flexíveis, com a qual golpeia o instrumento. Por

ser um instrumento muito leve, os naipes de Tamborim geralmente desenvolvem uma

movimentação coreográfica comum para destacar algumas frases rítmicas.

Existe uma movimentação bastante particular utilizada para tocar este instrumento em

que a mão esquerda o sustenta verticalmente produzindo movimentos de rotação interna com

o pulso, obedecendo a uma célula rítmica de quatro semicolcheias em que as primeiras três

semicolcheias são executadas com o instrumento em posição vertical, e na última

semicolcheia ocorre o movimento de rotação da mão esquerda.

32. Tamborim – vista frontal

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33. Tamborim – vista lateral

Para ver e ouvir:

• André Siqueira. O tamborim. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=aCK7UCYbqQs>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Portela. Tamborins. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=p4-

ehxvHvVY>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Tamborim de congada

Algumas congadas mineiras utilizam um instrumento de percussão a que chamam

tamborim, um remanescente dos adufes portugueses.

A pesquisa de campo realizada no dia sete de abril de 2013 na cidade de Aparecida do

Norte, SP, por ocasião da festa a São Benedito, nos permitiu observar a presença e utilização

do tamborim no desfile de várias congadas conforme nos mostra as figuras 34 e 35.

34. Tamborim e pandeiro da Congada José Alexandre, da cidade de Santo Antônio do Monte, MG

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Nas figuras 34 e 35, vemos o formato quadrado e bimembranofônico dos tamborins,

que lembram os adufes portugueses e são tocados pelos capitães da congada, à frente de todo

o grupo de congadeiros e precedidos apenas pelos estandartes. Esses tamborins são tocados

com baquetas pelos capitães, que também dançam e usam células rítmicas curtas e

sincopadas, lembrando a função de um tamborim num grupo de samba.

As imagens mostram ainda os tamborins ao lado dos pandeiros, ou então os adufes,

pandeiros quadrados, e pandeiros redondos sendo tocando juntos, como visto em iluminuras

medievais como na figura 14 do tópico 2.2.3 ou nas figuras 24 e 25 do tópico 3.4.

No Brasil, é raro encontrar hoje os pandeiros quadrados ou angulares remanescentes

do período ibero-medieval e colonial. Ao contrário do que acontece em Portugal, aqui se

firmaram os pandeiros redondos e em especial com platinelas. Os tamborins de congada são

alguns dos poucos descendentes de adufes portugueses ativos encontrados no Brasil. Sobre o

adufe português, falaremos logo adiante.

Para ver e ouvir:

• Congado em Santo Antônio do Monte. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=hTbjx9m4dvY>. Acesso em: 18 jun. 2014.

• Festa de reinado em Santo Antônio do Monte. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=ahjfxviBby8 >. Acesso em: 18 jun. 2014.

35. Tamborins da Congada Congo Real de Luz, da cidade de Luz, MG

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Frame drums

O longo percurso histórico pelo qual passaram os frame drums, considerados como os

instrumentos de percussão mais antigos da história, nos permite encontrar exemplares destes

instrumentos em culturas de diversos países, especialmente do continente asiático, Europa,

África e continente americano.

Em cada localidade estes instrumentos recebem uma denominação distinta e

apresentam peculiaridades em sua estrutura, forma e maneira de sustentar e tocar o

instrumento.

Para exemplificar e ter-se uma ideia desta diversidade, apresentamos aqui o resumo de

um descritivo sobre alguns frame drums organizado a partir do levantamento feito por N.

Scott Robinson (2013).

Partindo de uma divisão territorial que engloba os Continentes Asiático, Europeu,

Americano e Africano, podemos encontrar diversos nomes para os diferentes tipos de frame

drums, a saber:

Continente asiático

• Sudeste asiático: rammana (Tailândia e Camboja); terbang (Indonésia); rebana

kercing (Malásia)

• Ásia meridional: kanjira, kanjari, duffli ou duff (norte da Índia)

• Extremo Oriente: sogo (Coreia do Sul); bajiaogu ou bafangu (China)

• Oriente Médio: riqq ou riq (países árabes como Iraque, Líbano, Palestina, Sudão,

Síria e Líbia); deff, duff ou daff (geralmente associado a países de cultura islâmica);

bendir (usado como termo genérico para frame drum entre os países árabes); tar

(encontrado nos países árabes exceto Líbano[daff, riqq] e Síria [daff, mazhar,

riqq]); doyra, ou doira, ou ghaval (Azerbaijão, Afeganistão, Turquia, Uzbequistão

e Irã); daf (Irã ); tof (Israel)

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Continente europeu

• pandero, pandereta, adufe (Espanha); pandeiro, adufe (Portugal); tamburello,

tamburo e tamorra (Itália); bodhrán (Irlanda); buben (Ucrânia)

Continente americano

• pandeiro, tamborim, pandeirão do Maranhão (Brasil); pandereta (Porto Rico);

bassé (Haiti); pandero (México e Chile); tambour di bass (Martinica)

Continente africano

• bendir (norte da África, Marrocos e Tunísia); tar (Marrocos, Egito); mazhar

(Egito); gombe ou gome e tamalin (Gana); patenge (Congo); samba (Ilhas

Maurício)

Alguns desses instrumentos mereceram uma apresentação mais detalhada devido a sua

popularidade e difusão mais frequente no universo da percussão contemporânea entre os

percussionistas e frame drumers (pessoas interessadas em conhecer, ouvir ou tocar estes

instrumentos) e também à provável proximidade histórica com os pandeiros vindos ao Brasil

durante o período colonial. Essa é a seleção de frame drums que se apresenta neste Anexo A.

Os frame drums destacados para esta seção estão localizados principalmente no

Oriente Médio e Mediterrâneo, e serão aqui ordenados e apresentados em duas categorias

distintas: aqueles compostos simplesmente por uma pele presa ao aro e aqueles feitos a partir

do mesmo princípio porém acrescidos de soalhas, (elementos sonoros como guizos, platinelas,

argolas, sementes, tampas de garrafa, entre outros, que são fixados na estrutura do

instrumento), conhecidos também por tambourines.

Estes instrumentos mediterrâneos e orientais são usualmente sustentados em posição

vertical por uma das mãos, geralmente a esquerda, sendo tocados por ambas, mas

especialmente pela mão direita que se encontra mais livre da sustentação. Sobre as diferentes

possibilidades de sustentação e formatos dos frame drums falaremos mais detalhadamente

adiante, no Anexo B. Alguns destes instrumentos, como o bodhrán irlandês, também podem

ser tocados com a utilização de baquetas.

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Alguns gêneros musicais como a world music, a música erudita contemporânea, a

música antiga e até mesmo o jazz instrumental utilizam os frame drums em sua formação

instrumental e contribuíram para a introdução destes instrumentos junto aos percussionistas e

público em geral. O mesmo trabalho de difusão acontece com a atuação de alguns

percussionistas reconhecidos por utilizarem os frame drums em suas performances, como

Glen Velez (norte americano dedicado a pesquisa e performance de diversos frame drums,

utilizando-os em música instrumental, fusões de gênero e world music), John Bergamo

(compositor de música contemporânea, professor na CalArt - California Institute of the Arts -

e diretor musical do grupo “Hands On’Samble”) ou Pedro Esteban (percussionista espanhol

do renomado grupo de música antiga “Hesperion XXI” dirigido por Jordi Savall). Esta

difusão, ocorrida principalmente a partir da década de setenta, vem popularizando os frame

drums e despertando conhecimento e interesse do público por estes instrumentos.

Apresentamos a seguir alguns dos frame drums que se difundiram por meio desses

músicos e gêneros e são conhecidos atualmente.

Tar

É tradicionalmente tocado em todo o Oriente Médio e norte da África e representa a

forma mais antiga dessa família de instrumentos encontrados em registros iconográficos.

Consiste numa pele de peixe ou cabra presa a uma estrutura circular com um diâmetro que

pode variar de 12’ a 16’polegadas (aproximadamente de 30 cm a 40 cm).

36. Tar (1) 37. Tar (2)

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Para ver e ouvir:

• Hamza el Din. Song with Tar. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=4N9zgW06y5k>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Bodhrán

Bodhrán é o representante irlandês na categoria de frame drum. No passado, era muito

comum em ambiente rural, associado a manifestações folclóricas, mas, desde 1950, vem

sendo usado também na zona urbana, em gêneros musicais variados, adquirindo novos

incrementos em sua fabricação e virtuosismo de execução. A pele do tradicional bodhrán

irlandês pode ser de cabra, de cervo ou da traseira do potro ou cavalo; tem estrutura cruzada

na parte traseira, feita de madeira, cordas ou arame, onde o percussionista segura se estiver

tocando em pé ou andando, além de permitir maior ressonância do instrumento. O bodhrán é

sustentado verticalmente e pode ser tocado tanto em pé quanto sentado; neste caso, apoiado

próximo ao joelho, com a mão esquerda geralmente posicionada no topo do instrumento,

enquanto a direita toca a pele. Atualmente, os percussionistas pressionam a pele interior com

a mão esquerda, para alcançar uma gama maior de tonalidades e modulações.

Nos modelos mais modernos, acrescentaram-se sistemas de tensão que permitam a

afinação da pele, além de não ter a tradicional estrutura cruzada de apoio na parte traseira,

prevendo que o percussionista toque sentado. Uma das características mais marcantes do

bodhrán é o fato de se tocá-lo com uma baqueta chamada de tipper ou cipín em irlandês. Com

os dois extremos da baqueta, toca-se por meio de uma técnica muito particular que exige

habilidade e destreza. A baqueta tem um formato específico, mais fino no centro mais fino

que nas extremidades, havendo hoje outras variações de textura, peso e densidade que

permitam ao percussionista extrair uma gama maior de timbres do instrumento.

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38. Bodhrán tradicional – vista posterior 39. Bodhrán mais moderno – vista frontal

40. Bodhrán mais moderno – vista posterior 41. Baqueta para tocar bodhrán

Para ver e ouvir:

• Josselin Fournel. Bodhrán Solo, set. 2011. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=NhpybB6lfcc>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Bendir

O bendir é tradicionalmente utilizado na região do Magreb, noroeste da África, em

países como Marrocos, Sahara Ocidental, Argélia e Tunísia, e é muito similar ao tar, na

estrutura e na forma de tocar. Sua principal característica são as esteiras, fios esticados e

encostados em todo o diâmetro da pele, presos na parte interna (ou às vezes externa) do

instrumento e que vibram quando se toca a pele. O mesmo efeito se observa nas caixas claras,

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que também têm uma esteira presa na pele inferior. As esteiras podem ser de fios metálicos,

náilon, cordões de algodão etc. O bendir é geralmente tocado por grupos de mulheres em

músicas de tradição oral e rural, sendo considerado um instrumento de baixo status pelo som

de zumbido das esteiras em contato com a pele, o que o torna inadequado para a música

urbana ou religiosa tocada por homens.

42. Bendir – vista lateral/frontal 43. Bendir – vista lateral/posterior

Para ver e ouvir:

• Goatskin. Moroccan Bendir. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=W90XrtOK5HQ>. Acesso em: 6 jun. 2014.

A seguir, apresentamos alguns frame drums acrescidos de elementos sonoros presos ao

seu corpo (soalhas, platinelas, guizos etc.), também conhecidos como tambourines.

Riq

O riq pode ser encontrado em muitos países do Oriente Médio, Israel e na Turquia, onde é

conhecido pelo nome de tof ou duff respectivamente, sendo muito utilizado nas orquestras

árabes de música clássica e tradicional, assim como na música popular e pelas bailarinas de

dança do ventre que muitas vezes o utilizam em suas coreografias.

É um dos frame drums que exige maior habilidade técnica por parte do percussionista

para sua execução. Pode ser reconhecido como um instrumento de 10’ polegadas, o que

corresponde a aproximadamente 25cm de diâmetro, que possui cinco pares duplos de

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platinelas distribuídas em duas fileiras e fixadas em uma estrutura de madeira ou metal, o

corpo do instrumento. Tradicionalmente usa-se pele de peixe como membrana para o

instrumento, mas atualmente a pele de plástico vem sendo preferencialmente adotada pela

praticidade em manter a afinação. As platinelas presas ao instrumento são muito utilizadas e

podem ser dedilhadas ou agitadas ao mover-se o corpo do instrumento.

Na intenção de trabalhar com frequências mais agudas e silenciar as platinelas, o

percussionista pode inclinar o riq para frente, num ângulo de 45 graus, e, sustentando-o com

as duas mãos, abafar a pele com os dedos indicadores e trabalhar com os dedos anulares

próximos ao aro do instrumento para produzir sons mais secos e agudos, enquanto que o dedo

anular da mão direita produz o som mais grave, suavizando o forte efeito produzido com a

presença das platinelas. Esta posição é conhecida como skin position.

44. Riq – vista frontal 45. Riq – vista posterior

46. Riq – vista lateral

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Para ver e ouvir:

• Nora Thiele plays Riq. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=vzJ1dC1BpiU. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Yshai Afterman live Riqq. Solo. A 9 beat cycle demonstration. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=xbXMcemeuOE>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Mazhar

Este instrumento egípcio é muitas vezes comparado a um riq maior e mais grave. Seu

tamanho corresponde a 12’ou 14’polegadas, aproximadamente de 30cm a 35cm de diâmetro,

possui uma pele espessa e suas platinelas são proporcionalmente maiores, medindo de 10cm a

13cm de diâmetro e produzindo um som estridente.

Tradicionalmente o mazhar pode ser utilizado por muitas pessoas em cerimônias

religiosas, sendo tocado por aquelas de vozes mais agudas que entoam enquanto tocam. Estes

cantores/tocadores sustentam o instrumento com a mão esquerda de forma vertical enquanto

tocam com a mão direita, e o utilizam também para esconder o rosto atrás da pele do

instrumento enquanto cantam como forma de mudar o timbre da voz, combinando ainda a

aproximação e o afastamento do instrumento de seus rostos para obter outros recursos de

timbre e projeção vocal. Para que a pele seja mantida esticada e a afinação do instrumento

alta, uma pessoa é designada com a função de levar os instrumentos próximo ao fogo assim

que a pele perca esta tensão. O som estridente e ensurdecedor do mazhar aumenta a tensão

durante as cerimônias, sobretudo nas provações de iniciação de neófitos (SADIE, 1994).

47. Mazhar – vista frontal/lateral 48. Mazhar – vista posterior/lateral

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Para ver e ouvir:

• Mazhar by Elman percussion 1. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=S7qtCVpcdXE>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Doyha ou ghaval

Esse instrumento é reconhecido pelas argolas fixadas em toda a extensão interna do

corpo, sendo muito popular em países da Ásia Central, nos Bálcãs, na Pérsia e no Azerbaijão,

onde é conhecido pelo nome de ghaval. É normalmente tocado por cantores como instrumento

acompanhante e pode estar presente na musica clássica ou folclórica desses países.

Como membrana, usa-se pele de vaca, cabra, peixe ou cavalo.

49. Doyha– vista frontal 50. Doyha– vista posterior

51. Doyha – vista posterior/lateral

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Para ver e ouvir:

• Abbos Kosimov. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=nx7tAh8Jzcg>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Abbos Kosimov (ACTA 2009 Master Artist). Uzbek Doira Solo Improvisation.

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=TDDHNWW6-GA>. Acesso

em: 6 jun. 2014.

• Frame Drum solo by the amazing Abbos Kosimov. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=bky9vlO5WEc>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Daf

O daf representa hoje um dos maiores frame drums, com um diâmetro aproximado de

52 cm, pele de cabra ou, mais atualmente, de plástico, possui a largura de seu corpo bastante

estreita, se comparada ao seu diâmetro, apenas 5 cm. Normalmente é confundido com a doyha

por também possuir argolas que são presas em toda a extensão interna de seu corpo.

Diferencia-se da doyha por seu tamanho maior e por conter de três a quatro argolas

encadeadas em cada um dos pontos de fixação.

Hoje, o daf está mais relacionado ao Irã (Persia) e à cultura curda, mas pode também

ser encontrado em várias culturas e países do Oriente Médio como Turquia, Paquistão e

Azerbaijão. As variações onomatopeicas relativas ao nome do instrumento provêm de seu

som quando percutido. É um instrumento utilizado em muitas atividades como, conjuntos de

música clássica ou popular e rituais sufis destes países, sendo também comum encontrá-lo

como instrumento acompanhante para solos vocais.

O daf é sustentado verticalmente pela mão esquerda, e o percussionista se utiliza de

uma técnica vigorosa que envolve golpes com a mão direita e esquerda, além de chacoalhar o

instrumento como recurso para fazer soar as argolas.

Encontram-se relatos da presença histórica deste instrumento na época pré-islâmica

(duff) e nos escritos hebraicos (tof), apresentando-se em formato redondo ou quadrado.

Existem muitas hipóteses de que este instrumento tenha migrado para a Península Ibérica por

volta do séc. XII tendo seu nome como sinônimo de frame drums por esta época, originando

também outros instrumentos Ibéricos como o Adufe.

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52. Daf – vista frontal 53. Daf – vista posterior

54. Daf – vista lateral

Para ver e ouvir:

• Iranian Kurdish Frame Drum (Daf ) Solo Performance & Sound Introduction.

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=B0Hlca8p42s>. Acesso em: 6

jun. 2014.

• Marjan Vahdat. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=aGyp_adPLxo>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Daf a film about a Kurdish Daf maker family by Bahman Ghobadi. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=JOGFhVMIdjg>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Hussein Zahawy Daf Solo. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=KboogWwmzrc>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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Adufe

É chamado adufe o pandeiro português quadrangular e bimembranofônico, o mais

peculiar dos frame drums. O adufe está entre os frame drums mais antigos, como nos

mostram as pesquisas iconográficas em que está presente o instrumento. Veiga de Oliveira,

musicólogo português, afirma que:

Os pandeiros bimembranofones (que consideramos apenas na sua forma quadrangular, que é a mais característica) encontram-se entre nós, hoje, exclusivamente na faixa oriental do País, desde a Lomba de Vinhais, no alto Trás-os-Montes, até ao rio Douro, e de terras de Guarda até ao Baixo Alentejo – ou seja, nas áreas pastoris portuguesas por excelência –, onde eram, até não há muito tempo, extremamente correntes, continuando a sê-lo em algumas partes, nomeadamente na Beira Baixa, de que se podem mesmo considerar o instrumento característico. Eles aparecem associados à musica vocal popular tradicional mais genuína – por vezes caracteristicamente arcaica – das diversas regiões onde ocorrem, como seu acompanhante natural e específico [...] Pandeiros e adufes são normalmente, como já dissemos, próprio das mulheres, para acompanharem o canto e a dança, em circunstâncias várias; conforme as regiões, eles por vezes são manejados de modos ligeiramente diferentes (OLIVEIRA, 2000, p. 266/273).

Esta citação nos dá uma ideia da localização e utilização deste instrumento que, pelas

características citadas, é atualmente tocado pelas pessoas mais velhas das comunidades rurais,

não sendo bem aceito pelos jovens como modelo do que está “fora de moda”, e, por este

motivo, corre o risco de extinguir-se.

A preservação histórica e cultural do adufe vem despertando o interesse na

comunidade acadêmica, vide exemplo nas dissertações recém-defendidas dos portugueses Rui

Silva (2012) e Ana Dias (2011) sobre este tema e, de forma prática, vem sendo conquistada

por meio da ação de alguns artistas, como Né Ladeiras, que inclui o instrumento em suas

modernas gravações, ou por meio de cursos e oficinas oferecidos à comunidade urbana de

Lisboa e outras cidades, como o faz Rui Silva em seu projeto Al-Duf, sensibilizando, não

apenas as mulheres como também os homens, para esta autentica arte musical portuguesa.

Existem também referências iconográficas que mostram a presença do adufe na

Espanha. Veiga de Oliveira (2000, p. 274) afirma que o adufe pode ser hoje encontrado na

Espanha nas localidades de Astorga, Leão e Astúrias, adornado com vistosas fitas coloridas e

mantendo o caráter de instrumento tocado por mulheres, porém, na Galícia, o adufe é tocado

por homens em meio a um conjunto instrumental que conta com gaitas, bombos e tamboris.

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55. Adufe – vista frontal 56. Adufe – vista lateral

Para ver e ouvir:

• Meu adufe velhinho. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=RgsJT4i_XWs>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Uma relíquia do que se pensa ser a última senhora a tocar pandeiro no Norte de

Portugal (declaração de Rui Silva). Disponível em:

<http://vimeo.com/75814365#>. Acesso em: 6 jun. 2014.

Tamburello

Provavelmente o mais representativo frame drum da Itália, especialmente encontrado

na região meridional, envolvendo também Salerno, Nápoles, Puglia, Calábria, Sicília, entre

outras localidades onde apresenta peculiaridades em sua estrutura e forma de ser tocado em

cada local onde é encontrado.

Este instrumento é muito usado para acompanhar danças folclóricas como a

Tarantella, o Saltarello e a Tamoriatta, e para estas ocasiões é comum decorá-lo com fitas

coloridas em vermelho, amarelo, azul, verde e branco, na intenção de chamar pela boa sorte e

espantar o “mau olhado”.

Com uma estrutura bastante leve, o tamburello usa pele de cabra bem presa e esticada,

com 25 cm a 35 cm de diâmetro e cinco, sete ou até nove conjuntos de platinelas duplas.

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Para sua execução, geralmente muito vigorosa, é necessário sustentá-lo com a mão

esquerda, na posição vertical, e utilizar a mão direita para tocá-lo com golpes espalmados e

também por meio de uma técnica que, basicamente, divide a mão direita em duas partes onde

uma corresponde ao dedo polegar e a outra aos outros quatro dedos. Outros movimentos com

a mão direita também são utilizados enquanto a mão esquerda pode executar alguns

movimentos de rotação lateral ou frontal com o instrumento (BELLONI, 2007).

57. Tamburello – vista frontal 58. Tamburello – vista posterior

59. Tamburello – vista lateral

Para ver e ouvir:

• NAFDA Frame Drum Features #5. Tamburello – Sicilian. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=fOldTjfhPGE>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• NAFDA Frame Drum Features #4. Tamburello – Saltarello. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=O7woS99tgDs>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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Tammorra

A tammorra italiana é popularmente conhecida como uma versão maior do

tamburello, mas tem uma estrutura mais larga, com a pele entre 35 cm e 45 cm de diâmetro,

platinelas maiores e em menor quantidade, é mais pesado e sua afinação é mais grave.

É comum as pessoas tocarem a Tamorra e participarem das Tammoriattas (dança

folclórica tradicional encontrada especialmente em Nápoles) também dançando. Por isso,

muitas maneiras de se tocar a tammorra foram desenvolvidas de acordo com a forma com que

cada pessoa criou sua própria técnica em função da utilização de todo o corpo envolvido com

o ato simultâneo de tocar e dançar.

Em geral, a tammorra é sustentada verticalmente pela mão esquerda e tocada com a

direita. O punho da mão esquerda executa um movimento de giro lateral praticamente

continuo, enquanto a mão esquerda golpeia o instrumento com toques espalmados que

chegam à lateral do instrumento. Muitos outros toques e movimentos são executados a partir

desta base.

60. Tammorra tradicional

Para ver e ouvir:

• O’Lione. Costruire una tammorra. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=GGPUBUIMxBM>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Tammurriata per la festa del 22 ottobre a Torre Annunziata con Antonio.

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=pzv05zM6fDo>. Acesso em: 6

jun. 2014.

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Kanjira

Um dos menores frame drums conhecidos é a kanjira indiana. Proveniente da clássica

tradição Carnática do sul da Índia, consiste em uma pele, geralmente de iguana, com

aproximadamente 15 cm de diâmetro que é esticada e colada a uma estrutura de madeira onde

encontramos apenas um par de platinelas.

A kanjira é sustentada verticalmente pela mão esquerda e a mão direita exerce os

golpes para a execução que consiste em toques com o dedo indicador, uso da mão espalmada

e um movimento vigoroso de giro com a mão direita, entre outros.

A pele da kanjira deve estar sempre úmida, para que o percussionista pressione a pele

com a mão esquerda a fim de produzir variações de altura enquanto toca.

61. Kanjira – vista frontal 62. Kanjira – vista frontal/lateral

Para ver e ouvir:

• Kanjira Solo with Ganesh Kumar. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=GPPBoei6oCs>. Acesso em: 6 jun. 2014.

• Ganesh Kumar Kanjira Solo. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=polPvaLFQe4>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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Pandereta e pandero

Esses termos designam os frame drums da Espanha de um modo geral, sem nenhuma

ligação regional ou organologica que identifiquem cada um dos nomes.

Em cada região da Espanha (Galícia, Astúrias, País Basco) existem particularidades

com relação ao tamanho, forma de sustentar e tocar, e utilização. Em geral todos são

sustentados verticalmente, mas as formas de execução variam de uma região para outra.

Apresentamos como exemplo a pandereta gallega, do norte da Espanha. Geralmente

com 25 cm a 30 cm de diâmetro, sua pele costuma ser de cabra e bem presa ao aro para que

fique bem tensionada. Possui até nove pares de platinelas distribuídas de forma intercalada

pelo corpo do instrumento. É sustentada pela mão direita que executa movimentos de giro

lateral bem ritmado com o punho tendo, por isso, uma estrutura bastante leve. Em geral, a

mão esquerda permanece entreaberta em direção à pele e praticamente parada, sustentando os

golpes de giro feitos pela mão direita. Este instrumento é muito utilizado para acompanhar

vozes femininas em cantos tradicionais de trabalho que vêm sendo resgatados, gravados e

apresentados em festas e festivais por grupos de mulheres que tocam e cantam

simultaneamente.

63. Pandereta gallega – vista frontal 64. Pandereta gallega – vista frontal/lateral

Para ver e ouvir:

• Faltriqueira pandeirada de tella. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=yt3boqehi-y>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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• Davide Salvado tocando la pandeireta. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=-ncmifzim10>. Acesso em: 6 jun. 2014.

A pequena seleção instrumental e sua breve descrição não pretendem esgotar o que

ainda se poderia levantar sobre cada um desses instrumentos e tanto menos para o conjunto de

frame drums. Essa pesquisa renderia facilmente outra dissertação ou tese.

A experiência de ver e ouvir esses instrumentos é fundamental para complementar o

que foi descrito, daí a sugestão de referências digitais.

Para termos uma ideia da dimensão de um instrumento com relação a outro, dentre

alguns dos que aqui foram apresentados, segue uma foto organizada por ordem decrescente de

diâmetro entre eles.

65. Da esquerda para a direita: pandeirão do Maranhão, daf, adufe, doyra, bendir, tamburello, riq, pandereta gallega, pandeiro brasileiro, kanjira e tamborim

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ANEXO B

Modos de sustentação de frame drums e pandeiros

Existem algumas possibilidades distintas para a sustentação dos frame drums que

possibilitam técnicas de execução específicas para cada um deles. Estas variações ocorrem de

acordo com a cultura e origem de cada instrumento e muitas vezes acabam passando por

adaptações e mudanças por meio da criatividade e habilidade de alguns percussionistas.

Os frame drums e pandeiros necessitam ser, tradicionalmente, sustentados pelo próprio

músico para que a execução instrumental aconteça, e apresentam diferentes formas de serem

segurados e tocados.

Passando por técnicas tradicionais de sustentação e execução dos instrumentos e

evoluindo para formas mais modernas e contemporâneas, percebe-se que os frame drums e

pandeiros vêm sofrendo consideráveis mudanças em sua estrutura, formas de sustentação,

técnicas de execução e organologia, todas geradas por percussionistas, construtores e fábricas

que, curiosos e atentos ao potencial, versatilidade destes instrumentos e crescente demanda de

interesse, buscam aprimoramento pra inserir os frame drums e pandeiros em uma diversidade

cada vez maior de gêneros.

Em geral, a primeira coisa que o percussionista aprende sobre um frame drum e

pandeiro é como segurá-lo, pois sem a correta sustentação não será possível a execução

instrumental. É muito importante considerar o envolvimento de todo o corpo no ato de

sustentar um instrumento, e não apenas as partes mais solicitadas com o ato de segurar e

tocar. Qualquer que seja a forma de sustentação de um instrumento, a percepção e consciência

de que todo o corpo participa desta ação faz toda a diferença para um bom resultado orgânico

e musical.

Para esta ação existem algumas possibilidades distintas que variam de acordo com o

tipo de instrumento, tamanho, peso, origem, cultura e que contam também com a criatividade

de alguns percussionistas interessados em ampliar as formas de execução.

Os registros iconográficos mais antigos encontrados em desenhos rupestres, murais,

afrescos, utensílios ou esculturas nos mostram figuras humanas sustentando um frame drum

com uma das mãos, geralmente a esquerda, em posição vertical, deixando a pele do

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instrumento voltada para frente. A outra mão permanece livre para tocar o instrumento

utilizando os dedos ou golpeando-o. Esta seria a forma mais comum, antiga e tradicional de se

sustentar um frame drum para ser tocado e que hoje é conhecida também como up style,

forma tradicional ou forma vertical de sustentação.

66. Três figuras femininas em baixo relevo, Egito, 1185-1070 a.C.30

67. Mulher tocando daf, Pérsia, século XVII31 (DAF-ISFAHAN)

30 A figura parece mostrar uma serva em pé derramando uma libação ou perfume na primeira de várias mulheres tocando. Ao centro, uma mulher toca um frame drum e as outras a acompanham. O texto principal, talvez parte de um hino, menciona uma deusa como uma “cobra uraeus de ouro”. Com base no seu estilo, este baixo relevo pode provavelmente ser atribuído a uma antiga sepultura Ramesside em Saqqara. 31 Detalhe de uma pintura das paredes do palácio de Chehel-Sotun, Isfahan, Irã, século XVII.

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68. Pintura em cerâmica greco-romana, 400-380 a.C.32

O percussionista Glen Velez 33 chama a esta maneira de sustentar o instrumento de

Oriental Grip devido à sua grande utilização em países orientais, apesar de a mesma poder ser

adotada para a execução de frame drums em países ocidentais, provavelmente influenciados

por migrações árabes ou sob sua influência indireta.

Como grande pesquisador e instrumentista, Velez identificou duas principais formas

de segurar os frame drums: a primeira delas é a anteriormente referida Oriental Grip e a outra

seria a European Grip, em que o instrumento estaria sustentado por uma das mãos,

geralmente a esquerda, com o seu polegar em contato com a pele que está voltada para o céu,

ficando o instrumento em posição horizontal com relação ao solo. Desta forma, a maioria dos

sons são produzidos pela outra mão que está livre da sustentação, e o som grave é executado

pelo polegar desta mão.

32 Ao centro, uma dançarina Maenad virada para a direita, com a face e os braços pintados de branco, os cabelos amarrado em um nó com um fio branco terminando em trevos, brincos, colar, pulseiras, túnica cingida bordada com fronteiras de raios e sapatos brancos. Ela segura um tympanon (nome dos frame drums na écpoca) que também é destacado em branco. 33 Percussionista nascido nos EUA conhecido por pesquisar, tocar e compor peças para diversos tipos de frame drums, especialmente o Tar, Bodhrán e Riq. Seu trabalho resultou em uma forma particular de tocar, um estilo moderno que mescla técnicas tradicionais de frame drums de várias partes do mundo. Glen Velez foi um dos grandes responsáveis por popularizar os frame drums e despertar o interesse entre percussionistas e músicos para esta categoria instrumental a partir da década de 70 por meio de suas modernas composições e virtuosismo. Velez foi o primeiro percussionista a ganhar reconhecimento como solista de frame drums. Durante toda esta dissertação seu nome será citado e muitas referências serão feitas ao seu trabalho.

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Glen Velez reconheceu a forma European Grip por meio de imagens iconográficas

encontradas a partir do sec. XVII e por sua experiência como percussionista de orquestra,

onde os frame drums e tambourines são frequentemente seguros seguindo esta maneira. Além

disso, Velez encontrou referências desta forma de sustentação em outros países ocidentais,

especialmente da América do Sul, como o Brasil, Chile, Bolívia, México, e Ilhas Caribenhas.

Recentemente, ele passou a se referir-se a essas duas formas como one hand under e thumb

over, respectivamente (ROBINSON, 2013).

Sintetizando o que foi apresentado até agora acerca das formas de sustentação dos

frame drums, podemos dizer que Up Style, Oriental Grip, Traditional Grip e One Hand

Under correspondem todas à forma tradicional de sustentação ou forma vertical, ao passo que

os termos European Grip, New Grip e Thumb Over correspondem à forma horizontal de

sustentação.

69. Bendir em posição vertical ou tradicional, também conhecida como Up Style, Oriental Grip, Traditional Grip ou One Hand Under

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70. Riq em posição vertical 71. Riq em skin position

72. Pandeiro brasileiro em posição horizontal ou European Grip, New Grip e Thumb Over

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Uma terceira possibilidade de sustentação do instrumento é conhecida por Lap Style,

Knee position ou Sitting Position. Nesta posição, o percussionista encontra-se sentado com o

frame drum apoiado no colo de sua perna esquerda, próximo ao joelho, levando a mão

esquerda ao topo do instrumento dando-lhe sustentação e utilizando os dedos para tocar,

enquanto a mão direita permanece livre para executar golpes e dedilhar o instrumento. Esta

posição é especialmente utilizada com os frame drums de maior dimensão e peso, pois

mantém o instrumento em uma posição mais estável permitindo maior apoio e

potencializando a desenvoltura e habilidade técnica na execução do instrumento.

73. Tar em posição sentada ou Lap Style, Knee position ou Sitting Position

Existe uma quarta maneira de sustentar o frame drum conhecida como Free Hand

Position. O percussionista deve estar sentado para posicionar o frame drum entre as pernas e

sustentá-lo com uma leve pressão, mantendo a pele do instrumento voltada para a frente.

Assim, ele tem as mãos livres para tocar, o que dá grande desenvoltura à execução.

Alguns percussionistas consideram essa posição uma fusão de execuções

instrumentais. Apesar de ser uma forma de sustentação já adotada em países do Oriente

Médio como a Turquia, ela foi popularizada nos EUA pelo percussionista John Bergamo.34

34 John Bergamo foi chefe do departamento de world percussion no Instituto de Artes da California desde 1970. Influenciou toda uma geração de músicos e percussionistas por meio de suas pesquisas com instrumentos de percussão étnicos no que diz respeito a performance, ensino e composições originais.

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74. Tar em posição com mãos livres ou Free Hand Position

Atualmente os percussionistas buscam inovações nas formas de sustentação dos frame

drums, procurando variar ou mesclar as possibilidades existentes. Como exemplo podemos

ver alguns frame drums sendo sustentados por ferragens de bateria, estantes de caixa clara ou

suportes criados para esta finalidade, criando a possibilidade de substituirmos algumas das

peças da bateria por frame drums de diferentes alturas que podem ser tocados com as mãos,

dedos, baquetas ou vassourinha.

No Brasil utiliza-se as posições vertical e horizontal para a sustentação dos pandeiros,

sendo que, a forma vertical é geralmente encontrada em manifestações de cultura popular

como Congadas ou na sustentação dos pandeirões do Maranhão, e a forma horizontal, a que

mais caracteriza a maneira de se tocar pandeiro no Brasil frente aos frame drumers, é mais

frequente em gêneros como o samba e o choro.

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75. Frame drums apoiados por ferragens e suportes. Apresentação de Marla Leigh durante o Festival Tamburi Mundi 2013

76. Frame drums sustentados por ferragens e suportes. Tamburi Mundi Festival 2013

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105

ANEXO C

Formas de aprender e ensinar

A decisão de tocar um frame drum normalmente está vinculada à forma de sustentação

do mesmo, e a organização do corpo para uma correta postura é a primeira tarefa de

aprendizagem. Acrescenta-se a esta etapa a produção sonora e o desenvolvimento de

habilidades técnicas para a progressiva tarefa de tocar o instrumento.

De modo geral, é possível extrair basicamente três alturas de um frame drum, uma

grave, uma média e outra aguda, resultantes de toques com os dedos ou golpes com a mão.

Esta escala pode aumentar consideravelmente de acordo com a técnica que cada

percussionista aplica para tocar o instrumento que, como já foi dito anteriormente, evoluiu

muito a partir das formas mais tradicionais em direção a um aprimoramento por meio de uma

busca por maiores possibilidades tímbricas e performáticas para os instrumentos.

Os frame drums estão fortemente inseridos em gêneros relacionados à cultura popular

dos diversos países em que estes instrumentos são encontrados. Isto colabora para que a forma

de aprendizagem se dê por meio da prática e tradição oral. Neste processo, o aprendiz está

envolvido com todo o contexto cultural em que o instrumento é utilizado, não havendo a

exclusiva preocupação com o seu desenvolvimento técnico no instrumento. A tradição oral

permite a memorização de ritmos, alturas e timbres, por meio de onomatopeias apresentadas

vocalmente pelo instrutor e que são repetidas pelo aprendiz, fazendo com que a memória seja

muito solicitada neste processo de aprendizagem.

Num contexto urbano e contemporâneo, em que a aprendizagem prática é muitas

vezes substituída pelo formalismo em sala de aula, o ensino por meio da tradição oral tende a

ser substituído por métodos de leitura e escrita musical em que a memória sonora é menos

solicitada e onde a leitura musical e o desenvolvimento técnico são mais valorizados. Muitos

percussionistas e estudantes procuram, hoje em dia, balancear estas duas possibilidades de

aprendizagem, entendendo que, apesar de serem distintas, são na verdade complementares e

necessárias para a construção do conhecimento técnico e musical que envolve o instrumento.

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A partir da experiência como professores, alguns percussionistas, preocupados com a

sistematização do ensino instrumental, buscam criar métodos que padronizem e facilitem o

caminho do estudante aos frame drums.

Um bom exemplo para este caso é o do percussionista Glen Velez, citado

anteriormente como grande pesquisador da história e técnica destes instrumentos, sendo

também responsável por elevar os frame drums à categoria de instrumentos solistas devido às

suas composições e apresentações musicais de alto nível técnico. Velez dedica-se também ao

ensino dos frame drums e, para isso, desenvolveu um método particular de ensino destes

instrumentos que costuma apresentar em cursos e seminários por todo o mundo,

acompanhado de uma seleção de exercícios organizados e catalogados que auxiliam os

estudantes em seu progresso35.

Glen Velez elaborou um método em que considera importante o equilíbrio entre a

tradição oral de alguns países orientais e a tradição de leitura e escrita do ocidente. Em suas

apostilas e aulas ele sempre propõe aos alunos que cantem o que tocam e para isso utiliza-se

de sílabas específicos para cada som produzido no instrumento, uma forma muito tradicional

de solfejo no sul da Índia conhecida como Konnakol e que inspirou Glen Velez a elaborar

uma adaptação em seus métodos dedicados a percussionistas ocidentais.

A proposta de registro musical apresentada por Glen em seus métodos para frame

drums está menos relacionada à escrita ocidental, que se utiliza de símbolos específicos para o

registro de sons e ritmos, do que à escrita da música indiana que registra, em forma de sílabas,

os fonemas relativos aos sons sobre traços que representam a pulsação.

Porém, na edição mais recente de seus métodos de ensino, lançados em 2013, ele

acrescentou a transcrição das sílabas rítmicas para a forma de escrita musical ocidental,

buscando facilitar a compreensão e aproximação de percussionistas ocidentais, acostumados à

leitura e escrita musical tradicional, à decodificação dos fonemas provindos da tradição oral

indiana, como já vinham fazendo muitos outros percussionistas em seus métodos de

percussão oriental voltados ao público ocidental.

35 Glen Velez esteve uma única vez em São Paulo participando do festival “Mundo Percussivo” promovido pelo SESC Consolação no ano de 2007. Nesta ocasião ele apresentou seus métodos de ensino em cursos com aulas coletivas e fez um concerto solo.

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77. Bula proposta por Glen Velez nas primeiras edições de seus métodos de ensino (VELEZ, 2004, p. 3)

78. Exemplo da le i tura rítmica proposta por Glen Velez em seus primeiros métodos (VELEZ, 2004, p. 9)

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O ensino mais formal do pandeiro brasileiro também conta com a atenção de alguns

percussionistas, como Luiz Roberto Sampaio e Lê do Pandeiro, que vêm se dedicando a

escrever métodos de estudo e peças solo para o instrumento. No caso dos métodos de

pandeiro brasileiro é interessante observar que estes se valem da escrita tradicional da música

ocidental para seus registros e estão voltados ao ensino da forma horizontal de sustentar o

instrumento, onde o percussionista segura o pandeiro com uma das mãos em posição

horizontal enquanto a outra fica livre para tocar o instrumento. A forma vertical de sustentar o

pandeiro é também muito comum no Brasil, mas não é citada nestes métodos.

80. Exemplo da bula que orienta a identificar os sinais musicais com os sons do pandeiro brasileiro no método de Luiz Roberto Sampaio (2008, p. 10/11)

79. Exemplo dos métodos mais recentes de Glen Velez, que procuram incluir a escrita ocidental (VELEZ, 2013, p. 4)

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81. Exemplo de escrita musical para pandeiro no método de Sampaio (2008, p. 13)

Meios digitais como vídeo-aulas, web sites e cursos on line por meio do skype também

vêm democratizando o acesso à aprendizagem de frame drums.

Guardadas as devidas precauções com relação ao conteúdo e à forma de apresentação

desses novos métodos, o fato é que o acesso à internet democratizou o conhecimento e

ensejou a ampliação de repertório, dando acesso a uma pessoa que esteja, por exemplo, no

Brasil, a uma série de referências e até aulas, além do conhecimento sobre como se toca um

frame drum em Israel, na Turquia ou onde esteja localizado seu interesse.

Com a intenção de propagar o conhecimento sobre os frame drums e atender à

crescente demanda de interesse por estes instrumentos, alguns festivais passaram a ser

organizados voltando-se exclusivamente a esta categoria instrumental. Estes festivais têm a

duração aproximada de cinco a dez dias e oferecem aos percussionistas tanto a oportunidade

de aprimoramento em algum frame drum específico quanto a possibilidade de conhecer e

familiarizar-se com outros. Para estes festivais são convidados como professores

percussionistas de várias partes do mundo, frame drumers virtuoses e grandes conhecedores

destes instrumentos. Geralmente estes festivais acontecem na Europa e Estados Unidos e é

muito comum encontrarmos a presença de um pandeirista brasileiro como convidado a

professor de pandeiro, compondo a família dos frame drums.

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Alguns dos festivais mais conhecidos são:

• Tamburi Mundi: acontece na cidade alemã de Freiburg desde 2006

• NAFDA (North American Frame Drum Association): realiza encontros regionais

por toda a America do Norte durante todo o ano alem de um grande encontro anual

• Frame Drums Italia (International Association of frame drums arts and culture):

acontece desde 2010 em um Monastério da pequena cidade de Montelparo, Itália.

• Labyrinth musical workshop: promove aulas de diversos instrumentos étnicos além

dos fram drums. Desde 2004 realiza na Grecia seminários abertos distribuídos

durante o ano.

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ANEXO D

Entrevistas com percussionistas e pandeiristas

As entrevistas foram feitas para levantar a história, a opinião e o envolvimento dos

entrevistados com os padeiros e frame drums. Esse levantamento, por sua vez, concorrerá

para conectarmos toda a pesquisa histórica anterior com a contemporaneidade por meio da

voz, da expressão e da compreensão daqueles que perpetuam o ofício de tocar pandeiro.

Todos os entrevistados são percussionistas e/ou pandeiristas e têm entre dez e 40 anos

de carreira. Assim, seus depoimentos dão referências de diferentes gerações e experiências

com o tema.

As conversas foram orientadas por um roteiro semiaberto, com questões relativas ao

percurso profissional dos entrevistados, seu primeiro contato com pandeiros, a maneira como

aprenderam a tocar e aquela como hoje procuram ensinar, suas influências e referências

musicais, seu conhecimento e seu interesse pelo histórico dos pandeiros e suas perspectivas

no campo da performance. A partir dessas questões, desenvolveram-se conversas nas quais os

entrevistados foram deixados à vontade para acrescentar novos elementos e conteúdos.

As entrevistas foram feitas ao vivo e depois transcritas.

ENTREVISTA 1

realização: 24 abr. 2013

nome artístico: Leo Rodrigues

nome: Leo Rodrigues Moreira da Silva

data de nascimento: 30 jul. 1984

tempo de profissão: 12 anos

Desde o começo da carreira, sentiu-se muito identificado com o choro, que conheceu

no famoso Bar do Cidão. Naquele ambiente intimista e acolhedor, onde tocavam e se

apresentavam grandes mestres da música, Leo decidiu abandonar a faculdade de publicidade

para se tornar músico.

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Ao longo dos anos, o encantamento com a música só foi crescendo, e Leo foi traçando

seu caminho. Hoje, sua paixão se estende a diversos tipos de música e a manifestações

artísticas em geral, independentemente de estilo ou rótulo. Nesses poucos anos de carreira, foi

convidado a integrar alguns grupos e participou da criação de outros, como o quarteto Roda

de Choro, que já se apresentou com Toninho Ferragutti, Ricardo Herz, Nelson Ayres, Carlos

Malta, Nicola Krassic, Gabriel Grossi, Danilo Brito e Laércio de Freitas. Também é

percussionista do Cadeira de Balanço, que lançou em 2012 seu primeiro CD, Bagunça

generalizada, em Paris, na França.

Gravou os CDs Olha quem chega e Fonte de emoção, da cantora Dona Inah, e também

viajou para Portugal, Rússia, Colômbia e Espanha acompanhando a cantora Verônica

Ferriani. Gravou os CDs Segura a bucha e No salão do Barbeiro, do grande violonista sete

cordas Zé Barbeiro.

Atualmente, acompanha Antônio Nóbrega, com quem gravou o DVD Naturalmente,

além de fazer parte de seu novo espetáculo, Lua. Durante três anos, foi percussionista do

projeto Shows dos Direitos Humanos, pelo qual acompanhou artistas como Lenine, Fernanda

Takai, Beth Carvalho, Elba Ramalho, Hamilton de Holanda, Moraes Moreira, Emilio

Santiago, Luiz Melodia, Elza Soares, Lô Borges e Milton Nascimento. No final de 2013, foi

convidado a gravar o DVD de Fabiana Cozza, Canto sagrado.

Como e com quem você aprendeu a tocar pandeiro?

Eu aprendi a tocar num lugar chamado Brincante, que é do Antonio Nóbrega. Inclusive eu só

fui estudar percussão porque eu vi um grupo que ele e a mulher dele tinham feito com

meninos, jovens. Eles internaram os moleques no nordeste e ficarm enchendo de cultura

popular, e aí eles voltaram e criaram um centro de estudos e um grupo que fazia música só

com percussão, chamado Zabumbal, e que o líder era o filho do Nóbrega, o Gabriel. E quando

eu vi estes caras tocando eu fiquei impressionado, foi a primeira vez que eu voltei no

Brincante e falei pra mulher, “eu quero tocar”! E aí eu fiz aula muito tempo com o Marcelo

Costa, que é um pandeirista do trio Vira-Lata e que agora mora na França, e também um

pouco com o filho do Nóbrega, que foi a minha influência maior, é um cara que eu acho que é

um dos maiores pandeiristas que eu já vi. Se não é o melhor. Como tem muito de estilo, tem

um pandeirista que é melhor, etc... Mas como técnica de intrumento eu acho o Gabriel

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Almeida uma referência absurda. Uma técnica que ele criou, ele tem coisas que ele criou que

ninguém mais usa. Assim como o Suzano teve a dele, o Jorginho a dele. Então, eu aprendi

muito olhando com eles, e depois já caí nas rodas de choro e aprendi muito olhando os caras

mais velhos tocar. Os pandeiristas antigos de roda de choro, depois eu me especializei um

pouco em choro. Então foi bem olhando, depois desta aula no Brincante, nunca fiz aula direto,

nunca fiz aula particular, lá era em grupo, com um monte de gente. Então, foi lá, foi lá com o

Nóbrega que eu descobri o pandeiro de couro.

Você ensina a tocar pandeiro?

Eu ensino, já ensinei muito, e agora ’tô ensinando de novo. Eu ’tô dando aula no Brincante,

em grupo. Mas dei aula no Brincante há três anos atrás, quando o Nóbrega me chamou pra ser

professor lá, que pra mim foi muito interessante porque foi lá que eu comecei, então foi muito

legal! E dei aula muito tempo na Prego Batido, que é a escola do Eder O Rocha, e lá era

individual, e eu dediquei uns dois anos de ensino da técnica de pandeiro brasileiro. Tinha

tempo na minha vida que eu focava pro ensino, sim. Depois eu abri mão. Hoje tem no

Brincante, e aula particular hoje eu não foco mais tanto assim, só quando é músico, amigo.

Como você aprendeu, ou está aprendendo, a ser professor de pandeiro?

Acho que a gente ’tá sempre aprendendo, mas eu acho que o lance de... eu nunca tive música

na minha casa, então, o processo que eu recebi as informações foi todo racional, eu nunca tive

o processo instintivo de ouvir e sem pensar sair tocando e sair as coisas. Quando era desse

jeito não saia nada. Então eu precisei filtrar por uma coisa meio matemática por um lado. A

partitura eu aprendi a ler sozinho, mas me ajudou muito, me influenciou muito a saber tocar.

Porque eu fazia possibilidades, eu pegava uma nota e dobrava em oito semicolcheias, eu fazia

o teste de dobrar uma por uma, botar uma fusa aqui, depois botar uma fusa na segunda

semicolcheia, e botava no pandeiro pra ver como soava, e isso ia me dando técnica. Então, foi

muito racional, e acho que acabei, pra ensinar, usando um certo discernimento de porque cada

som, onde que são as substituições, porque você pode pôr grave, onde você pode pôr grave,

quando, porque, foi um processo racional. Então, acho que desde sempre as coisas que

aprendi assim já são mais fáceis de ensinar, porque eu percebo que quando vem uma coisa

meio sem ter clareza, pra você ensinar você fica meio perdido. Então, teve um lado ruim,

porque a música precisa deste lado mais instintivo que eu fui ganhar mais tarde, mas teve o

lado bom na hora de ensinar, que eu tinha tudo muito definido, é impressionante, na minha

cabeça tinha tudo definido, e sempre tive um retorno legal! Eu não aprendi desse jeito, esse

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foi um jeito que eu fui descobrindo pra eu poder tocar, porque se não, eu não tocava, o cara

fazia uma frase e eu não tocava, não conseguia. Então eu fui descobrindo um jeito que eu

conseguia transpor mais rápido pra partitura, ou pra um jeito que me fazia sentido, enfim.

Quais foram suas principais influências ou referências como professor de pandeiro?

Como professor, cem por cento o Gabriel, filho do Nóbrega. Ele tem essa coisa muito

racionalizada, então ele é uma cara que, como professor, é minha referência. O Ari Colares,

eu tive pouco contato, mas do pouco que eu tive eu vejo ele como um grande professor, como

um cara que tem esta parte didática muito bem definida, porque tem percussionista que não

tem, sabe tocar mas não sabe passar.

Quais foram suas principais influências ou referências como instrumentista?

Como instrumentista, também o Gabriel que foi o primeiro cara que eu descobri tudo, eu

tirava as coisas que ele inventava, via videos dele e ficava tirando. E aí, bem mais tarde,

quando eu já tinha um jeito de tocar um pouco mais consolidado, não tem como, você começa

a ter contato com todo mundo e aí acho que todo mundo te influencia, pra ser sincero. Eu não

estou pronto hoje, não vou estar pronto daqui há dez anos, então se daqui há dez anos surgir

uma cara que toque bem, ele vai me influenciar, porque eu vou estar mudando. Então, depois

que eu virei músico, o Suzano me influenciou, mas muito pouco, eu não considero que eu

toco na escola dele. O Jorginho do pandeiro, do Época de Ouro, me influenciou pelas levadas,

pela criatividade, a criatividade do Jorginho é absurda, dentro da linguagem do choro, é um

cara que eu ouço mas também não me considero um repetidor do Jorginho. É engraçado, tem

pandeiristas que tocam iguaizinhos aos ídolos! E eu ainda não achei meu estilo, pra te falar a

verdade. Eu ainda não tenho, eu fico mudando, procuro timbres, é terrível né, eu não achei

ainda o meu timbre de pandeiro que você sempre vai ouvir a gravação e falar “esse é do Leo”,

como o Suzano tem ou como o Guello tem o dele, então eu ainda estou nessa busca, esses dez

anos ainda não suficientes pra eu descobrir. O Guello foi um cara também que eu ouvi

bastante, que tem um jeito completamente diferente, que é bem instintivo, é difícil de tirar as

coisas dele porque você percebe que ele sai tocando, é um cara muito coração, eu admiro pra

caramba o Guello, Jorginho, Suzano, Gabriel. O Marcelo me influenciou muito, ele tem um

jeito completamente diferente de tocar, muito criativo também, louco. E os pandeiristas de

choro, que inclusive um já morreu, o Zequinha do Pandeiro, que é um senhor que viveu até

mais de oitenta anos e ele tocava com uma firmeza de andamento que era impressionante, que

eu não via nenhum outro pandeirista tocar. E eu ia muito ver ele na roda e ficava a noite

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inteira olhando ele. E o Tigrão, que é um pandeirista também das antigas muito legal, que foi

uma referência de andamentos, de maturidade tocando. Ele toca muito com o João Macacão,

com a Dona Inah, ele é do choro. Mas eles foram referências de maturidade, sabe, não de

técnica, mas de comportamento do pandeiro no choro, elegância, só vira na hora certa, não

tem a coisa de ’tá solando junto. Então, acho que você pega um pouco de todo mundo.

Linguagem, tem pandeirista que é maravilhoso e não tem a linguagem do choro. E um cara

também que eu gosto muito é o Sergio Krakowsky, que é um cara do Rio que pegou toda essa

influência do Suzano, esse pandeiro mais moderno, e desenvolveu em cima disso ainda mais

técnica, mais velocidade, um tapa com o dedão que hoje eu uso porque vi ele usando. Então

ele é um cara que eu acho que ainda levou pra um lugar a mais. Então, tem os caras das

antigas, do meio e agora tem uma molecada vindo aí que dá até medo, né!

Para você, a palavra pandeiro representa um instrumento ou uma família de

instrumentos?

Nunca pensei sobre isso... ingenuamente, na nossa cabeça, pandeiro é aquilo que a gente toca.

Você acha que todos os pandeiros são iguais no Brasil?

Não, não. Eu acho que tem uma família grande, enorme, inclusive, que eu não tenho noção do

quanto se estende essa família.

Em quais manifestações e gêneros você reconhece a presença do pandeiro no Brasil?

Cara, a música brasileira, muita coisa é baseada no pandeiro, bastante. Eu vou falar as que eu

acho mais essenciais. O choro, por muito tempo ele foi o único instrumento percussivo, o

samba, é outro que não existe sem, o frevo, apesar de que quando a gente vê só aparece o

surdo e a caixa, em Recife ele é o carro chefe, o pandeiro tem uma importância no frevo

absurda, de condução, ele fica mais alto que a orquestra, engraçado. A capoeira, o coco e a

embolada, você vê, é a viola e o pandeiro, e mesmo quando tem outras instrumentações, o

pandeiro está sempre presente. É muita coisa no Brasil! Tem cirandas praieiras que eles tocam

no pandeiro, aqueles senhores de noventa anos que eu já vi perto de Angra dos Reis, eles

ficam cantando ciranda com o pandeiro. Então, é muita coisa, o Brasil tem muita coisa com o

pandeiro como base. O cavalo marinho, o pandeiro tem uma levada completamente diferente

do que a gente ’tá acostumado, e também, tem que ter pandeiro no cavalo marinho! Falando

da família, tem o boi, que aí você tem o pandeiro sem as platinelas, né. Então, se você pensar

na família do pandeiro, nossa, ela é mãe de muita coisa! E tudo a gente chama de pandeiro.

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Em qual época e em que lugar você acha que o pandeiro teve origem?

Eu sempre me interessei mais por tocar o pandeiro do que em ler sobre ele e saber, então você

ouve falar, vira e mexe você conversa, mas eu sou muito ruim de memória e passa um tempo

já não lembro mais das histórias. Então, essa parte, eu não faço ideia.

Você acha que o pandeiro é tocado fora do Brasil?

Sim, inclusive o pandeiro... o pandeiro nem é brasileiro. Eu acho engraçado como ele se

transformou aqui no Brasil. Eu queria estar na época que ele chegou, quem que inventou de

tocar desse jeito, porque ninguém toca assim no mundo inteiro, igual o brasileiro, desse jeito

horizontal, não toca!

Toca de que jeito, então?

Ah, eles tocam na vertical, tocam usando os dedos, tocam de milhões de maneiras. Mas desse

jeito que o brasileiro toca é só no Brasil. Você vê, pega os primos da zabumba, tem lugares

em que os caras tocam igualzinho, impressionante, e nunca se viram. Pandeiro, não. A técnica

é brasileira, cem por cento brasileira. Mas o instrumento é muito mais antigo.

Dessas imagens que você tem dos pandeiros fora do Brasil, você toca algum deles?

Não toco, mas morro de vontade. Inclusive aquele jeito de tocar, mais italiano, aquilo eu acho

maravilhoso! Só que... acho que é preguiça, porque é muito difícil, o jeito que eles tocam eu

acho impressionante. Mas, eu tenho vontade, mas não toco. Se tivesse oportunidade eu ia

aprender. Aqui chegam poucas oportunidades, isso é um fato.

Para finalizar, como você vê o pandeiro brasileiro no cenário musical mundial atual e

suas perspectivas futuras?

Eu acho ele um dos instrumentos mais versáteis que existe. E acho que, depois que passou

este primeiro momento do pandeiro ter uma função de acompanhamento dentro de um

regional, entenda-se de capoeira, de forró, enfim, depois que ele passou por esse primeiro

passo que era necessário, começou a se descobrir que os timbres dele não precisavam ser

necessariamente aqueles que marcavam ritmo e que denunciava que aquilo era samba, coco,

capoeira, e acho que a partir de um tempo se começou a transpor outros instrumentos pro

pandeiro, não é todo instrumento que te dá esta opção, é difícil você transpor, pra um

instrumento que não tenha condução aguda, você transpor todos os ritmos e ficar bom, um

funk, vai ficar uma coisa meio vazia. E o pandeiro acho que tem uma coisa, de possibilidades

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ele é um dos mais ricos, porque ele tem os timbres, frequências aguda média e grave, apesar

de ser clichê isso é verdade, é muito importante. Então, você consegue conduzir, fazer uma

linha mais grave e atacar nos agudos. Então, se você quiser desconstruir a coisa do que já é

feito, você pode descobrir coisas do pandeiro surreais, você ’tá virando igual uma alfaia vira

no maracatu, porque você tem os graves, e conduzindo como se você tivesse um ganzá. Então,

você percebe, a música pop hoje em dia, tem muita gente que ’tá usando o pandeiro. Então

eles falam, é clichê falar que é uma bateria de bolso, mas é que é muito verdade. É um

instrumento que se você estiver a fim de desmembrar ele, eu acho que você consegue tocar

qualquer coisa mesmo. E acho que mundialmente ele só tende cada vez mais a invadir as

coisa, hoje você já tem pandeiro no jazz, tem o Scott Feiner, que é um cara que usa pandeiro

no jazz. Tenho visto muito gringo se interessando por pandeiro, e isso é legal. Esses dia eu

tomei um susto, veio um cara no bar que eu toco, é difícil ver um cara que não é brasileiro

tocar pandeiro brasileiro bem, porque é difícil ver até brasileiro tocar bem. Não adianta ser

percussionista, você tem que ser pandeirista, isso é uma coisa que às vezes acham que é

chatisse, mas não é. Você bate n tamborim, ele tem um som que ’tá ali pronto, pra você tirar o

som grave do pandeiro na parte de cima da mão, dar o tapa, você tem que ser pandeirista,

então, isso é legal do pandeiro, ele é complexo. Então, esses dias esse cara veio tocar no Ó e

eu fiquei surpreendido, porque hoje em dia os caras vêm vídeo de brasileiro tocando, que há

vinte anos atrás não tinha como ver vídeo. Então, acho que a tendência é daqui há dez anos,

ter muita gente tocando bem e aplicando em tudo. Eu já vi japonês tocando bem pandeiro,

japonês mesmo. E é isso, se o cara toca bem pandeiro, com certeza ele vai dar um jeito de por

na música que é nacional dele. Como a gente às vezes pega o derbaq aqui e coloca numa

coisa. Eu tenho certeza que daqui a vinte anos o pandeiro vai estar sendo usado em todas as

manifestações, porque timbre ele tem pra isso, possibilidades, é muito rico. É um instrumento

promissor mundialmente, de verdade. E tem uma coisa, o que acho que tem estado promissor

é o pandeiro de couro, porque, parece bobeira, mas tem muita diferença de vários outros

pandeiros. Eu não vejo o pandeiro do boi do Maranhão, por exemplo, daqui a dez anos sendo

usado em funk, em tudo. Essa coisa de ter as platinelas e de ter o grave. Acho que o pandeiro

de náilon do samba também dificilmente vai varrer o mundo tocando valsa, eu acho que o

timbre do pandeiro de couro é muito mundial, ele abrange, parece que ele dá mais pano pra

manga. Se você me perguntasse só sobre o pandeiro de nylos eu não falaria tudo isso que

estou falando. Essa coisa de você ter a variação do próprio grave, você pode usar isso pra

solar, no samba a gente não usa muito pra não descaracterizar, mas se você ’tá mais livre, com

um cara que toca violão flamenco, você vai usar isso até cansar. Então é isso.

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ENTREVISTA 2

realização: 16 maio 2013

nome artístico: Guello

nome: Luis Carlos Xavier Coelho Pinto

data de nascimento: 12 jul. 1960

tempo de profissão: 38 anos

Guello é um solista reconhecido por sua enorme versatilidade. Transita entre as mais

variadas formações, desde as mais tradicionais como o choro e a bigband às mais inusitadas

como o trio Bonsai (piano, sax e percussão) e o grupo de Zizi Possi nos anos 1990 (dois

pianos e percussão).

Gravou com alguns dos mais importantes nomes da música brasileira: Paulo Moura,

Mônica Salmaso, Joyce, Marco Pereira, Toninho Carrasqueira, Renato Braz, Toninho

Ferragutti, Banda Mantiqueira e Orquestra Popular de Câmara, sempre com originalidade e

sem se limitar aos parâmetros da tradição.

Iniciou sua formação musical no samba, tendo como mestre Osvaldinho da Cuíca, e

participou ativamente do movimento Virada Paulista, no Teatro Lira Paulistana. Nesse

contexto de efervescência da nova música popular, formou o Grupo Livre Percussão,

pesquisando e compondo peças com base em ritmos brasileiros.

Atualmente, é professor de percussão da Escola de Música do Estado de São Paulo

(EMESP) e integra o trio Bonsai, o grupo de choro Moderna Tradição, o dueto de percussão

Duo Ello, com Carlos Stasi, a Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo e o grupo que

acompanha a cantora Zizi Possi.

Como você começou a estudar percussão?

O primeiro instrumento que toquei na minha vida foi um agogô, num ensaio de escola de

samba com o Oswaldinho da Cuíca que era o mestre de bateria da escola em que eu estudava.

Foram duas professoras do colégio Estadual, a Ilka Soares, poetisa e professora de português,

e a Maria Fernanda, ou algo assim, isso já tem 35 anos e eu não me lembro mais. Elas

assistiram a um show do Oswaldinho e tiveram a ideia de criar uma escola de samba no

colégio. Foram ao camarim do Oswaldinho, lhe apresentaram a ideia e ele topou na hora. Um

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mês depois a Associação de Pais e Mestres comprou todos os instrumentos da

Contemporânea. Em 1973, começamos os ensaios com 12 ou 13 moleques e no ápice deste

trabalho com o Oswaldinho a escola de samba já desfilava com 70 integrantes na bateria,

tinha ala de baianas e festival de musica para a escolha do samba enredo.

Que historia incrível!

Esta é a historia da minha vida, literalmente. Foi aí que tudo começou. Eu nunca tinha tocado

um instrumento na minha vida. Aí, um amigo meu dentro da sala de aula virou pra mim e

falou: “Pô Guello, você que vive batucando, toda hora você ’tá batucando alguma coisa, você

’tá sabendo que uma cara vai vir aí pra dar aula de escola de samba?” E eu disse “Você ’tá

brincando! Pô, vamos lá!” E foi ai que tudo começou com o Oswaldinho. Então neste

primeiro ensaio o Oswaldinho me deu um agogô pra eu tocar, mas passou a batida, eu peguei,

e já no outro ensaio ele começou a me passar base de pandeiro. Aí, no decorrer do trabalho,

com ele eu aprendi a tocar todos os instrumentos da escola de samba.

Então o seu contato com o pandeiro foi com o Oswaldinho da Cuíca.

Com o Oswaldinho da Cuíca! Ele foi a minha primeira e maravilhosa referencia. Eu tenho que

admitir que eu dei sorte! Ter um professor desses com 12 anos de idade foi uma bênção!

Então, daí eu comecei a tocar pandeiro demais porque eu adorei o pandeiro. Eu tocava tudo,

na verdade eu era meio o curinga da escola de samba, onde precisasse, onde estivesse faltando

alguém, eu cobria, porque eu tive muita facilidade já de cara. Então o Oswaldinho uma vez

falou: “olha Guello, o menino do repinique não vai vir pro desfile, você vai ter que tocar

repinique”. Daí eu me pus a tocar e estudar o repinique e toquei o repinique na apresentação

da escola, na festa das nações, aquelas coisas que tinha antigamente. E por assim foi. Cheguei

até a fazer um show com o grupo do Oswaldinho, tocando pandeiro com ele. Mas tudo isso

aconteceu e eu era muito menino. Isso foi passando, dois anos depois o Oswaldinho deixou o

trabalho na escola e eu virei o diretor de bateria da escola. Aí eu segui este trabalho que por

mais um ano ainda foi legal, mas nos dois últimos anos já desceu a ladeira, ninguém mais

queria saber. Daí eu engatei na carreira profissional com 17 anos. Ainda estudei no colégio o

segundo e terceiro colegial já como músico profissional, foi difícil de conciliar, mas as

professoras sabiam que eu já estava me tornando músico profissional, entendiam e até me

ajudavam. Eu tinha uma facilidade muito grande de assimilar, então eu ia muito bem nas

provas, embora eu faltasse muito nas aulas por trabalhar. Logo depois disso, um amigo meu,

Julio, nós o chamávamos Julio loiro porque tinha o Julio moreno da flauta, o Julinho, Julio

Vicente que foi até diretor musical do Raça Negra durante muitos anos, o Julio montou um

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grupo pra tocar na noite de São Paulo, e ele era amigo da minha Irmã, e me convidou , falou:

“Guello você não quer tocar?” e eu disse “Pô, mas eu não sei tocar conga, não sei tocar

bongô...” e ele respondeu: “Você sabe tocar o que ninguém sabe tocar, eu quero um

pandeirista pra um grupo de musica popular, e não só pra choro, porque a gente vai tocar de

tudo”. Naquela época, em 1978, tinham poucos pandeiristas. Essa febre de pandeiro, que

surgiu depois do Suzano, aconteceu nos anos 80, na verdade nos anos 90! Até os anos 80

havia poucos pandeiristas. Tinha eu, o Suzano, pouca gente se interessava, não tinha esse

boom de pandeiro que a gente vê hoje. Então a minha maior influencia de pandeiro foi esta,

durante muitos anos. Daí, por minha conta passei a tocar em grupos de musica instrumental,

utilizando o pandeiro também como instrumento de improvisação dentro destes trabalhos, e

fui desenvolvendo uma linguagem de improvisação com o pandeiro dentro da musica

instrumental, tocando diversos ritmos. Aí veio, a meu ver, a primeira grande revolução do

pandeiro que foi com o Suzano fazendo pandeiro pop. Foi isso que popularizou o pandeiro no

mundo inteiro, ele foi o grande responsável por esta historia. Mas, sem nunca esquecer a

maior influencia de todos nós pandeiristas que foi o Jorginho do pandeiro. Eu acho que isto é

uma unanimidade. Inclusive a principal referencia para o Suzano foi o Jorginho, mais do que

pra mim que foi o Oswaldinho. Apesar de ele ser conhecido como o Oswaldinho da cuíca ele

é um grande pandeirista. Mas, ter visto o Jorginho mudou um pouco a linguagem pra mim,

que foi interessante já usar os graves que o choro usa, na ponta de dedo, porque o samba

usava os graves só no dedão. Mas na verdade, eu vou ter que admitir que a minha primeira

influência tocando choro não foi o Jorginho, foi o Clodoaldo, daqui de São Paulo, que tocava

com o Isaías e seus Chorões. Mas mesmo o Clodoaldo tinha muita influencia do próprio

Jorginho, então a minha influencia do Jorginho veio até mim via Clodoaldo, porque ele foi o

primeiro cara que eu vi tocar pandeiro de choro. O Clodoaldo é vivo ainda, mas toca muito

pouco, mas nos anos 70 ele era pra mim o pandeirista de referencia em São Paulo. Anos

depois eu vi o Jorginho e aí eu falei “Nossa!” O Jorginho é uma assumidade total! Em 1990

eu tive a oportunidade de conviver com o Jorginho quando ambos participamos do Projeto

Pixinguinha que organizou uma turnê de 22 shows com os grupos Época de Ouro, Marcos

Pereira e Paçoca. Para estes shows ficamos trinta dias na estrada. Nós fazíamos rodas de

choro no meio da turnê e nessa convivência eu pude perceber a excelência que ele é.

Quando você começou a ensinar? Como foi pra você ensinar a tocar pandeiro?

Eu nunca me dediquei muito ao ensino no começo da minha carreira porque eu tocava

demais. Eu participava de cinco grupos instrumentais, era uma loucura... o que eu toquei nos

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anos 80 equivalem a duas décadas! Eu não tive uma formação, digamos, do ponto de vista

acadêmico, escolar. Mesmo com o Oswaldinho , eu nunca tive uma aula particular, ele dava

aula pra mim e mais trinta moleques. Ele ficava lá no centro e mostrava como tocar, quem se

ligou, se ligou. Então, eu nunca tive esta coisa do professor ou aprender a ler. Eu fui ler

música muitos anos depois de já saber tocar. O que eu acho que pra mim ajudou muito, acho

muito interessante. O Hermeto mesmo fala que tudo o que ele gosta de ensinar vai primeiro

pela música, depois a gente aprende a escrever. Escrever é mais fácil, tocar é mais difícil!

Então, eu não desenvolvi um lado muito didático no começo. Nos anos 1990, a partir do disco

da Zizi que eu gravei, Valsa Brasileira, em que eu tinha um solo de pandeiro junto com ela,

improvisando, à capela pandeiro e voz, isso ficou muito marcado como uma novidade,

ninguém nunca tinha feito, o pandeiro foi solista. Isso pra mim foi um grande lance porque eu

já vinha preparando esta proposta dentro da música instrumental, e quando eu senti espaço

disto com uma cantora eu pensei “não to acreditando!”. Acho que esta foi a segunda grande

sorte que eu dei, de estar num momento de muita efervescência musical e de me encontrar

com a Zizi num momento muito especial da vida dela, onde ela estava aberta pra muitas

novidades. Então, a gente começou a ensaiar e de repente acabou ficando um negócio com

pandeiro e voz, e ninguém acreditou! O Benjamin [Taubkin] falou: “Cara, eu não vou tocar

não, toquem vocês! Isso aí ficou maravilhoso com só vocês dois!” E isso abriu muitas portas

para mim. Aí, por causa disso, eu comecei a ficar mais conhecido no meio musical, e muita

gente queria ter aula de pandeiro comigo. Foi aí que eu comecei a dar aula mais para músicos,

percussionistas, bateristas, pessoas que já tocavam. Neste processo, eu não formei muita gente

nesta época. Eu passei a dar aula mais efetivamente na ULM (Universidade Livre de Música)

em 2002.

E nesse momento você passou a trabalhar com alunos iniciantes?

Aí eu já peguei de tudo! Engraçado que algumas pessoas diziam “pô, você já é um

percussionista reconhecido no seu instrumento, vai dar aula para principiantes?” e eu falei,

pode me dar principiantes, eu não tenho o menor grilo com isso, eu acho muito legal, eu gosto

de dar aula para principiantes, inclusive, gente que saiu do zero. Eu tive esta mesma

oportunidade com o Oswaldinho e acho legal passar isso adiante. Porque que eu só vou pegar

gente que já esteja graduada? Não tem essa, eu não tenho o menor grilo com isso. Dou aula

para crianças, mas individual, em grupo já não tenho muito a manha, requer mais pedagogia,

uma história que não é a minha. Então eu passei a fazer esta coisa didática de dez anos pra cá,

venho me dedicando e isto tem me satisfeito bastante, eu gosto de dar aula!

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Este processo de dar aula talvez represente pra você uma descoberta, pois você não

passou por um caminho convencional, escolar, em termos de aprendizagem musical.

Eu tive que me reinventar, na verdade! Como eu não passei por este processo, eu não tinha

uma referência. Então minhas aulas, até hoje, são trabalhadas com base em improvisos. Mas

eu tive que passar a organizar meus conteúdos. Antes eu não tinha o hábito de preparar uma

aula, na verdade eu nunca preparei uma aula, o que aconteceu comigo é que com tanta

experiência dando aula, criou-se um método de dar aula. Quando eu comecei a trabalhar na

ULM a proposta era de um curso livre, não havia a obrigatoriedade de cumprir um programa e

com a progressão do aluno, pois as pessoas vinham e iam. Hoje não, (atualmente, na gestão

do Santa Marcelina Cultura a ULM passou a ser chamada de EMESP – Escola de Música do

Estado de São Paulo) você pode pegar um menino e levar de quatro a seis anos com ele

deixando esse menino preparado pra tocar, com leitura. Então, a minha experiência didática

foi muito aqui e também com workshops, que eu fiz muito, principalmente por causa do

DuoEllo (duo formado pelo Guello e pelo percussionista Carlos Stasi, professor do Instituto

de Artes da UNESP). O DuoEllo foi fundamental na minha vida porque me trouxe outra

forma de pensar a música. Somos dois solistas em linguagens absolutamente, em tese,

opostas, mas que na verdade eu acho que não é, pois não se pode opor a música à música!

Uma verdade existe, a de que o Carlão teve uma forte vivência na música contemporânea e

orquestral que o influenciou como compositor. Eu admirava muito o trabalho do Carlão, o

conhecia desde o tempo em que ele era estudante na UNESP compondo peças de percussão

múltipla com vinte e poucos anos que ninguém acreditava, ficava todo mundo abismado, era

uma coisa de outro planeta! Peças de percussão múltipla com 1:20h que ela tocava de cor,

nota por nota, não tinha um improviso na peça do cara. E o Carlão sempre admirou o meu

lado como improvisador, tocar livre, o contrário dele! Então, quando o Carlão veio me visitar

na volta do mestrado na CalArts (California Institute of the Arts), onde ele fez o mestrado, ele

veio pro Brasil mas ia ficar pouco tempo, já indo pra África do Sul fazer o doutorado, ele me

homenageou com uma peça de reco dele que é aquela peça com reco de mola afinada. Ele

dedicou aquela peça a mim pois eu fui o único cara que ensinou alguma coisa de reco na vida

pra ele. Eu ensinei ele a tocar reco de samba! E aí eu propus a ele de fazermos um trabalho

juntos. E o Carlão, as pessoas que conhecem o Carlão vão entender bem o que eu vou dizer,

quando ele voltou do doutorado já chegou com o nome do Duo, já com três peças feitas,

nomes e logotipo! Foi muito engraçado! Ele disse: “Guello, que tal DuoEllo com dois Ls,

porque usamos Elo como link entre a música contemporânea e a popular, com dois Ls

também porque o seu nome é Guello e acho que tem a ver, e Elo também como o famoso elo

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perdido entre a música erudita e o popular que é uma terceira via”, vamos dizer assim. E isso

também me ajudou no pandeiro, porque a primeira peça que o Carlão criou pra gente foi um

duo de pandeiro, chamada Ello. E era difícil, com um jeito esquisito de tocar. O Carlão

sempre teve uma preocupação de tocar diferente, e isso pra mim foi ótimo pois eu nunca tive

esta preocupação mas acabei sendo obrigado a tocar diferente, então foi muito legal! Este jeito

de tocar no DuoEllo me ajudou muito a tocar, dentro do que a maioria das pessoas tocam,

então foi uma progressão pra mim.

Até agora falamos bastante da sua vivência com o pandeiro brasileiro. Você tem contato

com outros tipos de pandeiro, fora o pandeiro que se toca aqui no Brasil?

Só a Kanjira, que não deixa de ser um pandeirinho. E se tirar aquela platinela a Kanjira morre!

Então, minha única relação com outro instrumento que não seja o pandeiro nosso é a Kanjira.

Foi assim, como eu gosto muito de tocar Tabla, a Kanjira tem coisas da técnica da Tabla, é

diferente mas tem um parentesco tecnicamente falando. Então, quando eu vi uma Kanjira pela

primeira vez foi uma Kanjira da Remo que quem me deu foi o Sergio Gomes. Ele falou “olha

Guello eu tenho esta Kanjira, você é panderista, vê se você vai curtir isto aqui” e eu curti na

hora, falei “nossa, que instrumento legal Sergião!” e ele me presenteou com esta Kanjira.

Desde então eu passei a tocar Kanjira. Aí o Randy Gloss do grupo Hands On’Semble , este

sim toca tudo quanto é pandeiro que se imaginar, esteve no Brasil e eu dei aula pra ele aqui.

Depois fui fazer uma turnê com o DuoEllo e o professor de Kanjira do Randy, um indiano, foi

assistir a gente, adorou e disse “eu vou te dar uma Kanjira de presente” e o cara me deu uma

Kanjira maravilhosa! Então assim, eu toco, não toco música indiana, nada, nem na tabla! Mas

aprendi a técnica, tiro os sons que são originais da técnica do instrumento e faço tudo como

adaptação para a música brasileira. Eu uso o instrumento como timbre. Pra se tocar a música

indiana, Tabla ou Kanjira, é necessário dedicar tanto tempo pra isso, tanto tempo, eu não vou

dizer que seja impossível, pois o Collin Walcott o fez e fez muito bem. Pra mim, o

percussionista ocidental que melhor tocou a música indiana foi o Collin Walcott. O Naná,

com seu jeito superbrazuca, que naquele disco Saudade, toca tabla: aquilo é um brasileiro

tocando tabla! Eu vou mais por aí! Nos Estados Unidos, Europa, Japão, a gente também

encontra músicos que usam o pandeiro brasileiro ao seu jeito. O Brasil é tão rico

musicalmente! Eu, por exemplo, parei de ouvir rock muito novo, porque a música brasileira

era muito forte. Imagine que nos anos 1970 você tinha Chico, Milton, Naná Vasconcelos.

Com 13 anos de idade, eu já sabia quem era o Naná Vasconcelos, Airto Moreira, Hermeto

Paschoal, com essa idade eu já assistia esses caras tocando. Então, eu tive uma formação

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musical muito forte de música brasileira, com muitas referências que são importantes até hoje.

Talvez por isso eu não tenha dedicado mais tempo à música indiana, que eu adoraria tocar,

mas acabou que ficamos assim!

Você acha que a palavra pandeiro representa um instrumento ou pode ser aplicada a

vários instrumentos?

O pandeiro é usado no mundo inteiro, de tantas formas diferentes que eu acho que pode

abarcar tudo.

E utilizamos o adjetivo “brasileiro” para diferenciar uma parte deste conjunto?

É! Por exemplo, os pandeirões, além do pandeiro de platinela árabe chamado Riq, tem os

pandeirões sem platinela, como tem no Maranhão, que são genericamente chamados de frame

drums, tambor de aro, muito por conta do percussionista John Bergamo que os desenvolveu (e

popularizou) muito. Frame Drum virou o nome genérico pra tudo, mas na hora em que você

fala pandeiro, cabe muita coisa! A Kanjira é um pandeiro, o Riq é um pandeiro, o Tamburello

italiano é um pandeiro, a Pandereta Gallega usada pelas mulheres na Galícia também é um

pandeiro! Eu fui à Portugal tocar com a Marlui Miranda num festival de música, substituindo

o Caíto Marcondes, e lá eu vi um grupo da Galícia, tinha uma menina tocando esse pandeiro

galego. Nossa! Maravilhoso! Então, eu acho que pandeiro significa muita coisa. É uma

família enorme. E, claro, pra gente, é o instrumento nacional, eu acho que se tem um

instrumento que simboliza a música brasileira na percussão é o pandeiro, sem dúvida.

E podemos notar que é um instrumento que pode ser tocado de várias formas. Um jeito

mais convencional no Brasil é segurá-lo na horizontal, com a pele voltada para cima, e

que, aliás, só aqui no Brasil, em nenhum outro lugar no mundo segura-se o pandeiro

desta forma tocando mais com a mão do que com os dedos.

Eu acho, e isto não é uma tese nem nada, é só uma opinião, que a nossa influência, a nossa

música é muito mais mão porque é mais africana, quero dizer africana do centro sul, pois a

áfrica árabe também é diferente. Mas, como a gente tocou muito tambor, veja o candomblé na

Bahia, é tudo mão, então, você solta um pandeiro na mão do cara e ele nem vai pensar em

tocar com os dedos, vai tocar com a mão. Então, de alguma forma os caras começaram a

batucar no pandeiro como se ele fosse um atabaque, eu imagino isso nos primórdios, sei lá!

Inclusive eu vi os vários vídeos que o Nóbrega fez com dança e que passam agora no canal

TV Futura, vira e mexe reprisa, e no samba ele pegou um grupo de samba de Santo Amaro.

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Cara, eram seis pandeiristas tocando e parecia tudo atabaque, tinha até um cara tocando conga

junto, mas a linguagem dos pandeiristas, o jeito do fraseado, era um Rum tocando! Você

fechava o olho e sabia que eram pandeiros pelo barulho da platinela, mas as vozes e o jeito de

tocar era de atabacão, Rum total! Isso eu vi com o Nóbrega que filmou um grupo de Santo

Amaro, lá no Recôncavo baiano, que é demais!

E de onde você acha que surgiu o pandeiro, qual a origem dele?

Eu já parei pra pensar nisso, mas não tenho uma referência do ponto de vista antropológico.

Eu não posso afirmar nada com segurança, mas acho que de alguma forma veio com os

portugueses, via Península Ibérica. Veio parar aqui o pandeiro, a zabumba que também veio

de lá. A zabumba marroquina, que está ali do lado! Então assim, Marrocos, Península Ibérica,

mesmo os árabes que ficaram na Península por 700 ou 800 anos, foram oito séculos de

colonização árabe, então, com certeza o pandeiro veio por eles de alguma forma, eu acho!

Mas acredito que isto tenha total fundamento, pois a gente não teve uma colonização árabe no

Brasil, ainda mais no Nordeste. Então, foi via Península Ibérica que vieram, já tinha pandeiro

lá na Galícia, que é ali colado, então os portugueses e espanhóis trouxeram isso pra gente.

Eu tenho percebido um interesse crescente pelo pandeiro, tanto no Brasil quanto no

mundo, os frame drums. Tenho encontrado teses recentes e livros recém publicados que

falam sobre pandeiros, suas origens e especificidades.

Eu acho que a percussão se desenvolveu muito no mundo. A gente vê um monte de gente se

interessando por outras culturas.

As pessoas estão se dando mais liberdade de transitar entre uma cultura e outra.

É verdade, e eu sempre achei isso legal! Eu nunca vi problema nisso. Mesmo eu vindo de uma

época em que não havia internet e já achava isso bacana. Tanto é que eu toquei tabla nos anos

80, quando não existia muito essa onda. A gente já colocava a tabla na música e tocava de

outras formas, e essa coisa de juntar percussão com bateria, que hoje em dia até criou-se a

palavra percuteria pra essa formação. Eu tinha um grupo de percussão nos anos 80 que se

chamava Grupo Livre Percussão e que foi o primeiro grupo independente de percussão no

Brasil. Independente no sentido de não estar vinculado a escola nenhuma, e, a menos que eu

esteja enganado, na época não tinha nenhum grupo com este perfil. Os integrantes eram eu, o

Betão que faz estes livros de pandeiro e berimbau, Luiz Roberto Sampaio, que vem se

dedicando muito à didática ultimamente escrevendo livros muito bons que até aplico nas

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minhas aulas. Também tinha o Paulo Melo, baterista, o Fernandinho que era do Língua de

Trapo e do Sossega Leão, que hoje em dia, nos últimos 26 anos ele está na Espanha, e o

Armando Tibério, baterista, que hoje toca contigo no Mawaca! Esse era o Grupo Livre que na

época representou uma coisa muito nova! Esse grupo se formou num movimento de música

muito efervescente em São Paulo que era a Virada Paulista, chamado também de Lira

Paulistana. Então, veio de toda aquela época o Grupo Um, com os irmãos Nazário, Zeca

Assunção e Mário Cenize, o pessoal de São Luís do Paraitinga e a Ná Ozzeti formando o

Grupo Rumo, e o Grupo Livre Percussão surgiu nesta época. O Armando, o Beto e o

Fernandinho já tinham tido aula com o Zé Eduardo Nazário, e eu tocava com o Renato

Consorte no seu grupo instrumental. Aí o Renato foi fazer o segundo festival da Cultura, o

primeiro foi o que o Arrigo ganhou com “Diverões Eletrônicas” e onde participou o

Hermelindo e o povo da USP. No ano seguinte o Renato Consorte se inscreveu no segundo

festival da Cultura e me chamou pra tocar, aí eu conheci o Armando e o Beto, porque o

Armando veio de percussão, o Beto de bateria e eu também. Aí os caras viram que eu tocava

música brasileira no pandeiro, então, por isso que eu falo que o pandeiro foi o instrumento

que me fez ser músico! Aí os caras falaram “pô bichô, a gente vai montar um grupo de

percussão, você topa?” e na época, eu não tinha essa vivência toda com tantos instrumentos.

Eu falava “pô, cara, que loucura, vocês leem bem, eu leio mal pra caramba, aprendi a ler

sozinho praticamente, sou um mau leitor” e os caras falaram “bicho, não tem problema, você

sabe tocar a música brasileira, e é isso que a gente quer, pois a ideia do grupo é formar um

grupo de percussão em que a base seja a música brasileira”.

Vocês têm registro disso?

Nada! Zero! Tem uma fita de um show que a gente fez, com um microfone no centro do

palco, gravado em K7, e eu nem sei onde está essa fita. Na época, não existia homestudio, era

tudo tão precário. Você comprava uma fita TASKAM de 15 minutos mas o nosso som tinha

duas horas... Hoje em dia, a gente grava um disco só com esse gravador que você está usando

pra gente gravar a entrevista! Então, infelizmente o Grupo Livre não teve esse registro.

Relatos preciosos!

Então, só pra encerrar, como é que o pandeiro foi se desenvolvendo. O Suzano, com essa

nova técnica dele, desenvolveu um monte de gente que dentro da própria técnica dele já se

desenvolveram além da técnica aprendida com ele. É o caso do Krakowski que hoje em dia

tem um jeito totalmente diferente de tocar pandeiro. Então, eu acho muito legal a gente

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observar os jeitos diferentes de tocar, e que de forma alguma ninguém anula ninguém, isso é o

mais legal! Eu acho que o Jorginho do pandeiro vai continuar sendo o Jorginho do pandeiro,

cada um tem a sua história e esta história está caminhando e evoluindo pra um monte de

coisas diferentes que eu acho maravilhoso! Tem muita gente que pesquisa sobre o choro no

mundo inteiro e então, além do Marcos Suzano, o Jorginho também levou o pandeiro pro

mundo. Eu acho que esses dois fizeram um trabalho inacreditável pelo pandeiro, e a partir

disso, temos o que temos hoje!

ENTREVISTA 3

realização: 23 maio 2013

nome artístico: Alexandre Biondi

nome: Alexandre Oliveira Biondi

data de nascimento: 21 fev. 1969

tempo de profissão: 25 anos

Biondi é graduado em percussão pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual

Paulista (UNESP) em 1995, percussionista da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo

(BSESP) e professor da Fundação das Artes de São Caetano do Sul (FASCS) e da Escola de

Música do Estado de São Paulo (EMESP).

Como e com quem você aprendeu a tocar pandeiro?

Eu aprendi a tocar pandeiro com o saudoso mestre Formiga, falecido há uns sete anos.

Quem foi o mestre Formiga?

Ele foi um dos pioneiros da percussão. Junto com o Chacal e o Paulada ele foi um dos

primeiros caras a trabalhar com percussão, juntamente com o Raul que fazia congas,

construíam e tocavam os instrumentos, isso lá pela década de 50. O Formiga tocou muito nas

orquestras de gafieira da época e bandas de baile.

Você procurou o mestre Formiga para aprender a tocar percussão ou pandeiro?

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Na verdade eu o procurei para aprender a tocar percussão, congas e bongô, que eram os

instrumentos que eu sabia que ele tocava. E eu pensei que ele só tocava isso, mas quando

comecei a ter aula com ele, vi que era um super sambista e aprendi a tocar pandeiro com ele.

Além do mestre Formiga como seu professor, você teve outras referências?

Eu comecei tocando samba e quando me interessei pelo choro houve a necessidade de tocar

com outro pandeiro, com pele de couro, mais característico do choro, e a partir daí comecei a

pegar referências do Jorginho do Pandeiro, Guello, o Suzano que veio com uma moda nova,

passando a ouvir estes caras, ouvindo e pegando uma dica aqui e outra ali.

Você a ensina a tocar pandeiro?

Ensino, na Fundação aparecem alguns interessados.

Você ensina do jeito como você aprendeu ou você descobriu um jeito particular de

ensinar este instrumento? Como você ensina?

Eu acabo usando um pouco da experiência metodológica que eu tenho, de como eu toco. Hoje

o pandeiro está elitizado, existem métodos de ensino do pandeiro, quando eu comecei a

estudar não tinha método de pandeiro. Então hoje você tem a situação de pedir pro aluno um

material para acompanhar alguns exercícios propostos. E tem a facilidade da internet, onde as

referências estão muito mais fáceis. Então, eu vou nessa linha de apresentar um pouco do que

eu sei e muito de oferecer onde ele vai achar.

O que você indica para os seus alunos como referências e métodos?

Como referência, obviamente o s gêneros de samba e choro, o cara que quiser tocar pandeiro

aqui no Brasil vai ter que se debruçar nisso aí, e nomes como Jorginho do Pandeiro, Marcus

Suzano e Guello. Quanto a métodos, o Betão lá da UNESP (Roberto Sampaio) fez um

material bacana de pandeiro que você acaba seguindo. Mas hoje acabam surgindo métodos na

sua frente porque o pandeiro é um instrumento mais estudado hoje do que quando eu aprendi.

Eu aprendi sem nenhuma notação, na raça, vendo o cara tocar. O Suzano também tem um

material com DVD que parece ter sido lançado na Alemanha, mas não no Brasil, não tenho

certeza sobre isso. Existem outros materiais que vão surgindo no mercado como métodos de

pandeiro.

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Com relação à palavra pandeiro, você acha que ela representa um instrumento ou pode

abarcar um conjunto de instrumentos?

Eu acho que pandeiro acaba sendo o pandeiro de samba. Aqui no Brasil, quando você fala

pandeiro pra mim é o pandeiro de samba. A gente sabe que tem o pandeirão do maranhão, tem

outros gêneros que usam o pandeiro, mas para mim, assim como para as pessoas leigas,

pandeiro é pandeiro de samba, do choro. O pandeiro de samba acaba sendo quase como um

símbolo nacional, quando se vê o passista fazendo malabares com o pandeiro, a escola de

samba, é uma marca. Quando se fala de Brasil pensa-se em mulata, futebol e pandeiro.

Você falou bastante sobre o pandeiro do samba e do choro. Em que outros gêneros e

manifestações você acha que o pandeiro está inserido?

Eu acho que a partir do Marcos Suzano, que levou o pandeiro pro funk, pra música afro,

pegando toques do candomblé e passando pro pandeiro, hoje você consegue fazer do pandeiro

o que quiser. Podemos encontrar até gringos tocando pandeiro em shufle, jazz, usando outras

células que não as do samba. O pandeiro hoje extrapolou os limites do choro e do samba.

Com o Marcos Suzano o pandeiro foi tendo outra dimensão, a forma por ele proposta de

amplificação do pandeiro, a situação de usar a pele de couro um pouco mais frouxa, foi

levando o instrumento a outras possibilidades. Antes havia a situação de você ter um baterista

e um pandeirista em uma banda, hoje é comum você ver apenas o pandeirista levando a

banda. Eu acho que o instrumento teve muitos ganhos neste sentido.

Você acha que o pandeiro é tocado fora do Brasil?

Pandeiro, você se refere ao nosso pandeiro?

Boa pergunta! O que estamos chamando de pandeiro?!

Quando você me pergunta o que é o pandeiro no Brasil, pra mim é o pandeiro de samba.

Agora, lá fora, a quantidade de pandeiros, vamos dizer dos frames, é absurda. Eu não saberia

citar os nomes.

Você conhece alguns destes frames de fora do Brasil? Já tocou alguns deles?

Eu dou umas enganadas em alguns... Eu tenho um Bendir, um Riq e alguns outros pandeiros

que eu uso pra improvisar tentando pegar um pouco da linguagem da cultura do Oriente

Médio. Mas é tudo muito intuitivo, sem muita informação, pesquisando e procurando

referências na internet.

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Como você vê o pandeiro brasileiro no cenário musical atual e suas perspectivas

futuras?

A música brasileira já invadiu o mundo e não é de hoje. Neste sentido, o pandeiro brasileiro

vai estar sempre presente por ser um instrumento muito representativo da nossa cultura.

ENTREVISTA 4

realização: 20 jun. 2013

nome artístico: Ari Colares

nome: Arildo Colares dos Santos

data de nascimento: 23 mar. 1964

tempo de profissão: 32 anos

Ari Colares é músico e educador especializado em percussão e ritmos brasileiros. Atua

no Brasil e no exterior, lecionando ou tocando com importantes nomes da música como Naná

Vasconcelos, Mônica Salmaso, Zizi Possi e Egberto Gismonti, entre outros.

Participa de diversos projetos com o pianista Benjamim Taubkin, destacando-se

Clareira e Al Qantara.

Ao lado do contrabaixista Zeca Assumpção, integra o trio da pianista Heloísa

Fernandes. Toca no show Saraivada, do compositor e violonista Chico Saraiva.

Desde 1993, leciona na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP), antiga

Universidade Livre de Música, onde dirige o Grupo de Percussão Popular.

Como foi a sua relação com o pandeiro desde a sua formação?

O pandeiro foi um instrumento que me atraiu e me chamou a atenção desde o começo. A

primeira referência que eu tive, ainda com meus 17 anos, foi a de um cara que era do Grupo

Abaçaí e que tocava em choro. Ele fazia teatro com a gente, mas tocava um pouco de choro, e

eu me lembro de que ele me passou uma levada de choro Tuctic Tuctic Tuctic Tuctic, aquele

jeitinho bem básico sem mover a mão esquerda. E aí, ao mesmo tempo, no mesmo ano, eu já

fui apresentado ao pandeiro de folia de reis. Aí falei “Ah! Não tem só esse!”. Mas, de

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qualquer maneira, aquele que a gente mais acessa aqui na cidade é o pandeiro de choro e

samba, então esta foi a referência principal, a outra foi um jeito do interior. Depois eu fui

vendo outras e outras formas, mas o que me pegou de inicio e que me manteve mais em

contato foi o pandeiro de choro e de samba.

E como foi o seu processo de aprendizagem para tocar o pandeiro?

Eu vi o cara do Grupo tocando pandeiro e num momento de intervalo eu cheguei pra ele e

perguntei “como é que é?”. Aí ele pegou o pandeiro e tocou “ó, dedão, polegar, dedo, base

dedo, polegar, dedo, base, dedo” com o pandeiro parado, nem fechando e abrindo, só o Tuctic,

Tuctic. Aí eu peguei aquilo e fiquei estudando, só aquilo. Quando eu pude, comprei o

pandeiro. Aí, ouvindo, vendo e tal eu falei “Ah, legal, dá pra usar o dedo embaixo pra tapar e

imitar o surdo! TIctic TUctic TIctic TUctic. Já não era mais o Tuctic Tuctic. Aí eu fui tocando

isso, e já aprendendo a tocar um pouco e vendo rodas e participando de rodas, ouvindo e tal, e

fui me desenvolvendo ali, se bobear, uns dois anos brincando com aquilo ali sem mover a

mão esquerda. Aí, uma vez eu tava numa roda, numa viagem que eu fiz pra tocar com o

Abaçaí, uns dois ou três anos depois, e eu não tinha nunca estudado o pandeiro tecnicamente,

ficava sempre no Tuctic Tuctic, ia ouvindo e acompanhando com aquilo. Aí, na roda tinha um

senhor tocando pandeiro de choro e eu lembro que eu me cansei rápido, foi a primeira vez que

eu fiquei muitas horas assim, e essa era uma roda de samba e choro bem solta, não era uma

roda dessas rígidas tradicionais, ali cabia dois pandeiros. Aí eu ia tocando e olhando praquele

senhor, me cansando e vendo ele rindo e sorridente ali tocando, falei “caramba, o que é que

ele ’tá fazendo que eu não ’tô fazendo?”. Eu lembro que foi uma ficha forte que caiu, assim

“o que é que ele faz que eu não faço?”. Aí, eu sempre tive facilidade de imitação corporal,

pensei “vou imitar ele, vou ver o que ele ’tá fazendo”. Sentei do jeito em que ele estava

sentado e comecei a fazer uma varredura, como está as costas, como é que ’tá não sei o que, e

de repente parece que eu soltei uma trava e a mão esquerda começou a funcionar, isso no

meio do som. Eu não parei e fui estudar, e de repente o Tuctic Tuctic virou TUCTCHIC

TUCTCHIC, com o pandeiro mexendo, com o pandeiro indo ao encontro da mão direita

também. Foi assim, uma coisa que soltou na roda. Aí eu me toquei “caramba, é isso, o

pandeiro fica mais leve, eu faço menos força!” Eu nunca segui uma orientação técnica, mas eu

sempre tive uma preocupação técnica. Aí eu falei “mas o que é que eu ’tô fazendo, ’tá

pesando, como está o ângulo do pandeiro em relação ao chão, ’tá muito em pé, eu ’tô com a

minha mão solta”, eu tinha noção de consciência corporal e aí eu ia tentando aplicar isso no

pandeiro. Eu lembro que a questão da mão esquerda foi assim! Aí eu fui conhecendo mais,

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conhecendo mais, aí fui vendo outros pandeiristas, eu lembro que o Guello foi uma referência

que eu vi na “Meche com Tudo” e falei “olha o jeito dele tocar!”. Depois de um tempo o

Marcos Suzano apareceu e eu já me identifiquei mais com o Guello do que com o Marcos

Suzano, porque eu sempre fui muito mais do pandeiro solto do que do pandeiro de groove

fechado, que o Suzano tem uma coisa muito forte com um beat que é maquinal e ele é muito

do groove, claro que ele inventa um monte outras coisas, mas eu sempre gostei da levada, do

padrão, não muito fechado, mais solto, e eu identificava isso com o Guello. E também eu não

gostava da ideia de focalizar demais na ponta dos dedos, eu gostava de muitas vezes repetir o

polegar, eu não consegui adotar uma coisa que virou meio regra durante um tempo pra muitos

pandeiristas “você pode fazer os sons dos dois lados, então você tem sempre que alternar (os

graves)”, e eu sempre achava que funciona repetir também(o polegar), em alguns momentos

funciona alternar, em outros funciona repetir. Aí, dando aula eu fui criando metodologia.

Como é que eu vou ensinar? Primeiro tem que pensar neste som, pensar naquele som... E essa

metodologia me veio muito depois de estudar na Escola Municipal de Musica com a Beth Del

Grande porque tem a ver com reflexão e observação de detalhes da relação corpo e

instrumento.

Hoje, onde você ensina?

Eu ensino na EMESP (Escola de Musica do Estado de São Paulo) e na minha casa, além de

oficinas por aí.

A sua trajetória nos mostra que você não ensina do jeito que aprendeu, que você foi

reelaborando tudo o que aprendeu e foi criando um método, um jeito seu de ensinar.

A partir das dificuldades dos alunos eu fui criando metodologias, também. Eu sempre me

senti trabalhando em função da necessidade do aluno, às vezes o aluno me alerta pra algumas

questões. Se eu percebo primeiro que não ’tá rolando, aí eu observo “claro, ele ’tá apertando o

pandeiro, ele ’tá pesando a mão sobre o pandeiro, então ele deve deixar a mão mais leve,

neste momento, a mão esquerda trabalha mais”. Então, eu vou criando uma metodologia a

partir do erro e acerto com o aluno, a partir da observação do aluno, de suas facilidades e

dificuldades, aquilo vai me dando um know how de como resolver problemas e dificuldades

do aluno com relação ao alinhamento, relaxamento e capacidade de mudar a posição do toque.

Você pode ter muitos sons, mas não pode ter vícios de postura da mão e do ponto onde você

toca. Você tem que ser capaz de tocar em diferentes pontos pra obter diferentes sons. É isso

que eu venho aplicando no aluno e em mim também.

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Quais foram as suas principais referências como instrumentista no pandeiro?

Primeiro, sem dúvida nenhuma, o Guello que foi o cara mais próximo aqui em São Paulo, o

Jorginho do Pandeiro e o Marcus Suzano também. Mesmo eu não seguindo exatamente uma

linha do Suzano, foi interessante porque ele é um cara muito metódico e quando ele começa a

observar alguns pontos que, você concorde ou não, passa a considerá-los e isto acaba

influenciando a maneira como você olha pro pandeiro como instrumento. Então, no pandeiro,

pra mim estas são as três referências.

Pra você, a palavra pandeiro representa um instrumento, aqui no nosso território

nacional, ou...

Muitos, muitos! Mesmo se você pega em um ambiente urbano, pelo menos, de cara, daquilo

que é mais visível, você pega pelo menos dois pandeiros, um pandeiro mais no choro e um

pandeiro mais no samba. E existem particularidades mesmo! Pra potência que um pandeiro de

samba precisa ter na roda, em geral eles são maiores, mais pesados, com pele sintética muito

esticada, e pra pele ficar bem esticada o instrumento acaba tendo mais tarraxas pra poder

apertar mais e ficar bem agudinho, pra ter mais tarraxas ele tem que ter mais corpo, se não vai

começar a empenar tudo, aí o instrumento fica muito pesado! Então, o jeito de tocar pandeiro

de samba não dá pra ser igual! Você segura o pandeiro e desce a mão direita, aí a mão

esquerda não vai fazer muito mais do que segurar o pandeiro, o pandeiro fica estático e você

vai mudando os sons com a mão direita. Aí, esse e outro caminho, tem gente que só toca este

pandeiro e não toca o pandeiro de choro. Então, esse pandeiro de samba e de choro,

apresentam duas técnicas diferentes. Aí, quando você se abre um pouquinho pra o que

também se apresenta no ambiente urbano com o pandeiro de coco de embolada, como a gente

costuma ver em algumas feiras, parques e praças com os emboladores, você observa e vê que

existem jeitos diferentes de tocar, o cara já esta posicionando o pandeiro de uma maneira

diferente, às vezes movendo mais a mão esquerda, às vezes menos, tocando a levada de um

jeito ou de outro, aí o instrumento soa diferente. A pele animal acaba sendo muito

identificável com este estilo hoje em dia e a platinela um pouco mais solta do que o pandeiro

do samba ou do choro. Ai a gente já acaba dividindo em três: o pandeiro do samba, do choro e

do coco de embolada.

Isso você está identificando em um ambiente mais urbano, andando pelas ruas e praças

da cidade de São Paulo.

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Isso, os caras vão procurar onde tem bastante gente pra eles fazerem uma roda grande e tirar

uma grana.

E em que outros gêneros você reconhece a presença do pandeiro brasileiro?

Então, de cara assim, você vê na cultura tradicional, aquilo em que se tem um traço ibérico

forte, tem pandeiro! Você vê a tradição da Folia de Reis, onde se associa a presença de

pandeiro, viola, violão, pode ter cavaquinho, bandolim e outras cordas dedilhadas, você vê

que tem uma origem portuguesa bem clara, e do pandeiro. E ali você já pode ter uma outra

técnica, um jeito de lidar com o pandeiro diferente, usando os rulos, usando um balanço do

pandeiro, um chacoalhar do pandeiro independente da mão direita, quer dizer que você produz

o som sem necessariamente precisar da mão direita, só com as platinelas. As marujadas, tem

Marujada que tem um monte de pandeiro. Tem um tipo de Congada do interior que um dos

nomes possíveis é Vilão e às vezes Marujada mesmo, quando eu falei Marujada eu estava me

referindo ao Nordeste, Bahia, onde tem Marujada, Sergipe, Alagoas, essas Marujadas têm

pandeiro. Mas, mesmo umas Marujadas que estão mais associadas às Congadas, ao universo

dos Congos aqui de São Paulo e Minas Gerais, tem uns que tem bastante pandeiro. E aí, o

pandeiro de alguma maneira, nesse universo ele dialoga, dá pra arriscar que tem uma raiz

semelhante de técnica, por mais que as técnicas no ambiente tradicional possam ser às vezes

muito pessoais, às vezes você percebe uma identidade de território, mas às vezes num mesmo

grupo você pode ter uma cara tocando de um jeito e um outro de outro. Um pegou de um jeito

e o outro pegou de outro e pronto! E você vê que tem conclusões que são comuns não

necessariamente pela influência. Você vê no Guerreiro de Alagoas tem lá uns caras que tocam

o pandeiro em pé que nem um pandeiro árabe, mas não é que eles aprenderam com um árabe

que os influenciou, ou aquela técnica veio assim pra cá, não! O cara pegou o pandeiro, achou

mais fácil segurar daquele jeito e pronto, ficou. Porque é uma conclusão de alguém inteligente

na hora de se relacionar com o instrumento. Essa técnica de Riq, de segurar o pandeiro em pé,

é o jeito mais interessante do ponto de vista da gravidade pois o pandeiro fica em pé com o

peso apoiado em um ponto só na palma da sua mão. Então, não necessariamente o cara

precisa ter visto uma Kanjira ou ter visto um Riq pra ele saber “Ah! É assim!”. O Canarinho,

que lá em Alagoas é uma referência, um cara que toca pandeiro em pé assim também, tem

coisas que ele toca parecendo Kanjira, num outro momento ele toca parecendo pandereta

Gallega e num outro momento ele toca como se fosse samba. Ele vai mudando a posição do

pandeiro “cansa a mão, eu troco!”, ele fala. E aí, quando eu perguntei pra ele como que ele

começou a tocar o pandeiro em pé, ele falou “Ah, tava cansando muito a mão e eu achei que

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assim cansava menos”. É simples! Uma conclusão que talvez ha uns três mil anos alguém já

teve também, a aí fixou uma técnica. Ou seja, então são muitos pandeiros! Tem no Samba de

Roda! No Samba de Roda da Bahia, você vê que a viola e o pandeiro estão juntos, também,

em uma instrumentação bem ibérica numa rítmica afro, com atabaques e tal. No Samba de

Roda também você pode ver algumas maneiras diferentes de tocar o pandeiro.

Tem o pandeirão do Maranhão...

É! Aí o pandeirão no Maranhão já outra estória! Pra mim ele está em outra família.

Você não o chama de pandeiro?

Eu chamo de pandeirão, mas quando eu falo de pandeiro eu estou pensando no pandeiro com

platinela. Aquele lá acaba sendo um pandeirão, mas tem outro nome que pouca gente usa que

é Tinideira para este pandeirão do Maranhão. Lá no Maranhão tem gente que fala Tinideira.

Mas pandeirão é o que ficou porque parece um pandeiro só que grande. E ele não parece

aqueles pandeiros de Napoli com um platinelão, ele é sem platinela mesmo, parece mais um

Bendir marroquino, que geralmente tem uma esteirinha dentro, parece aqueles frame drums

do Oriente Médio. E deve realmente ter influência, agora eu não sei... Será que é uma

influência direta? Só isso já dá uma tese! De onde vem este pandeirão?! E aí quando você

pega a palavra Matraca, não tem uma origem árabe? Eu tenho a impressão de que tem no

Marrocos, Matraque.

Você está falando isso por causa do par de Matracas que se usa no Boi do Maranhão.

E você vê que a música dos Gnawa tem isso aqui, o três contra dois. E eles usam aquele

Karcabaq.

Sei, é conhecido como castanhola marroquina.

Então, o cara que tocou com a gente naquele projeto com o Benjamin (Taubkin), o Karkabul

dele é de madeira, e eu comprei um lá de madeira! E soa bem boi! E você vê pandeirão

naquela cultura também, né! Aí você fala “Hum... curioso...”.

Em que época e em que lugar você acha que pode ter surgido o pandeiro?

Putz, eu vou chutar, mas a impressão que dá é que com o descobrimento do Brasil os

primeiros portugueses já estavam com o pandeiro, porque você os vê nos lugares de

colonização mais antiga do Brasil. A primeira capital foi Salvador, então certamente o

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Recôncavo, Salvador e o Recôncavo já tinham ali sua viola e seu pandeiro. Aqui no Sudeste,

você pega no litoral de São Paulo, a primeira vila foi São Vicente. É que aí, hoje em dia você

não vê mais traços porque já urbanizou demais, mas quando você pega aí as vilas de

pescadores mais, sei lá, como Iguape que é de mil quinhentos e tanto, também. Naquela

região de Iguape, Cananeia, Baraqueçaba ali já no Paraná, ali tem aqueles pandeiros, às vezes

com o nome de adufe, a rabeca e as violas. No Fandango, aquilo ali é muito antigo aqui!

Você vê, na Bahia e em São Paulo, tem uma presença forte de pandeiro.

Você já parou pra pensar onde pode ter surgido o pandeiro antes de ele chegar aqui no

Brasil?

Tem uma coisa que pra mim é muito clara: a presença do mouro na Península Ibérica deixou

traços que vieram com os portugueses. Eu acho que aqui, inclusive, pode ter havido também,

como houve a presença de negros escravos islamizados, pode ter havido sim também, na mão

desses escravos o pandeiro! Pode bem ter havido! Porque tivemos os Malés em Salvador, né?!

Não teve a revolta dos Malés em Salvador? Então, pode ter havido uma coisa pequena, eu

acredito que o predomínio foi com os portugueses mesmo, como tem pandeiro hoje pra lá!

Você acha que o pandeiro brasileiro é tocado fora do Brasil?

O nosso? Cada vez mais! E assim, aquele que é mais famoso vira o pandeiro. Então, o

pandeiro brasileiro tocado fora, hoje é o pandeiro de choro ou o pandeiro de samba. A gente

aqui divide em dois, mas tudo bem, acaba virando um só.

Você tem algum pandeiro destas outras culturas de outros países, você os toca?

Eu tenho um pandeiro Galego que eu ganhei de uma galega do grupo Leilia, que aliás troquei

por um pandeiro de choro, tenho uma Kanjira que toco bem pouquinho, falando destes

pandeiros de platinela, tenho um pandeiro sinfônico que toco muito menos, inclusive, e que

eu vejo relações do jeito de se tocar pandeiro sinfônico com o jeito de tocar pandeiro nos

interiores, essa coisa de fazer o rulo com o polegar, um jeito de fazer este shake com a mão

esquerda que está presente em Folia de Reis, tem umas coisinhas assim. Eu estudei bem

pouco pandeiro sinfônico, mas quando eu vejo ou converso com colegas que tocam mais

pandeiro sinfônico eu vejo que tem ali uma relação. Num tempo desses eu vi um baterista de

Nova Orleans, que toca com o Winton Marsallis, fazendo um solo de pandeiro e parecia que

ele estava tocando um pandeiro de samba de roda. Ele tava tocando num pandeiro dele lá, um

tambourine. Assim como eu já vi, tocando com o Phill Collins, um cara com um tipo de

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pandeiro sinfônico, mas fazendo... você vê alguma coisa que sobreviveu na música pop é esse

meia lua, né? Mas você pega uns pops mais antigos o cara tocando pandeiro com platinela e

com pele, batendo na pele. E aí, esse percussionista, tocava o pandeiro com a mão esquerda

trabalhando contra a mão direita, em direção à mão direita, fazendo o Tu com o polegar e o

Ta contra, assim, o pandeiro descendo e a mão subindo, e ele tem o pandeiro no set dele, tem

hora em que ele ’tá fazendo bumbo, chimbau e pandeiro. E esse pandeiro de New Orleans,

aquilo será que é um pandeiro de New Orleans, será um pandeiro de raiz africana ou é de raiz

inglesa, já europeia? Não sei, mas será?

Normalmente você usa pandeiro no seu set instrumental?

Uso! Sempre!

E você usa sempre o mesmo tipo de pandeiro brasileiro ou você procura misturar com

outros?

Na verdade sempre pandeiro brasileiro, mas às vezes eu tenho três pandeiros diferentes no set.

Um de samba, um de choro e outro mais rústico que pode ser um desses de coco de embolada

ou pode ser um desses artesanais, desses de platinela de tampinha de garrafa, pra ter um outro

timbre. E tem o pandeirão do Maranhão também, que às vezes eu toco do jeito maranhense e

às vezes eu arrisco tocar como esses pandeiros do Oriente Médio.

Como você vê o pandeiro brasileiro no cenário atual tanto dentro do Brasil quanto fora?

Não tem o Scott Feiner que fez aquele pandeiro jazz, você viu? Aí tem um jeito meio Marcos

Suzano de tocar e ali ele está difundindo um pandeiro que ele está chamando de pandeiro jazz.

Agora, um cara que deu um salto nisso e que tem sido uma referência importante é o Sergio

Krakowski. E aqui em São Paulo já tem um seguidor dele que está dando uns passos próprios

que é o Gustavo Bali, ele está dando aula lá no meu espaço às terças à noite. Ele vem tirando

diferentes sons das platinelas, faz o tapa com a ponta dos dedos bem no centro como o

Krakowski faz, usa o polegar também no centro pra fazer uma espécie de tapa, alternando o

polegar e ponta de dedo pra fazer um efeito de TakaTaka Taka Taka, tira também os graves,

fica tentando modular, ele escorrega o dedo esquerdo pra fazer um efeito glissando no grave,

buscando emitir notas dali, ouvindo a harmonia fica tentando fazer ali diferentes funções

harmônicas com a tônica do pandeiro. Ele é um cara que toca bastante e se dedica muito a

tocar pandeiro. Eu acabei não falando do pandeiro italiano, não sei se você já viu o Carlo

Rizzo, esse cara é fogo! Ele também mexeu com o pandeiro italiano e deu um salto com ele,

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ficou mudando o jeito ou acrescentando formas de tirar som! Hoje eu estava mostrando pra

um aluno o Itamar Duari, o israelense, fazendo aquela técnica de estalo com todos os dedos,

do mínimo até o indicador, como se fosse um rulo! Espetacular! Eu ainda hei de me de

dedicar e estudar um pouquinho desta técnica, porque eu gosto muito! Se eu vou tocar Boi, o

Boi tem vários pandeirões, se você está numa roda cada um toca uma coisa na rua, agora se eu

vou tocar com o Chico Saraiva, violão, voz e pandeirão, aí dá vontade de fazer vários

pandeirões, aí você bota ele no colo e toca ele pianinho com um microfone, a aí você tem o

timbre do pandeirão multiplicado pelos dedos, né! Aí tem que ter técnica de dedo!

Você tem mais alguma consideração que queira fazer com relação ao nosso tema

pandeiro?

Eu acho que tem uma coisa que é, quanto mais diferentes técnicas você conseguir assimilar,

observar, ir atrás e tentar entender a lógica, mas você pode mesclar na hora de tocar, porque

essas técnicas resultam em sonoridades diferentes. Então, você não precisa optar por uma

necessariamente, às vezes você pode misturar todas, como o próprio Glen Velez faz, ele pega

um pandeiro, coloca em pé e toca um pouco com influência de Riq, um pouco com influência

de Kanjira, um pouco com influência de pandeiro italiano. Só ali já dá um colorido em que a

mistura acaba enriquecendo, como na cultura da gente. Os lugares que são mais mesclados de

cultura aqui no Brasil, têm a musicalidade mais legal! Então, quanto mais o mundo se

misturar neste sentido, um contribui para o outro e vai potencializando, isso em muitos

aspectos da cultura, em geral, musical, de um instrumento.

ENTREVISTA 5

realização: jun. 2013

nome artístico: Barão do Pandeiro

nome: Ricardo Martins

data de nascimento: [não declarada]

tempo de profissão: 40 anos

Natural do Rio de Janeiro, cantor, ritmista e reconhecido pesquisador de música

brasileira, Barão do Pandeiro nasceu e foi criado no meio do choro e do samba. Conviveu e

acompanhou importantes nomes da música popular brasileira, com destaque para Nelson

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Cavaquinho, Cartola, Clementina de Jesus, Zé Kéti, Paulo Vanzolini e Cristina Buarque de

Holanda – sua atual parceira de musicais.

Entre seus trabalhos, destaca-se a roda de samba que ele comanda às quintas-feiras no

Bar do Alemão, tradicional ponto de encontro de apreciadores da boa música, de que já

participaram como convidados artistas do porte de Miltinho, Germano Mathias, Délcio

Carvalho e Paulo César Pinheiro, entre outros.

É importante mencionar também sua participação em peças e espetáculos cênico-

-musicais como A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, na qual interpretava João Alegre, o

espetáculo Rapsódia em Samba, com Ilana Volcov, e o musical São Ismael do Samba,

apresentado no SESC Pinheiros), que dividiu com Cristina Buarque, Jards Macalé e Ná

Ozzetti.

Atualmente, dedica-se à gravação de seu primeiro CD.

Como foi seu primeiro contato com o pandeiro?

A minha formação é o choro. Componho samba, canto samba, mas a minha base, a minha

formação é o choro. Os músicos de choro, se você for ver, os que têm acima de cinqüenta

anos, eles pertenciam a clãs de músicos, ou eram pessoas em cujas casas os músicos se

reuniam. E na minha casa tinha muita reunião de música. Mas o começo com o pandeiro foi

aos cinco anos de idade, e foi o seguinte: tinha uma vitrola na minha casa e, numa tarde em

que estávamos eu e minha bisavó em casa, eu fui lá mexer na vitrola, todo mundo falava pra

não mexer, na primeira chance que eu tive fui lá e mexi! Caiu um disco que era do Francisco

Alves cantando o samba do Ari Barroso e Lamartine Babo, “Na virada da montanha”. Que é

um arranjo fantástico do Pixinguinha que começa com uma entrada de um trompete meio

como uma clarinada, e o pandeiro do João da Baiana ao fundo. Meu ouvido foi no pandeiro.

Essa é uma das lembranças mais remotas que eu tenho da minha vida e eu consigo até hoje,

quando escuto esta música, sentir a mesma sensação. Meu ouvido foi no pandeiro e eu fiquei

a tarde inteira fazendo aquele disco voltar! Quando meu pai chegou à noite minha bisavó

falou: “ele ficou a tarde inteira aí feito um alucinado”. No dia seguinte meu pai me trouxe um

pandeiro, daqueles pra que uma criança de cinco anos conseguisse tocar. Eu nunca mais vi,

era uns pandeirinhos pequenos que o couro era tacheado e coberto com um friso de madeira.

E aquilo foi o meu brinquedo! Eu costumo dizer que meu pai resolveu minha vida quando eu

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tinha cinco anos de idade. Aí já com treze eu já tava tocando na noite. Eu dei muita sorte

porque o que tinha pra ver de tocar, desse pessoal, eu vi.

E como foi o seu aprendizado?

Cê ta brincando! Querida, eu sou do tempo em que todas as geladeiras eram brancas, todos os

telefones eram pretos e botão só ligava e desligava. Não tinha esta conversa, não tinha escola

portátil de música. Hoje você tem aí Jorginho do Pandeiro, Celcinho, dando aula, mas no meu

tempo não tinha esse negócio não!

Como se aprendia?

Tocando! Você reinventava a roda! Porque era o seguinte: primeiro, não tinha didática de

música popular, certo?! Eu vinha de uma classe social onde minha mãe era pianista, se eu

quisesse aprender percussão eu ia ter que aprender o erudito! Então, era o seguinte: tu pegava

o instrumento e disco, e ia e voltava tocando junto. Porque, por exemplo, se você toca

instrumento de harmonia, você desenvolve percepção. E pandeiro? Como é que o cara fez

essa virada? Aí tu ia fazendo até que uma hora tu mais ou menos se aproximava! E outra, e

você ia pras rodas, onde a coisa também era complicada, porque é como eu digo, hoje em dia

nego ta pegando tudo meio mamão com açúcar”, na roda de choro era fogo, neguinha. Você

tava aprendendo a tocar violão, cavaquinho, o diabo do instrumento que fosse, você ficava

olhando muito pro cara que tava tocando, nego começava a tocar de costas, eu vi isso! Eu vi

neguinho tocar trompete na orquestra com a mão direita coberta com um lenço que era pra

nego não ver como era a digitação. Eu até que não sofri muito isso porque eu tinha aquela

coisa, eu tinha verdadeira paixão por isso, até pouco tempo eu dei uma entrevista dizendo que

eu não conseguia me imaginar fazendo outra coisa. Então, o que me encantou foi a batida, foi

a levada que o tio João tinha no pandeiro. Disco não tinha fixa técnica. Fixa técnica é coisa

dos anos, meados da década de setenta! Aí eu corria naqueles discos, nos 78 que tinha em

casa, tentando descobrir aquela batida, disco por disco, tanto que até hoje eu identifico a

batida do tio João em qualquer. E foi ele, ele foi o primeiro. Eu o vi tocar, conheci, eu vi

tocar. Não tanto quanto eu queria, pouco, mas vi, eu vi ele tocar, eu vi o velho tocar. E vi todo

mundo que tinha, por exemplo, o tio João é o pai de todos, Gilson de Freitas, Russo do

Pandeiro, eu falo essas coisas nego acha que eu tenho cinco mil anos, porra, mas o Russo do

Pandeiro morreu na década de oitenta! É que ninguém dava a mínima! E ainda mais pandeiro

que era visto como a “cozinha”, aquela coisa lá no fundo...

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Você ensina a tocar pandeiro?

Eu até hoje, vou ser bastante franco, eu não sei como é que eu vou fazer pra ensinar um

negócio que eu não sei como é que eu aprendi a fazer. Talvez, um dia até vá! O Jorginho não

dava aula, o Jorginho entregava pro Celso. Cê ia falar de aula de pandeiro com o Jorginho ele

falava “fala com o Celso, ele ’tá dando aula lá na ULM”. Mas eu num ... entendeu, pra mim é

tão natural quanto respirar. Eu costumo dizer que a coisa que eu mais gosto de fazer na vida,

vestido, é tocar pandeiro! Não faço nem questão de cantar, sempre falo isso. Mas, eu aprendi

fazendo, então é meio complicado, como é que você vai passar pra alguém um negócio que

CE num sabe nem direito como é que tu aprendeu.

Você falou sobre algumas das suas influências que foram...

Jorginho do Pandeiro. Agora, naturalmente você pega um pouco de cada um, você olha,

porque era assim que você fazia, né. Mas, as minhas bases, do que eu faço, claro, aí já é

aquele negócio... foi o que me encantou, o que eu aprendi a fazer e com o tempo você dá a tua

versão da coisa. Não ’tô me comparando a ninguém, mas são os dois até hoje, o tio João e o

Jorginho. O tio João foi o cara que começou tudo, ele foi o primeiro pandeirista. Ele foi o

primeiro a gravar, o primeiro a ir pra estúdio, e já era um estilista porque ele tinha um toque

de pandeiro que era dele, você escuta até hoje qualquer gravação, você sabe. Como é o caso

do Jorginho também. Se você vai perguntar pro Jorginho, o Jorginho é assim muito, né... eu

sei a resposta que ele dá sempre: “ah não, porque eu ouvi o João da Baiana, eu ouvi o Russo,

eu ouvi o Gilberto, aí eu tentei completar mais a batida...”A coisa é muito maior, o Jorginho

não é só um grande pandeirista, o Jorginho é um criador de linguagem, aliás naquela família

tem dois né, ele e o Dino, eles criaram a linguagem dos respectivos instrumentos. A realidade

é que o Jorginho, a partir da batida do tio João, da levada do tio João, que é, pra qualquer

pessoa que conheça o instrumento, percebe a influência que ele tem, ele criou o moderno

pandeiro brasileiro. A história do pandeiro no Brasil é antes e depois do Sr. Jorge José da

Silva. E foram esses dois. Agora eu vi, outro também que era uma fera, as pessoas pensam

mais no cantor, mas era o Jakson, ali era uma encrenca... Em diferentes escolas, em diferentes

estilos, então, por exemplo, você tem, dentro desta escola que vem do João da Baiana: o

Jorginho. Dentro de uma escola de pandeiro mais discreta, mas também com grande perícia,

era o Gilson de Freitas e o Gilberto Dávila, que é essa escola mais discreta, mais lá no fundo.

O Russo do Pandeiro era um estilo de pandeiro que simplesmente hoje desapareceu. Hoje,

quando você usa o termo malabarista pra se referir a um pandeirista, ele soa pejorativo. O

Russo, cê não vai ser pandeirista do Regional do Benedito Lacerda porque você era

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simpático... O Russo fazia o diabo! Ele foi pandeirista de orquestra, então, era uma época em

que os músicos iam pra cena, eles iam pra dar um show! O Russo, você tem raras imagens,

depois eu te mando algumas, ele fazia o diabo, só que ele não perdia um compasso. Porque

uma coisa é você fazer na escola de samba, é elemento coreográfico, não tem a obrigação de

marcar. Ele não, ele fazia o diabo e não perdia um toque, com malabarismos, ele fazia o diabo

tocando pandeiro e tava sempre no tempo, ele não perdia um compasso. E quem começou

com isso, o primeiro pandeirista a fazer isso, aliás é um cara do qual, que eu saiba não se tem

registro, assim, filmado, nada, era um pernambucano que fez parte de uma das cinco mil

oitocentas e quarenta e oito formações dos Oito Batutas, se chamava Alfredo de Alcantara,

conhecido como Fê do Pandeiro do Diabo, ou Pandeirista Infernal. Esse cara morreu em São

Paulo, eu acho que no final dos anos setenta, por aí, num asilo. Então, era essa escola só que

acabou indo pras escolas de samba, mas como elemento coreográfico. Então você vai ter

vários estilos. Um outro grande pandeirista do qual se fala pouco chamava-se Moacir

Machado Gomes, o Risadinha do Pandeiro. Ele foi pandeirista, uma época, do Benedito

Lacerda, tocou com Benedito Lacerda, o que já por si dá o nível de excelência do cara. E ele

foi um cara que, no pandeiro, ele criou uma série de coisas, por exemplo, essa marcação

embaixo de marcar o surdo foi ele quem criou. Batida dobrada, dobrar a batida, nos breques,

nas coisas, foi ele quem criou, no Rio de Janeiro. E é um grande pandeirista que é pouco

falado, porque na realidade, se você for ver, esse destaque do pandeiro é uma coisa recente, é

muito recente, certo?! Mesmo o Jorginho, tal, ele começa a tocar com mais liberdade, com

mais destaque por agora, porque antes era aquele negócio, cê tem que ficar ali na cozinha...

Você vê depois, o que você precisar de Jorginho e João da Baiana, isso eu tenho tudo! Sem

modéstia nenhuma, eu junto tudo, tudo!

Barão, pandeiro, o que é pandeiro pra você? Como é que você define isso?

É a continuação da minha alma. Eu, graças a Deus, consigo morar numa casa, sozinho.

Acordo cedo pra dedéu, eu tenho horário de sambista velho, né... cinco e meia, seis da manhã

já ’tô no ar. Acordar, tomar banho, não sei o que, aí não tenha dúvida, eu monto os CDs,

porque eu tenho muita coisa, discografia completa do Jacó, as coisas que eu gosto. Boto pra

tocar, o pandeiro ta sempre ali do lado, pego o pandeiro, às vezes eu fico duas, três horas

direto, uma música, outra. Às vezes não é assim, mas eu vou e faço um negócio, a música ’tá

tocando, daqui a há pouco eu levanto, pego o pandeiro e nem que seja quatro compassos, faço

pouco, certo. É a continuação da minha alma.

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Como você escolhe o seu instrumento, como é o pandeiro que você toca, quais são as

qualidades sonoras do instrumento da sua preferência?

Antigamente era um inferno... você tinha pandeiro de loja, aí você tinha uma amigo seu que

fazia violão e resolvia fazer pandeiro... e ’tá. E aí, até hoje tem umas coisas que são:

pandeirista se encontra é a famosa troca de figurinha a respeito de platinela... e aí, “ah tem um

cara que bate platinela em Maria da Graça”, e tu vai, “não, conheço um cara em Del

Castilho”, que não sei o que, até hoje! O meu instrumento, eu uso há muitos anos, o meu

luthier é o Fabiano Raposo de Florianópolis. Eu uso o pandeiro dele, o top de linha. Eu uso

uma medida de pandeiro que talvez não seja a mais comum que você vai ver em choro,

porque normalmente o pessoal usa dez, dez e meio. Num pandeiro de dez polegadas eu me

sinto tocando um tamburim com platinela, porque num... minha mão é.... Eu uso um pandeiro

onze polegadas, seis platinelas, seis jogos de platinelas. Aí entra os negócios: A minha escola,

que é essa escola carioca de pandeiro, que é um pandeiro muito jogado, batucado, muito

jogado com a mão esquerda, e com platinela solta. Eu uso o couro, não cento a chave,

mantenho ele mais pro grave, do médio pro grave, e uso muito o som do couro, muito a

marcação do couro. Eu prefiro a pele animal, a outra eu não sei nem como é que funciona

aquilo. E tenho essa batida que... eu me lembro dos Cardeais do Choro, aqui em São Paulo,

que diziam que o que eu fazia em pandeiro não era samba e nem choro, era ponto de

macumba... por causa do tipo da batida! E que, embora eu falasse com uma certa ironia, tem

tudo a ver, porque eu venho dessa linhagem do samba que obviamente vem desse tipo de

batida. É que, principalmente no choro, ela foi se tornando menos comum. Hoje, com o

Jorginho dando aula, e tal, e tocando com mais liberdade, a molecada se encantou. O choro é

um gênero carioca, mas que foi se desenvolvendo e, pra onde ele foi, ele vai ter características

totalmente diferentes. Então, pandeiro no Rio é uma coisa, pandeiro em Pernambuco é outra,

pandeiro em São Paulo é completamente diferente. Hoje, com a troca de informação, porra,

meu irmão, queria eu, com 14 anos de idade, com um puta computador, no meu tempo, era

coisa de filme do Flasch Gordon! Tu entra no youtube, ’tá tudo lá! É por isso que eu ponho

muita coisa, preciso ’tá na mão! A grande realidade é o seguinte: hoje você ’tá tendo pessoas

com a preocupação dessa documentação, antes era coisa de meia dúzia de maluco! Eu cansei

de escutar “porra, cê fica dando atenção pra esses veio, você fica indo atrás desses caras que

ninguém sabe quem é, você devia ter sido dono de agência funerária, só lida com difunto...”

Cansei de ouvir isso, hoje você tem as pessoas, como você mesma, às vezes meio

desorientada as pessoas porque é aquela coisa, é a formação na prática, é a formação na

prática. Quer dizer, eu, nesse ponto, tive um mestre que, melhor que mais ou menos, eu

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costumo dizer que sou cria de José Ramos Tinhorão, de quem eu sou amigo pessoal, uma

figura muito querida há muitos anos, conheço aquele acervo dele que nem o fundo do meu

bolso, e foi uma pessoa com quem eu tive um curso intensivo e prático, de freqüentar a casa, a

gente se via todo o dia, principalmente aqui em São Paulo, ele morando na Maria Antonia. Eu

costumo dizer uma coisa, eu vi ele escrever a história da música popular no romance

brasileiro, na mão! Dentro de um kit net, às vezes eu subia pra pegar um livro, cansei de ver.

Então hoje você tem esse interesse e às vezes você tem que ter muito cuidado porque, como

as pessoas não tiveram a vivência, às vezes compram as coisas pelo valor de face, historinhas

folclóricas.... Mas meu pandeiro é este aqui (mostrando o pandeiro), na questão das platinelas,

eu uso as de cima latão batido e as de baixo folha de flandre.

A maioria dos pandeiristas, percussionistas e músicos reconhecem o pandeiro como um

instrumento de identidade nacional. Você concorda?

Ele é um instrumento de origem árabe, obviamente vem pro Brasil com os portugueses,

Portugal é o único lugar do mundo onde ele é quadrado, e aqui ele vai pra praticamente todas

as manifestações de cultura popular do Brasil, você vai encontrar o pandeiro nelas, nas suas

diferenças, desde este pandeiro com platinela até, se você vai no Maranhão que tem aqueles

pandeirões imensos, você chega no Egito, no mundo árabe, você vai ter o bendir. Este

pandeiro com platinela, ele é muito do Egito, eles chamam de riq. E daí você vê, o

instrumento que você identifica, o Brasil pandeiro. Você não consegue imaginar o samba e o

choro sem um pandeiro. Embora, no samba antigo, aquele samba ainda preso a uma origem

baiana rural no Rio de Janeiro, o que eles usavam era o adufe sextavado. O pandeiro com

platinela era muito usado na música erudita, em óperas, e, no popular, o Rio de Janeiro tem

uma coisa que é pouco falada, você tinha o povo romani, ciganos, eles têm uma tradição

muito grande no Rio de Janeiro, principalmente naquela área do Catumbi, até hoje você tem

uma comunidade romani muito forte. Tanto é que, conta-se que o Sinhô frequentava as festas

deles pra roubar as melodias e transformar em maxixe, em samba e tal... e eles usavam o

pandeiro com platinela, então... isso é uma ilação minha, mas muito provavelmente tinha esta

troca de figurinhas porque socialmente estavam todos na mesma escala.

Fora do Brasil costuma-se segurar o pandeiro na forma vertical...

O único lugar do mundo onde você toca o pandeiro deitado é aqui no Brasil. É sempre

segurado em pé e, ou você vai tocar ele com os dedos ou vai tocar rufado.

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E porque será que só aqui ficou assim?

Como eu não sei. Aí já vai pro chutômetro e, como eu tenho horror disso em pesquisa,

historinhas folclóricas que acabam se... pela repetição, eu não sei. Mas é interessante isso, é o

único lugar do mundo onde o pandeiro é tocado nesta posição, deitado.

Você falou desses pandeiros pelo mundo. Você já teve contato com esses instrumentos?

Você tem esses instrumentos?

Eu cheguei num ponto em que os livros e os discos estavam quase me expulsando de casa,

então não dá pra se ficar fazendo coleção... tenho os pandeiros que eu toco, dois ou três. Mas

eu conheço, muito dentro da colônia árabe que eu tenho no sangue, este lance do pandeiro

árabe. Eu sou muito focado na música brasileira porque é realmente o que eu faço, então,

sinceramente eu não fico correndo muita gira porque se não você acaba se dispersando. Mas

você tem, não precisa ir muito longe, vai pra Paraty e vê como é que eles tocam naquele

negócio de Ciranda, é de enlouquecer! Uma das batidas mais alopradas que eu conheço em

pandeiro é Cavalo Marinho! Pô, acompanhar frevo em pandeiro é... Então é um instrumento

que se presta, tanto que hoje, esta geração mais nova, principalmente a partir do Marcos

Suzano, começaram a encarar o pandeiro como uma bateria de mão, mas aí já uma outra

parada, é outro negócio. Hoje você tem uma geração de pandeiristas, eu falo da minha praia

que é choro e samba, você tem o Magno Julio do Rio de Janeiro, do pessoal do grupo Os

Matutos, o Bidu que ’tá lá tocando com Deus e o mundo, em Florianópolis você tem o

Fabrício, aqui em São Paulo você tem um fenômeno que é o Rafael Toledo, o Pedrinho Pita

aqui de São Paulo, a Roberta Valente. Mais da antiga, nesta escola bem tradicional do

pandeiro paulista, que é bem diferente do Rio, você tem o Tigrão, você tinha o Zequinha do

pandeiro que faleceu há pouco tempo, pandeirista do Regional do Evandro, são estilos

diferentes. Tem o Roberto Amaral que mora no interior onde você percebe a influência do

Jorginho, todos eles tiveram aula com o Jorginho, e que é muito bonito de se ver porque é

tudo neto, tudo tem idade pra ser meus filhos. Você vê cada um criando a sua marca, eu acho

isso muito legal!

Por tudo o que você já falou sobre os diferentes formatos do pandeiro, as diferentes

formas de se tocar e em diferentes gêneros, a gente chega a pensar que o pandeiro não é

um instrumento, é uma qualidade de vários instrumentos.

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É, você pode dizer que tem uma família, tem o pandeiro do choro, o pandeiro do samba, aí

você vai ter as diferenças. Hoje você tem uma coisa que, por exemplo, dentro do samba

padronizou muito, até o começo da década de oitenta você via as escolas desfilando com os

tamborins livres, sem convenção. Dentro de uma roda de samba, se você pegar os vídeos mais

antigos da velha guarda, Argemiro e Alberto nonato, é uma loucura, era uma dupla de

pandeiros em que cada um tinha uma levada, e essa levada se completava. Se criou um certo

culto exacerbado à precisão, e a ginga, justamente o balanço, ’tá numa certa imprecisão, não é

atravessar, atravessar é outra coisa! Mas ’tá numa imprecisão, porque se não você programava

um sintetizador com ritmo de samba e acabou! Tem uma respiração! Na minha forma de tocar

pandeiro, que é com platinela muito solta e com o couro cantando, o que dá a minha marca é

justamente esta respiração. Lógico, cada um tem um estilo, cada um tem uma maneira. Você

pegava as rodas de samba ou mesmo as baterias das escolas de samba, aliás esse negócio de

chamar o pessoal do Rio de escolas de samba de bateria, isso é relativamente recente, sabe

como é que o pessoal chamava antigamente? Era a turma da pancadaria. Então, você tinha

esse balanço, que vinha justamente dessa imprecisão. As escolas de samba, se você pegasse

uns quatro componentes de qualquer bateria de escola de samba do Rio de janeiro, pelo

menos as principais, Portela, Império, Salgueiro e Mangueira, se botasse eles tocando na

esquina e eu tava de costas e te dizia de escola eles eram. Hoje em dia isso já não acontece, ’tá

mais padronizado, cada bateria tinha uma característica Ainda se mantém algumas coisas,

principalmente por exemplo nas caixas, porque cada bateria bate pra um santo, e isso é

aquelas coisas que as pessoas não sabe, nego acha que é tudo igual mas não é. Então, as

caixas das escolas de samba, umas batem pra Xangô, outra bate pra Ogum, cada bateria tem

um orixá.

Já percebi que você canta enquanto toca o pandeiro com muita desenvoltura, e isso não

é muito comum e nem muito simples de se fazer.

Normalmente quando você canta e toca um instrumento de percussão a sua tendência é a de

manter um ritmo básico e uma pulsação. Como, eu primeiro na vida sempre fui pandeirista, é

como se eu cantasse e tivesse um outro pandeirista me acompanhando! Então, eu vario sem

que isso me interfira. Você tem uma tradição de cantores pandeiristas, por exemplo, Miltinho,

que era pandeirista de grupo vocal. O Dilermando Pinheiro foi pandeirista de banda de

música, de sopros. Onde desse, ele tocava pandeiro, e ele se encantou com o estiolo de um

outro cantor, hoje esquecido, que era o Luís Barbosa, que foi o primeiro a levar pro disco a

palheta, aquele chapéu de palha como instrumento de percussão. E ele aprendeu com o Luís

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Barbosa e superou o mestre. Ele conseguia fazer isso (cantar e tocar). Normalmente o cara

que primeiro tocou pandeiro e depois passou a cantar, ele consegue fazer isso, não sei como é

que funciona, mas tem uma certa independência, não fica aquele troço amarradinho. Mas você

tem esta tradição de cantores ritmistas, o próprio Luís Barbosa tocava pandeiro, só que

pandeiro antigamente era um instrumento muito pesado e o Luís Barbosa era muito fraco de

corpo, tinha tuberculose, então, como ele se cansava muito com o pandeiro, ele partiu pra esse

negócio do chapéu de palha, que ele não inventou nada, isso era uma coisa normal no meio do

samba na malandragem, você começa, numa roda de samba se você não tem um instrumento,

você parte pra o que dá, então o prato e faca, tamanco, o que vier e assim começaram a

batucar no chapéu. Então você tem o Luís Barbosa, e o mais carioca de todos os cantores

paulistas, ninguém foi tão carioca quanto ele, infelizmente, tudo o que ele gravou daria um

LP, doze músicas, Mario Ramos de Oliveira, o vassourinha, que também tocava pandeiro e

batia chapéu de palha. O Jackson do pandeiro! Ele cantava e tocava aquele absurdo todo! Eu

ficava impressionado com o Jackson é que ele conseguia tocar nuns pandeiros que eu pensava

“se eu pegar isso aí não vai sair nada! Como é que esse homem consegue tirar som disso?!”

era uns pandeiros vagabundos, e ele fazia o diabo!

Hoje você é um cantor que toca pandeiro ou um pandeirista que canta?

Eu vou ser bastante franco pra você, eu com treze anos já estava correndo gira. Eu sempre

cantei. Agora, inclusive, acredito que em setembro ou outubro, sai o meu primeiro CD, um

CD lindo que eu fiz junto com o Regional Imperial, que é o João Camareiro, Juninho Pita,

Rafael Toledo e Lucas Naum de cavaco. A questão do cantar, é o que eu escutava nas rodas,

na vitrola da minha casa, no quintal da minha casa, nas rodas pras quais meu pai me levava.

Afigura determinante pra mim na música foi meu pai. Embora meu pai não cantasse e nem

tocasse nenhum instrumento, ele era fascinado por música, tinha um bom gosto absurdo e

dançava como ninguém. Então, eu sempre cantei, e cantei muitos anos na noite, eu comecei

muito cedo e vivi uma noite que não existe mais. Então, nos últimos tempos o pessoal

começou a me cutucar pra voltar a cantar, porque, principalmente dos anos, meados da década

de noventa, cantar foi mais fruto de aborrecimento do que de alegria, pelo menos na noite.

Porque, eu não tenho alma de cruner , eu sou um cantor de regional, então, aquele negócio da

música que está fazendo sucesso... No Brasil, samba é receita de cozido, o que tu jogar na

panela, ’tá valendo. Então, de repente você ’tá numa roda, você ’tá num bar cantando Cartola,

Nelson Cavaquinho, a minha linha de repertório, Noel, Lupicínio, Geraldo Pereira, e o cara

vira do nada e te pede um troço completamente, desses mela cueca... e aí, né... Em São Paulo

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eu estou fixo em dois lugares, o Bar do Alemão que é o bar do Eduardo Gudim, e em outro

bar chamado Olaria onde eu acompanho uma cantora que também gosta deste tipo de

repertório e eventualmente eu canto ali alguma coisa.

Você já falou muita coisa sobre a trajetória do pandeiro, desde o pandeiro sextavado no

Rio de Janeiro...

Adufe! Era um pandeiro sextavado, sem tarraxa e sem platinela!

E todo este caminho que o pandeiro está percorrendo, hoje está até na música pop!

É, a partir do Marcos Suzano. O Marcos Suzano faz esta virada. O Suzano começou a partir

do Jorginho, ele vem do Jorginho, aí ele criou uma linguagem que pra este esquema pop

funciona. Não que eu faça o estilo guardião da chama sagrada, mas eu acho que você tem que

ter algum parâmetro. Às vezes tem algumas coisas, sinceramente, que me cansam um pouco.

Infindáveis solos de pandeiro, tem hora que... me cansa um pouco. Eu acho que, é aquela

história, é o tempero e não é o prato principal. A função, dentro deste esquema mais

tradicional, que é a minha praia, sei que faço bem. A linguagem que eu domino, que eu faço e

que eu procuro, o que eu me interesso eu vou atrás.

ENTREVISTA 6

realização: 20 jul. 2013

nome artístico: Eder Rocha dos Santos

nome: Eder “O” Rocha

data de nascimento: 19 ago. 1966

tempo de profissão: 30 anos

Natural de Recife, em Pernambuco, formou-se em percussão erudita em 1992, no

Centro Profissionalizante de Criatividade Musical de Recife (CCMPR), com o professor

Antônio Barreto. Fez parte do naipe de percussão da Orquestra Sinfônica Jovem de Olinda

(1984-1987), da Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte (1987-1990), da Banda

Sinfônica do Recife (1991-1994) e da Orquestra Sinfônica de Recife (1994-2001). Na mesma

época, também tocou música popular com vários grupos, destacando-se Mestre Ambrósio,

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com quem gravou três CDs entre 1992 e 2003 (Mestre Ambrósio, Fuá na casa de Cabral e

Terceiro Samba).

Em 2003, lançou seu primeiro disco solo, O circo dO Rocha, e, no ano seguinte,

inaugurou a escola de percussão brasileira Prego Batido, no bairro de Perdizes, além de

escrever seu método para zabumba, o Zabumba moderno.

Vem ministrando oficinas de percussão brasileira e maracatu, especialmente maracatu

de baque virado, em todo o Brasil e em países como Bélgica, França, Alemanha e Canadá.

Compôs trilhas sonoras de espetáculos teatrais e de dança como Artéria, da

Companhia Nova Dança 2, e Animaação, da Cia. Nau de Ícaros.

Tocou com músicos e grupos como DJ Dolores, Estuário, Maquinado, Di Freitas e

Eduardo Big (Bambas Dois), entre outros, firmou sua metodologia em oficinas de percussão –

mais especificamente, de zabumba e baque virado – ministradas no Brasil e no exterior. Como

produtor, trabalhou com Renata Rosa (SP), Elefante Groove (MG) e Estuário (PE).

Atualmente, toca bateria com os grupos Ponto BR e Velho Maza, ou Mazinho Lima;

davul com o Mutrib; e tarol e voz com o grupo Terno Quente. Além disso, toca nos grupos

Sebastião Baiano e seu terno Esquenta Muié e trabalha em seus projetos particulares:

EderBaque, “O” Rocha trio, DJ live P.A, Eder “O” Rocha e Zabumba Moderno.

Pandeiro é um dos instrumentos que você toca?

É, foi um dos primeiros instrumentos que eu comecei a estudar, mas nunca toquei muito bem,

mas toco.

Como foi este seu processo de estudo com o pandeiro inicialmente?

Eu entrei na escola pra estudar bateria, mas só tinha uma bateria e muitos bateristas, então não

tinha muito tempo pra estar estudando porque estava sempre ocupada a bateria, e tinha vários

pandeiros, pandeiro era um instrumento mais fácil de ter então tinha vários na escola, e eu

pegava estes pandeiros pra ficar tocando, pra ficar estudando ritmos, divisão, sei lá. Mas não

eram pandeiros bons não, eram bem ruinzinhos, não dava muito prazer em tocar, não... Eu

comecei tocando bateria em 1983 e no segundo ano eu comecei a estudar percussão erudita.

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Como você vê o pandeiro na cena musical de Pernambuco?

Em Recife, tem uma tradição muito forte de choro e frevo. Então o pandeiro na cidade do

Recife está sendo muito utilizado nestes dois gêneros musicais. No choro é o pandeiro de

couro, tradicional com platinela mais fechadinha, e o frevo já o pandeiro de náilon com as

platinelas soltas que é pra tocar em rua, frevo geralmente é frevo de rua. E aí, já nos

interiores, que também tem no Recife mas com tradição maior nos interiores, que são os

forrós, os pandeiros usados nos forrós e os pandeiros de manifestações mais específicas como

Coco, Cavalo Marinho, esses pandeiros são de náilon, que são os pandeiros populares, mas

tocado com técnica um pouco diferente do que esse pandeiro do choro e do frevo.

Como você identifica essa diferença?

A primeira diferença é o movimento das mãos, que no pandeiro mais comum se usa, no caso

de quem é destro, usa muito a mão direita que é a mão que faz os golpes dos timbres, e a mão

esquerda fica parada, não tem muita participação. No Recife, tem uma coisa diferente, nessas

outras manifestações, por exemplo, o coco, o frevo, a mão esquerda, que segura o pandeiro,

na verdade ela movimenta muito pra ajudar a outra mão, porque se usa muito o som das

platinelas. E tem uma peculiaridade no Cavalo Marinho que não se usa muito a mão que

segura o pandeiro, mas em compensação o pandeiro fica numa posição diferente, em vez de

ser ele na horizontal, ele fica na vertical, e é tocado não com polegar, dedo e base, é tocado

com dedo dando o que a gente chama de “peteleco”, que é um golpe quase como um estalo do

dedo indicador e médio com o apoio do polegar, quase o rim shot da caixa, por exemplo. Isso

faz um efeito que a platinela fica sempre vibrando também.

Como é a pele desse pandeiro do Cavalo Marinho, couro ou náilon?

É náilon. Geralmente esses pandeiros são náilon porque a afinação é muito alta, aí o couro

tem esses problemas, se você afina muito alto ele força muito o aro, aí acaba estourando. E

geralmente os pandeiros não são de madeira, são pandeiros de plástico, de náilon, o corpo

dele é de acrílico.

Quantas pessoas tocam pandeiro no Cavalo Marinho?

Só uma. A formação é duas bages (reco-reco de taboca, uma espécie de bambu), um mineiro,

que é o ganzá, e o pandeiro, e a rabeca de melodia e voz.

Já o coco, tem vários estilos de coco. Tem o coco de embolada que às vezes usa dois

pandeiros porque são dois emboladores, cada um toca um pandeiro e eles afinam diferente, e

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o toque é um pouco diferente um do outro pra poder um completar o do outro, às vezes eles

tocam a mesma divisão, mas geralmente eles tocam divisões diferentes pra poder um

completar o outro, na melodia que faz o coco, que é o aberto e o fechado da pele.

Você identificou dois jeitos de segurar o pandeiro, um na posição horizontal e outro na

posição vertical , no Cavalo Marinho. Tem alguma outra manifestação que você nota

que o pandeiro seja seguro na posição vertical em Pernambuco?

O Frevo de rua tem uma posição que é intermediária, não é nem na vertical e nem na

horizontal, fica meio diagonal, que é porque se toca em cima, acima da cabeça, na rua pra

poder todo mundo ouvir, então não dá pra tocar ele na horizontal. Já o Cavalo Marinho é

tocado às vezes segurando o pandeiro pra cima da mão, inclinando mai pro lado da mão que

toca, ou às vezes ele pra baixo, não no Cavalo Marinho, pra baixo é no coco de embolada, que

é na vertical também. No Coco, no Cavalo Marinho e no Frevo a posição é um pouco

diferente dessa posição padrão, horizontal.

Quantos pandeiristas tocam no Frevo?

Um pandeirista, e tem que ser bom!

Sobre a origem desses instrumentos, você imagina como esses pandeiros foram parar no

Recife?

Eu não sei muito bem, mas com certeza tem muita influência do povo árabe. No Recife tem

uma influência muito forte do árabe tanto do Islã quanto Judeu. E isso através de Portugal,

eles não vinham direto de lá prá cá pro Brasil, vinha através de Portugal com os tais dos

cristãos novos, que de certa forma foram colocados pra fora de Portugal e mandados pro

Brasil e se instalaram no Recife e nos interiores, tanto que, às vezes você chega no interior e

vê pessoas com pele escura, de olhos claros, cabelo liso, é um povo um pouco diferente do

que seria o povo brasileiro. O pandeiro, falando do instrumento mesmo, é uma influência

direta dos instrumentos árabes.

Normalmente se aprende a tocar pandeiro por tradição oral. Como você acha que as

pessoas estão aprendendo a tocar pandeiro hoje em dia?

Acho que hoje a coisa ’tá mais equilibrada, antigamente a coisa era bem oral, depois, de um

tempo pra cá, com o crescimento das informações pela internet e outras coisas mais, foi

necessário padronizar as coisas, escrever, então, hoje em dia as pessoas procuram métodos e

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aprender o instrumento mais dentro dos padrões. Se bem que, não tem nenhum livro que fale

sobre a escrita de Cavalo Marinho, nem a forma que se toca o pandeiro do Cavalo Marinho,

nem o som do instrumento, que é diferente do Choro. É escrito o eu chamo de padrão, mais

baseado neste pandeiro do Choro, pra mim foi o Choro que oficializou a forma de tocar do

pandeiro, trouxe essa seriedade, vamos dizer assim, do instrumento, respeito às classes

sociais, o Choro ligou tanto as classes baixas quanto as altas. O samba, por exemplo, por ser

muito oral, tem várias pessoas que tocam o samba de uma forma peculiar, específica, o samba

do Rio pra tocar o pandeiro é uma coisa, o samba de Minas é outra, o samba de São Paulo é

outra. Mas o pandeiro que padronizou mais a coisa foi o pandeiro do Choro. Teve uma

pessoa, que foi o Marcos Suzano, que, pelo fato de ele ficar conhecido por tocar o pandeiro de

uma forma mais “baterística”, mais pop, chamou a atenção da mídia e ele acabou

desenvolvendo uma coisa, que não foi ele quem criou, mas ele desenvolveu, a forma de tocar

o pandeiro com certos golpes que definiu a linguagem do pandeiro e que ampliou a linguagem

do pandeiro do Choro. Aí isso acabou virando padrão e então vieram pessoas que são

formados, universitários, que escrevem sobre isso, e escreveram e a literatura do pandeiro, a

escrita musical, que acabou ficando rica, mas em cima deste padrão. Tem várias pessoas que

pesquisam o pandeiro, umas mais no samba outras mais no choro, mas quando vai registrar,

escreve de uma única forma, aí, o que acontece é que as peculiaridades ficam só na parte oral,

não vai pra parte escrita, né. Por exemplo, o pandeiro do Frevo não é escrito como ele é

tocado, o do Cavalo Marinho também. A escrita funciona como uma transcrição, como

quando você pega um linguajar popular e passa pra uma linguagem padrão. Aí, a pessoa vai

tocar Frevo e toca num pandeiro de couro... dá pra tocar, tem a tecnologia dos microfones,

tudo o mais, mas, vá pra rua tocar Frevo num pandeiro de couro, não vai sair nada, ninguém

vai escutar nada. Além da posição! Eu mesmo, vou dar aula de Afoxé, escrevo tudo pros

alunos, quando fui dar aula de Cavalo Marinho, e aí, como é que eu vou escrever?! Aí não

escrevi, porque vou ter que pensar e ver como eu vou escrever pro pandeiro. Como vou

escrever o trinado com o golpe, o “peteleco”, e como vai ser com o som das platinelas,

enfim... É diferente, no pandeiro tradicional defini-se o som agudo das platinelas com você

tocando na borda do instrumento, aí define-se o grave com o polegar ou com o dedo médio,

mas e o Cavalo Marinho, como é? É uma forma diferente de tocar que não dá pra escrever

usando o mesmo padrão de escrita do outro pandeiro. Você pode escrever o ritmo, a

sonoridade, mas pra tocar num outro instrumento, pro pandeiro de Choro, a escrita é pra esse

pandeiro, né. Por exemplo, as Congadas daqui de São Paulo e de Minas, a forma de tocar o

pandeiro ninguém escreve, porque é um pandeiro jogado, a forma de tocar o pandeiro é

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jogando a platinela e fazendo um movimento que é lateral e que não é um movimento de tocar

só com uma mão, é um movimento de tocar com as duas mãos, quando uma desce a outra

sobe, quando uma sobe a outra desce.

A gente acaba chamando tudo de pandeiro, mas talvez eles merecessem nomes distintos

porque eles são tocados de formas diferentes, têm construção e tamanhos distintos e

estão em diferentes manifestações.

Eu acho que é como se fosse um nipe de sax, por exemplo. Não dá pra dizer que tudo é uma

coisa só, tem um tenor, um barítono, um alto, e aí, o pandeiro acaba sendo um pouco disso, só

que como é percussão, não é uma questão de altura, de tessitura do instrumento, aí não se

define e bota tudo como pandeiro. Mas eu acho que a forma mais fácil de você identificar é

realmente pegar e chamar de “pandeiro de”, pandeiro de Choro, pandeiro de Samba, pandeiro

de Cavalo Marinho, pandeiro de Frevo, é tudo pandeiro, mas se é o pandeiro de Frevo você

sabe que é tocado tecnicamente de uma forma diferente.

Considerações sobre as entrevistas

As seis entrevistas registradas neste trabalho nos apresentam trajetórias profissionais

de grandes músicos em que o pandeiro se destacou, e estes, por sua vez, retribuem à história

cultural brasileira com sua participação significativa, por meio de uma íntima relação entre os

músicos, percussionistas e pandeiristas com o pandeiro.

Lendo-as, somos também conduzidos por um percurso histórico que vai da década de

1920 ao século XXI, quando o pandeiro se torna protagonista pelas mãos de

percussionistas/pandeiristas da altura de João da Bahiana, Jorginho do Pandeiro ou Marcos

Suzano.

Desses depoimentos, sublinhamos:

• a pouca formalidade da aprendizagem musical do pandeiro dos entrevistados;

• a necessidade de unir o ensino musical formal e a tradição oral em seus métodos de

ensino como professores do instrumento;

• a presença de Jorginho do Pandeiro e Marcos Suzano como referências de

performance musical;

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• o reconhecimento do pandeiro de choro e samba como importante instrumento de

identidade nacional;

• o reconhecimento de que existem muitos e distintos pandeiros na cultura brasileira;

• o desconhecimento parcial ou total da origem do pandeiro brasileiro.

Como pontos divergentes entre os entrevistados, destacamos:

• a maneira como cada um se identifica como percussionista ou pandeirista;

• a postura de cada percussionista/pandeirista ao tocar pandeiro e sua forma de

trabalhar a sonoridade do instrumento;

• a relação de cada um com o pandeiro aplicado a diferentes gêneros da música

brasileira.

Finalmente, esses relatos registram informações que justificam esta dissertação e

remetem a futuras pesquisas sobre a performance, a história e a cultura que envolvem

pandeiros brasileiros e seus executores, os músicos.