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Resenhas] Fogo de palha Sexual Personae PAGLIA, Camille. New York: Vintage, 1991. Personas Sexuais São Paulo:Companhia das Letras, 1992. (tradução: Marcos Santarrita) O sucesso de vendagem dos livros de Camille Paglia nos Estados Unidos constitui um fenômeno que não pode ser atribuído exclusivamente às manipulações da mídia. É impossível dissociar a recepção que as suas teses tiveram da crise atual nas relações entre homens e mulheres que tem se evi- denciado nas denúncias dos "assédios sexu- ais' e em separações paradigmáticas como a de Woody Allen e Mia Farrow. Camille Paglia levanta a bandeira de que a guerra entre os sexos é Intrínseca à natureza huma- na. O erro das feministas, segundo Pagfia, seria não enxergar a profunda imanência da natureza humana e a inevitabilidade desta guerra. Mas é preciso distinguir a Camille Paglia das entrevistas, bastante polêmicas, da au- tora do livro recentemente lançado no Bra- sil. Escrito na primeira pessoa, em um arrazo- ado que fascina pela pretensão de seus pro- pósitos, Personas Sexuais defende a tese de que existe continuidade e unidade na cul- tura ocidentale que esta caracteriza-se pelo fato do "judaísmo-cristianismo nunca ter der- rotado o paganismo, ainda florescente na arte, no erotismo, na astrologia e na cultura pop. Camille Paglia afirma, ao longo de seu extenso ensaio, o poder da natureza e a inu- i O tradutor da versão brasileira equivocada- mente traduziu pop cullure por "cultura popular". Preferi manter minha tradução pessoal do inglês nes- ta e em outras passagens Assim, a numeração entre parágrafos refere-se ao original em inglês. tilidade dos esforços culturais para domar o indomável. No prefácio, Paglia enfatiza que sexo e natureza "são brutais forças pagãs" e que considera verdadeiros os "estereótipos sexu- ais e o substratum natural da diferença entre os sexos". Ela explica a predominância mas- culina na criação do mundo civilizado pelo fato de que toda realização cultural "é uma projeção, um desvio para a transcendência, sendo que os homens estão anatomica- mente destinados a serem projetores" (p. 17). Os homens são os criadores da Cultura e a superioridade masculina está inscrita na pró- pria lei da Natureza. Neste sentido, os ho- mens 'transcendem" a Natureza, ou melhor, são transcendentes por natureza. Os valores masculinos (apolineos) são hierarquicamente superiores aos femininos (atônicos, dionisíacos). A natureza, por sua vez, tem uma Imanência de ordem superior à espécie humana. Só que para Paglia o poder da Natureza não tem a mesma força romântica que a visão dos ecologistas. "O que é belo na natureza", diz ela, "se reduz a uma fina pele do globo (...)". Basta raspar tal pele para que a 'feiúra demoníaca da natureza irrompa", diz Paglia logo nas pri- meiras páginas. Desta concepção da natu- reza como feiúra, bem ou mal encoberta pela tênue pele da esfera terrestre, despren- de-se sua concepção sobre a feiúra da na- tureza humana, As forças primitivas que po- voam homens e mulheres dificilmente podem ser domadas pela civilização. O livro tem a pretensão enciclopédica do Segundo Sexo de Simone de Beauvoir sem compartilhar de suas qualidades. Beauvolr insistia na tese da construção social: "nin- guém nasce mulher, torna-se mulher" é sua frase universalmente mais citada. Neste sen- tido, as mulheres, a exemplo dela própria, poderiam optar por uma vida mais transcen- dente, desde que se liberem da escravidão doméstica. Em última instância, para poder ocupar um lugar de igualdade com os ho- ESTUDOS FEMINISTAS 197 N. 1/93

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Resenhas]

Fogo de palha

Sexual PersonaePAGLIA, Camille.

New York: Vintage, 1991.

Personas SexuaisSão Paulo:Companhia das Letras, 1992.(tradução: Marcos Santarrita)

O sucesso de vendagem dos livros deCamille Paglia nos Estados Unidos constituium fenômeno que não pode ser atribuídoexclusivamente às manipulações da mídia.É impossível dissociar a recepção que as suasteses tiveram da crise atual nas relaçõesentre homens e mulheres que tem se evi-denciado nas denúncias dos "assédios sexu-ais' e em separações paradigmáticas comoa de Woody Allen e Mia Farrow. CamillePaglia levanta a bandeira de que a guerraentre os sexos é Intrínseca à natureza huma-na. O erro das feministas, segundo Pagfia,seria não enxergar a profunda imanência danatureza humana e a inevitabilidade destaguerra.

Mas é preciso distinguir a Camille Pagliadas entrevistas, bastante polêmicas, da au-tora do livro recentemente lançado no Bra-sil. Escrito na primeira pessoa, em um arrazo-ado que fascina pela pretensão de seus pro-pósitos, Personas Sexuais defende a tese deque existe continuidade e unidade na cul-tura ocidentale que esta caracteriza-se pelofato do "judaísmo-cristianismo nunca ter der-rotado o paganismo, ainda florescente naarte, no erotismo, na astrologia e na culturapop. Camille Paglia afirma, ao longo de seuextenso ensaio, o poder da natureza e a inu-

i O tradutor da versão brasileira equivocada-mente traduziu pop cullure por "cultura popular".Preferi manter minha tradução pessoal do inglês nes-ta e em outras passagens Assim, a numeração entreparágrafos refere-se ao original em inglês.

tilidade dos esforços culturais para domar oindomável.

No prefácio, Paglia enfatiza que sexo enatureza "são brutais forças pagãs" e queconsidera verdadeiros os "estereótipos sexu-ais e o substratum natural da diferença entreos sexos". Ela explica a predominância mas-culina na criação do mundo civilizado pelofato de que toda realização cultural "é umaprojeção, um desvio para a transcendência,sendo que os homens estão anatomica-mente destinados a serem projetores" (p. 17).Os homens são os criadores da Cultura e asuperioridade masculina está inscrita na pró-pria lei da Natureza. Neste sentido, os ho-mens 'transcendem" a Natureza, ou melhor,são transcendentes por natureza.

Os valores masculinos (apolineos) sãohierarquicamente superiores aos femininos(atônicos, dionisíacos). A natureza, por suavez, tem uma Imanência de ordem superiorà espécie humana. Só que para Paglia opoder da Natureza não tem a mesma forçaromântica que a visão dos ecologistas. "Oque é belo na natureza", diz ela, "se reduz auma fina pele do globo (...)". Basta raspartal pele para que a 'feiúra demoníaca danatureza irrompa", diz Paglia logo nas pri-meiras páginas. Desta concepção da natu-reza como feiúra, bem ou mal encobertapela tênue pele da esfera terrestre, despren-de-se sua concepção sobre a feiúra da na-tureza humana, As forças primitivas que po-voam homens e mulheres dificilmente podemser domadas pela civilização.

O livro tem a pretensão enciclopédicado Segundo Sexo de Simone de Beauvoir semcompartilhar de suas qualidades. Beauvolrinsistia na tese da construção social: "nin-guém nasce mulher, torna-se mulher" é suafrase universalmente mais citada. Neste sen-tido, as mulheres, a exemplo dela própria,poderiam optar por uma vida mais transcen-dente, desde que se liberem da escravidãodoméstica. Em última instância, para poderocupar um lugar de igualdade com os ho-

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mens é preciso abdicar daquilo que, para aesmagadora maioria das mulheres, constituiseu aspecto mais feminino: o ser mãe.

Camille Paglia também denuncia os ris-cos da maternidade, mas justamente paraconfirmar sua tese de que os seres humanossão biologicamente determinados, e quenada pode mudar a agressividade masculi-na e a passividade feminina. A mulher estápresa à maternidade de seu corpo e, nestesentido, impedida de transcender. "O femi-nismo tem sido simplista ao afirmar que osarquétipos femininos são falsidades politica-mente motivadas pelos homens. A repugna n-cia histórica pela mulher tem uma base raci-onal • repulsa é a adequada resposta da ra-zão à grosseria da natureza procriativa(p.23). Assim, onde Simone de Beauvoir apon-ta para uma contradição - da qual o femi-nismo não conseguiu entender todas as di-mensões - Paglia decreta a fatalidade bio-lógica. No way out.

O desconforto de Pag lia com a condi-ção feminina - desconforto que também énítido em Simone de Beauvoir, de quemPaglia é uma versão bufônica - não invalidaseu questionamento com respeito às parti-cularidades da identidade feminina. As fe-ministas norte-americanas - com raras e hon-rosas exceções - fizeram uma leitura pobre epreconceituosa da obra de Freud e Insistemem afirmar que o amor materno é uma cria-ção social, como se isto resolvesse a ques-tão da maternidade. Como negar o desejode ter filhos? Como negar que a criança serámais feliz se for amada e bem tratada? Averdade é que as crianças só têm a ganharquando nascidas numa família heterossexu-al, em que os pais tenham uma boa relaçãoe amem seus filhos. As análises culturalistase/ou 'pós-modernas" terminam por negar ocorpo e seus limites, como se as dimensõesdo simbólico e do imaginário pudessem serpensadas separadamente do corpo que "su-porta" as relações sociais.

Paglia também não saldas generalida-des sobre a "miséria procriativa" e a semprepresente dimensão ctônica da Natureza Sualeitura de Freud é tão superficial quanto adas feministas norte-americanas que ela tan-to critica. Além do seu completo desconhe-cimento da produção psicanalítica contem-porânea, especialmente a francesa, o quedenota seu etnocentrismo, Paglia tambémIgnora as boas contribuições em língua in-glesa, como as de Juliet Mitchell e Nancy

Chodorow. Ela declara-se "pró-aborto" e"pró-pornografia" o que, como programapolítico, é muito pobre. Sua defesa do abor-to tem pouco a ver com o tema da materni-dade responsável e muito mais a ver comseu horror às crianças. Já o apelo à porno-grafia pode ser relacionado ao seu despre-zo pelo amor. Ela só reconhece a atração"irracional", vale dizer, perversa e bestial.

Finalmente, a "contestadora" Camilledefende a velha tese da Irremediável hie-rarquia estabelecida pela natureza No es-forço de evocar a importância das obscurasforças instintivas, ela desqualifica o esforçocivilizatório que busca formas democráticasde convivência para a sociedade humana.A visão política de Paglia, decorrente de suaescala de valores hierárquica e antide-mocrática, é extremamente conservadora.Ela abomina qualquer teoria que preconizea igualdade de direitos, daí seu profundoantiliberalismo.

No entanto, o maior problema do livronão é ideológico, mas teórico. A tão propa-lada "extraordinária erudição" de CamillePaglia encontra-se bastante comprometidapelos próprios limites de sua análise. Fiel aolema de que uma tênue pele separa a bele-za da superfície da feiúra dos conteúdos in-ternos, Paglia obsessivamente descobre o"demoníaco" em tudo o que vê. Sua visãodo Renascimento, por exemplo, é bastantediscutível. "O Renascimento, um retorno daimagem e da forma pagã, foi uma explosãodas personas sexuais", diz ela. "O Renas-cimento liberou o olhar ocidental, reprimidopelo Cristianismo das Idades Médias. Nesteolhar, sexo e agressão estão amoralmentefusionados" (p. 14). Como não contrapor estavisão tão limitada de Pag lia às palavras deBurckhardt que fala do 'fruto sublime daque-le conhecimento do mundo e do homemque, por si só, demanda que se confira aoRenascimento italiano o título de guia e farolde nossa época?"

A profunda delicadeza e serenidade daMona Lisa são negadas por Pag lia que a des-creve como 'a embaixatriz de temposprimevos, quando a Terra era um desertoInóspito para o homem". O rio que serpen-teia no plano do fundo do quadro é interpre-tado como uma alusão ao seu "frio e demo-níaco coração (p 147). A mesma e recor-rente temática do eterno retorno do dioni-síaco, da natureza demoníaca e Irreprimível,em oposição aos valores apolíneos unifica

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seus diversos ensaios sobre clássicos da lite-ratura ocidental. Assim. Goethe é apresen-tado como um discípulo de Rousseau que"Iniciou a auto-consciência literária alemãnum tumulto de ambigüidades sexuais" (p.147). William Blake, por sua vez, "é o Sadebritônico", assim como Emily Dickinson 'é oSade norte-americano. (...) Blake fez da guer-ra dos sexos o primeiro conflito teatral do ro-mantismo Inglês (p. 271).

Camille Pag lia é, nesta medida, um fe-nômeno norte-americano. Os temas queaborda, suas opiniões e interlocutores são,portanto, bastante específicos. Assim, pormaior que seja o esforço da mídia para torna-la um sucesso internacional, pela publicida-de as suas declarações retumbantes, do tipo"eu criei Madonna e agora vou destruí-la"(sie), no Brasil suas idéias dificilmente causa-rão a polêmica que seus editores desejari-am. A primeira barreira é mesmo o preço dolivro. Depois, as dificuldades da leitura: sãoquase 700 páginas (edição Vintage, 1991)agrupadas em 24 capítulos, versando sobrefilosofia, arte e literatura, dos gregos aos mo-dernos. Para leitores com verdadeira dispo-

sição de leitura a bibliografia utilizada porPaglia pode ser muito mais enriquecedorado que suas polêmicas teses sobre arte e li-teratura. Como tudo que é modismo', asPersnonas Sexuais terão a mesma duraçãodo que fogo na palha. E a autora do livro,como toda sua Inteligência e verve, prova-velmente sabe disto.

MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES •

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giulio Carlo Storia Dell Arte Italiana -2. Da Giotto a Leonardo Fuenze, SansoniperIa Scuola, seconda ristampa, 1991.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo São PauloDifusão Européia do Livro, 2° edição, 1960

13UCKIIARDT, Jacob A Cultura do Renascimentona Itália. São Paulo Companhia das Letras,1991.

MITCHELL, Juliet. Psychoanalysis and FeminismNova Iorque Pantheon Books, 1974.

WORFFLIN, Fleinrich Renascença e Bar-loco SãoPaulo Perspectiva, 1989

Solidariedade mais do que irmandade:a nova meta do feminismo

Segregated Sisterhood:Racism and the Politics ofAmerican FeminismCARAWAY, Nancie.

Knoxville: The University of TennesseePress, 1991.

Por ter como foco principal a questãodo racismo e a prática política do feminismoamericano (como o subtítulo do livro indica),o estudo de Nancie Caraway traz uma con-tribuição muito Importante para a teoria eprática do feminismo não apenas nos Esta-dos Unidos, mas também no Brasil. Cada diase torna mais urgente que nós feministas bra-sileiras enfrentemos a questão do racismo noBrasil e entre nós, isto é, que pensemos sobrea questão de nossa própria segregated

sisterhood, cuja tradução em português se-ria "irmandade segregada't.

Muito tempo se passou desde 1971,quando o movimento feminista americanolançou o slogan - Sisterhood is blooming;springtime will never be the some'. Sem dú-vida, com o florescer da "irmandade", asprimaveras passaram a ter um sentido dife-rente, de busca de mudança e construçãode uma nova identidade de mulher. Porém,logo no início da década de 80, as mulherespretas e as mulheres de cor (women of color)

1 A palavra "sisterhood" indica unificação demulheres em torno de uma causa comum Não temosem Português uma palavra que indique unia relaçãoapenas entre mulheres O termo "irmandade" se re-fere a relações entre Irmãos De qualquer forma, uti-lizarei "Irmandade" aqui, me referindo à relação en-tre mulheres, irmãs

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nos Estados Unidos começaram a denunciaro racismo contido nessa nova identidade demulher, a qual se baseava na experiênciadas .mulheres brancas, ignorando totalmen-te as experiências das mulheres não bran-cas, que eram marcadas não apenas pelasrelações de gênero, mas pelo racismo dasociedade americana. A noção de "irman-dade" passou, então, a ser duramentecriticada pelas escritoras feministas pretas epelas mulheres de cor dos Estados Unidos2.

Ainda que as mulheres brancas, de ummodo geral, tenham levado algum tempopara ouvir e compreender as críticas feitas ànoção de "irmandade" 3 , já no final da dé-cada de 80 começaram a responder a estacrítica com seriedade, publicando textosque representam contribuições fundamen-tais para a construção de uma nova teoriafeminista. O livro de Caraway faz parte des-sas publicações. Farei um breve resumo deseu estudo e em seguida tentarei discutir al-gumas questões importantes que ele suscitapara nós estudarmos aqui no Brasil.

Na introdução de seu livro. Carawaydiscute a questão da diferença, que é cen-tral na crítica da noção de "irmandade".Segundo ela, a teoria das feministas ameri-canas pretas expõe a violência desta noçãoe provê o conhecimento necessário para

2 Em 1981, Angela Davis publicou seu livroWomen, Race and Class (New York • Random House),13ell Hooks publicou seu Ain't 1 a Woman blackwomen and feminisin (Boston South End Presa), oprimeiro de uma longa série, Cherrie Moraga e Glo-ria Anzalclúa editaram This Bridge Called MJ, BackWritings by Radical Women of Colour (Watertown.Persephone Presa) Em 1983, Cheia Sandoval publi-cou seu artigo "Women respond to Racism"(Occasional Paper Series) e Diane Lewis publicou "Aresponse to Inequality, Black Women, Racism andSexism" (The Signs Reader) Em 1984, Audre Lordepublicou seu livro Sister Outsider Estas publicaçõesrepresentam um marco importante na construção dateoria feminista nos Estados Unidos

3 Donna Haraway constitui uma importante ex-ceção neste sentido. Desde o final da década de 70,ela já vinha pesquisando a intrincada relação dasnoções de gênero, raça e natureza, que ela discuteem seu livro Primate Visiono, publicado em 1989(New York Routledge). Em 1985, Haraway publicouseu artigo "A Manifesto for Cyborgs Science,Techno/ogy, and Socialist Feminism ia lhe 1980s"(Socialtst Review, no 80), onde mostra a importânciada construção da "identidade histórica" das mulhe-res de cor nos Estados Unidos

identificar "as diferenças que fazem dife-rença"(p.6). Essa teoria, que Mora g a eAnzaldúa chamam de 'teoria na carne",mostra a necessidade de se prestar atençãoao contexto em que concretamente se vi-vem diferentes formas de opressão e de setentar fazer uma ponte entre elas. O livro dis-cute as diversas formas do feminismo fazeresta ponte, sempre partindo da 'teoria fe-minista na carne".

Na primeira parte do livro, Caraway dis-cute as relações dessa teoria com estudosdo pós-colonialismo, estuda as práticas polí-ticas e culturais do feminismo que busca re-atar vínculos com a África, e finalmente fazaproximações da teoria das feministas pre-tas com o pós-modernismo. Caraway consi-dera que o texto de Albert Memmi, TheColonizer and lhe Colonized (Boston:Beacon, 1967), ajuda a compreendera pro-jeto das feministas pretas, na medida em que,assim como Memmi, elas se recusam a sedefinir pelas categorias do colonizador, bus-cando a independência coletiva de seupovo, para emergir como um novo sujeito.Caraway mostra como os textos de Lorde eHooks representam novos paradigmas femi-nistas de conceituação da diferença ealteridade. Para ela, esta conceituação pas-sa necessariamente pela experiência de es-cravidão do povo afro-americano e nãopode se restringir a considerar a opressãoapenas em termos de gênero. Talvez o fossomaior entre as interpretações da prática fe-minista pelas mulheres pretas e brancas es-teja justamente na Intensa ligação das pri-meiras com 'uma comunidade mais amplade aliança e coletividade histórica" (p.42).Para pretas e pretos nos Estados Unidos, anecessidade de lembrar e recuperar o pas-sado que os brancos tentaram destruir temsido parte essencial de sua trajetória de setornar "americanas/os". Se, por um lado, estesenso de pertencimento a uma "humanida-de" comum coloca as teorias das mulherespretas feministas em antagonismo com o pós-modernismo, por outro lado, a própria expe-riência de ser 'mulher preta" estabelece umparalelo entre este último e aquelas teorias.Caraway vê este paralelo se estabelecendono trabalho de Haraway, que constrói umpós-modernismo feminista através da mito-logia do "cyborg". Segundo Haraway, aapropriação consciente da negação deuma única identidade pelas 'mulheres decor" e pelas mulheres pretas é fundamental

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Para ela, as mulheres pretas estavam no fi-nal de uma série de identidades negativas enão estavam incluídas nem nas categoriasde oprimidos - mulheres e pretos, que ar-gumentavam estar fazendo revoluçõesImportantes.

'A categoria 'mulher' negava todas asmulheres não brancas; 'preto' negava todasas pessoas não pretas, bem como todas asmulheres pretas. Porém, não havia uma 'ela',nenhuma singularidade, mas um mar de di-ferenças entre as mulheres dos Estados Uni-dos que afirmaram sua Identidade históricacomo mulheres de cor dos Estados Unidos(Haraway, citado em Caraway, p.58)4.

Se, sem dúvida, é importante estabele-cer vínculos com outras produções de teo-ria, para se entender a importância da teo-ria feminista que as mulheres pretas ameri-canas estão produzindo é preciso tambémexaminar como se produziu a alterldade dasmulheres pretas simbólica e historicamente.A segunda parte do livro é dedicada a esteexame e é aí que fica mais evidente a sepa-ração entre mulheres pretas e brancas Sim-bolicamente, há uma complexa interrelaçãoentre a ideologia de subordinação de gêne-ro e de raça, através de uma codificaçãodiferenciada dos corpos de mulheres pretase brancas. Enquanto estas últimas são consi-deradas sexualmente 'puras" e frágeis, deli-cadas, não sendo capazes de trabalhos pe-sados, as primeiras são vistas como 'super-excitadas" sexualmente, e como fortes ecapazes de fazer os trabalhos pesados, comoescravas ou empregadas domésticas. Tudoisto, aliado ao fato de o corpo da mulherbranca ser tomado como o padrão, em ter-mos de estética, por um lado, coloca a mu-lher branca num pedestal, e por outro, tornaextremamente problemático para as mulhe-res pretas lidar com noções do 'feminino" ede "mulher" e construir sua identidade base-ada nessas noções.

'Em artigo recente, Haraway mostra a impor-tância da figura de uma mulher preta, Sojourner Truth,na construção da noção de humanidade "numa pai-sagem pós-humanista". Segundo Haraway, Truth, cujonome quer dizer "verdade itinerante" é um "sujeitoexcêntrico" que pode nos ajudar a imaginar "umahumanidade cujas partes são sempre articuladas atra-vés de tradução". Ver "Ecce Horno, Ain't (Ar'n't) I aWoman, and Inappropriate/d Others: The Human ina Post-Humanist Landscape" In Butler, J. e Scott, JFemintsts Theortze the Polttical (New York•Routledge, 1992)

Historicamente, Caraway documentacomo as lutas feministas das mulheres pretasamericanas foram excluídas dos relatos ofi-ciais das lutas feministas pelo direito de voto- a chamada 'primeira onda do feminismo'-,que começou no século XIX. Se, por um lado,as feministas brancas partiram em busca desua história, argumentando que esta haviasido silenciada num mundo de homens, ashistoriadoras feministas pretas argumentamque houve não apenas silêncio por parte dasfeministas brancas em relação à história dasfeministas pretas, mas houve também trai-ção contra estas e racismo no desenrolar daluta sufragista.

O livro conclui com o argumento cen-tral de que a noção de irmandade deve sersubstituída pela de uma prática feministamulticultural de solidariedade. Caraway uti-liza o conceito de solidariedade de acordocom Chantal Mouffe, que vem desenvolven-do a idéia de uma 'democracia radical",'uma nova teoria democrática para diver-sos agentes políticos', que se torna possívelcom a atual 'dissolução dos marcos de cer-teza" (p.193). As noções de direito e cidada-nia, "tradicionalmente reivindicadas pelodiscurso liberal do individualismo possessivo",são redimensionadas 'num contexto maisamplo, de coalizão amigável" (p.194), ondese lida com diferenças concretas, e não comessências abstratas que as reificam. E, sobre-tudo, onde se respeita essas diferenças, semse forçar identificações ou identidades.

Talvez por se basear em documentos edados de pesquisa na segunda parte do li-vro, Caraway consegue articular melhor seuargumento &do que na primeira parte, ondeela às vezes se perde na tentativa de articu-lar a teoria feminista produzida pelas mulhe-res de cor com estudos do pós-colonialismoe do pós-modernismo. Esta segunda partetambém me parece mais útil para nós pen-sarmos a questão das relações do racismo efeminismo no Brasil e concordar absoluta-mente com Caraway, que aqui também serámais frutífero para nossa teoria e nossa práti-ca pensarmos menos em 'irmandade" e maisem solidariedade e coalizão amigável entrenós mulheres.

O que se constata aqui no Brasil é ain-da o silêncio quase absoluto das mulherespretas e de cor. Por um lado, os estudos quese Interessam pela questão racial no Brasilgeralmente não consideram a questão degênero. Nestes estudos, a condição de ser

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mulher e preta é raramente estudada. Noestudo fundamental da psicanalista NeusaSouza, Tornar-se Negro ou As Vicissitudes daIdentidade do Negro Brasileiro em AscensãoSocial (Rio: Grad, 1983), por exemplo, a mu-lher preta tem uma posição de destaque,porém sua condição de mulher não é espe-cificamente estudada. Por outro lado, as pro-duções feministas sobre "a mulher" ou sobrerelações de gênero geralmente não consi-deram a questão racial A ausência da mu-lher preta fica especialmente evidente quan-do se considera estudos que pretendem daruma visão do movimento de mulheres no Bra-sil, como o estudo importante de BrancaMoreira Alves sobre Ideologia & Feminismo:A Luta da Mulher pelo Voto no Brasil (Petró-polis: Vozes, 1980). E no livro de MaryvonneLapouge e Clelia Pisa, Brasileiras: voix, écritsdu Brésil (Paris: des Femmes, 1977), há umaúnica mulher preta, Carolina Maria de Jesus,que representa a favela e o emprego do-méstico. As autoras comentam sobre a situ-ação de privilegiadas das demais entrevis-tadas e sobre o fato de serem todas bran-cas, e comentam como é difícil para a po-pulação negra ascender em nossa socieda-de, ainda que sua presença sempre tenhasido 'considerável". Porém, novamente, aquestão da mulher preta, enquanto tal, é si-lenciada.

Este nosso silêncio no Brasil sobre nossoracismo se torna mais contraditório na medi-da em que o movimento de mulheres aquisempre se preocupou com nossas diferen-ças de classe e procurou estar atento ao quedizem as mulheres pobres, que constituem agrande maioria da população. Nossa práti-ca, que atualmente se concentra em ONGs,está buscando o diálogo com essas mulhe-res, de modo a que elas possam atender asuas próprias necessidades. Além disso, nos-so movimento tem feito alianças importan-tes com o movimento negro. Graças à nossaação conjunta, conseguimos dar um passono sentido de libertar as empregadas domés-

ticas da extrema dependência que têm daspatroas. Na Constituição de 1988, elas ad-quiriram direitos iguais aos de outras pessoasque trabalham. Porém, a verdadeira eman-cipação da empregada doméstica só seráconseguida quando a patroa também se li-bertar da dependência que tem da empre-gada, e isto só será possível se começarmosa refletir seriamente sobre as interrelaçõesdo racismo com nossa opressão de gênero.

É preciso, então, que comecemos aprestar atenção às diferenças de nossas ex-periências em termos de nossas relações ra-ciais e que pensemos sobre o que nos dizSouza em seu trabalho: "A descoberta deser negra é mais do que a constatação doóbvio. (...) Saber-se negra é viver a experi-ência de ter sido massacrada em sua identi-dade, confundida em suas perspectivas, sub-metida a exigências, compelida a expecta-tivas alienadas" (1983:17-18). De acordo como que nos mostra Caraway, esta experiênciaé muito semelhante à das mulheres pretasnos Estados Unidos. Lá as feministas brancascomeçaram a prestar atenção a esta expe-riência extremamente dolorosa, e, principal-mente, a pensar em quê elas próprias têmcontribuído para que esta situação se per-petue ou para que ela mude. Naturalmente,esta mudança por parte das feministas bran-cas vem da energia e organização das pró-prias mulheres pretas e das mulheres de cor,porém interessa a todas nós. Como mostraCaraway, a partir do momento que essasmulheres começaram a teorizar sobre suasexperiências, já não se pode pensar em gê-nero como uma categoria Isolada de outrascategorias de análise de relações de domi-nação. A partir das experiências e das teori-as das mulheres pretas e das mulheres decor nós sabemos que só será possível umaverdadeira mudança nas relações de gêne-ro se mudarmos todas as outras formas deopressão.

SANDRA AZERÉDO I

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E. Badinter ou a arte da conciliação

XV, de l'Identité MasculineBADINTER, Elisabeth.

Paris: Odile Jacob, 1992.

E. Badinter tem o dom de "captar asIdéias no ar", misturá-las com suas numero-sas leituras e assim produzir um livro de su-cesso. Em 1980, ela publicava L' Amour enPlus, um panfleto contra a noção de "instin-to materno" que o próprio movimento femi-nista contemporâneo já havia denunciadomuitos anos antes. Em 1986, em seu livro L'unest l'autre, ela declarava, ao mesmo tempo,que "o patriarcado está morto" e que ospapéis sexuais estavam em vias de desapa-recimento, cedendo lugar a um novo tipode indivíduo, andrógino , . Naquela ocasião,ela encontrava inspiração tanto na ofensivaIdeológica da direita e da esquerda oficial,para a qual o feminismo estava superado,quanto nos debates a respeito das novas téc-nicas de reprodução. Agora, E. Badinter sevolta de maneira comovida para o gêneromasculino, maltratado pelo feminismo queela pretende continuar defendendo, e paraa natureza que teria pregado aos homens apeça de fazê-los nascer do ventre de mu-lheres.

Para se tornar um homem, o menino temde " convencer a si mesmo e aos outros deque não é uma mulher, nem um bebê, nemum homossexual", O livro é construído emtorno dessa Idéia simples. Ao longo dele, aautora nos descreve o terrível percurso, se-meado de obstáculos, que o embrião mas-culino, depois o bebê, mais tarde a criançado sexo masculino e finalmente o homemadulto, devem seguir para encontrar sua"Identidade masculina".

"Não se nasce homem; torna-se homem"

Em momento algum, E Badinter faz umareflexão sistemática a respeito das noções

1 L'Amour eis Plus Paris Flammarion, 1980,L'Un est l'Autre Paris Odile Jacob, 1986, cf LesCabters du Félnintsme, n. 37, outono de 1986

de "identidade masculina", de "masculini-dade" ou de "qualidades masculinas" queela emprega como sinônimos e sem o recur-so das aspas'. Somente no decorrer da leitu-ra é que descobrimos uma definição Implíci-ta e eclética, formulada em duas dimensões.A primeira se refere à história das socieda-des. Segundo a autora, todas as sociedadesdefinem formas oficiais, embora diferentes,de marcar a passagem do mundo femininopara o mundo masculino. Entre os sambas eos baruias da Nova Guiné, por exemplo, osmeninos, ao atingirem a puberdade, sãoviolentamente arrancados de suas mães esubmetidos a rituais de iniciação mais oumenos "bárbaros". Durante muitos anos, se-rão educados, na verdade reeducados, pelogrupo dos homens, na casa dos homens. NaEuropa, sob o Antigo Regime, os jovens danobreza partiam para conviver com famíliasestrangeiras a fim de seguir sua educaçãocomo jovens senhores. Mais tarde, os liceuspara rapazes assumiram a função de trans-mitir esses valores 'viris" aos filhos das famíli-as respeitáveis Finalmente, no século XX, sãoos movimentos de escoteiros e, principalmen-te, o desenvolvimento dos esportes coleti-vos' baseados na violência e na competi-ção que permitem fortalecer a virilidade dosrapazes prejudicada durante a primeira in-fância. Como lembra E. Badinter, a separa-ção entre as esferas da produção e da famí-lia, entre o homem "provedor" e a mulherque educa, é a característica distintiva dasociedade industrial, Dessa maneira, o ho-mem é afastado dos seus filhos, o que trazconsequências particularmente terríveis, naopinião da autora, para os filhos do sexomasculino, que ficam sem um modelo deidentificação digno deste nome.

Segundo Badinter, essas crianças,sufocadas pelas mães, correm então o risco

2 Esse trabalho de reflexão crítica foi realiza-do de modo extraordinário por N. Claude-Matlueu,ainda que não aceitemos na íntegra suas análises.Ver, L'AnatonnePoldzque Paris Côté- femmes, 1991

3 Muito admira que E. Bachnter não faça amenor referência ao Exército, instituição integral-mente consagrada à transnussão desses valores "vi-ris" aos jovens

ESTUDOS FEMINISTAS 203 N. 1/93

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de não mais saber a que sexo pertencem4ou de desenvolver uma extrema agressi-vidade em relação às mulheres, misoginia ehomofobia explicáveis pelo recalcamentode sua "porção de feminilidade" É o tempodo homem "duro". Mas, várias vezes na his-tória, o homem machista teve suas certezasabaladas pelas feministas e pelos homosse-xuais. Hoje em dia, as novas mulheres nãosão apenas mães, mas pessoas ativas quereivindicam a divisão das tarefas domésti-cas, etc. O homem machista é substituídopor um homem 'culpado", um homem"mole", que "renuncia voluntariamente aosprivilégios masculinos (...r, e que, ao mes-mo tempo, renuncia à sua "masculinidade".

Uma concepção psicologizanteda sociedade

A segunda dimensão relativa à mascu-linidade é de ordem psicológica. Esta é, aliás,a dimensão manifestamente mais importan-te para Badinter. No fim do livro, a autoraanuncia o nascimento de um novo homemfinalmente reconciliado consigo mesmo,que assume sua 'bissexualidade", quer di-zer, suas 'qualidades femininas" indispensá-veis para fazer dele um homem sem reser-vas, capaz de expressar suas emoções, amo-roso para com os filhos etc., bem como suas"qualidades masculinas". "Já é hora", escre-ve E. Badinter, "de fazer o louvor das virtudesmasculinas que nõo são adquiridas de modopassivo ou com facilidade, mas que se afir-mam através de sacrifícios e exigências davida. Essas virtudes se chamam domínio dasemoções, desejo de auto-superação, pra-zer do risco e do desafio, resistência àopressão, condições necessárias para acriatividade, assim como para a dignidade.Essas virtudes pertencem aos seres humanostanto quanto as virtudes femininas. As últi-mas conservam o mundo, as primeiras fazemretroceder seus limites.(...) separadas, elaspodem transformar-se em pesadelo: o auto-controle pode virar neurose, o prazer do ris-co pode tornar-se suicídio, a resistência podedar em agressão. Inversamente, as virtudesfemininas, tão exaltadas hoje em dia, se não

4. Na página 94, E Badtnter faz menção aoescritor Phillip Roth que, aos quatro anos "mal sabiaa que sexo pertencia". Ora, Roth descreve exatamen-

te o contrário, recordando suas primeiras emoçõessensuais quando sua mãe vestia as meias

forem temperadas pelas virtudes masculinas,podem conduzir à passividade e à subordi-nação" (p. 277).

Depois dessa frase, quase nos pergun-tamos se não teria havido um engano. Qualnada i Nessa citação, E. Badinter torna explí-cito um conteúdo que perpassa de modomais ou menos claro todo o seu livro: a assi-milação entre o feminino e a passividade, omasculino e a atividade, num retorno aosantigos estereótipos da ideologia patriarcalconforme conceituada por Freud e mais ain-da por seus discípulos. Esses preconceitos sãoos mesmos que ela havia denunciado, comooutras o fizeram antes dela, em seu livroL 'Amour en Plus. Como justifica Badinter talassimilação? Fazendo-a simplesmente deri-var daquela primeira fase de fusão entre ofeto e a mãe, ao longo dos nove meses dagravidez, e mais tarde entre o bebê e suamãe durante os primeiros meses de vida:"Essa primeira relação erótica (a amamen-tação, nota de J.T.) ensina ao bebê o nirvanada dependência passiva e deixará traços in-deléveis no psiquismo do adulto. Mas as con-seqUências da experiência não são as mes-mas para os meninos e as meninas Para es-tas, a experiência está na raiz de sua identi-ficação com o próprio sexo, enquanto quepara o menino ela é uma inversão dos pa-péis posteriores. Para se tornar um homem, omenino deverá aprender a se diferenciar damãe e a recalcar no mais fundo de si mesmoaquela deliciosa passividade" (p. 75-76).Para se tornar urna mulher, a menina deve-ria, ao Invés, cultivar tal passividade? Qual areferência da noção de 'papéis"?

A autora não responde a essas pergun-tas; ao contrário, ela Insiste por diversas ve-zes na idéia de que "a masculinidade" é umaprendizado longo e doloroso, enquanto quea "feminilidade" está inscrita no desenvolvi-mento "natural" da menina. Em apoio à suatese, a autora cita a frase de Guy Corneau,de 1989' "Em outras palavras, as menstrua-ções que possibilitam à adolescente ter fi-lhos fundamentam sua identidade feminina;trata-se de uma iniciação natural que a levado estado de menina para o estado de mu-lher; no homem, ao contrário, um processoeducacional deve substituir a natureza"(p. 108).

Uma abordagem essencialista

Nós discordamos dessa concepção"naturalista" do desenvolvimento da meni-

ANO 1 2041 , SEMESTRE 93

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na em 'mulher". A passagem não é nadasimples, como bem demonstrou ChristianeOlivier, embora sem citar Badinter 5 . Enquan-to que, desde cedo, o sexo do menino é va-lorizado (inclusive acariciado) pela mãe eos pessoas que o cercam, o sexo da meninanão existe. Ela é - ou, pelo menos, era atémulto recentemente - uma criança amada,mas assexuada (exceto nos casos de agres-são sexual que C. Olivier tende a esquecer).Com a chegada das regras, a menina entrade modo brutal no mundo das mulheres, es-ses seres desejáveis, estando 'destinada" so-cialmente a ser um objeto sexual e, mais tar-de, mãe. Se a passagem fosse assim tão sim-ples, por que razão muitas adolescentes setornam anoréxicas exatamente no momen-to da puberdade?

Tomar consciência de sua identidadesexual não é só tomar consciência da dife-rença entre os órgãos genitais. Nesse pontoconcordamos com E. Badinter. A consciên-cia da Identidade sexual põe em ação com-plexos processos psicossociais. Mas não setrata, primeiro, de um processo psicológico,localizado na primeira infância e, depois, deum processo social, como deixa transparecera própria estrutura do livro. A criança estámergulhada em um ambiente familiar soci-almente codificado desde os primeiros me-ses de vida. Em uma sociedade patriarcal,todos nós assimilamos, consciente ou incons-cientemente, as relações de poder estabe-lecidas entre agrupo dominante dos homense o grupo das mulheres. Dentro dessa pers-pectiva, como se pode interpretar o fato deque apenas na página 128 E. Badinter afir-me que o status de dominador "constitui aessência do sentimento de identidade mas-culina"?

A resposta se encontra na sua aborda-gem teórica. Embora ela o negue, apesarde sua denúncia do "mito pernicioso" do ins-tinto materno e de sua defesa de "uma revo-lução paterna", E. Badinter mantém-se pre-

5. Les Enfants de Jocaste. Parts Denoel-Gonthier, 1980.

sa a um "essencialismo" que é, ele mesmo,prejudicial; não se poderia de outro modoexplicar por que ela teria mantido, sem qual-quer crítica, noções como as de "qualida-des masculinas" e 'qualidades femininas".

Propor a idéia de que o novo ser huma-no se construirá sobre a base de uma "uniãoparadoxal" entre a "feminilidade" e a "mas-culinidade", é escamotear a questão da per-turbação das categorias sexuais tais comofuncionam ainda hoje. Se crianças dos doissexos necessitam conquistar sua autonomiapara se tornarem adultas, por que razão de-veriam ser moldadas primeiramente segun-do os esquemas de comportamento estere-otipados que são especialmente adaptadosa uma sociedade onde os homens continu-am a dispor de numerosos privilégios, aindaque seu poder tenha sofrido um primeiro gol-pe?

O mérito de E. Badinter é o de estimularos homens heterossexuais a se interrogaremsobre seu medo de ser confundidos com mu-lheres ou com homens homossexuais, de po-pularizar a diferença entre "Identidade" e"preferência sexual"; mas, em vez de con-vencer os homens a ir fundo neste medo, elaos tranquiliza. Não é preciso renunciar àsmarcas da "virilidade". Basta compensá-lascom uma pitada de 'feminilidade". Não, épreciso subverter todo nosso sistema de re-ferência (e, portanto, a divisão sexual e so-cial do trabalho) e repensar nossos valoresem termos de valores humanos, o que não énada óbvio nesses tempos de guerra...

JOSETTE TRAT III(Tradução de Vera Pereira)

Este artigo deve ser publicado no númeroduplo 63/64 da revista Cahlers du Femlnisme,primavera de 1993. Agradecemos à autora eaos Cohiers por terem autorizado graciosamen-te sua tradução.

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Ambivalências do desejo

Vida de Mulheres - cotidianoe imaginárioMASSI, Marina.

Rio de Janeiro: !mago Editora, 1992.

O mercado editorial continua sendobrindado com trabalhos acadêmicos origi-nais e interessantes, que vêm corroborar omérito, por vezes injustamente questionado,das teses de mestrado e doutorado, cujoconteúdo seria, por assim dizer, inversamen-te proporcional ao investimento em tempo erecursos exigido para sua realização. A dis-sertação de mestrado de Marina Massi apre-sentada ao Instituto de Psicologia da USP eagora publicada em livro, sob o título Vidade Mulheres, dá a exata medida do alcancedos bons trabalhos acadêmicos.

Partindo da constatação de uma crisenas representações do Masculino e do Femi-nino, crise essa que parece ampliar e agu-çar os conflitos entre os sexos brecando aconstrução de novas Identidades de gêne-ro, a autora, psicanalista de formação, pro-cura detectar o que vai pelo Imaginário demulheres de classe média, formadas na uni-versidade, com experiência de casamentoe de maternidade Em outras palavras, quemsão essas mulheres que, feministas ou não,Invadiram o mercado de trabalho, reclamamigualdade, procuram conciliar afazeres do-mésticos e carreira profissional e parecemtransitar com sofreguidão entre velhos pa-péis nunca abandonados e novas responsa-bilidades jamais plenamente assumidas por-que interiorizadas antes como necessidadesdo que como desejos.

Os depoimentos nos soam familiares,trazendo uma narrativa mamada pelo con-flito íntimo do que 'já não é mais, ainda sen-do'. Desconforto, frustrações, solidão, ambi-güidades das novas práticas de vida queencerram, muitas vezes, significados outrosque o da busca da individualidade e da in-dependência. Mais do que surpreender, as-susta constatar que poucas mulheres entre-vistadas elaboraram para si um projeto pro-fissional e um projeto de vida para além da

maternidade e da família Para a maioria, otrabalho ainda é uma forma de escapar aodia-a-dia repetitivo e enfadonho do lar - "seeu não fizer qualquer coisa (trabalho), euenloqueço, acabo pirada" (Clara) - ou ummeio de desenvolvimento e realização pes-soal, de caráter bastante humanista e cultu-ral O que trata da esfera do público ainda édesvalorizado em relação ao privado, comose fosse possível construir uma utopia a partirdeste, sem considerar aquele.

A clivagem central, constata Massi, con-1-mu° sendo a cisão entre o que é a novamulher vitoriosa na esfera pública, cuja com-petência e eficiência são crescentementereconhecidas, apontando para uma atenu-ação dos diferenciais entre os sexos, e a donade casa enclausurado na ordem simbólicado privado, no cotidiano doméstico-familiarque é presidido pela ideologia dos cuida-dos, sejam eles de maternagem ou de"esposação", e onde a assimetria e a hierar-quia regulam funções e representações. Éessa descontinuidade, conceito tomado deempréstimo a Nicolaci-da-Costa, que mar-ca a vivência das mulheres modernas.Descontinuidade entre os modelos adquiri-dos do que deve ser a mulher de hoje e osantigos sistemas simbólicos, interiorizadoscom base numa divisão tradicional de pa-péis sexuais.

"É possível afirmar que praticamenteinexiste a relação solidária ou simétrica en-tre cônjuges com referência à organizaçãoda vida doméstica e cotidiana" (p.73) diz aautora, com base na interpretação de lon-gos relatos femininos sobre a oposição lar xcasa, trabalho x trabalho profissional, casa-mento x vida sexual. Uma única exceção vi-ria confirmar a regra: "Em nossa sociedade,as mudanças no comportamento dos mari-dos parecem ter-se processado mais signifi-cativamente nas relações comas filhos, man-tendo-se resistentes quanto ao trabalho do-méstico" (p 75). Mas trata-se aqui dos filhosque já se encontram individuados, autono-mizados, que já concluíram a fase damaternagem inicial, aquela que cabe exclu-sivamente às mulheres. No lastro de Chodo-row (Psicanálise da Maternidade). Massi in-

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siste em que a maternagem não pode servivenciada solitariamente pelas mulheres -não há argumentos biológicos que oapoiem -, pois éatravés da socialização pri-mária que o modelo tradicional é perpe-tuado.

Como diz Cândida, num dos muitos de-poimentos tão bem apresentados por Massi,seria preciso "um repensar da vida do casale não só da vida da mulher" (p.63). Um re-pensar que, segundo a autora, exige que ho-mens e mulheres sejam conjunta e intrinse-camente "mães' na criação dos filhos Fun-ção social que, na verdade, alguns homensjá vêm desempenhando com certo sucesso,à imagem das mulheres no mercado de tra-balho, quando divorciados ou sozinhos Masque no cotidiano da domesticidade compar-tilhada parece impossível de ser alcançado.

Outro aspecto bastante interessante dolivro são os relatos sobre o feminismo, Identi-ficado reiteradamente como um movimen-to "chato" (Esteia), "ridículo' (Silvia-grupo 1),"que atrapalhou, e muito, a minha vida"(Beatriz). Na melhor das hipóteses, um movi-mento de defesa dos direitos humanos e dacidadania em geral. É curioso que um movi-mento dito de classe média desde os seusprimórdios, e por isso mesmo carregando, àépoca, o pecado capital de não se originardas massas populares, logo, condenado anão se constituir num movimento estratégi-co de transformação social, seja percebidoe representado por mulheres da classe mé-dia paulista. Instruídas e formadas na lutacontra o autoritarismo, como algo absoluta-mente equivocado, negativo, estigmatiza-do. Que lhes é mesmo estranho. Todo senti-mento contrário éexceção, marginal nas re-presentações que dominam o imagináriocoletivo dessas mulheres. Nenhuma decla-rou-se feminista.

É pena que tenha faltado a Massi umfôlego maior para aprofundar tal questão.Concordamos com ela que o feminismo "nãoenfrentou suficientemente a questão da fa-

mília e do cotidiano privado" (p.186), masisso fica aquém do que gostaríamos de des-cobrir, Está explicitado, com maior ou me-nor evidência, dependendo do relato, queo feminismo é também um dos grandes res-ponsáveis por essa ambivalência do desejoque hoje assalta as mulheres, e que as obri-ga a romper com a unidade de uma identi-dade passada, sem dar-lhes as condiçõesde construir um novo registro identitáno. Umprocesso de desterro: auto-exílio do recessodo lar e insulamento na esfera pública. Cabe,então, perguntar: por que, mais uma vez, aculpa volta a cair sobre as mulheres - algu-mas, éclaro -, já que são elas os sujeitos des-se movimento sexuado, o feminismo, queparece engendrar tantos desconfortos?

Esse tom conservador não deixa de serdesconcertante na boca, justamente, demulheres contemporâneas das mudançasmais radicais nas relações entre os sexos porque passaram as sociedades ocidentais.Mudanças que se inscreveram no legado damodernidade e que nutriram o ideal de igual-dade. Teria sido estimulante dispormos tam-bém de depoimentos feitos por homens quedessem conta, por sua vez, da crise das re-presentações do Masculino e do Feminino.Provavelmente, trariam mais água para omoinho dos que identificam no feminismo aorigem de muitos e 'insolúveis" problemas.Mas talvez deixassem transparecer nesseimbroglio existencial resgates e conquistasde vivências antes impossíveis. Não custainterrogá-los numa próxima vez. Por enquan-to fica a pergunta que a própria Massl for-mula na conclusão do seu livro: "O que pode,então,(ess)a mulher? Pode tudo que foi al-cançado por todas as mulheres até hoje,pode até onde o feminismo conseguiu pen-sar a emancipação da mulher e do femini-no. Mas, infelizmente, ainda não é osuficiente."

LENA LAVINAS e

ESTUDOS FEMINISTAS 207 N. 1/93

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Gênero e planejamento

Mulher e Políticas PúblicasRio de Janeiro: IBAM-UNICEF, 1991.

Mulher e Políticas Públicas, editado peloIBAM, com apoio do UNICEF, tem como ob-jeto o debate sobre a inclusão da questãode gênero no planejamento Resulta dos tex-tos que subsidiaram três seminários organi-zados pelo Núcleo de Estudos da Mulher ePolíticas Públicas do IBAM.

Na impossibilidade de comentar todosos textos, escolhi um artigo em cada um dostrês grandes capítulos que compõem o livro,ou seja: "Trabalhando com Mulheres", "Tra-balhando para Mulheres" e "Mulheres Tra-balhando".

"Trabalhando com Mulheres" funda-menta a perspectiva de gênero no plane-jamento, do ponto de vista metodológico,definindo conceitos e categorias de análi-se. Neste capítulo, deve-se destacar o arti-go de Maria Luiza Heilborn, "Gênero e Con-dição Feminina", que contextualiza asquestões envolvidas na análise da condi-ção feminina, numa perspectiva antropo-lógica. É brilhante o insight sobre o públicoe o privado na sociedade brasileira, cate-gorias que permelam grande parte das dis-cussões sobre a participação política dasmulheres, e ainda a questão da violênciacontra a mulher.

"O que caracteriza a tradição mediter-rânea, herdeira que é da romana, é que nes-sas sociedades ocorre uma oposição entrelar e polis, entre público e privado, bastanteacentuada. Mas o lar representa lugar derefúgio e de culto aos espíritos dos ances-trais.. Ora, a associação do feminino comum dos pólos valorados do sistema simbólico-a casa -não contradita, ou apenas o fazsuperficialmente, com a importância assen-tada sobre o pater potestas (pátrio poder)Entretanto, a resolução desta incongruência- a mulher percebida como portadora deuma natureza negativa (até mesmo perver-sa) e sua vinculaçâo ao domínio domésticosagrado- exige o exorcismo do feminino atra-vés de uma lógica extrema - a de sua'santificação' (que importa em assexuali-

zação). Isto não se faz sem ónus, acarretaalta carga de tensão e de possibilidade deruptura, de emergência dos significados la-tentes mantidos sob controle. Do ponto devista do código de gênero o complexo sim-bólico honra/vergonha tematlza os termosmasculino/feminino".

O segundo bloco do livro, "Trabalhan-do para Mulheres", parte da premissa de quehomens e mulheres têm necessidades soci-ais diversas, que devem estar contempladasno planejamento participativo, e nas políti-cas públicas. O fortalecimento deste pontode vista deve ser atribuído, como diz Jac-queline Pitanguy em 'Mulher e Cidadania",ao impacto provocado pela entrada doMovimento de Mulheres, como ator político,no cenário nacional e internacional.

Escolhi neste bloco o artigo de JamilReston "O Município Uma Instituição de To-dos Nós", leitura a ser recomendada a pre-feitos e vereadores de todo o Brasil. JamilReston, tomando por base a categoria tra-balho e utilizando dados da PNAD de 1981 e1990 reflete sobre a inserção maciça, porémpeculiar, da mulher no mercado de traba-lho. Um menor número de carteiras de tra-balho é atribuído à mão-de-obra feminina,apontando para sua absorção pelo merca-do informal, e pela administração públicamunicipal - onde os salários são mais baixos.

Esta reflexão sobre a peculiaridade doemprego feminino, e a dupla jornada de tra-balho, levou Jamil Reston a pensar sobre umplanejamento participativo que levasse emconta as necessidades sociais das mulheres.Cita, desta forma, várias medidas que facili-tariam o quotidiano das cidadãs no Municí-pio, e que dariam a este uma prática maisdemocrática, tais como horários alternativosde funcionamento dos postos de saúde, quecontemplassem a necessidade das mães quetrabalham fora, mas que ainda assim têm aseu encargo os cuidados de saúde de todaa família Sugere ainda onde devem ser lo-calizadas as creches e discute por que oshomens devem ser privilegiados nos projetosque prevêm participação remunerada dacomunidade, se há tantas mães que são che-fes solitárias de famílias.

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No terceiro bloco do livro, 'Trabalhan-do para Mulheres", pincel o artigo de SôniaCorrea 'Educação Sanitária e Ambientai".Logo no inicio, Sônia Correa muda o título dotrabalho para "Educação Sanitária e Am-biental: a Responsabilidade da Mulher", edestaca como referência principal "o papele a identidade das mulheres, suas aspira-ções, possibilidades e limitações" a seremlevadas em consideração por formuladorese executores de políticas públicas.

A origem do artigo, segundo a autora,é um 'estudo exploratório" realizado em doisbairros populares do Recife: Casa Amarela e21 de Abril. Para facilitar a abordagem, SôniaCorrea introduz o tema fazendo uma breveapresentação da cidade do Recife, das pe-culiaridades de cada bairro e do contextopolítico da Implantação dos projetos.

Um primeiro aspecto destacado: a fal-ta de continuidade das políticas sociais, tãofreqüente em nosso pais. A falta de compro-misso real com os interesses da populaçãofaz com que um programa de saneamentobásico, questão de saúde pública, possa serobjeto de barganha eleitoral, permitindo queo novo administrador eleito possa interrom-per a obra já iniciada por seu antecessor.

Também o conflito que se estabeleceentre a prática política e a vida privada dasmulheres - o antagonismo com maridos ecompanheiros - éressaltado por SôniaCorrea: 'Na prática, a participação dasmulheres ameaça o modelo de relação degénero, que faz a família funcionar". Ou ain-da, citando a fala de uma entrevistada: "Sóas mulheres sozinhas e que trabalham é quedecidem".

Faz lembrar a fala de um revolucionáriofrancês, Chumetto, em 1789, condenando aparticipação política das mulheres. A cita-ção se encontra no volume do século XIX dolivro Histoire des Femmes, editora Plon, 1991:'Desde quando é costume ver uma mulherabandonar a piedade ao seu lar e ao berço

das crianças para vir à praça pública, natribuna dos discursos?" (p.49).

Sônia Correa destaca ainda o fato deque as relações assimétricas de poder, entremulheres e homens, ultrapassam as frontei-ras da casa, se deslocando para o espaçopúblico da prática comunitária.

"Os homens só assistiam às reuniõesprestigiosas, em que estavam técnicos equem decidia, enquanto o trabalho desensibilização e de mobilização ficava sobresponsabilidade feminina".

Em seguida, Sônia Correa analisa o dis-curso da agência responsável pelo progra-ma de saneamento básico nas duas áreas,tal como se expressa nos folhetos de divul-gação das obras.

Na medida em que, quando não exis-tem serviços públicos de saneamento earmazenamento de água nas habitações,nem serviços adequados para a coleta delixo e dejetos, estes são encargos femininos,as mulheres devem ser consultadas e ouvi-das a respeito das soluções técnicas, queinterferirão no seu quotidiano - esta poderiaser uma conclusão do texto de Sônia Correae do livro Mulher e Políticas Públicas.

Para encerrar, cito mais uma vez, emtradução livre, o volume do século XIX doHistoire dos Femmes, coordenado por Gear-ges Duby e por Michèle Perrot, editado emParis, em 1991, pela Non. O discurso é doDeputado Guyomar e data de 1793. "A Igual-dade Política entre os indivíduos ou o Pro-blema Muito Importante da Igualdade deDireitos e da Desigualdade de Fato".

"... A exclusão das mulheres (da partici-pação política) é provocada pela necessi-dade de sua presença no lar? Então", res-ponde ironicamente o Deputado Guyomar,"devemos nos pronunciar contra todos oshomens cuja presença é necessária nas suasoficinas e ateliês .."

HELENA BOCAYUVA CUNHA E

ESTUDOS FEMINISTAS 209 N 1/93

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Iara, história e cotidiano

IaraPATARRA, Judith Lieblich.

Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992,520 p.

"Foi uma geração que viveu os êxtasese desgraças das revoluções. Madrugadasluminosas e sombrios tempos sem perdão"'.

Iara, filha de David e Eva Isvelberg, umcasal judeu de classe média, nasceu a 7 demaio de 1944, no bairro 'piranga, em SãoPaulo. Suicidou-se a 20 de agosto de 1971,em Salvador, Bahia. O aparelho em que vi-via - um apartamento no bairro Pituba - es-tava cercado. Iara preferiu disparar um tiroem seu coração a ser presa pela policia po-lítica.

Vinte e um anos depois, sua história aca-ba de ser minuciosamente reconstituída nasmais de quinhentas páginas da reportagembiográfica, subtítulo de !ara, da jornalistaJudith Lieblich Patarra (editora Rosa dos Tem-pos).

"Durante muito tempo as mulheres fo-ram deixadas à sombra da História", escre-vem Michelle Perrot e Georges Duby na apre-sentação de sua História das Mulheres 2 . Osautores recusam, no entanto, a idéia de queas mulheres sejam, enquanto tais, um objetode história, explicando que

"é seu Sugar, sua 'condição', seus pa-péis e seus poderes, suas formas de ação,seus silêncios e sua palavra, que nós pensa-mos perquirir, a diversidade de suas repre-sentações - Deusa, Madona, feiticeira... - quequeremos aprender na sua permanência eem suas mutações" 3.

Não sendo historiadora de profissão,Judith Patarra conseguiu em grande medi-da alcançar esse objetivo através de um

' SOUZA LOBO, Elisabeth, Emma Goldman Avida COMO revolução São Paulo Brasiliense, 1983,p 85

2 DUBY, Georges e PERRO'', Michelle Ilistotredes Femmes eu Occulent, N'ol 4 (Le XIXème sièle),Paris Plon, 1991, p 8

, Op eu , p 8-9.

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paciente e criterioso trabalho de pesquisaque restitui não só a trajetória de sua perso-nagem como o tempo e as circunstânciasem que viveu.

A biografia, que parece experimentarum processo de renovação a partir de novosaportes da historiografia e da antropologia,é pouco desenvolvida no Brasil. As exceções,como o excelente estudo sobre Stefan Zweig,publicado há alguns anos pelo também jor-nalista Alberto Dines 4 , que prefacia o livrode Patarra, apenas confirmam a regra. Con-siderada por muitos como gênero menor, abiografia sofreu o 'desprestígio' de ver-seconfundida com a literatura de ficção. Estacontaminação acabou por confiná-la à ca-tegoria de entretenimento Biografias pas-saram a ser livros reservados para os perío-dos de férias, junto com romances policiais ede ficção cientifica, todos destinados a are-jar a cabeça...

A crítica (e a crise) da História événe-mentielle ajudavam a banir o indivíduo daspreocupações historiográficas, substituindo-o pelo interesse pelas estruturas, pelas clas-ses, pelos grandes ciclos históricos, sem cujacompreensão se dizia ser impossível qualqueranálise consistente.

Monumentos biográficos - como oTrotsky e o Stalin, de Isaac Deutsher - figura-ram durante muito tempo, junto com pou-cas outras obras, como referências isoladas,incapazes de desencadear uma reorlen-taçõo mais consistente dos estudos históri-cos em direção à análise das trajetórias devida.

Alguns dirão que a reemergência dogênero biográfico está ligada ao aguça-mento do fenômeno do voyeurisme e aossentimentos narcísicos que marcam estestempos de pós-modernidade. Mas a histo-riografia estruturalista, de inspiração marxis-ta ou não, resulta também da emergênciade uma nova historiografia, centrada maisnos sujeitos, atores e personagens e em suas

' DINES, Alberto. Morte no Paraíso- a tragédiade Stefan ZN{ eig, Rio de Janeiro- Nova Fronteira, 1981

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experiências do que nas estruturas que su-postamente os condicionaram 5.

Finalmente, o gênero biográfico se be-neficia (ao mesmo tempo que esclarece) dasnovas relações que a historiografia estabe-lece entre o público e o privado. "No limiardo privado, o historiador - tal qual um burgu-ês vitoriano - por muito tempo hesitou, porpudor, incompetência ou respeito ao siste-ma de valores que fazia do homem públicoo herói e o ator da única história que valia apena ser contada: a grande história dos Es-tados, das economias e das sociedades".

Para que o historiador superasse sua he-sitação, foi necessário que o privado se trans-formasse em algo distinto

"desta zona maldito, proibida e obscu-ra: o amplo espaço de nossas delícias e denossas servidões, de nossos conflitos e denossos sonhos; o centro, talvez provisório masfinalmente reconhecido, de nossa vida" 6.

Em Iara, Judith Patarra consegue exor-cizar esta maldição do privado e reconstruira vida de sua biografada articulando as di-mensões política e pessoal sem que elas apa-reçam como mera superposição de suas es-feras separadas ou antagônicas.

"A boa biografia - diz Lacouture - devemostrar não aquilo em que o homem é soli-dário, mas como ele está entre nós".

O livro de Judith situa Iara "entre nós",isto é, no contexto de seus contemporâne-os, daqueles com os quais conviveu, lutou eaos quais amou

Biografando sua personagem, Judith bi-ografou também uma geração nas suas múl-tiplas dimesões: culturais, políticas, existen-ciais. Por esta razão, o foco de luz concen-trada sobre a pesonagem central ilumina comesmo tempo todas os "circunstâncias" quea cercam. Mais ainda, o contexto ajuda aconstruir a personagem.

'111015.IPSON, E P A MIM, ia da Teoria, Rio deJaneiro Zahar, 1981 CAS1ORIADIS, Cornelius. In-trodução a questão da história do movimento operá-rio In A experiência do Movimento Operário, São

Paulo Brasiliense, 1985 SADER, Eder. Quando no-vos personagens entram em cena, São Paulo Paz &1 erra, 1988 (Entre muitas outras referências)

6 PERROT, Nlichelle. "Introduction", In ARIES,Philippe e DUBY, Georges Ilistoire de ta Vie Ptivée,vol 4, Paris Seul!, 1987, p 9

7 LACOU1 URE, Jean Biógrafo por profissão OEstado de São Paulo, São Paulo, 13 01 1985, Cadernode Cultura no. 239, p 10 (Publicado originalmenteem Le Nouvel Observateur)

Reaparecem os espaços de lora e desua geração nas evocações da MariaAntônio, onde ficava a Faculdade de Filoso-fia, da Augusta, templo do consumismo deentão, ou dos sombrios aparelhos dos 'anosde chumbo".

Reconstrói-se o campo cultural dos ses-senta, povoado de referências ó música po-pular brasileira, ao cinema e ao teatro - queocupavam, o lugar hoje invadido pela TV -,a um marxismo vivo porque distanciado daortodoxia. quando não em polêmica abertacom ela.

A tudo isso acrescente-se , uma conjun-tura internacional em que seria absurdo fa-lar-se, como hoje se faz, em fim da história.

Com 1968 como referência, Iara e suageração têm a sensação de "fazer a histó-ria", da mesma forma que se fazia nas barri-cadas de Paris, nos campi das universidadesnos Estados Unidos, nas montanhas da Amé-rica Latina ou nas selvas da Indochina.

Esse voluntarismo assume uma dimen-são trágica no início dos setenta, quandoIara e seus companheiros aproximam-se damorte, da prisão, da tortura, do exílio ou do"exílio interno", alternativas dramáticas paraum irrealismo político suicida.

Se a narrativa evidencia a fragilidadeteórica e orgânica da política revolucionáriano Brasil e dos jovens que pretendiam ser pro-tagonistas desta aventura, ela restitui emfiligrana a disponibilidade, alegria e coragemde uma geração e, sobretudo, o peso dosvalores éticos que nutriram - muito mais doque opções fundadas na racionalidade polí-tica - os planos de tomar "o céu de assalto".

Dizer que Judith Patorra tirou sua perso-nagem da sombra pode parecer paradoxalpara quem chega ao final do livro tendo sedeparado com dezenas de depoimentos quemostram uma Iara luminosa, carismática,com uma história de vida paradigmática.Como tirar da sombra alguém que possuíatanta luz'?

A expressão pode ser melhor compre-endida se se entende o alcance do empre-endimento biográfico de Judith

Para os homens e mulheres que convi-veram com a personagem, Iara pode teraparecido sob a dupla imagem de uma belajovem "liberada" que se encontrava na van-guarda de uma revolução de costumes emcurso naquele exato momento. Ao lado daIara de mil namorados, vaidosa, expansiva,havia a militante que progressivamente se

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incorpora à luta revolucionária, pagando aofinal com a própria vida seu engajamento.

Ora, o que a autora busca estabeleceré exatamente as conexões destes dois com-promissos: o político e o existencial.

Pode-se criticar o psicologismo Incon-sistente de algumas passagens do livro, comocnticável é a falta de densidade literária emalguns momentos da narrativa, onde o estilo'jornalístico' de Judith fica aquém das cir-cunstâncias narradas, São detalhes, porém,que ão comprometem a qualidade maior dolivro de ter realizado uma excelente recons-tituição da personagem e de seu tempo apartir de uma multiplicidade de fontes teste-munhais, perfeitamente articuladas com asfontes documentais e com a restituiçãocontextuai do período.

Judith Patarra consegue igualmenterealizar o difícil trabalho de mergulhar nopassado, fazendo com que um necessárioolhar do presente não desfigure o vivido,transformando-o em mera ficção, como temocorrido por vezes na historiografia brasilei-ra. Um exemplo deste acerto é o tratamen-to da condição feminina de Iara. A autoranão sucumbe à tentação de transformá-laem uma feminista avant la lettre. Menos ain-da em uma pós-feminista, defensora da fe-minilidade.

Sua narrativa constitui-se, porém, emum impressionante mergulho na condiçãofeminina, desde o cenário familiar até as su-cessivas experiências de militância, naPOLOP, na VPR e na VAR e, finalmente, noantigo MR-8, passando por suas múltiplasaventuras amorosas e pela vivência intensade suas amizades Ironia cruel, o gesto finalde Iara é noticiado como a morte da 'aman-te de Lamarca'. Mas o que poderia ser umaoperação de confinamento da personagemna sombra da história acaba por transformar-se no seu contrário. na valorização deste es-paço privado, até então nebuloso, e na ne-cessidade imperiosa de iluminá-lo e escru-tiná-lo para melhor compreender a esferapública, a qual se considerava território ex-clusivo da política e.

8 "Na fronteira entre a prática da vida pública eo território obscuro da vida privada, a presença dasmulheres como sujeito/objeto destas abordagens pa-rece natural e recebe um espaço próprio e adequa-do" SOUZA-LOBO, Elisabeth "Ernma Goldman - Re-volução e Desencanto , do público ao privado", InRevista Brasileira de História, São Paulo, vol 9, no18, p 29, ago/set, 1989

As histórias das esquerdas no Brasil ealhures quase sempre se resumiram à consti-tuição articulada de seu discurso (progra-mas, resoluções, debates) ou de sua ação(greves, mobilizações ou luta armada). Nes-te tipo, não raro valioso, de texto, perde-secom freqüência uma dimensão essencial dahistória. Esta foi feita por homens e mulhe-res, de carne e osso, que se construíram den-tro de contextos culturais, encarnaram valo-res éticos e morais, sofreram o peso de suascircunstâncias ao mesmo tempo em que ten-tavam modificá-las Viveram e amaram etudo isso deixou traços em sua ação, poisInfluiu em seu modo de pensar e de ser.

Assim ocorreu com Iara isvelberg. Suatrágica e precoce morte, aos 27 anos, podeter exercido um efeito inibidor para a recons-tituição de sua vida. Afinal, a morte costumadesencadear julgamentos simetricamenteopostos de indulgência ou de severidade.Judith Patarra não parece ter sucumbido aestas tentações A visível empatia com seu'objeto' de estudo não turvou-lhe o olhar e asimpatia que pode aqui e ali parecer diluir-seno tratamento substantivo, onde objetivida-de não se confunde com frieza.

Escrevendo sobre Iara, a autora reesta-beleceu o cotidiano das classes médias cul-tivadas paulistanas que foram sacudidaspelas graves mudanças que afetaram o Bra-sil a partir de 1964 e que até hoje se fazemsentir. Mostrou-nos momentos luminosos etempos sombrios. Enfatizou os exemplos degenerosidade, despreendimento, minimi-zando o lado mesquinho e sórdido presenteem todos os tempos sombrios, talvez para nãoadensar mais a pesada fatura que até hojeestá-se pagando.

Ao falar de música, cinema, teatro, ba-res, moda, sexo, Judith Patarra falou tam-bém das grandes questões em jogo naquelemomento pois 'mais além do anedótico, ahistória da vida privada é também a históriapolítica do cotidiano" 9

MARCO AURÉLIO GARCIA R

NOTA DA EDITORIA:Resenha reproduzida neste número por ter sidoomitida involuntariamente parte do texto na REFn2 O.

9 PERROT, tvlichelle. Op. cit , p 13.

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O que faz ser paulista?

O Que Faz Ser Nordestino?PENNA, Maura.

São Paulo: Cortez, 1992.

A obra de Maura Penna é uma adapta-ção para livro da dissertação que lhe valeuo título de Mestre em Ciências Sociais pelaUniversidade Federai da Paraíba e MençãoHonrosa no Vil Concurso Brasileiro de TesesUniversitárias da ANPOCS. A autora examinaos diversos conteúdos atribuídos ao termoIdentidade, tanto pelo senso comum dos ato-res sociais -jornalistas, políticos e público emgeral - como por diversas correntes teóricas,para logo explorar os discursos que, enunci-ados sobre o que denomina de "escândaloErundina", enfocam a figura da ex-prefeitade São Paulo sob o prisma da identidadenordestina.

A escrita de bom nível, a organizaçãodo texto Impecável e criativa e a coleta demateriais jornalísticos de grande Interessepara quem queira ter acesso a verdadeirosdocumentos sobre a maneira como opaulista da última década deste século cons-trói idealmente o seu lugar e a sua relaçãocom a nação brasileira, fazem com que olivro estimule o leitor a não se contentar comos limites que a autora lhe impôs e se lance apensar mais, a pedir mais. Centrarei esta mi-nha pedida de leitora cobiçosa em três curi-osidades que persistiram após a leitura dotexto e que, reconheço, excedem os limitesda proposta explícita da autora: 1) a vidade Erundina, 2) a mulher Erundina e 3) quemé o paulista.

1. A vida de ErundinaJá nas páginas finais, Maura Penna re-

conhece que o recorte por ela escolhido pri-vilegia o que chama de "alter-atribuição, emdetrimento das formas de auto-reconheci-mento", ou seja, o papel de Erundina 'comoreferente' sobre o qual se projetam os diver-sos discursos examinados. De fato, a autorase mantém, durante toda a sua análise, fiel econsistente com essa escolha. Fidelidade econsistência que, por outro lado, são coroa-

terísticas do exercício acadêmico bem com-portado, Então, passamos pelo exame donoção de região e, fogo, de região nordesti-na; passamos pela desconstrução das basesde sustentação da categoria que une aspessoas que partilham da sua suposta essên-cia; e passamos por uma exploração minu-ciosa dos discursos que tentam imputar aErundina uma identidade político-partidária,de gênero, de classe e, sobretudo, regional.

Mas o leitor já nascido com uma natu-reza inconformada descobre, por último, quetodo esse cuidado e trabalhoso excercícloleva não mais do que a uma revisão teóricada noção de identidade e à proposta desubstitui-Ia pelo conceito de 'semelhança',por ser mais eficiente para dar conta da fle-xibilidade da operação de Identificação. Amensagem, então, é: tudo pode continuarcomo está, desde que o chamemos de ou-tra maneira, que lhe coloquemos um nomemais preciso. Tudo o que foi multo bem listadono decorrer do texto - "nordestino" funcio-na como termo de acusação; a marca deregião existe, embora não seja essência; opobre é excluído dos quadros oficiais da po-lítica brasileira, etc. - fica por isso mesmo. Omundo é assim, pois assim éconcebido eprescrito pelos discursos que o criam e recri-am; nosso papel é desconstruir esses discur-sos para Identificar sobre que pressupostosestão montados.

Para compensar este projeto um tantoInócuo, pergunto-me, não seria um toque dear fresco, uma dádiva de emoção e de ne-cessário e revolucionário otimismo, incorrerna ruptura desse coeso e bem comportadoexercício acadêmico e, num capítulo grati-ficante para o leitor, dar a palavra a Erundinapara contar seus feitos, narrar, de algumaforma, a sua vida? Por que a autora perdeuesta oportunidade de entrevistar a sua hero-ína e dar-lhe voz, registrando algum tipo dediscurso autobiográfico mais detalhado doque os curtos trechos de falas suas que sãocitados? Qual é o reverso desta moeda da"after-atribuição"? Justamente, no contras-te e à luz do repertório dos discursos enume-rados e examinados, o leitor gostaria agorade saber o que enunciaria esta mulher, ao

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ser interrogada por Maura Penna, sobre o seuNordeste, sobre a sua São Paulo, sobre a suapobreza, sobre sua vocação religiosa, sobresua vocação política e sobre sua vocaçãoprofissional, Como passou por todos eles e oque de cada um deles reteve para si na cons-trução da sua imagem e da sua pessoa. Sóassim deixaríamos em aberto a trama dosdiscursos que, de acordo com o livro, sobreela parecem fechar-se inexoravelmente; sóassim devolveríamos a Erundina a margemde liberdade que, de fato, ela tem em rela-ção a eles.

2. A mulher ErundinaSobretudo, e mesmo por estar falando

da tribuna de uma publicação feminista,gostaria de saber mais sobre como Erundinaconstrói discursivamente a sua forma parti-cular de feminilidade, como trata -discursi-vamente sempre, já que, no paradigma daautora, além disto não é possível ir - a parce-la de sua humanidade que é mulher. Aliás,parcela que constitui atributo indelével des-sa humanidade, pelo que não posso deixarde anotar aqui o meu desapontamento como título do livro, que definitivamente deveriaser 'o que faz ser nordestina".

Mesmo os discursos considerados notexto que, ao uso da identidade de nordesti-na como forma de acusação, acrescentam-lhe os atributos de mulher feia, brega, pou-co elegante e, até, pouco feminina, nãoobtêm o espaço que me parecem merecer.Eles são mencionados mas, na verdade, seusentido só se veria determinado e relevadose contrastados com discursos cujo referen-te fossem homens que, em iguais circunstân-cias - pobreza, falta de elegância e nordes-tlnidade - alcançaram posições de desta-que na política. Assim, seríamos capazes deapreciar o que há de específico num discur-so sobre o feminino, e de esclarecer-nos aeste respeito.

3. Quem é o paulista?Finalmente, uma última pedida, uma

verdadeira reviravolta nos pressupostos daanálise ou, mais exatamente, a descobertade um discurso que permaneceu invisível e,por alguma razão que mereceria ser inves-tigada. Inacessível ao rigor do exame daautora. Se as falas analisadas parecem ser

sobre o nordestino, este é só o nível referen-cial delas Em sombras permanece o sentidoindéxico das mesmas, a auto-referência im-plícita do falante: o que afirma o paulistasobre si mesmo quando fala do nordestino?O que diz sobre si mesmo quando discuteuma prefeita "nordestina—>.

Não tenho dúvida de que a autora al-cançaria uma verdadeira eficácia crítica sedesmontasse os discursos que constroem ascertezas de ser paulista, se ela dedicasse umpouco de sua munição analítica àdiscussãodo que seja São Paulo também enquantoconstrução discursiva, tão construída e tãoarbitrária como a do próprio Nordeste comseus nordestinos. Se lá não há essência, cátambém não há. Se lá as fronteiras são ideo-lógicas e construídas por interesses historica-mente determinados, aqui também o são.Isto, embora implícito, deve ser trazido à luz.Somente assim seremos, uma vez mais, ca-pazes de fugir do aparente fechamento dosdiscursos, da sua autoridade aparentemen-te inescapável; só assim destinos absolutospodem ser transformados em sortes relativas.

Finalmente, não posso deixar de men-cionar que, tendo já a leitura bastante avan-çada, comecei a perceber que por trás dassuas linhas se perfilava a figura de um bomprofessor orientador, um orientador assíduo,próximo e minucioso - quem é professor sabecomo estes processos se dão Sendo assim,dei falta de qualquer menção, por parte daautora, desse personagem oculto e, contu-do, presente nas entrelinhas. Passei então aprocurar o reconhecimento de Maura Pennapara com essa pessoa e só achei um sumário"a todos que...deram sua ajuda". Pergunteientão, a vários colegas, se sabiam algo so-bre a produção deste bom trabalho de tesena Paraíba, à parte da orientação providen-ciada pelo professor Foot Hardman, daUNICAMP, e anunciada por ele mesmo noprólogo que assina. A resposta veio e se rei-terou: Lourdes Bandeira o orientou, no dia adia. Permita-se-me, então, ainda como par-te legitima desta resenha, recomendar àautora que, em suas futuras obras, não es-queça dos nomes daqueles que generosa-mente doaram tempo e imaginação criado-ra, contribuindo com seu projeto Intelectual.

RITA LAURA SEGATO •

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Enfoques de gênero na história social

Entre a Virtude e o PecadoCOSTA, Albertina de Oliveira e BRUS-CHIM, Cristina (org.).

Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Rosados Tempos e Fundação Carlos Chagas,1992.

Não temos no Brasil a tradição de cole-tâneas e nem sempre este tipo de livro secaracteriza por uma unidade temática quedesperte nosso Interesse por todos os artigos.Este conjunto de textos organizados porAlbertina de Oliveira Costa e CristinaBruschini contradiz, do primeiro ao último ar-tigo, esta idéia negativa de coletâneas. Estelivro traz a interessante contribuição de novepesquisadoras financiadas pelo V Concursode Dotações para a Pesquisa sobre a MulherBrasileira, organizado pela Fundação CarlosChagas, com o apoio da Fundação Ford, em1988.

Como nas coletâneas dos concursos an-teriores, os artigos desta apresentam tantonovos enfoques temáticos para a problemá-tica em questão, como também sugerem no-vos caminhos teóricos e metodológicos paraos estudos de gênero.

Mas, a principal característica desta co-letânea em relação às anteriores é a visívelampliação do campo dos estudos sobre gê-nero na área de História Social. Vejamos maisem detalhe cada um dos artigos.

Maria Lúcia Mott nos leva ao século XIXonde analisa, através da instigante históriade Mme Durocher, uma parteira francesaque se vestia de homem, os mecanismos hi-gienistas que levam a Faculdade de Medici-na do Rio de Janeiro a criar uma das primei-ras carreiras femininas no Brasil, a de partei-ra profissional. A criação do Curso de Partei-ras, em 1832, que à primeira vista nos pareceuma conquista das mulheres, se revela con-traditoriamente como a masculinização deum saber tradicionalmente de mulheres ne-gras, mulatas e pobres, as "comadres".

Também abordando a criação de umaprofissão feminina, a de 'mulata profissio-nal", já agora no final do século XX, Sônia

Giacomini mostra como atributos raciais efemininos, outrora desvalorizados, são supor-te para a profissão de 'mulata para expor-tação". Usando a técnica antropológica deobservação participante, a pesquisadoradescreve a construção desta identidade pro-fissional/pessoal no espaço de um Curso deFormação Profissional de Mulatas, no Rio deJaneiro. Descobrimos pelos depoimentos quepara ser "mulata" não basta a cor da pelemas também a posse de outros atributos "na-turais": um corpo arrendondado, a habilida-de para a dança e "ter raça". Falta talvezuma análise mais aprofundada sobre oessencialismo utilizado para a construçãodesta dupla identidade, de mulher e de mu-lata, estudo que viria apenas enriquecer ainteressante análise da autora.

A pesquisa de Sônia Maluf sobre as bru-xas na Ilha de Santa Catarina, também numaperspectiva antropológica, é uma das pou-cas nesta coletânea que se preocupa emfazer uma análise relacional do feminino edo masculino, no caso em uma comunidadelitorânea tradicional, onde inconscientemen-te todas as mulheres são potencialmente bru-xas. A partir de narrativas de homens e demulheres sobre as perigosas bruxas que ànoite tanto podem roubar a canoa dos ho-mens e seus instrumentos de pesca, quantoentrar sorrateiramente nas casas e fazeradoecer recém-nascidos, Sônia se perguntasobre o poder oculto das mulheres num uni-verso simbólico onde paradoxalmente as re-lações de gênero são dominadas rigidamen-te pelos homens.

Numa abordagem mais interdisciplinar,Maria Fernanda Bica lho nos fala do rico uni-verso de representações do feminino que ocinema mudo dos anos 20 desvela. Este perí-odo se caracterizou pelo desenvolvimentoda indústria, assim como da crítica cinema-tográfica no Brasil. Ao mesmo tempo que secopiam modelos norte-americanos da mu-lher sedutora e da garota trabalhadora in-dependente, inicia-se um processo de 'na-cionalização" destes modelos expressos emdois tipos de mulher: as ingênuas (frágeis,magras e de feições angelicais) e as vamps(com curvas avantajadas e insinuantes e for-

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mas esculturais). Muito interessante é tam-bém sua análise do campo cultural que secria em volta desta Indústria cinematográfi-ca com a chegada de atrizes européias Imi-grantes e a criação de uma escola de atoresem São Paulo.

Ainda no campo da História Social, ostrabalhos de Eliana Goldschmldt e de AnaMaria Magaldi se debruçam sobre modelosdesviantes de comportamento feminino tan-to no Brasil Colonial, quanto na virada doséculo XIX para XX A partir da análise dosrelatos de crimes relativos a transgressõessexuais conservados no arquivo da CúriaMetropolitana de São Paulo, Eliana ressaltatanto os modelos desejados para as mulhe-res de 'moça virgem, esposa fiel e viúva re-catada" quanto os exemplos de transgres-são. Já Ana Maria investiga a posição damulher na virada do século XIX para o XXpelas figuras femininas dos romances deMachado de Assis e de Aluizio de Azevedo.Comparando estes modelos é possível cons-tatar que, se no Brasil Colonial era a Igrejaque determinava os bons modelos de com-portamento, a partir do século XIX é a Medi-cina que prevalecerá na imposição de no-vas formas de relacionamento familiar.

Saindo da História e entrando na áreada Lingüística, a pesquisa de Judith Hoffna-gel e Elizabeth Marcuschi introduz o públicobrasileiro a uma importante vertente nos es-tudos de gênero: o uso da língua portuguesapor mulheres e homens. Comparando três ti-pos de eventos interacionais (falas espontâ-neas, diálogos estimulados e entrevistas) elasanalisam como se constrói um estilo femini-no próprio na interação verbal, tanto pelacondução do tópico discursivo quanto pe-los marcadores conversaclonais. Um dadoInteressante, entre várias conclusões, diz res-peito às diferenças de estilo em entrevistasconduzidas por homens e por mulheres,apontando talvez para a necessidade de serefletir sobre a forma de se interrogar os in-formantes nas pesquisas de gênero.

O estudo da equipe de Maria lanesMoreira sobre violência conjugal, um cam-po já bastante estudado por outras pesqui-

sadoras, aborda a problemática na perspec-tiva da Psicologia. A pesquisa iniciada naDelegacia da Mulher de Belo Horizonte tevecomo proposta fazer falar as mulheres, aju-dando-as a compreender sua posição demulher amarrada a laços afetivos dentro docasamento. Apesar da interessante análiseda vitimização expressa nos relatos das In-formantes, sentimos falta, no entanto, deuma contribuição específica da Psicologiaa este campo, uma vez que a violência do-méstica longe de se extingOir pela denún-cia, parece se repetir e ampliar a cada novacrise conjugal.

Também sobre a violência é o artigo deMaria Aparecida de Moraes Silva a respeitode mulheres bóias-frias na colheita de canaem São Paulo. Utilizando-se da análisefoucaultiana sobre o poder, a autora mostracomo o caminhão e o eito, além de espaçosde dominação de classe, são também espa-ços de dominação de gênero, pois em am-bos as mulheres estão sujeitas a cantadas,agressões e assédio sexual por parte de em-preiteiros e de colegas trabalhadores. Aoanalisar as estratégias femininas para ganharmais no eito ou para se protegerem no cami-nhão, a autora aponta para situações deconivência com o assédio sexual, assim comopara estratégias mais sutis de resistência.

Ao finalizar a leitura deste livro perce-bemos com satisfação que, apesar de algunsdeslizes, já se foi o tempo em que falar demulher implicava necessariamente emchavões sobre a 'submissão feminina". Ob-servamos também a pluralidade de referên-cias bibliográficas que remetem muito maisao campo disciplinar das autoras do que aum referencial teórico único de estudos degênero, o que certamente enriquece a co-letânea. No entanto, à diversidade temáticase contrapõe uma certa unidade meto-dológica, mostrando ao leitor que parecehaver um diálogo silencioso entre as auto-ras. Certamente os seminários promovidosentre as participantes do V Concurso devemter contribuído neste sentido.

MIRIAM PILLAR GROSSI El

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Na fronteira das identidades

Masculino - FemininaCUSCHNIR, Luiz.

Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

Antes de discurtirmos o trabalho deCuschnir, seria conveniente situá-lo no con-texto da literatura que vem sendo produzidasobre o comportamento dos homens, duran-te os últimos 20 anos. Esta literatura, produzi-da basicamente nos EUA, Canadá, Inglater-ra e França, tem procurado apontar os trans-tornos gerados por uma representação desi, construída prevalentemente sobre a açãoe marcado pela dissociação entre o que oindivíduo sente e o que lhe é permitido ex-pressar.

Por outro lado, a abordagem da pro-blemática dos homens tem sido equacio-nado segundo as especificações do que, nacultura ocidental, se define como masculinoe feminino. Estas qualificações aparecemcomo unidades de compreensão do com-portamento dos Indivíduos, definindo paraeles tanto no plano imaginário quanto nosocial quem é o homem e a mulher.

O masculino e o feminino, na literaturaem questão, são conceitos utilizados paradesignar aspectos da subjetividade, mais doque para, enquanto sinônimos de sexo, re-forçar o comportamento tradicionalmentedefinido para os homens. Neste sentido, oque se coloca é uma tentativa de expansãodas fronteiras da representação social doshomens, incorporando a ela aspectos deuma vida sensível.

Segundo a literatura produzida sobre oshomens, o masculino e o feminino serão comesmo tempo utilizados como uma referên-cia à marca biológica dos sexos, tanto quan-to irão assumir uma outra característica: ade servir como expressão da sensibilidade.

Através da revisão dos significados dascategorias masculino e feminino, estará tam-bém sendo revisto o modelo de comporta-mento dos homens. Como se a busca de um"homem sensível" exigisse mais que um en-tendimento biológico da dinâmica subjeti-va dos sujeitos. Écompreensível que a inter-

pretação de uma situação de mudança so-bre o comportamento carregue, para algunsautores, atribuições eminentemente psico-lógicas e que, portanto, lancem mão dascategorias masculino e feminino para pro-duzirem suas análises.

As primeiras análises elaboradas sobreos homens se projetaram através de refle-xões psicológicas. Estas foram bem aceitaspor uma sociedade Individualista e bastan-te psicologizada com boa receptividadepara novas formas de utilização deste tipode saber. E agora, os homens são convida-dos a rever seu papel social através de umaoutra aplicação dos conhecimentos psico-lógicos, mesmo porque só o fato de ser ho-mem já eliminava a possibilidade de o sujei-to entrar em terapia.

A literatura sobre homens tem sido pro-duzida fora das regras de uma literatura emi-nentemente acadêmica, e se assume en-quanto uma forma de expressão para co-municar o que durante muito tempo eles nãoreconheceram como sendo parte de suasdinâmicas subjetivas. Assim sendo, para se-rem lidas, as reflexões sobre os homens pre-cisam guardar a singularidade com que sãoproduzidas. A partir daí, encontra-se um tex-to com um nível de complexidade e elabo-ração diferente dos exigidas pelas produ-ções acadêmicas. Contudo, um texto ricopara se identificar o desconforto e a tentati-va de um grupo de homens de encontrarpara suas vidas um significado que não sejadefinido pela conquista de prestígio e statussocial, a partir da aquisição de bens epatrimônio.

É visível, também, que a relação entreum homem e uma mulher tem servido de eixopara a condução da reflexão sobre o queestá acontecendo com os homens. Vale lem-brar que a diferença entre os autores estáno nível de importância dado por cada umdeles à relação entre homens e mulheres.Há aqueles que concedem a esta relaçãouma importância estrutural, contudo existemoutros que, relativizando-a, identificam-nacomo um dos aspectos a ser consideradopara as análises sobre a transformação docomportamento dos homens.

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Assim sendo, o individualismo enquan-to uma Weltanschauung se consolidou du-rante este século, e serviu de suporte paradar legitimidade ao movimento de minorias,que agora tem o mais novo aliado • os ho-mens. Eles se constituirão como uma mino-ria, a partir da tomada de consciência dasImplicações causadas, sobre eles mesmos,no que diz respeito ao papel social que de-vem representar. Depois dos negros, dos ín-dios, dos gays, das mulheres e trabalhado-res, os homens entram em cena, trazendopara dentro dela o silêncio e a solidão a res-peito de suas vidas. E re-potencializam a dis-cussão sobre as minorias. Afinal, homens sen-síveis, na América latina, ainda é uma de-nominação que atinge a um restrito contin-gente de Indivíduos.

Diante deste panorama, o trabalho deCuschnir apresenta os primeiros sinais do queposteriormente será considerado como atransformação no comportamento dos ho-mens. As Indagações sobre quem sou eucomo homem, como companheiro, amantee pai aparecem como indicativos que emer-gem do cotidiano dos indivíduos e sinalizamo processo de transformação que se inicia.

Cuschnir trabalha como o que ele cha-ma de grupo de gêneros, marcando sua tra-jetória com este tipo de atividade, a partirde uma experiência em Amsterdã, em umcongresso de psicoterapia. O seu livro é umareflexão desenvolvida a partir do trabalhoque realiza com grupos de homens, na faixade 25 a 50 anos

Cuschnir parte de situações cotidianaspara analisar os estereótipos que definemquem é o homem e a mulher, motivado pelaproposta de favorecer o encontro entreambos.

A denominação masculino e femininasão definidas pelo autor como sendo ener-gias que retratam as "essências" do homeme da mulher, respectivamente. Assim sendo,ele introduz a noção de sensibilidade no lu-gar da de feminilidade, como sendo umatentativa de incorporar ao comportamentodos homens uma dimensão que, na históriado Ocidente, ficou tradicionalmente atribu-ída à mulher.

O que sustenta o trabalho de Cuschniré uma busca, por meio do pstcodrama, deuma linguagem e expressão para os afetosdos homens. Em última instância ele se ali-nha a uma das principais preocupações pre-sentes na literatura sobre homens, que é ten-

tar romper com o estereótipo do 'machão",ou do "homem Ideal", para situar indivíduosdiante deles mesmos, agora como pessoas.

Para tanto, o autor faz uma reavaliaçãoda participação de outros homens na histó-ria de vida de um menino. A participaçãodo pai, do avó, e de outros membros da fa-mília só reforçam o estereótipo de homensque vivem distantes das demandas do coti-diano familiar. Desta distância brota o senti-mento de alienação a que os homens foramsubmetidos durante toda a infância e poste-riormente à vida adulta, fazendo com queassumam estereótipos sociais como referên-cia para suas identidades.

Cuschnir argumenta também que, sema diminuição por parte das mulheres do nívelde ressentimentos, que elas alimentam nassuas relações com os homens, dificilmente oencontro entre ambos acontecerá. O que sig-nifica dizer que será necessário, segundo oautor, baixar os níveis de rivalidade entreambos, administrando-os, a fim de que a ex-periência amorosa transforme a rivalidade emuma possibilidade de crescimento.

Masculino - Feminina é escrito de ma-neira que o leitor também possa completá-lo. Existem lacunas no texto a serem preen-chidas como, por exemplo, quando Cuschnlranalisa quem será o homem novo e a novamulher. No que diz respeito a esta última, oautor afirma que os homens querem viviercom as mulheres experiências de satisfaçãoe gratificação. Ele chega a esta conclusãoutilizando os depoimentos de diferentes ho-mens, em que a mulher aparece valorizadae reconhecida.

Neste trabalho, Cuschnir também abor-da aspectos da vida cotidiana das mulhe-res, e assim como na outra parte Masculino,a Feminina inicia-se com a história de crian-ças que se tornarão mulheres e homens. Astarefas, as atividades, a vida em família vãosendo abordadas de modo que, ao mesmotempo em que ele apresenta as conquistasrealizadas pelas mulheres no trabalho, apon-ta também o receio vivido por elas, deretornarem a situações de dependência doshomens, ou a um estado profissional e afetivoanterior às suas conquistas sociais.

Cuschnir comenta que uma das conse-qüências do feminismo foi de ter precipita-do o movimento de homens, tendo as mu-lheres um papel importante em toda estatransformação. Elas poderiam auxiliar os ho-mens nesta transição, fornecendo, a partir

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da própria experiência de vida, elementospara que eles encontrem o caminho em di-reção à própria Identidade

Por outro lado, o autor tento definir umaoutra direção para o encaminhamento darelação entre os gêneros, de modo que elanão passe, por parte da mulher, pela incor-poração dos valores até então restritos aomundo masculino.

O modelo para as futuras relações en-tre os gêneros adotado por Cuschnir é oti-mista Nele o conflito não aparece como abase das relações interpessoais, mas comodecorrente de uma inadequação entre osvalores sociais e as necessidades dos indi-víduos Estas últimas, na medida em quesão nomeadas e satisfeitas, favorecem acondução de relações equilibradas everdadeiras.

O trabalho traz em si uma noção de si-metria, utilizada para apresentar homem emulher, O livro é escrito até sua metade so-bre o Masculino, e virando-o de ponta ca-beça o leitor encontrará a abordagem doautor sobre Feminina. As duas partes do livrose encontram no melo e são convidadas peloautor a uma dança . "toquem, então, que obaile já começou, e o seu par é , ," No cen-tro da página, aparecem desenhados os sím-bolos de Marte (masculino) e Vênus (femini-

no) que se sobrepõem simbolizando o en-contro entre um homem e uma mulher.

O autor utiliza pequenos desenhos deMarte e Vênus, no pé de página de cadauma das partes, respectivamente. Ao longodo trabalho estes desenhos vão gradativa-mente aumentando de tamanho até ameiado livro onde, então, ocupam todo o espa-ço físico da página.

A idéia de encontro é um conceito cha-ve no trabalho de Cuschnir, e ele a perseguetanto através dos desenhos nos pés de pági-na, quanto dos grupos que coordena, ou ain-da na maneira como define um homem euma mulher. Contudo, sua visão é bastantepersonalizada e particular, e ele se vale deum texto descritivo e sem a preocupaçãode sistematizar sua análise sobre a proble-mática gênero.

Neste sentido, ele aponta as dificulda-des vividas tanto por um homem quanto poruma mulher, no que diz respeito às exigênci-as e expectativas sociais definidas para am-bos, como sendo uma etapa a ser vencida afim de que se materialize, no cotidiano, oque está representando, para eles, no Ima-ginário do Ocidente - o determinismo do en-contro entre os gêneros, sem conflitos,

SÓCRATES ÁLVARES NOLASCO E

Falas de mulheres

A Revolução das Mulheres:Um Balanço do Feminismono BrasilTOSCANO, Moema e GOLDBERG,Minam.

Rio de Janeiro: Editora Revan, 1992.

No momento em que a cultura ociden-tal comodamente se instala sob os rótulosdo pós (feminismo, marxismo, estruturalismo,modernismo, socialismo etc) e das crises,principalmente a mais confortável de todas,a crise das utopias, o aparecimento de obrascomo A Revolução das Mulheres é especial-mente bem vindo. Antes de qualquer méri-

to, o livro, ao longo de suas 115 páginas, pro-clama à(o) leitora(leitor) uma idéia: "quemsabe faz a hora, não espera acontecer". Olivro conta a história e as histórias do movi-mento com suas protagonistas: é um traba-lho que recupera o valor da vontade políti-ca que, não sendo puro voluntarismo, temsido, entretanto, um valor fundamental parase pensar a mudança, seja ela em quenível for.

O comodismo do fim do século, tão aogosto do pensamento conservador neoli-beral, mascarado de vanguardismo pós-moderno, necessita enfrentar a história doséculo e das transformações fundamentaisque nele ocorreram O capital de um séculode lutas não pode ser deixado de lado ou

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deixar-se apropriar de forma irresponsávelpor fukuyamas e camilas da vida.

A Revolução das Mulheres está dividi-do basicamente em duas partes: na primei-ra, traça rapidamente a trajetória do femi-nismo enquanto movimento, a partir da Re-volução Francesa até sua versão contem-porânea no Brasil; na segunda, dá a pala-vra, através de entrevistas, a seis das maisImportantes feministas brasileiras, quandoestas falam de sua história enquanto femi-nistas e de seus entendimentos sobre o movi-mento.

Na introdução do livro as autoras colo-cam-se de forma muito informal contandocomo de uma amizade duradoura nasceu aidéia do livro. O tom coloquial prepara a lei-tura agradável que se segue. Não é um livroacadêmico, não pretende sê-lo, dispensa bi-bliografias e discussões teóricas. Tem o obje-tivo de contar uma história, de refazer elos.As obras que envolvem uma proposta comoesta são talvez as mais difíceis de serem es-critas; os perigos de fugir do acadêmico ecair no superficial, de evitar o detalhe enfa-donho e cair em um texto excessivamenterápido estão sempre presentes. As autorasnão caem, pelo menos de forma a compro-meter o livro, em nenhuma das duas armadi-lhas. Mesmo assim, dois problemas aparecemna introdução, que derivam do tipo de pro-posta. Primeiro, as autoras afirmam que con-tando a história do feminismo querem • "des-mascarar concepções equivocadas quecercam o feminismo e as feministas taiscomo: o feminismo foi responsável pela du-pla jornada; a mulher, hoje, está mais sozi-nha e infeliz, sem filhos ou com filhos de dife-rentes pais; a mulher só quer os direitos mas-culinos sem querer assumir as responsabili-dades; o feminismo foi responsável pela cri-se da família e do casamento; feminismo éluxo de mulheres que não têm o que fazer, écoisa de mulheres lésbicas, feias e mal-ama-das .-

A história é a história das lutas de po-der, a luta por impor visões de mundo e atra-vés delas dominar. A luta feminista foi semdúvida uma das que no século XX mais aber-tamente puseram em xeque estruturas de po-der, relações de poder que por sua pereni-dade na história já estavam sendo vividasnão como relações sociais mas como parteda natureza das coisas. Esta luta, como tan-tas outras, paga um preço alto É ingenuida-de, perigosa ingenuidade, pensar que se põe

em xeque estruturas de poder seculares semreação. As autoras, no saudável afã de res-gatar a história de muitas lutas e colocá-lasexpostas fora do âmbito dos iniciados, caemem um perigoso didattsmo fazendo crer queo preconceito em relação ao feminismo éuma questão de informação equivocada.Não existem equívocos que devam ser es-clarecidos através da boa informação, massim contra-discursos que reagem à ameaçae, muitas vezes, à efetiva transformação dasrelações de poder secularmente esta-belecidos.

O segundo problema da introduçãoestá novamente relacionado com a preo-cupação do não academicismo; "chegamosà conclusão de que gostaríamos de atingir opúblico mais amplo possível, homens e mu-lheres de diferentes gerações e classes soci-ais" (p.14).

Ora, este é um país de analfabetos, quequando têm sorte de terem trabalho envol-vem-se nele por até 14 horas por dia em tro-ca de um salário de menos de 100 dólares.Este é um país em que os livros têm sua pri-meira edição, em torno de 3.000 exempla-res, dificilmente esgotada. Este é um paísonde um livro médio custa dez dólares, istoé, três dias de trabalho. Portanto, este é umlivro, como todos os outros, escrito para umaminoria insignificante de consumidores des-te tipo de bem. Com formato acadêmico ousem ele, quem o lerá somos nós mesmas

As ressalvas não Invalidam o livro; sualeitura é agradável e útil A primeira parte,sob o título "Retomando o fio da história", éuma retrospectiva sucinta do feminismo nomundo ocidental e no Brasil Presta sem dú-vida um serviço ao sistematizar informações.Em 30 páginas apresenta uma bem feita in-trodução à história do feminismo, muito útilcertamente aos jovens pesquisadores quecomeçam a interessar-se pelo tema e tam-bém aos cursos ministrados em nível de gra-duação sobre as relações de gênero. Care-ce, no entanto, a descrição do sentido dopróprio fazer da história. Ao longo dos capí-tulos muitas vezes o leitor fica com a impres-são de que aos poucos as estruturas de po-der dominante reconheceram o valor do fe-minismo abrindo suas portas para ele. Istonão parece ter sido exatamente o que acon-teceu. Na realidade todos os espaços que omovimento feminista e suas protagonistasconseguiram foram resultados de lutas árdu-as e resistências poderosas. A história não

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permite linearidades, nada acontece emsucessão como parte da forma natural deser. Contar a história do feminismo ou dequalquer outra luta social é mostrar as lutaspelas ocupações de espaços e as resistênci-as dos vários grupos e interesses em jogo.

Na segunda parte do livro, sob o títulode "Fala, Mulher" são reproduzidas entrevis-tas com seis feministas brasileiras: HeleiethSaffioti, Martha Suplicy, Heloneida Studart,Branca Moreira Alves, Rose Marie Murara eRosiska Darcy de Oliveira falam de suas his-tórias como feministas e de suas opiniõessobre diferentes temas relacionados com asmulheres. Esta é a parte mais rica do livro:sua leitura permite perceber a história deuma luta vivida por suas protagonistas. A for-ma coloquial como as entrevistas sãoconduzidas e como as respostas são dadaspermitem uma rápida identificação entre asentrevistadas e a(o) leitora(leitor). Mais doque na primeira parte, a história foi retoma-da, a vontade política de uma geração foiexplicitada. As entrevistas sõo organizadaspor temas, sôo ao todo 12 assuntos sobre osquais as feministas escolhidas dão sua opi-nião. O formato é feliz pois permite ao leitorperceber a diversidade de posições entreelas e ao mesmo tempo a firmeza dessasposições e um certo sentimento coletivo dedever cumprido. As entrevistas contam a his-tória não de um feminismo, mas das formascomo o movimento constituiu diferentes su-jeitos feministas Enquanto Branca MoreiraAlves descobre o feminismo a partir de seupróprio corpo, Rose Mano Murara declaraque sempre entendeu o movimento feminis-ta como um sindicato. Não seria correto afir-mar que o conjunto das entrevistas dão con-ta da história do feminismo no Brasil, mascertamente sua leitura permite conhecer aexperiência de uma geração fundamentalna luta pelos direitos das mulheres no país.

Se, por um lado, a história das mulherese suas lutas são fundamentais, e nisto o livropresta um grande serviço, por outro, deve-

se ter cuidado de não se cair em saudosismoou numa exposição dos feitos de uma gera-ção. Uma deliciosa passagem do depoimen-to de Rosiska é um bom exemplo deste deli-cado limite:

"Outro dia, fazendo um balanço do fe-minismo brasileiro, eu dizia a uma aluna devinte e poucos anos que, todas as vezes queela se sentasse para tomar um chope comuma amiga num bar, que ela agradecesse amim, que brindasse a mim. Porque quandoeu me sentava em 67, num bar, com umaamiga éramos convidadas a nos retirar, por-que duas amigas sozinhas eram considera-das prostitutas. Nós nos segurávamos nascadeiras e tinham que nos arrastar .(p.94).

Todas as mulheres que viveram a déca-da de 60 como adolescentes ou como jo-vens identificam-se nas entrevistas e certa-mente ao lê-las teriam muitas outras históriasa contar. Para as que não viveram o perío-do, para as mulheres jovens, não acreditoque o caminho seja o brinde e o reconheci-mento do quanto foi feito por elas, mas tal-vez seja urgente retomar a luta para que asnovas gerações não tenham tanta certezade que o chope no bar está conquistadopara todo o sempre. Se contar a história éfundamental para enfrentar o comodismo domundo em crise no fim do século, mostrarque esta história é um processo dinâmico delutas talvez seja o maior antídoto para estemesmo comodismo.

Talvez muito das exigências que fiz aolivro de Moema e Minam deva-se à necessi-dade que sinto enquanto cientista social deque as histórias dos movimentos sociais emgeral e do feminismo em particular sejam re-cuperadas; que a memória não se perca ecom ela as conquistas e, para que não dizer,as utopias que cada uma continha e con-tém. A Revolução das Mulheres abre um ca-minho que deve ser continuamente perse-guido.

CEL1 REGINA JARDIM PINTO R

ESTUDOS FEMINISTAS 221 N. 1/93

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O paradigma incômodo daigualdade universal

O Que é uma Mulher?BADINTER, Elizabeth.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, tra-duçõo de Qu'est-ce qu'une Femme?,P.D.L. Editeur, 1989, de Maria HelenaFranco Martins)

Difícil dizer quem foi o primeiro, e quemserá o último, a se perguntar "o que é umamulher". E, talvez porque se coloque contraesta pergunta, urna das melhores respostasseja, tomando-a paradigmaticamente, a dapersonagem Marianne em Lo femmegauchère, de Peter Handke: "Pensez ce quevous voudrez. Plus vous croirez pouvoir parlerde moi, plus je serei libre à votre égard.Parfois, II me semble que ce qu'on apprendde neuf sur les gens n'a déjà plus de valeur.A l'avenir, si quelqu' un m'explique commentje suis - et f Ot-ce pour me flatter ou me rendreplus forte -, je n'admetreral plus une telleinsolence".

Ou seja, o melhor é recusar tal pergunta.Mas se ela é feita ou se se a aceita, a respostanão é simples. Bem o sabia Simone de Beauvoircuja primeira frase no seu livro O segundo sexoé. "Durante muito tempo eu hesitei em em es-crever um livro sobre a mulher"2.

O livro O Que é uma Mulher? traz umdebate travado no século XVIII, entre A 1Thomas, Diderot e Madame D'Epinay. Trazainda um prefácio de Elizabeth Badinter que,organizadora da obra, contextualiza o textode Thomas e os comentários dos outros auto-res no debate, Diderot e D'Epinay. Badintertambém situa e comenta os autores e odebate.

A pergunta que dá título ao livro causa,hoje, um certo mal-estar.

Na recente literatura sobre gênero en-contramos, muitas vezes, uma crítica aoschamados 'estudos sobre mulheres" que,

' HANDKE, Peter La Femme Gaucbère, ParisGallimard, 1978, p 33-34

2 BEAUVOIR, Simone de Le Deuxtème Se.xeParis Gallimard, 1949.

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pelo seu caráter identitário, culminariam naconstituição de uma teoria parcial. OsImpasses epistemológicos dos estudos sobrea mulher teriam advindo da redução do ho-rizonte compreensivo aos limites da catego-ria empírica, e deste caráter identitário comque estes estudos referem-se à mulher. Poroutro lado, uma das críticas aos estudos degênero afirma a sua incapacidade de com-preensão dos sujeitos concretos.

Difícil negar a importância destas críti-cas, Inclusive pelo que explicitam: o embateentre distintos campos epistemológicos.

O mal-estar provocado pela pergunta"o que é a mulher" advém, além do seu ca-ráter essencialista, dos impasses provocadospor estas, relativamente recentes, tendênci-as teóricas, e que têm consequências nãodesprezíveis no campo do feminismo.

Sem querer reduzir a complexidade des-te embate teórico, não seria um tanto ób-vio, quando se fala em gênero, considerarque a mulher é uma categoria, entre outras,que a distinção de gênero formula? Quandose fala em gênero há um alargamento docampo categórico e de sentidos. As cate-gorias "mulher" ou "homem" recobrem, nomeu entender, um campo de referênciasmais restrito que as categorias masculino efeminino, e as primeiras poderiam ser consi-deradas como partes das segundas. Destaforma, não haveria oposição, exclusão ousubstituição (mulher e/ou gênero, gênero pormulher) mas gênero seria um instrumento quemapeia um campo específico de distinções,aquele cujos referentes falam da distinçãosexual Quer onde estejam sujeitos concre-tos, substantivos, homens e mulheres, queronde nem mesmo se encontram estes sujei-tos. Mas não é esta a questão do debate noséculo XVIII.

No discurso filosófico do século XVIII, jáse disse, estariam embutidos os discursos daantropologia e da história 3 . Por um lado, apreocupação comas costumes, usos e cren-

" Ver, por exemplo, DUCHET MichèleAntbropologre et Illstolre au Stècle des Lumtéres Pa-ris Flammarion, 1971, Le Parlage des Savoirs Paris LaDécouverte, 1985

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ças de povos diferentes no espaço e no tem-po, e por outro a idéia de homem universalsob leis naturais A tensão, da qual somosherdeiros, entre particularidades e universa-lidade, diferenças e semelhança. A Razãoe/ou Natureza, os costumes; o Homem, oshomens; os civilizados, os selvagens.

O livro O Que é uma Mulher? tem o mé-rito de nos colocar diante de um debate queexplicita esta tensão através de outra parti-cularidade: as mulheres. Na verdade, o títu-lo do livro não faz justiça ao seu tema; colo-ca no singular (O Que é uma Mulher?) o queo texto pivô do debate, o de Thomas, colo-ca no plural ("Ensaio sobre o caráter, os cos-tumes e o espírito das mulheres nos diferen-tes séculos").

Thomas, com um método etnográfico ehistórico, no velho estilo, nos convida, com"uma coletânea de observações e fatos", aconhecer 'o que as mulheres foram, o quesão e o que poderiam ser" a . Foram, adora-das e oprimidas; deveriam ser, capazes detirar o maior partido das qualidades domi-nantes em cada época e evitar os defeitos,salvar sua razão e seu coração, e "arriscando-se a desagradar, soubesse, em sua casa efora dela, conservar sua estima peia virtude,seu desprezo para com o vício, sua sensibili-dade para com a amizade e, apesar do de-sejo de ter um amplo circulo social, no meiodesse mesmo círculo, tivesse a coragem dedefender um modo de pensar tão extraordi-nário, e a coragem ainda maior de sustenta-lo - (p.115-116)

O texto de Thornas foi publicado emmarço de 1773. A resposta de Diderot é pu-blicada em 1774.

O ensaio de Diderot, "Sobre as Mulhe-res", caracteriza-se pelo tom irônico:"Gostode Thomas. Respeito a altivez de sua alma ea nobreza de seu caráter. É um homem demuito espírito, é um homem de bem' portan-to não é um homem comum ..", e: "Eu teriaescrito com menos imparcialidade e sabe-doria, mas me teria ocupado com mais inte-resse e calor do único ser da natureza quenos devolve sentimento por sentimento, eque fica feliz com a felicidade que nos pra-porclona...(—). Mas ele quis que seu livro nãofosse de nenhum sexo, e Infelizmente foi o

4 1 HONIAS, A Da influência das sociedades so-bre o caráter das mulheres In O Que é uma Mulher',p 40

' Correspondance Littéraire, abril de 1774

que conseguiu, até bem demais; é umhermafrodita que não tem nem a energia dohomem nem a languidez da mulher"(p.119)

Dominada por seus órgãos a cabeçadas mulheres ainda falaria a linguagem dossentidos, nos diz o autor que chega a excla-mar: "Oh, mulheres! sois crianças bemextraordináriasi"(p.124)

Ao contrário dos dois textos anteriores,madame D'Epinay não publica seus comen-tários sobre o ensaio de Thomas. Ela o fazem uma carta, privada, ao abade Galiani.Critica-lhe o estilo, atribuindo-lhe, entre ou-tros adjetivos, o de pedante e monótono.Com relação ao conteúdo toma vários deseus pontos e os discute. A síntese de seusargumentos, contrários aos de Thomas, estáno final: "É bem evidente que os homens eas mulheres têm a mesma natureza e a mes-ma constituição. A prova disso é que as mu-lheres selvagens são tão robustas e ágeisquanto os homens selvagens: assim a fraque-za de nossa constituição e de nossos órgãospertence certamente ã nossa educação, eé uma conseqüência da condição que nosdestinaram na sociedade. Os homens e asmulheres, tendo a mesma natureza e a mes-ma constituição, são susceptíveis dos mes-mos defeitos, das mesmas virtudes e dosmesmos vicios".(p.137-138)

A Igualdade sendo natural, a diferençaestaria no artificialismo social: "Certamenteseriam necessárias várias gerações para nosrecolocar tais como a natureza nos criouPoderíamos talvez sair vencedoras; mas oshomens perderiam demais. Ficam bem feli-zes por não sermos piores do que somos, de-pois de tudo o que fizeram para nosdesnaturar por suas belas instituições, etc".(p,138)

Nem igualdade natural, nem social, masdesigualdade, natural e social, para Thomas.Para ele, no que se refere às mulheres, o malnão está apenas na sociedade: "A socieda-de ainda aumenta, para elas, os males danatureza" (p.37). Não há nem mesmo o elo-gio aos "selvagens", no que se refere ao tra-tamento dado às mulheres: 'as mulheres sãoentre os índios, o que os ilotas eram entre osespartanos, um povo vencido, obrigado atrabalhar para os vencedores" .(1D.38)

Os termos do debate - desigualdadenatural e/ou social; igualdade natural, dife-rença social - constitutivos do pensamentoda época são explicitados, e desafiados, notratamento do tema "mulheres". O que con-

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tnbui para desautorizar a hierarquia, aindanão inteiramente abandonada, entre temasmaiores e menores, mais ou menos relevan-tes. Mesmo porque, as questões colocadas -e que ainda constituem um desafio - mos-tram-se particularmente interessantes exata-mente ao referirem-se não apenas às distan-tes e exóticas diferenças, a dos 'selvagens".Este é um dos méritos do texto de Thomas. Oque torna ainda mais curiosa sua discussãocom Montaigne, porque este afirmara a In-capacidade das mulheres à amizade.

Mas também o texto de Diderot é im-portante: porque explicita como pensado-res brilhantes sobre os outros temas se com-portam quando se trata de pensar questõesque os atingem de forma tão próxima, e quetendem a ser consideradas "menores". Nes-te caso, ao desqualificar o autor, e seu tema,Diderot apenas exemplifica o que diz Tho-mas, e pode ser considerado como para-digmático de atitudes ainda não muito dis-tantes de nós.

O debate é fascinante. E instigante. Porexemplo, reconhecer o que incomoda notexto de Thomas, e aliás incomoda em mui-tos dos escritos sobre mulheres nas décadaspassadas (ou de algumas 'feministas" tardi-as ainda muito recentemente): o tom decomiseração, de piedade, de vitimização.

Um exercício Interessante é trocar osestilos e lugares: ler o conteúdo de Thomascom o 'espírito" de Diderot, Ou ler Madamed' Epinay onde Diderot publicou seu polêmi-co e irônico ensaio

O parágrafo final de Badinter incomo-da, Não pela sua defesa da igualdade uni-versal, e da razão universal, mas peloartificialismo e otimismo quando afirma que"... nós, mulheres, estamos definitivamenteintegradas na humanidade, adultas e eman-cipadas"(p.34). Artificialismo pelo "nós mu-lheres" e otimismo pela 'integração", pois,não só no que se refere às mulheres, a "hu-manidade" não tem dado mostras destaintegração. Incomoda principalmente por-que situar um debate de séculos anterioresnão deveria ter como conclusão final afir-mar os seus próprios termos. Badinter termi-na onde as questões contemporâneas co-meçam: no estatuto das diferenças, e nassuas relações, uma vez afirmado o princípioda igualdade universal. Sem falar que esteprincípio ainda não fez o milagre que muitoesperamos dele.

SUELY KOFES E

1 Registros

Prostituição em DestaqueCette Violence Dont Nous Ne VoulonsPlus - Prostitution. Número especial doboletim da Association EuropéenneCentre Les Violences Faltes Aux FemmesAu Travail, n° 11-12, março de 1991, Bru-xelas.

O boletim da ANEF é uma publicação tra-dicional do feminismo combativo francês.Neste número, sob o titulo de CetteViolence Dont Nous Ne Voulons Plus, aprostituição é o tema central. O Brasil ga-nhou destaque especial no artigo "Prosti-tuição Infantil no Brasil". Rennée Bridel eJean-Paul Colombo, autores da pesquisa,afirmam que nas áreas de prostituição dopaís, meninas de três a oito anos são ex-postas a atentados sexuais. Na socieda-de brasileira, explicam, existem duas re-gras básicas no relacionamento mulher-homem: a mulher deve ser virgem antesdo casamento, enquanto o homem deveusufruir ao máximo de sua liberdade sexu-al, com o fim de manter o culto da virilida-de masculina. A soma dessas característi-cas acarreta abusos sexuais sofridos pormuitas crianças. Os números apresenta-dos pelos autores no documento não sãoalentadores. Nas zonas de prostituição,meninas de três anos são expostas à bru-talidade sexual, aos seis são seviciadas ede oito em diante já mantêm relações se-xuais completas. Ao atingir doze anos es-tão prostituídas. A pesquisa foi feita emRecife, Lages (Santa Catarina), Rio Gran-de do Sul, zona do garimpo na Amazôniae Mato Grosso.Além do artigo sobre a prostituição infan-til no Brasil, o boletim da ANEF conta comoutros 13 textos. Nestes, são abordadasdiversas questões relacionadas ao tema,como o tráfico de mulheres, a prostitui-ção sagrada na índia e depoimentos deex-prostitutas francesas e norte-america-nas

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Pensando Novos DireitosPensando Nossa Cidadania - propostaspara uma legislação não discriminatória.Brasília: Centro Feminista de Estudos eAssessoria. Brasília, 1993.

Em 1962, a mulher casada era considera-da, segundo seu estatuto, incapaz de par-ticipar de certos atos da vida civil, talcomo os jovens maiores de 16 e menoresde 21 anos. Nos últimos 20 anos, o movi-mento feminista conquistou direitos essen-ciais para a formação da mulher cidadã.como a estabilidade da gestante desdeo início da gravidez até cinco meses apóso parto. Em Pensando Nossa Cidadania:proposta para uma legislação nãodiscriminatória, uma coletânea de seis tex-tos, líderes do movimento na área do di-reito apresentam novos projetos de lei emdiversas áreas.No primeiro artigo, a violência e a disc-i-minação da mulher na área civil são ana-lisadas, enquanto no segundo o mesmotema éabordado sob o ângulo penal. Noterceiro capítulo, são apresentadas ques-tões relativas ao trabalho feminino nomeio urbano, rural e doméstico e sua rela-ção com a previdência social. Saúde edireitos reprodutivos são assuntos tratadosno quarto artigo e a qualificação profissi-onal da mulher é abordada no texto se-guinte. Por último, as autoras examinarama temática da educação infantil.Pensando Nossa Cidadania, mais do queuma coletânea de propostas, é um docu-mento valioso para subsidiar discussões nocampo parlamentar, além de constituiruma peça de divulgação das Idéias domovimento de mulheres na formulação deleis que garantam iguais direitos entre ossexos e novos direitos específicos.Participam da coletânea: Sílvia Pimentel,Marlene libardoni, Maiô Simões LopesLigocki, Eleonora Menicucci de Oliveira,Sara Sorrentino, Zuleide Araújo Teixeira,Fúlvia Rosemberg, dentre outras. A publi-cação tem o apoio da Fundação Ford,UNICEF, FLACSO e NEPEM.

Política de EducaçãoFeminina

Os dados colhidos pela Seção de Educa-ção da UNICEF são, pelo menos, alarman-tes. Em 1990, segundo o órgão, 130 milhõesde crianças, em todo o planeta, não ti-nham acesso à educação primária. Des-se contigente, 62%, ou seja, cerca de 81milhões, eram de meninas em Idade deaprendizagem. Para corrigir essa desigual-dade, a UNICEF criou o programa Estraté-gias para Promoção da Educação deMeninas, publicado em junho de 1992 pelaSeção de Educação da organização.Segundo o documento, o analfabetismoacarreta graves deformações no desen-volvimento econômico e social dos paí-ses. A economia informal é o primeiro se-tor afetado, seguido pelo planejamentofamiliar. Além disso, o documento desta-ca que nas sociedades onde as mulheressão alfabetizadas, os casamentos são re-alizados tardiamente implicando na for-mação de famílias menos numerosas.O programa da UNICEF pode ser conse-guido no seguinte endereço: The UnitedNations Plaza, New York, 10017, USA. Te!:001-212-326-7142.

ESTUDOS FEMINISTAS 225 N 1/93

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