Para Entender Saude No BR2

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Para Entender a Sade no Brasil

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Para entender a sade no Brasil 2

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Medicina e sade: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

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Maria Cristina Sanches Amorim Eduardo Bueno da Fonseca Perillo (organizadores)

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2008 LCTE Editora

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Medicina e sade: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

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ApresentaoEm 2006 publicamos o primeiro volume da coletnea Para entender a sade no Brasil, quando j nos comprometamos a organizar o segundo volume; alm da nossa promessa, a qualidade dos autores e a diversidade das vises de mundo apresentadas agradaram os leitores. Para nossa satisfao, recebemos muitos comentrios favorveis e os exemplares foram rapidamente distribudos pelo Brasil, fato que, somado continuidade de nossas atividades de pesquisa em gesto e economia da sade na PUC-SP, nos levou publicao do presente volume. No primeiro volume, partimos da experincia do curso de ps-graduao lato senso em Economia e Gesto da Sade da PUC-SP, e os autores foram palestrantes, professores e alunos. Em Para entender a sade no Brasil 2, contamos com um universo mais amplo, reunindo as reflexes de professores, alunos, ex-alunos e pesquisadores da universidade que participaram das atividades promovidas pelo grupo de pesquisa e dos estudos realizados para os setores pbico e privado, bem como as de executivos desses setores, os quais tambm contriburam com palestras, discusses, etc. Mantivemos o princpio de reunir as mais diferentes contribuies, advindas de profissionais de organizaes privadas e estatais, professores universitrios e pesquisadores nossa contribuio para superar o isolamento institucional, produzir a to necessria troca de saberes e, sobretudo, oferecer ao leitor viso suficientemente ampla da complexidade do setor sade no Brasil: caractersticas, problemas, avanos, tenses. Os autores propiciam aos leitores compreender a complexidade do saber necessrio ao gestor de sade: as experincias inovadoras e exitosas de gesto, os aspectos legais e institucionais, o alcance dos estudos econmicos, os impactos da regulao governamental, os impasses entre agentes financiadores e fornecedores de produtos e servios, os movimentos no setor financeiro quando ao investimento nas organizaes de sade, as polmicas sobre a cincia e previsibilidade. Naturalmente, o rol dos assuntos abordados no esgota

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a descrio do setor sade a organizao do Volume 3 permitir ampliar o espectro de discusso. O senso comum sustentado muitas vezes por instituies nacionais e internacionais, e por publicaes de gurus em administrao - insiste em afirmar que o setor sade no Brasil (e no mundo), est em crise. Quase como decorrncia, todos os agentes envolvidos deveriam somar esforos na busca da superao da crise, como se houvesse sempre convergncia de interesses econmicos e polticos. E mais, intervenes pontuais de cunho gerencial conduziro soluo dos problemas, ainda que tais arautos no tenham clareza dos problemas reais. Ora, desde Descartes (Obra escolhida. SP: Difuso Europia, 1973), os pesquisadores bem o sabem, o senso comum inadequado para anlise da realidade que se espera transformar, pois nossos sentidos podem nos enganar e, acrescentamos, as informaes so inexoravelmente marcadas pela intencionalidade dos agentes que a produzem, todo dado oculta e revela essa mesma realidade, simultaneamente. Em continuidade ao eixo escolhido no Volume 1, empenhamo-nos em contribuir para desfazer crenas comuns entre os profissionais do setor. Organizamos os artigos dessa coletnea objetivando mostrar o contrrio do senso comum: a sade no est em crise, os interesses dos atores so na maioria das vezes, conflitantes, e as intervenes devem ser articuladas tendo por pressupostos as divergncias e a escassez de informaes sistematizadas. A leitura dos artigos, esperamos, revelar o crescimento do setor sade no Brasil, o investimento no uso de sofisticadas ferramentas de gesto e financiamento, a heterogeneidade das organizaes, a acelerao da inovao, a aguda diversidade de interesses. Utilizando apenas parte dos argumentos e informaes presentes nos artigos, perguntamo-nos: qual a pertinncia de falar em crise da sade quando aumenta a taxa de inovao nos processos de produtos? No fosse pela expectativa de retorno, por que as organizaes privadas se arriscariam investindo em novos produtos e processos? Como falar em crise se o aumento dos custos das operadoras a fonte do aumento das receitas de prestadores de servios de indstria de materiais e medicamentos?

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Quanto persistncia da dificuldade de acesso a servios, qualific-la de crise da sade induz a perder de vista justamente as diferenas e contradies, sem a assuno das quais, estaremos merc, na melhor das possibilidades, de solues certas para os problemas errados (Ian Mitroff, Tempos difceis, solues inovadoras. RJ: Campus, 1999). O recurso anlise histrica foi fundamental para entender a sade no Brasil, para perceber continuidades e rupturas das relaes de conflito, subordinao e aliana em torno dos interesses econmicos e polticos, por meio dos quais foi se estruturando o sistema atual de sade. Nosso artigo, com o qual encerramos a coletnea, no porque sumarize ou represente todos os autores, mas por oferecer a origem das caractersticas do sistema de sade e dos dilemas atuais, as causas da persistncia de problemas por dcadas, pretende dar ao leitor esse fio condutor.

Maria Cristina Sanches Amorim [email protected] Eduardo Bueno da Fonseca Perillo [email protected]

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Sumrio1 - Medicina e sade: o determinismo de uma e o probabilismo da outra Fbio Latuf Gandour 2 - Medicamentos no Brasil impasses e perspectivas Luiz Roberto Barradas Barata Jos Dnio Vaz Mendes 3 - Planos de sade: regulao e conseqncias no desejadas Jos Cechin Bruno Dutra Badia 4 - Os desafios para a sustentabilidade na sade suplementar no Brasil Maria Stella Gregori 5 - Planos privados de assistncia sade: plano coletivo por adeso - um estudo de caso Sandra Maria Lima de Oliveira Claudemir Galvani 6 - Concentrao e verticalizao no setor de sade suplementar: uma anlise economtrica Sandro Leal Alves 7 - Aumento da cobertura e dos preos dos planos de sade Marcelo de Lima Dias 8 - Os bancos e o setor de sade Marcelo Cyrino 9 - Estratgias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes Fbio Sinisgalli

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10 - Composio e evoluo dos ndices de inflao geral e setorial no Brasil: o que os gestores em sade precisam saber Caroline da Costa Moreira Ellen Penteado da Costa Joaquim Murilo Silveira Neto Maria Jos Blanco Ferreiro Carlos Alberto Garcia Oliva 11 - Relevncia da anlise econmica em sade para o processo decisrio do governo no tratamento da doena cardiovascular Denizar Vianna Arajo 12 - As doenas crnicas, o gerenciamento de doenas e a saturao dos servios de emergncias Waldemir Washington Rezende 13 - Formao do complexo mdico-hospitalar: contribuies da histria econmica para a compreenso de problemas atuais Eduardo Bueno da Fonseca Perillo Maria Cristina Sanches Amorim

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FBIO LATUF GANDOUR Mdico, cientista-chefe, IBM Brasil.

A medicina uma cincia ancestral. E, como outras cincias ancestrais, flutuava em uma aura mstica ao nascer. Tambm como em outras cincias ancestrais, o misticismo foi evoluindo. Em algumas, como na alquimia, a evoluo tomou um caminho torto, o da bruxaria, antes de encontrar de novo a rota da ampliao do conhecimento. Na medicina, a evoluo do misticismo que a cercava caminhou para a divinizao. Ou por se relacionar diretamente com a vida do homem ou pelos excelentes resultados da manobra de marketing de Hipcrates, criando uma mensagem to bem sucedida que sobrevive at hoje: Sedare dolorem opus divinum est sedar a dor obra divina. Hipcrates viveu entre os anos de 460 e 370 a.C. Criar uma mensagem com tamanha longevidade o sonho de qualquer marqueteiro do sculo XXI! H quem levante a dvida: Hipcrates queria se referir a Deus ou aos deuses? Como sua mxima foi anunciada na Grcia Antiga, mais fcil ficar com a se-

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gunda hiptese, sustentada inclusive pela abundncia de deuses no mercado por ele freqentado. Abundante a ponto de duas outras entidades msticas embora menos conhecidas estarem bem conectadas medicina: a Higya e a Panacia. Disso tudo, um s resultado: ao situar a prtica da medicina prxima aos atos dos deuses em uma poca em que a palavra cincia talvez nem existisse, Hipcrates conseguiu que, das reas ancestrais do conhecimento, a medicina fosse a mais divinizada. De repente, mas muito depois, um bando de gente intelectualmente agitada, eloqente e soturna, parecida com os filsofos clssicos, mas muito mais atrevida, comeava um movimento interessante j no finalzinho do sculo XVII o iluminismo. Ele estabelecia algumas bases tericas para sustentar a evoluo do pensamento filosfico, intelectual e at religioso. A coisa era to ampla que dava ao homem uma nova dimenso de si mesmo. O guru desta turma, um alemo chamado Immanuel Kant (1784), resumiu a novidade em uma frase: O Iluminismo representa a sada dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Estava pronto o cenrio para o surgimento de algo que marcaria a evoluo da cincia universal para sempre: a metodologia cientfica! Ainda que criada sobre uma base de conhecimento construda por filsofos, a metodologia cientfica separava o que era cincia do que era filosofia, estabelecendo critrios lgicos para a conduo da primeira, sem no entanto, agredir a segunda. Tudo perfeito! To perfeito que praticamente todo o conhecimento humano existente at ento foi pacificamente revisto luz da metodologia cientfica. So inmeros os exemplos desta reviso, mas dois deles precisam ser mencionados de forma explcita. O primeiro se refere aos trabalhos de Ren Descartes (1596-1650). Ainda que denominado filsofo, j no sculo anterior o matemtico francs havia definido princpios de interpretao lgica do conhecimento que facilmente se encaixaram nos cnones da metodologia cientfica do sculo seguinte, a lgica cartesiana. O segundo se refere ao fsico e matemtico ingls Isaac Newton (1643-1627). Newton possua um amplo conhecimento de fsica, matemtica, astronomia, filosofia e at teologia. Ele pode bem ter sido o pri-

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meiro cientista a usar a metodologia cientfica tal como foi proposta a partir dos conhecimentos gerados no Iluminismo: observando fenmenos naturais, formulou hipteses e saiu em busca de sua refutao ou prova, recorrendo aos conhecimentos que possua e criando formulaes sustentadas por indiscutvel raciocnio matemtico. E onde andava a medicina a esta altura? difcil afirmar com preciso, mas tudo indica que por um longo tempo, a medicina continuou escondida por trs de sua aura de divinizao. Louis Pasteur (1822-1895) pode ter sido o primeiro cientista a formular uma hiptese e test-la luz da metodologia cientfica, revolucionando o conhecimento terico e a atitude prtica dos deuses da sade no campo das doenas infecciosas. Um detalhe curioso: Pasteur no era mdico! Era qumico e microbiologista. E esta opo profissional deve ter sido essencial para habilit-lo a usar a metodologia cientfica, mesmo sabendo que os resultados poderiam afrontar o pensamento dos deuses. A presso foi muita! Tanta que a medicina se entregou metodologia cientfica. Afinal, era impossvel continuar sobrevivendo como cincia sem aderir aos mtodos e modelos que faziam as outras cincias progredirem e prosperarem. At porque estas outras cincias comearam a produzir tecnologias com grande impacto na prtica mdica e, aqui, uma delas: Wilhelm Conrad Rntgen (1845-1923), um fsico alemo, inventou o Raio-X e deu aos deuses da medicina a capacidade de enxergar o que, at ento, eles no viam. Sim, a medicina se entregou metodologia cientfica, mas no perdeu a divinizao ancestral que, afinal, est fortemente impressa em seu DNA. Dessa entrega, surgiu o conceito de sade, o qual, embora usado no singular, denota uma noo indiscutivelmente plural. A medicina para a pessoa, e a sade para o coletivo humano ao qual as pessoas pertencem. Claro que um grupo saudvel formado por indivduos saudveis. Sob o ponto de vista de prtica da medicina, esta afirmao incontestvel. No que toca a sua administrao, o confronto entre indivduo e comunidade a qual ele pertence tambm incontestvel. E esse aspecto que abordamos a partir de agora. A primeira definio de sade foi formulada pela Organizao Mundial da Sade em 1946, em um frum contando com a presena de 61 pases representantes. Mas s pde ser oficializada em 1948 (WHO, 1948). A demora entre

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um fato e outro deveu-se a interminveis discusses, ainda no conclusivas, sobre o escopo da definio: sade ... um estado de completo bem estar fsico, mental e social e no apenas a mera ausncia de doena ou enfermidade. As principais crticas a esta definio vo desde polmicas semnticas relacionadas ao dimensionamento da palavra completo at o questionamento objetivo da falta de contribuio prtica do que est escrito a. No entanto, independente do desfecho destas discusses, nos parece que a simples incluso da palavra social na definio do que sade, faz dela um conceito coletivo. Sade , portanto, um conceito eminentemente coletivo, a ser detalhado de forma operacional a partir da coletividade na qual se pretende aplic-lo, e que nasceu com a aderncia da ancestral cincia da medicina aos princpios da metodologia cientfica. E agora infelizmente s agora, mas finalmente agora! criada essa retrospectiva histrica sobre o qu vem de onde, podemos declarar a nossa inteno neste texto: lanar alguma luz que possa esclarecer causas e razes. Sem a pretenso de solucionar problemas de forma mgica, acreditamos que o esclarecimento de causas e razes pode ser til na formulao de processos e polticas que, pelo menos, minimizem a dicotomia entre sade e medicina e coloquem uma a servio da outra. No caminho para aderir metodologia cientfica, a prtica mdica encontrou uma baia de conforto para acomodar a sua tradicional divinizao: o determinismo. Formulado originalmente como uma teoria filosfica, o determinismo se vale de complexos clculos matemticos para sustentar uma proposio um tanto ousada: nada acontece por acaso e tudo determinado. Desdobrado em vrias escolas, o determinismo cria o cenrio perfeito, ainda que um tanto deformado, para a existncia de entidades que determinam o que vai acontecer. So quase deuses, que detm o controle do universo. Poucas reas do conhecimento so to determinsticas quanto a medicina. Saber a arte de curar acaba por significar saber as regras de produo do raciocnio clnico, que aumentam a partir dos resultados produzidos pela metodologia cientfica e que se aperfeioam e se depuram com a experincia profissional.

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Apenas para construir um fundamento terico mais simples que sustente o pargrafo anterior, vale a pena rever a definio dicionarizada de determinismo. Esta definio diz que o determinismo , ... um princpio segundo o qual todos os fenmenos da natureza esto ligados entre si por rgidas relaes de causalidade e leis universais que excluem o acaso e a indeterminao... (HOUAISS, 2004). Da: se febre, ento antitrmico. Se infeco, ento antibitico. Se apendicite, ento cirurgia. Se diarria, ento hidratao e pausa alimentar. E na medida em que a metodologia cientfica avana, apenas cria novas determinaes a serem seguidas pelos mdicos. Novamente, um grande salto no tempo. Agora, j estamos na poca em que a tecnologia para gerncia de informao comeou a se popularizar e computadores deixaram de serem bichos-de-sete-cabeas. Logo se percebeu que o determinismo da medicina se prestava com perfeio aos estudos sobre o conhecimento humano e s formas com que o mesmo poderia ser representado em mquinas. Afinal, este mesmo determinismo foi o responsvel por organizar o conhecimento mdico de forma muito estruturada, apresentada em formato verbal e no em smbolos matemticos, como acontece em outras reas do conhecimento que tambm so determinsticas. L pelos meados da dcada de 80, quando doena sexualmente transmissvel ainda se chamava doena venrea e, se gonorria, ento penicilina benzatina, um pesquisador de Stanford logo aproveitou o cenrio favorvel construdo pela forma de representao do conhecimento mdico. Trata-se de Eward Shortliffe, que publicou o livro Rule Based Expert Systems: The Mycin Experiments of the Stanford Heuristic Programming Project (SHORTLIFFE; BUCHANAN, 1984). O trabalho de Shortliffe foi o primeiro experimento bem sucedido de construo de um sistema especialista nome dado a esse segmento da ento promissora rea de inteligncia artificial. Naquela poca, dada a proliferao de uso dos computadores e sua crescente capacidade de processamento de dados e informaes, pretendia-se reproduzir artificialmente os modelos de armazenamento e recuperao de informaes que fazem parte do conhecimento tcito e explcito (NONKA; TAKEUSHI, 1995). O objetivo era atingir um modelo totalmente automatizado, capaz de tomar decises no s sensatas, mas principalmente de melhor resultado do que aquelas tomadas pelo crebro humano. Os resultados do esforo na criao de uma inteligncia artificial foram diversos e fogem ao escopo do presente texto.

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O fato que Shortliffe se valeu de uma das muitas formas de representao do conhecimento humano, conhecida como regras de produo, e implementou um sistema especialista dedicado ao apoio deciso no tratamento das doenas infecciosas. Este sistema recebeu o sugestivo nome de Mycin e por longo tempo, foi o melhor aproveitamento feito do determinismo da medicina. Tanto que conseguiu construir uma base de conhecimento representvel em formato verbal e melhor ordenada do que qualquer outra rea. Um detalhe curioso: a resposta final do Mycin vinha acompanhada de um coeficiente, variando entre 0 e 1. Esse coeficiente mostrava a probabilidade estatstica de ocorrncia de uma dada deciso, como resultado do tratamento probabilstico das regras de produo que haviam convergido para a deciso final. Em outras palavras, o coeficiente era uma medida indireta do grau de confiana que uma dada resposta poderia ter. um caso claro que ilustra o determinismo da medicina sendo tratado de forma probabilstica, como convm sade. Muito antes de Shortliffe e dos computadores, John Snow (1813-1858) deve ter percebido a convenincia deste tratamento. Mdico britnico que liderou o uso da anestesia, dedicou-se muito higiene como rea precursora da epidemiologia. E a, notou que a representao dos agravos sade mais eficaz quando apresentadas sob a forma de elementos grficos que mostrem com clareza a probabilidades dos fatos, como os ndices de ocorrncia, os percentuais de surgimentos e as taxas de mortalidade. clebre o trabalho de Snow apresentando sobre um mapa da cidade de Londres, a ocorrncia dos casos de clera durante a epidemia de 1854 (Mapa 1). Essa representao permitiulhe ver que alguns casos se aglomeravam em classes clusters os quais coincidiam com a rea que fazia uso de gua proveniente de uma mesma fonte pblica. Essa era a fonte de disseminao da doena para a populao. Conversando com os residentes da rea com o apoio de um religioso local, John Snow conseguiu adeso idia de fechar a fonte de gua, dando incio a um pronunciado declnio nos nmeros da epidemia. Uma ao totalmente coletiva e apoiada por lideranas polticas de fato. Ser que todos concordaram com a atitude provocada pelo Snow? Individualmente, muito provvel que no! Alguns indivduos ainda no acometidos pela clera e que se sentiam menos vulnerveis, podem ter interpretado a deciso do Snow como algo que iria contra seus interesses pessoais. Afinal, individualmente eles eram medicamente

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saudveis! Mas sob o ponto de vista coletivo, a maior probabilidade de melhorar a sade daquela populao exigiu uma ao diferente da demanda individual. Mutatis mutandis, este mesmo cenrio conflituoso que os decisores em sade enfrentam atualmente. Principalmente porque tanto a medicina quando a sade foram, ambas uma de obra divina e a outra de completo bem estar fsico, mental e social transformadas em um grande negcio. E como tal, sujeitas s regras de mais-valia inerentes ao capitalismo. Tanto o alto administrador do plano de sade privado quanto o gate keeper desse mesmo plano, como a autoridade da sade pblica em qualquer nvel, esto todos eles invariavelmente s voltas com a demanda individual e a necessidade coletiva. Vale novamente lembrar que a demanda individual chega por um paciente mas, de fato, foi criada por um mdico, do alto da sua divindade, a qual o paciente jamais ousar afrontar! o mdico que diz ao paciente se voc tem isto, ento precisamos fazer aquilo. O aquilo o resultado da aplicao das regras de produo de seu conhecimento. E tais regras simplesmente ignoram custos, convenincias coletivas e polticas em vigor. aquilo e ponto! E a se instala um conflito de interesses, de princpios, de polticas e, sobretudo, de aes. Vocs, leitores, j devem ter experimentado tal conflito ou como formuladores da deciso, ou como alvo impotente da deciso formulada por algum. Desde j, informo que estive nas duas posies e nenhuma delas confortvel. Os estudiosos da administrao em sade sabem que a otimizao da prestao de servios nesta indstria requer uma modelagem com forte fundamento estatstico. Felizmente, cresce o nmero de trabalhos acadmicos dedicados a utilizar conceitos estatsticos e suas formulaes matemticas para avaliar e planejar a ao de servios de sade. Ainda que predominem temas dedicados apenas a avaliao dos resultados do setor, mesmo em tais casos j aparecem tentativas de construo de modelos de atendimento apoiados em proposies tpicas da rea de estatstica, mas ainda pouco usadas para planejamento em sade (PIRES, 2007). Uma destas proposies tem a ver com o uso de instrumentos de estocstica. A etimologia relaciona essa palavra com tudo que no-determinstico, sujeito presena de efeitos randmicos e imprevisveis, sujeito evoluo no

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tempo e no espao. Em um processo estocstico de um sistema, um estado no capaz de determinar totalmente o que acontecer no prximo estado deste mesmo sistema, ainda que em um e outro estado as variveis sejam as mesmas. Assim, dada a sua imprevisibilidade, os sistemas estocsticos so complexos e seu tratamento tcnico (matemtico), trabalha sempre com a possibilidade de insucesso. esta teoria estocstica a que tem melhor se prestado ao planejamento de aes em sade pblica e privada. A recomendao tem um lado irnico: usada para a sade por seu carter essencialmente coletivo, os exemplos para ilustrar os processos estocsticos vem da medicina, com seu carter essencialmente individual. O exemplo mais conhecido para ilustrar a permanente possibilidade de insucesso em sistemas estocsticos totalmente mdico: um mdico pode administrar o mesmo tratamento a vrios pacientes que apresentam os mesmos sintomas e nem todos tero a mesma reao ao tratamento, pois paciente/enfermidade/medicamento compem um sistema estocstico. Valendo-se agora da homofonia com a palavra estocstica, o administrador em sade pode se beneficiar dessa ferramenta estatstica para melhor lidar com vrios estoques, suas dimenses e variaes no tempo e no espao. So os estoques de pacientes em vrias fases da vida, de doenas em suas variadas apresentaes (epidmicas, endmicas, sazonais, crnicas, degenerativas, etc.), de recursos humanos de cada espcie (mdicos, enfermeiras, auxiliares tcnicos, etc.), de recursos tecnolgicos em cada categoria e, sobretudo, de recursos financeiros presentes e futuros. Em resumo, o melhor entendimento do setor sade parece passar pela correta utilizao de conhecimentos recmcriados em outras reas tecno-cientficas que, uma vez usados corretamente, permitiro a formulao de polticas pblicas e privadas mais adequadas ao tempo em que se vive. A rea de probabilidade & estatstica, ainda que seu ethos seja totalmente probabilstico, uma das mais profcuas na produo de novos recursos de planejamento em sade, principalmente atravs da estocstica. Resta lembrar, portanto e desde j, que muitas das concluses a formuladas, estaro em posio diametralmente oposta ao determinismo da medicina, tal como concludo pelo mdico e comunicado ao seu paciente. A conseqncia, to agonizante quanto indispensvel, a permanente oposio entre as polticas de sade e o principal insumo da sua execuo: os membros da comunidade onde estas polticas, pblicas ou privadas, sero aplicadas.

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Mais e pior se prenuncia no horizonte: Karl Popper (1902-1994), um filsofo alemo contemporneo, sustentou com brilho uma srie de crticas metodologia cientfica nascida a partir do Iluminismo. Um dos principais filsofos da cincia do sculo XX, com grande considerao pela sociologia e pela poltica, Popper fez restries bem fundamentadas ao indutivismo da metodologia cientfica tradicional e criou a expresso racionalismo crtico. a partir de suas idias que voltou a ser possvel alimentar a questo da validade das aes mdicas quando contrapostas aos achados da Teoria da Evoluo de Charles Darwin (1809-1882). Resumidos na questo ... a medicina favorece ou prejudica a evoluo da espcie humana?, os fundamentos tericos de tal polmica esto construdos e disponveis h tempos. Mas a auto-censura social e religiosa impedia ampliar tal discusso. O racionalismo crtico de Popper cria o terreno para a retomada do assunto, principalmente nesse incio de sculo, por conta de todos os avanos na rea de engenharia gentica e do iminente surgimento de novas reas como a farmacogentica e semiogentica. Anuncia-se no horizonte uma nova discusso essencial das atividades dos profissionais de sade em todos os nveis, mdicos em especial. A exemplo do que ocorreu aps o surgimento da teoria cientfica original, o conhecimento humano poder, ou no, ser adaptado para um novo modelo a partir do racionalismo crtico de Popper. Mesmo que em geral nada ocorra porque no convm a uns e outros, pelo menos a aplicao da tica aristotlica dever ser revista para se adaptar aos novos tempos e permitir o melhor balizamento de conflitos e resposta a questes seminais. Prenuncia-se tambm, mais uma vez, um acirramento das posies do indivduo e da poltica de sade a qual se submete a partir do estado, de seu empregador ou de seu prprio investimento como comprador de um servio. Saber disso tudo pode contribuir para entender melhor a sade no mundo em geral e no Brasil em particular.

BibliografiaHOUAISS, Antonio. Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa Verso 1.0.7 Instituto Antonio Houaiss Editora Objetiva, setembro 2004. KANT, Immanuel. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklrung? Berlinische Monatsschrift, Berlin:, Zwlftes Stk, dezember 1784.

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NONAKA, I.; TAKEUCHI, H. The Knowledge Creating Company. Oxford: Oxford University Press, 1995. PIRES, Clarissa Crtes. Eficincia comparada em sistemas de sade: Um estudo para o Brasil. Dissertao para obteno do ttulo de Mestre em Cincias, no curso de psgraduao em Engenharia, ITA, Instituto Tecnolgico de Aeronutica, 2007. SHORTLIFFE, E. H.; BUCHANAN, B. G. Rule Based Expert Systems: The Mycin Experiments of the Stanford Heuristic Programming Project Stanford University School of Medicine, Stanford, Addison-Wesley Publishing Company, 1984. WHO. World Health Organization, International Health Conference, New York, 1922 June, 1946 - Official Records of the World Health Organization, 2: 100 April, 1948. Disponvel em: http://www.who.int/about/definition/en/print.html.

Mapa 1

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LUIZ ROBERTO BARRADAS BARATA Secretrio de Estado da Sade de So Paulo, mdico sanitarista, especialista em sade pblica e administrao de servios de sade. JOS DNIO VAZ MENDES Assessor tcnico da Secretaria de Estado da Sade de So Paulo, mdico sanitarista, especialista em sade pblica.

IntroduoH muitos anos a sade pblica reconhece internacionalmente o acesso aos medicamentos como uma condio essencial para o efetivo direito sade, bem como, em diversos encontros, a Organizao Mundial de Sade OMS promoveu a reflexo sobre essa questo. J em 1975, resoluo da Assemblia Mundial de Sade solicitava auxilio aos pases membros para o estabelecimento de polticas farmacuticas, incluindo estratgias para a seleo de medicamentos essenciais e a aquisio correta de medicamentos de qualidade, baseada nas necessidades sanitrias. A primeira lista de medicamentos essenciais foi publicada pela OMS em 1977 (WHO, 2002).

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Em 1978, na Conferncia Internacional de Ateno Primria, realizada em Alma-Ata, convocada pela OMS e pela UNICEF, o acesso aos medicamentos essenciais foi includo como parte necessria da ateno primria em sade. Tais esforos levaram ao estabelecimento de programas da OMS para medicamentos essenciais, realizao de conferncias sobre o uso racional dos medicamentos e ao apoio tcnico para que os pases adotassem polticas farmacuticas nacionais (WHO, 2002). Como resultado dessas polticas, e segundo estimativas da OMS, aumentou bastante no mundo a populao com acesso aos medicamentos essenciais, mas pelo menos um tero da populao mundial ainda no possui acesso adequado; em pases pobres da frica e sia, a proporo pode chegar metade. Permanece assim a necessidade de se buscar solues para os srios problemas persistentes nessa rea de ateno sade (WHO, 2002), a saber: a falta de acesso eqitativo aos medicamentos: embora o consumo mundial e o nmero de medicamentos disponveis tenha aumentado nas ltimas dcadas, existem grandes parcelas da populao mundial que no obtm os medicamentos dos quais necessitam, por no estarem disponveis ou por serem muito caros; a m qualidade dos medicamentos: falta de controle e vigilncia na linha de produo e comercializao dos frmacos em muitos pases, resultando em produtos falsificados ou inadequados, com graves riscos para a sade; uso irracional dos medicamentos: a aquisio dos medicamentos ou a prescrio no adequada s reais necessidades dos pacientes, ampliando desnecessariamente o nmero, a dose e o tipo de medicamentos empregados, com aumento de custos e de riscos para a sade da populao.

Alm disso, salienta a OMS, as razes da persistncia de tais problemas so complexas, sendo necessrio, para compreend-las, considerar as caractersticas do mercado farmacutico, estudar as atitudes e comportamentos dos governos, dos mdicos (prescritores), dos consumidores e da indstria farmacutica (WHO, 2002). A dimenso do setor farmacutico na sade especialmente destacada em documentos da OMS, pois os altos valores envolvidos tornam o setor

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vulnervel corrupo e s prticas no ticas. O valor do mercado global de medicamentos estimado pela OMS em 500 bilhes de dlares anuais, e os valores gastos com medicamentos em pases no desenvolvidos podem alcanar 50% do total gasto com sade (WHO, 2006). Segundo a OMS, no perodo de 1985 a 1999, o valor mundial da produo de medicamentos cresceu quatro vezes mais rapidamente do que o produto interno bruto global; dois teros da produo se concentram em apenas cinco pases, sendo a produo de medicamentos dominada por pequeno nmero de empresas multinacionais (WHO, 2004). Tal cenrio complexo permeia a situao de sade e deve ser levado em conta especialmente pelos pases dotados de sistemas universais de sade, tal como o Brasil, e que incluram a garantia de medicamentos como parte indissocivel da poltica de sade. No presente trabalho apresentamos reflexes sobre a forma como a assistncia farmacutica est se desenvolvendo no Brasil, bem como alguns dos problemas enfrentados nesse campo pelo Sistema nico de Sade SUS, particularmente no Estado de So Paulo, os quais, semelhantes aos j relacionados pela OMS, tambm apresentam especificidades locais, exigindo para sua soluo o envolvimento de diversos setores do governo e da sociedade, de modo que a populao, brasileira e paulista, tenha suas necessidades de medicamentos atendidas de forma eqitativa e sustentvel.

Um breve histrico: a garantia pblica de medicamentos realidade recente no BrasilAntes do SUS, a assistncia farmacutica no Brasil para a populao em geral no era atribuio legal do setor pblico de sade; mesmo assim, ocorreram iniciativas governamentais relativas ao fornecimento de medicamentos para a populao que merecem ser relacionadas: em 1964, antes da publicao da primeira lista de medicamentos essenciais da OMS, foi elaborada no Brasil uma lista bsica de produtos biolgicos e de matrias-primas de uso farmacutico (Decreto n. 53.612/1964), para orientar as compras federais de tais produtos (BRASIL/MS, 2003);

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em 1971, foi criada a Central de Medicamentos CEME com o objetivo principal, entre outros, de fornecer medicamentos por preos acessveis aos que no possuam condies econmicas de adquiri-los no mercado (BRASIL/MS, 2002); em 1975, foi homologada a Relao Nacional de Medicamentos Essenciais RENAME, contemplando os princpios da lista de medicamentos essenciais da OMS (BRASIL/MS, 2002).

A CEME realizou programas para atendimento das demandas da rede de sade pblica, porm o fornecimento sempre foi irregular, com desperdcios e insuficincias de medicamentos, at sua desativao em 1997 (BRASIL/MS, 2002). Contudo, apesar das dificuldades, os medicamentos eram tradicionalmente garantidos populao pela sade pblica para algumas das doenas endmicas e epidmicas, cuja importncia para a sade coletiva exigia mecanismos de controle epidemiolgico do Ministrio da Sade, como o caso da tuberculose, da hansenase, da malria, entre outras. Os medicamentos dispensados pelo Ministrio da Sade para o controle dessas doenas, se por um lado no configuram a ampla assistncia farmacutica pblica, por outro trouxeram conhecimentos fundamentais aos gestores pblicos, certamente contribuindo para o desenvolvimento de um amplo programa de assistncia farmacutica nos dias de hoje. O fornecimento de medicamentos pela sade pblica brasileira obedecia a esquemas teraputicos padronizados, alguns iniciados na dcada de 60, como por exemplo, a tuberculose (RUFINO NETTO, 1999), definidos por consenso tcnico entre especialistas de cada rea e utilizados por todos os servios pblicos e privados da rede de sade do pas. Tais esquemas permitiram ao pas o uso racional de medicamentos para o controle dessas doenas, evitando-se os riscos da resistncia microbiana, diferentemente do que ocorreu em outros pases que no utilizaram padronizaes semelhantes. At a criao do SUS, como vimos, no existia o fornecimento regular de medicamentos para o tratamento de todas as demais doenas, ficando a aquisio, na maior parte das vezes, por conta dos prprios pacientes. Tal

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fato criava uma clara iniqidade, pois apenas aqueles que podiam adquirir os medicamentos com recursos prprios conseguiam tratar adequadamente suas molstias; alm disso, produzia pssimos resultados para a sade, seja do ponto de vista individual, com evoluo clnica desfavorvel, mesmo para aquelas doenas para as quais j se dispunha de medicamentos eficientes, como no caso da hipertenso arterial e da diabetes, por exemplo, seja nos perfis de sade da populao. A implantao do SUS resultou de um longo processo histrico e social, buscando a modificao desse quadro, intervindo nas condies de sade e na assistncia mdica prestada populao brasileira. Entre os princpios do sistema, incluem-se a universalidade, a integralidade e a eqidade na assistncia sade, expressando os valores escolhidos e estabelecidos por nossa sociedade na Constituio, por consider-los como ideais para a rea da sade. A integralidade da assistncia deve ser entendida como o conjunto de aes de promoo, preveno, proteo especfica, diagnstico, tratamento (incluindo os medicamentos), e reabilitao em sade. Atualmente, a assistncia farmacutica constitui-se em um dos grandes desafios consolidao do SUS, uma vez que o acesso da populao a medicamentos de qualidade, no momento apropriado, uma das pedras fundamentais para se garantir bons resultados nos atendimentos realizados pelo sistema e sua integralidade. Por certo, os princpios do SUS acima apontados so objetivos que sero atingidos de forma gradual, principalmente na rea de assistncia farmacutica. So direitos a serem garantidos pelo poder pblico, com a adequada estruturao de programas e prticas que permitam o acesso universal da populao aos medicamentos dos quais necessita, com segurana e eqidade.

Os avanos do SUS na assistncia farmacuticaO financiamento da assistncia farmacutica, tal como as demais aes e servios do SUS, deve ser garantido com recursos das trs esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal), conforme o previsto na Constituio Federal (pargrafo nico do artigo 198), e nas normas subseqentes do Ministrio da

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Sade (CONASS, 2007). Alm disso, as polticas traadas pelo Ministrio da Sade estabelecem a diviso de responsabilidades das esferas de governo no que se refere aquisio e distribuio, com competncias complementares para garantir os medicamentos para todos. Como resultado das polticas desenvolvidas no SUS para o setor, temos atualmente, no Estado de So Paulo e em todo o pas, acesso assistncia farmacutica, muito mais amplo e regular do que existiu no passado recente do setor pblico de sade. Os dados da Pesquisa Mundial de Sade 2003, realizada pela Organizao Mundial de Sade OMS, em 71 pases e coordenada no Brasil por pesquisadores da Fundao Oswaldo Cruz FIOCRUZ, comprovaram que 87% dos brasileiros tiveram acesso aos medicamentos prescritos (FIOCRUZ, 2004). Esse ndice muito elevado e contribui sobremaneira para a melhoria das condies de sade de todos os brasileiros. No SUS, a assistncia farmacutica desenvolve-se em trs grandes eixos programticos: na ateno bsica em sade, com os medicamentos essenciais, nos programas estratgicos de sade, para controle de doenas, e nos medicamentos excepcionais, de alto custo, para doenas especficas (CONASS, 2007).

A assistncia bsica ou primria em sade (medicamentos essenciais)A garantia de acesso dos cidados aos medicamentos essenciais e necessrios assistncia bsica em sade, em conjunto com a reordenao das prticas assistenciais, seria fator de maior eficcia do nvel primrio de sade, com conseqncias benficas extensivas aos demais nveis do sistema ateno hospitalar e especializada, principalmente com relao qualidade de sade da populao. Algumas iniciativas demonstram o avano alcanado; em 1995, no Estado de So Paulo, teve incio o Programa Estadual de Assistncia Farmacutica Bsica Dose Certa. O programa garante medicamentos prescritos para mais de 80% das doenas crnicas e agudas mais freqentes atendidas pela rede de unidades bsicas de sade municipais em todo o estado, como

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a hipertenso arterial, diabetes, outras doenas cardiovasculares, as infeces e doenas respiratrias da infncia, pneumonia, asma, alergias, a desidratao infantil, as parasitoses intestinais, entre outras. A partir de 1999, por meio da criao do Incentivo Assistncia Farmacutica Bsica, pela Portaria do Ministrio da Sade n. 176/1999 (CONASS, 2007), foi garantido o financiamento federal para a assistncia farmacutica bsica, prevendo tambm a contrapartida estadual e municipal aos recursos federais; financiado portanto pelas trs esferas de governo, o Dose Certa recebeu no Estado de So Paulo recursos superiores a R$ 170 milhes em 2007. Com um rol inicial de 40 medicamentos essenciais, foi possvel ampliar o programa no final de 2007 para 67 tipos, com estimativa de distribuio anual de mais de 1,86 bilhes de unidades farmacuticas (definidas como comprimidos, cpsulas, frascos, bisnagas e frasco-ampolas), ou seja, cerca de 45 unidades farmacuticas por habitante/ano. Um dos fatores crticos de sucesso do programa no estado de So Paulo foi o investimento e a recuperao da Fundao do Remdio Popular FURP, laboratrio estadual pblico produtor de medicamentos, permitindo a ampliao do nmero de medicamentos distribudos e beneficiando principalmente os municpios pequenos, com menor capacidade de adquirir os medicamentos no mercado. Alm do Dose Certa, outro exemplo do estado de So Paulo a ser destacado o Programa de Insumos para Diabetes, pactuado em 2005 entre o estado e os municpios, por meio do qual a Secretaria de Estado da Sade garante o financiamento de 75% do valor dos insumos utilizados no controle da diabetes (tiras, lancetas, seringas e monitores), enquanto as Secretarias Municipais de Sade se responsabilizam pelos 25% restantes, bem como pelo atendimento, acompanhamento e cadastro dos pacientes em sistema informatizado criado pelo estado. At 2007 foram cadastrados 196 mil pacientes, recebendo mensal e regularmente das unidades municipais de sade, os insumos e medicamentos necessrios ao controle de sua doena.

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Tais programas so exemplos bem sucedidos da ao conjunta e sinrgica dos gestores pblicos na garantia do direito ao acesso aos medicamentos para problemas de sade prioritrios da populao1.

Os programas estratgicos de sadeOs programas estratgicos do Ministrio da Sade incluem os medicamentos para tuberculose, hansenase, leishmaniose, endemias focais, clera e DST AIDS, entre outras. Esses programas, destinados ao controle das epidemias e endemias, so aqueles com maior tradio na sade pblica como vimos anteriormente. Os medicamentos so financiados pelo ministrio e distribudos pelas unidades de referncia em cada regio, sob gesto municipal. Cabem s secretarias estaduais de sade o levantamento de necessidades, o encaminhamento das solicitaes para o Ministrio da Sade e a avaliao dos programas desenvolvidos nos estados. A padronizao dos medicamentos oferecidos pelo SUS feita por especialistas do ministrio, universidades e consultores de organismos internacionais, como a Organizao Pan-americana de Sade OPAS, e a OMS, dessa forma permitindo ao sistema oferecer o remdio mais adequado para as necessidades dos pacientes. O programa de assistncia farmacutica aos portadores de HIV, ltimo programa do gnero a ser implantado pelo SUS no Brasil, recebeu em 2003 o Prmio Gates de Sade Global, oferecido pela Fundao Bill & Melinda Gates, por ser considerado um modelo de programa para tratamento da AIDS, ao combinar medidas preventivas com o acesso aos medicamentos anti-retrovirais (GATES, 2003), sendo considerado pela OMS o mais avanado programa de tratamento da AIDS realizado em pases em desenvolvimento no mundo (WHO, Treatment works, 2004). Os programas de assistncia farmacutica para doenas como a tuberculose e a hansenase seguem no Brasil padres internacionais estabelecidos pela OMS, e tm-se mostrado eficientes no controle dessas enfermidades.1

Mais informaes sobre os programas de assistncia farmacutica em So Paulo disponveis em, .

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O Programa de Medicamentos de Alto CustoO Programa de Medicamentos de Alto Custo atende as doenas consideradas de carter individual, as quais, a despeito de atingirem nmero limitado de pessoas, requerem tratamento longo ou at permanente com medicamentos de custos em geral elevados, por essa razo no podem ser adquiridos pelos prprios pacientes. O programa garante o fornecimento de mais de 250 tipos de medicamentos para doenas como a esclerose mltipla, doena de Gaucher, doena de Parkinson, fibrose cstica, artrite reumatide, entre outras. Em 2003 o programa atendia aproximadamente 55 mil pacientes cadastrados no estado de So Paulo, ampliando em 2006 sua clientela para 380 mil pacientes, com gastos estimados ao redor de R$ 840 milhes, divididos entre os governos federal e estadual, um custo aproximado de R$ 2.200,00 por paciente/ano. A dispensao desses medicamentos obedece a protocolos tcnicos, definidos e padronizados pelo Ministrio da Sade, vlidos em todo o territrio nacional2.

O encarecimento da assistncia farmacuticaConsiderando-se os programas em desenvolvimento, inegvel a melhora do acesso da populao aos medicamentos no SUS; entretanto, persistem problemas a discutir com toda a sociedade, se desejamos o aperfeioamento da assistncia farmacutica no Brasil. Conforme visto na introduo, a assistncia farmacutica tem sofrido incrementos de custos em todo o mundo, bem como no Brasil, tornando-se cada vez mais um pesado nus financeiro para o SUS. Entre ns, embora tal fato decorra em parte da incluso de grande nmero de pacientes anteriormente no atendidos pelo setor pblico, outros fatores devem ser objeto de reflexo, como estes pontuados a seguir.

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Informaes adicionais e protocolos disponveis no stio do Ministrio da Sade , no tem de assistncia farmacutica, Programas e Projetos, Medicamentos Excepcionais.

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A medicalizao e o complexo industrial farmacuticoDesde a segunda metade do sculo passado, no foram poucos os professores e mdicos da rea de sade pblica no Brasil a alertar para o aumento excessivo do uso de medicamentos em nossa sociedade, seja por aquisio direta da populao (automedicao), ou por prescries mdicas exageradas, o que poderia trazer conseqncias deletrias para a sade individual e coletiva. A OMS tem alertado freqentemente para a questo do uso irracional de medicamentos, entre os quais a polimedicao, isto , o uso de muitos medicamentos por paciente, a automedicao, o uso inapropriado de antimicrobianos, prescries em desacordo com as indicaes clnicas reconhecidas cientificamente, no apenas pelo desperdcio envolvido, mas principalmente pelo impacto negativo desta situao na sade dos pacientes (WHO, 2006). Tal prtica persiste at hoje e adquiriu determinantes mais complexos, principalmente no contexto do SUS, que tem como princpio constitucional a universalizao do direito sade, nele includo a garantia do fornecimento de medicamentos populao. Devemos reconhecer que nos ltimos anos, com o desenvolvimento de novos frmacos, o avano teraputico tem produzido ganhos inegveis para o tratamento de diversas doenas, mas um grande complicador na rea de medicamentos o enorme complexo industrial farmacutico existente. Como empresas de carter multinacional, com monoplios e domnios de patente, possuem grande poder no estabelecimento de preos e na induo do consumo, pela atuao direta junto aos mdicos e pacientes. O assunto abordado por Angell (2007), ao tratar da agressiva atuao da indstria farmacutica nos Estados Unidos; suas aes incluem a aplicao de elevados recursos em marketing direto ao consumidor, patrocnio de grupos de defesa de pacientes (os quais, a ttulo de aumentar a conscientizao do pblico em relao a uma doena, so na verdade meios de promoo de medicamentos das empresas), aes para influenciar os mdicos por meio de representantes de vendas, presentes, amostras grtis, financiamento de encontros e congressos mdicos, informao educativa dirigida para estimular o

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uso desnecessrio de medicamentos de imitao (modificaes de drogas j existentes, sem vantagens reais para o tratamento), ou novos medicamentos, bem mais caros, porm sem comprovao de superioridade com relao aos medicamentos genricos j utilizados, pagamento de consultorias para participao em pesquisas mdicas relativas aos medicamentos, no dotados de adequado desenho cientfico ou o controle tico dos resultados. No Brasil, as empresas dessa rea tambm realizam aes semelhantes; frente a um mercado cada vez mais controlado nos pases desenvolvidos, encontraram um verdadeiro filo de ouro no pas. Utilizando-se dos preceitos constitucionais da universalidade e integralidade de atendimento, buscam alcanar seus objetivos de ampliar a venda de medicamentos para a populao. Essas empresas realizam intensas campanhas publicitrias junto aos mdicos e as associaes de pacientes com determinadas molstias, apresentando novos e milagrosos medicamentos, muitas vezes sem registro no pas, induzindo sua prescrio pelos profissionais, resultando na exigncia dos pacientes para seu fornecimento pelo setor pblico, utilizando-se, por vezes, a via judicial. Ocorre que muitas das novas formulaes, embora possuam efeitos no comprovadamente superiores aos dos medicamentos j existentes no mercado, tm preos significativamente superiores, configurando uma relao de custo/ efetividade extremamente prejudicial ao sistema de sade. Por exemplo, Angell cita o ensaio clnico denominado ensaio de tratamento anti-hipertensivo e redutor de lipdios para evitar ataques cardacos (em ingls ALLHAT Antihypertensive and Lipid Lowering Treatment to Prevent Heart Attack Trial), realizado nos Estados Unidos pelo Instituto Nacional do Corao, Pulmo e Sangue (parte dos NIH National Institutes of Health), comparando quatro tipos de drogas para tratamento de hipertenso arterial: um bloqueador dos canais de clcio, um bloqueador alfa-adrenrgico, um inibidor de enzima conversora de angiotensina e um diurtico genrico, o mais antigo e barato medicamento entre os quatro. Para grande surpresa de todos, esse ltimo mostrou-se igualmente eficaz para reduzir a presso e at melhor para evitar algumas complicaes da doena (ANGELL, 2007). Alm disso, diversos estudos demonstram a desigualdade da propaganda de medicamentos realizada em diferentes pases, no se respeitando as re-

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comendaes da Organizao Mundial de Sade para esse tipo de propaganda, em especial em pases como o Brasil, tanto nos anncios para o pblico em geral, como naqueles destinados aos mdicos. H omisso de informaes importantes, referentes s contra-indicaes, efeitos colaterais e reaes adversas, alm de utilizao de argumentos exagerados e imprecisos para apregoar as vantagens do produto (PIZOL; SILVA; SHENKEL, 1998. BARROS, 2000. BARROS; JOANY, 2002). O papel do mdico nessa questo central; ao receber forte influncia das propagandas farmacuticas, de forma acrtica e massificante, os profissionais muitas vezes receitam os medicamentos de marca, mesmo com normas legais e orientaes para que as prescries utilizem os medicamentos pelos seus princpios ativos (genricos). A influncia do complexo industrial tambm atinge os pesquisadores mdicos no Brasil; ao receberem recursos das indstrias farmacuticas para a realizao de pesquisas, por vezes, infelizmente, embora com lacunas no desenho metodolgico, concluem apressadamente sobre a suposta superioridade de determinados medicamentos, por sua vez tornados imprescindveis para a terapia de certas doenas, mesmo quando em pases desenvolvidos, com grande tradio na rea de pesquisas mdicas, tais medicamentos ainda se encontrem sob avaliao. Os pacientes so vtimas desse processo; tendo sua esperana de cura estimulada por propagandas enganosas, sem a contrapartida da avaliao mais criteriosa dos riscos e reais benefcios por seu mdico, no poderiam deixar de desejar os medicamentos, inclusive processando judicialmente o SUS para garantir seu fornecimento.

O uso de medicamentos no traz apenas bons resultados preciso salientar que o uso indiscriminado de medicamentos no causa apenas problemas financeiros para as famlias e para o SUS. Questes como o desenvolvimento de resistncias bacterianas e de outros microorganismos aos antibiticos e antimicrobianos, que hoje preocupam autoridades sanitrias em todos os pases, resultaram do uso indevido e abusivo desses medicamentos (WHO, 2005). Arrais (2002), citando Helper e Strand (1990), refere que

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em 1987 foram notificados nos Estados Unidos cerca de 12 mil mortes e 15 mil hospitalizaes por reaes adversas por medicamentos. Nos ltimos anos, contituram-se em nosso pas sistemas de farmacovigilncia em diversos servios hospitalares, para melhorar o conhecimento dessa realidade, certamente presente em nosso meio. Um exemplo dramtico deu-se com a talidomida. Medicamento utilizado como sedativo, ansioltico e anti-emtico, tambm eficaz no tratamento de sintomas presentes na gestao, foi utilizado no Brasil, tal como na Europa, com as conseqncias conhecidas por todos: entre 1958 e 1962, foi observado, principalmente na Alemanha e Inglaterra, mas tambm em outras partes do mundo, inclusive no Brasil, o nascimento de milhares de crianas com graves deformidades congnitas, caracterizadas pelo encurtamento dos ossos longos dos membros superiores e/ou inferiores, com ausncia total ou parcial das mos, ps e/ou dos dedos (focomelia) (OLIVEIRA; BERMUDEZ, SOUZA, 1999). Seu uso foi suspenso para grvidas, mantendo-se atualmente apenas para algumas reaes no tratamento da hansenase, com todos os cuidados no sentido de verificar o estado gestacional das pacientes. Nos Estados Unidos, onde a talidomida no chegou a ser licenciada para comercializao em razo de exigncias adicionais sobre segurana no uso de novos frmacos, impostas pela agncia regulatria americana, o Food and Drug Administration (FDA), esta saiu fortalecida do episdio, passando a assumir a coordenao de todas as atividades relativas poltica de regulao de medicamentos naquele pas, a partir da emenda Kefauver-Harris de outubro de 1962 (OLIVEIRA; BERMUDEZ; SOUZA, 1999). O mesmo pode ser lembrado para o medicamento rofecoxibe (nome comercial Vioxx); utilizado at h pouco em inflamaes crnicas e artrites, foi retirado do mercado pelo prprio fabricante aps comprovao de efeitos cardiovasculares indesejveis e graves em diversos pacientes (MERCK SHARP; DOHME, 2004). A Secretaria de Estado da Sade de So Paulo iniciou, em 1998, um sistema de farmacovigilncia no estado visando obter conhecimentos sobre os efeitos adversos dos medicamentos sobre a sade da populao. No perodo

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de janeiro de 2005 a maro de 2006, o Ncleo de Farmacovigilncia recebeu aproximadamente 9000 notificaes de suspeitas de reao adversa a medicamentos (CVS, 2006). Mais recentemente, tivemos o caso do medicamento lumiracoxibe (nome comercial Prexige), outro antiinflamatrio com cerca de 300 notificaes de suspeitas de reaes adversas graves pelo sistema de farmacovigilncia do SUS/SP. Por esse motivo, foi considerado um medicamento que exige cuidados especiais para sua prescrio, conforme atesta o alerta teraputico publicado pelo Centro de Vigilncia Sanitria da Secretaria de Estado da Sade (CVS, 2007). Nesse caso especfico, estudos internacionais indicaram que o novo medicamento no possua vantagens teraputicas significativas quando comparado com outros medicamentos tradicionalmente utilizados em inflamaes (RDTC, 2006. NICE, 2007). Medicamentos so drogas, nunca demais lembrar; se usados em dosagens inadequadas ou prescritos equivocada ou aodadamente, podem produzir um efeito danoso, muitas vezes fatal para os pacientes. Portanto, fundamental que os gestores de sade do SUS cuidem de sempre bem observar essa realidade, no se deixando levar por pesquisas apressadas, interesses comerciais e de mercado, modismos sem fundamentao cientfica adequada, garantindo assim o objetivo maior da sade pblica, qual seja, preservar e garantir a qualidade de vida da coletividade.

Medicamentos no substituem bons hbitos de vidaUma das formas de procurar reduzir a medicalizao na sociedade, a busca de prticas e aes de promoo e proteo da sade, capazes de limitar e reduzir o consumo de medicamentos. Exemplos: sabe-se que meia hora de atividade fsica diria, acompanhada de orientao nutricional adequada, melhora o peso, previne distrbios metablicos de acares e gorduras, reduz os riscos de doenas vasculares, baixa a presso arterial, previne a osteoporose, diminui os casos de depresso, entre outros efeitos, substituindo assim, com benefcios para a sade, a utilizao de muitos medicamentos para doenas atualmente comuns, como a hipertenso arterial, a obesidade, o diabetes, a osteoporose, a depresso, etc. Angell (2007) cita pesquisa realizada pelos NIH National Institutes of Health comparando o uso de placebo, do medicamento metformina (hipo-

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glicemiante), e um programa de exerccios e dieta. Embora o medicamento tenha apresentado melhor resultado que o placebo na reduo do surgimento de diabetes, foi o programa de exerccios que conseguiu os melhores resultados na preveno da doena. Porm, como observa a autora, tanto os pacientes (por fora das propagandas), como os mdicos (por fora da falta de tempo para realizar atividades educativas), tendem a preferir os medicamentos. Trata-se de um processo lento, de mudana de valores, atitudes e hbitos de vida, porm capaz de produzir resultados em muitos pases. O prprio mdico precisa valorizar esse conhecimento, evitando a substituio de orientao e mudana de hbitos pela receita de medicamentos; embora mais rpida, prtica muitas vezes desnecessria e perniciosa para o paciente.

O desenvolvimento de protocolos e normas de utilizao para os medicamentosEm vrios pases desenvolvidos com sistemas universais de sade, h preocupao com a metodologia de avaliao e comparao de novas tecnologias, inclusive medicamentos, envolvendo quesitos como segurana, eficcia, possibilidade e indicao do uso, uso em sade pblica, custos e medidas de resultados, reflexos econmicos e ticos, entre outros. Como exemplo, no Reino Unido o National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE), ligada ao National Health Service (NHS), desenvolve os protocolos dos procedimentos intervencionistas e avaliaes tecnolgicas dos frmacos. Na Espanha, existe a COHTA, agncia pblica ligada ao Servio de Sade Catal; no Canad, o trabalho realizado pela Canadian Coordinating Office for Health Technology Assessment (CCOHTA), financiada por governos nos trs nveis e tendo por foco a utilizao de evidncias e efetividade clnica e econmica. Apesar de possurem recursos para a rea de sade muito mais elevados do que o Brasil, nesses pases permanece a preocupao com a avaliao tecnolgica e a incorporao de novas tcnicas e medicamentos no sistema. Em todos prevalece a clara noo da inexistncia de bondade gratuita no setor pblico: a garantia de determinado benefcio impedir o acesso da populao a outros. Assim, o uso racional e o financiamento dos medicamentos no uma questo de interesse apenas nacional, o aumento exagerado dos custos de novas tecnologias na ateno mdica, em especial dos medicamentos, tem

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gerado discusses sobre o tema em diversos pases, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Propostas no mbito da farmacoeconomia, da farmacoepidemiologia e/ou da farmacovigilncia tm sido desenvolvidas no sentido de conhecer a dimenso, as causas e os efeitos do uso dos medicamentos, reduzir os riscos para os pacientes, adequar os gastos e obter a melhor efetividade no uso dos medicamentos, garantindo maior eqidade em sua distribuio pelos sistemas pblicos (COLHO, 1998. MADRID; VELSQUEZ; FEFER, 1998. VELSQUEZ, 1999. ABAJO, 2001). A prtica de registros limitados para novos medicamentos, enquanto esto sendo avaliados por centros universitrios e cientficos, tem sido utilizada por alguns pases. Para se garantir o registro definitivo so exigidos estudos comprovando a eficcia dos medicamentos deve ficar clara a superioridade de um novo medicamento em relao ao utilizado at ento, para se autorizar um novo registro, saber, simplesmente, que a nova droga funciona para tal doena, no condio suficiente. Outras iniciativas, no sentido de desenvolver protocolos e normas de utilizao de medicamentos, tm sido tomadas em So Paulo em questes de interesse para o estado, complementando os protocolos para medicamentos excepcionais j disponibilizados pelo Ministrio da Sade. Em 2007 foram elaboradas e publicadas normas tcnicas disciplinando o uso de palivizumabe para a preveno da infeco pelo vrus sincicial respiratrio VSR (Resoluo da Secretaria de Estado da Sade RSS n.. 249/2007), o protocolo de tratamento para doena pulmonar obstrutiva crnica DPOC (RSS n.. 278/2007), a incluso do aripiprazol na relao de medicamentos para tratamento da esquizofrenia, no mbito do estado de So Paulo (RSS n.. 295/2007), o protocolo clnico que regulamenta as indicaes de medicamentos relacionados preveno da sintomatologia e ao tratamento da hipertenso arterial pulmonar HAP (RSS n. 321/2007)3.

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Normas diponveis em , no tem de assitncia farmacutica.

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Buscando o aperfeioamento desse trabalho, a Secretaria de Estado da Sade estabeleceu parceria em 2007 com a Associao Mdica Brasileira (AMB) e com a Associao Paulista de Medicina (APM) para criar protocolos clnicos de conduta mdica para diversas doenas, como diabetes, hipertenso arterial, patologias psiquitricas e outras que forem prioritrias para o SUS. O objetivo dos protocolos reunir todas as informaes essenciais sobre cada doena, baseadas em pesquisas e evidncias clnicas, padronizando a tomada de deciso quanto prescrio de medicamentos e a realizao de exames de diagnstico. Portanto, quanto ao consumo dos medicamentos, preciso convencer a todos os interessados, populao, mdicos e autoridades judiciais, da importncia de desenvolver e respeitar os protocolos de utilizao dos frmacos, elaborados pelo Ministrio da Sade, com a participao das associaes mdicas e centros universitrios reconhecidos. Evitando-se desperdcios de recursos pblicos, ocasionados por prescries inadequadas e sem embasamento tcnico-cientfico. A histria da sade pblica no pas tem demonstrado a importncia dos protocolos, como no caso da tuberculose, da AIDS, da malria e outras, j citados. sempre bom lembrar que o negcio da indstria farmacutica vender remdios, principalmente se forem os mais caros e lucrativos, mesmo que no tenham resultados comprovadamente superiores ou fiquem sem uso nos armrios dos pacientes, enquanto o do SUS tratar os pacientes de forma mais eficiente, para que os recursos existentes possam atender s necessidades de medicamentos de todos. So objetivos muito diferentes.

Como continuar a desenvolver a assistncia farmacutica no SUS?A intensificao no uso de genricos, a avaliao tcnica dos novos frmacos, o estabelecimento de protocolos para os medicamentos de alto custo e a farmacovigilncia so ferramentas imprescindveis em nosso meio, se desejamos garantir a universalidade, a integralidade, a eqidade, a racionalidade e a segurana, na assistncia farmacutica no SUS.

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A questo das sentenas judiciais para fornecimento de medicamentos tambm precisa ser objeto de reflexo. Alguns trabalhos sobre esse tema tm apontado aspectos negativos na concesso de medicamentos por via judicial: desconsiderao da diviso de responsabilidade tripartite de organizao do sistema, aquisio de medicamentos no registrados pela Agncia de Vigilncia Sanitria ANVISA do Ministrio da Sade MS, despreocupao das instncias condutoras e julgadoras das aes com as questes relativas ao uso racional dos medicamentos e os possveis danos oriundos da m indicao e do mau uso, descumprimento de protocolos clnicos pelos mdicos prescritores, prejuzo eqidade na distribuio de medicamentos, entre outros (MESSEDER; OSORIO-DE-CASTRO; LUIZA, 2005. VIEIRA; ZUCHI, 2007). Entretanto, no se pretende aqui atribuir culpa ao Poder Judicirio pela judicializao da poltica de assistncia farmacutica no SUS, uma vez que o resultado do julgamento das aes propostas decorre de interpretaes e aplicaes legtimas da lei brasileira. Trata-se antes de procurar esclarecer as autoridades que buscam a aplicao justa da lei, os motivos pelos quais necessria a aplicao de mecanismos de planejamento e de avaliao, para que os gestores de sade possam fornecer os frmacos de forma mais adequada, eqitativa e segura populao. Os medicamentos fornecidos pela Secretaria de Estado da Sade, tal como por outros rgos do SUS, devem possuir registro na ANVISA/MS e devem ser distribudos segundo indicaes e protocolos clnicos e diretrizes teraputicas. Em geral as aes judiciais demandam a concesso de medicamentos no constantes do rol dos medicamentos padronizados pelo Ministrio da Sade, tratando-se habitualmente da prescrio, por mdicos ou servios de sade, de medicamentos de marca muitas vezes ainda no aprovados em outros pases e alguns, sequer registrados na ANVISA. Nesses casos, a secretaria procura avaliar a necessidade do medicamento, ou seja, as indicaes clnicas, a existncia de alternativas com efeito semelhante e custo mais baixo. A experincia permite concluir que, na maior parte dos casos, pode-se substituir o frmaco indicado por outro medicamento padronizado. Mesmo quando existe a necessidade de concesso por via admi-

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nistrativa, por no existir equivalente padronizado, a secretaria entende existir a necessidade de receita ou avaliao de rgo pblico do SUS. Tanto no caso de prescries de medicamentos pelo nome comercial (apesar das normas indicativas do uso pelo princpio ativo), como naquelas que no observam os protocolos desenvolvidos e aceitos pelo sistema, a Secretaria de Estado da Sade v a necessidade de revises tcnicas e ticas, nas quais o profissional, aps a adequada orientao, deve ter justificativas tcnicas cabveis para a atitude de no seguir os protocolos. Fique claro que no se trata de reduzir os gastos do sistema com os medicamentos, mas sim de utiliz-los de forma mais racional, permitindo a ampliao da cobertura e da variedade de medicamentos fornecidos para a populao. Urge, portanto a discusso sobre o uso racional dos medicamentos e o estabelecimento de mecanismos e acordos entre os gestores de sade do SUS, o Ministrio Pblico e o Poder Judicirio, para que as solicitaes de medicamentos feitas pela via judicial possam ser previamente analisadas e avaliadas tecnicamente, por grupos tcnicos respeitados pelas instncias envolvidas, subsidiando de forma mais adequada, as decises judiciais. Experincia nesse sentido foi desenvolvida na regio de Ribeiro Preto, entre o Ministrio Pblico, representantes do Hospital Universitrio e do Departamento Regional da Secretaria de Estado da Sade, com anlise tcnica prvia de solicitaes de medicamentos, facilitando e fornecendo importantes informaes para subsidiar as decises judiciais quanto adequao das prescries mdicas, de forma a racionalizar as condutas medicamentosas. Reconhece-se ainda a necessidade de novas regulamentaes legais que detalhem aspectos da execuo da assistncia farmacutica pelo SUS, estabelecendo legalmente o papel dos gestores na adoo formal de medicamentos pelo sistema e na aprovao de protocolos, tornando a distribuio pblica de medicamentos mais justa e eqitativa. Por outro lado, tal como a maioria dos governos desenvolvidos, o Brasil deveria estudar melhor a prtica atual de propaganda dos produtos farmacuticos para o pblico em geral e para a classe mdica em particular, objetivando aperfeioar sua regulamentao e limitao, quando for o caso.

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ConclusesToda poltica de Estado de carter social tem implementao gradativa (o SUS de 1988), e exige aumento de recursos, os quais sempre sero finitos, com aplicao eqitativa (seguindo o adgio mais para quem tem menos). Na assistncia farmacutica tambm preciso buscar eficincia no setor pblico, para atender mais e melhor. Contudo, a integralidade nessa rea de ateno no pode ser entendida como a obrigao, pelo SUS, de dar todo e qualquer medicamento solicitado, para qualquer doena, sem obedecer norma de utilizao. Como a experincia nacional e internacional tem demonstrado, garantir medicamentos para todos exige o estabelecimento de um rol de medicamentos essenciais e de alto custo, a definio de normas tcnicas (protocolos) com embasamento cientfico para utilizao racional dos frmacos, a opo por medicamentos genricos e mais baratos, sempre que no houver comprovao cientfica da superioridade de novos medicamentos de marca, muito mais dispendiosos para o sistema. Os gestores do SUS precisam unir esforos e buscar o auxlio de todos os interessados (Poderes Legislativo, Judicirio e representantes da sociedade civil) para criar mecanismos mais eficientes, geis e justos para a distribuio de medicamentos, buscando solues factveis e economicamente sustentveis para o aperfeioamento da assistncia farmacutica no Brasil.

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Planos de sade: regulao e conseqncias no desejadas

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JOS CECHIN Superintendente executivo do Instituto de Estudos de Sade Suplementar, ex-ministro da Previdncia e Assistncia Social. BRUNO DUTRA BADIA Mestre em Economia pelo Cedeplar (UFMG), e consultor do Instituto de Estudos de Sade Suplementar.

IntroduoDesde 1999, os planos e seguros de sade no Brasil so regulados pelas normas expostas na Lei 9.656. Em 2000, a Lei 9.961 criou a Agncia Nacional de Sade Suplementar, a qual passou a ser o principal rgo responsvel pela regulao da indstria da sade suplementar. Antes das referidas leis no havia regulao especfica da indstria exceto para as seguradoras, submetidas s normas da Susep, levando constantes queixas dos beneficirios dos planos no Pas, dado, aparentemente, nem sempre serem os contratos regidos por regras claras. Sem dvidas, essa insatisfao foi um dos motivos que levaram proposta e posterior aprovao da regulao.

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Outros motivos que levaram regulao da sade suplementar foram as falhas de mercado, isto , desvios das suposies essenciais ao funcionamento eficiente de mercados perfeitamente competitivos. Mercados de ateno sade e mercados seguradores sabidamente apresentam algumas dessas falhas. Mais especificamente, assimetrias de informao. Um mdico, por exemplo, sabe mais das condies de sade e tratamento adequado a um seu paciente do que o prprio paciente. Demandantes de planos de sade possuem mais informao sobre seus estados de sade, hbitos de vida, etc., do que as operadoras. De fato, a lista de exemplos extensa. Diante destas (e outras) falhas de mercado, natural que propostas de regulao venham tona. Geralmente, o argumento a sustentar tais propostas o potencial ganho de eficincia a partir da regulao visando a correo dessas falhas. A seguir, argumenta-se que nem sempre esse o caso.

Conseqncias no planejadas da regulaoAo menos desde Adam Smith, ao humana (ou de agentes econmicos), so creditadas conseqncias no planejadas. O exemplo clssico parte do prprio autor, ao constatar que em uma sociedade aparentemente catica, com elevado nmero de indivduos, cada qual agindo em seu prprio interesse, as relaes de troca resultam em um ambiente harmonioso. A harmonia originada pela ao desorganizada dos membros da sociedade se deve, no dizer de Adam Smith, mo invisvel do mercado. Naquele exemplo, a conseqncia no planejada da ao individual (a ao fundamentada no prprio interesse), resulta em ambiente favorvel a todos os membros da sociedade. Evidentemente, nem todas as conseqncias no planejadas possuem tal propriedade. Por exemplo, um governo pode planejar diminuir a desigualdade de renda via programas de transferncia. No entanto, ao adotar programa dessa natureza e garantir renda mnima aos cidados, um mecanismo de incentivo perverso implementado: beneficirios do programa so desestimulados a procurar emprego e, provavelmente, a capacitarem-se para tanto. Uma vez que a renda deixa de ser transferida, os indivduos beneficirios do programa voltam condio inicial de pobreza. Por isso, critrios de condicionalidade, como estar matriculado em instituio de ensino, por exemplo, so de extrema importncia para o sucesso desses programas.

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A regulao do mercado de sade suplementar teve como uma de suas principais finalidades, como j observado, atender ao desejo dos consumidores por regras mais claras em sua relao contratual com as operadoras de planos e seguros de sade. O estabelecimento de tais regras poderia levar a uma ampliao da demanda por planos de sade, o que, finalmente, desafogaria o gargalo do SUS. Uma das medidas da regulao foi estabelecer a variao das mensalidades de acordo com faixas etrias. Como regra geral, estabeleceu-se que da ltima faixa etria pudesse ser cobrada uma mensalidade no mximo seis vezes superior cobrada da primeira faixa etria (posteriormente definiu-se que a variao entre a 1 e a 7 faixa etria deveria ser igual variao entre a 7 e a 10 faixa etria)4. O objetivo da regra foi o estabelecimento de subsdio cruzado entre os grupos etrios de menor e maior risco, isto , dos mais jovens para os mais idosos. Esse o princpio da solidariedade intergeracional. No entanto, a regra encareceu o plano para os mais jovens, os quais passaram a optar por no t-lo ou a adiar sua adeso ao plano. De fato, Maia et. al. (2007)5, mostram que um dos efeitos da regulao foi a reduo da probabilidade de indivduos de faixas etrias mais jovens comprarem planos, enquanto indivduos de grupos etrios com idades maiores tiveram essa probabilidade aumentada (Tabela 1), mantendo relativamente estvel a taxa de cobertura total. Na Tabela 1, observa-se que a probabilidade mdia de ter plano de sade elevou-se em maior medida entre os indivduos com 70 ou mais anos. Para os indivduos com idades entre 50 e 69 anos, os nmeros mostram que a probabilidade estimada manteve-se constante. Alm disso, destaca-se na Tabela 1 o fato de a probabilidade mdia ter cado para os indivduos entre 30 e 49 anos. Tais indivduos compem boa parte da populao em idade ativa e, portanto, constituem a base do esquema de solidariedade entre as geraes.

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Um Projeto de Lei em tramitao no Congresso Nacional prope que a diferena mxima seja de quatro e no mais seis vezes. Evidentemente, o efeito adverso, mostrado a seguir, ser agravado no caso da aprovao do projeto. MAIA, A. C.; ANDRADE, M. V.; RIBEIRO, M. M.; BRITO, R. J. A. Estudo Sobre a Regulao do Setor Brasileiro de Planos de Sade. SEAE/MF. Documento de Trabalho n 37. 2007.

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No caso dos indivduos com idade entre 18 e 29 anos, o efeito no claro, provavelmente pelo fato de misturar pessoas j ingressas no mercado de trabalho e, portanto, com capacidade de pagarem pelo prprio plano, e outras que ainda se enquadram como dependentes nos planos.Tabela 1 Probabilidade mdia da demanda por planos de sade segundo grupo etrio.Probabilidade mdia de ter plano* Grupos etrios 0 a 17 anos 19 a 29 anos 30 a 39 anos 40 a 49 anos 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 e mais anos 1998 0,214 0,227 0,290 0,310 0,296 0,283 0,259 2003 0,194 0,223 0,263 0,294 0,301 0,282 0,294 Probabilidade mdia de ter plano** 1998 0,066 0,074 0,103 0,124 0,145 0,145 0,131 2003 0,067 0,078 0,095 0,118 0,147 0,149 0,165

*Qualquer tipo de contratao individual ou coletiva. **Exclusivamente planos individuais. Fonte: MAIA, et. al. (2007), com base em dados das PNADs de 1998 e 2003.

O problema reside justamente no fato de o financiamento da sade suplementar ser baseado em regime de solidariedade intergeracional. Sabidamente, o avano da idade vem acompanhado da elevao do gasto em sade, seja pelo aumento da demanda de tratamento de doenas crnicas, seja pela maior preocupao com aes preventivas. A relao de custos da primeira para a ltima faixa etria bem superior a seis vezes. Dessa forma, a transio demogrfica, aumentando a proporo de idosos na populao, o retardamento da entrada dos jovens nos planos e o envelhecimento das carteiras das OPS, podem implicar sua insustentabilidade financeira e, no limite, deixar a populao de beneficirios, principalmente os idosos, sem cobertura. Certamente no essa a inteno da regulao, a qual, pelo contrrio, objetiva dar maior segurana aos consumidores de planos e seguros de sade.

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Em certa medida, isso explica o direcionamento do mercado para os planos coletivos (Grfico 1). Nesse caso, os riscos associados ao envelhecimento acelerado das carteiras so minimizados. Como o reajuste de prmios dos planos coletivos baseia-se na livre negociao entre as partes, erros atuariais e custos imprevistos no contrato original (incorporao tecnolgica, por exemplo), podem ser corrigidos e cobertos. As empresas especializadas em coberturas de risco optaram por evitar os riscos da regulao muito mais incertos dos planos individuais.Grfico 1 Beneficirios, por tipo de contratao e total dez/00-mar/08

Fonte: Caderno de Informao ANS: junho 2008.

Vale destacar, no entanto, a existncia de projetos de lei objetivando alterar as regras atuais que ditam a relao dos aposentados com os planos coletivos, regida pelo artigo 31 da Lei 9.656. Em grandes linhas, os projetos prevem a manuteno de aposentados nos planos mesmo que no tenham contribudo por tempo mnimo. Assim a massa de participantes de planos de empresas tenderia ao envelhecimento acentuado, talvez mais do que o envelhecimento populacional. Necessariamente, os custos de tais planos aumentariam muito, onerando a empresa ou o conjunto dos participantes, seja por instituio

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ou incremento de participao no pagamento das mensalidades, seja por redefinio da rede de atendimento ou excluso de dependentes. Os efeitos destes projetos so evidentes, como atesta o exemplo da General Motors. Essa empresa vem sistematicamente perdendo participao no mercado, pois os benefcios estendidos aos aposentados encarecem os preos de seus automveis, os quais assim perdem competitividade6.

PropostasNo objetivo da regulao deixar os idosos sem cobertura, muito menos limitar a capacidade de crescimento do setor pela estagnao dos planos individuais ou retardar a entrada de jovens no sistema suplementar. , portanto, de extrema importncia a formulao de propostas capazes de solucionar esse problema. Uma sugesto seria rever a regra que estabelece a relao de seis vezes entre os preos cobrados da primeira e da ltima faixa etria. A relao de mensalidades deveria manter proximidade com a relao de riscos entre essas duas faixas etrias extremas. O aumento dessa proporo permitiria preos mais acessveis aos jovens e pessoas em idade ativa, possibilitando o crescimento da populao coberta pelas OPS com importantes efeitos positivos de escala e diluio do risco. Contudo, a elevao da proporo entre as faixas etrias extremas encareceria ainda mais o preo para os idosos, agravando um problema j grave. Essa situao poderia ser contornada pelo desenvolvimento de produtos que permitissem a formao de poupana-sade. Produtos com poupana-sade no substituiriam os atuais, mas seriam ofertados como mais uma opo. Seriam atrativos para aqueles (mais jovens), que ainda tivessem tempo suficiente para acumular reservas para custear o plano na idade avanada.

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Segundo a Revista Exame (27/04/2005), a GM gastou cerca de US$ 5,3 bilhes em 2003 com plano de sade para 1,1 milho de funcionrios, aposentados e dependentes. O montante representava 5% de todas as suas vendas no mercado norte-americano.

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No Grfico 2, apresenta-se uma simulao para o montante acumulado por um indivduo at os 60 anos de idade, capitalizando uma parte da mensalidade, a uma taxa de juros de 4% a.a.7 Note-se que, a partir dos 60 anos, o indivduo passa a despender os recursos acumulados para financiar as mensalidades mais altas do plano. Em uma simulao com pequeno adicional sobre o custo do risco, o volume de capital acumulado seria suficiente para a manuteno dessa cobertura at os 78 anos. Dado que a taxa de juros utilizada relativamente baixa e que, no Brasil, um indivduo aos 60 anos espera viver at os 80 anos, o potencial da poupanasade como alternativa vivel evidente. Uma forma de se desenvolver esse novo tipo de produtos seria desenhar incentivos fiscais que levassem os mais jovens a poupar a diferena entre o menor preo (posterior ao aumento da razo atualmente vigente), e o preo antigo.Grfico 2 Simulao do montante acumulado ao longo do ciclo de vida

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No exerccio foram utilizados dados referentes a 7,5 milhes de vidas de um conjunto de OPS.

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Nesse caso, no haveria reduo nem aumento de mensalidade, mas parte dela cobriria o risco corrente, enquanto a outra parte seria acumulada e capitalizada em nome do beneficirio. Observe-se que a proposta no implica o fim do mutualismo; pelo contrrio, este continuaria sendo a base do sistema o risco continuaria sendo coberto mutuamente em cada faixa etria. Dessa forma, o subsdio intergeracional seria convertido em transferncia intertemporal de cada indivduo. O montante acumulado ao longo dos anos de vida ativa serviria para o pagamento das maiores mensalidades do plano na idade avanada. Que fique bem claro: os recursos acumulados pelos produtos poupanasade no se destinariam para o financiamento integral das despesas individuais com sade na ltima faixa etria. A grande incerteza sobre o montante de despesas mdicas na idade avanada exigiria de cada beneficirio o acmulo de vultosos recursos em sua conta de poupana-sade os quais ainda assim poderiam ser insuficientes para umas poucas pessoas. Para a grande maioria, no entanto, os gastos seriam menores e esses beneficirios chegariam ao fim da vida com saldos altos nessas contas. O esquema seria socialmente ineficiente. Por isso, os recursos acumulados se destinariam a custear as mensalidades mais altas dos planos para os idosos. Os produtos deveriam ser desenhados de forma a estimular a maior responsabilizao dos indivduos por sua sade, induzindo-os adoo de hbitos saudveis de vida e utilizao no perdulria dos recursos da assistncia mdico-hospitalar. As contas de poupana-sade americanas (Health Savings Accounts), so exemplos desse tipo de produto. Trata-se de plano com franquia que, se no utilizada no ano, deve ser poupada em contas de aplicao com incentivos tributrios. Planos com franquia tm mensalidades bastante menores do que os planos sem franquia, sendo, portanto acessveis a maiores parcelas da populao. Atuam no mesmo sentido, mecanismos permitindo a discriminao de riscos por hbitos de vida menor prmio permitiria acumular fraes maiores das mensalidades.

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ConclusoNo texto discutem-se aspectos da regulao do mercado de planos e seguros de sade no que diz respeito s possveis conseqncias no planejadas (e no desejadas), da regulao. Mostra-se que aes no embasadas em cuidadoso planejamento prvio podem resultar em situaes nas quais o beneficio social extrado da regra nulo ou mesmo negativo. Particularmente, observa-se que o subsdio cruzado objetivado com o estabelecimento de uma diferena mxima entre as mensalidades cobradas entre a primeira e ltima faixa etria de reajuste para os planos e seguros de sade, pode, de fato, reduzir a propenso dos mais jovens em aderir a tais planos. No limite, o efeito desse comportamento pode ser bastante adverso, dado o regime de repartio simples no qual se baseia a sade suplementar do Pas. O problema reforado pelo acelerado processo de envelhecimento populacional experimentado no Brasil. Como alternativa, prope-se a criao de produtos de poupana-sade. O aumento da proporo entre as mensalidades das faixas etrias extremas permitiria reduzir as mensalidades para todas as faixas etrias, exceto a dos mais idosos, estimulando a adeso a planos dessas faixas etrias. A reduo das mensalidades poderia ser acumulada na forma de poupana-sade capitalizada a ser utilizada para financiar o prmio mais elevado da ltima faixa etria.

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BibliografiaMAIA, A. C.; ANDRADE, M. V.; RIBEIRO, M. M.; BRITO, R. J. A. Estudo Sobre a Regulao do Setor Brasileiro de Planos de Sade. SEAE/MF. Documento de Trabalho n 37. 2007. Revista Exame, 27/04/2005.

Os desafios para a sustentabilidade na sade suplementar no Brasil

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MARIA STELLA GREGORI Advogada, mestre em Direito pela PUC/SP, professora assistente mestre de Direito do Consumidor e Direitos Humanos da PUC/SP, foi diretora da Agncia Nacional de Sade Suplementar ANS.

O presente artigo objetiva abordar sucintamente a mudana de paradigma trazido pela Constituio Federal de 1988 para o ordenamento jurdico das questes da sade e da proteo do consumidor. Tendo como escopo a prestao privada da assistncia sade, analisa brevemente o cenrio em que o Brasil se encontra nesse quesito e quais so os desafios necessrios para sua efetiva implementao, visando alcanar a to almejada qualidade da assistncia sade com foco no consumidor. Levando em conta a transparncia, os valores e princpios ticos, demonst