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Dentro da Escuridão
O ônibus estava vazio desta vez e, como em todo início de mês, eu
chamava a atenção assim que subia os degraus do coletivo. Às
vezes alguém me ajudava a subir, mas na maioria apenas me
ignoravam com pena e medo de que pudessem ficar parecidos
comigo: cego. Mas eu pouco me importava com os outros naquele
momento. Estava feliz com o salário da minha aposentadoria.
Cansado com os meus 67 anos, procurei sentar logo nas
primeiras cadeiras e antes que eu me esquecesse, dei bom dia para
o cobrador que respondeu com um “bodia, seu Oscar”. Ao meu lado
alguém estava sentado, e pelo jeito de sentar cruzando as pernas,
supus ser um homem.
— Moço, — apostei na minha suposição — você pode me
avisar quando chegarmos na Cidade Nova 5?
O homem não respondeu, então eu toquei nele e repeti o
pedido. Recebi de resposta:
— Eu descerei lá também, eu te aviso, mas somente se tu
ficares calado durante a viagem.
Estranhei o pedido do homem, mas entendi que talvez ele
estivesse lendo ou vendo alguma coisa no celular, assenti e
permaneci em silêncio, pensando no que ia fazer com o dinheiro
que acabei de receber. Pedirei para o seu Augusto, meu vizinho,
chamar alguém para consertar o telhado de casa, e, talvez
comprarei um rádio novo, o meu já está muito velhinho.
A viagem foi tranquila, tirando por alguns solavancos que me
pegaram de surpresa, mas o toque do vento em meu rosto valia o
passeio. Percebi que já havia passado muito tempo desde que falara
com o estranho, então lhe perguntei se estávamos próximos. O
homem não respondeu, mas eu tive certeza que ele ouviu, notei que
a respiração dele mudou de direção, ou seja, ele virou a cabeça para
o lado em que foi chamado. Mas, por alguma razão, não respondeu,
então repeti a pergunta.
— Falta pouco. Seu destino já está a caminho — o homem
disse enfim.
Achei muito estranho o tom de voz com que ele falou. Meio
sussurrado. Mas meus devaneios com o salário eram mais urgentes
naquele momento. Eu ainda esperei o que me pareceu uns 20
minutos até que o homem me cutucou e disse que havíamos
chegado.
Eu me animei, desejei bom dia para o motorista e cobrador,
e desci com o sujeito que me segurava pelo ombro. Quando o ônibus
partiu, o estranho perguntou onde eu queria ficar, então pedi
apenas que me deixasse na segunda rua à direita. De lá eu me
viraria, mas as coisas tomaram um rumo que eu não previra.
Andamos por mais tempo do que o necessário para chegar onde eu
havia pedido, então questionei o estranho, que apertou com força o
meu braço e, em um sussurro, mas firme, disse:
— Cala a porra dessa boca nojenta!
Meu coração disparou. Não sabia o que fazer. Imaginei que o
sujeito talvez estivesse seguindo-me desde o banco e agora queria
que eu entregasse tudo. Tentei ouvir alguma coisa que pudesse
indicar onde eu estava, mas nem sons de pessoas eu ouvia. Achava
que nem estava na Cidade Nova. “Onde esse homem me trouxe?”.
Caminhei conforme ele guiava; por vezes esbarrava em
alguma coisa, mas o outro tampouco se importava; colocava-me de
volta no caminho que queria na base de empurrões. Eu soube
quando chegamos porque o homem segurou meus ombros e disse
que eu deveria esperar.
Ouvi o tilintar de metal contra metal e em seguida contra
madeira; sons que distingui com facilidade: o homem tentando
abrir a porta com um molho de chaves. Com certeza havia uma
grade antes da porta. Só consegui escutar o latido fraco de um
cachorro, provavelmente em outra rua.
Quando a porta se abriu, o homem não disse nada, mas
segurou meus braços e levou-me para dentro. “Meu Deus, o que
esse cara quer?”. O homem fechou a grade com dois cadeados e
duas voltas da chave na fechadura.
O lugar era muito abafado, de modo que assim que eu me vi
longe do oxigênio do lado de fora, senti um calor como se tivesse
sido levado a um forno recém aquecido; ainda fui atacado por um
mofo que logo me fez tossir, mas o pior de tudo foi o cheiro de
alguma coisa morta, uma podridão que sentia incomodar as
narinas.
— Vou te levar onde você vai ficar.
— Como assim ficar?
Ouvi o homem expirar profundamente.
— A tua vida acabou. Vai morar aqui.
— Calma, rapaz — tremi ao falar — eu não quis fazer nenhum
mal pra você. Eu tenho dinheiro no banco...
A primeira sensação que me veio foi a de vontade de espirrar,
mas em segundos foi substituída por uma ardência na boca e a
terrível sensação de seus dentes amolecerem. Nunca soube com o
que apanhei, mas soube que foi forte o suficiente para me derrubar.
Caí em alguma coisa pegajosa.
— Eu falei em dinheiro, filho da puta? Tu vai ser a minha
putinha agora.
— Por favor...
O homem segurou meus braços e me puxou por um percurso
longo até me atirar em um outro cômodo. Antes de fechar a porta
com força, disse que logo voltaria e que ele não aguentava ouvir
choros, portanto a casa devia permanecer no mais absoluto
silêncio.
A partir desse momento, perdi a noção de quanto tempo
fiquei naquele cômodo. Às vezes ouvia algum ruído ou alguma coisa
de metal sendo arrastada, mas aquilo não era o suficiente para me
guiar. Chorei muito imaginando que o pior poderia acontecer a
qualquer hora, mas como nenhum outro contato aconteceu entre o
sequestrador e eu desde então — exceto nos momentos que o
homem abria a porta para deixar comida e bebida —, tive um pouco
mais de confiança para entender onde estava.
Meus sonos não eram mais os mesmos, dormia por poucas
horas e de um sono frágil o suficiente para me espantar com
qualquer barulho que ouvia. Tentei ocupar a minha mente
caminhando pelo cômodo. Levantava meus braços para frente e
andava até tocar em alguma coisa.
Descobri, por isso, que as paredes nunca foram lixadas,
imaginava, inclusive, que não eram pintadas também, cimento
aparente. No lugar, não havia nenhuma janela, apenas uma porta
de metal; também não haviam móveis. Acostumei-me a dormir no
chão frio de lajotas.
Consegui, entretanto, entender os dias de acordo com as
visitas do meu sequestrador. Ele já tinha vindo duas vezes e na
terceira, percebi que o espaço de horas era grande, então associei
a 24 horas. Acreditava que o homem aparecia toda manhã, logo, eu
estava preso há 3 dias. Soube também alguns detalhes como
quando chovia, alguns cheiros de queimado que sentia quase
diariamente e esses cheiros vinham acompanhados de uma
barulheira que adivinhei ser trabalho de uma serralheria. Poderia
ser de alguma construção vizinha, mas eu chutava estar em um
local assim.
No quarto dia, o sequestrador deixou a comida, mas não
fechou a porta. Notei isso, mas, mesmo com o coração disparado,
peguei a comida como se não tivesse percebido nada. Sentei no lado
oposto do cômodo e comi bem lentamente; também notei que o
homem andou — tentando não ser percebido — em minha direção,
mas ignorei, fingi que nada acontecia. O sequestrador ficou a
poucos centímetros de mim. Imaginei que a qualquer momento
levaria uma pancada, mas tentava comer como se nada estivesse
acontecendo. O homem não fez nada, esperou o almoço acabar e
foi embora.
O dia seguinte foi diferente. A porta foi aberta e fui pegar a
comida já imaginando que o homem ficaria me observando; adotei
a mesma tática: fingi que nada estava mudado, só que, quando
tateei em busca da comida, nada encontrei.
— Pensas que me engana, cego? — ele disse em voz mansa.
— Não... Desculpe — respondi quase em choro.
— Eu vi que tu sabias onde eu estava.
— Eu não sabia.
— Não mente, seu velho desgraçado, senão vai ser pior pra
ti.
— ...
— É o seguinte, amanhã eu vou te transformar. Tu serás a
primeira cobaia do meu empreendimento.
— Por favor, senhor, eu lhe peço desculpas pelo o que fiz, mas
me deixe...
— Desculpa o caralho. Tu me fizeste alguma coisa por acaso?
— o tom de voz do homem permanecia o mesmo, sem se exaltar.
— Por que você me prende então?
— Já disse, tu serás a minha cobaia. É pra isso que preciso.
— Cobaia de quê?
— Saberás na hora, velho.
— Pelo amor de Deus, homem. Estou sofrendo muito.
— Sofrendo?! Tu não sabes o que é sofrer. Ainda. Não sabe.
Percebi que o homem ficou remoendo depois das últimas
palavras, como se aquilo ainda o ferisse muito, então mudou de
postura.
— O que fizeram contigo? Eu posso ajudar. Eu também não
vivo o melhor das coisas, como você pode ter percebido — tentei
passar confiança no timbre.
O homem ficou calado por um bom tempo, mas eu sabia que
ele não havia saído do lugar.
— Como tu poderias me ajudar?
— Diga-me o que fizeram com você.
— Vou te mostrar — ele disse quase em súplicas e sentou-se
ao meu lado. — Toque a minha cara.
Receoso, tateei até encontrar o rosto do homem. Quando
encontrei, notei de imediato que era um rosto alongado, expressões
carrancudas, olhos e lábios pequenos; percebi que também estava
todo sujo de algo que achei ser graxa e bem no meio do rosto uma
cicatriz; ela começava entre as sobrancelhas e ia até o início do
queixo, era grossa, de modo que deformava boa parte do rosto dele.
— Acho que posso ajudar — concluí.
— Como?
Nesse momento a campainha da casa tocou e como que se o
homem ficasse transtornado, deu um tapa nas mãos e disse:
— Tu não vai me enganar, velho! Amanhã, amanhã!
Quando o homem fechou a porta, coloquei os ouvidos na
porta e pude ouvir o homem recebendo o visitante. Tratava-se de
uma mulher e, embora eu não conseguisse entender o que
conversavam, percebi pela mudança de voz do homem que ele a
respeitava muito; poderia até arriscar que o meu sequestrador
estava apaixonado. Soube que ela entrou e pelo cheiro de café, o
homem iria oferecer a bebida a ela. Consegui ouvir algumas
palavras como: “gosto” “presente”, “aniversário”, “amanhã”, “volto”,
“hora”. E se estiver certo do que presumi, ela voltaria amanhã. Se
eu conseguir chamar a atenção dela, talvez consiga escapar.
Passei a noite matutando o que poderia fazer para fugir dali.
Imaginava que o que quer que o homem estivesse fazendo,
abandonaria no mesmo instante, caso aquela mulher chegasse. Eu
precisava enrolar para que ela o impedisse de fazer o tal
experimento que ele prometera, isso se, de fato, ela cumprisse o que
prometera. Rezei para que tudo desse certo, não conseguia mais
confiar em nada, nem em mim mesmo, mas era a minha única
opção.
Não percebi quando dormi e acordei com um novo tapa que
o homem me dera.
— Acorda, vagabundo! Chegou a tua hora.
“Preciso ganhar tempo”, “preciso ganhar tempo”.
— Calma, senhor. Eu pensei em uma solução para o seu
problema...
— Cala a boca! Eu não tenho problemas. Vem logo que tu
serás minha cobaia.
— Por favor...
O sequestrador não quis saber, arrastou-me pela porta.
Novamente o chão frio da lajota misturado com o odor nauseante
do ambiente. Tomei pancadas violentas na costela e na coluna por
coisas que estavam no caminho. “Meu Deus do céu, como eu me
livrarei desse homem?”.
Por fim, fui jogado em um lugar que tive a certeza de ser o
quintal da casa, pois senti um vento agradável batendo em meu
rosto e pelo chão ser de terra batida. Ele me pôs, com força, em
cima de uma maca, em seguida, prendeu os meus braços em uma
corda.
Ele voltou para a casa e eu clamei por alguma coisa que
pudesse me salvar. E as mais diversas ideias vinham, mas nada
diferente do absurdo me atendia, como que, por algum milagre, eu
voltasse a enxergar e achasse a saída; ou que aquela mulher do dia
anterior chegasse e sensibilizasse o meu raptor a libertar seu
prisioneiro; ou que simplesmente acontecesse uma intervenção
divina.
— Voltei. Vamos começar o experimento — ele chegou
interrompendo, mais cedo do que o imaginado, os meus planos.
— Por favor, senhor. Preciso pelo menos de uma água.
— Daqui a pouco tu bebes. Agora precisas trabalhar.
E então o som mais perturbador da vida de Oscar surgiu: o
zumbido agudo de uma furadeira elétrica.
— Meu Deus. Socorro!
— Deus também está me ajudando, velho.
Senti minha cabeça sendo presa por alguma fita, de modo
que meu rosto ficasse virado expondo minha face esquerda. Em
seguida, a dor. Uma dor sem igual. O homem tentara furar os meus
tímpanos, e com isso rasgara 1/3 da minha orelha. A força da
agonia era tão grande que consegui romper as amarras da cabeça,
mas o homem não desistiu, desferiu um tapa e reforçou com mais
fitas. Continuou seu trabalho rindo. Apaguei depois disso.
Os dias seguintes foram angustiantes. As dores eram
intensas, pus e sangue escorriam direto da minha cabeça, passei
os dias jogado no chão frio do cômodo. Soube semanas depois que
não morri porque o homem vinha me tratar todos os dias,
preocupando-se para não infeccionar e também com a minha
alimentação.
Descobri que as visitas daquela mulher tornaram-se
frequentes. O homem deixava a comida perto da porta e, poucos
minutos depois, a escandalosa campainha avisava que companhia
chegara. Isso mudara até os costumes do homem, que passou a
usar um forte perfume adocicado.
Outro detalhe que prestei atenção quando recomecei a ter
consciência das coisas era que eles demoravam-se horas em
palavras sussurradas ditas por ele e de fraternidade ditas por ela.
Nada compreensível, pior agora que eu só contava com o ouvido
direito. Ele não servia mais só café, por vezes senti diversos aromas
que me eram muito agradáveis, como lasanha, feijão e churrasco.
Nunca recebi nenhum desses alimentos; talvez eu não merecesse.
Um dia o homem levou uma cadeira e sentou no meu quarto.
— Você devia me agradecer, vagabundo. Você quase morre
aí.
— Obrigado — eu disse.
— De nada. Mas eu vim lhe dar as boas notícias...
— ...
— Teremos uma nova experiência semana que vem.
— ...
— Alegre-se, porra!
— Estou feliz — eu estava entrando em desespero. —
Senhor... Poderíamos não fazer essa experiência?
— Por quê? Não acabou de dizer que está feliz?
— Sim, mas eu não sei se aguento...
— Ah, isso? Não te preocupas, velho. Eu cuido de ti enquanto
não puderes.
— Mas... Por que eu?
— Acho que tu apareceu pra mim como o candidato ideal.
Talvez tenha sido um sinal. É o destino, não percebes?
— Eu vou poder voltar pra casa depois desse experimento?
— Você ainda não aprendeu que aqui é a sua casa?
Eu não tinha mais forças. Minhas esperanças eram poucas,
contava apenas as horas em que iria definhar de vez. Sabia que eu
estava muito magro, cheio de problemas com todo o sofrimento que
vinha passando. Questionava-me se a melhor opção não seria me
matar logo.
Meu corpo fedia muito. Imaginei que tomara banho apenas
depois do experimento com a orelha esquerda, já que não
encontrava vestígios de sangue pelo corpo. Os dias passavam sem
que eu tivesse muita esperança. Recebia, agora, lanches e duas
refeições, mas eu não tinha vontade de comer nada, forçava-me.
Achei até que podia entender o meu sequestrador. Era
alguém deformado, deveria sofrer muito e achava que precisava
descontar em outros. Ele dizia várias vezes que eu era a cobaia,
então ele estava planejando torturar outras pessoas. Outros cegos
como eu? Talvez. Achei que a mulher que o visitava não fazia ideia
do que ele estava fazendo.
— Ela acha que ele é um cara legal. Deve achar que ele é um
amor de pessoa por lhe servir café... Ô, tadinho. Tadinho desse
deformado. Tão sofrido. Não faz mal pra ninguém.
O fatídico dia chegou indiferente. Quando o sequestrador
apareceu na porta e informou que chegara a hora para o
experimento, senti o medo novamente, é claro. Contudo, não
titubeei. Levantei-me e pedi para que o homem guiasse.
O sequestrador, feliz com a minha nova postura, segurou no
meu braço — desta vez sem agressividade — e contou-me como ele
enxergava a casa: “você está no meu corredor encantado, o seu
quarto é o mundo das cobaias, onde vamos é o nosso laboratório
mágico, ele dizia empolgado como se eu fosse um grande admirador.
O laboratório mágico trouxe boas sensações. Aquele clima
agradável quase me fez agradecer por estar ali. Senti-me bem, em
harmonia como não tinha há muito tempo. O homem guiou-me até
à maca e eu deitei sobre ela com calma e também não me alarmei
quando o homem amarrou os meus braços.
— Eu estou em dúvida hoje — comentou o sequestrador.
— Qual?
— Eu trouxe a furadeira para o outro lado, mas gostei de você
agora. Então acho que vou passar para outro experimento. Tudo
isso pra continuarmos conversando, o que achas?
— O que será o outro?
— Tirar uma perna.
Engoli em seco e não respondi o homem.
— Bem, acho que vou para as pernas mesmo, depois os
braços, aí sim eu volto para o outro lado da cabeça e a boca por
último. Vai ficar legal. Tu me esperas que eu vou pegar outro
instrumento.
Eu respirava acelerado, estava tentando não pensar na dor
que sentiria em breve, mas no fundo ainda acreditava que poderia
fazer alguma coisa. Não sabia se porque o sequestrador criou algum
apreço por mim ou não, mas eu não fora amarrado tão forte como
da outra vez; não que fosse o suficiente para me trazer a liberdade,
mas assim era possível que tivesse mobilidade dos ombros e
cabeça.
Eu podia ouvir sons de pássaros, sentir o cheiro próximo do
preparo de alguma comida e o choro distante de uma criança. Tinha
quase certeza que estava bem próximo da rua de trás. Minhas
suposições que ele estava no quintal era certa. O pensamento de
ganhar tempo assaltou a mente novamente.
— Achei! — vibrou o homem entrando no quintal — Eu tinha
comprado um terçado anos atrás na internet. Eu tinha até
esquecido. Ele é muito bonito, queria que tu pudesses ver.
— Que legal — fingi animação — mas acho que um terçado
não vai trazer exatidão para o nosso experimento.
— Quê? Como assim?
— É que você terá que dar vários golpes, e terá que levantar
bem os braços perdendo precisão, sabe? — senti meu estômago
revirar.
O homem ficou calado e eu percebi que ele considerava o que
eu dissera. Eu queria continuar falando, mas não queria parecer
desesperado, então esperei o homem concluir o seu raciocínio. E
quando ele concluiu, falou um breve “espere aqui”. Como se eu
pudesse sair.
Isso foi como um sinal para que o meu cérebro voltasse a
funcionar a todo vapor. Pensava no que fazer quando a mulher
chegasse. Teria tempo o suficiente para elaborar uma fuga. Talvez
tivesse alguma ferramenta do homem perto dele, alguma coisa que
eu pudesse usar.
Ouvia, de dentro da casa, várias barulhos de metais
chocando-se uns contra os outros. E, por vezes, um grito de ódio.
Na certa o homem não estava conseguindo achar alguma coisa que
se enquadre no que eu sugerira. Mas eu sabia que meu tempo era
limitado e logo o sujeito apareceria com outra ferramenta, então
teria que arrumar uma outra desculpa. Precisava pensar rápido,
mas me cobrar só aumentava a angústia.
O sequestrador deu outro grito lá dentro, só que desta vez,
para a minha tristeza, foi de alegria. O homem veio correndo para
o quintal e continuou berrando:
— Resolvi! Resolvi! Resolvi essa porra!
— Como conseguiu? — fingi interesse.
— Tu não sabes que sou um gênio, velho? — ele vangloriava-
se rindo.
— Conte-me, por favor.
— Simples, muito simples. Eu esquentei a lâmina na brasa.
Agora tá tão quente essa merda, que vai decepar a tua perna de
uma só vez.
— Mas eu acho...
— Preciso ser rápido, velho. Antes que esfrie, né? Ajeita tua
perna aí — as minhas pernas estavam cruzadas. — Quero um corte
perfeito.
— Espera...
— Bora logo, velho. Vamos fazer. Quero ver como fica.
— Calma! — gritei.
O homem ficou mudo.
— Antes de começar eu queria te dizer que posso te ajudar.
— Ajudar em quê? — disse ele, mudando de tom.
— No seu problema.
— Que problema?
— Eu sei bem o que você passa. As pessoas também me
tratam diferente. Ninguém aceita a gente.
— Cala a boca, eu não tenho problema.
— Eu sou cego, as pessoas me ignoram.
— Ninguém me ignora, porra. Eles me notam, notam demais.
Eu queria ganhar tempo, mas percebia que não estava dando
certo, ele estava ficando mais irritado.
— Mas mesmo assim posso ajudar.
— Ninguém pode. Só quero viver em paz.
— Eu sei disso. Mas eu consigo...
— Cala a boca, velho. Estamos perdendo tempo, vou torar
logo essa tua perna. Depois conversamos.
Em desespero por ter perdido o controle da conversa,
balancei-me com força e caí com a maca por cima de mim. Perdi o
ar com a queda e bati a boca também, mas a agonia falava mais
alto que a dor naquele momento.
O sequestrador ficou furioso, gritava comigo, e quando me
posicionou novamente, esbofeteou o meu rosto. Mas o que o
ensandeceu de vez foi constatar que, embora o metal da sua arma
ainda estivesse quente, não estava mais exatamente na
temperatura que ele imaginou pra derreter a minha perna. Chorou
de ódio e voltou com o terçado para dentro da casa.
Eu sabia que agora seria mais rápido e que não daria mais
pra dialogar com aquele cara. O tapa que eu tomei acertou a minha
orelha boa, de modo que estava desorientado pela dor de cabeça e
a audição comprometida. Além disso, ainda me recuperava do
baque no chão que tomara, mas não havia outro jeito, iria me jogar
de novo. Perder a perna significava deixar quase nula as chances
de escapar.
Balancei-me três vezes até que conseguir me jogar
novamente. Mas desta vez, não cai de bruços e sim de lado, senti
meus ossos, já fracos, deslocarem. Já não ligava, virei-me
novamente até colocar a maca por cima de mim, cobrindo as
pernas.
No exato momento em que consegui, o homem apareceu
novamente com a arma em brasa. E disse:
— Não vais escapar mais, velho filho da puta.
O sequestrador levantou a maca com facilidade, mesmo sob
os meus espasmos em tentativa de atrapalhar. O homem, desta vez,
segurou bem a maca para que não virasse e senti o calor do terçado
próximo a minha pele. Gelei, mas então ouvi o meu gongo, o tempo
que precisava finalmente. A campainha.
— É ela, é ela, é ela — gritei entre o alívio e a tensão.
O homem ficou entorpecido por um bom tempo. Então, deu
dois socos em si mesmo e correu para dentro da casa. O cronômetro
começara a contar para mim. Teria que me jogar novamente. Desta
vez, eu não me bati muito, pegara o jeito ou talvez a possibilidade
de escapar me fizera esquecer qualquer sofrimento.
As três quedas afrouxaram as cordas, mas mesmo assim
perdi alguns minutos tentando me desvencilhar delas. O ouvido
direito, ainda perturbado pelo tapa de mais cedo, conseguia ouvir
distante uma conversa. Isso era o meu guia de que podia continuar.
Saí da maca desorientado, mas as muitas horas que ficara
trancado no quarto me fizera fazer vários roteiros de como seria a
fuga. Então, como planejado, guiei-me pelo vento, mas, esbarrei em
um muro. Diferente de como pensara, era alto, dava na altura do
queixo.
Voltei para a maca e a puxei até o muro. Encostei ela e subi
primeiro a perna direita, mas quando tentei a esquerda, a maca
deslizou e tombei para o lado. A agonia já tomava conta. Desta vez,
fui o mais cauteloso que a ansiedade permitiu. Quando posicionei
os dois joelhos na maca, a maca deslizou um pouco, mas me apoiei
rápido no muro. Joguei-me para o outro lado sem me importar com
a queda, que de fato machucou quando cai, mas não me importou.
Estava livre.
Tentei correr, mas me batia, então acelerei o máximo que
pude colocando as mãos pra frente. Meu coração estava explodindo
de medo; suava, embora o vento do dia fosse refrescante. Sentia
meu corpo muito fraco, tinha medo de desmaiar. Medo de ser pego,
de sofrer. Corria. Tropeçava. Levantava. Corria de novo.
— Senhor! — ouvi alguém gritar atrás.
Eu não quis parar, continuei andando.
— O que está acontecendo? Precisa de ajuda? — Percebi que
era uma voz feminina e fiquei mais tranquilo.
— Socorro — consegui dizer. — Preciso de ajuda.
— Você está sangrando — ela disse. — Venha comigo, eu lhe
ajudo — ela segurou o meu braços direito.
— Ele está vindo. Preciso fugir.
— Não se preocupe. Vou tirar você daqui.
— Rápido, por favor.
— Não se preocupe. Tenho um amigo que mora aqui perto.
Cuidaremos de você.
Eu estava com a audição comprometida e atordoado com
tudo o que me acontecera, mas podia jurar que aquela voz era
familiar. Ainda assim, eu preferia continuar confiando.
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Autor
Igor Quadros nasceu em Belém, Pará. Escreveu as obras: “O Livro de
Almas – Os Dois Herdeiros”, “Agonia”, “Ermo”. Além de ser coautor nos
livros: “Noites Sombrias” e “Confraria do Horror”. Trabalha também
adaptando seus universos literários para os games.
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Outras Obras:
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