PENAFRIA, Manuela. Imagens e Sons

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    Propostas de realizao: imagens e sons do passado

    e imagens e sons do presente

    Manuela Penafria

    Introduo

    O cinema documentrio lembra-nos constantemente a nossa presena no mundo,

    lembra-nos que fazemos parte do mundo e que interagimos com ele. O documentarista

    trabalha materiais que, na sua maioria, tm origem no registo in loco: entrevistas,

    depoimentos, som ambiente mas, tambm, legendas, msica, re-construes e comentrios,

    textos ou poemas em voice-over A seleco e interligao desses materiais estar aqui em

    destaque a partir de propostas de realizao, ou seja, a partir de filmes concretos. Discutir os

    modos de abordar os acontecimentos do mundo e a vida das pessoas implica fazer um trabalho

    retrospectivo. No se trata de apresentar os modos possveis, mas os que efectivamente j se

    concretizaram, ou seja, dar conta dos modos que o documentrio j adoptou. Assumindo este

    texto um carcter exploratrio, iremos partir de abordagens ao real que serviro de pretexto

    para identificar propostas de realizao cinematogrfica. Assim, faremos uma distino entre

    imagens e sons do passado, ou seja, o acervo disponvel para ser utilizado pelos cineastas, e

    a expresso imagens e sons do presente dir respeito s imagens e sons recolhidos

    propositadamente para um filme.

    Nas imagens e sons do passado inclumos, essencialmente, as imagens de arquivo e

    os vdeos caseiros. As primeiras so as imagens preservadas pelos arquivos oficiais ou

    estatais ou na posse de instituies, como os canais de televiso. Em geral, estas so imagens

    conhecidas por todos e, como o prprio nome indica, encontram-se arquivadas.1 So imagens

    de acontecimentos do nosso mundo, com a importante funo de preservao da memria

    colectiva (ainda que possam ser uma re-construo). A este acervo podemos incluir todos osfilmes j realizados pois as suas imagens so passveis de integrarem outro filme. J os vdeos

    caseiros so, por assim dizer, arquivos familiares. No imediato, possuem um valor mais

    restrito, inserem-se na memria individual ou familiar. Mas, tal como as anteriores, so

    capazes de valorizar os filmes que entendam integr-los. Quanto s imagens e sons do

    1 Por cada acontecimento h imagens que os relembram e que circulam (o mais das vezes como merasilustraes, tipo postais ilustrados). No difcil reconhecermos os acontecimentos pelas imagens que sobre

    ele permaneceram: a bomba de Hiroshima, a praa de Tianamen, a queda do muro de Berlin, Guerra do Golfo, o11 de Setembro de 2001 (sobre o qual tambm existem registos de amadores do embate dos avies e a queda dasTorres do World Trade Center pelos canais de televiso), etc.

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    presente, pretendemos dar conta da cmara do documentrio no terreno, a perscrutar o nosso

    mundo. A cmara do documentrio tem a particularidade de se colocar no terreno, pisa o

    mesmo cho que os intervenientes. A fim de darmos conta das imagens e sons do presente

    iremos apresentar solues de realizao a partir de ideias frequentemente associadas praxis

    documental.

    Imagens e sons do passado

    As imagens de arquivo, imagens que nos mostram acontecimentos passados so, o

    mais das vezes, remetidas para a qualidade de prova; apresentam-se como sinnimo de

    documento sobre um acontecimento passado. No documentrio, encontramos a possibilidade

    de utilizar essas imagens de modo crtico. Encontramos, tambm, a possibilidade de uma re-

    organizao do material de arquivo. O acervo imagtico imenso e disponvel para novas

    contextualizaes e re-contextualizaes. Este um material disponvel a infinitas montagens

    e re-montagens, permitindo que a nossa histria e a histria do cinema se escrevam e re-

    escrevam constantemente.

    Os filmes compostos por imagens de arquivo so, em geral, denominados filme de

    compilao oufilme de montagem e tm na montagem o seu principal recurso. Apesar disso,

    preferimos usar a expressofilme de compilao j quefilme de montagem refere-se a filmes

    que exploram o recurso da montagem, mesmo quando no esto em causa imagens de

    arquivo. As fontes para este tipo de filmes so diversas: arquivos cinematogrficos,

    actualidades, imagens televisivas ou retiradas de filmes, registo de acontecimentos por

    amadores Trata-se de fazer uso de imagens e sons que no foram registradas pelo realizador

    e reorganiz-las numa nova estrutura; retirar esse material do seu contexto original, dando-lhe

    um outro ou novo sentido. O aspecto mais interessante deste investimento sobre as imagens

    de arquivo rasgar a autoridade que as mesmas arrastam consigo. A constante oscilao

    entre tirar um sentido e forar o sentido de imagens que j existem est no cerne de todos osfilmes de montagem.2 Tirar, forar, introduzir ou acrescentar sentido, sem derrapar na mera

    manipulao ou numa qualquer forma gratuita de propaganda resultar, seguramente, em algo

    inovador.

    No auge do formalismo sovitico, Esther Shub pontua uma outra potencialidade da

    montagem enquanto recurso capaz de dar sentido s imagens. A montagem, cujo potencial

    conhecemos desde o clebre efeito Kulechov e explorado at exausto pelo cinema

    2 Antnio A. Rodrigues in AAVV, 2001, Olhar de Ulisses,Resistncia, Vol. IV, Ed. Porto 2001-CapitalEuropeia da Cultura, p.189.

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    sovitico dos anos 20 (sobretudo Eisenstein e Vertov), tem um papel importante naquele que

    j um dos sub-gnero do documentrio: ofilme de compilao.

    A Queda da Dinastia Romanov (1927), de Esther Shub, que comemora os dez anos da

    Revoluo de 1917, permanece na histria do cinema como o filme de referncia no que diz

    respeito ao filme de compilao. Shub reuniu material para ficar claro o contraste entre a

    classe dominante, os Czares, e a dominada, o povo russo, exaltando assim o benefcio da

    Revoluo. A Queda da Dinastia Romanov encontra-se dividido em quatro partes que

    certamente preexistem s imagens de arquivo utilizadas: 1) a Rssia Czarista; 2) a

    preparao da guerra imperialista; 3) a guerra; 4) a Revoluo de Fevereiro e a queda da

    dinastia Romanov que d ttulo obra. A primeira e a ltima parte so formadas pelo material

    preexistente () e cujo sentido ela s vezes fora () como o raccordentre as burguesas que

    enxugam o rosto depois de danarem e o campons que enxuga o suor do seu rosto, ou ainda a

    superposio entre a notcia da abdicao do czar e as imagens de uma multido que aplaude.

    Estes so exemplos da montagem como pura forma de propaganda, um dos efeitos mais

    eficazes, mais temveis e mais desprezveis da montagem de imagens. A segunda e a terceira

    parte no parecem emanar do material disponvel. As imagens parecem ter sido escolhidas

    para ilustrar uma estrutura narrativa pr-determinada: as imagens de soberanos e polticos

    europeus, que aproximam os seus pases da Rssia czarista, numa viso bastante superficial.

    A maior abundncia de imagens disponveis da guerra faz com que este terceiro captulo

    tenha uma extenso um pouco deproporcionada em relao ao conjunto do filme.3 A dado

    momento do filme, um conde e a sua mulher tomam ch num jardim, aps terminarem a

    refeio o casal retira-se. Logo a seguir, entram em campo dois criados, um homem e uma

    mulher, para levantarem a mesa. O contraste entre a vida de quem domina e quem dominado

    no se faz apenas com o recurso da montagem, no caso, bastou apenas um plano de um filme

    caseiro colocado num novo contexto.

    Em Farenheit 9/11 (2004), Michael Moore re-organiza material de arquivo,essencialmente imagens televisivas, com o intuito de ir buscar s imagens a confirmao do

    seu ponto de vista. Cada filme de Moore surge-nos como um ponto final na discusso de

    qualquer tema; cada um dos seus filmes apresenta-se mesmo como um filme que exclui a

    possibilidade de qualquer outro sobre o mesmo tema. Embora lhe reconheamos legitimidade

    em expressar o seu ponto de vista, Farenheit 9/11 um encadear de imagens e argumentos

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    Antnio A. Rodrigues, ibidem, pp.190/191.

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    verbais que assenta legitimidade no preenchimento de um vazio de um plano (que supomos

    ser um vdeo amador), quase no incio do filme. No dia 11 de Setembro de 2001, o presidente

    Bush visita uma escola secundria na Florida. Vemos o presidente sentado de frente para as

    crianas e, de acordo com Moore em voice over, quando o segundo avio embate nas Torres,

    o chefe de pessoal aproxima-se de Bush e diz-lhe: O pas est a ser atacado. Ainda de

    acordo com Moore, o presidente no tem ningum que lhe diga o que fazer, nem ele sabe o

    que fazer; por isso, deixa-se ficar e mantm o programa da visita, no reage ao que est a

    acontecer e fica pensativo. O que que o presidente estar a pensar? a questo que Moore

    coloca e avana a hiptese ou, alis, a concluso, de lhe ter ocorrido: Tenho andado com ms

    companhias. Essas companhias sero os sauditas que agora atacam o seu pas. Moore

    encontra aqui um ponto de apoio para, a um ritmo quase alucinante, associar imagens, fazer

    dedues, tirar concluses e antes de ter a aprovao do espectador, avana-lhe com mais

    argumentos para deixar claro que a invaso do Iraque foi feita apenas por causa do petrleo e

    no para retaliar a Al Qaeda que efectivamente atacou as Torres do World Trade Center.

    Umas pitadas de humor e drama aqui e ali ajudam a impor e a compor a boa manipulao

    das imagens. Moore impe s imagens de arquivo, pela montagem, o seu ponto de vista.

    Independentemente da posio de Moore, o que aqui nos parece mais problemtico

    precisamente o ponto de apoio que identificamos acima: a partir de uma imagem de algum

    afirmar categoricamente o que ela est a pensar. Uma outra opo, longe da demagogia

    Mooriana, a de Emile de Antonio (1919-1989) 4, um activista poltico e crtico dos media,

    em especial da televiso e cuja filmografia composta quase exclusivamente de filmes de

    compilao. Para este cineasta o cinema um meio privilegiado para a discusso ideolgica.

    Millhouse: a White Comedy (1971) tem como protagonista o presidente republicano

    Richard Milhous Nixon e antecede a sua resignao do cargo de presidente dos Estados

    Unidos, em 1974, motivada pelo caso Watergate. O ttulo do filme composto por uma

    transformao do nome intermdio de Nixon para Milhouse (moinho), que de Antonio associa sua actuao como personagem, por se tratar de um local de moagem, de triturao, e um

    local que coincide com a aspereza e rudeza da sua personalidade. Milhouse um nome que se

    repete vrias vezes ao longo do filme, em legendas/separador, por exemplo: Milhouse goes

    to Washington quando do caso Hiss VS. Chambers, em que este acusa o primeiro de

    espionagem, em 1948. Nixon presidiu a Comisso para as Actividades Anti-Americanas que

    indiciou este caso de infiltrao comunista no governo federal, tendo desempenhado um papel

    4 Para uma viso mais completa da sua obra v. Douglas Kellner, Dan Streible (eds.),Emile de Antonio, VisibleEvidence Series, Vol. 8, University of Minnesota Press, 2000.

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    relevante na acusao de Hiss. Parte do ttulo do filme: a White Comedy surge por cima de um

    retrato de Nixon com a sua mulher e , como o prprio realizador afirmou, uma evocao do

    film noir, uma evocao que insiste ironicamente sobre a face branca e pura que a

    engrenagem poltica tentava passar do presidente sociedade americana. (Cf. Martin, 1972).

    O filme expe a carreira e a personalidade de Nixon. O tom irnico, caustico, absolutamente

    corrosivo do incio do filme marca o seu tom geral. Uma banda de msica est a tocar e uma

    voz masculina anuncia: Senhoras e Senhores, o presidente dos Estados Unidos. Segue-se

    uma panormica ascendente da figura de cera do presidente com uma placa no cho onde est

    escrito o seu nome. Logo a seguir, vemos um corpo com fato e gravata onde solenemente

    colocada uma cabea de cera do presidente. Ao seu lado esto outras figuras de cera, como a

    do presidente Kennedy. Num rasgo de premonio, de Antonio, avana para o dia 7 de

    Novembro de 1962. Antes de Nixon entrar para uma conferncia de imprensa, um jornalista

    informa: Aparentemente o fim. O fim da curiosa, colorida, por vezes complicada carreira

    de Richard Nixon. Lembremos as suas derrotas polticas: em 1960 enquanto candidato

    Casa Branca e, em 1962, enquanto candidato a governador da Califrnia. O incio e o fim da

    sua carreira poltica estavam ainda por vir: em 1968 eleito presidente dos EUA, re-eleito

    em 1972 e resigna em 1974.

    Sem nunca recorrer voice over, de Antonio apoia-se na montagem de imagens

    televisivas para revelar as tenses e contradies da sociedade americana. esse o papel da

    montagem. (Cf. Martin, 1972). A recusa de um comentrio que explique as imagens de

    arquivo, mantm a integridade das mesmas enquanto documento. Pela montagem, o

    realizador reala as contradies que sempre estiveram presentes nas imagens de arquivo. De

    Antonio deixa, em grande parte, que as imagens falem por si e solicita do espectador um

    envolvimento activo, pela re-contextualizao das imagens a que j teve acesso pelos canais

    de televiso. A montagem de Antonio interfere no sentido dessas imagens, por vezes, com o

    apoio de entrevistas feitas pelo realizador (e nas quais nunca se ouve outra voz para alm dado entrevistado). Os entrevistados so pessoas que mais directamente se encontram ligadas a

    determinado acontecimento. Por exemplo, a dado momento do filme Millhouse: a White

    Comedy, vemos um homem sentado numa secretria que afirma: Chamo-me J. Wextler e sou

    editor generalista do Post. Wextler comea ento a relatar-nos uma informao que chegou

    ao jornal em 1952, sobre a qual no previram as repercusses e que inicialmente no teve

    destaque de primeira pgina (uma espcie de Watergate antecipado). A informao era sobre

    as fontes de financiamento de Nixon. Um grupo de industriais, das finanas e da rea doimobilirio da Califrnia estaria a alimentar e cuidar de Nixon. Perante acusaes de um

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    procedimento pouco tico, Wextler afirma que a relao pai-filho que surgiu entre

    Eisenhower e Nixon ter sido uma fachada e que esse incidente ia custando a Nixon o cargo

    de vice-presidente. No seguimento dessa denncia e ainda na qualidade de candidato Casa

    Branca, Nixon faz uma declarao transmitida pela televiso, que ficou conhecida por

    checkers speech. Neste discurso, Nixon faz-se acompanhar da sua mulher que se encontra

    sentada numa cadeira a alguma distncia da sua secretria. Nixon apresenta a sua mulher a

    propsito de nunca a ter includo na folha de salrio da campanha, apesar de ela ser uma

    excelente estengrafa. Ela olha orgulhosa para o marido. Nixon revela detalhadamente a sua

    histria financeira completa, tudo o ganhou, tudo o que gastou e tudo o que deve; por

    exemplo, que possui um Oldsmobile de 1950 e que temos a nossa moblia, herdou do seu

    av 15.000 dolres, uma casa em Washington que custou 41.000 dlares e que ainda deve 20

    000 e confessa que receberam um presente de um homem do Texas. Este homem ouviu

    dizer sua mulher que as filhas gostariam de ter um co, e enviou-lhes de presente um

    cocker-spaniel preto e branco, s manchas. A sua filha mais nova de 6 anos de idade deu-

    lhe o nome de Checkers. Aps esta explicao, surge um plano com uma fotografia de

    famlia: o co, Nixon, a sua mulher e as duas pequenas filhas. No filme de de Antnio, este

    discurso passado na ntegra, mas descontextualizado da sua programao televisiva original,

    ou seja, surge aps as dvidas lanadas pelo editor Wextler e antes de manifestaes de

    afectividade entre Nixon e Eisenhower em que este lhe chama de meu rapaz. Para finalizar

    este encadeamento de imagens e sons, de Antnio remata colocando em imagem e novamente

    declaraes do editor Wextler. Este novo contexto reala a demagogia de um discurso que nos

    parece ter sido pouco ensaiado para que primasse pela espontaneidade. Mostra-nos um

    poltico nervoso nos gestos, hesitante na fluidez e determinao verbal e pouco vontade com

    as cmaras de televiso.

    Quanto utilizao de vdeos caseiros, podemos encontrar abordagens como em Os

    Friedmans (2003), de Andrew Jarecki, um filme que parece apostado em contradizer o queErrol Morris disse a respeito do seu filme The Thin Blue Line: Eu quis fazer um filme sobre

    como a verdade difcil de conhecer e no que impossvel.5 Com Jarecki apenas e to s

    impossvel. Em 1987, no dia de Aco de Graas, a polcia entra em casa dos Friedman, uma

    famlia de classe mdia que vive em Great Neck (Long Island, Nova Iorque) e acusa o pai,

    Arnold Friedman, um respeitado professor reformado e o seu filho Jesse, de 18 anos, de

    pedofilia. O filme conta com vrios depoimentos de advogados, polcias, investigadores, da

    me - uma dona-de-casa cujas declaraes em entrevista so, acima de tudo, a procura do5 Morris in PlantingaRhetoric and Representation in Nonfiction Film, Cambridge University Press, 1997, p. 221.

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    significado da palavra famlia -, do prprio Jesse e do seu irmo mais velho David (o irmo

    do meio, Seth - segundo informao em legenda quase no final do filme - recusou ser

    entrevistado), das vtimas e dos familiares destas. Arnold - que se suicidou na priso - comea

    por declarar a sua inocncia. Mais tarde, confessa os crimes, ou porque, de facto, os cometeu,

    ou porque essa confisso lhe traria uma pena mais leve, ou porque livraria de acusaes o seu

    filho Jesse. s imagens da cobertura meditica e das declaraes em tribunal, juntam-se os

    filmes caseiros feitos pelos prprios Friedman, com as suas festas de aniversrio, conversas

    em momentos de lazer e material filmado durante o decorrer de todo este processo. Um desses

    filmes caseiros foi rodado dentro do carro, no dia em que Jesse ia a tribunal declarar-se

    culpado. A cmara est colocada do lado direito de Jesse. Vemos a face direita do rosto de

    Jesse. Ele e o irmo conversam:

    - Tu violaste crianas, Jesse?

    - No

    - Algum dia violaste?

    - Nunca toquei em nenhuma.

    - Fizeste as coisas que dizem?

    - Nunca toquei em nenhuma, nunca vi o pai tocar em nenhuma.

    - Pois, mas deves ter feito aquilo. [risos] Isso, alguma coisa aconteceu. Tem de ser.

    o que a Polcia diz

    - Se alguma coisa houve, no foi na minha presena. E ter sido uma coisa mnima

    porque o mido nunca se queixou.

    - Como pode a Polcia mentir?

    - Cala-te, Seth.

    O plano muda para Jesse e o seu advogado em tribunal. Enquanto o advogado fala a

    cmara aproxima-se do rosto de Jesse, da face esquerda do seu rosto: As crianas, as catorze

    crianas deste caso, foram indubitavelmente vtimas, isso ningum discute. O nico culpado Arnie Friedman, o homem um monstro. O plano muda para um polcia sentado no tribunal,

    vemos o face direita do seu rosto, a mesma face de quando imediatamente antes, Jesse se diz

    inocente. O advogado continua: Abusou do filho e violou-o, isso no pode ser esquecido.

    [Jesse comea a chorar] No posso crer que vivamos numa sociedade to fria que algum o

    possa olhar e no o compreender.Jump cutpara um plano que se aproxima da face esquerda

    do rosto de Jesse enquadrando, tambm, o advogado. Jesse a chorar diz: O meu pai criou-me

    a confundir o bem com o mal. E sei agora o mal que fazia. Jump cutpara um plano prximoda face esquerda do rosto de Jesse que diz: Quem me dera ter podido travar isto h mais

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    tempo. Quem me dera ter feito alguma coisaEstou to arrependido. Os dois lados de um

    mesmo rosto: inocente e culpado, ou culpado e inocente, a verdade e a mentira ou a mentira e

    a verdade. Os dois lados do rosto de Jesse; e nenhum modo de averiguar a necessidade mais

    bsica de uma resposta nica, um simples sim ou no. Neste filme, neste caso concreto, neste

    drama vivido pelos Friedman, nada definitivo. Por vezes entende-se que o pior aconteceu,

    em outros momentos que nada aconteceu. A verdade parece no ser apenas difcil de obter,

    uma subtileza que insiste em escapar-nos.

    Os vdeos caseiros de Os Friedmans foram apropriados por Jarecki, o cineasta. Numa

    apropriao no sabemos se mais legtima mas, pelo menos, mais pessoal, surge-nos Zyklon

    Portrait (1999), de Elida Schogt cujos avs morreram em Auschwitz. Zyklon B um

    pesticida para insectos convertido em gs pelos nazis, para o extermnio de judeus. O relato

    objectivo e clnico da composio e surpreendente eficcia de Zyklon B que mata entre 5 a 15

    minutos, cruza-se com trs geraes de uma famlia judia holandesa, a famlia da realizadora.

    O relato em off, as fotografias de famlia, os vdeos caseiros, a explicao do efeito do gs e

    planos registados debaixo de gua no so apenas o retrato da sua famlia, so o retrato da

    nossa famlia, o seu passado cruza-se com o de todos ns.

    Imagens e sons do presente

    A fim de darmos conta das propostas de realizao onde os cineastas recolhem

    imagens propositadamente para os seus filmes, iremos apontar, seguindo o esprito

    exploratrio que marca este texto, propostas bastante diferentes.

    1)Work in progress

    Apontando para um total acompanhamento da vida dos intervenientes e dos

    acontecimentos que regista6, o filme documentrio apresenta uma especial tendncia para

    tudo filmar, para nunca desligar a cmara. Esta uma ideia que, para o israelita Amos Gitaiassume o carcter de work in progress. Os filmes Wadi (1981), Wadi, Ten Years Later(1991)

    e Wadi, Grand Canyon (2001), realizados com 10 anos de intervalo, tm como tema o vale

    6 Pegando em um qualquer catlogo de um qualquer festival de cinema documental e lendo as sinopses dosfilmes quase metade (esta uma estimativa nossa, sem qualquer validade estatstica) no difcil encontrar algosimilar a: um dia na vida de, este filme acompanha..., o dia-a-dia de. Apresentando exemplos defilmes portgueses: Mulheres do Batuque (1997), de Catarina Rodrigues: documentrio sobre a vida, ospensamentos e os sentimentos de 14 mulheres das Ilhas de Cabo Verde O Movimento das Coisas (1985), deManuela Serra: Histrias de quotidiano de silncio. Em caminhos desertos de frio inquietante, numa aldeia do

    Norte. Um dia de trabalho;La Loi du Collge (1994), de Mariana Otero: desenrolar de um ano escolar nocolgio Garcia Lorca, em Saint-Denis. As sinopses no so relevantes para julgar um filme. O que aquipretendemos destacar a abordagem documental.

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    Wadi Rushmia que acolhe judeus e rabes qual campo de refugiados, em Hafa, Israel, cidade

    natal de Gitai. No primeiro, Gitai revela os conflitos e proximidades entre judeus e rabes; o

    segundo, comea com imagens do primeiro e acrescenta-lhe material rodado em 1991. Em

    Wadi, um homem rabe e a sua mulher judia dizem a Gitai que caminham juntos na vida

    porque afinal, no somos to diferentes uns dos outros. Mas, 10 anos mais tarde, em Wadi,

    Ten Years Later, essa mesma mulher judia diz que a famlia dela a persuadiu a deixar o

    marido rabe. 2001 o ano em que - pela terceira vez - o cineasta regressa ao vale de Haifa

    onde vai encontrar novos imigrantes: judeus do Norte de frica, da Europa de Leste, Etipia,

    Rssia, rabes palestinianos que foram expulsos ou que fugiram e um grande centro comercial

    entretanto construdo. O conflito entre Israel e Palestina visto a partir de toda a

    complexidade das relaes humanas. Os intervenientes do filme falam directamente para a

    cmara sobre a vida, o amor, o conflito poltico-religioso. Ao longo dos filmes notria uma

    maior proximidade com as pessoas ou uma maior facilidade (maturidade) de Gitai em deixar

    que os seus intervenientes falem. Recusando o mero aspecto confessional, o que os seus

    intervenientes nos dizem sobre a convivncia entre judeus e rabes, sejam eles hngaros,

    africanos, russos, israelitas, palestinianos que essa convivncia fcil (todos so seres

    humanos) e difcil (poltica e religiosamente mas, tambm, difcil no que diz respeito ao

    relacionamento, simpatias e antipatias pessoais).

    2)Trabalho em perspectiva

    Para o portugus Pedro Sena Nunes j no se trata de um work in progress, mas de um

    trabalho em perspectiva ao desenvolver aquilo a que chama um supra-projecto. Margens

    (1995)Entraste no Jogo Tens de Jogar, Assim na Terra como no Cu (1999) e A Morte do

    Cinema (2002), tm como palco Trs-os-Montes, Minho e Beira Litoral, respectivamente.

    Estes trs filmes fazem parte de um projecto em curso pelo qual o realizador pretende

    encontrar dentro de cada provncia portuguesa microcosmos representativos de Portugal.Nestes trs filmes, no h uma unidade temtica, Pedro Sena Nunes no pretende estabelecer

    paralelismo entre regies. Cada um dos filmes citados resultou da sua deslocao a essas trs

    regies e da sua empatia por determinado assunto. Margens tem como enfoque a construo

    de uma ponte na aldeia de Chelas e os conflitos entre a populao a respeito dessa construo.

    EmEntraste no Jogo Tens de Jogar, Assim na Terra como no Cu, a festa dedicada a S. Joo

    dArga, que tem lugar em Caminha, no ms de Agosto, foi registada em dois anos, 1996 e

    1997. No filme, material do primeiro e do segundo anos so misturados. J em A Morte doCinema, o realizador confronta-se com lvaro Dias, um mecnico de automveis que

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    (re)construiu dois projectores de cinema e que durante a ditadura exibia filmes apimentados

    para os senhores e, tambm, filmes apropriados para as senhoras.

    Entraste no Jogo Tens de Jogar, Assim na Terra como no Cu reala a interaco

    entre o sagrado e o profano. O sermo do Padre -nos dado a ouvir com imagens da festa, e

    durante a missa, o Pai-Nosso rezado tendo como pano de fundo o som vindo da festa. A

    simbiose entre sagrado e profano no se fica pela mera ocorrncia dessas duas vertentes na

    homenagem ao S. Joo DArga, uma no existe sem a outra, nenhuma delas se sobrepe

    outra, nenhuma delas mais importante que a outra, ambas coexistem e cada uma delas

    depende da outra. Por entre a alegria dos folies, por entre as conversas de circunstncia, por

    entre as consideraes de um romeno emigrado em Portugal, o sermo do Padre torna-se mais

    uma das muitas vozes que ouvimos e que faz to parte das celebraes como qualquer outra.

    E a envolver tudo isto, o fumo da carne a queimar nas brasas de carvo.

    3) Tudo filmar

    Nos documentrios, a ideia de tudo filmardesemboca numa tendncia para o plano-

    sequncia. Este plano assume um lugar especial por permitir acompanhar os intervenientes do

    filme na sua vida quotidiana, por transmitir uma sensao de em directo, de verdade e

    autenticidade e onde a interferncia da equipa de rodagem se supe nula. O tempo necessrio

    para viver e comungar do quotidiano dos intervenientes do documentrio transportado para o

    filme em tempo real (recorrendo ao plano-sequncia) comporta o risco de realar a

    insignificncia da vida enquanto vida (uma ideia cara a Pasolini). Mas , tambm, um desafio

    que rompe os cannes da relevncia, destacando precisamente os gestos insignificantes da

    vida quotidiana.

    No sendo talvez o propsito do russo Sergei Dvortsevoy tudo filmar, mas de destacar

    momentos da vida, naquilo que ela tem de mais surpreendente, na sua filmografia7 o que maisse destaca o uso recorrente do plano-sequncia (a que podemos acrescentar a particularidade

    de filmar animais). Cada um dos seus planos sustenta-se a si prprio, sem necessitar

    necessariamente de um plano anterior ou de um outro posterior. Os seus planos longos so

    sintomticos de uma observao paciente, uma presena demorada nos locais que filma e uma

    cmara que no se esconde; por vezes, os intervenientes olham-na e fazem comentrios ou

    7

    Dvortsevoy filmou pastores nmadas emParadise (1995), uma aldeia isolada emBread Day (1998), umafamlia de circo itinerante emHighway (1999) e um homem cego de 80 anos que vive com um gato nosarrabaldes de Moscovo emIn the Dark(2004).

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    lanam mesmo insultos. Ainda assim, a presena da cmara longe de ser apenas tolerada um

    apetrecho rido que combina com os cenrios naturais de terras quase desabitadas. Nas

    palavras do prprio realizador: Quanto razo porque fao planos-sequncia porque eu

    penso que cada corte uma mentira e depois, em cada corte matamos a vida no a imagem,

    a vida. () se eu quiser ilustrar os meus pensamentos ento posso matar em qualquer stio,

    no interessa. () Eu s o fao quando sinto que o plano est vazio e j no tem nenhuma

    energia dentro dele. () E a razo porque no gosto de muitos filmes, documentrios ou

    fico, porque as pessoas tentam ilustar os seus pensamentos acerca da vida.8Bread Day

    (1998) um filme de 57 minutos com apenas 17 planos. Apenas algumas pessoas idosas

    vivem numa pequena aldeia a 80 km de So Petersburgo. Uma vez por semana, uma

    carruagem cheia de po separada de um comboio que circula na via principal e so os

    prprios habitantes que empurram a carruagem at aldeia. Esse percurso demora mais de

    duas horas. No filme, o plano inicial acompanha os ltimos 10 minutos. Este plano tem incio

    com o empurrar da carruagem para terminar quando a carruagem chega aldeia e um dos

    habitantes abre as portas deixando ver o po que vem dentro.

    Com Dvortsevoy, o cinema encontra o seu sentido unicamente no plano onde tm

    lugar momentos nicos. A energia de que Dvortsevoy nos fala tem a ver com os

    acontecimentos nicos, os acasos da vida que nunca ou dificilmente se repetem e com o

    tempo que necessrio para os captar. que podemos calcular tudo, mas a vida a vida,

    tudo se altera ou pode mudar de imediato, diz-nos Dvortsevoy.9 H uma parte calculada, h

    momentos que se repetem e para os quais possvel fazer uma preparao, como no plano

    inicial deDay Bread, mas noutros h apenas o acaso. EmBread Day, registaram por acaso

    um beijo entre um bode e uma cabra. Na opinio do cineasta: se estivermos preparados

    podemos filmar tudo () tudo possvel se tivermos tempo e pacincia suficientes.

    4)Nos bastidoresO especial enfoque dos documentrios por dar a conhecer o outro lado ou os

    bastidores de um acontecimento, passar, talvez, por uma ideia muito ocidental de que a

    verdade se encontra sempre escondida. Circo! (2004), de Rui Ribeiro tem como tema o

    quotidiano de uma companhia de circo itinerante. Do espectculo apenas ouvimos a actuao

    dos artistas e as palmas do entusiasmo do pblico. A cmara, colocada mesmo antes da

    8

    AA VV 2000,Docs Kingdom, Os Debates- Seminrio Internacional de Cinema Documental em Serpa, Ed.AporDOC-Associao pelo Documentrio, p.48 e segs.9 Ibidem.

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    cortina que separa o espao do espectculo do espao dos bastidores, mostra-nos os palhaos,

    malabaristas, ginastas, animais imediatamente antes de entrarem em palco e imediatamente

    a seguir sua sada. Nunca vemos a sua actuao perante o pblico. No novo que o som de

    um plano remeta para o fora-de-campo, mas a insistncia dessa abordagem, o tempo que a

    cmara ali permanece, cria uma atmosfera de tenso entre o que se v e aquilo que o

    espectador forado a imaginar, aquilo que est fora-de-campo, aquilo que j todos

    conhecemos das actuaes de um circo. Se este filme nos mostrasse as actuaes, estaria a

    mostrar-nos o que j todos conhecemos. Concentrado no espao que antecede a entrada em

    palco e a sua imediata sada, este filme aposta em chamar a nossa ateno para o lado a que

    no temos acesso quando vamos ao circo. E descobrimos que esse espao no apenas um

    local de entrada e sada, tambm um local de passagem para outras pessoas que trabalham

    no circo e que no fazem actuaes , tambm, um local de conversa e de espera enquanto se

    fuma um cigarro, de manifestaes de alegria ou desnimo, , enfim, um espao central e

    aglutinador da vida quotidiana de um circo. Nada obriga a que um documentrio enverede

    pelo lado menos conhecido dos acontecimentos, lugares ou pessoas. Mas, ao faz-lo o

    documentrio funciona como um contraponto absolutamente fundamental ao que, por

    exemplo, o registo televisivo nos oferece, ou ao que, por qualquer motivo, o espectador no

    tem acesso.

    5) O particular e o universal

    A maior produo de documentrios tem, ao longo da histria, ocorrido em pocas de

    guerra e, em grande parte, o documentrio est conotado e tem, em muito, servido como

    veculo de transmisso ideolgica como exemplo clssico temos os 7 filmes da srie Why

    we Fight (1942-1945)10, de Frank Capra. Mas, essa ter j sido a linha dominante do

    documentrio. Cada vez mais, o documentrio entendido como um lugar de encontro entre

    quem filma e quem filmado; assim, a discusso sobre o contexto ou encontro tico toma adianteira em relao transmisso ideolgica ou mesmo em relao s tentativas em colocar o

    documentrio como meio privilegiado de transmisso de informao, ou seja, o que a partir de

    um filme ficamos a saber sobre determinado evento. (Cf. Renov, 2004).

    Enquanto lugar de encontro, o documentrio presta-se a meio de catarse, onde a

    famlia do prprio realizador ou a sua famlia so protagonistas. Mesmo nos casos em que

    uma vivncia pessoal est em causa assumindo contornos de catarse individual e familiar, o

    10Prelude to War(1942), The Nazis Strike (1942);Divide and Conquer(1943); The Battle of Britain (1943); TheBattle of Russia (1943); The Battle of China (1944); War Comes to America (1945).

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    que mais encontramos uma ultrapassagem desse registo familiar e um modo de abordar

    temas que a todos diz respeito. Em Moment of Impact (1998), de Julia Loktev cujo pai,

    brutalmente atropelado, ficou fsica e mentalmente incapacitado, repete at exausto a rotina

    diria de Larisa, me de Julia, que manh aps manh, tem de levantar e vestir o marido.

    Dentro da casa, tal como Larisa repete os mesmos gestos manh aps manh, a cmara de

    Julia ocupa quase invariavelmente a mesma posio. A cmara capta, tambm, os momentos

    em que me e filha deitadas na mesma cama partilham os seus pensamentos, angstias, medos

    e sonhos. Em Histria de um Segredo (2004), de Mariana Otero e depois do seu polmico

    Esta televiso a Sua (1997) onde registou o dia-a-dia do canal portugus de televiso

    privado SIC, Otero regressa a Frana, sua terra natal, para a se confrontar com o passado da

    sua famlia. Seria difcil interessar-me por outros temas, enquanto no tivesse conseguido

    reapropriar-me da minha prpria histria. 11 Otero procura compreender o porqu do

    embarao e frases no acabadas dos seus familiares a propsito da morte da sua me desde

    que tinha 4 anos de idade. S na idade adulta e com grande insistncia da sua parte que,

    finalmente, descobre que a sua me de 28 anos de idade, a pintora Clotilde Vautier tinha

    morrido ao tentar provocar clandestinamente um aborto. Esta histria trgica de uma famlia

    ganha uma dimenso universal pelo tema que aborda e pelo modo como o aborda. Afirma

    Otero: Queria que o espectador sentisse a desorientao, a indefinio, ficasse perdido entre

    todas aquelas casas, estradas e pessoas. Que notasse o desconforto de um ambiente de

    mistrio. E que, depois, pouco a pouco, fosse descobrindo a histria, desfazendo os segredos

    at ao alvio, quando, de repente, se faz luz e j se percebe o que se passou. Foi isso

    exactamente o que eu vivi.12

    Sem recorrer s grandes figuras da Histria, abordar momentos histricos pelo

    contacto com as pessoas que os viveram, funciona como contraponto a uma narrativa histrica

    distanciada. Entre a objectividade que a abordagem aos momentos da nossa Histria reclama

    e a subjectividade associada a quem se refere a algo pessoal, sem o suposto e necessriodistanciamento, no h uma separao insanvel. Estes filmes exemplificam que a maior das

    subjectividades atinge a maior das objectividades. So filmes que transcendem a mera histria

    pessoal e familiar para a tornarem universal. Estes filmes situam-se e situam-nos no que

    podemos designar por uma dimenso subjectiva universal. Em Outubro (2001), Graa

    Castanheira d conta do conflito na ex-Jugoslvia a partir de uma escola privada de cinema

    11 in Revista Viso, 4 de Maro de 2004.12

    Ibidem.

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    em Belgrado, dirigida pelo Zoran e pela Svetlana. Milosevic marcou eleies para 24 de

    Setembro de 2000 mas, tal como em anos anteriores, manipula os resultados e permanece no

    poder. Os apoiantes da oposio, liderada por Voijislav Kostunica, manifestam-se nas ruas

    aos milhares. Outubro o ms em que Milosevic deposto e admite a derrota eleitoral. Todo

    este conflito personificado pela insegura Svetlana e pelo Zoran, um homem cuja fora

    interior transpira do seu corpo frgil e cuja serenidade, sentido de humor e clarividncia de

    argumentos colocam uma dimenso mais intimista a um conflito nacional. Enverando pela

    memria dos factos e no pelos factos histricos Shoah (1985), de Claude Lanzman um

    filme absolutamente urgente sobre o Holocausto. Shoah apresenta-nos os limites da

    representao. Perante o Holocausto, o cinema colocado perante os seus limites. A

    materializao do horror em imagens no nem possvel, nem vivel. Em Shoah, Lanzmann

    recusa mostrar imagens de arquivo, assumindo a impossibilidade de dar visibilidade ao

    horror. A verdade do Holocausto no est numa narrativa nica mas em todas e cada um dos

    testemunhos que ao longo das 6 horas de filme ouvimos contar na primeira pessoa. (Cf.

    Shoshana Felman in Williams, 1993).

    6)Pessoas comuns

    Longe do glamour, do star system, figuras incontornveis da nossa histria pelas

    melhores razes - Nelson Mandela - ou pelas piores razes Hitler -, povoam o universo

    documental, em especial os documentrios televisivos. Em alternativa, os exibidos em outros

    circuitos so protagonizados por pessoas comuns. Colocar pessoas comuns no ecr algo

    muito caro ao filme documentrio. Mas, no bem isso que se passa. Em Estrela da Tarde

    (2004), de Madalena Miranda, uma dona de casa, no apenas uma simples dona de casa e o

    interesse do filme confunde-se com a originalidade desta mulher que enquanto limpa a casa e

    as suas fotografias de Che Guevara, recita um poema da sua autoria alusivo ao dia Mundial da

    Mulher, discursa sobre a importncia da revoluo portuguesa de 25 de Abril de 1974, tececonsideraes acerca do pas em que vivemos, ou da condio da mulher,

    Este nosso percurso exploratrio pelas imagens e sons do documentrio mostram, em

    suma, que cada filme um caso e que embora possamos agrup-los por grupos, categorias ou

    sub-categorias h que estabelecer e atender s propostas de realizao que so sempre nicas

    e possuem particularidades que apenas um olhar mais atento e demorado sobre cada um dos

    filmes poder detectar e, mais que isso, mais gratificante para o espectador.

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    Referncias bibliogrficas

    CHION, Michel (1982),La Voix au Cinma, Paris: Cahiers du Cinma/ Ed. de LEtoile.

    BRESSON, Robert (1975) Notas Sobre o Cinematgrafo (trad. port. Pedro Mexia), Porto:

    Elementos Sudoeste [2003].

    MACHADO, Arlindo (1996), O Fongrafo visual inRevista de Comunicao e Linguages,

    n 23, O que o cinema?, Lisboa: Edies Cosmos, pp. 39-60

    RENOV, Michael (2004), The Subject of Documentary, Visible Evidence Series, vol. 16,

    Minneapolis, London: University of Minnesota Press.

    WILLIAMS, Linda (1993), Mirrors without memories, Truth, History and the new

    documentary inFilm Quarterly, vol. 46, n 3, pp. 9-21.

    MARTIN, Marcel (1972), Brve rencontre avec Amile de Antonio,Ecran, n 4, Abril de

    1972,pp. 39-40

    Filmografia

    A Morte do Cinema (2002), de Pedro Sena Nunes

    A Queda da Dinastia Romanov (1927), de Esther ShubBread Day (1998), de Sergei Dvortsevoy

    Circo! (2004), de Rui Ribeiro

    Entraste no Jogo Tens de Jogar, Assim na Terra como no Cu (1999), de Pedro Sena Nunes

    Estrela da Tarde (2004), de Madalena Miranda

    Farenheit 9/11 (2004), Michael Moore

    Histria de um Segredo (2004), de Mariana Otero

    Margens (1995), de Pedro Sena NunesMillhouse: a White Comedy (1971), de Emile de Antonio

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    Moment of Impact(1998), de Julia Loktev

    Outubro (2001), Graa Castanheira

    Os Friedmans (2003), de Andrew Jarecki

    Shoah (1985), de Claude Lanzman

    Wadi (1981), de Amos Gitai

    Wadi, Grand Canyon (2001), de Amos Gitai

    Wadi, Ten Years Later(1991), de Amos Gitai

    Zyklon Portrait(1999), de Elida Schogt