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MUDANçAS CLIMáTICAS Manguezais migram continente adentro com aumento do nível do mar FíSICA Brasileiros testam teoria que ajuda a prever crises financeiras SANEAMENTO Sabesp investe em inovação para evitar desperdício de água TEIA SINTéTICA Produto de laboratório imita fio de aranha ENTREVISTA HUMBERTO TORLONI O resgate da história da oncologia Estimulação elétrica de baixa intensidade avança como tratamento promissor contra depressão Energia para o cérebro FEVEREIRO DE 2014 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Pesquisa FAPESP 216

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Energia para o cérebro

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mudanças climáticasManguezais migram continente adentro com aumento do nível do mar

físicaBrasileiros testam teoria que ajuda a prever crises financeiras

saneamentoSabesp investe em inovação para evitar desperdício de água

teia sintéticaProduto de laboratório imita fio de aranha

entrevistahumberto torloni O resgate da história da oncologia

Estimulação elétrica de baixa intensidade avança como tratamento

promissor contra depressão

energia para o

cérebro

fevereiro de 2014 www.revistapesquisa.fapesp.br

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PesQuisa faPesP 216 | 3

Topografia coloridaO relevo acidentado de parte do interior de são paulo ganhou cores fortes por uma

boa razão. a paisagem não é uma fotografia, mas uma imagem processada a partir

de nuvens de pontos produzidas com uma tecnologia de escaneamento a laser,

cuja sigla é LiDar (Light Detection and ranging), usada a partir de um avião.

O equipamento varre o território escolhido e fornece várias informações sobre o

volume de madeira, a quantidade de carbono e o perfil de floresta nativa ou

do plantio, entre outras. a técnica – que vem servindo como fonte de dados para

trabalhos científicos no exterior e tem aberto novas fronteiras na área de

sensoriamento remoto – está sendo pioneiramente utilizada por uma equipe da

escola superior de agricultura Luiz de queiroz da universidade de são paulo

(esalq-usp) em estudos e aplicações florestais. esta imagem mostra o plantio de

eucaliptos à esquerda e pastagens à direita separados pela cumeeira de um relevo

acidentado. a imagem foi capturada e trabalhada por poliana santos durante

atividade de iniciação científica do curso de engenharia florestal.

fotolab

Imagem enviada por Luiz Carlos Estraviz Rodriguez, professor do Departamento de Ciências Florestais da Esalq-USP

se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 Mb. seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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CAPA16 A estimulação de neurônios com uma corrente elétrica de baixa intensidade amadurece como técnica promissora no tratamento contra depressão

entrevista22 Humberto TorloniPatologista trabalha para recuperar a memória da oncologia

Política científica e tecnolÓGica

30 ColaboraçãoParceria entre FAPESP e NSF une pesquisadores do Brasil e dos EUA para conhecerem melhor a biodiversidade brasileira

33 difusãoMostra alemã chega a São Paulo com descobertas científicas que podem mudar o mundo

ciÊncia

36 ecologiaManguezais ganham importância diante de alterações no clima

42 PaleontologiaFósseis sugerem que o rio Amazonas desaguava no norte da Venezuela e Colômbia

44 físicaBrasileiros ajudam a testar teoria sobre a previsão e o controle de crises financeiras globais

50 GenéticaDescoberto gene responsável por síndrome que causa malformação da mandíbula e da laringe

54 BioquímicaEm São Paulo e no Rio, dois compostos que combatem a ação do veneno de abelhas passam nos testes iniciais

tecnoloGia

56 SaneamentoSabesp cria núcleo de tecnologia e faz parcerias para desenvolver novos produtos e sistemas

62 SaúdeSensores fazem análises clínicas mais sensíveis e detecção precoce da dengue

66 BiotecnologiaCientistas brasileiros produzem fibras sintéticas que mimetizam os fios de aranhas

70 Pesquisa empresarialBosch brasileira tornou-se referência mundial ao lançar o sistema flex fuel

humanidades

74 Ciência políticaAnálise das redes de organizações da sociedade civil contraria tese da “onguização”

78 Letras clássicasPesquisadora investiga comédias do dramaturgo romano Plauto que foram referência para Shakespeare, Molière e Suassuna

82 PatrimônioEstudo revela a arquitetura rural do século XIX no interior do Nordeste

56

fevereiro n.216

33

seçÕes

3 fotolab5 Carta do editor6 Cartas7 On-line8 Dados e projetos9 boas práticas10 estratégias12 tecnociência86 Memória88 arte90 Conto92 resenhas94 Carreiras96 Classificados

CAPA Chuwy / getty iMages

4 | fevereiro De 2014

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carta do editor

a reportagem de capa desta edição relata os detalhes de um tratamento experimental para a depressão severa. São duas as ra-

zões de termos escolhido esse trabalho como tema principal. A primeira é o seu caráter promissor. A estimulação transcraniana de corrente contínua (ETCC) está sendo testada em vários países, in-cluindo o Brasil, com bons resultados. Além de efeitos colaterais mínimos, a nova terapia pode ser alternativa ou complementação ao uso de medica-mentos, o que é especialmente importante quando se sabe que 30% das pessoas com depressão grave não respondem aos tratamentos atuais. A segunda razão é a doença propriamente dita – a depressão é o mais disseminado dos distúrbios mentais. Levan-tamento coordenado por uma equipe da Universi-dade Federal de São Paulo indicou que 28,27% da população brasileira apresenta sintomas da doença. Deste contingente, 15% demonstram sinais do mal em sua forma mais severa, que, em geral, exige o uso de doses mais elevadas de medicação. Mesmo assim, com sucesso limitado.

A ETCC é considerada promissora pelos espe-cialistas do Centro de Pesquisas Clínicas e Epide-miológicas do Hospital Universitário da Universi-dade de São Paulo pela simplicidade da aplicação. Trata-se de fixar dois eletrodos nas têmporas, um positivo e outro negativo. Uma corrente elétrica de baixa intensidade é aplicada durante 20 a 30 minutos seguidos, o que ajuda a restabelecer o funcionamento normal dos neurônios.

Quando se fala em estimulação elétrica lo-go se pensa na eletroterapia convulsiva (ETC), conhecida como eletrochoque, um tratamento de péssima fama, mas ainda hoje considerado uma das formas mais eficientes de amenizar a depressão que não responde a nenhum outro tratamento. Neste caso, uma corrente única e elevada, de até 1 ampère, atinge o cérebro do paciente, que precisa ser anestesiado e pode ter como efeito colateral a perda temporária de memória. Na ETCC, a corrente aplicada é 400 vezes menor, de 2 miliampères, com a pessoa acordada. Causa apenas formigamento por alguns segundos e vermelhidão onde fi-

cam os eletrodos por 20 minutos. Os estudos continuam e são um alento para quem sofre da doença em seu pior estágio, tão incapacitante como qualquer outra moléstia grave. Vale ler a reportagem do editor especial Carlos Fiora-vanti (página 16).

* * *Embora os estudos sobre mudanças climáticas

globais tenham como alvo todos os tipos de am-biente, raramente os manguezais aparecem sob os holofotes. Agora, o mais longo acompanhamento desse bioma no Brasil, que vem sendo realizado há 16 anos em Guaratiba, no Rio de Janeiro, foi motivo de reportagem da editora de Pesquisa FaPesP On-line, Maria Guimarães, que mostra a reação dos manguezais às alterações ambientais (página 36). Em Guaratiba a floresta avançou 80 metros continente adentro de 1998 até hoje, um claro indício de que o mar vem subindo, segundo os pesquisadores. A expectativa é que os man-guezais ampliem sua distribuição geográfica no Brasil à medida que as temperaturas aumentem.

* * *A geração e prospecção de novas tecnolo-

gias para o setor de saneamento em São Pau-lo foram investigadas pelo editor Marcos de Oliveira (página 56). Ele conta de alguns dos projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da Companhia de Saneamento Básico do Es-tado de São Paulo (Sabesp), que desde 2009 investe para melhorar o serviço que atende a 363 municípios paulistas. O interesse da em-presa – a segunda em número de clientes em um só país – a levou a estabelecer parcerias com universidades e a fazer um acordo de cooperação com a FAPESP para apoiar pro-jetos nessa área. Um dos principais objetivos é diminuir o enorme desperdício de água na rede, sobretudo em razão de rachaduras nas tubulações. Hoje um terço da água que sai dos grandes reservatórios é perdido, o que inclui vazamentos e fraudes. A companhia agora in-veste em P&D para tentar reduzir as perdas. Essa é outra boa história desta edição.

neldson marcolin, editor chefe

o alento que vem da eletricidade

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6 | fevereiro De 2014

durante as glaciações e os períodos in-terglaciais bem antes da existência dos seres humanos, e possivelmente estamos novamente num novo ciclo, e o homem está dando uma mãozinha para acelerar o processo. Logo, não é justo colocar toda a culpa na raça humana sobre os proble-mas ambientais, pois a natureza também tem sua parcela de contribuição. marte ferreira da silva

atibaia, sp

museus no brasilMuito bacana a reportagem de Maria Guimarães sobre a vinda do diretor do Museu de História Natural de Londres ao Brasil em busca de parcerias (“Uma coleção viva”, edição 214). No entanto, fico imaginando o que Michael Dixon terá dito aos colegas da Inglaterra quan-do retornou. E o motivo é bem simples: não temos nenhum museu de história natural que possa chegar ao menos perto da instituição que ele dirige. Certamente o senhor Dixon não deve conseguir en-tender como a sétima economia mundial não tem nem sequer um único museu de história natural condizente com a sua po-sição econômica. Talvez o senhor Dixon, além das parcerias que procura desen-volver no nosso país, pudesse visitar os políticos de Brasília, incluindo os que se encontram no Ministério da Educação, e mostrar a importante função educativa dos museus em seu país. alexander W. a. Kellner

Museu Nacional/ufrJ

rio de Janeiro, rJ

correçãoOs nomes dos núcleos atômicos deuté-rio e trítio estão invertidos no desenho “Plasma em fusão” no infográfico da pá-gina 74, que integra a reportagem “Alta frequência” (edição 214).

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim antunes, 727, 10º andar - Cep 05415-012, pinheiros, são paulo-sp. as cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

cartas [email protected]

revistaSou assinante de Pesquisa FaPesP há pelo menos oito anos. A cada exemplar fico cada vez mais convencida de que assiná-la é um bom investimento. Os assuntos são muito bem escritos, acho a diagramação ótima e percebe-se o ca-pricho em cada edição. A capa de janeiro (“O último ato da favorita do imperador”, edição 215) é linda!  O conteúdo, como sempre, maravilhoso. Aprendo muito com a leitura dos diversos assuntos abor-dados de forma didática e acessível, sem abrir mão da qualidade dos conteúdos. Mais um adjetivo: a revista é atempo-ral. Os artigos podem ser relidos, inde-pendentemente da passagem do tempo. Eles estão sempre atualíssimos. Meus parabéns a todos que fazem o sucesso de Pesquisa FaPesP.maraci baraldi

Marília, sp

rios de são PauloA edição 214, com a cidade de São Paulo e seus rios na capa, está ótima (“Entre pa-redes de concreto”), gorda de conteúdo. Gostei da fusão nuclear com hidrogênio gerando hélio (“Alta frequência”) e da história de Theodoro Sampaio (“Enge-nho e arte”): quem vê a primeira foto da página rapidamente pensa que ele é o branco abaixado. Vocês poderiam ter colocado uma seta vermelha na foto apontando o Theodoro com chapéu afri-cano, em pé. Em relação a “inovação”, no texto de Mariluce Moura, necessária é à inovação na democratização da ciên-cia, no investimento nos professores da escola pública. José fonseca

santo antonio do rio grande, rs

mudanças climáticasNão é dúvida para ninguém que as ativi-dades antropogênicas têm influenciado demais o clima do planeta e que isso po-de se tornar um grande problema mais adiante (“O mundo mais quente”, edição 212). No entanto, temos que considerar que o nosso planeta já passou por isso

CeLsO LaferPresiDente

eDuarDO MOaCyr Kriegervice-PresiDente

conselho suPerior

aLeJaNDrO szaNtO De tOLeDO, CeLsO Lafer, eDuarDO MOaCyr Krieger, ferNaNDO ferreira COsta, hOráCiO Lafer piva, JOãO graNDiNO rODas, Maria JOsé sOares MeNDes giaNNiNi, MariLza vieira CuNha ruDge, JOsé De sOuza MartiNs, peDrO Luiz barreirOs passOs, sueLy viLeLa saMpaiO, yOshiaKi NaKaNO

conselho técnico-administrativo

JOsé araNa vareLaDiretor PresiDente

CarLOs heNrique De britO CruzDiretor científico

JOaquiM J. De CaMargO eNgLerDiretor ADministrAtivo

conselho editorialCarlos henrique de brito Cruz (Presidente), Caio túlio Costa, eugênio bucci, fernando reinach, José eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria hermínia tavares de almeida, Marisa Lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

comitÊ científicoLuiz henrique Lopes dos santos (Presidente), adolpho José Melfi, Carlos eduardo Negrão, Douglas eduardo zampieri, eduardo Cesar Leão Marques, francisco antônio bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo engler, José arana varela, José roberto de frança arruda, José roberto postali parra, Lucio angnes, Luis augusto barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-anne van sluys, Mário José abdalla saad, Marta teresa da silva arretche, paula Montero, roberto Marcondes Cesar Júnior, sérgio Luiz Monteiro salles filho, sérgio robles reis queiroz, wagner do amaral Caradori, walter Colli

coordenador científicoLuiz henrique Lopes dos santos

diretora de redação Mariluce Moura

editor chefe Neldson Marcolin

editores fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); Carlos fioravanti e Marcos pivetta (Editores espe ciais); bruno de pierro e Dinorah ereno (Editores assistentes)

revisão Márcio guimarães de araújo, Margô Negro

arte Mayumi Okuyama (Editora), ana paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia felli e alvaro felippe Jr. (Assistente)

fotÓGrafos eduardo Cesar, Léo ramos

mídias eletrônicas fabrício Marques (Coordenador) internet Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora)Júlio Cesar barros (Editor assistente) rodrigo de Oliveira andrade (Repórter)

rádio Pesquisa Brasilbiancamaria binazzi (Produtora)

colaboradores ana Lima, alexandre affonso, Carolina rossetti de toledo, Daniel bueno, evanildo da silveira, fabio Otubo, igor zolnerkevic, ivana arruda Leite, Juliana sayuri, Laura teixeira, Lauro Lisboa garcia, Lisbeth rebollo gonçalves, Márcio ferrari, Maria gabriela s.M.C. Marinho, Nara isoda, Negreiros, Nelson provazi, pedro hamdan, raul aguiar, valter rodrigues, yuri vasconcelos

é Proibida a reProdução total ou Parcial de textos e fotos sem Prévia autorização

Para falar com a redação (11) [email protected]

Para anunciar (11) 3087-4212 [email protected] assinar (11) 3087-4237 [email protected]

tiraGem 43.800 exemplaresimPressão plural indústria gráficadistribuição DiNap

Gestão administrativa iNstitutO uNieMp

PesQuisa faPesP rua Joaquim antunes, no 727, 10o andar, Cep 05415-012, pinheiros, são paulo-sp

faPesP rua pio Xi, no 1.500, Cep 05468-901, alto da Lapa, são paulo-sp

seCretaria De DeseNvOLviMeNtO eCONôMiCO,

CiêNCia e teCNOLOgia Governo do estado de são Paulo

fuNDaçãO De aMparO à pesquisa DO estaDO De sãO pauLO

issN 1519-8774

Page 7: Pesquisa FAPESP 216

PesQuisa faPesP 216 | 7

yOutube.COM/user/pesquisafapesp

on-linew w w . r e v i s t a p e s q u i s a . f a p e s p. b r

xum grupo de pesquisadores que inclui brasileiros da universidade de Leuven, bélgica, verificou que as rainhas nas colônias de abelhas, vespas e formigas usam um mesmo composto químico (feromônio) para impedir que as operárias se reproduzam. a substância indica que a rainha está fértil e, em alguns casos, inibe o desenvolvimento dos ovários das operárias. No estudo, publicado na Science, eles afirmam que esses compostos se conservaram por toda a história evolutiva desses grupos, servindo como sinal de fertilidade no ancestral solitário, há 145 milhões de anos.

xNum levantamento conduzido em 149 municípios brasileiros, pesquisadores da unifesp e da universidade do texas verificaram que 3,9% dos 4.607 entrevistados consumiram cocaína uma vez na vida e que 1,7% usou a substância nos 12 meses antecedentes à pesquisa. segundo ilana pinsky, uma das autoras do estudo publicado na Addictive Behaviors, os dados podem ser generalizados para toda a população brasileira. “estimamos que 5,2 milhões de pessoas consumiram cocaína uma vez na vida, seja em pó ou como crack, e que 3,2 milhões a usaram em 2011.”

exclusivo no site

vídeo do mês

Veículo sem motorista pode ser realidade em grandes centros urbanos nos próximos 20 anos.

tO

M w

eNse

Leer

s mariana P. massafera_ Muito interessante! parabéns aos pesquisadores brasileiros envolvidos. (O último ato da favorita do imperador)

adauto Pereira_ Não deixem de ver o filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao hamburger, filho do cientista, e que conta a história da perseguição dele na época da ditadura. (Ernst Hamburger: um corajoso cidadão paulistano)

Germanna righetto_ Muito relevante a ferramenta. O bromofenol é um reagente bem comum nos laboratórios de pesquisa molecular e é interessante que possa, junto com um computador e um scanner, ajudar a monitorar a adulteração do leite. (Imagens da fraude)

matheus steinmeier_ só espero que o conteúdo da mostra não corrobore essa falsa impressão de linearidade evolutiva, num trajeto hipotético “do macaco ao homem”. (Do macaco ao homem)

roberto Willians de santana_ Muito preocupante, uma questão de estado. isto é, de saúde pública, urgente! (Estudo avalia prevalência no uso de cocaína no Brasil)

nas redes

assista ao vídeo:

rainha usa feromônios como sinalização que indica às operárias que ela está fértil

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8 | fevereiro De 2014

DADos e Projetos

temáticos

xGeração e análise da imunogenicidade de proteínas recombinantes baseadas nas diferentes formas alélicas do antígeno circumsporozoíta de Plasmodium vivax visando o desenvolvimento de uma vacina universal contra maláriaPesquisador responsável: Maurício Martins rodrigues

temáticos e Jovem PesQuisador recentesprojetos contratados em dezembro de 2013 e janeiro de 2014

instituição: Centro de terapia Celular e Molecular/unifespProcesso: 2012/13032-5vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

xGenômica cardiovascular: mecanismos & novas terapias - cvGen mech2therPesquisador responsável: José eduardo Kriegerinstituição: instituto do Coração do hospital das Clínicas de são paulo/sssp

Processo: 2013/17368-0vigência: 01/02/2014 a 31/01/2019

Jovem PesQuisador

xbiologia de sistemas de longos rnas não-codificadoresPesquisador responsável: helder takashi imoto Nakayainstituição: faculdade de Ciências farmacêuticas/usp

Processo: 2012/19278-6vigência: 01/12/2013 a 30/11/2017

xanálise da aplicação de nanotecnologia em processos térmicos e de conversão de energiaPesquisadora responsável: elaine Maria Cardoso instituição: faculdade de engenharia de ilha solteira/unespProcesso: 2013/15431-7vigência: 01/12/2013 a 30/11/2017

fomento à pesquisataxa de sucesso para propostas submetidas à fapesp e algumas agências estrangeiras (ano-base 2011)

[1] Nsb 2012, “report to the National science board on the National science foundation’s Merit review process, 2011”, http://www.nsf.gov/nsb/topics/Meritreview.jsp.[2] biotechnology and biological sciences research Council (bbsrC), “annual report and accounts 2011 – 2012”, http://www.bbsrc.ac.uk/publications/accounts/bbsrc-annual-11-12.aspx. [3] Natural environment research Council, “annual report and accounts 2011-2012”, http://www.nerc.ac.uk/publications/annualreport/2012/.[4] epsrC, “research proposal funding rates 2011-2012”, http://www.epsrc.ac.uk/funding/apprev/successrates/pages/201112.aspx.[5] MrC, “annual report and accounts 2011/12”, http://www.mrc.ac.uk/utilities/Documentrecord/index.htm?d=MrC008776.[6] arts & humanities research Council, annual report & accounts 2011-12, http://www.ahrc.ac.uk/News-and-events/publications/pages/annual-report-and-accounts.aspx.[7] economic and social research Council, “vital statistics 2011-12”, http://www.esrc.ac.uk/publications/annual-report/index.aspx.[8] NserC, “facts and figures 2010-11”, http://www.nserc-crsng.gc.ca/NserC-CrsNg/factsfigures-tableauxDetailles_eng.asp.[9] Os strategic grants do NserC têm valor médio de Cd$ 60 a Cd$ 200 mil por ano, sendo comparáveis nesta dimensão aos auxílios à pesquisa temáticos da fapesp, embora tenham duração de somente três anos.[10] Os Discovery grants do NserC têm valor total médio de Cd$ 33 mil, sendo comparáveis em dimensão aos auxílios à pesquisa regulares da fapesp.

solicitações analisadas concessões taxa de sucesso

fapesp (todos os auxílios e bolsas) 22.928 12.637 55%

auxílios à pesquisa regulares 4.414 2.184 49%

auxílios temáticos 179 71 40%

bolsas no país - pD 1.635 976 60%

bolsas no país - Dr 2.637 1.356 51%

Nsf, eua (todos os auxílios) [1] 55.542 12.996 22%

Nih, eua (todos os auxílios) 49.592 8.765 18%

r01 (equivale a temáticos) 2.871 5.380 19%

bbsrC, reino unido (exclui bolsas) [2] 1.832 513 28%

NerC, reino unido [3] 1.256 215 17%

epsrC, reino unido [4] 1.938 803 41%

MrC, reino unido [5] 1.238 327 26%

ahrC, reino unido [6] 1.037 432 40%

esCrC, reino unido [7] 779 108 14%

NserC, Canadá [8] 8.799 3.977 45%

bolsas pg 3.321 1.704 51%

bolsas pD 1.432 133 9%

strategic grants [9] 547 122 22%

Discovery grants [10] 3.429 1.986 58%

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Limites das denúncias anônimas

Cópia chinesa de artigo brasileiro

BoAs PráticAs

Denúncias anônimas envolvendo plágio e fraude em artigos científicos são recebidas com regularidade pelos editores de periódicos, mas desde 2010 o pseudônimo Clare Francis se tornou um símbolo desse tipo de delação. Diane Sullenberger, editora executiva da Proceedings of the National Academy of Sciences, disse à revista Nature que 80% das denúncias que tem recebido vieram de e-mails endereçados por Francis – cujo nome verdadeiro, ocupação e gênero seguem desconhecidos.

No ano passado, o Journal of Cellular Biology cancelou um artigo escrito em 2006 por pesquisadores italianos sobre mecanismos de fusão de mioblastos por manipulação das imagens publicadas, após investigar denúncia de Clare. O Journal of Neuroscience também investigou recentemente uma suspeita de manipulação de imagens num artigo de 1997, mas não conseguiu chegar a uma conclusão: embora a acusação fizesse sentido, os autores do estudo negaram categoricamente a fraude. A dificuldade de apurar o caso tanto tempo depois levou a revista a não determinar a retratação do artigo, mas anexar uma “declaração de preocupação” envolvendo a possível manipulação.

Denúncias anônimas criam dilemas para os editores. “É preciso conhecer as motivações do delator, pois alegações infundadas podem causar prejuízo e se transformarem elas próprias num tipo de má conduta científica”, disse à Nature Ulrich Brandt, editor da Biochimica et Biophysica acta. Em fevereiro de 2013, o Committee on Publication Ethics (Cope), fórum de revistas

científicas que congrega mais de 7 mil afiliados, divulgou orientações sobre o assunto. Propôs que qualquer denúncia amparada em provas deve ser investigada, mesmo que não se conheça a origem. Nem todas as revistas seguem essa diretriz. Darren Taichman, editor do annals of Internal Medicine, disse ao site The Scientist que denunciantes devem informar sua identidade se quiserem que a acusação seja investigada pela revista, que aceita, no entanto, manter o nome do delator em sigilo. Certas táticas de Clare Francis irritam os editores. O pseudônimo às vezes envia as respostas que recebe dos editores para órgãos de imprensa, quando não fica satisfeito com a acolhida da denúncia. Tom Reller, vice-presidente da editora Elsevier, diz que nem todas as acusações feitas por Clare Francis compensam ser investigadas. “As denúncias são produto da

Luiz Eduardo Imbelloni, professor de anestesiologia da Faculdade de Medicina Nova Esperança, na Paraíba, foi informado pelo leitor Aman Kumar, em maio do ano passado, de que um de seus artigos havia sido plagiado por pesquisadores da China, que publicaram os mesmos resultados num periódico alemão. “Tudo o que eu havia descrito, inclusive os dados numéricos, tinha sido literalmente copiado”, diz Imbelloni, que denunciou o caso. Em 2010, ele e outros colegas publicaram um artigo em inglês na Revista Brasileira de anestesiologia, com acesso aberto na biblioteca SciELO, editada pela Sociedade

Brasileira de Anestesiologia, sobre a aplicação de raquianestesia (anestesia local) num procedimento cirúrgico que normalmente exige anestesia geral. No ano seguinte, um grupo de pesquisadores liderado por X. Liu, do Hospital de PLA, na China, publicou um artigo na revista alemã Der anaesthesist apresentando surpreendentemente os mesmos resultados, dados e conclusões obtidos pelos brasileiros. “Eles não se esforçaram nem em mudar o número de pacientes que analisamos, 68”, conta Imbelloni. No final do ano passado, a Der anaesthesist desqualificou oficialmente o artigo assinado pelos chineses.

utilização de softwares em artigos disponíveis publicamente. Em geral apontam falhas em registros. Preferimos gastar nosso tempo com as pessoas que nos dizem coisas sobre registros científicos que não conseguiríamos saber de outra forma”, divulgou Reller no site da Elsevier, em dezembro.

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10 | fevereiro De 2014

estrAtégiAs

O Conselho técnico- -administrativo da fapesp aprovou, numa reunião realizada no dia 17 de dezembro último, a concessão de licença-maternidade de quatro meses para pesquisadoras com bolsas de dedicação integral concedidas pela fundação, nas modalidades mestrado, doutorado, pós-doutorado, jovem pesquisador, jornalismo científico e treinamento técnico (com dedicação integral). a medida já está em vigor e as bolsistas interessadas podem solicitar o benefício para a gerência de apoio, informação e Comunicação (gaic) da

Licença-maternidade para bolsistas

fapesp. a solicitação deverá ser acompanhada por um comprovante médico. Durante o período de afastamento não haverá interrupção do pagamento e, quando a vigência prevista da bolsa terminar, serão acrescidos mais quatro meses. “a fapesp já vinha estudando o assunto há algum tempo, pois havíamos recebido algumas solicitações”, disse Joaquim José de Camargo engler, diretor administrativo da fundação. “a Diretoria Científica analisou o assunto e o Conselho técnico-administrativo aprovou a proposta de criação da licença”, afirmou engler.

Marco antonio zago e vahan

agopyan: reitor e vice

escolhidos pelo governador

zago é o reitor da usp

O governador geraldo alckmin nomeou os professores Marco antonio zago como novo reitor da universidade de são paulo (usp) e vahan agopyan como vice-reitor. O mandato é de quatro anos. a chapa formada por zago e agopyan foi a mais votada no colégio eleitoral, composto por integrantes do conselho universitário, dos conselhos centrais e das congregações das unidades e dos conselhos deliberativos de museus e institutos especializados, realizado no dia 19 de dezembro. recebeu 1.206 votos e encabeçava a lista tríplice encaminhada ao governador, que tem a prerrogativa da escolha. pró-reitor de pesquisa na gestão do reitor João grandino rodas, professor titular da faculdade de Medicina de ribeirão preto, zago, de 66 anos, formou-se na faculdade de Medicina da usp de ribeirão preto e foi diretor clínico do

hospital das Clínicas e diretor científico do hemocentro, ambos de ribeirão preto. Doutorou-se pela usp e fez o pós-doutorado na universidade de Oxford. Como pesquisador, contribuiu para o estudo da anemia falciforme e da talassemia. Desde 2000 coordena o Centro de terapia Celular, um dos Centros de pesquisa, inovação e Difusão (Cepid) financiados pela fapesp. entre 2007 e 2010 presidiu o Conselho de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNpq) e criou os institutos Nacionais de Ciência e tecnologia (iNCts). também foi um dos coordenadores de área da Diretoria Científica da fapesp, uma comissão de reconhecidos especialistas com a responsabilidade de coordenar o processo de análise de mérito das solicitações submetidas à fundação. O novo vice-reitor, vahan agopyan, é engenheiro e professor titular da escola politécnica da usp (poli) com doutorado pela university of London King’s College, no reino unido. Dirigiu a poli e o instituto de pesquisas tecnológicas (ipt). foi presidente do Conselho superior do instituto de pesquisas energéticas e Nucleares (ipen) e membro do Conselho superior da fapesp. 1

1

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PesQuisa faPesP 216 | 11

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Diretores reconduzidos

Carlos henrique de brito Cruz e Joaquim José de Camargo engler foram reconduzidos para exercer as funções de, respectivamente, diretor científico e diretor administrativo no Conselho técnico- -administrativo da fapesp, por um novo período de três anos. a nomeação foi feita pelo governador geraldo alckmin. brito Cruz é diretor científico da fapesp desde 2005. professor no instituto de física gleb wataghin da universidade estadual de Campinas (unicamp), graduou-se em engenharia eletrônica pelo instituto tecnológico

da aeronáutica e obteve os títulos de mestre em ciências (1980) e doutor em ciências (1983) na unicamp. foi diretor do instituto de física gleb wataghin e pró-reitor de pesquisa da unicamp. entre 2002 e 2005 foi reitor da unicamp e, entre 1996 e 2002, presidente da fapesp. engler é diretor administrativo da fapesp desde 1993. engenheiro agrônomo formado pela escola superior de agricultura Luiz de queiroz (esalq) da universidade de são paulo (usp), é professor titular do Departamento de economia, administração e sociologia da esalq,

sistemas complexos nas engenharias

A escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) começará a ofere-cer a alunos de graduação ingressos em 2014 um conjunto de disciplinas optati-vas em engenharia de sistemas comple-xos. o tema ainda está restrito ao âmbi-to da pesquisa básica no Brasil, embora na última década tenha ganhado rele-vância global com aplicação em áreas como saúde e economia. “Caso não seja fomentada uma cultura voltada para o desenvolvimento tecnológico na área, o país correrá o risco de ficar atrás de paí-

engler e brito Cruz: reconduzidos por um novo período de três anos

Colaboração premiada

José arana varela, diretor-presidente do Conselho técnico- -administrativo da fapesp, é o primeiro pesquisador brasileiro contemplado com o bridge building award, conferido pela american Ceramic society. O prêmio lhe foi entregue durante a 38ª edição da international Conference and exposition on advanced Ceramics and Composites, na flórida, estados unidos. O bridge building award destaca cientistas com intensa atividade de pesquisa em associação com pesquisadores de outros países. varela é pesquisador do Centro de Desenvolvimento de Materiais funcionais, um Centro de pesquisa, inovação e Difusão (Cepid) da fapesp, no qual lidera a equipe de pesquisa do instituto de química da unesp. em parceria com pesquisadores do Massachusetts institute of technology (Mit), o grupo desenvolveu um material à base de óxido de estanho (snO) com capacidade de detectar dióxido de nitrogênio (NO2), um gás altamente tóxico.

imagens de tomografia cerebral mais precisas: exemplo de aplicação dos conhecimentos em sistemas complexos

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da qual já foi diretor. Doutor em agronomia pela esalq, Master of science (Ms) e Doctor of philosophy (ph.D.) em economia agrícola pela the Ohio state university, foi coordenador de administração geral da usp, coordenador e prefeito do campus da usp em piracicaba, diretor do Centro de energia Nuclear na agricultura e chefe de gabinete do reitor da usp.

varela: reconhecimento

pela contribuição à pesquisa

colaborativa

ses como China e estados Unidos, que têm investido na engenharia de sistemas complexos”, avalia o físico Constantino Tsallis, coordenador do instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Complexos, sediado no rio. Há alguns anos, o físico Sérgio Mascarenhas, do instituto de estudos Avançados da USP em São Carlos, vem alertando sobre essa questão. “o país deve investir o quanto antes na criação de cursos de graduação e pós-graduação em engenharia de sis-temas complexos”, diz ele.

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além de produzirem mudas da planta, os pesquisadores do Masdar relataram em artigo na revista Bioresource Technology (fevereiro de 2014) que a salicornia seca tem bom potencial para produção de etanol de segunda geração por meio de hidrólise enzimática, processo que extrai os açúcares da planta. ela apresentou características semelhantes a outras culturas utilizadas na área de biocombustível, como palha de milho, trigo, cana e demais gramíneas. O único problema é a necessidade do uso de água doce para a retirada do sal acumulado antes do processamento dos biocombustíveis. em 2015, os pesquisadores vão construir um ecossistema no solo arenoso dos emirados. a água do mar usada na criação de peixes e camarões vai nutrir uma plantação de salicornia.

Já se tinha visto que a pressão sanguínea pode variar ao longo do ano – tende a ser mais alta durante o inverno e mais baixa no verão. atribuía-se esse efeito à temperatura, mas agora emergiu outra hipótese: tomar sol pode ajudar a reduzir a pressão sanguínea. Metabólitos do óxido nítrico parecem ser capazes de modular a pressão depois da exposição à radiação ultravioleta (Journal of Investigative Dermatology, janeiro). Martin feelish e sua equipe da universidade de southampton, inglaterra, suspeitaram por 20 anos dessa possível ação da luz solar. agora verificaram uma redução nos níveis de nitrato e um aumento nos de nitrito, ambos metabólitos do óxido nítrico, e a redução da pressão sanguínea,

tomar sol reduz a pressão

em 24 voluntários saudáveis submetidos a 30 minutos de sol ao meio-dia em um dia claro no sul da europa. em 2009, um grupo de edimburgo já havia mostrado que o óxido nítrico da pele humana, encontrado em concentração maior que no sangue, poderia interagir com a radiação ultravioleta. ainda não se sabe exatamente como os metabólitos de óxido nítrico poderiam agir para gerar esse efeito. Os autores do estudo mais recente alertam que as conclusões têm importância para a saúde pública e sugerem uma reavaliação da recomendação para as pessoas tomarem menos sol, uma medida que pode evitar o câncer de pele, mas, como agora se supõe, poderia agravar as doenças cardiovasculares.

Salicornia bigelovii: planta sem folhas tem sementes para produção de biodiesel

tecnociênciACombustível com água do mar

uma planta que tolera altos índices de sal no solo, podendo inclusive ser irrigada com água do mar, está no centro das pesquisas para produção de biocombustível para aviação em um projeto entre a fabricante norte-americana de aviões boeing e instituições dos emirados árabes unidos. a ideia é produzir, em solos áridos desse país árabe, bioquerosene de aviação com as sementes e etanol com os açúcares da biomassa da Salicornia bigelovii, uma planta sem folhas originária dos estados unidos e do Caribe. O projeto é realizado pelo Consórcio para a pesquisa sustentável da bioenergia (sbrC, na sigla em inglês), que reúne tanto a boeing como a empresa aérea etihad airways, o instituto de Ciência e tecnologia Masdar, dos emirados e a empresa de tecnologia norte- -americana honeywell.

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a estrutura da miosina v, agora completa

depois de cinco anos de trabalho, uma equipe do Laboratório Nacional de Bio-ciências (LNBio), de Campinas, definiu a estrutura tridimensional da chamada re-gião funcional – ou ativa – de três miosinas encontradas em vertebrados, descobertas há 20 anos. de modo geral, miosinas são proteínas responsáveis pela contração muscular. As três variações de miosinas da classe v, estudadas pela equipe do LNBio, diferem das miosinas responsáveis pela contração muscular principalmente

por causa da região funcional, que se liga com os alvos – proteínas, vesículas e or-ganelas – a serem transportados no inte-rior das células. “entender como essas proteínas interagem com outras macro-moléculas é importante para a compreen-são dos mecanismos moleculares envol-vidos em doenças como o albinismo e os distúrbios neurológicos associados a mutações nos genes de miosinas de clas-se v”, comentou Mário Murakami, coor-denador da equipe do LNBio responsável

agrupamento de miosinas, em forma de e (em branco) e suas regiões ativas (em verde e laranja)

LeD ilumina muda de cana

um problema encontrado na produção de mudas de cana-de-açúcar in vitro é a competição por luz. O método convencional, adotado nas biofábricas, utiliza lâmpadas fluorescentes que fazem algumas mudas crescerem mais do que outras e as menores acabam morrendo. para resolver esse entrave, pesquisadores da escola superior de agricultura Luiz de queiroz (esalq) da universidade de são paulo (usp), em piracicaba, desenvolveram uma técnica capaz de aumentar a produtividade dessas mudas utilizando luzes de LeD. uma combinação de luzes azul e vermelha resultou no crescimento uniforme, mantendo um tamanho reduzido das mudas. “sob a luz vermelha, os cloroplastos, região responsável pela fotossíntese, ficam ‘estressados’, fazendo a planta reduzir seu tamanho. a azul serve para equilibrar esse processo”, explica paulo

hercílio viegas rodrigues, coordenador do estudo. a pesquisa começou por um projeto de iniciação científica de felipe Maluta, aluno de engenharia agronômica. “a técnica já é utilizada com banana e morango. O que fizemos foi aplicar esse método pela primeira vez na cana”, diz Maluta. Os resultados foram apresentados em janeiro na revista Pesquisa Agropecuária Brasileira.

Ocupação antiga na amazônia

uma área de 154 mil quilômetros quadrados na amazônia, equivalente a 3,2% da floresta e ao dobro do território de portugal, pode ter sido ocupada por grupos indígenas com centenas a milhares de pessoas durante períodos relativamente longos antes da chegada dos colonizadores europeus (Proceedings of the Royal Society B, janeiro 2014). essa é a área em que um grupo internacional de pesquisadores, do qual participa o arqueólogo eduardo góes Neves, da universidade de são paulo (usp), estima existir um tipo de solo bastante fértil, a terra preta, que pode guardar vestígios de ocupação

humana antiga. Os pesquisadores chegaram a essa estimativa ao confrontar informações de quase mil áreas já mapeadas de terra preta com estudos que não registraram esse tipo de solo. ao cruzar as informações, eles detectaram padrões de distribuição de terra preta e concluíram que a probabilidade de encontrá-la em áreas próximas a rios nas regiões leste e central da amazônia é maior do que na amazônia ocidental ou em áreas próximas aos andes. esses resultados podem orientar a investigação de áreas ocupadas por populações pré-colombianas, difíceis de identificar sob as árvores da floresta.

por esse trabalho (Journal of Biological Chemistry, novembro de 2013). os estudos sobre as funções e a regulação dessas proteínas avançavam lentamente porque faltava o conhecimento sobre a estrutura das regiões funcionais.

Luzes vermelha e azul sobre mudas de cana garantem produção sem perdasfo

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uma régua para o universo

astrônomos determinaram distâncias entre aglomerados de galáxias com uma precisão recorde, que estabelece um pouco melhor as propriedades da energia escura, uma forma de energia ainda pouco entendida, presente no espaço vazio e que vem acelerando a expansão do universo desde o seu nascimento, no big bang. Nos seus primeiros 300 mil anos, o universo era preenchido por um gás quente e denso, feito de núcleos atômicos, elétrons livres e radiação. a expansão do universo fez esse gás esfriar e se tornar rarefeito, formando estrelas e galáxias. Mas as ondas que se propagavam no gás primordial deixaram vestígios na distribuição das galáxias no Cosmo. as galáxias tendem a se acumular mais em regiões que um dia foram as cristas dessas ondas, chamadas de oscilações acústicas bariônicas. O espaçamento regular

entre essas cristas cria uma régua cósmica natural, cuja expansão pode ser usada para detectar a influência da energia escura. No universo atual, esse espaçamento é de cerca de 500 milhões de anos-luz. Durante um encontro da associação astronômica americana, no dia 8 de janeiro, pesquisadores do boss (Levantamento espectroscópico de Oscilações bariônicas) divulgaram medidas das oscilações acústicas bariônicas com 1% de precisão. O estudo analisou mais de 1 milhão de galáxias, distribuídas por uma região de 6 bilhões de anos-luz de extensão. O boss é um dos quatro levantamentos astronômicos do projeto sloan Digital sky survey 3 (sDss-iii), do qual participam grupos brasileiros. O projeto usa um telescópio exclusivo, instalado no Novo México, estados unidos, que analisa a luz de milhares de galáxias simultaneamente.

grandes e eficientes

Mesmo com décadas ou até mais de um século de vida, as árvores muito grandes continuam a crescer e a absorver carbono da atmosfera. é diferente do que se espera quando se pensa em pessoas e animais, que crescem muito na infância e depois, mesmo que engordem, em geral têm um aumento limitado de massa. Já uma árvore cujo tronco tenha 1 metro de diâmetro continua a produzir de 10 a 200 quilogramas de matéria orgânica por ano (valores medidos após a secagem). essa massa é quase o triplo do crescimento de um exemplar da mesma espécie que tenha a metade do diâmetro no tronco. isso acontece porque, quanto maior a planta, mais folhas

ela tem. Mesmo que a produtividade de cada folha diminua com a idade, a capacidade total de a árvore processar e estocar o carbono aumenta. em casos mais extremos, uma única árvore grande pode incorporar a mesma quantidade de carbono ao longo de um ano do que a existente em uma árvore média inteira. esses resultados, obtidos por um grupo internacional de pesquisadores, conferem importância às florestas já estabelecidas – sejam elas em zonas tropicais, subtropicais ou temperadas – quanto à capacidade de contribuir para o combate às mudanças climáticas. O estudo incluiu 403 espécies de todos os continentes com florestas (Nature, 15 de janeiro).

Nessa concepção artística, cada círculo, com raio de 500 milhões de anos-luz, representa as regiões com maior concentração de galáxias

O pinheiro Pinus monticola: uma das árvores mais altas e de mais rápido crescimento no mundo

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PesQuisa faPesP 216 | 15

por que os supervulcões entram em erupção

em um laboratório em grenoble, na frança, pesquisadores reproduziram as condições de pressão e temperatura das câmaras de magmas dos supervulcões e conseguiram identificar o que dispara as erupções colossais, capazes de alterar o clima, como a do monte pinatubo, em 1991, que reduziu a temperatura do planeta em 0,4 grau Celsius (ºC) durante alguns meses. há 60 mil anos a erupção de um supervulcão liberou mais de mil quilômetros cúbicos de cinza, gases e lava para a atmosfera e criou

a imensa cratera cujo centro hoje é ocupado pelo parque yellowstone, nos estados unidos. Os pesquisadores colocaram minúsculas amostras de rochas entre duas pontas de tungstênio, submetidas a temperaturas de 1.700ºC e pressões de 36 mil atmosferas, para simular as câmaras de magma dos supervulcões. as medições, feitas por meio da luz síncrotron, indicaram que as erupções podem ocorrer espontaneamente, ativadas somente pela pressão do magma, sem a necessidade de uma ação ou pressão externa

armadilha antiviral em gravidade zero

Uma plataforma antiviral criada por cien-tistas israelenses, e que leva os vírus a cometer “suicídio”, será testada na pró-xima missão espacial da Nasa. A inovação desenvolvida pela empresa vecoy Na-nomedicine foi uma das oito selecionadas, entre 1.200 candidatos de todo o mundo, para ser levada ao espaço em um con-curso organizado pelo Center for the Advancement of Science in Space (Casis), braço de pesquisa da estação espacial internacional (iSS, na sigla em inglês). A diferença entre a “armadilha” antiviral da vecoy e as vacinas tradicionais é que ela levaria o vírus a se autodestruir antes de atingir as células saudáveis. os pes-quisadores israelenses acreditam que a plataforma poderá ser usada no futuro para combater ameaças de epidemia como ebola, hepatite e até Hiv. As ex-periências em ambiente de gravidade zero ajudarão os cientistas israelenses a aperfeiçoar o design da plataforma em escala nanométrica. No momento, a ve-coy testa a tecnologia no combate a

infecções virais em camarões e caran-guejos. outra tecnologia selecionada é um dispositivo de ultrassom portátil que mede a pressão intracraniana em pacien-tes com traumatismos cranioencefálicos, desenvolvido pela Neural Analytics, dos estados Unidos. o experimento vai com-parar medições feitas em cérebros de astronautas com dados de pacientes com traumatismos. A norte-americana Quad quer usar o teste de microgravidade para melhorar a tecnologia de isolamento de tipos específicos de células no sangue relacionadas às células cancerosas.

genoma ameríndiopesquisadores brasileiros e portugueses sequenciaram, pela primeira vez, o genoma de um habitante nativo da américa do sul: um ameríndio. O material genético foi obtido de um homem de uma tribo amazônica. seus genes guardam semelhanças com os de populações do leste da ásia e de aborígines australianos (PLoS One, dezembro 2013). esses resultados corroboram as hipóteses mais aceitas de ocupação das américas, segundo as quais populações da ásia teriam chegando à américa pelo estreito de behring e depois se espalhado. segundo sidney dos santos, da universidade federal do pará, um dos autores do trabalho, as populações indígenas da amazônia ficaram isoladas por muito tempo, “acumulando mutações próprias que devem ser investigadas”. Os resultados poderão ajudar a entender a origem de doenças frequentes em indígenas sul-americanos.

(Nature Geoscience, janeiro). a pressão resultante da diferença de densidade entre o magma líquido e o sólido, já cristalizado em rochas, foi suficiente para romper quilômetros de crosta acima das câmaras de magma e iniciar uma violenta erupção. wim Malfait, da escola politécnica de zurique, que integrou a equipe, comparou: a subida do magma em consequência da diferença de densidade é como uma bola de futebol cheia de ar debaixo d’água, que é forçada para cima pela água mais densa que a envolve.fo

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Nesse aparelho, amostras de magma foram comprimidas e aquecidas a 1.700ºC e examinadas por raios X

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16 z fevereiro De 2014

estimulação com corrente elétrica de baixa

intensidade amadurece como técnica

promissora no tratamento contra depressão

energia para os neurônios

por meio de uma bandana. Os eletrodos geram uma corrente elétrica de baixa intensidade que atravessa o córtex, a região mais superficial do cérebro, durante 20 a 30 minutos seguidos, e des-se modo ajuda a restabelecer o funcionamento normal dos neurônios.

Por meio de estudos realizados em vários paí-ses, milhares de pessoas – cerca de 250 delas no Brasil – já foram tratadas por meio da ETCC, uma técnica experimental que amadurece a pas-sos firmes, aparentemente com efeitos colaterais mínimos, e ganha consistência como alternativa ou complementação ao uso de medicamentos, principalmente contra depressão, o mais dissemi-nado dos distúrbios psíquicos. Um levantamento coordenado por pesquisadores da Universida-de Federal de São Paulo (Unifesp) detectou os sintomas da depressão em quase um terço da população brasileira (ver quadro na página 18). Novas técnicas de tratamento são a princípio

carlos fioravanti

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representação artística dos

efeitos da estimulação

elétrica

m um final de tarde de janeiro, o psiquiatra Leandro Valien-go abriu um dos armários do já quase deserto quarto andar do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP), retirou uma mala preta,

colocou-a sobre o colchonete azul de uma maca e apresentou o equipamento que está sendo visto como uma nova forma de tratamento contra de-pressão e outros distúrbios neuropsiquiátricos: é um aparelho de estimulação transcraniana de corrente contínua (ETCC). “É muito simples”, ele diz. O aparelho é uma caixa de tamanho aproxi-mado ao de um laptop, com um teclado para se registrar o código de cada paciente em tratamen-to e alguns botões para regular o fornecimento de energia. De uma das laterais saem dois fios em cujas pontas há dois eletrodos – um positivo e um negativo – que são fixados nas têmporas

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fonte COeLhO ET AL., 2013

depressão no brasila frequência de sintomas é maior em mulheres, mais velhos, mais pobres e moradores da região Norte

porcentagem (%) da amostra entrevistada com sintomas de depressão

idade

14-15 anos

16-17 anos

18-24 anos

25-34 anos

35-44 anos

45-59 anos

60 anos ou mais

28,9

30,6

28,2

26,6

21,9

34,9

educação

analfabeto / ensino básico

ensino básico completo ou incompleto

ensino médio completo ou incompleto

ensino superior completo ou incompleto

34,3

29,1

24,5

15,0

sul

Norte

Centro-Oeste

Nordeste

sudeste

reGião do País

26,2

41,0

32,4

27,0

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classe social

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C

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28,8

17,8

11,1

19,5

24,5

37,5

estado civil

Casado

solteiro

Divorciado/ separado/ viúvo 41,5

28,7

26,8

GÊnero

Mulher

homem

38,1

19,4

quase um terço da população brasileira apresenta sintomas de depressão, de acordo com um levantamento nacional coordenado por uma equipe da universidade federal de são paulo (unifesp). Nesse estudo, parte do i Levantamento Nacional sobre os padrões de Consumo de álcool na população brasileira, foram entrevistadas 3.007 pessoas com idade mínima de 14 anos, representando o perfil demográfico da população, em 143 cidades do país, de novembro de 2005 a abril de 2006.

Nesse trabalho, o primeiro de alcance nacional, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2013, a frequência de pessoas com sintomas de depressão na população amostrada foi de 28,27%, a maioria delas (15%) com sinais de depressão severa. é uma média bem mais alta que a de levantamentos anteriores, feitos separadamente em são paulo, brasília e porto alegre, que indicaram uma taxa de sintomas de depressão de no máximo 10% da população amostrada. Mesmo considerando a possibilidade de que o rastreamento de possíveis casos de depressão possa levar a falsos positivos, embora seja uma metodologia aprovada internacionalmente. “a depressão no brasil provavelmente é alta mesmo”, diz o psiquiatra Cassiano Coelho, da unifesp.

Como em outros estudos, as mulheres apresentaram uma taxa de sintomas de depressão de duas a três vezes maior que a dos homens, e as pessoas com mais de 60 anos apresentaram uma propensão à depressão maior que os mais jovens. Diferentemente de outros estudos, os adolescentes com idade entre 14 e 17 anos apresentaram uma alta frequência de sintomas de depressão, maior que a verificada entre pessoas com 18 a 44 anos, o que os autores do levantamento consideram uma razão para preocupação e para análises mais aprofundadas. Os moradores da região Norte do brasil, amostrados provavelmente pela primeira vez, foram os que apresentaram as taxas mais elevadas, em comparação com os de outras regiões.

a hipótese dos pesquisadores é que a depressão poderia ser um fenômeno associado ao isolamento social e à soma de posições sociais e econômicas desfavoráveis, ao acometer com frequência maior “pessoas com menor escolaridade e renda mais baixa”, diz Coelho. em uma situação extrema, uma mulher viúva, sem filhos, amigos ou vizinhos, de pouco estudo e baixa renda, vivendo isolada em uma área pobre da região Norte, teria uma propensão maior à depressão que uma mulher com círculo social mais amplo, mais estudo e mais expectativa de melhoria de vida.

31,3

34,5

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bem-vindas porque 30% das pessoas com depres-são não respondem aos medicamentos atuais, que, quando aceitos, podem causar efeitos colaterais indesejados, como ganho de peso, perda de libido ou insônia, que limitam a adesão ao tratamento.

Em outubro de 2013, o psiquiatra André Bru-noni e sua equipe do Hospital Universitário da USP iniciaram um teste amplo em que 240 parti-cipantes com depressão grave, divididos em três grupos, deviam receber diariamente, durante 10 semanas, estimulação elétrica real ou simulada, um antidepressivo conhecido como escitalopram (Lexapro) ou placebo. Realizado no Centro de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas do HU-USP em colaboração com o Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, esse estudo é chamado de duplo-cego porque os participantes e os pesquisadores só sabem no final se o que foi aplicado era um tratamento efetivo ou simulado (a enfermeira coloca os eletrodos na têmpora dos participantes, mas não sabe se de fato se formou uma corrente elétrica entre os eletrodos). Se tu-

do correr bem, esse teste deve indicar se o efeito da estimulação elétrica poderia ser equivalente ou superior ao do medi-camento e, além disso, qual o perfil das pessoas com depressão que poderiam responder melhor a um tipo ou outro de tratamento, de acordo com seu perfil genético e comportamental, que serão avaliados por meio de exames de san-gue, tomografias e entrevistas ao longo de quatro anos.

Em um estudo anterior, com 103 par-ticipantes com depressão grave acompa-nhados durante seis semanas, Brunoni e sua equipe verificaram que a estimula-ção elétrica poderia ampliar o efeito de um antidepressivo de uso amplo, a ser-tralina (nome comercial, Zoloft), que, assim como o escitalopram, apresenta o mesmo mecanismo de ação da fluoxe-tina (Prozac) – todos prolongam a ação de neurotransmissores como a seroto-nina, essenciais para o funcionamento dos neurônios.

De acordo com o artigo que detalha os resultados, publicado em 2013 no JaMa Psyquiatry, o efeito do tratamento com-

binado – estimulação elétrica e sertralina – foi não só mais intenso, mas também mais rápido, já que os participantes desse grupo relataram remissão dos sintomas a partir da segunda sema-na de tratamento, enquanto os de outros grupos, que haviam tomado apenas medicação, estimu-lação elétrica ou placebo, relataram melhoras no bem-estar seis semanas após o início da terapia. “Aparentemente os efeitos são complementares e atingem regiões diferentes, a sertralina com uma

ação mais subcortical e a estimulação elétrica com uma ação mais intensa na região cortical”, diz Brunoni. Talvez por causa desse efeito am-pliado é que no grupo de tratamento combinado de ETCC e sertralina houve um número maior de pessoas (5, ante apenas 1 em cada um dos ou-tros grupos) que apresentaram euforia, o efeito oposto ao da depressão, com duração máxima de duas semanas.

n a etapa seguinte, 42 participantes do estudo que haviam tomado pla-cebo foram convidados a receber

antidepressivo e estimulação elétrica efetivos. Desta vez, os participantes do estudo foram tra-tados por seis semanas e acompanhados por seis meses, e o que se viu foi que, após interromper as aplicações, os sintomas de depressão retornaram em 25% dos pacientes com quadros clínicos me-nos graves e em 70% dos que eram resistentes a qualquer medicamento. Não há demérito nesse resultado, assegura Leandro Valiengo, da equipe de Brunoni, porque os benefícios dos medica-mentos antidepressivos também cessam quando as pessoas param de tomá-los.

“A duração do efeito da estimulação elétrica, de algumas semanas, é similar ao da eletroterapia convulsiva”, diz ele. Essa técnica, conhecida como ETC ou eletrochoque, consiste na aplicação de uma descarga elétrica única e elevada – de até 1 ampère – em pacientes que têm de ser anestesia-dos. Ainda é bastante usada, apesar dos efeitos colaterais, como a perda de memória, porque é o único método eficaz quando as pessoas com depressão grave não respondem a nenhum outro tratamento. Na ETCC, uma corrente contínua de 2 miliampères, 400 vezes menor, é aplicada durante 20 a 30 minutos em pessoas acordadas. “A estimulação elétrica é muito mais simples e segura que a eletroterapia convulsiva”, assegu-ra Brunoni, que em 2011 avaliou o uso da ETCC em 14 pessoas com transtorno bipolar, obtendo resultados que considerou animadores.

A estimulação elétrica é também mais sim-ples que a estimulação magnética por corrente contínua, em que uma bobina, quando ativada, forma um campo magnético, que por sua vez gera um campo elétrico de baixa intensidade no córtex. Aprovada em 2008 nos Estados Unidos e em 2009 no Brasil para tratamento contra de-pressão, a estimulação magnética é considerada um tratamento caro, exige acompanhamento médico, por causa do risco de convulsões, e só pode ser aplicada em centros médicos especia-lizados. Acredita-se que a estimulação elétrica poderia ter um uso mais amplo, porque o custo do aparelho é menor e, se aprovada pelos órgãos Lé

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a estimulação elétrica consiste de uma corrente contínua; o eletrochoque é uma descarga única com uma energia 400 vezes maior

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20 z fevereiro De 2014

mo alternativa para tratar depressão em pessoas que sofreram acidente vascular cerebral (AVC), para as quais os efeitos colaterais dos medica-mentos podem ser muito prejudiciais. Em um estudo duplo-cego do qual devem participar 48 pessoas, 33 já receberam tratamento simulado ou efetivo. No Instituto de Reabilitação Lucy Mon-toro, ligado à USP, o neurologista Marcel Simis emprega a estimulação elétrica, ainda experi-mentalmente, em estudos duplos-cegos como

técnica complementar na rea-bilitação de pessoas com AVC. Desse modo, ele acredita, tal-vez seja possível estimular a área lesada do cérebro e inibir a área preservada, evitando a sobrecarga de um dos he-misférios cerebrais – a lesão de um lado do cérebro faz o outro lado trabalhar mais in-tensamente. “A estimulação elétrica, em associação com outras técnicas, deve ampliar nosso conhecimento sobre os limites da plasticidade neuro-nal”, afirma Simis.

Por ser uma técnica ainda experimental, os participan-tes dos estudos têm de ir aos hospitais para receber as apli-cações de corrente elétrica. Aparelhos portáteis, porém, já estão em desenvolvimen-to e em avaliação. Se forem

reguladores, poderia ser adotada em centros de saúde e empregada tanto por médicos quanto por outros profissionais da saúde.

Há indicações de que poderia tanto estimular quanto inibir a atividade dos neurônios, depen-dendo da posição em que os eletrodos são colo-cados – a estimulação magnética e a eletrotera-pia convulsiva apenas estimulam os neurônios. Essa possibilidade poderia ampliar suas aplica-ções. Desde 2006, estudos duplos-cegos – inicial-mente com uma corrente elétri-ca elevada, de 500 miliampères – indicam que a ETCC, além de ser bem tolerada, poderia cau-sar uma redução dos sinais de várias doenças. O médico bra-sileiro Felipe Fregni está ava-liando a ação dessa técnica em pessoas com Parkinson atendi-das no hospital da Universidade Harvard, Estados Unidos, e, as-sociada com exercícios aeróbi-cos, em pessoas com fibromial-gia, uma síndrome caracterizada por dores musculares crônicas por todo o corpo, atendidas em hospitais de São Paulo.

Os efeitos colaterais da esti-mulação elétrica registrados até agora parecem mínimos, o que contribui bastante para que os testes de eficácia continuem. Até o momento, verificou-se que a passagem da corrente pelos ele-trodos colocados sobre o crânio causa apenas a sensação de formigamento duran-te alguns segundos e uma vermelhidão por cerca de 20 minutos na região sobre a qual é aplicado um bloco de esponja com os eletrodos positivo ou negativo. Segundo Valiengo, esses efeitos são bem mais amenos e passageiros que os de me-dicamentos antidepressivos, que podem causar taquicardia ou perda de interesse sexual.

incertezasAinda há ajustes a serem feitos. Estudos como os do Hospital Universitário da USP, registrando a volta dos sintomas da depressão após o tratamen-to, são importantes porque mostram os limites do efeito desejado e alertam para a necessidade de definição de detalhes clínicos, principalmente so-bre a dosagem e a periodicidade mais adequadas para cada aplicação, como se faz normalmente com novos tratamentos. “Uma sessão de esti-mulação elétrica a cada 15 dias não foi suficien-te e talvez seja melhor uma ou duas vezes por semana”, observa Brunoni. “Esse é um mundo novo, que precisamos conhecer melhor”, reitera Valiengo. Ele próprio está avaliando a ETCC co-

Por estimular a cautela, essa técnica poderia ser usada para ajudar a deter a compulsão para beber, fumar ou comer em excesso

Manequim com bandana e eletrodos do aparelho de estimulação elétrica, usado para esclarecer funções cognitivas (imagens ao fundo)

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aprovados e adotados por médicos e pacientes, talvez possam permitir a redução do custo do tra-tamento, evitando internações. Os especialistas também acreditam que a ETCC permitiria um controle do tratamento até maior do que o obtido com os medicamentos, que os pacientes podem tomar a menos ou a mais que o recomendado.

o s aparelhos de estimulação elétrica cerebral são simples e de baixo cus-to (cerca de R$ 6 mil) – essencial-

mente, um gerador de corrente contínua com um amperímetro e uma saída para eletrodos. Essas características podem facilitar seu manuseio, mas também aumentar o risco de acidentes e de mau uso. “Já houve quem tentou construir o aparelho, seguindo instruções encontradas na internet, e queimou a pele”, relatou Valiengo. Uma empresa dos Estados Unidos produz e vende pela internet aparelhos de estimulação cerebral para aumentar o desempenho de jogadores de videogames, ar-gumento que não precisa de registro nos órgãos de governo porque não se trata de um dispositivo médico. Como não há evidências nem dos bene-fícios reais nem dos riscos possíveis do uso, os especialistas estão preocupados. “A configuração dos eletrodos não faz sentido”, alerta Paulo Sergio Boggio, pesquisador da Universidade Presbite-riana Mackenzie e um dos pioneiros nessa área no Brasil, mostrando na tela de seu computador o aparelho da empresa norte-americana.

A possibilidade de acesso fácil ao aparelho de estimulação elétrica traz alguns dilemas éti-cos, que as equipes de Boggio e de Brunoni apre-

sentam em um artigo a ser publicado na revista Psychology & Neuroscience. Os médicos poderiam recomendar ou permitir que pessoas saudáveis usassem essa técnica para aumentar o desem-penho escolar, para se manterem mais ligadas e enfrentarem concursos com mais tranquilidade ou para reduzir a impulsividade ou a inquietação dos filhos? Há também o risco de uso forçado por pilotos de caça ou controladores de voo, e não se sabe ainda como resolver essas situações. “Sabe-mos que o uso da estimulação pode ser benéfico durante 30 minutos por dia”, observa Brunoni. “Mais do que esse limite, não sabemos.”

Além de participar de estudos clínicos com outros grupos de pesquisadores, Boggio usa a estimulação elétrica como uma abordagem com-plementar de pesquisa de funções cognitivas. Por permitir a estimulação ou inibição de regiões es-pecíficas do córtex, de acordo com a posição dos eletrodos, essa técnica indicou que poderia haver uma relação causal entre a ativação do córtex pré-frontal direito e o comportamento de risco, para a qual outra técnica, a ressonância magné-tica, havia indicado apenas uma associação. Em seu laboratório, Boggio verificou também que essa técnica, por estimular regiões do córtex as-sociadas à tomada de decisões, poderia ajudar as pessoas a deter seus impulsos para beber, fumar ou comer em excesso, o que abre perspectiva de aplicações para controle de compulsões para o uso de drogas ou para o jogo patológico. “A esti-mulação anódica no córtex pré-frontal acentuou a cautela e favoreceu a tomada de decisões, o que poderia beneficiar as pessoas não só no mundo dos negócios, mas em qualquer comportamento”, diz. Em outro teste, feito em colaboração com Dora Fix Ventura e Thiago Costa, ambos do Ins-tituto de Psicologia da USP, Boggio verificou um ganho na percepção de cores. “Se a estimulação elétrica interfere positivamente nos processos de percepção visual”, ele imagina, “não poderia ser usado para ajudar pessoas com danos no sis-tema visual?” n

versões portáteis dos aparelhos de estimulação elétrica, que, se aprovados, poderiam facilitar o tratamento contra depressão

projetoescitalopram e estimulação transcraniana por corrente contínua no transtorno depressivo maior: um ensaio clínico randomizado, duplo--cego, placebo-controlado de não inferioridade (nº 12/20911-5); Modalidade programa Jovens pesquisadores; Pesquisador respon-sável andre russowsky brunoni – usp; investimento r$ 453.591,70.

artigos científicosbruNONi, a.r. et al. the sertraline vs. electrical current therapy for treating depression clinical study: results from a factorial, randomized, controlled trial. Jama Psychiatry. v. 70, n. 4, p. 383-91. 2013.COeLhO, C.L.s. et al. higher prevalence of major depressive symptoms in brazilians aged 14 and older. revista brasileira de Psiquiatria. v. 35, n. 2, p. 142-43. abr.-jun. 2013.KrishNaDas r, CavaNagh J. Depression: an inflammatory illness? Journal of neurology, neurosurgery & Psychiatryvol. v. 84, n. 5, p. 495-502. 2012.

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Nos bastidores da oncologia

ENtrEvIStA

Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin

Prestes a completar 90 anos em março, o médico que ajudou a criar as bases ins-titucionais e conceituais da oncologia no Brasil trabalha todos os dias com

entusiasmo no segundo subsolo do Hospital A.C. Camargo – rebatizado de A.C. Camargo Cancer Center em 2013 –, um dos principais centros de pesquisa e atendimento especia-lizado nessa área no país. Como se estivesse peneirando ouro, Humberto Torloni revê os li-vrões de registros de casos de pessoas tratadas desde quando o hospital começou a funcionar, em 1953, e, com sua equipe, detecta a mudança do perfil epidemiológico do câncer no país. À medida que as informações são analisadas, novas diretrizes de tratamento emergem do provavelmente maior banco brasileiro de da-dos e de amostras de tumores. “Quem semeia colhe”, ele diz.

Humberto Torloni ainda era estudante de medicina quando ajudou a levantar dinheiro para a criação do Hospital do Câncer, concebi-do e dirigido pelo cirurgião Antonio Prudente. O jovem médico especializou-se em patologia, dirigiu a equipe de patologistas do hospital – “comecei lavando defunto” –, criou técnicas e aparelhos de trabalho e ajudou a formar jovens pesquisadores, hoje em posições de liderança nas faculdades de medicina e centros de pes-quisa de São Paulo e de outros estados. Em 1962 mudou-se para Genebra com a família e, na Organização Mundial da Saúde (OMS), coordenou uma equipe de patologistas de vá-rios países que estabeleceram os critérios pa-

Humberto Torloni

IdAdE 89 anos

ESPECIAlIdAdE anatomia patológica

ForMAção Escola Paulista de medicina, atual Universidade Federal de são Paulo (graduação), 1948

INStItUIção a.C. Camargo Cancer Center (são Paulo)organização mundial da saúde (Genebra, suíça)organização Pan- -americana da saúde, opas (Washington)ministério da saúde (Brasília)Instituto ludwig de Pesquisas sobre o Câncer (são Paulo)

ProdUção CIENtíFICA 52 artigos publicados em revistas indexadas (Pubmed)

ra até então caótica terminologia de tumores, fundamental para a definição de tratamentos e comparação de casos. Trabalhou depois na Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) em Washington e no Ministério da Saúde bra-sileiro, onde conheceu o milionário norte-ame-ricano Daniel Ludwig, que queria patrocinar um centro de pesquisa sobre câncer no Brasil. Torloni ajudou Ludwig a selecionar o hospital que poderia sediar o centro de pesquisas e o diretor, Ricardo Brentani, que muitos anos depois foi presidente da FAPESP. A convite de Brentani, em 1984 Torloni voltou ao hospital, como coordenador de programas do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer.

Fumante de cachimbo algumas vezes por dia, bem-humorado e provocador, Torloni não liga para titulação acadêmica nem tem currí-culo Lattes, embora a base PubMed registre 52 artigos científicos em que ele é autor ou coautor. Chama a si mesmo de “cozinheiro do Grande Hotel”, por ter sempre trabalhado nos bastidores e coxias de instituições importantes de saúde. Médicos e pesquisadores em dúvi-da ou em apuros o procuram com frequência. Humanista nato, em uma das palestras, em novembro do ano passado, ele lembrou que a relação de confiança entre o médico e o pa-ciente deve estar acima da tecnologia. Suas ideias sobre como exercer a medicina criaram raízes na própria família: um filho e uma fi-lha são médicos e outro é administrador; um neto também é médico e outro é administra-dor e advogado. É uma família de longevos.

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O pai de Torloni, Matheus Torloni, nome de um viaduto no bairro do Jabaquara, viveu até os 102 anos. Ele é tio da atriz Cristiane Torloni.

O que o senhor faz no hospital, aos 89 anos?Resgato a memória para escrever a his-tória. Aquele mapa que a moça [aponta para a colega Hirde Contesini, na mesa em frente] está escrevendo é igual a este que está na minha mesa. O dela é de 1958 e este é de 1959. Nestes mapas estão re-gistrados todos os dados transcritos dos prontuários dos pacientes. Queremos fazer um banco de dados com todos os casos atendidos no hospital desde 1953, quando foi fundado, até 2000. De 2000 para cá já está tudo digitalizado. O que fazemos é baseado nos códigos de clas-sificação de tumores, que constam nos livros de referência da OMS, o CID-10 e o CID-O. Há cerca de 800 tipos de tu-mor, com vários subtipos. A ficha com uma síntese de cada caso atendido é di-gitada e serve para tentarmos errar me-nos, para o médico desenvolver o melhor tratamento com base nas características morfológicas, celulares e moleculares de cada tumor. Temos de correr contra o tempo, porque a cor da tinta muda e dois ou três mapas foram molhados por acidente e estão manchados. Os dados

serão recuperados através da leitura dos microfilmes. Todos os casos identificados que podem interessar ao corpo clínico serão revistos por meio dos blocos de parafina com amostras de tumores reti-rados dos pacientes, que serão reanali-sados por meio da imuno-histoquímica e outras técnicas moleculares que não tínhamos na época do diagnóstico inicial.

E o que o senhor está encontrando?Vejo muito erro de diagnóstico, antes muito comum por falta de experiência. Em um caso de abscesso de mama, tipo tuberculose, tiraram a mama achando que era câncer. Não precisava. Aprende-mos com o erro. Quando vejo um caso assim, aviso que é pedagógico, porque hoje não ocorre mais. Tem muitas infor-mações sobre não câncer no meio de tu-do isso. Os pacientes entravam aqui com medo de câncer, mas tinham blastomi-cose [infecção por fungo], esquistosso-mose do reto, tuberculose, leishmanio-se, hanseníase, sífilis congênita, todos achando que tinham câncer. Também encontramos casos de câncer de pele e hanseníase, por exemplo. Hoje as doen-ças infecciosas estão controladas, mas sobram as crônicas. Em 2007, quando saí do Instituto Ludwig porque o Ricardo Brentani deixou a direção, eu disse que queria trabalhar no hospital e resgatar

o que tem aqui. Na primeira análise que fiz, com poucos dados, revimos 225 mil prontuários, dos quais 49% eram cân-cer; 50 mil eram homens e 61 mil eram mulheres. Fizemos um balanço simples. Por exemplo: 16 mil casos de câncer de mama, a imensa maioria em mulheres e apenas 11 em homens. Para escrever a história de qualquer câncer é preciso resgatar estas informações. Em 50 anos tivemos 1.051 casos de câncer de pênis, que chegavam em estágio avançado e o índice de mortalidade era enorme. Fi-camos surpresos, porque é uma locali-zação atípica, em faixas etárias jovens. Quem são esses homens? Eram todos jovens trabalhadores que tinham vin-do do Norte e do Nordeste em busca de trabalho e aqui desenvolveram câncer. Eles se contaminavam com HPV e infec-tavam a mulher, que podia desenvolver câncer do colo de útero. A importância desse nosso trabalho é para escrever a história baseado em fatos.

Como o senhor entrou no Hospital do Câncer?Passei na antiga Escola Paulista de Me-dicina [atual Unifesp] em 1942 e me for-mei em 1948. Meu pai era carpinteiro e marceneiro, um imigrante italiano que saiu da Itália aos 16 anos, em 1897, por-que o irmão disse que queria ser padre. Naquele tempo, quando algum membro da família manifestava esse desejo, a fa-mília toda passava a viver em função dele e meu pai não queria isso. Ele emigrou primeiro para Nova York (Brooklin) e foi cortar gelo no rio Hudson para as gela-deiras da época. Depois de dois anos de-cidiu ir para a Argentina. Não gostou de lá e veio para o Brasil. Casou no interior de São Paulo e teve 10 filhos. Minha mãe nasceu no sul da Espanha, em Málaga, veio criança para cá, casou com meu pai e começou a ter filhos com 16 anos. Um dia meu pai abriu um anuário e mostrou quanto gastou com cada filho. Dizia com bom humor que se tivesse investido em burros seria um homem rico cercado de burros. Esse tipo de coisa ensina lideran-ça. Liderança é obtida de dois jeitos: por respeito ou medo. Somos nove irmãos e uma irmã. Um deles, Hilário Torloni, foi vice-governador de São Paulo, entre 1966 e 1971. Nasci no interior, em Ita-puí, antiga Bica de Pedra, em 1924, e fiz o ginásio em Santos, onde meu pai era representante dos plantadores de café.

resgate da história: livro de registro de pacientes tratados, analisados um a um

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E por que escolheu a medicina?Eu não sabia o que fazer. Meu irmão Hilário já estudava medicina e um dia vim para a pensão na avenida Rio Branco onde ele tinha um quarto. Fiz um curso, tentei a Escola Paulista de Medicina e a USP. Entrei na Paulista. Nessa época eu tinha de ajudar meus irmãos a estu-dar. Então me juntei com um colega e começamos a fazer e vender apostilas para os alunos que mal apareciam nas aulas teóricas. Nessa época meu pai não conseguia mais viver do café em Santos e abriu uma escola de comércio no Brás, a Barão de Mauá. Eu trabalhava lá das 19 horas às 23 horas. Os filhos já formados eram contratados como professores e o salário pagava os cursos dos outros. To-dos nos formamos. Os três mais velhos foram contadores e já mor-reram. Eu e o Hilário somos médicos. Minha irmã Tere-za é professora e advogada. Geraldo, que é pai da atriz Cristiane Torloni, escolheu fazer teatro. Meu pai disse que podia fazer o que quises-se, desde que trouxesse um diploma de curso superior. Geraldo se formou advogado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, deu o diploma para meu pai e foi fazer teatro. Outro irmão foi professor na USP e outro no Instituto Tecnológico da Ae-ronáutica, de São José dos Campos.

E o senhor?Em 1946, no quarto ano do meu curso, pensava o que ia fazer na me-dicina. Não queria cirurgia, porque eu via que a vida da pessoa estava na ponta do bisturi. Pensei em oftalmologia, mas os equipamentos eram caríssimos. Estava pensando se não devia ir para o exterior quando vi um anúncio no jornal. A As-sociação Paulista de Combate ao Câncer precisava de dinheiro para fazer um hos-pital. Era uma gincana para estudantes de medicina e o prêmio era uma bolsa de estudos no final do curso, para onde quisesse. Eu queria ganhar a bolsa e ir para o exterior, porque era algo raro e quem voltava de lá se dava bem.

O que o senhor fez?Onde tem dinheiro?, pensei. Nos bancos.

Fui aos bancos e os filhinhos de papai que eram meus concorrentes já tinham ido a todos eles. Como eu dava aula no Brás, à noite, fui para a periferia, visitar as fábricas e tecelagens. Visitei o Brás inteiro e fui até São Bernardo do Cam-po. Para conseguir recursos, o Antonio Prudente criou o “dia de trabalho”. O funcionário que doasse o valor corres-pondente a um dia de trabalho, se ti-vesse câncer no futuro, ele seria tratado de graça quando o hospital estivesse pronto. Com essa moeda de troca fui às fábricas. Contava sobre a campanha de arrecadação para o chefe do departa-mento de recursos humanos da fábrica e ele me autorizava a falar no refeitório na hora do almoço. Não era preciso dar nada na hora, era só falar com o chefe

do RH e autorizar a doação. Eu voltava em três meses para recolher o dinheiro. Também usei a rede escolar, conversa-va com as professoras, a diretora e as crianças. Esse trabalho me custou três segundas épocas, porque tinha de estu-dar, trabalhar à noite e ainda recolher dinheiro. Chegou o último dia da cam-panha. A sede da tesouraria era na rua Benjamin Constant, onde ficava o con-sultório do Antonio Prudente. A gente tinha de deixar o dinheiro recolhido lá com o tesoureiro. Pensei e depositava apenas uma parte do dinheiro recolhi-do. Porque imaginava que os filhinhos de papai colocariam mais dinheiro do próprio bolso se soubessem qual a di-ferença dos concorrentes. Falei e con-

venci o Nicolau, meu irmão mais velho, que era contador, para abrir uma conta corrente comigo na Caixa Econômica Federal, na praça da Sé. Se acontecesse qualquer coisa comigo, o dinheiro se-ria entregue na Associação Paulista de Combate ao Câncer. Eu levava apenas 10% do que arrecadava para a tesoura-ria e guardava 90% na Caixa. Eram só 10 candidatos. No último dia da ginca-na, fui à Caixa com Nicolau, peguei o dinheiro e os comprovantes e levamos na tesouraria. Chegamos pouco antes das 18 horas, o tesoureiro já estava nos esperando. Perguntei quanto havia sido arrecadado no geral e disse que na mala tinha mais dinheiro. Ele perguntou se eu era louco de andar com tanto dinhei-ro por aí e expliquei que estava tudo na

Caixa. Ele me levou para co-nhecer o Prudente, que per-guntou o que eu queria fazer e disse que faltava gente na anatomia patológica, um ti-po de profissional ligado di-retamente ao cirurgião. Eu disse que não sabia se gosta-ria daquilo. Ele sugeriu que fosse ao professor catedrá-tico de anatomia patológi-ca, Moacir de Freitas Amo-rim, que tinha feito estágio na Alemanha e era fanático pela patologia alemã. Pru-dente me indicou e o Amo-rim disse que eu ia começar aprendendo a lavar cadáver. Lavei, aprendi a costurar, fa-zer autópsia, ainda durante o curso de graduação. Um negro de cabelos brancos

chamado Davi fazia as autópsias e me ensinou, fiquei amigo dele. Como eu fazia apostila na faculdade e dava aula à noite, lavar cadáver foi ótimo. Esse aprendizado foi fundamental quando assumi o departamento de anatomia patológica do hospital.

O senhor venceu a gincana e ganhou a bolsa. O que fez com ela?Ela ficou guardada até eu me formar. Era uma bolsa para fazer especialização em anatomia patológica. Depois que treinei aqui, fui para os Estados Unidos. Pruden-te conhecia um dos melhores patologis-tas dos Estados Unidos, Lauren Vedder Ackerman, e me mandou para o Saint Louis, Missouri, na Universidade de Wa-

Aprendi a lavar e a costurar cadáver e a fazer autópsia ainda durante o curso de graduação

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shington. O dinheiro da bolsa era US$ 300 por mês e não cobria as passagens, era só para manutenção. O Prudente me ajudou: fui e voltei de navio, sem pagar, acompanhando carregamentos de café. Dos US$ 300, sobravam US$ 150, por-que eu fazia três refeições de graça no hospital e pagava US$ 60 em uma pensão que tinha médicos da Tailândia. Fiquei lá um ano e meio e voltei em 1952, uns 10 meses antes de o hospital ser inaugura-do. Nessa volta tive de treinar a turma de patologistas do hospital. Abri um labora-tório experimental atrás do consultório do Prudente e foi muito bom porque ele me mandava a clientela dele. Sobrevivi disso, enquanto esperava o hospital abrir. Fiz a lista de tudo que precisava para o laboratório de anatomia patalógica, do hospital e avisei ao Prudente: “Abre a cozinha, a lavanderia e a parte de anatomia patoló-gica porque, quando abrir o centro cirúrgico, pode haver óbitos”. Cirurgião, naquele tempo, queria muito mostrar quem ele era. E na autópsia, lá embaixo no hospital, nós mostrávamos onde ele errou. Fizemos 1.953 autópsias en-tre 4 de agosto de 1953 e 31 de março 1976, em média 7,5 por mês. Havia uma grande mortalidade por causa do es-tágio avançado dos casos. Co-mo o hospital do câncer tinha missão tripartite – assistência, ensino e pesquisa – e o siste-ma de diagnóstico por ima-gem era insuficiente para o diagnóstico real da doença, usávamos a autópsia como o livro de en-sino mais realista. As informações eram registradas à mão neste livro e depois da-tilografadas e arquivadas [mostra o livro e o primeiro registro]. Em 4 de agosto de 1953, às 5h20 da manhã, morreu uma paciente de 27 anos. Enquanto o hospi-tal era construído, a gente se preparava e treinava equipe no Hospital Santa Cruz. Viemos para cá em junho e em agosto essa paciente morreu. Ela tinha sido operada às 15 horas por dois médicos de corio-carcinoma, um câncer na placenta, hoje muito raro. Já existia o departamento de anatomia patológica, com quatro patolo-gistas. A primeira autópsia que eu fiz foi a número 3, no dia 16 de agosto. Era um tumor maligno no úmero, em um homem

de 60 anos. As autópsias eram feitas pelos patologistas de plantão e assistidas por um residente do departamento respon-sável pelo tratamento daquele paciente. Os resultados eram selecionados para as reuniões anatomoclínicas, feitas uma vez por mês, das sete às oito e meia da manhã, para indicar que o paciente não era realmente portador de uma única do-ença, câncer, mas tinha outras comorbi-dades, como insuficiência renal crônica e cicatrizes pulmonares de tuberculose, além de outros achados inesperados, que participavam na evolução da doença. Fi-zemos 363 reuniões anatomoclínicas, e o conteúdo era gravado em fita, taquigrafa-dos e depois datilografados e publicados na Revista Brasileira de Cirurgia e mais tarde no Boletim de Cirurgia.

Como eram Antonio e Carmem Pru-dente?Ele era um grande cirurgião plástico. Passou uma temporada na Alemanha e trouxe de lá o bisturi elétrico. Muitos tumores eram ulcerados e infectados. De antibiótico só existia a penicilina e mais alguns poucos. Para diminuir o tamanho do tumor ele usava o bisturi elétrico, pa-ra cauterizar. Ele também foi professor na Escola Paulista de Medicina, era mui-to preparado, e muito simples, não tinha filhos e não ostentava o que ganhava. Muito católico, conservador, vivia em função do trabalho. Dona Carmem era o motor que o empurrava, porque o que ele tinha de sossego e tranquilidade ela tinha de agitada. Era jornalista, filha do

médico particular do Getúlio Vargas, um cardiologista. Gaúcha, escreveu vá-rios livros em que relatava as visitas que fazia acompanhando o marido. Ele via-java muito, tinha bom relacionamento internacional, a tal ponto que em 1954 organizou em São Paulo o 4º Congresso Internacional do Câncer, que, pela pri-meira vez, trouxe uma delegação de on-cologistas da então União Soviética. Esse congresso começou a mudar minha vida.

Por quê?Prudente, que tinha de montar toda a infraestrutura do congresso, me disse que eu seria o secretário da mesa sobre padronização da nomenclatura de tumo-res. Tive de traduzir um manual com nomes de tumores e o código. Na épo-

ca havia a escola francesa, a alemã e a inglesa e a OMS queria fazer uma classifica-ção para ser usada universal-mente. O presidente da mesa era um patologista america-no chamado Harold Stewart, mas tinha representantes de vários países. Fui anotando, ajudei Stewart, e quando acabou o congresso ele foi embora. Em 1957, Stewart me escreveu para avisar de uma reunião em Oslo, na Norue-ga, a pedido da OMS. Quem patrocinava era a União In-ternacional Contra o Câncer, a UICC, uma agência não go-vernamental. O congresso da UICC obrigou a OMS a cor-rer com a normatização da classificação internacional

dos tumores e o Stewart me indicou para o novo congresso. Nessa reunião também haveria representantes da Índia, Aus-trália, da América Latina e do Oriente. Peguei um avião e depois de 29 horas cheguei a Oslo. A reunião foi mais polí-tica, de escola, de linha de classificação de tumores, e eu, que era moço, fiquei calado aprendendo com quem tinha sido meu professor, autores de livros. Em 1961 fui chamado para uma reunião interna-cional na OMS, em Washington, sobre classificação de leucemias. O chefe da Unidade de Câncer era um russo chama-do Aleksandr Chaklin, diretor do Insti-tuto de Câncer de Moscou. Da América Latina fui eu de novo, não entendia mui-to de leucemia, porque em geral quem

os resultados das autópsias eram discutidos nas reuniões anatomoclínicas, uma vez por mês

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diagnostica é o hematologista. Conheci gente famosa da leucemia e fiquei bem quietinho. O Chaklin me convidou para almoçar e disse, “Nós mandamos uma carta para você pedindo a sugestão de um patologista para trabalhar no projeto de uniformização e nomenclatura de diag-nóstico de câncer. Você mandou alguns nomes, mas não foram aprovados”. Per-guntou então por que eu não me candi-datava. Perguntei se era um convite, ele confirmou. Já estavam me observando e eu não sabia. Foi em 8 de dezembro de 1961. Em 4 de abril de 1962 desembarquei em Genebra com minha mulher e os três filhos, para trabalhar na OMS.

Antonio Prudente gostou?Ficou encantado, porque aqui eu estava na rotina, trabalhava e trei-nava residentes em patolo-gia oncológica. O que eu fa-zia outro poderia fazer. No Brasil, a anatomia patológica não era muito respeitada. Os professores Alípio Correia Neto e Benedito Montenegro e outros trabalhavam com um patologista como parte de sua equipe. A liderança na anatomia patológica co-meçou a mudar quando vá-rios professores da Europa vieram ensinar nas faculda-des de medicina de Ribeirão Preto, Belo Horizonte, entre outras. Aí formaram líderes e reconheceram o valor da anatomia patológica brasilei-ra, que a classe médica daqui não reconhecia.

O que o senhor fez na OMS?Meu trabalho era de sistematização de critérios de classificação de tumores. Os principais pesquisadores da patologia internacional se reuniam para decidir sobre esses critérios. Aprendi muita coi-sa. Conheci os papas da anatomia pato-lógica do mundo. Eu era o secretário das reuniões. As sociedades nacionais eram responsáveis por indicar os líderes e nós checávamos se a indicação era por apa-drinhamento ou por mérito. Tinha gente de alto nível do mundo todo. Havia um líder fantástico em linfomas da Alema-nha, outro líder fantástico de leucemia em Paris, mais outro em leucemia nos Estados Unidos, todos na mesma sala.

O coordenador de cada grupo de traba-lho (mama, ossos etc.), encarregado da uniformização da nomenclatura de clas-sificação dos tumores, enviava as lâminas para os outros colaboradores examina-rem e discutirem nas reuniões. Havia divergência sobre vírgula, ponto, nome. Demorava cinco anos para acertar to-dos os detalhes e dar uma definição com uma imagem fotográfica como exemplo do que se estava falando. E todos os lí-deres tinham de estar de acordo com a definição. Quando ficava pronto, a OMS colocava a bandeira, indicando que era a classificação oficial da organização. Os textos eram impressos e distribuídos para os médicos e escolas médicas do mun-do inteiro. Um dia fiquei incomodado porque, convivendo com os melhores

patologistas do mundo, com as melho-res lâminas, eu não tinha microscópio. Reclamei com o Marcelo Candau, bra-sileiro, diretor da OMS, e pedi um mi-croscópio. Foi difícil. Um patologista sem microscópio não é nada. Expliquei que meu currículo ia ficar parado se não ti-vesse um microscópio para acompanhar os trabalhos. Também pedi para ser co-autor dos livros por ter participado não só da organização como das discussões. Cada classificação de tumores da OMS demorava em torno de cinco anos com duas ou três reuniões de trabalho com os 10 maiores especialistas da área. Uma vez aprovadas a nomenclatura e a defi-nição de cada tipo de tumor, o patolo-gista líder ficava comigo uma semana

para escolher qual era a fotografia que melhor representava o tumor. Chamá-vamos uma companhia fotográfica para fazer microfotografias com a qualidade da lâmina histológica.

Com esse grau de envolvimento nas pes-quisas científicas oncológicas, por que o senhor não fez doutorado? Nunca me interessei. Depois me deram o título de notório saber pela USP, assina-do pelo governador. Não ligo para essas coisas. Eu disse para o Ricardo Brentani, que na época era o diretor do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e do Hospital do Câncer, que aquilo não adiantava. Você é o que é, não o que apa-renta. Eu era uma espécie de “cozinheiro do Grande Hotel”.

E nunca lhe cobraram titu-lação formal? Não. Em 1960, a dois anos de ir para a OMS, havia aqui no hospital um diretor clínico chamado Osvaldo Ramos de Oliveira, um excelente clíni-co, que Prudente encarregou de chefiar as reuniões anato-moclínicas. Nos conhecemos e, naquele ano, Osvaldo me disse que eu deveria ser pro-fessor no curso de medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba. Contei que não tinha título e ele disse que não era pro-blema. Fiquei lá o semestre todo, depois mais um ano, uma vez por semana, dando aula de histologia. Foi quan-

do vi a responsabilidade de ser um pro-fessor. Disse para os alunos que se eu não soubesse uma resposta, saberia onde encontrá-la nos livros e leríamos juntos. Professor não pode enganar. Avisei que não tinha ido para ficar, que o curso era responsabilidade deles. No fim do ano, pedi aos alunos para escreverem comen-tários e críticas. Podia ser anônimo. To-dos enviaram os comentários assinados. Havia um canal de comunicação. Depois tive de sair de Sorocaba e São Paulo pa-ra Genebra.

E depois da OMS?Fui para a Opas, em Washington. Meus três filhos pequenos chegaram com 4, 6 e 8 anos em Genebra e lá tiveram a edu-

Me deram o título de notório saber. Não ligo para essas coisas. você é o que é, não o que aparenta

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cação infantil, na escola pública de Gene-bra, onde aprenderam francês. Genebra é um paraíso e nós queríamos ficar lá. Mas não daria para meus filhos trabalharem porque as leis suíças são muito fechadas. O colegial [atual ensino médio] eles fi-zeram em Washington. Na Opas, entrei na área de educação médica, em 1972. Um pediatra carioca que eu já conhecia e morava lá, Maurício Martins da Silva, disse para trabalhar com ele na área de pesquisa e desenvolvimento. Eu disse, “Ótimo, cadê o orçamento?”. “Você tem que achar.” Tinha que criar e desenvol-ver projetos e conseguir arranjar finan-ciamento do governo americano. Estava chegando de Genebra e o patologista não tem a mesma inserção social do pediatra, do clínico ou do cirurgião. Pensei que não conseguiria sobreviver. Mas entrei em contato com a área de ensino médico e pesquisa da Opas e falei com o Ramón Villareal, um mexicano extremamente dedicado à área. Quando ainda estava em Genebra, na OMS, ele disse que queria fazer uma pesquisa sobre o ensino da anatomia patológica na América Latina. Pediu então para eu fazer um questioná-rio sobre como, onde, quando, o que era preciso fazer para melhorar o ensino de anatomia patológica nas faculdades de medicina. Tirei uma licença de um mês da OMS e viajei a America Latina visi-

tando laboratórios de anatomia patoló-gica. Eu explicava que, dependendo da necessidade, a OMS podia ajudar. Como faltava livro-texto, a OMS fez um acordo com a editora e com o autor para fazer a tradução do Tratado de histologia, de Arthur Ham, um clássico nos Estados Unidos. Trabalhei na comissão que or-ganizou a publicação. Eu disse que não adiantava mandar lâmina, porque não havia microscópio nas faculdades, então fiz uma segunda capa no livro e criei uma lupa com um suporte de papelão preto, no qual se colocam slides de histologia que podem ser vistos contra a luz. Esta lupa era usada para fins comerciais e adaptei para ser usada pelos estudantes. Bolei um instrumento de comunicação para o ensino médico. Essa foi minha contribuição para ensino e pesquisa em Washington, na Opas.

Foi o senhor que contratou Ricardo Brentani. Como foi?Queríamos ficar nos Estados Unidos, mas eu ganhava US$ 4 mil por mês e não dava para pagar a universidade dos filhos, de US$ 1.500 cada um. Aí, depois de 6 ou 7 anos em Washington, comecei a procu-rar outro emprego. Eu pensava sempre em São Paulo, nunca em Brasília, mas um médico, o professor João Sampaio Góes, me convidou para o cargo dele no

Ministério da Saúde e voltei em 1973. Eu estava na Divisão Nacional do Câncer e o ministro Paulo de Almeida Machado me chamou um dia. Um pouco antes, o Golbery do Couto e Silva, ministro-chefe da Casa Civil, tinha avisado ao ministro Paulo Machado para dizer que um milio-nário excêntrico chamado Daniel Ludwig queria abrir um centro de pesquisa so-bre câncer no Brasil. Marcamos uma entrevista com Ludwig e seu advogado. Não sabia quem era ele e fiz algumas sugestões de investimento na área de saúde no Brasil. “Quero um centro de pesquisa sobre a doença do século, que é o câncer”, ele disse. Ele queria no Rio de Janeiro, porque toda vez que descia de avião via uma faculdade enorme, que é a instalação da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro, a UFRJ, na Ilha do Fundão. Contei que aquilo também pertencia ao governo e ele disse que não queria nada.

Ele não queria nada com o governo?Não. Queria fazer algo na esfera privada. Como eu faria várias viagens para o ex-terior com o ministro da Saúde, Ludwig me sugeriu que visitasse os institutos que ele já apoiava. Só tivemos tempo de ver dois, em Lausanne, na Suíça, e em Londres, na Inglaterra. Contei que no Brasil havia a possibilidade de fazer pesquisas muito diferentes, porque so-mos um país tão grande que um câncer que dava no Sul não dava no Nordeste. Quando falei de câncer de pênis, ele se assustou, não sabia nem que tinha. Nes-sa época saiu um trabalho de um epi-demiologista importante de Londres, Richard Doll, chamando a atenção para o possível vírus causador do câncer ge-nital feminino e aqui tínhamos o grande responsável por esse câncer no homem sem saber que era provocado por vírus. Como no Nordeste tinha grande núme-ro de câncer de útero e pênis, poderia haver uma relação, mas não tínhamos provas. Quando eu joguei essa possibi-lidade de investigação para o Ludwig, ele ficou entusiasmado. Fui convidado para ajudar a comissão para selecionar a cidade, o hospital onde funcionaria o novo instituto e o possível diretor. Pedi um tempo, mandei o regulamento de vá-rios hospitais para a equipe do Ludwig em Nova York e disseram que queriam visitar o Hospital do Câncer aqui de São Paulo. O diretor era o Fernando Gen-

microscópio portátil: uma lupa para ver slides com imagens de tecidos

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PESQUISA FAPESP 216 | 29

til, que viveu muitos anos no Memorial Hospital, nos Estados Unidos, mas não conhecia Ludwig. A comissão veio, fez uma inspeção, aprovaram, mas faltava escolher quem ia comandar. Eu estava no Ministério da Saúde e aceitei fazer uma pesquisa para escolher um diretor. Fiz uma extensa busca sobre bolsistas pesquisadores dos últimos 5 ou 10 anos da área de saúde e adjacências, descobri os que tinham ido ao exterior, procurei em publicações sérias. Cheguei a uns 10 nomes, coloquei o currículo cien-tífico, uma planilha com os dados e as minhas observações pessoais, mandei para os Estados Unidos e mandaram entrevistar os candidatos. O Brentani eu já conheci de Washington, no tempo da Opas. Eu tinha muita ligação com o NCI [National Cancer Ins-titute] e como havia brasi-leiros lá, de vez em quando me indicavam um para eu conhecer e levar para jan-tar. Era um tal de Brentani, falamos bastante, ele con-versou com minha mulher, ficou sentado no sofá de casa com meu gato no colo. Ainda não sabíamos nada sobre Lu-dwig. Anos depois, quando o entrevistei, ele estava na USP como professor de on-cologia. Era um acadêmico, o pesquisador brasileiro mais jovem com trabalho publi-cado na Science. Quando foi escolhido, ele me ligou para contar e perguntou: “E ago-ra?”. Eu brinquei: “A culpa é sua!”. Ele pediu ajuda para escrever um relatório do que precisava para o novo instituto. Eu aceitei aju-dar, mas não escrevendo, porque ele ti-nha grau acadêmico e um jeito de falar próprio. Brentani chegou ao hospital e descobriu um monte de talentos, que estavam precisando de uma ajudazinha para se tornarem também acadêmicos. “A turma aqui é espetacular, por que não faz graus acadêmicos?”, ele perguntava. Aqui ele formou muita gente. Fui con-vidado para ser o diretor científico e eu não aceitei, porque não tinha formação científica modernizada para assumir. Me ofereceram então a coordenação de pro-gramas, exatamente porque sabia fazer a ponte entre o hospital e o acadêmico Brentani. Disse para Brentani mais tar-

de que foi uma pena eu tê-lo conhecido tão tarde na vida profissional. Era um sonhador, com muita liderança. Tinha um temperamento vulcânico. Ele foi o responsável pela projeção nacional e in-ternacional dos serviços, do ensino e da pesquisa do hospital. O hospital sempre foi apoiado pelo trabalho de assistência e por doações voluntárias que permiti-ram atravessar anos difíceis, principal-mente na década de 1960. Como o ensi-no dos médicos em suas especialidades era de alto custo, os residentes nos anos 1950 eram subsidiados pela Fundação Antonio Prudente, eles moravam aqui. O reconhecimento do ensino e pesquisa na área de oncologia permitiu o reco-nhecimento por meio de projetos com instituições do Brasil, como a FAPESP,

e de outros países, como Itália, Estados Unidos e Inglaterra.

Vários médicos e pesquisadores dizem que ainda hoje o consultam quando têm dúvidas. Como é seu papel de conselheiro? A qualquer momento da profissão, de-vemos responder a algumas perguntas: como eu era? Como estou? São pergun-tas que obrigam a uma autoanálise, não necessariamente a uma autocrítica. Em qualquer profissão é preciso fazer isso. Em novembro do ano passado dei uma palestra aqui no hospital sobre a rela-ção entre médico, paciente e tecnologia. Hoje estamos falando de uma geração de médicos que, se não for inteligente, vai se esconder atrás da tecnologia para

ganhar dinheiro e deixar que o paciente vá para o inferno. Falei nessa palestra como devia ser a primeira consulta, da importância de saber ouvir e quando falar, saber o que e quando falar. Ter paciência. Do absurdo de se tratar mal o paciente. O paciente fala e sua história tem começo, meio e fim. O médico tem que ter paciência e controle do tempo da consulta. Se você trabalha no convê-nio tem que atender muitos pacientes para ganhar R$ 100. É um problema. O doente tem sentimento, tem de tratar com dignidade, porque ninguém vai ao médico para pedir atestado, vai porque tem dúvidas. Não adianta ser apenas um especialista em pulmão. Isso é técnica. O paciente é que sabe onde dói no pulmão. Tem uma coisa importante que é o com-

portamento social compa-rado com o comportamento celular. Como as células do epitélio se transformam em câncer, nós nascemos para viver em equilíbrio, mas se você consome uma quanti-dade grande de gordura tem manifestação intestinal, por-que desequilibrou a sinto-nia de função das células. O maior desequilíbrio celular que existe é o câncer, por-que não tem volta. A célula endoida, começa a se dividir rápido, atrapalha as outras, acaba com a pele, com o es-tômago, com o osso e com a vida. Nessa palestra para os médicos contei uma his-tória de uma paciente de 29 anos, doméstica, diagnosti-

cada com uma doença benigna na mama direita. Seis anos depois ela voltou com doença benigna na mama esquerda. Em 1981 retornou com um câncer na mama esquerda. Fez radioterapia, cirurgia e em 1984 veio com metástase óssea, em 1985 espalhou por tudo e em 1986 morreu, com 52 anos. Começou com 29. Durante 23 anos de vida, ou 44%, a vida dela es-teve ligada ao hospital. Foi um dos 1.600 casos de câncer registrados naquele ano. Isso aqui não é só para médicos, pato-logistas. É para sociólogo, poeta, para quem quiser. Porque por trás de cada caso tem um nome, um sexo, uma idade e uma profissão. Essa era doméstica de São Bernardo. Não podemos ler esses registros como um robô. n

Isso aqui não é só para médicos e patologistas. É para sociólogo, poeta, para quem quiser

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30 z fevereiro De 2014

Parceria entre

fAPeSP e NSf une

pesquisadores do

Brasil e dos

estados Unidos

para conhecerem

melhor os

processos que

afetam a

biodiversidade

brasileira

a FAPESP e a National Science Founda-tion (NSF) deram um passo a mais para fortalecer a parceria estabelecida em 2011 voltada ao estudo da biodiversida-

de no Brasil. Em dezembro passado foi lançada a terceira chamada de propostas de cooperação científica vinculadas às principais linhas de finan-ciamento de estudos sobre a diversidade biológica das duas agências, os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity. O objetivo é estimular a colaboração em pesquisa entre cientistas por meio de projetos que contribuam para o avanço dos estudos em biodiversidade no Brasil e Estados Unidos. Os projetos aprovados receberão até US$ 2 milhões de cada fundação.

A ideia é que as propostas integrem as três dimensões da biodiversidade — genética, taxo-nômica e funcional —, com o propósito de tentar compreender como elas contribuem para a saúde, o funcionamento dos ecossistemas e a adaptação biológica em resposta às mudanças ambientais. “O caráter interdisciplinar que os projetos sub-metidos precisam atender é um dos principais

rodrigo de oliveira andrade

Passo à frente

Política c&t COLabOraçãO y

diferenciais dessa parceria”, diz Regina Costa de Oliveira, diretora da área de biologia, agronomia e veterinária da Diretoria Científica da FAPESP e coordenadora da chamada de propostas. Segun-do ela, a FAPESP preza as parcerias com grandes instituições, como a NSF, porque envolvem mui-tos pesquisadores e intensa produção científica.

A seleção de propostas integra uma chamada mais ampla, publicada todos os anos pelo Di-mensions of Biodiversity, voltada à participação de pesquisadores de instituições americanas em projetos financiados pela NSF ou lançados em parceria com outras fundações. De 2003 a 2007 houve intensa troca de experiências entre a coor-denação do programa Biota e a administração da NSF. Esses contatos contribuíram para que, em 2010, a NSF iniciasse um projeto de 10 anos de investimentos em pesquisa, infraestrutura de tecnologia, força de trabalho, coleta e síntese de dados, numa campanha de estudos integrados com o objetivo de caracterizar a dimensão da di-versidade biológica da Terra. Na mesma época, a FAPESP renovou por mais 10 anos a continuidade

árvores da amazônia (acima) e da mata atlântica (à dir.): projetos pretendem entender melhor a origem e evolução da biodiversidade vegetal

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PesQuisa faPesP 216 z 31

do Biota-FAPESP. Dentre os objetivos da segunda fase estão as parcerias internacionais, a expansão da abrangência geográfica para além do estado de São Paulo, a ampliação de pesquisas sobre a biodiversidade costeira e marinha e a prioridade à vertente educacional, o que vem sendo feito.

Em 2013, o programa organizou, em parceria com Pesquisa FaPesP, uma série de palestras para discutir os desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros, como contribuição para a melhoria da qualidade da educação científica e ambiental no país. Com 13 anos de história em caracterização, conservação, restauração e uso sustentável da biodiversidade, o Biota-FAPESP já financiou mais de 120 projetos de pesquisa, cujos resultados têm contribuído pa-ra que tomadores de decisão possam identificar e caracterizar melhor as áreas prioritárias para conservação e restauração no estado de São Paulo.

“As relações entre pesquisadores brasileiros e americanos têm promovido avanços importantes quanto a nossa compreensão dos processos que regulam a diversificação, manutenção e perda de biodiversidade no Brasil”, diz Simon Malcomber, coordenador do Dimensions of Biodiversity. A expectativa, segundo ele, é que essas atividades colaborativas promovam o desenvolvimento cien-tífico e econômico dos dois países, gerando uma força de trabalho amplamente treinada e inter-nacionalmente engajada na pesquisa ambiental.

ProJetos aProvadosO resultado da primeira chamada foi anunciado em setembro de 2012. Um projeto ambicioso, coor-denado pela bióloga Lúcia Lohmann, do Institu-to de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), pretende entender o que levou a floresta amazônica a abrigar a maior variedade de plan-tas e animais do mundo (ver Pesquisa FAPESP nº 200). Para isso, uma equipe multidisciplinar de 30 pesquisadores brasileiros e americanos trabalha para tentar reconstruir o parentesco, história evo-lutiva e distribuição espacial de grupos animais e vegetais, como as Bignoniáceas, família de plantas que inclui os ipês e os jacarandás, e as Lecythida-ceae, grupo no qual está a castanheira-do-brasil.fo

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Se o projeto avançar, os pesquisadores esperam poder identificar os principais momentos de di-versificação das espécies desses grupos e recons-truir suas histórias biogeográficas. Com isso, pre-tendem entender melhor a origem e evolução da biodiversidade da região. “Queremos reconstruir a história da Amazônia nos últimos 20 milhões de anos”, conta Lúcia. “Mas antes precisamos enten-der melhor a história da biodiversidade da região, bem como as transformações que ocorreram no ecossistema. Só assim conseguiremos entender a influência de eventos geológicos específicos, co-mo o surgimento dos Andes, na diversificação de espécies na Amazônia.” A pesquisadora também planeja investigar se esses eventos de diversifi-cação estão associados a fenômenos climáticos e ciclos biogeoquímicos, entre outros aspectos ambientais do passado.

análises inteGradasOs trabalhos estão bastante avançados e já resulta-ram em quatro artigos publicados até agora, além de outros cinco que estão no prelo. No ano passa-do, o projeto foi citado pela revista science, que enfatizou seu potencial na produção de insights ligados à biodiversidade amazônica. Os grupos ainda trabalham de forma isolada, mas Lúcia pre-tende reuni-los entre os dias 16 e 21 de fevereiro, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, para discutir os avanços des-te primeiro ano de pesquisas e estabelecer novas metas e protocolos de trabalho para 2014.

Lúcia está paralelamente envolvida em outro projeto, este de caracterização da distribuição e diversidade de espécies animais e vegetais na mata atlântica. O projeto foi aprovado em 2013, na segunda chamada de propostas FAPESP-NSF. Sob coordenação da bióloga Cristina Miyaki, do

Instituto de Biociên-cias da USP, pesqui-sadores de diversas áreas estão traba-lhando para enten-der melhor a história do ecossistema, um dos mais degradados do país. Em feverei-ro, eles se reunirão em um workshop na sede da FAPESP em São Paulo. “O objetivo é juntar os pesquisadores para delinear o que cada um está fazendo, de modo a começarmos a pensar como os avanços de cada grupo podem ajudar a melhorar a documentação dos padrões da biodiversidade na mata atlântica”, explica Cristina, que também é uma das organizadoras do evento. Essa será a primeira vez que as equipes estarão frente a frente, conta Regina Costa de Oliveira. “Quere-mos promover esses encontros anualmente”, diz.

“Estamos animados com o potencial desse e de outros projetos conjuntos de expandir nosso co-nhecimento sobre os processos que influenciam a biodiversidade desses dois ecossistemas brasi-leiros”, comenta Malcomber, do Dimensions of Biodiversity. Apesar de terem apenas dois anos, ele diz estar satisfeito com a natureza colabora-tiva dos trabalhos. “As equipes de pesquisadores têm feito progressos significativos”, diz. “Espe-ramos que continuem a empurrar as fronteiras da ciência da biodiversidade.” Para Regina Cos-ta de Oliveira, parcerias como essa aumentam a massa crítica pensante sobre os diversos temas relacionados à biodiversidade. “Estamos usando a biodiversidade brasileira como ponto de partida para uma análise envolvendo uma grande mistura de especialidades, cujas pesquisas reverberarão por vários outros países”, afirma. n

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Parceria faPesP-nsf deve ampliar as fronteiras da ciência da biodiversidade

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inseto e flor da amazônia (acima) e cogumelo da mata atlântica: objetivo é identificar os principais picos de diversificação de espécies

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Mostra alemã chega

a são paulo com

descobertas

científicas que podem

mudar o mundo

nos próximos anos

DifusãO y

um túnel para o futuro

bruno de Pierro

Uma viagem através de um túnel que perpassa os principais temas da ciência: das origens do universo às idiossincrasias do cérebro, pas-sando pelas fontes de energia sustentáveis.

Essa é a proposta da mostra global Túnel da ciência Max Planck, aberta ao público até o dia 21 de fevereiro no Centro de Convenções do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Concebida em 2000 pela Sociedade Max Planck, na Alemanha, a exposição já passou por 20 países, entre eles China, Argentina, Estados Unidos e Chile, e recebeu mais de 9 milhões de pessoas em suas três versões. Esta é a primeira vez que a mostra é instalada no Brasil, como parte das atividades que ce-lebram a temporada da Alemanha no Brasil 2013-2014.

Quando foi apresentado pela primeira vez, em 2000, na cidade de Hannover, Alemanha, o Túnel da ciência tinha a missão de mostrar as últimas no-vidades, naquele momento, da ciência básica, cuja finalidade é gerar conhecimento. Na versão que che-ga ao Brasil, a 3.0, a preocupação vai além da sim-ples apresentação. “Os resultados da pesquisa básica

O Túnel da ciência: clima futurista para discutir as consequências do avanço científico e

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quisa”, diz ela. “A maioria das pessoas tem celular com GPS e outras tecnolo-gias, mas não tem a percepção de como a pesquisa básica foi importante para se chegar a tais produtos. O Túnel da ciência mostra ao público que a ciência deve ser entendida como um processo”, diz Nader.

Para provocar questionamentos do tipo “qual futuro nós queremos?”, a aposta foi em um modelo de exposição que privilegia recursos tecnológicos e midiáticos para causar sensações e fomentar emoções no público, explica Steiner, que tem 22 anos de experiência na organização de mostras de ciência, com passagem pelo tradicional Museu Deutsches, em Munique. Por isso, o ambiente futurista do Túnel, cheio de cores e luzes, abriga atrações de todos os

tipos: imagens, ilustrações, filmes, muitas vezes acionados por tablets ou smartpho-nes. “A exposição não se debruça sobre o processo de ensino e aprendizagem, co-mo em uma escola. Aqui a transmissão de informações ocorre de maneira mais lúdica”, diz Marcus Ferreira, diretor da Asas Produções, uma empresa do Gru-po Asas, que organizou a instalação da exposição no Brasil.

atraçÕesDentre as novidades da mostra está uma réplica do veículo de exploração espacial Curiosity, enviado pela Agência Espa-cial Americana (Nasa) a Marte em 2012. Trata-se do maior e mais complexo jipe robô já enviado ao planeta, equipado com um espectrômetro a laser e outros oito instrumentos exploratórios. A réplica é acompanhada por dois tablets, que aju-dam a explicar o funcionamento do robô.

Outro ponto alto do Túnel é o Magic Mirror (Espelho Mágico), criado em par-ceria com a Universidade Técnica de Munique, na Alemanha. Graças à tec-nologia de realidade aumentada, ele cria a ilusão de que é possível visualizar o interior do próprio corpo, como em um raio-x, indicando a posição dos órgãos humanos. Já o Millenium-Simulation

implicarão novas aplicações e produtos daqui a 20 anos. Por isso, nosso objetivo agora é fornecer ao público um vislum-bre do futuro”, diz o alemão Peter Stei-ner, coordenador da mostra, que custou cerca de R$ 2,5 milhões, divididos entre a Sociedade Max Planck, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e patrocinadores do setor privado.

Para Helena Nader, presidente da So-ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade parceira nesse projeto, o país precisa estar mais aberto para receber, e também criar, exposições como a do Túnel da ciência. “A exposição cumpre o papel de intensificar o diálogo entre a comunidade científica e a socie-dade, que é quem de fato financia a pes-

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Unifesp, por exemplo, esteve envolvido na recepção de Erwin Neher. “Ele é um dos grandes cientistas que avançaram no conhecimento do sistema nervoso, e como ele veio ao Brasil, meu grupo, que trabalha com essa mesma temática, foi escolhido para acompanhar Neher du-rante sua passagem por São Paulo e pres-tar tutoria ao público”, diz Cavalheiro.

Outra entidade que ajudou a trazer a mostra para o país é o MCTI, que destinou aproximadamente R$ 318 mil para a contra-tação dos mediadores e outros gastos. Em parceria com a Uni-versidade de São Pau-lo (USP), o ministério elaborou uma pesquisa para avaliar a percepção dos visitantes em rela-

ção à ciência. “Com base nessas infor-mações, poderemos nos capacitar para criar o Túnel da ciência brasileira, uma versão nacional da exposição alemã”, conta Douglas Falcão Silva, diretor do Departamento de Popularização e Di-fusão da Ciência e Tecnologia do MCTI.

A ideia, diz ele, é que a médio prazo o Brasil seja capaz de realizar uma ex-posição nos mesmos moldes do Túnel da ciência, mas com o objetivo de apre-sentar os feitos da pesquisa feita no país. “O público que visita o Túnel deve saber que temos brasileiros que também tra-balham com grandes temas científicos. Temos brasileiros nos grandes centros de pesquisa internacionais e outros que atuam aqui no país, fazendo pesquisa básica, mas desconhecidos da população em geral”, afirma Falcão. n

“Infelizmente, as pesquisas podem le-var muito tempo para que seus resul-tados encontrem alguma aplicação e se convertam em produtos. Por isso temos que saber antecipar, hoje, os desafios do amanhã. A ciência feita hoje molda o fu-turo”, disse Neher.

Uma das preocupações da organização da mostra é que a experiência do público não se resuma apenas a sensações pro-vocadas pelas atrações. É preciso que o visitante receba explicações. Por isso alu-nos de graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) foram convidados a trabalhar como mediadores dos visitantes na expo-sição, principalmente para receber estu-dantes do ensino fundamental. Um grupo de alunos de Esper Abrão Cavalheiro, professor de neurologia experimental da

mostra como o Universo seria se fosse possível observar a matéria escura que compõe 23% do espaço. Todas as atra-ções estão distribuídas em oito módulos temáticos, o que facilita o percurso da visita: Universo, matéria, vida, comple-xidade, cérebro, saúde, energia e, final-mente, sociedade.

Steiner ressalta que a mostra tem como preocupação não apenas democratizar o conhecimento. Mais do que isso, ela busca levar o público a discutir o significado do avanço científico para os próximos anos. “A exposição convida a política, a ciência e o público a se reunirem para pensar so-bre a aceitação e o papel da ciência e seus avanços em nossa sociedade”, diz ele. Por esta razão, a abertura da mostra, no dia 29 de janeiro, contou com a participação de Erwin Neher, prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1991 e pesquisador da So-ciedade Max Planck, que ao todo reúne mais de 5.300 cientistas e teve um orça-mento de € 1,5 bilhão em 2012.

Em sua palestra, Neher falou sobre o importante papel da colaboração in-ternacional para o desenvolvimento da ciência e sobre a necessidade de se valo-rizar a pesquisa básica, que, segundo ele, fornece as bases para as principais trans-formações tecnológicas na sociedade. fo

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“nosso objetivo é oferecer ao público um vislumbre do futuro”, diz Peter steiner

1 a complexidade do cérebro humano é tema da mostra

2 recursos multimídia a serviço da divulgação

3 réplica do robô Curiosity, da Nasa

4 O cientista erwin Neher na abertura da exposição 2

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rede de proteçãoManguezais ganham

importância diante

de alterações no clima

teXtO maria Guimarães

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raízes de Rhizophora

mangle mantêm árvores de pé no

solo instável

Ao longo dos estuários, baías, lagoas e braços de mar, árvores enfrentam condições pouco favoráveis e se debruçam sobre a água salobra. Às vezes represen-tado por uma vegetação atarracada que forma uma

franja verde, outras pelo emaranhado de raízes que funcionam como muletas em arco para manter árvores bastante altas de pé na lama movediça, o manguezal é berçário para uma grande variedade de animais marinhos e ajuda a proteger a costa dos ventos e das ondas do mar. Em tempos de aquecimento global, a capacidade de absorver carbono da atmosfera e estocá-lo acrescentou mais uma etiqueta de preço ao valor desse ecos-sistema costeiro que no Brasil existe ao longo de quase todo o litoral, da região Norte ao sul de Santa Catarina. E que agora reage ao aumento do nível do mar resultante das mudanças climáticas, como vem mostrando o grupo do oceanógrafo Mário Soares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Cerca de três vezes por semana, uma equipe do laboratório de Soares, o Núcleo de Estudos em Manguezais (Nema), se di-rige ao manguezal de Guaratiba, a 70 quilômetros a oeste da capital fluminense. Ali, às margens da baía de Sepetiba, eles se embrenham na floresta e fazem uma série de medições em uma área monitorada desde 1998, quando Soares estabeleceu

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gado do que a lama do manguezal. Al-gumas vezes por mês, nas marés mais altas, o mar invade essa área e não escoa completamente. A água evapora e deixa o sal no solo, que se torna inóspito até para as espécies de mangue. Mesmo assim, com o aumento do nível do mar a inun-dação dessa área se torna cada vez mais frequente e aos poucos essas plantas se instalam por ali. “A floresta avançou qua-se 80 metros desde 1998”, conta Soares.

Além do trabalho com os pés afundados numa lama cheirando a enxofre, os pes-quisadores da Uerj também investigam o que aconteceu por meio de imagens de

satélite. “Imagens capturadas desde 1984 confirmam o que vimos em campo”, diz Soares. “O manguezal pulsa segundo ci-clos climáticos.” Em períodos mais úmi-dos, a chuva lava o solo, dilui o sal e as árvores conseguem se estabelecer nas pla-nícies salgadas. “São janelas climáticas de oportunidade para o avanço mais rápido da floresta”, explica Estrada, que em 2013 terminou o doutorado e agora se tornou professor na Uerj. Para ele, um indício de que o nível do mar está subindo por ali é que ao fim de uma série de anos secos o manguezal para de avançar, mas não per-de o terreno conquistado: sem as lavagens pela maré, as árvores morreriam. Ao mes-mo tempo que a floresta avança rumo à terra, a água erode a borda da vegetação. Em Guaratiba, porém, esse desgaste tem sido mais lento do que o avanço. O saldo é um aumento da área total de floresta.

rumo aos PolosA expectativa é que o manguezal também amplie a distribuição geográfica à medida que as temperaturas aumentam. É que as árvores desse ecossistema não crescem em baixas temperaturas, e por isso mais da metade dos manguezais do mundo es-

1 Jovem Avicennia cresce no apicum

2 projeções das raízes funcionam como snorkels

uma zona permanente de estudo, descrita em 2013 por Gustavo Duque Estrada na aquatic Botany. O manguezal de Guara-tiba é o único no país acompanhado com tal nível de detalhe por um período tão longo. O trabalho, financiado por CNPq, Capes, Faperj e outras instituíções, vem trazendo resultados inéditos.

Uma das observações mais marcantes nesses 16 anos é que a floresta vem avan-çando continente adentro sobre uma área plana com ares de deserto. É a planície hipersalina, uma feição do manguezal também conhecida como apicum, cujo solo é de duas a quatro vezes mais sal-

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tá entre as latitudes 10°N e 10°S. Como as previsões climáticas indicam que o sul do Brasil se tornará mais quente até o fim do século, o manguezal deve ocupar latitudes mais altas. O que se espera que aconteça no Brasil também vale para o hemisfério Norte e foi recentemente observado nos Estados Unidos por Kyle Cavanaugh, do Instituto Smithsonian. Em artigo de ja-neiro deste ano na revista PNas, o grupo norte-americano descreveu um aumento na área de manguezais no norte da Fló-rida, por volta de 30° de latitude norte, e atribuiu a mudança ao fato de serem cada vez mais raras as temperaturas abaixo de 4 graus Celsius negativos por ali. O aumento da temperatura mínima, portanto, é mais importante do que mudanças na média.

Transposta para o Brasil, essa situa-ção corresponderia a encontrar essas florestas no litoral gaúcho perto de Porto

Alegre, mas por enquanto os manguezais ainda estão longe dali e não parecem ter avançado em latitude. Em estudo de 2012 na estuarine, Coastal and shelf science, Soares e sua equipe identificaram a lagoa de Santo Antônio, no município de Lagu-na, em Santa Catarina, a 100 quilômetros ao sul de Florianópolis, como o limite sul dos manguezais brasileiros. A mesma localidade apontada por Yara Schaeffer--Novelli, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), com base em observações feitas em 1979.

mercado de carbonoA torcida pelo aumento do manguezal não é insanidade de quem tomou gosto por enfrentar mosquitos em meio à lama. Os estudos do Nema, além dos de outros grupos internacionais, vêm mostrando que esse ecossistema tem uma capacida-

de importante de absorver carbono do ar. “Desde 2003 temos parcelas perma-nentes voltadas para avaliar o sequestro de carbono”, conta Soares. Seu grupo desenvolveu vários modelos matemáti-cos – o primeiro deles ele próprio criou durante o doutorado, que defendeu em 1997 – para estimar a quantidade de car-bono armazenada nas árvores de cada espécie típica de manguezal. “Se alguém quiser fazer um estudo específico sobre as folhas, temos um modelo; se quiser avaliar as árvores como um todo, também temos”, diz o oceanógrafo. Com a ajuda desses modelos, basta tirar algumas me-didas básicas para obter uma estimativa da biomassa da planta e de quanto car-bono ela abriga.

Um estudo ainda não publicado do grupo da Uerj mostra que, consideran-do apenas o caule e as folhas das árvores,

como anda o manguezal

tendÊncia

Guaratiba, rJ

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barra de são Miguel, aL

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riomanGuezal Planície

hiPersalinarestinGa

estudo na baía de sepetiba já dura 16

anos e revela reação ao crescente

nível do mar

O aumento no nível do mar erode a borda da floresta e afoga as árvores

as três espécies típicas do ecossistema no sudeste brasileiro se organizam nas diferentes zonas

à medida que a água salobra ganha terreno, árvores jovens se estabelecem

zona pode ser colonizada quando a maré avança e retira o excesso de sal do solo com ajuda da chuva

Mata de solo arenoso e sem influência das marés sinaliza área inóspita para manguezais

transição

fonte NeMa / Magris & barretO, 2010 [Mapa]

projeto no rio de Janeiro começa a ser ampliado para outros estados

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n Distribuição do manguezal

áreas estudadas pelo Nema

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1 trincheira em forma de cubo permite avaliar biomassa de raízes

2 tubos para monitoramento da salinidade da água no solo

3 árvore suspensa revela erosão da franja da floresta no rio piracão

4 folhas de Avicennia excretam o sal absorvido com a água

participar do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Ambientes Marinhos Tropicais (INCT-AmbTropic), implan-tado em 2012, que tem sede na Universi-dade Federal da Bahia e se concentra em estudar as respostas do litoral brasileiro às mudanças climáticas. Soares divide a coordenação do Grupo de Trabalho Man-guezais com o geólogo Marcelo Cohen, da Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem inicia uma colaboração.

do Passado ao Presente“Estamos trabalhando juntos para com-binar nossas duas escalas de abordagem”, diz Soares. A especialidade de Cohen é o que aconteceu com os manguezais nos últimos 10 mil anos, no período geológico chamado Holoceno. “Para me certificar do efeito de cada variável sobre a existência dos manguezais, é fundamental conhecer a sua evolução nos últimos 100, 1.000 e 10.000 anos”, explica o geólogo. Ele vem fazendo uma série de estudos nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste, em parte nu-ma parceria com o físico Luiz Carlos Pes-senda, da USP, que coordena um projeto sobre como era a costa do Espírito Santo nesses tempos mais remotos.

Há 20 mil anos, perto do fim de uma intensa era glacial, o nível do mar estava cerca de 100 metros abaixo do que se vê hoje e começou a subir. “Entre 7 mil e 5 mil anos atrás o nível do mar se aproximou do

a cada vez camadas de 10 centímetros. “Um grupo de 15 pessoas leva quatro dias para fazer esse trabalho”, conta. Dali são retiradas as raízes, que depois são secas e pesadas para se estimar a biomassa. Além disso, cilindros de lama também são re-colhidos para medir a quantidade de car-bono armazenada no próprio sedimento. Os resultados virão nos próximos anos.

O que se aprende sobre os manguezais de Sepetiba pode ser usado para enten-der o que se passa em outras regiões. “Há análises que validamos em Guaratiba e poderemos aplicar em outros estados”,

explica o oceanógra-fo. Com adaptações, já que a estatura das florestas e a capaci-dade de estocar car-bono aumentam em direção ao equador. O grupo já começou a aplicar esses mode-los a manguezais pra-ticamente ao longo de toda a costa brasileira – de Florianópolis, em Santa Catarina, a São Caetano de Odivelas, no Pará. A equipe do Nema viaja muito, mas Soares também bus-ca parcerias. Uma no-vidade importante é

o manguezal tem uma capacidade de ar-mazenamento de carbono pouco menor que a de outras florestas tropicais. O valor total só não é significativo porque a área do ecossistema costeiro é muito menor (pouco mais de 1 milhão de hectares) do que a da Amazônia (aproximadamente 500 vezes maior) ou da mata atlântica. “Mas se considerarmos as raízes e o se-dimento, o manguezal ganha por uni-dade de área”, avalia Soares, com base em dados preliminares. Para obter esses dados, o grupo escava buracos em forma de cubos na lama de Guaratiba, retirando

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projetos1 estudos paleoambientais interdisciplinares na cos-ta do espírito santo (nº 2011/00995-7); Modalidade projeto temático – pfpMCg; Pesquisador responsável Luiz Carlos ruiz pessenda – Cena/usp; investimento r$ 1.008.962,77 (fapesp).2 Manguezais do estado de são paulo: análise da evolução espaço-temporal (1979 – 2009) (nº 2009/05507-0); Mo-dalidade bolsa de pós-doutorado; Bolsista Marília Cunha Lignon – unifesp; investimento r$ 138.069,95 (fapesp).

artigos científicosCOheN, M. C. L. et al. impact of sea-level and climatic changes on the amazon coastal wetlands during the late holocene. vegetation History and Archaeobotany. v. 18, n. 6, p. 425-39. nov. 2009.estraDa, g. C. D. et al. analysis of the structural variabi-lity of mangrove forests through the physiographic types approach. Aquatic Botany. v. 111, p. 135-43. nov. 2013.fraNça, M. C. et al. Mangrove vegetation changes on holocene terraces of the Doce river, southeastern brazil. Catena. v. 110, n. 1, p. 59-69. nov. 2013.sOares, M. L. g. et al. southern limit of the western south atlantic mangroves: assessment of the potential effects of global warming from a biogeographical pers-pective. estuarine, Coastal and Shelf Science. v. 111, n. 1, p. 44-53. abr. 2012.

atual e permitiu o início da expansão dos manguezais”, explica Cohen. Apesar de existirem padrões globais, é preciso olhar também em escala local para entender co-mo as condições específicas, que envolvem fluxo dos rios, dinâmica de sedimentos e movimentos tectônicos, influenciaram a vegetação costeira. Na bacia amazônica, de acordo com o geólogo, houve um período com menos chuva aproximadamente en-tre 10 mil e 4 mil anos atrás. Nessa época, a influência marinha avançou rio acima devido ao aumento no nível do mar e à menor vazão dos rios, e os manguezais foram atrás. Com o aumento das chuvas nos últimos 4 mil anos, a salinidade caiu nos estuários e os manguezais recuaram para áreas com maior influência marinha.

Já no Sudeste, por volta de 5 mil anos atrás o nível do mar ultrapassou o atual e produziu muitos estuários com condições adequadas para a expansão dos mangue-zais. Quando o nível do mar desceu, ali se formaram deltas com predomínio de se-dimento arenoso, que se tornaram menos propícios à sobrevivência dessas florestas.

Para abrir janelas sobre essas diferen-tes escalas de tempo, o grupo de Cohen combina uma série de técnicas. Em cilin-dros de sedimento é possível encontrar pólen de plantas que existiram milhares de anos atrás e reconstituir o ambiente em que esses sedimentos foram acumulados e a vegetação de seu entorno ao longo do

tempo. A equipe de Pessenda, no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, em Piracicaba, analisa isótopos de nitrogênio e carbono para caracterizar a matéria orgânica e estimar a idade dos depósitos sedimentares.

Para construir um retrato do que acon-teceu nas últimas décadas, o geólogo da UFPA também lança mão de sensoria-mento remoto, que revela erosão de áreas de manguezal e migração de bancos de areia sobre os depósitos de lama, empur-rando a floresta para áreas mais elevadas.

Imagens aéreas e de satélite são um recurso essencial para avaliações mais extensas da cobertura vegetal – foi es-sa ferramenta que permitiu ao grupo norte-americano detectar a expansão do manguezal para o norte da Flórida. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a bióloga Marília Lignon usa dados de sensoriamento remoto para acompanhar os impactos naturais e de atividades humanas em manguezais de áreas diversas. Depois de olhar de cima, ela não abre mão de olhar de perto. “Ca-da escala tem suas particularidades, e uma pode dar subsídios à outra”, afirma.

Ela recentemente orientou um ma-peamento das áreas de transição entre manguezal e mata de restinga no estado de São Paulo. “São de fácil ocupação hu-mana e de fantástica beleza cênica”, diz. Sendo planas e arenosas, é fácil ocupar essas áreas, que podem funcionar co-mo escape para o manguezal diante de mudanças climáticas. Gustavo Duque Estrada conta que isso ocorreu na área da baía de Sepetiba, onde foi construída a Companhia Siderúrgica do Atlântico. “Não houve planejamento considerando alterações no nível do mar, e essa ocupa-

ção torna aquele manguezal altamente vulnerável diante de um cenário de ele-vação do nível do mar.”

Em conjunto, os estudos dos grupos brasileiros chamam a atenção para a ne-cessidade de se considerar a importância das zonas de transição em estudos que visam à conservação no longo prazo do manguezal e de sua capacidade de prote-ger a costa e a atmosfera. De acordo com o físico Joseph Harari, do IO-USP, o au-mento do nível do mar na costa brasileira está próximo da média mundial, cerca de 3 centímetros por década. É impossível generalizar uma previsão sobre o que acontecerá no futuro próximo diante de mudanças ambientais, que incluem fatores locais e globais. Mas uma coisa é certa: o manguezal não ficará parado. n

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fósseis de bagres sugerem que o rio

amazonas desaguava no norte da venezuela

e Colômbia há cerca de 2,5 milhões de anos

exemplares de espécies extintas de três gêneros de bagres encontra-das em áreas desérticas do noroes-te da América do Sul podem ser

uma evidência fóssil dos últimos tempos em que o ancestral do rio Amazonas ti-nha um curso muito diferente do atual: desaguava no Caribe. Os vestígios dessas antigas formas de peixes de água doce foram achados em rochas sedimentares das formações geológicas La Victoria, Villavieja, Urumaco, Castilletes e San Gregorio, no norte da Colômbia e Vene-zuela. Hoje essa zona é árida, não tem rios e a localidade andina exibe altitude de até 3.300 metros. Segundo um artigo publicado em setembro de 2013 na revista Plos One, os bagres faziam parte da fauna de um proto-Amazonas que cortava áreas que agora fazem parte do território des-ses dois países e apresentam semelhanças anatômicas com espécies vivas de peixes da bacia amazônica.

Até por volta de 2,5 milhões de anos atrás, o embrião do hoje maior rio do mun-do tinha um braço que nascia no meio da Amazônia e corria para o oeste do conti-nente, onde se juntava com outro trecho que fluía para o norte da América do Sul

paLeONtOLOgia y

Passagem para o caribe

(ver mapa). De acordo com essa hipóte-se, esse segundo braço, que rumava para a porção mais setentrional do continente, atravessava a região entre a bacia de Mara-caibo, na Venezuela, e o rio Magdalena, na Colômbia, e desaguava no sul do Caribe. “O Amazonas parecia um grande pânta-no, com um fluxo lento de água”, afirma o paleontólogo venezuelano Orangel Agui-lera, da Universidade Federal Fluminense (UFF), principal autor do estudo. “A bio-diversidade da região, como a conhecemos hoje, ainda não tinha surgido.”

O rio só teria conseguido mudar seu trajeto, perder seu braço que ia para o norte e passar a correr para o leste, co-mo é seu curso atual, após o fim do lon-go processo de soerguimento da porção mais setentrional dos Andes. A consolida-ção da grande cadeia de montanhas teria empurrado as águas do Amazonas para longe de sua porção caribenha, que seca-ria para sempre e se tornaria uma zona árida, e feito o fluxo do rio romper bar-reiras que impediam seu acesso à parte centro-oriental da Amazônia brasileira. Dessa forma, o novo trajeto do Amazonas no sentido leste teria se tornado suficien-temente forte para ultrapassar duas áreas

marcadas por baixas elevações naturais e abrir seu leito rumo ao Atlântico.

Para o americano John Lundberg, curador da seção de ictiologia da Acade-mia Natural de Ciências da Universidade Drexel, da Filadélfia, os fósseis de bagres resgatados na Colômbia e na Venezuela reforçam a ideia de que a desembocadura do Amazonas foi, no passado remoto, o noroeste do continente sul-americano. Segundo ele, os geólogos suspeitam, des-de os anos 1950, que houve uma grande paleoconexão entre o Amazonas ociden-tal e o Orinoco, o maior rio venezuelano,

1 região árida de urumaco, na venezuela

2 fósseis dos bagres do proto-amazonas

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marcos Pivetta

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posta ousada para essa polêmica. Basea-dos na idade estimada dos sedimentos em que foram encontrados os fósseis de bagre, os pesquisadores sustentam que o Amazonas reverteu seu curso mais tar-diamente do que outros autores afirmam. Para o pesquisador da UFF, o Amazonas deixou de banhar a região entre a bacia de Maracaibo e o rio Magdalena somente entre o final da época geológica denomi-nada Plioceno e o início do Pleistoceno, há cerca de 2,5 milhões de anos. Boa par-te dos trabalhos sobre o tema costuma situar o desaparecimento dessa conexão caribenha entre 12 e 8 milhões de anos atrás, quando a elevação dos Andes na Venezuela e Colômbia entrava em seu momento derradeiro. A ascensão final da grande cadeia montanhosa teria rearran-jado o sistema de drenagem no noroeste do continente, cortado o braço seten-trional do Amazonas e pavimentado seu caminho para o leste. Aguilera também acredita que isso tenha ocorrido, só que mais tardiamente do que se supunha.

Estudiosa dos paleorrios da Amazô-nia, a geóloga Dilce Rossetti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), considera válida e coerente a hipótese

defendida no trabalho publicado na Plos. Mas afirma que a origem do curso atual do Amazonas é um tema complexo, ainda sem dados definitivos e incontestáveis. “Não há consenso nem de que o Amazo-nas corria para o norte no passado”, diz Dilce. A existência de fósseis de bagres amazônicos não significa necessariamen-te que o rio esteve ligado ao noroeste da América do Sul até esse período.

A conexão com o norte da Venezuela e Colômbia pode ter desaparecido antes dos 2,5 milhões de anos atrás e deixado como resquício uma pequena bacia local, já desmembrada do grande rio Amazonas. De acordo com essa interpretação, os no-vos fósseis de bagres descobertos seriam então remanescentes dessa bacia secun-dária e independente, que, com o tempo, desapareceu e deu lugar a uma paisagem desértica – e não diretamente das águas de um proto-Amazonas que corriam para o norte do continente. n

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artigo científico

aguiLera, O. et al. palaeontological evidence for the last temporal occurrence of the ancient western amazonian river outflow into the Caribbean. PLoS oNe. 13 set. 2013.

caminhos do rioos dois supostos braços do Amazonas, um deles desaguando no Caribe

que desaguava no Caribe. “Também são bem conhecidas as relações de parentes-co entre muitos peixes, répteis e mamífe-ros aquáticos que hoje vivem nas bacias dos rios Amazonas, Orinoco, Magdale-na e Maracaibo”, diz Lundberg, autor que também assina o trabalho na Plos. “Elas sugerem que havia interconexões fluviais antes da ascensão dos Andes na Colômbia e na Venezuela.”

PolÊmicaEmbora venha ganhando evidências e adeptos na comunidade científica nas úl-timas décadas, a hipótese de que o antigo Amazonas fluiu para o norte e teve foz caribenha permanece polêmica. Há quem acredite que o rio nunca tenha seguido um curso assim. Mesmo entre os defensores da ideia de que existiu uma conexão entre o proto-Amazonas e o noroeste da América do Sul, uma questão permanece sem uma resposta definitiva: até quando essa passa-gem para o Caribe se manteve aberta? O momento em que o rio começou a correr para o Atlântico é uma espécie de atestado de nascimento do Amazonas atual.

O trabalho recente capitaneado por Aguilera e Lundberg fornece uma res-

andes

Direção do curso d'água

proto-amazonas

amazonas atual

fonte aDaptaDO De LuNDberg et aL 1998

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brasileiros ajudam a testar teoria sobre a previsão

e o controle de crises financeiras globais

domadores de catástrofes

As piores crises, os piores aci-dentes, as piores catástrofes naturais e humanas são as que mais causam surpresa. Parece que quanto mais in-

tenso o evento – de um tsunâmi devas-tador a uma guerra mundial – mais im-previsível e incontrolável ele é. No entan-to, o físico e economista francês Didier Sornette, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH), acredita no contrário. Depois de duas décadas comparando a frequência e a intensida-de de situações extremas observadas em áreas tão distintas quanto a economia e a geologia, Sornette está convencido de que, embora a sociedade e a natureza sejam complexas demais para permitir prever muitos dos eventos extremos, jus-tamente os piores desses eventos, cha-mados por ele de dragon kings (dragões reis), teriam características únicas que permitiriam antecipá-los e evitá-los. Em uma palestra na conferência TED Global, realizada em junho do ano passado em Edimburgo, Escócia, Sornette afirmou que aplicar a teoria dos dragon kings na regulação do mercado financeiro poderia evitar crises econômicas como a que se

iniciou em 2007 e causou prejuízos de centenas de bilhões de dólares nas bolsas de valores norte-americanas – até 2008 a perda no produto interno bruto global havia alcançado US$ 5 trilhões.

Embora sua teoria seja pouco aceita pelos economistas, as ideias de Sornette têm sido adotadas por pesquisadores de outras áreas, que já encontraram evidên-cias de eventos do tipo dragon kings, e de sinais que os precedem nas ciências naturais, na medicina e na engenharia. A prova mais conclusiva já observada foi divulgada no final do ano passado. Uma equipe internacional de físicos, liderada por pesquisadores da Universidade Fe-deral da Paraíba (UFPB) e integrada por Sornette, conseguiu pela primeira vez gerar, observar, prever e eliminar dra-gon kings em experimentos totalmente controlados em laboratório.

Na Paraíba, os pesquisadores brasi-leiros construíram um aparelho capaz de gerar oscilações elétricas caóticas e desenvolveram técnicas que permi-tiram manipular essas oscilações. Eles esperam que estratégias semelhantes às usadas no experimento sejam úteis no controle de eventos extremos em geral.

igor zolnerkevic

“Desenvolvemos um sistema eletrônico, relativamente fácil de construir, com o qual testamos experimentalmente as hipóteses do Sornette”, explica o físico Hugo Cavalcante, da UFPB, primeiro au-tor do estudo, publicado em novembro de 2013 na Physical Review letters. O segundo autor do artigo, o físico Marcos Oriá, da mesma universidade, acrescenta que o resultado “abre uma perspectiva de que se torne possível identificar e an-tecipar situações extremas em sistemas complexos, como o mercado financeiro ou o clima do planeta”.

Especialista em óptica e em física atô-mica, Oriá se interessava havia tempos por situações em que equipamentos de laser relativamente simples geravam comportamentos caóticos, semelhan-tes aos de sistemas mais complexos co-mo o mercado financeiro. Mas Oriá so-mente se aprofundou no assunto após a chegada de Cavalcante à UFPB em 2011. Cavalcante passara três anos e meio na Universidade Duke, nos Estados Unidos, trabalhando no laboratório do físico Da-niel Gauthier, que ganhou notoriedade nos anos 1990 pesquisando a sincroni-zação de sistemas caóticos.

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Para estudar os fenô-menos da teoria do caos, Gauthier projetou circui-tos eletrônicos simples, do tamanho de cartões de crédito, nos quais era pos-sível fazer oscilar tanto a corrente elétrica quanto a voltagem de maneira aleatória e imprevisível. O comportamento desses osciladores eletrônicos é descrito por equações matemáticas simples e bem definidas, mas as oscilações são extre-mamente sensíveis a pequenas mudan-ças. Por essa razão, uma pequena inter-ferência eletrônica no início da operação do oscilador pode alterar completamen-te o seu comportamento posterior. Na prática, essa característica impede que se obtenham previsões precisas dos va-lores que a corrente e a voltagem podem alcançar depois do início do experimen-to. Mesmo assim, Gauthier descobriu como conectar dois desses osciladores, de modo que um deles, o mestre, oscilas-se de maneira livre e caótica, enquanto o outro, o escravo, seguia o mestre de modo sincronizado.

sincronia caÓticaDependendo de como os osciladores mestre e escravo eram acionados, porém, a sincronia entre eles podia desaparecer momentaneamente, para ser retomada em seguida, em uma série de eventos aleatórios breves que Gauthier chamou

de borbulhamento. Gauthier, Cavalcante e Oriá notaram que, na maioria desses eventos de dessincronização, a diferen-ça entre as correntes e as voltagens dos dois osciladores era pequena. Mas per-ceberam também que, em alguns poucos eventos, essa diferença aumentava muito.

Eles, então, buscaram uma relação en-tre o número de borbulhamentos (fre-quência) e a magnitude que alcançavam. Concluíram que, na maioria das vezes, a frequência era proporcional à magni-tude elevada a um expoente cujo valor era comum a todos os eventos. Essa rela-ção matemática é conhecida como lei de potência. Em um gráfico especialmente desenhado para acomodar números de várias ordens de grandeza, uma lei de potência assume a forma de uma simples linha reta (ver gráfico no alto).

Por onde quer que olhem, seja na na-tureza, seja na sociedade, os físicos cos-tumam encontrar fenômenos oscilatórios com frequência e magnitude que obede-cem leis de potência. São situações que vão da flutuação de ações de uma bolsa

de valores à ocorrência de terremotos ou à propagação de sinais elétricos no cérebro humano. As similaridades entre fenômenos que acontecem em situações tão distintas levaram os pesquisadores a batizar os sistemas em que eles ocorrem como sistemas complexos. Cada um des-ses fenômenos tem um grande número de componentes – pense, por exemplo, nos agentes de um mercado comprando e vendendo ações ou nos neurônios do cérebro realizando sinapses – e funcio-na de um modo muito característico: as partes interagem de maneira quase alea-tória, mas a soma dessas interações pode gerar regularidades espantosas como as leis de potência.

E, para os físicos, o fato de um fenôme-no se comportar segundo uma lei de po-tência pode significar muita coisa. É que, de acordo com essa lei, todas as manifes-tações de um fenômeno – no caso do ex-

perimento da Paraíba, as oscilações de volta-gem e corrente – são provocadas por uma mesma causa. Isso significa, por exem-plo, que as origens de um grande terremoto são qualitativamen-te as mesmas que as de um pequeno abalo

sísmico. A única distinção entre os even-tos é sua magnitude ou tamanho. “Como não se sabe de antemão se a magnitude de um evento será grande ou pequena”, explica Oriá, “disseminou-se a ideia de que todos os sistemas complexos são in-trinsecamente imprevisíveis”.

Físicos que aplicaram essa ideia ao es-tudo do mercado financeiro – fundando uma disciplina conhecida como econofí-sica – chegaram à conclusão de que gran-des flutuações nos preços não precisam ser causadas necessariamente por uma grande mudança político-econômica. Muitas vezes, uma crise financeira pode se originar como uma flutuação de pre-ço normal que, por acaso, toma grandes proporções. Crises financeiras, portan-to, seriam inevitáveis. “Essa é uma visão particularmente pessimista e até perigo-sa, já que promove uma atitude de irres-ponsabilidade”, defende Sornette, que vem alertando seus colegas físicos des-de os anos 1990 para o fato de que nem todas oscilações financeiras seguem leis de potência, especialmente as maiores.

fora do ritmográfico mostra a relação entre o número de vezes que as voltagens e as correntes de dois osciladores diferem e a magnitude da diferença

teoria de físico francês sugere que bolhas no mercado financeiro podem ser percebidas com antecedência

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O que Sornette falou do mercado fi-nanceiro Gauthier e os dois colegas bra-sileiros observaram com os osciladores caóticos. De modo geral, os eventos de dessincronização até seguiam uma lei de potência. Mas os eventos mais extremos transgrediam a lei, acontecendo numa frequência muito maior. Esses eventos de-senhavam um pico proeminente em uma das extremidades dos gráficos, para o qual os pesquisadores não tinham explicação.

foras da leiGauthier, Cavalcante e Oriá, no entanto, logo se deram conta de que os eventos de dessincronização extremos se encaixa-vam perfeitamente na definição do que Sornette chama de dragon kings: são os eventos mais extremos que podem acon-tecer em um sistema complexo e que ocorrem em uma frequência muito maior que a esperada pela lei de potência, que rege os demais eventos do sistema.

A ideia de que o surgimento de dragon kings seria mais previsível e controlável do que outros eventos extremos nasceu com a primeira aplicação bem-sucedida da teoria de Sornette: a prevenção da rup-tura da fuselagem dos foguetes Ariane, usados pela Agência Espacial Europeia. Durante os lançamentos, engenheiros registravam com sensores acústicos va-riações de ruído causadas por estresse na estrutura do foguete. Ao analisar esses dados, Sornette observou que o baru-lho dos eventos de ruptura aparecia em seus gráficos como dragon kings. A partir daí ele e seus colaboradores descobri-ram como detectar na série de emissões acústicas do foguete os sinais iniciais do desenvolvimento dessas rupturas e co-mo usá-los para prevenir os acidentes.

Em seguida, Sornette adaptou seu mé-todo, usado até hoje nos lançamentos do foguete, ao monitoramento da economia, em busca de sinais precursores do estouro de bolhas financeiras. Há cinco anos ele coordena o Observatório de Crises Finan-ceiras da ETH, um projeto que monitora os preços de milhares de ações negociadas em diversas bolsas de valores, inclusive na brasileira Bovespa. Uma bolha sempre começa em uma atmosfera de otimismo, em que ocorre uma supervalorização dos bens negociados. Sornette acredita que a melhor maneira de prever a chegada de uma bolha é procurar sinais de que os preços e demais índices financeiros do mercado estão passando por aquilo que

ele chama de crescimento superexponen-cial. É quando, por exemplo, um investi-mento que em um mês rende 10% passa a oferecer o dobro no mês seguinte (20%) e o dobro do dobro (40%) dois meses mais tarde. Embora pareça óbvio que esse cres-cimento não pode durar para sempre, no calor dos negócios os investidores ten-dem a apresentar um comportamento de rebanho: ansiosos por lucrar com as oportunidades que todos a sua volta pa-recem estar aproveitando, eles – às vezes, até os mais cautelosos – se deixam levar pela euforia. Em algum momento, porém, quando a artificialidade da situação se torna insustentável, os preços despen-cam, levando a uma desvalorização em cascata em toda a economia.

Em seu observatório, Sornette e sua equipe detectam crescimentos superex-ponenciais nos índices monitorados e analisam sua evolução. O objetivo é ob-ter informações que permitam prever o instante crítico em que o crescimento é substituído por um novo regime – de queda ou estagnação. Sornette afirma detectar o surgimento de bolhas de ta-manhos variados e ser capaz de estimar quando elas têm mais chance de estou-rar. Um exemplo é a bolha do milagre econômico chinês, em que as ações do país cresceram 300% em poucos anos. Em setembro de 2007, durante uma con-ferência para investidores, Sornette os alertou de que uma mudança de regime estava prestes a ocorrer. A maioria não im

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osciladores alcançaram aqueles

valores. Depois de funcionar

por certo tempo, os osciladores

desenham esta figura fractal,

em forma de borboleta,

chamada atrator estranho

dRAgon kingSO gráfico ao lado mostra

o tamanho (magnitude) dos

eventos de dessincronização

e a frequência com que

ocorreram. tanto os eventos

de dessincronização de

magnitude pequena quanto

os de magnitude máxima, os

dragon kings, ocorreram com

frequência intermediária

(cor verde)

DRAGON

kINGS

fonte CavaLCaNte, h. ET AL. prL - 2013

frequência

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48 z fevereiro De 2014

em pânico: observadores acompanham

queda de ações da bolsa de hong Kong

na crise de 1997 JON

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deu ouvidos, confiando que o governo chinês faria de tudo para manter o cres-cimento, com os preparativos para os Jogos Olímpicos de Pequim, que acon-teceriam no ano seguinte. Três semanas depois da conferência o mercado chinês começou a despencar, até perder 70% de seu valor no fim de 2007.

De fato, a frequência e a magnitude das variações dos mercados globais dos últimos 30 anos se comportam segundo uma lei de potência, com alguns pontos extremos fora da curva, representando as piores crises financeiras do período, como a “segunda-feira negra” de 1987, quando o índice Dow Jones desvalori-zou US$ 500 bilhões em um único dia, e a recessão global de 2007 e 2008, de-sencadeada por uma crise no mercado imobiliário norte-americano. Para Sor-nette, essas crises seriam dragon kings, causados por uma série de políticas de facilitação excessiva da expansão de crédito pelos bancos centrais de todo o mundo, que reforçaria crescimentos superexponenciais e outros mecanismos pelos quais dragon kings podem surgir.

atratores estranhosAlém do crescimento superexponencial, Sornette explica que já identificou três outros mecanismos dinâmicos de forma-ção de dragon kings. Um deles é o fenô-meno do borbulhamento, observado em detalhe pela primeira vez no par de osci-ladores construído por Cavalcante e Oriá.

Os pesquisadores contaram com um modelo teórico desenvolvido pelo físico Edward Ott, da Universidade de Mary-land, Estados Unidos, outro especialista no comportamento caótico de sistemas eletrônicos, para entender como os dra-gon kings se formavam nos osciladores e o que exatamente fazia com que esses even-tos de dessincronização extrema cresces-sem muito mais que os demais eventos.

De trabalhos anteriores de Gauthier e Ott, os pesquisadores já sabiam que as oscilações caóticas desses circuitos eletrônicos desenham em um espaço abstrato, onde a largura, a altura e o com-primento representam propriedades que

caracterizam o par de osciladores em certo instante, uma figura de linhas in-finitas conhecida como atrator estranho.

Quando em sincronia, as oscilações caóticas dos dois circuitos, apesar de er-ráticas, permanecem restritas às linhas que compõem o atrator estranho, cuja forma lembra um par de asas de borbole-ta. “Descobrimos, no entanto, que existe um ponto específico do atrator com uma instabilidade tão forte que domina a di-nâmica do sistema”, explica Cavalcante.

Esse ponto de forte instabilidade, lo-calizado na junção das asas de borboleta, é o responsável por todos os eventos de dessincronização. Quanto mais os valo-res de oscilação dos circuitos se aproxi-mam desse ponto, maior a chance de a trajetória que descreve o sistema saltar momentaneamente para fora do plano do atrator. Quanto maior o salto, maior a dessincronização entre os osciladores. A maioria das aproximações do ponto de instabilidade provoca as dessincroniza-ções descritas por uma lei de potência. Mas, em circunstâncias especiais, quan-do a trajetória se aproxima demais do ponto instável, ruídos eletrônicos e pe-quenas diferenças entre os componentes dos circuitos podem ser amplificados até gerarem os dragon kings.

“A diferença entre os eventos da lei de potência e os dragon kings é complicada e ainda estamos tentando entender os

detalhes”, diz Cavalcante. Mesmo assim a compreensão qualitativa da diferença entre os dois tipos de dessincronização já permitiu aos pesquisadores identificar certa combinação de voltagens e corren-tes dos osciladores cujo valor serve como um alarme contra dragon kings. Nos tes-tes feitos na UFPB, quando essa variável alcançava um valor limite, sinalizando que um dragon kings estava prestes a se formar, os pesquisadores realizavam uma pequena intervenção na eletrônica dos osciladores. Como resultado, conseguiam manter a trajetória do sistema no plano do atrator, impedindo a dessincronização extrema. Assim, os dragon kings desapa-reciam completamente (ver gráficos na página 53) “Essa intervenção pequena era aplicada em apenas 1,5% do tempo de operação dos osciladores e era 100% eficaz”, diz Cavalcante.

ovos de draGãoEmbora o sucesso do experimento em-polgue, os pesquisadores têm noção da distância gigantesca que existe entre a complexidade de um par de osciladores eletrônicos e um mercado financeiro. “Aplicar esse procedimento a sistemas reais não é trivial”, comenta o econo-mista Daniel Cajueiro, da Universidade de Brasília. Ele, que tem experiência na aplicação de modelos da física em econo-mia e já colaborou com o Banco Central,

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artigo científico

CavaLCaNte, h.L.D.s. et al. predictability and suppres-sion of extreme events in a chaotic system. Physical review letters. v. 111, n. 19. 4 nov. 2013.

não são os únicos capazes de fazer isso. Existe uma vasta literatura em econo-metria, segundo ele, discutindo modelos estocásticos capazes de incorporar mu-danças determinísticas ou estocásticas. Esses modelos, chamados modelos de mudança markoviana, podem ter dife-rentes regimes, sendo que um deles po-de descrever uma crise. Esses modelos permitem quantificar as probabilidades de o mercado entrar e sair do regime de crise, ajudando, assim, a prever bolhas.

Embora considere que a teoria de Sor-nette tem muitos méritos, Cajueiro aponta pelo menos duas dificuldades para tornar viável o controle desses sistemas comple-xos. A primeira é que, diferentemente do experimento de Calvancante e Oriá, em que a estatística dos eventos extremos foi identificada pela tomada de milhões de dados, as crises financeiras não são tão frequentes assim. “Nesse caso, seria neces-sário construir um modelo para o sistema fora da normalidade a partir de uma amos-tra pequena de eventos”, explica Cajueiro.

modelos teóricos que preveem comportamento do mercado financeiro são de difícil implementação, por questões práticas e até éticas

E ainda que um modelo inspire con-fiança suficiente para ser adotado, por exemplo, na regulação do mercado pelo Banco Central, pode ser que as interven-ções sugeridas pela teoria sejam simples-mente impossíveis de ser implementadas, por questões práticas e até éticas. “Pouco se sabe qual seria a resposta dos agentes econômicos a uma intervenção e o que ocorreria se esses agentes antecipassem a resposta do Banco Central”, diz Cajuei-ro. Como o mercado financeiro não é um sistema isolado, uma mudança feita para impedir a formação de uma bolha po-deria ter consequências inesperadas em variáveis como inflação, taxas de câmbio e desemprego.

Além disso, o próprio Sornette reco-nhece que as bolhas financeiras têm seu lado positivo. Quando movidas por au-mentos reais na produtividade, conse-quência da descoberta de novas fontes de recursos ou de inovações tecnológicas promissoras, elas fomentam um clima de otimismo que toma conta das atividades econômicas, levando a sociedade a assu-mir riscos e a alcançar sucessos que se-riam impossíveis de outra forma.

O modelo da UFPB pode ajudar a tes-tar métodos de intervenções mais rea-listas, que levem em conta a fascinação pelas bolhas e a resistência da socieda-de de interromper o crescimento delas antes de um colapso. “O que fizemos até agora nos osciladores foi usar um méto-do de controle ótimo, que mata os dragon kings  ainda nos ovos, antes de nascerem e crescerem”, explica Sornette. “Pode-mos usar esse sistema para estudar ou-tras intervenções, mais atrasadas e limi-tadas, de maneira a quantificar os custos e as consequências de nossas ações.” n

diz que, por ora, “esse trabalho pode ser tomado como ponto de partida para uma nova linha de pesquisa”.

A esperança dos pesquisadores é que os mercados financeiros possam, ao me-nos em certas circunstâncias, se com-portar como um sistema de osciladores caóticos interligados. Os osciladores, no caso, seriam os agentes do mercado, comprando e vendendo. Suas decisões estariam ligadas por meio do comporta-mento de rebanho. Nesse cenário, uma crise poderia ser evitada identificando os pontos de instabilidade do atrator es-tranho do sistema e criando regras no mercado que impeçam que sua evolução passe muito perto deles.

“Trabalho com previsões e sei como é difícil fazê-las”, afirma o economista Pe-dro Valls, diretor do Centro de Estudos Quantitativos em Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. “Acreditar em regularidades é acreditar no determinístico, o que não faz sentido em economia, estatística e finanças.”

Valls acha pouco provável que a eco-nomia siga leis deterministas. Para ele, aliás, ocorre o contrário: a maioria dos modelos econométricos usados por pes-quisadores, governos e investidores são estocásticos, isto é, baseados em proba-bilidades determinadas por processos aleatórios. Sornette rebate afirmando que modelos estocásticos também po-dem exibir dragon kings e que o melhor método de previsão de bolhas financeiras seria um modelo híbrido, com compo-nentes determinísticos e estocásticos. O problema, segundo Sornette, é que muitos economistas insistem em acre-ditar que as soluções matemáticas dos modelos criados por eles deveriam valer o tempo todo. Já os modelos de Sornette, argumenta o próprio físico, valem apenas em alguns momentos críticos, quando o sistema se torna momentaneamente determinístico e previsível. Valls nota, entretanto, que os modelos de Sornette

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a causa genética da síndrome de Richieri-Costa Pereira, uma rara doença que provoca anomalias craniofaciais e defeitos na formação das mãos e dos pés, acaba de ser determinada. Um grupo internacional de médicos

e geneticistas, coordenado por Maria Rita Passos-Bueno, do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), identificou em 17 pacientes com a síndrome um tipo de mutação presente nos dois alelos (cópias) do gene EIF4A3, localizado no cromos-somo 17. A alteração se caracteriza pelo excesso de repetições de um trecho do gene rico nos nucleotídeos C (citosina) e G (gua-nina), duas das quatro bases nitrogenadas que formam o DNA.

A mutação foi descrita em um artigo científico publicado em 2 de janeiro na revista american Journal of Human Gene-tics (aJHG). Também nesse dia e na mesma revista científica, outra equipe da USP assinou um segundo trabalho em que re-lata a descoberta de um defeito em um gene do cromossomo 3 responsável por desencadear uma forma pouco frequente de nanismo associado a problemas de visão (ver boxe na página 38). O CEGH-CEL é um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.

Os pesquisadores ainda não sabem como a mutação afeta o comportamento do gene, ligado ao metabolismo de RNA, e

brasileiros descobrem gene responsável

pelo surgimento de síndrome rara que causa

malformação da mandíbula e da laringe

geNétiCa y

Uma mutação,vários defeitos

50 z fevereiro De 2014

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da laringe. Os ossos que normalmente se fun-dem para formar a mandíbula, que apresenta um formato em U, não chegam a se unir nos in-divíduos com a doença. “Em casos mais graves, os pacientes não conseguem respirar direito e é preciso fazer uma traqueostomia”, diz Ma-ria Rita. Os doentes têm dedos encurvados ou de menor tamanho, pés tortos e baixa estatura. Metade dos afetados pela síndrome também apresenta dificuldades de comunicação verbal e de aprendizado.

Antes da identificação da nova alteração ge-nética, os pesquisadores sabiam apenas que se tratava de uma doença de herança autossômica recessiva, cujo risco de transmissão aumenta quando ocorrem casamentos consanguíneos. Para desenvolver a síndrome, o paciente tem de carregar mutações em ambas as cópias do gene associado ao problema de saúde, uma vinda do pai e outra da mãe. Pessoas com apenas um gene de-feituoso não manifestam clinicamente a doença, mas podem passar a alteração molecular a seus descendentes. Filhos de casais em que tanto o il

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causa o surgimento da síndrome. Mas acreditam que ela possa levar à produção de uma menor quantidade da proteína associada ao EIF4A3. Esse gene foi parcialmente desativado em colônias de um peixe-modelo da biologia – conhecido como zebrafish ou paulistinha – e os descendentes que herdaram a modificação desenvolveram proble-mas de formação nos ossos craniofaciais compa-tíveis com a doença humana, uma evidência de que alterações no EIF4A3 podem desencadear o problema de saúde.

Descrita em 1992 pela equipe do médico An-tonio da Costa Pereira, do Hospital de Reabilita-ção de Anomalias Craniofaciais da USP de Bauru, mais conhecido como “Centrinho”, a síndrome foi descoberta em habitantes do Vale do Paraíba, no interior paulista. Os 20 pacientes diagnosticados com a doença no país – há um caso relatado no ex-terior – pertencem a 17 famílias da região. Embora formalmente não sejam aparentadas, as famílias provavelmente descendem de um único ancestral.

O traço mais característico da síndrome, que não tem cura, é a malformação da mandíbula e

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Pessoas com a síndrome apresentam de 14 a 16 cópias repetidas no trecho que regula o funcionamento do gene eif4a3

gênio) e em um terceiro à doença res-piratória conhecida como discinesia ciliar primária. Como nenhuma des-sas condições clínicas se assemelhava com a síndrome de Richieri-Costa Pereira, as atenções se voltaram para o quarto gene, o EIF4A3.

o ressequenciamento desse gene nos pacientes e a com-paração dos resultados com

a versão do EIF4A3 encontrada em 520 brasileiros sem a síndrome le-varam à localização da mutação. A alteração se situa num pequeno trecho da sequência, composto de 18 a 20 nucleotídeos e rico nas ba-ses citosina e guanina, que regula o funcionamento do gene, denomi-nada região promotora no jargão da biologia molecular. As pessoas sem a doença têm de 3 a 12 cópias desse trecho do gene. Os pacientes apresentam de 14 a 16 re-petições do segmento.

A confirmação de que a mutação ocasiona a doença foi obtida por um experimento coorde-nado pela pesquisadora Nora Calcaterra, da Uni-versidade Nacional de Rosário, na Argentina, coautora do trabalho e colaboradora de Maria

Pequeno e com pouca visãoDefeito genético provoca uma forma de nanismo associada a problemas progressivos na retina

O gene responsável por uma forma muito rara de nanismo associado à perda progressiva da visão, denominada displasia espôndilo-metafisária com distrofia de cones e bastonetes, foi descoberto por pesquisadores da usp. Depois de sequenciar todos os segmentos do genoma responsáveis por codificarem proteínas de quatro pacientes brasileiros, oriundos de duas famílias, a equipe coordenada pela geneticista Débora bertola, do Cegh-CeL e também médica do instituto da Criança do hospital das Clínicas, encontrou duas mutações no gene pCyt1a, localizado no cromossomo 3. Os resultados do trabalho foram publicados no dia 2 de janeiro na revista científica American Journal of Human Genetics (AJHG).

Nessa mesma data, um grupo da prestigiada universidade Johns hopkins,

mutações nos dois alelos (cópias) do gene pCyt1a. alguns afetados não atingem altura superior a 1 metro na idade adulta. O nanismo decorre de alterações ósseas na coluna e nos membros inferiores, que são muito encurvados. Os pacientes apresentam ainda alterações em células da retina (os cones e bastonetes que fazem parte do nome da doença) que minam progressivamente sua visão. Não existe tratamento efetivo para evitar o avanço da doença. apenas cirurgias ortopédicas corretivas podem ser feitas de maneira paliativa.

foi uma surpresa o gene pCyt1a, que nunca tinha sido associado a qualquer doença genética, ser o alvo das mutações implicadas nessa displasia. “Num primeiro momento foi difícil associá-lo diretamente ao problema ósseo e de retina, uma vez que não havia descrição prévia de seu envolvimento

dos estados unidos, assinou outro artigo na publicação em que igualmente relata a identificação de outras mutações no gene pCyt1a, também capazes de provocar esse tipo de displasia. Os pesquisadores americanos usaram a mesma técnica de sequenciamento empregada pelos brasileiros e analisaram o material genético de três pacientes de diferentes países. “Os dois trabalhos foram feitos de forma independente e concomitante. são equivalentes”, compara Débora. “estamos orgulhosos. Nosso grupo utilizou a mesma tecnologia de ponta e chegou aos mesmos resultados tão rapidamente quanto um dos mais prestigiados centros de estudos de doenças genéticas dos estados unidos.”

até agora existem menos de 20 casos da doença em todo o mundo descritos na literatura científica. para que essa displasia se manifeste clinicamente, é preciso que o indivíduo carregue

pai como a mãe são portadores da mutação têm 25% de risco de serem afetados pela síndrome.

Encontrar a mutação associada à síndrome foi um processo demorado e complicado. Há anos os pesquisadores do Centrinho tentavam delimitar em que parte do material genético poderia estar a alteração molecular relacionada à doença. Um aluno do Centrinho chegou a passar uma tempo-rada nos Estados Unidos em busca do gene, mas não obteve sucesso. “A mutação deve ter uma ori-gem antiga e provavelmente a região comum entre os pacientes é muito pequena”, diz Maria Rita.

O cerco começou a se fechar depois que os pes-quisadores usaram uma grande quantidade de mar-cadores ao longo de todo o genoma, cerca de 500 mil marcadores do tipo SNP (sigla em inglês para single nucleotide polymorphism, ou polimorfismo de um único nucleotídeo). O termo designa as várias formas que um nucleotídeo pode assumir. Com a ajuda de programas de computador, compararam o material genético dos pacientes entre si e também com o de familiares saudáveis e chegaram em uma região de 122 mil bases do cromossomo 17. Esse segmento abrigava quatro genes que poderiam estar relacionados à causa da doença.

A repercussão clínica dos defeitos em três desses genes já era conhecida: mutações em um gene es-tavam ligadas à psoríase, em outro a uma forma de glicogenose (doença do armazenamento do glico-

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projetos1 investigation of the role of oxidative stress ND the CNbp protein in treacle-deficient mesenchymal stem-cells and in zebrafish models (fapesp-Conicet) (nº 2010/52446-4); modalidade Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa; Pesquisadora responsável Maria rita passos-bueno – usp; investimento r$ 12.708,67 (fapesp).2 Cegh-CeL - Centro de estudos do genoma humano e de Células-tronco (nº 13/08028-1); modalidade Centros de pesquisa, inovação e Difusão – Cepid; Pesquisadora responsável Mayana zatz – usp; investimento r$ 2.266.005,51 e us 940 mil por ano para todo o Cepid (fapesp).

artigo científicofavarO, f.p. et al. a noncoding expansion in eif4a3 causes richieri--Costa-pereira syndrome, a craniofacial disorder associated with limb defects. american Journal of human Genetics. v. 94, n. 1, p. 120-8. 2 jan. 2014.

artigo científicoyaMaMOtO, g.L. et al. Mutations in pCyt1a Cause spondylometaphyseal dysplasia with cone-rod dystro-phy. American Journal of Human Genetics. v. 94, n. 1, p. 113-9. 2 jan. 2014.fo

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radiografias de coluna vertebral, pelve, pernas, braço, antebraço e mãos: ossos encurtados e curvados e juntas proeminentes

em doenças humanas do metabolismo ósseo ou da formação da retina”, explica guilherme yamamoto, primeiro autor do estudo brasileiro. O gene codifica uma enzima que atua em uma via metabólica da formação da fosfatidilcolina, um fosfolipídio importante para o desenvolvimento das membranas celulares. “Nosso trabalho mostra apenas que o gene é o responsável pela doença. falta ainda demonstrar de que forma isso acontece”, afirma Débora. “para sabermos o real mecanismo de causalidade, estudos sobre como essa proteína funciona deverão ser realizados.”

Rita num projeto financiado pelo acordo de coo-peração FAPESP-Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas). Em seu laboratório, ela alterou temporariamente o fun-cionamento do gene EIF4A3 em colônias de ze-brafish, peixe cada vez mais usado como modelo biológico para estudar doenças humanas (ver reportagem de capa da edição 209 de Pesquisa FAPESP). “Usamos uma abordagem que leva à menor expressão do gene”, afirma Nora. “Mime-tizamos a síndrome ao diminuir a quantidade de RNA mensageiro (necessário para produzir a pro-teína associada ao EIF4A3) transcrito pelo gene.”

em seguida, a pesquisadora acompanhou o desenvolvimento das linhagens genetica-mente modificadas do peixe com o emprego

de microscopia de luz e registrou sua morfologia geral. Os paulistinhas alterados apresentaram malformações em suas cartilagens craniofaciais compatíveis com a síndrome registrada em hu-manos. Para comprovar que as alterações eram de fato causadas pela deficiência, Nora injetou RNA do EIF4A3 nos peixes. O procedimento equivale a restabelecer o funcionamento padrão do gene e permitiu o desenvolvimento normal das colônias de zebrafish.

Dessa maneira, ficou comprovado que a mu-tação identificada pelo centro da USP na região promotora do gene EIF4A3 é a principal respon-sável por ocasionar a síndrome. Principal, mas não a única. A equipe de Maria Rita identificou outro tipo de mutação nesse mesmo gene em um paciente que apresenta um quadro clínico mais brando da síndrome (a mandíbula se formou nor-malmente, mas ele apresenta alguns problemas anatômicos menos graves nos membros e na la-ringe). Também descrita no artigo científico, essa segunda alteração genética é de natureza distinta da anterior, mas parece ser suficiente para desen-cadear formas mais leves da doença. Sua desco-berta reforça a ideia de que o funcionamento do gene EIF4A3 é chave para o desenvolvimento da rara síndrome. n marcos Pivetta

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em são paulo e no

rio, dois compostos

que combatem a

ação do veneno de

abelhas passam

nos testes iniciais

biOquíMiCa y

Contra ferroadas

francisco bicudo e

ricardo zorzetto

Pesquisadores paulistas concluí-ram mais uma etapa da complexa tentativa de produzir um soro capaz de proteger o organismo

dos danos causados pelo veneno de abe-lhas. Em testes com células cultivadas em laboratório e em experimentos com camundongos, o bioquímico Mario Sér-gio Palma e seu grupo na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro demonstraram que o soro desenvolvido por eles evitou os danos mais frequentes das ferroadas. “Conseguimos neutralizar 95% dos efeitos nocivos do veneno nos camundongos avaliados”, diz Palma.

Nos testes os roedores tratados com o soro sobreviveram a doses elevadas de veneno, que em seres humanos equiva-leriam a centenas de ferroadas, como é comum nos acidentes graves. Nessas situações, o composto impediu a destrui-ção das células sanguíneas que transpor-tam oxigênio e gás carbônico, um dos efeitos iniciais do veneno. Composto por anticorpos extraídos do sangue de cava-

los, o soro evitou também os danos nas células musculares, uma das primeiras afetadas no envenenamento, e protegeu os rins, o fígado e o coração dos animais das lesões que surgem até 72 horas após o ataque de um enxame.

Esses resultados colocam o candidato brasileiro a soro em um estágio que apa-rentemente não havia sido alcançado por outros grupos – nos anos 1990, equipes da Inglaterra e dos Estados Unidos ini-ciaram o desenvolvimento de compostos a partir do sangue de ovelhas e de coe-lhos, mas os trabalhos não avançaram. Apesar do progresso recente, o caminho a ser percorrido até que o soro esteja disponível para o uso em seres humanos ainda é longo. “Precisamos desenvolver o processo de padronização do soro”, diz Ricardo Palacios, gerente de pesquisa e desenvolvimento clínico do Instituto Butantan, instituição que participa do desenvolvimento do soro.

Há cerca de dois anos o grupo de Palma iniciou uma parceria com o Butantan, um

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dos maiores produtores de soros e vacinas do país, e com colaboradores da Universi-dade de São Paulo (USP), da Universidade São Francisco e do Instituto Tecnológico do Paraná, para integrar todas as etapas de teste e produção. “Dominamos a pro-dução do soro para os testes em laborató-rio”, comenta a médica Fan Hui Wen, do Butantan. “O desafio agora é transpor da bancada para a escala industrial.”

Os pesquisadores do Butantan atual-mente estão repetindo os testes com cé-lulas cultivadas em laboratório e com ca-mundongos para confirmar a eficicácia e a segurança do composto. Na fazenda do Butantan, os cavalos que servirão como fábricas do soro para os próximos testes já começaram a ser selecionados e imu-nizados. Se tudo correr bem, espera-se iniciar os testes em seres humanos em dois anos. Será preciso também definir critérios para a administração do soro, de acordo com a gravidade dos sintomas. Segundo Fan, o soro deve, em princípio, funcionar apenas contra o veneno de abe-

lhas brasileiras, resultado do cruzamento de espécies europeias e africanas, e não para tratar alergias ou reações anafilá-ticas. “São manifestações distintas, que devem ser tratadas com estratégias dife-rentes.” Ela insiste: o soro servirá para os acidentes em que há ataques de enxames e múltiplas ferroadas – no Brasil ocorrem por ano 15 mil acidentes com abelhas, dos quais cerca de 750 são graves e, em tese, se beneficiariam do soro.

Mesmo que seja eficiente em humanos, o soro por si só não deve combater todos os efeitos do veneno. “O soro neutraliza a ação do veneno, ou seja, a causa dos da-nos”, explica Fan. “Por isso, quanto mais cedo for aplicado, menos veneno ativo haverá na circulação.” Mas, ela conclui, o soro não deve eliminar a necessidade do uso de anti-inflamatórios, antialérgicos e outros medicamentos para combater os danos já causados nos tecidos.

Proteção amPlaChegar até aqui não foi simples. Palma e sua equipe tiveram inicialmente de con-siderar as singularidades de composição do veneno da abelha. Era comum, nos estudos feitos até então, que se tentas-se imitar as características químicas do soro usado nas picadas de cobra. Os dois tipos de veneno, no entanto, têm finalida-des diferentes: o das cobras paralisa ou mata as presas que servirão de alimento, enquanto o das abelhas funciona como recurso de defesa ante a ameaça de um possível predador. Do mesmo modo, os efeitos de cada veneno são diferentes. “A ferroada da abelha não causa hemorragia nem gangrena”, conta Palma.

A tarefa seguinte foi identificar as mo-léculas ativas do veneno das abelhas e seus possíveis efeitos (inchaço, verme-lhidão, dores musculares). A partir daí se pôde fazer um soro de proteção am-pla, com anticorpos que neutralizassem cada proteína ou peptídeo (ver Pesquisa FAPESP nº 153).

Em paralelo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe de Paulo Melo observou que um medica-mento chamado suramina pode ajudar a bloquear efeitos do veneno de abelha. Desenvolvida há quase um século, a su-ramina combate algumas parasitoses e ameniza o efeito de picadas de serpen-te. Os testes na UFRJ foram realizados com culturas de células, tecidos isolados e posteriormente com camundongos, que receberam doses letais do veneno de abelha e, em seguida, a suramina. “Neutralizamos as lesões musculares e os edemas”, diz Melo. Ele acredita que a suramina sirva como complemento do soro desenvolvido pela Unesp e pe-lo Butantan ou como terapia isolada nos casos de alergia aos soros de ori-gem animal.

“Em estudos dessa natureza há sem-pre gargalos científicos, tecnológicos e regulatórios que precisam ser vencidos. Mas, se tudo der certo, o Brasil, que já é líder mundial na produção de vários soros, poderá se tornar referência tam-bém no tratamento dos acidentes com abelhas”, diz Jorge Kalil, diretor do Bu-tantan. Ele conta que o consórcio bra-sileiro que desenvolveu o soro contra o veneno de abelhas já foi procurado por uma empresa que pretende colocá-lo no mercado dos Estados Unidos, assim que estiver pronto e aprovado. n

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projetobiologia de sistemas como estratégia experimental para a descoberta de novos produtos naturais na fauna de artrópodes peçonhentos do estado de são paulo (nº 2011/51684-1); Modalidade projeto temático; Pesqui-sador responsável Mario sérgio palma – unesp; inves-timento r$ 2.207.081,76 (fapesp) e r$ 1.530.000,00 (CNpq e finep)

artigos científicossaNtOs, K.s. et al. production of the first effective hy-perimmune equine serum antivenom against africanized bees. Plos one. 13 nov. 2013.eL-KiK, C.z. et al. Neutralization of apis mellifera bee venom activities by suramin. toxicon. v. 1 (67), p. 55-62. 2013.

Como uma agulha: o ferrão, no final do

abdômen, é usado para injetar veneno quando

a abelha (Apis sp) se sente ameaçada

o soro, mesmo que seja eficiente em pessoas, não deve eliminar o uso de outros medicamentos para combater os efeitos do veneno

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56 z fevereiro De 2014

sabesp cria núcleo de tecnologia

e faz parcerias para desenvolver

novos produtos e sistemas

tecnoloGia saNeaMeNtO y

nas águas da inovação

marcos de oliveira

sab

esp

segunda empresa do mundo em número de clientes num mesmo país, a Companhia de Saneamento Bá-sico do Estado de São Paulo (Sabesp) só perde para a chinesa Beijing Enterprises Water Group. A empresa,

que fornece água para 363 municípios do estado de São Paulo, num total de 27,9 milhões de pessoas, começou em 2009 uma mudança no campo tecnológico. No ano seguinte foi criada a Superintendência de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação com o objetivo de gerar e prospectar tecnologia tanto para a própria companhia como para todo o setor de saneamento. “Existe uma carência específica para saneamen-to. Hoje muitas das tecnologias são apenas adaptadas para essa área”, diz a engenheira civil Cristina Zuffo, gerente do Departamento de Prospecção Tecnológica e Propriedade Intelectual da Sabesp.

“A nossa ideia é desenvolver novas tecnologias e induzir os fornecedores a atenderem o setor de saneamento com os pro-dutos gerados nesse processo”, diz Cristina. Até 2009, a em-presa tinha projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de

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PesQuisa faPesP 216 z 57

estação de tratamento de

água guaraú, na zona Norte de

são paulo

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forma tímida, sem estrutura no âmbito corporativo para esse fim. As iniciativas eram descentraliza-das e pontuais. O processo de criação do núcleo na Sabesp teve a assessoria do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp) num projeto coordenado pelo professor Sérgio Salles. Também foi realizado um estudo de prospecção tecnológica sobre sanea-mento em revistas especializadas e em bancos de artigos científicos, além de saber o que as empresas no Brasil e no mundo estão fazendo nesta área.

antes mesmo que o núcleo de tecnologia da empresa estivesse pronto a Sabesp fez um acordo de cooperação com a FAPESP

para apoiar projetos de pesquisa para a área de saneamento por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). O valor da primeira chamada que convi-dou os pesquisadores de instituições de pesquisa paulistas a apresentarem projetos foi de R$ 10 milhões, sendo R$ 5 milhões da Sabesp e R$ 5 milhões da Fundação. Das 49 propostas, 9 foram selecionadas dentro de temas escolhidos pela em-presa como economia no saneamento, eficiência energética, tratamento de esgotos, entre outros. Uma segunda chamada deve ter os projetos esco-lhidos anunciados nos próximos meses também no valor total de R$ 10 milhões.

Um dos temas previstos para os projetos é des-tinado a colaborar com um dos grandes desafios da empresa, a diminuição da perda de água, prin-cipalmente devido a rachaduras nas tubulações da rede de distribuição. A Sabesp em 2012 deixou

de ganhar 25,7 % a mais no faturamento com esse problema. Em 2013, até novembro, deixaram de ser contabilizados 31,4% de água, índice apurado na diferença entre os macromedidores, geralmen-te instalados na entrada de grandes reservatórios de distribuição, e os micromedidores, que são os hidrômetros residenciais ou comerciais. A compa-nhia estima que 66% das perdas foram principal-mente de vazamentos e os 34% restantes relativos a fraudes, falhas em medidores, usos sociais que consistem no fornecimento para favelas, dentre outros. O índice de desperdício atingiu 29,5% em 2007 e a previsão da empresa é de chegar a 13% em 2019, dentro dos padrões internacionais. Diminuir o desperdício é uma forma também de contribuir para o abastecimento em períodos de falta de chu-va, como aconteceu em janeiro deste ano na Região Metropolitana de São Paulo.

A detecção das perdas por vazamento pode ser mais bem diagnosticada para, além de melhorar o faturamento, contribuir para evitar a chamada escassez hídrica. Para a Região Metropolitana de São Paulo não sofrer desse problema, a empresa começará neste ano uma obra que vai trazer água da represa Cachoeira do França, no município de Ibiúna, a 70 quilômetros da capital.

Tradicionalmente, em todo o mundo, quando há suspeitas de vazamento, notado, por exemplo, com as diferenças de volume de água apurado nos reservatórios setoriais e o volume recebido pelos clientes, um funcionário vai até o local on-de existe a suspeita de vazamento munido de um geofone. O equipamento é formado por um sensor que, apoiado no chão, capta as vibrações do solo e depois envia para um amplificador e para um fo-

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os sons do vazamentoaparelho geofone conectado a um celular vai gravar os ruídos característicos de rupturas de tubulações

estação de tratamento de esgoto em barueri: despoluição é tema do núcleo de tecnologia da empresa

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ne de ouvido. Um técnico treinado para usar esse equipamento ouve os sons captados sob o piso de um quintal ou de uma rua, por exemplo, e se hou-ver um ruído que indique ruptura ou vazamento, uma equipe da companhia de saneamento vai até o local abrir o terreno e fazer o reparo.

“Se a água aflora à superfície, é mais fácil identifi-car o local, mas se for no interior do solo a água vai para o lençol freático. Com o geofone, a localização do vazamento depende da habilidade do operador, que deve ter em volta menos barulho possível. Por isso grande parte desses testes são feitos à noite”, diz Cristina. Mas como avançar nessa tarefa e dar maior precisão tanto ao trabalho de busca de va-zamentos como na garantia da necessidade do serviço de reparo? O professor Linilson Padove-se, do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo

(Poli-USP), apresentou como proposta a criação de um software que pudesse ajudar os técnicos e a empresa nessa área. Para isso, seria necessário ter um banco de sinais característicos dos proble-mas apresentados na rede de distribuição e que são conhecidos dos operadores do geofone. “Co-mo não havia esse banco de sinais gravados por-que os equipamentos disponíveis são analógicos, nós mudamos o foco no projeto para desenvolver primeiro um equipamento de coleta e gravação digital de sinais”, diz Padovese, que já tinha expe-riência anterior em sensoriamento vibroacústico em máquinas industriais e na aplicação de méto-dos de processamento de sinais para detecção de defeitos. “Decidimos criar um equipamento que permitisse digitalizar, gravar e georreferenciar os sons escutados pelos técnicos. Dessa forma, a em-presa poderá montar um banco de dados com os sinais digitais, todos marcados com a localização com GPS. Além disso, com a finalidade de baratear o equipamento e tornar a tecnologia mais simples e de fácil utilização, decidiu-se utilizar smartphones como plataforma de base do geofone.”

Padovese lembra que embora a escuta, feita por técnicos em campo, seja realizada mediante a uti-lização de filtros de sinais, a gravação digital é feita com o sinal bruto, sem nenhuma filtragem. Dessa forma os sinais poderão ser estudados e reproces-sados pelos técnicos da empresa, de maneira off--line, utilizando os filtros padrões ou outras técni-cas de processamento de sinais e reconhecimento de padrões que permitam melhorar o processo de diagnóstico. Com a formação do banco de dados, será possível num futuro próximo até o desenvol-vimento de softwares de diagnóstico automático, aumentando assim a eficiência do processo de pes-quisa de vazamentos na rede da Sabesp.

o ideal é diminuir a dependência da avalia-ção de apenas um técnico”, diz Padovese. “Para entender os problemas da empresa

nós conversamos com os técnicos, o que nos fez direcionar melhor o projeto.” O pesquisador conta que não foi possível, no âmbito do projeto atual, desenvolver um sensor do tipo geofone. Eles uti-lizam os sensores dos geofones encontrados no mercado. O hardware de condicionamento ana-lógico de sinais e digitalização foram desenvolvi-dos durante o projeto, além de um aplicativo para plataforma iPhone, da Apple. Os primeiros testes em campo devem começar ainda em fevereiro e vão se estender até julho. O projeto está sendo financiado pelo acordo FAPESP-Sabesp e já re-sultou em uma possível patente que está para ser depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Ela trata de uso do smartpho-ne em sistemas de geofone e outras modificações técnicas que eles implementaram para produzir e gravar os sinais digitais em campo.

transformar os sinais analógicos em digitais e montar um banco de dados com ruídos obtidos pelo geofone

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Outro produto inovador que deve sair dos pro-jetos entre a Sabesp e a Poli-USP financiados pela FAPESP é um microlaboratório eletrônico para medir em tempo real a quantidade de fósforo na água, seja de mananciais ou de estações de trata-mento. “O fósforo é um nutriente e sua presença em grande quantidade nos locais de captação de água indica a presença de carga orgânica – pos-sivelmente de esgotos, muitas vezes clandesti-nos”, diz Cristina. O fósforo funciona como um nutriente para as algas. O monitoramento des-sas espécies precisa ser feito com regularidade porque a alta proliferação pode prejudicar o tra-tamento de água potável e trazer prejuízos para a empresa. Atualmente, o monitoramento dos mananciais demora muito tempo. É preciso co-lher amostras de água, muitas vezes com barcos, e levá-las para serem analisadas em laboratório. “Isso demora muito”, diz Cristina.

o que o grupo do professor Antônio Carlos Seabra, do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Poli, propôs

foi um monitoramento autônomo e em tempo real com um equipamento do tamanho de um cartão de crédito preso a uma boia. Baseado nos sistemas de tecnologia lab on a chip, o sistema é uma tendência atual de pesquisa de análises quí-micas e clínicas, em que se faz a miniaturização de equipamentos com utilização de menos amos-tras e reagentes. “Transferimos o laboratório para um cartão do tamanho próximo ao de crédito e

um pouco mais espesso”, diz Seabra, que contou também no projeto com a colaboração do grupo da professora Dione Morita, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli. “Utilizamos técnicas de microfabricação e co-nhecimento de análises químicas”, diz Seabra.

O dispositivo possui microcanais em seu in-terior por onde a água e os reagentes percorrem até chegar a um ponto dentro do cartão onde um conjunto de LEDs ilumina a amostra e a luz trans-mitida é captada por um sensor. “Por exemplo, uma determinada reação pode gerar uma colo-ração azul e, conforme a intensidade da cor, é possível analisar a quantidade de fósforo”, ex-plica Seabra. O trabalho do sensor é preparar a amostra, combiná-la com reagentes e analisar a intensidade luminosa em um comprimento de onda absorvido por moléculas específicas da rea-ção. A entrada de água e de reagentes é controlada por microbombas e microválvulas que captam o líquido do ambiente. O dispositivo também expe-le a amostra e faz a própria limpeza do sistema. “Deveremos disponibilizar o aparelho para fazer medições de hora em hora conforme demanda da Sabesp”, diz Seabra. O microlaboratório pode ser instalado em uma boia ou em uma base na esta-ção de tratamento. As informações colhidas são repassadas aos técnicos da empresa por sistemas wireless. Na boia também existe um recipiente que armazena os reagentes injetados no aparelho.

“Estamos empenhados agora em fazer um pro-tótipo que vamos entregar à Sabesp para os pri-

miniaturização do laboratóriosensor vai informar de hora em hora a quantidade de fósforo existente na água

fonte aNtôNiO CarLOs seabra / pOLi-usp

antena Wi-fi

boia dados

dadoscabo conectado ao laboratório

Controla a saída da amostra de água

bombatem a função de coletar a quantidade de água necessária para o teste

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bateria para funcionamento do sensor

LeDs iluminam a amostra de água e a luz transmitida é analisada pelo detector

Detector lê as ondas de luz emitidas na célula de fluxo e gera informações que serão enviadas ao computador para serem decodificadas

Mistura água e reagentes

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meiros testes em campo e também diminuir a quantidade de amostra usada no aparelho. Hoje utilizamos 800 microlitros [medida relativa à milionésima parte do litro] e acreditamos que possamos atingir os 20 microlitros”, diz Seabra. A menor utilização de amostra reflete também na diminuição da quantidade de reagentes e con-sequentemente de custos operacionais.

P ara fazer o corpo do microlaboratório os pesquisadores utilizam uma cerâmica ma-leável que lembra um plástico. Depois de vá-

rias camadas prensadas ela se torna rígida. A con-fecção dos canais é feita com uma máquina a laser comprada dentro do projeto FAPESP-Sabesp por US$ 250 mil. “A largura dos canais precisa ter uma perfeição de menos de 0,1 milí-metro”, diz Seabra. “Queremos passar à empresa um produto reprodutível industrialmente e confiável.” Pelo menos uma patente já está certa para de-pósito no INPI. É a integração do microssensor de pH da água que teve uma solução inédita de adaptação no fluxo interno do microlaboratório.

As patentes pela USP são feitas em conjunto com a Sabesp e FA-PESP com a titularidade dividida entre as três instituições. Várias possibilidades cercam o destino dessas novas tecnologias. Elas po-dem ser licenciadas ou vendidas para empresas já estabelecidas no setor ou gerar novas empresas start-ups. A Sabesp pode também montar até uma outra empresa para produção e venda do equi-pamento. “O importante é desen-

volver o mercado de produtos para saneamento no país”, diz Cristina.

Um dispositivo desenvolvido pelos engenhei-ros do núcleo de tecnologia da empresa que deve integrar o portfólio de produtos inovadores é um biofiltro para purificar o gás emanado das esta-ções de tratamento de esgoto (ETE) e estações elevatórias de esgotos, responsável por um odor ruim e prejudicial aos moradores do entorno dessa unidade. “Ele foi feito com materiais recicláveis e sem consumo de produtos químicos”, conta Cris-tina. O biofiltro é composto de turfa formada por restos vegetais, madeira e casca de coco, além de uma camada de brita. Ele é instalado dentro de um contêiner onde recebe o gás por meio de du-tos. A aspersão de água no interior do contêiner

faz com que bactérias presentes nos materiais oxidem o gás. Um protótipo está em funcionamen-to em fase de testes já com bons resultados na ETE do bairro de São Miguel Paulista, na capital. “Está praticamente pronto para uso e alguém terá que produzi-lo em escala”, diz Cristina.

A guinada tecnológica da em-presa tem também como meta a expansão dos negócios e partici-pação na área de saneamento não somente no Brasil, mas no exte-rior. Empresa de economia mista, a Sabesp tem 50,3% de suas ações em poder do governo estadual paulista e o restante pulverizado no mercado de ações nas bolsas de valores de São Paulo e de Nova York, nos Estados Unidos. A re-ceita líquida em 2012 foi R$ 10,7 bilhões com 7,7 milhões de liga-ções de água e 68 mil quilômetros de redes de distribuição de água e 46 mil de esgoto. A companhia já tem uma base de operações no Panamá e em alguns países da América Central, aonde quer le-var o conhecimento adquirido.

Também tem parcerias com empresa de saneamento dos estados do Espírito Santo e Alagoas. n

projetos

1 sistema especialista para detecção e diagnóstico de vazamentos em redes urbanas de distribuição de água (fapesp-sabesp) (n° 2010/50773-8); Modalidade programa de apoio à pesquisa em parceria para ino-vação tecnológica (pite); Pesquisador responsável Linilson rodrigues padovese/usp; investimento r$ 103.805,40 (fapesp).2 uso de microlaboratórios autônomos para monitoramento de fósforo em tempo real (fapesp-sabesp) (n° 2010/50744-8); Mo-dalidade programa de apoio à pesquisa em parceria para inovação tecnológica (pite); Pesquisador responsável antônio Carlos seabra/usp; investimento r$ 263.388,80 e us$ 373.855,47 (fapesp).

estruturas internas do microlaboratório: canais com menos de 0,1 milímetro recortados a laser e circuito eletrônico

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Guinada tecnológica tem também a meta de expandir os negócios na área de saneamento

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Novos sensores desenvolvidos no brasil

fazem análises clínicas mais sensíveis

e detecção precoce da dengue

avanços nos diagnósticos

Dois sensores desenvolvidos recentemente podem levar a métodos de análises clínicas e a diagnósticos de doenças mais rápidos e baratos. Em São Carlos, uma equipe da Universidade de São Paulo (USP)

aperfeiçoou um tipo de transdutor químico, chamado sistema de detecção condutométrica sem contato (C4D), tornando-o 10 mil vezes mais sensível. O avanço o deixa equiparável aos me-lhores métodos existentes para análises clínicas ou químicas em sistemas microfluídicos que utilizam microchips. No Rio de Janeiro, pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), criaram um sensor de fibra óptica para diagnosticar a dengue.

O químico Renato Souza Lima, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP e do Laboratório Nacional de Na-notecnologia (LNNano) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, de Campinas, diz que na última década dispositivos microfluídicos têm sido muito usados como fer-ramenta analítica em áreas diversas como a análise de metais pesados, controle de qualidade de bebidas e alimentos e em aplicações biológicas na área de medicina. Os microchips com o sistema C4D têm outras vantagens, como a facilidade de miniaturização e o seu caráter universal como detector. “Isso faz dessa técnica uma alternativa ideal para uma varie-dade enorme de análises químicas e bioquímicas”, diz Lima.

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Apesar de suas vantagens, a C4D apre-sentava, no entanto, uma limitação im-portante quando comparada a técnicas eletroquímicas clássicas como a ampe-rometria e a voltametria: a sua baixa sen-sibilidade. “Esses dois tipos de análises são milhares de vezes mais sensíveis que a detecção sem contato (C4D)”, explica Emanuel Carrilho, professor do IQSC da USP e orientador do doutorado de Lima. “Por isso, nosso objetivo foi aumentar a eficiência do dispositivo com a expansão da área de cobertura dos eletrodos (res-ponsáveis pela detecção das substâncias em análise) e a redução da espessura do dielétrico (isolante elétrico que os cobre). Ou seja, o que fizemos foi trans-formar o dispositivo para diagnóstico, que era pouco sensível, em um sistema 10 mil vezes mais eficiente.”

Para chegar a esse resultado, os pes-quisadores de São Carlos modificaram a arquitetura do equipamento, trocando os eletrodos de lugar. Normalmente, os microchips com C4D são compostos por

uma lâmina de vidro com microcanais, pelos quais corre o fluido que se quer analisar, e uma outra, plana, que serve como “tampa” e na qual estão instala-dos dois eletrodos. Nessa configuração, eles ficam fora dos microcanais, grava-dos em outra lâmina de vidro. Assim, a única forma de elevar a sensibilidade do dispositivo seria aumentar a área de detecção dos eletrodos, o que é pouco prático. “Nossa solução foi colocá-los dentro dos microcanais, como um anel concêntrico”, conta Carrilho. Para evitar que o eletrodo entre em contato com a substância a ser analisada, característica do detector C4D, ele é isolado por meio de uma cobertura fina, feita com uma camada de 200 nanômetros de dióxido de silício.

Para fazer a análise clínica de sangue ou urina, por exemplo, uma gota do ma-terial é induzida a passar pelos canais, onde o eletrodo detecta a presença das substâncias de interesse, sejam endó-genas, como glicose ou ácido úrico, por

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fibra óptica e depois aquecido por quatro minutos a 600ºC, o que o transforma em nanopartículas de ouro.

“Em uma ponta da fibra, sobre as na-nopartículas de ouro, é fixado o anti-corpo NS1 da proteína de mesmo nome excretado pelo vírus”, diz Rosa Dutra, professora da PUC-Rio. “A outra ponta é conectada a um acoplador, do qual saem duas outras fibras ópticas, uma que se-rá ligada a uma fonte de luz branca e a

como é feito o teste

passando pelo eletrodo, o fluido recebe

carga elétrica e, com isso, mede-se

a condutividade das substâncias nele

presentes. a condutividade varia

de acordo com o tipo de substância

e concentração na amostra

outra a um espectrômetro que detecta o sinal refletido na ponta da fibra contendo as nanopartículas e os anticorpos anti--NS1”, diz Isabel. No teste, se a solução não contiver o antígeno, o comprimento de onda medido pelo espectrômetro não sofre modificação. Caso contrário, o sinal medido sofrerá variações na cor, o que determinará as diferentes concentrações do antígeno NS1.

Alexandre Camara, aluno de doutora-do de Isabel, explica como esse conjunto funciona. “O efeito LSPR devido às na-nopartículas imobilizadas com anticor-pos anti-NS1 na ponta da fibra óptica é afetado pelo ambiente externo, ou seja, com a presença ou não de antígeno NS1. A resposta do sensor é altamente depen-dente desse ambiente externo e qualquer mudança nesse fator faz com que a cor absorvida pelo meio mude e o sinal mo-nitorado se modifique. “Não detectamos diretamente o vírus da dengue, mas sim uma proteína (NS1) que o vírus excreta. Em uma fase aguda da doença essa pro-teína tem o seu valor aumentado, o que é um indicativo precoce da gravidade da doença.”

A física Paula Gouvêa, do Laborató-rio de Sensores a Fibra Óptica (LSFO)

a transformação dos sensores em produto ainda exige a execução de outras etapas, principalmente em empresas

exemplo, ou exógenas, como fármacos e poluentes. Isso é feito de forma indi-reta, porque o sensor (microchip) mede a condutividade elétrica da amostra de microfluido. “Essa condutividade muda de substância para substância e de con-centração para concentração de uma mesma substância”, explica Carrilho. “Qualquer uma que alterar a conduti-vidade da solução preenchendo o canal pode ser detectada.”

ÓPtica na denGue O sensor desenvolvido pelas equipes da PUC-Rio e UFPE, por sua vez, é baseado na ressonância de plasmon de superfície localizado (LSPR, na sigla em inglês), um fenômeno óptico que ocorre quando a luz interage com nanopartículas me-tálicas, induzindo a uma excitação co-letiva de elétrons. A LSPR permite que determinados comprimentos de onda (cores) possam ser absorvidos. A física Isabel Cristina Carvalho, responsável pelo Laboratório de Optoeletrônica do Departamento de Física da PUC-Rio e uma das coordenadoras do trabalho, ex-plica que o dispositivo é feito com um fino filme de ouro com 6 nanômetros de espessura depositado na ponta de uma

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a diferença entre os microchipsO sensor tem uma lâmina de vidro com microcanais em que corre o fluido a ser analisado. Os pesquisadores aumentaram a área dos eletrodos e os colocaram dentro do canal, isolados por uma camada fina de sílica

fonte eMaNueL CarriLhO / iqsC-usp

8 cm 8 cm

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Microcanal

Camada de sílicade 200 nm

de espessura

Lâminas de vidro

Lâminas de vidro

eletrodos externos ao chip

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Microcanal

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eletrodos internos ao chip

eletrodos

Lâminas de vidro

Circuito elétrico

Circuito elétrico

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solução com antígeno da dengue

gue. O próximo passo será a realização de medições in vivo, com amostras de sangue de pacientes infectados. “O que fizemos até agora consiste em uma pro-va de conceito do novo sensor, que ain-da não é um protótipo”, explica Araújo. “Como o nosso, existem alguns poucos métodos demonstrados em laboratório que poderiam ser utilizados no diagnós-tico da dengue. A transformação de um resultado como o que conseguimos em um produto exige ainda a execução de vários passos, como a avaliação econômi-ca de produção das diferentes técnicas.”

sem sintomasPelos resultados obtidos nos testes, o novo dispositivo mostrou-se bem pro-missor. Uma de suas maiores vantagens é permitir a detecção da dengue desde o primeiro dia de contaminação, quando o paciente ainda não começou a apresen-tar os sintomas da doença. Isso é muito útil, porque um diagnóstico precoce po-de evitar a morte de pacientes por não receber tratamento adequado a tempo de prevenir problemas mais graves como os causados pela dengue hemorrágica.

da PUC-Rio e também uma das líde-res do trabalho, conta que o sensor de dengue teve origem em outro, criado anteriormente por seu grupo. “Este é uma adaptação do que começamos a de-senvolver em 2007”, lembra. “Naquela época iniciamos uma colaboração entre o LSFO, o Laboratório de Optoeletrôni-ca e o Instituto Real de Tecnologia, da Suécia, para desenvolver um sensor de fibra óptica utilizando nanopartículas de ouro.” Em 2011, Renato Araújo, da UFPE, viu uma apresentação de Pau-la sobre o dispositivo e teve a ideia de adaptá-lo para detectar dengue.

Começou assim, em 2012, a colabo-ração entre os grupos da PUC-Rio e da UFPE. “Ela teve início com o trabalho experimental realizado pelos alunos Ale-xandre Camara e Ana Carolina Dias”, conta Paula. Nessa etapa de adaptação do sensor para a detecção da dengue, o trabalho foi desenvolvido nas duas uni-versidades. “O Alexandre aprendeu a técnica na UFPE em Recife e a trouxe para o Rio.” Por enquanto, os testes fo-ram realizados apenas em soluções feitas em laboratório com os antígenos da den-

“Outra vantagem do nosso sensor é o fato de que com ele é possível realizar as medições com apenas uma gota de amostra”, acrescenta Camara. “O pouco tempo necessário para o teste (em 20 minutos é possível ter um diagnóstico) e o esperado baixo custo de produção também o tornam atrativo.” Rosa Dutra lembra que o sensor pode ser portátil e usado também em laboratórios.

O trabalho foi financiado pela parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamen-to de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Swedish Foundation for Internatio-nal Cooperation in Researchand Higher Education, que apoia estudos conjuntos entre Brasil e Suécia. A pesquisa também contou com recursos das duas univer-sidades, do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológi-co (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Um artigo foi publicado na re-vista Optics express.

O sensor químico para análises clí-nicas desenvolvido pela equipe da USP de São Carlos também ainda não está pronto. “Ele gerou patente, mas precisa de desenvolvimento”, diz Carrilho. “Es-tá no ponto de sair da universidade e ir para uma empresa de base tecnológica para chegar ao mercado. Uma empre-sa de São Carlos chamada ParteCurae Analysis demonstrou interesse na trans-ferência da tecnologia.” Segundo Carri-lho, há apenas dois pequenos fabricantes de microchip com C4D no mercado, por isso as melhorias que os pesquisadores desenvolveram nesse tipo de sensor po-deriam torná-lo mais competitivo. A pes-quisa contou com apoio da FAPESP, por meio de uma bolsa de doutorado a Lima, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e resultou em artigo publicado na revista ChemComm, da Royal Society of Chemistry. n

projetosistemas microfluídicos eletroquímicos ultrassensíveis (nº 2010/08559-9); Modalidade bolsa de Doutorado; Pes-quisador responsável emanuel Carrilho – iq-usp; Bolsista renato souza Lima; investimento r$ 88.808,87 (fapesp).

artigos científicosLiMa, r.s. et al. highly sensitive contactless conducti-vity microchips based on concentric electrodes for flow analysis. Chemical Communications. publicado on-line em 9 out. 2013. CaMara, a.r. et al. Dengue immunoassay with an Lspr fiber optic sensor. optics express. v. 21, n. 22, p. 27023-31. nov. 2013.

sensor detecta dengue com fibrauso de luz acelera diagnóstico da doença e reduz uso de reagentes

fonte isabeL CristiNa CarvaLhO / puC-riO

Nanopartículas de ouro

anticorpoantígeno

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fonte de luz brancafibra óptica

leva a luz

que ilumina

a amostra

detecção da luz refletida a luz refletida da

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a informação para

o espectrômetro

esPectrômetroO aparelho mede o comprimento de onda refletido da amostra.

O sinal contém variações que levam a quantificação da concentração

do antígeno da proteína Ns1 produzida pelo vírus da dengue

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Ponta da fibra óptica com sensor

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biOteCNOLOgia y

teia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínas

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“Esse novo biomaterial, fabricado com auxílio de ferramentas de biotecnolo-gia e engenharia genética, poderá, em tese, ser utilizado para uma infinidade de aplicações que demandam flexibili-dade, resistência e biodegradabilidade em um único material”, afirma Elíbio Rech. “Nós já dominamos a tecnologia da produção de fios sintéticos de teias de aranha em laboratório. Nosso desafio agora é definir uma forma econômica, rápida e segura para sua produção em larga escala.” Iniciadas há nove anos, as pesquisas conduzidas por Rech contam com a participação de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Butantan e da Universidade de Brasília (UnB), além dos cientistas Randy Lewis, da Universidade de Utah, e David Kaplan, da Universidade Tufts, ambas nos Estados Unidos.

O interesse em produzir fibras que mimetizam a seda de aranha se dá por-que esse material agrega propriedades únicas. Os fios tecidos pelas aranhas são, ao mesmo tempo, resistentes e elásti-cos – o aço, em comparação, é altamente resistente, mas não é flexível. Feitos de proteínas, são biodegradáveis. Ao fazer a análise molecular desse material, os cientistas brasileiros descobriram que Lé

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nas telas de cinema e nas histó-rias em quadrinhos, o super--herói se desloca pela metrópole pendurado em resistentes fios

de seda, que também são usados para imobilizar os vilões que ameaçam a ci-dade. No que depender de um grupo de pesquisadores brasileiros, liderado por Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, dentro de alguns anos a ficção poderá, com certas adaptações, tornar--se realidade. Rech está à frente de uma equipe cujo objetivo é fabricar fibras sin-téticas inspiradas nas teias de aranha da biodiversidade brasileira. Esse biopolíme-ro artificial, cujo processo de fabricação em escala laboratorial já é plenamente dominado, poderá ser usado como ma-téria-prima para a fabricação de vasta quantidade de produtos, entre eles fios biodegradáveis para sutura cirúrgica, coletes à prova de balas mais leves do que os atuais, para-choques de automó-veis flexíveis e até bagageiros e outros componentes plásticos de aviões. Com um pouco de imaginação, os fios sintéticos poderão inclusive dar origem a cordas ultrarresistentes capazes de ter emprego similar ao dado pelo Homem-Aranha, o super-herói da Marvel Comics.

Cientistas brasileiros produzem fibras sintéticas

que mimetizam os fios de aranhas

teias de laboratório

Yuri vasconcelos

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as aranhas da biodiversidade brasileira produzem teias extremamente robus-tas e flexíveis. “Um cabo da espessura de uma caneta tecido com fios de ara-nha, por exemplo, poderia ser usado para deslocar um avião grande, tipo Boeing, sem se romper”, conta o pesquisador da Embrapa. “Sabemos que a seda das ara-nhas tem características de flexibilidade e resistência superiores às de qualquer material existente, inclusive o polímero Kevlar, usado para fabricação de coletes à prova de balas”, diz Rech, que é autor de diversos artigos sobre o assunto, o mais recente publicado em dezembro de 2013 na Nature Communications, revista científica do grupo Nature.

O estudo publicado revela a complexa organização em escala nanométrica das proteínas contidas nas teias de aranha encontradas no Brasil. É essa organização estrutural que lhes confere resistência e elasticidade. No artigo, escrito em coau-toria com o biólogo Luciano Silva, tam-bém da Embrapa, é revelada pela primei-

fonte eLibiO reCh/eMbrapa

teias artificiaisCientistas recorreram à biotecnologia e à engenharia genética para criar o biopolímero

ra vez a nanoestrutura desses fios. “Com auxílio da microscopia de força atômica em alta resolução, os detalhes de cada fi-bra foram ampliados em até 1 bilhão de vezes, o que nos permitiu diferenciar, por exemplo, as fibras mais elásticas das mais resistentes. O estudo permitiu melhorar e acelerar nosso domínio da produção de fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha”, explica Rech.

biofábricas ProGramadasO processo de criação das fibras artificiais envolve o domínio de complexas técnicas de engenharia genética. A primeira etapa para fabricação do biopolímero em labo-ratório foi a identificação e o isolamento dos genes das glândulas produtoras de seda de cinco espécies de aranha (Nephila clavipes, argiope aurantia, Nephylengys cruentata, Parawixia bistriata e avicula-ria juruensis) de três diferentes biomas brasileiros: mata atlântica, Amazônia e cerrado. Em seguida, os cientistas reali-zaram análises moleculares, bioquímicas,

biofísicas e mecânicas para estudar es-ses genes e compreender suas funções. A partir dos resultados dessas análises eles construíram sequências sintéticas de DNA para produção de fios com re-sistência e flexibilidade. Posteriormen-te, os genes modificados com as novas sequências de DNA foram clonados e introduzidos no genoma de bactérias escherichia coli, programadas para atuar como biofábricas. Com isso, as bactérias transgênicas e. coli passaram a sintetizar em larga escala as proteínas recombinan-tes que formam os fios das aranhas, como se fossem fábricas naturais da molécula. O passo seguinte consistiu na extração das proteínas das bactérias. Para isso, a massa de microrganismos foi solubiliza-da (diluída em meio líquido) e purificada numa coluna de extração, onde ocorreu a separação das proteínas do restante do material.

O desafio final foi transformar as pro-teínas na fibra em si. Nas aranhas, esse processo é feito por um órgão específico

Os pesquisadores da embrapa

isolaram os genes das glândulas de

seda de cinco espécies de aranhas

da biodiversidade brasileira

por meio de análises moleculares, bioquímicas,

biofísicas e mecânicas, eles estudaram esses

genes e suas funções, e construíram sequências

sintéticas de DNa para a produção de fios

Os genes modificados foram clonados

e introduzidos no genoma de bactérias

Escherichia coli, programadas para

atuar como biofábricas

as bactérias transgênicas Escherichia coli

passaram a produzir em larga escala

as proteínas recombinantes

que formam os fios das aranhas

O passo seguinte consistiu na extração das

proteínas. para isso, a massa de bactérias foi

diluída em meio líquido e purificada para a

separação das proteínas do restante do material

Com auxílio de uma seringa que imita o órgão

das aranhas responsável pela fabricação do

fio, eles utilizaram as proteínas para produzir

os fios sintéticos em laboratório

fiadeiras

glândulas de seda

1 Genes isolados 2 seQuÊncias sintéticas de dna 3 bactérias ProGramadas

4 Produção de Proteínas 5 Purificação de material 6 imitação de aranha

genes de interesse da aranha

genes da bactéria Escherichia coli

bactéria E. coli

Page 69: Pesquisa FAPESP 216

PesQuisa faPesP 216 z 69

“O uso de biologia sintética e engenharia metabólica abre a possibilidade de rea-lizarmos a engenharia de organismos, entre eles bactérias, como reatores para a produção das proteínas associadas à fabricação de teias de aranha em larga escala e a um custo economicamente viá-vel.” Esse é o maior desafio dos cientistas para dar uso comercial às fibras sinté-ticas e, com elas, fabricar uma grande variedade de produtos.

A principal alternativa é descobrir uma “fábrica natural” que sintetize em

chamado espirineta. É ele que organiza as proteínas na seda que será usada pela aranha para tecer as suas teias. “O que fizemos foi simular esse órgão. Com au-xílio de uma seringa especial, que imita a espirineta, produzimos os fios em labo-ratório a partir das proteínas extraídas das bactérias”, diz o pesquisador. Esse processo foi detalhado em artigo na Na-ture Protocols, também do grupo Nature, em 2009. O texto foi assinado por Rech, Daniela Bittencourt, da Embrapa, e ou-tros três pesquisadores da Universidade de Wyoming, dos Estados Unidos.

custo elevadoSegundo Rech, além de resultar em apli-cações para vários setores da economia, o fato de os estudos serem baseados em aranhas brasileiras tem outra vantagem: agrega valor à biodiversidade nacional. “A sustentabilidade é um aspecto impor-tante do nosso trabalho. Estudamos a biodiversidade brasileira, empregando a tecnologia de DNA recombinante, como modelo de opção viável para a geração de ‘ativos’ e agregação de valor”, diz ele.

larga escala as proteínas que dão origem ao fio. A técnica que emprega bactérias tem um problema: o elevado custo do processo. Por isso, Rech está testando a fabricação da proteína em sementes de soja e o grupo de Randy Lewis, da Uni-versity of Utah, faz o mesmo com leite de cabra. Tanto em um como em outro sistema, a molécula seria extraída ao fi-nal do processo e transformada na fibra. “Nossas pesquisas estão em andamento e ainda não é possível estimar quanto tem-po será necessário para que o material esteja disponível no mercado”, diz ele.

Pesquisas com a mesma finalidade também são conduzidas em outros paí-ses. O exército norte-americano, por exemplo, adquiriu há alguns anos um projeto criado por laboratórios canaden-ses para a fabricação de fios sintéticos de aranha e busca uma forma de esca-lonar sua produção. O cientista Randy Lewis, parceiro de Rech, está envolvi-do nessa iniciativa. “Esse projeto vai indo muito bem”, diz o pesquisador da Embrapa. “Mas, até onde sei, nenhum grupo de pesquisa do mundo conseguiu até o momento chegar a uma solução de baixo custo. É isso que estamos per-seguindo.” n

artigos científicos

siLva, L.p. e reCh, e.L. unravelling the biodiversity of nanoscale signatures of spider silk fibres. nature commu-nications. 18 dez. 2013.teuLé, f. et al. a protocol for the production of recom-binant spider silk-like proteins for artificial fiber spin-ning. nature Protocols. v. 4, n. 3, p. 341-55. 2009.fo

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21

mil e uma aplicaçõesDe medicamentos a peças aeronáuticas, são vários os exemplos de produtos fabricados a partir das fibras sintéticas de aranha

Nanoestruturas

biodegradáveis

que transportam

medicamentos

e vacinas dentro

do corpo humano

Coletes à prova

de balas mais

leves e resistentes

do que os atuais

para-choques flexíveis

para carros capazes

de suportar elevados

impactos

fios para

sutura cirúrgica

cujos pontos

não precisam

ser retirados

peças e componentes

plásticos para aviões,

como bagageiros e

estruturas para poltronas

análises moleculares de teias de aranha

da biodiversidade brasileira vão contribuir

para a produção do biopolímero

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70 z fevereiro De 2014

bosch brasileira tornou-se referência mundial

ao lançar o sistema flex fuel e a partida

com o etanol aquecido no lugar da gasolina

Um dos maiores fornecedores de pe-ças automotivas do mundo, o grupo Bosch, com sede em Stuttgart, na Alemanha, é composto por cerca de 360 subsidiárias e empresas re-

gionais distribuídas por 50 países. Em 2012, o faturamento do grupo atingiu € 52,5 bilhões e o investimento em pesquisa e desenvolvimen-to (P&D) foi de € 4,8 bilhões, com o registro de 4.800 patentes. No Brasil, onde começou a atuar em 1954 como fabricante de autopeças, a empresa tem sede em Campinas, no interior paulista, e conta com nove unidades de negó-cios. Em 2012, a subsidiária brasileira regis-trou um faturamento de R$ 4,1 bilhões com a oferta de produtos e serviços automotivos para montadoras e para o mercado de reposição de autopeças, além de ferramentas elétricas, sis-temas de segurança, máquinas de embalagem e tecnologias industriais. O investimento em P&D no país foi de cerca de R$ 170 milhões.

Projetos inovadores que resultaram em pro-dutos de sucesso relacionados a biocombustí-veis, como o do sistema de injeção flex fuel – que permite ao motor do carro trabalhar com álcool ou gasolina ou qualquer mistura dos

competência em bicombustíveis

pesquisa eMpresariaL y

dinorah ereno

emPresa

bosch

Subsidiária brasileira Campinas, sp

Nº de funcionários 9.700

Principais produtos equipamentos e

serviços automotivos

para montadoras e para

o mercado de reposição

de peças, ferramentas

elétricas, sistemas de

segurança, máquinas

de embalagem e

tecnologias industriais

faturamento da empresa em 2012

r$ 4,1 bilhões

dois combustíveis –, tornaram a filial brasileira referência na área de tecnologias de combus-tíveis alternativos. “Somos um centro mundial de pesquisa e desenvolvimento em sistemas e produtos para combustíveis alternativos, o que nós dá um certo grau de liberdade para escolher tecnologias que serão desenvolvi-das na área”, diz o analista de sistemas Bruno Bragazza, de 46 anos, gerente de inovação e propriedade intelectual da Bosch para a Amé-rica Latina. Outros centros de P&D, que não são eleitos como de competência mundial, têm que discutir suas escolhas com a matriz.

“São mais de 300 pesquisadores alocados só para questões relacionadas a bicombustíveis”, diz Bragazza, que desde 1985 está na Bosch, onde começou como estagiário quando fazia um curso técnico em eletrônica. Promovido a técnico, começou a cursar a Faculdade de Análise de Sistemas na Pontifícia Universi-dade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e pouco tempo depois foi transferido para a Alemanha, com a função de aprender e tra-zer para o Brasil a tecnologia de desenvolvi-mento de softwares para injeção eletrônica. Na volta retomou a universidade e assumiu a

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PesQuisa faPesP 216 z 71

energética veicular, direção confortável, além de uma unidade de negócios de fer-ramentas elétricas que são desenvolvidas no Brasil e exportadas para outros paí-ses. A Bosch tem projetos com grandes grupos de empresas da indústria auto-mobilística, mas muitos não podem ser revelados por questão de contrato.

Quando o sistema de injeção flex fuel começou a ser desenvolvido em 1992, Bragazza estava na Alemanha e parti-cipou do grupo de pesquisa brasileiro vinculado ao projeto, liderado pelo enge-nheiro mecânico Erwin Franieck, forma-do pela Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp) e gerente de desenvol-vimento na Bosch, onde trabalha desde 1986. “Resolvidos diversos desafios que eram tabus para a viabilização da tecno-logia flex, restava ainda um entrave téc-

gerência do departamento de software e hardware para injeção eletrônica, on-de ficou durante 23 anos. “Gerenciei até 2007 uma equipe de 44 pesquisadores, entre engenheiros e técnicos, e desde então estou numa área corporativa, que cuida de inovação tecnológica com um olhar transversal.” Sua tarefa é ver o que as unidades de negócios estão fazendo em P&D e buscar instrumentos de fomen-to para as pesquisas, além de parcerias com instituições científicas e tecnológicas brasileiras e estrangeiras, como da Índia, China e Alemanha, e proteção para as invenções. “Hoje estamos com 439 pes-quisadores espalhados por sete unidades de negócios que fazem algum tipo de pes-quisa e desenvolvimento.” Outras linhas de pesquisa desenvolvidas em Campinas englobam segurança veicular, eficiência Lé

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a partir da esquerda: Celso fávero, fernando

Lepsch, Omar Del Corsso Júnior, Cleuby

santos, erwin franieck e bruno bragazza

nico, que era manter a pressão da bomba de combustível. Para isso foi desenvolvi-do um produto robusto que permitiu ter um carro flex funcionando em 1994 e que ao longo de quatro anos rodou 100 mil quilômetros”, diz Franieck, de 52 anos. “As montadoras testavam o produto, mas diziam que não havia demanda”, relata. Por um bom período, ele se encarregou da divulgação da inovação, fazendo pa-lestras e apresentações do sistema para cooperativas e montadoras. O produto só foi lançado em 2003, oito meses após a promulgação da lei que reduzia o impos-

Page 72: Pesquisa FAPESP 216

72 z fevereiro De 2014

to sobre produtos industrializados (IPI) de carros flex no país. “Hoje a bomba de combustível flex da Bosch é utilizada em 85% dos veículos nacionais”, diz.

Na avaliação de Bragazza, apesar da grande inovação representada pelo siste-ma flex fuel, o período transcorrido entre o início das pesquisas e o seu lançamento fez com que, em pouco tempo, os prin-cipais concorrentes da Bosch também lançassem produtos com soluções seme-lhantes. “Não foi feito nenhum depósito de patente para proteção da tecnologia”,

explica. A lição aprendida resultou em um bem tecido esquema para proteger a segunda geração do flex fuel, o sistema Flex Start, que eliminou o tanque de ga-solina usado para dar a partida a frio no carro movido a álcool – o etanol é aqueci-do antes de ser injetado no motor. “Hoje temos 12 patentes para esse sistema, além do registro da marca Flex Start e cerca de 15 proteções de desenho industrial das partes mecânicas que fazem o aqueci-mento do biocombustível”, diz Bragazza.

“O projeto chegou a ter a colaboração de 80 engenheiros de várias áreas”, diz o engenheiro mecânico Fernando Lepsch, de 36 anos, que trabalha no desenvolvi-mento de produtos e participou das pes-quisas desde o início do projeto, em 2002. “Nosso maior desafio foi fazer com que o etanol fosse aquecido rapidamente, para que o motorista não precisasse esperar muito tempo para dar a partida no car-ro”, diz Lepsch, formado pela Unicamp,

onde também cursa mestrado na mes-ma área. O pesquisador, que começou a trabalhar como estagiário na Bosch em 2000, consta como inventor em 10 paten-tes relacionadas ao Flex Start. Foram sete anos entre o início do projeto e o lança-mento do produto em 2009. A aceitação da novidade contou com a ajuda de uma pesquisa de mercado feita pela própria Bosch com o consumidor final – em que era feita uma comparação entre um carro bicombustível com tanquinho de gasolina para partida a frio e outro com o etanol aquecido –, que elegeu a segunda alter-nativa como a preferida. “Ainda somos os únicos no mercado com essa tecnolo-gia e os pedidos não param de crescer”, diz Bragazza. Como reconhecimento, a subsidiária brasileira ganhou o prêmio mundial da Bosch de Inovação.

exiGÊncias distintasO know-how adquirido com o desenvol-vimento da bomba de combustível flex fuel tem sido aplicado agora em motoci-cletas. O projeto, que está em fase final de validação do produto, é coordenado pelo engenheiro mecânico Celso Fáve-ro, de 51 anos, gerente de engenharia de desenvolvimento de produtos da Bosch, onde trabalha há 26 anos. “A aplicação em motos tem exigências bastante distintas, porque esses veículos possuem um siste-ma elétrico que não gera muita energia”, diz Fávero, formado pela Unicamp, onde fez especialização em gestão e estratégia de empresas pelo Instituto de Economia. Como o alternador da moto – equipa-mento que transforma a energia mecâ-nica em elétrica – é pequeno, qualquer carga extra representa um obstáculo à eficiência. “Fizemos um trabalho de pes-

Bruno Bragazza, analista de sistemas, gerente de inovação e propriedade intelectual da Bosch para a América Latina

pontifícia universidade Católica de Campinas (puC-Campinas): graduação

erwin franieck, engenheiro mecânico, gerente de desenvolvimento de produtos na divisão de sistemas a gasolina

universidade estadual de Campinas (unicamp): graduação

fernando Lepsch, engenheiro mecânico, engenheiro de desenvolvimento de produtos na divisão de sistemas a gasolina

unicamp: graduação

Celso fávero, engenheiro mecânico, gerente de engenharia de desenvolvimento de produtos

unicamp: graduação

omar del Corsso Júnior, engenheiro eletricista, chefe da área de motores de partida

universidade estadual paulista (unesp): graduação

Cleuby Santos, engenheiro eletricista, engenheiro de desenvolvimento de produtos na área de bobinas e sensores automotivos

unicamp: graduação

instituiçÕes Que formaram os PesQuisadores da emPresa

1

2

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PesQuisa faPesP 216 z 73

formada por pesquisadores que são re-ferência em algum tema.

Algumas pesquisas em parceria com as universidades têm como foco atender demandas futuras, a exemplo do projeto de um motor de partida para veículos de passeio mais eficiente e ao mesmo tem-po mais leve, com o objetivo de reduzir a emissão de dióxido de carbono, feito em colaboração com a Faculdade de Enge-nharia Mecânica da Unicamp. “Para que o motor de partida modelo C60, que subs-titui os que já estão no mercado, tivesse a mesma resposta dentro das novas es-pecificações, desenvolvemos outras tec-nologias, que resultaram no depósito de

1 sistema de purificação química

2 instalação de bomba de combustível flex

3 analisador de emissões de gases veiculares

4 análise química de compostos orgânicos

quisa focado nessa especificação e con-seguimos reduzir o consumo da corrente da bomba de combustível em torno de 15% em comparação com o concorrente nesse segmento”, diz. Espalhados pelo mundo, o grupo Bosch tem 43 mil pesquisadores, dos quais 1.300 trabalham em um centro de pesquisa cor-porativo na Alemanha. “São quase todos mestres e doutores, especializados em diferentes áreas do conhecimento”, diz Bragazza. No Brasil ainda são poucos pesquisadores com título de mestre e raríssimos doutores. “Menos de 10% são mestres e doutores; a maioria dos enge-nheiros acaba fazendo cursos de especia-lização.” Por isso, para alguns desenvolvi-mentos que exigem conhecimento cien-tífico mais detalhado são feitas parcerias com institutos de pesquisa e universida-des. No caso do aquecimento do etanol para o sistema Flex Start, por exemplo, a Unicamp foi a principal colaboradora, além do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). Para questões pontuais, a Bosch tem uma rede de conhecimento mundial

10 patentes”, diz o engenheiro eletricista Omar Del Corsso Júnior, de 38 anos, for-mado pela Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, no interior paulista, e chefe da área de motores de partida para veícu-los. “Somos uma equipe de seis pessoas, que trabalha no desenvolvimento de no-vas plataformas e novos produtos para o mercado”, diz Del Corsso, especialista em gestão e estratégia de empresas pelo Instituto de Economia e em engenharia automobilística pela Faculdade de Enge-nharia Mecânica, ambos da Unicamp. Ele começou a trabalhar na Bosch como es-

tagiário em 1999 e um ano depois foi contra-tado para o grupo de desenvolvimento de motores elétricos, on-de ficou por seis anos.

Na avaliação do engenheiro eletricis-ta Cleuby Santos, de 30 anos, engenheiro de desenvolvimento

de produtos da área de bobinas e sen-sores automotivos, o uso de programas de simulação tem contribuído para uma substancial economia de tempo nas pes-quisas. “Essas plataformas nos trazem uma grande competência técnica e com isso conseguimos identificar e antecipar possibilidades por meio de simulações térmicas, mecânicas, eletrônicas, elétri-cas e magnéticas de bobinas e sensores”, diz Santos, formado pela Unicamp, que entrou na Bosch em 1997 como apren-diz do Senai. Após quatro anos passou a estagiário e em 2003 foi efetivado como técnico de desenvolvimento. Em 2009 co-meçou a trabalhar na sua atual função. n

Plataformas de simulação reduzem o tempo de pesquisa ao antecipar possibilidades

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foto

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Os

Page 74: Pesquisa FAPESP 216

74 z fevereiro De 2014

análise das redes

de organizações da

sociedade civil contraria

tese da “onguização”

a mobilidade dos movimentos sociais

humanidades CiêNCia pOLítiCa y

márcio ferrari

movimentos sociais tiveram papéis ativos nos processos de democratização ocorridos na Amé-rica Latina nas últimas décadas do século XX. Daquele período até os dias de hoje, muitos passaram por uma evolução amplamente re-

gistrada na literatura das ciências sociais, especialmente na-quela dedicada ao estudo da sociedade civil na região. Um aspecto quase consensual entre os pesquisadores do setor é que a partir dos anos 1990 houve uma renovação da socieda-de civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir dos anos 1990, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais, entre os que estudam esses fenômenos.

Em suma, os movimentos populares, formados pelos pró-prios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros consti-tuintes (atividade chamada de advocacy nas ciências sociais).

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PesQuisa faPesP 216 z 75

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Essas ações teriam acarretado uma despolitização da sociedade civil.

O cientista político Adrian Gurza Lavalle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-nas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), no entanto, vem conduzindo estudos que contradizem a tese da “onguização”. Um mapea-mento das organizações em dois dos maiores conglomerados urbanos da América Latina, São Paulo e Cidade do México, que configuram as “ecologias organizacionais” das cidades da região, demonstrou que as ONGs conquistaram e manti-veram protagonismo, mas os movimentos sociais também estão em posição de centralidade, apesar das predições em contrário. “Nossas pesquisas contrariam diagnósticos céticos que mostram uma sociedade civil de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo de-

senraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda”, diz Gurza Lavalle, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Mais: elas mostram que a sociedade civil se modernizou, se diversificou e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais com-plexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.”

Essas conclusões vêm de uma sequência de es-tudos comandados por ele nos últimos anos. Os mais recentes foram desenvolvidos em coautoria com Natália Bueno no CEM, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. O trabalho tem como pesquisado-res convidados Ernesto Isunza Vera (Centro de Estudios Superiores en Antropología Social, de Xalapa, México) e Elisa Reis (Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro). Concentra-se no papel das organizações civis e na composição das ecologias

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76 z fevereiro De 2014

organizacionais nas sociedades civis de diversas cidades no México e no Brasil.

O que o cientista político apresenta nos seus estudos de rede pode ser uma contribuição para que os tomadores de decisão conheçam melhor a heterogeneidade das organizações civis. “Há implicações claras para a regulação sobre o ter-ceiro setor, no sentido de que ela se torne me-nos uma camisa de força e mais um marco que ofereça segurança jurídica aos diferentes tipos de organizações da sociedade civil que recebem recursos públicos ou exercem funções públicas”, diz o pesquisador.

“O trabalho que vem sendo realizado por Gurza Lavalle, seus alunos e colaboradores é especial-mente valioso porque, por meio da análise de redes, permite mapear com mais rigor e de ma-neira mais fina as relações entre os movimentos sociais”, diz Marisa von Bülow, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), especializada no estudo das so-ciedades civis latino-americanas. “A análise de redes não é necessariamente o melhor método, mas complementa muito bem métodos como as pesquisas qualitativas e de campo, as entrevistas etc. Permite que se vejam coisas que não poderiam ser lidas com tanta clareza pelas vias tradicionais. No caso das pesquisas de Gurza Lavalle, acaba-ram mostrando que as sociedades civis da região são mais diversas e plurais do que se pensava.”

“As análises que tínhamos eram geralmente lei-turas impressionistas ou dados sem capacidade de produzir inferências”, diz Gurza Lavalle. Ele tirou da literatura local a evolução dos atores sociais na região, que identifica duas ondas distintas de inova-ção na mobilização social: tomando como plano de comparação as organizações tradicionais como as entidades assistenciais ou as associações de bairro, a nova onda de atores surgida nos anos 1960, 1970 e metade dos 1980, e a novíssima onda de atores que ganhou força nos anos 1990.

a primeira se caracterizou pelas organiza-ções criadas em razão de demandas so-ciais de segmentos amplos da população

durante a vigência do regime militar. É o caso das pastorais incentivadas pela Igreja Católica e os movimentos por moradia, pela saúde e contra a carestia. As organizações da segunda onda cos-tumam ser agrupadas na denominação de ONGs, que por sua vez deram origem às entidades ar-ticuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados – por exemplo, a Associação Brasileira de Organiza-ções Não Governamentais (Abong) ou a Rede Brasileira Agroflorestal (Rebraf ).

A análise de redes, segundo Gurza Lavalle, per-mitiu avaliar a influência das associações, “tanto

atores sociaisentidades civis que atuam nas grandes cidades, como são paulo e Cidade do México

orGanizaçÕes articuladorasreúnem associações

e trabalham em

benefício delas,

realizando funções

de coordenação,

defesas de causas

e representação

orGanizaçÕes PoPulares associações

dedicadas à

defesa de causas

de grupos sociais

de baixa renda

mediante

mobilização que

operam em nível

regional (acima

do nível

microterritorial)

fÓruns espaços fundados

por organizações da

sociedade civil, sem

agenda própria e

com o objetivo de

estimular o debate e

criar compromissos

entre atores sociais

onGsOrganizações voltadas

para a defesa pública

de causas que

favorecem terceiros

ou interesses difusos

Pastorais associações

vinculadas à igreja

Católica e organizadas

para a ação pastoral

em determinados

temas e com grupos

sociais desfavorecidos

dos próprios membrosassociaçÕes assistenciais Organizações que

prestam serviços a

indivíduos e grupos

sociais de acordo com

suas vulnerabilidades

associaçÕes de bairro associações de

indivíduos que têm em

comum a mesma base

microterritorial e

reivindicações

relacionadas à

infraestrutura e serviços

urbanos desse território

associaçÕes comunitárias Organizações microlocais de

pessoas com traços comuns,

orientadas para o auxílio

mútuo (como grupos de

faixa etária) e a realização

conjunta de atividades

(como as de recreação)

comitÊs de bairro

associações existentes no México,

derivadas da Lei de participação Cidadã,

que têm por objetivo o encaminhamento

de projetos de melhoria do bairro ao

poder público

Page 77: Pesquisa FAPESP 216

PesQuisa faPesP 216 z 77

no seio da sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos”. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas de cen-tralidade que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. “Quando nos relacionamos, estamos vinculados de forma indireta aos vín-culos dos outros”, diz o pesquisador.

a análise de redes, de acordo com o cientista político, registrou desenvolvimento ace-lerado nas últimas duas décadas e é apli-

cável a diversas áreas do conhecimento. “Graças aos avanços da análise de redes é possível, por exemplo, detectar padrões de difusão de doen-ças, pois permite identificar estruturas indiretas que não estão à disposição dos indivíduos, mas atuam num quadro maior. É um caminho para superar as caracterizações extremamente abstra-tas e estilizadas dos atores comuns nas ciências sociais, mas sem abrir mão da generalização de resultados.” Segundo Gurza Lavalle, uma das principais vantagens desse método é complemen-tar e ir além dos estudos de caso e controlar as declarações das próprias organizações estudadas (autodescrição) e investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, bem como as estru-turas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação.

O método de amostragem adotado para apurar a estrutura de vínculos entre as organizações é conhecido como bola de neve. Cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da enti-dade entrevistada. Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis, que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais. Essa rede permitiu identificar claramente a vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. Além disso, o estudo detectou quatro tendências da ecologia organizacional da sociedade civil em São Paulo e, em menor grau, na Cidade do Mé-xico: ampliação, modernização, diversificação e, em alguns casos, especialização funcional (capa-cidade de desenvolver funções complementares com outras organizações).

O que o pesquisador utiliza como aproxima-ção aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Mo-vimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Mo-vimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras. Numa posição de “centralidade intermediária”

estão as pastorais, os fóruns e as as-sociações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organi-zações de corte tradicional, como as associações de bairro e comunitárias.

“As organizações civis passaram a desempenhar novas funções de intermediação, ora em instituições participativas como representantes de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como re-ceptoras de recursos públicos para a execução de projetos”, diz Gurza La-valle. “As redes de organizações civis examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de inter-mediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais.”

Outros estudos confirmam as conclusões do trabalho conduzido por Gurza Lavalle, como os de Lí-gia Lüchmann, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina, que vem estudando as organizações civis de Florianópolis. “Eu con-firmaria a ideia de que a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que cos-tumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”, diz. Ela cita, na capital catari-nense, a atuação de articuladoras como a União Florianopolitana de Entidades Comunitárias e o Fórum de Políticas Públicas.

No cenário latino-americano, Gurza Lavalle e Marisa von Büllow veem o Brasil como um caso excepcional de articulação das organizações so-ciais ao conseguir acesso ao poder público, o que não ocorre no México. Gurza Lavalle cita como exemplos os casos do Estatuto da Cidade, que teve origem no Fórum Nacional da Reforma Urbana, e do ativismo feminista no interior do Movimento Negro, cuja história é um componente imprescin-dível da configuração do campo da saúde para a população negra dentro da política nacional de saúde, embora sejam mais conhecidos os casos do movimento pela reforma da saúde ou do ativismo de organizações civis na definição das diretrizes das políticas para HIV/Aids. n

Graças aos avanços da

análise de redes, é possível,

por exemplo, detectar padrões

de difusão de doenças

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projetoCentro de estudos da Metrópole - CeM (nº 2013/07616-7); moda-lidade Centros de pesquisa, inovação e Difusão (Cepid); Pesquisa-dora responsável Martha teresa da silva arretche; investimento r$ 7.103.665,40 para todo o Cepid (fapesp).

artigo científicogurza LavaLLe, a. e bueNO, N. s. waves of change within civil society in Latin america: Mexico City and sao paulo. Politics & society. v. 39, p. 415-50, 2011.

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pesquisadora da unicamp investiga as comédias

do dramaturgo romano plauto, referência para

shakespeare, Molière, Camões e suassuna

o teatro do engano

A esposa colérica, o escravo as-tuto, o jovem apaixonado sem dinheiro, a meretriz, o parasi-ta social. Esses são alguns dos

personagens mais notórios da comédia de Plauto, dramaturgo romano nascido no século III a.C., cuja obra está entre os textos literários mais antigos preser-vados em latim. As comédias de Plau-to foram retrabalhadas por escritores como William Shakespeare, Molière, Luís de Camões e, no caso brasileiro, Ariano Suassuna, que em 1957 usou co-mo subtítulo de sua comédia O santo e a porca a frase “imitação nordestina de Plauto”. A pesquisadora do núcleo de Letras Clássicas do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), Isabel-la Tardin Cardoso, estuda a Comédia Nova Romana, da qual Plauto é um dos principais representantes. Em 2006 ela publicou uma tradução para o português da peça estico (Editora da Unicamp) e orienta duas alunas que lançarão este ano dois outros títulos de obras do autor. O movimento em torno do autor romano deverá levar a leituras dramáticas de suas comédias em São Paulo.

Pouco se sabe da vida de Tito Mácio Plauto (em latim, Titus Maccius Plau-tus). Sua biografia é conhecida apenas por testemunhos indiretos. Ele teria nascido em Sarsina, na região central italiana da Úmbria, por volta de 255 a.C. Há registros de que foi para Roma ainda jovem, possivelmente para trabalhar em bastidores de teatro, e tornou-se ator. Perdeu todo o seu dinheiro em um em-preendimento náutico malsucedido, o que o teria arruinado por completo e o forçado à escravidão por dívida. Um texto do século II d.C. sugere ainda que Plauto começou a escrever peças de tea-tro justamente para escapar da penúria financeira. Nenhuma das versões pode ser atestada com segurança, diz Isabella.

O que se conhece do dramaturgo so-brevive por meio das peças que escreveu. Ao todo, atualmente há 21 comédias de sua autoria. A produção de Plauto faz parte da chamada Comédia Nova Ro-mana, ou comédia paliata. O gênero faz parte do período inicial da dramaturgia latina, entre os séculos III e II a.C. da república romana, um momento de flo-rescimento cultural e literário. O nome vem de pálio, um pequeno manto usado

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pelos atores nas encenações, em imitação ao vestuário usado pelos gregos.

Já se imaginou que estico seja uma de suas primeiras produções; as notas de produção informam que a peça foi mon-tada em 200 a.C. Para Isabella Cardoso, autora da tradução anotada em portu-guês, essa é uma peça de fato singular, pois vários blocos de cenas, diferente-mente de outras produções romanas do período, não apresentam uma conexão direta entre si, atuando mais como es-quetes independentes do que como um enredo coeso. “Nessa obra fica mais evi-dente uma característica de Plauto: ele privilegia o efeito humorístico de cada cena. Não está tão concentrado na pro-gressão do enredo, e sim no efeito cômi-co”, explica a pesquisadora. O nome da peça é baseado em um dos personagens centrais, um escravo fanfarrão.

No momento, Isabella Cardoso está na Universidade de Heidelberg, na Ale-manha, onde, junto com os professo-res Jürgen P. Schwindt, Melanie Möller (Heidelberg) e Paulo S. de Vasconcellos (Unicamp), organiza a criação de um novo Centro de Teoria da Filologia, com sede dupla na Unicamp e na instituição

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antiga. Comuns na Comédia Nova Roma-na (e ausentes de estico) são os enredos amorosos impossíveis, sobretudo por histórias de um jovem que se enamo-ra de uma moça, em geral uma escrava, meretriz ou mulher com quem, pelas regras sociais, ele não poderia se casar. O jovem, não dispondo de dinheiro para financiar o relacionamento, recebe ajuda de um escravo esperto. De acordo com Isabella, esse personagem, central e re-corrente na obra de Plauto, elabora um plano para obter recursos, ação que in-variavelmente envolve enganar alguém.

As comédias de Plauto são traduções e adaptações de obras gregas anteriores. Em particular, de três grandes dramatur-gos: Menandro, Dífilo e Filemão. Indícios da tradição grega se fazem evidentes em trechos dos diálogos e nos personagens, como, por exemplo, o nome do cômico Gelásimo, da peça estico, deriva do grego “aquele que faz rir”. Segundo Isabella, expressões gregas deste tipo poderiam ser assimiladas com facilidade pela po-pulação em Roma em razão das constan-tes trocas comerciais e da aproximação militar entre Roma e Grécia no século III a.C. As peças de Plauto foram produzi-das para ser encenadas durante os jogos cênicos, festivais religiosos organizados pelos políticos locais em homenagem a um ou mais deuses.

Uma das qualidades mais notáveis das peças de Plauto, segundo a pesquisadora, é sua habilidade em construir cenas de humor por meio da movimentação e ges-tualidade dos atores. “Comparado com o que se sabe da comédia grega, o humor plautino é mais caricatural, exagerado, bufonesco”, diz Isabella, que em janei-ro terminou um capítulo para o Cam-bridge Companion to Roman Comedy, detalhando o uso de recursos humorís-ticos não verbais em Plauto e Terêncio, escritor de uma geração posterior ao do dramaturgo. Brigas, chutes e cenas de co-média pastelão são bem mais frequentes nas obras plautinas do que nas de Terên-cio. Outro aspecto que diferencia Plau-to dos demais escritores de seu tempo é o modo como ele distribuía os papéis entre os personagens. Diferentemente de Terêncio, por exemplo, que dava voz também aos que expressavam preocu-pações morais de cidadãos comuns da sociedade romana, os papéis mais impor-tantes em Plauto são, em geral, dedicados a meretrizes, escravos espertalhões, pa-

preendente o senso de humor não datado e de fácil compreensão de Plauto, assim como as semelhanças das personagens de estico com tantos outros tipos cômi-cos presentes em textos teatrais muito posteriores. Ler estico foi como beber na fonte dos grandes comediógrafos”, diz ela. Para Nádia, a leitura enriquece o imaginário do leitor contemporâneo. “Também nos permite reconhecer tan-to diferenças quanto semelhanças en-tre nós, indivíduos do século XXI, e a humanidade de períodos tão antigos.”

Neste ano, o Instituto Capobianco es-tuda montar duas peças do dramaturgo, a partir de novas traduções de anfitrião e Casina feitas por Lilian Nunes da Costa e Carol Martins da Rocha, orientandas de Isabella. O lançamento dos livros está previsto para este semestre.

herança GreGaA primeira tradução da épica grega Odis-seia para o latim, realizada pelo ex-es-cravo Lívio Andronico, marca o início da literatura romana por volta de 240 a.C. A Comédia Nova Romana, produção li-terária surgida também nesse período, é caracterizada sobretudo pela atmosfera familiar, com tipos sociais padronizados (escravo, jovem, pai etc.), contrastando com os personagens políticos ou fantás-ticos (deuses, heróis) da comédia grega

alemã. Previsto para ser inaugurado este ano, o centro investigará sobretudo os métodos empregados pela filologia clás-sica para avançar no conhecimento de obras literárias da Antiguidade clássica, como as comédias de Plauto.

Entre os maiores desafios da tradu-ção de Plauto, a pesquisadora aponta a dificuldade em manter as nuances de linguagem, a sonoridade do latim, as aliterações e os jogos de palavras. Sem falar no ritmo das peças, assunto que Beethoven Alvarez, da Unicamp, estuda sob a orientação de Isabella. “Traduzir qualquer comédia é um desafio e mui-tas vezes o tradutor acaba com a ingra-ta tarefa de ter de explicar a piada”, diz ela. Sua tradução de estico recebeu em 2007 indicação ao prêmio Jabuti de Me-lhor Tradução e, em novembro de 2013, uma leitura dramática do grupo de teatro paulista Instituto Cultural Capobianco. “No Brasil, poucos estudiosos de teatro e literatura conhecem Plauto. Por isso, tem sido fascinante a experiência dos atores, que se mostraram surpresos com a atualidade e graça das peças.”

Segundo Nadia Berriel, responsável pela curadoria da leitura dramática de estico, a expectativa ao se ler uma peça da Antiguidade é encontrar dificuldades na compreensão do vocabulário e dos temas tratados nas peças. “Mas foi sur-

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usada por ele justamente para produzir um efeito cômico”, diz Isabella. “Shakes-peare, por exemplo, além de aproveitar partes de enredos de Plauto, usa a noção de teatro dentro do teatro de modo pare-cido com como o escritor romano fazia.”

Essa concepção de que o “mundo é um teatro”, expressão conhecida por mui-tos a partir do segundo ato da peça as you like it (como gostais), de Shakespea-re, seria, portanto, uma possível alusão a uma ideia antiga, que se destaca em Plauto. Da mesma forma, a última peça shakespeariana a tempestade explora o mesmo enredo de Plauto em Rudens: um grupo de náufragos chega a uma ilha desconhecida e misteriosa. As alusões do personagem Próspero ao teatro e à ilusão dramática podem ser vistas como igual-mente vestígios de uma relação entre o mestre inglês e o dramaturgo romano, explica a pesquisadora.

A crise de identidade de Hamlet en-contra paralelos na troca de identidades de anfitrião. A trama dessa comédia se

rasitas sociais e outros tipos populares. Em Miles Gloriosus, Pirgopolinices é um soldado vaidoso e fanfarrão, em Casina uma jovem escrava é disputada por dois apaixonados, em asinaria, peça também conhecida como a comédia dos burros, o personagem central é o velho avarento Demêneto, que tenta enganar sua mulher em troca de dinheiro. Esse humor con-trasta com o tom mais sério da comédia a sogra (Hecyra), de Terêncio, peça que Aline Lazaro, da Unicamp, investiga sob orientação de Isabella.

o teatro do mundoAlém de ter obtido reconhecimento co-mo comediógrafo em seu tempo, Plauto serviu de referência para muitos outros escritores. Alguns recursos usados por ele em suas peças, como os enredos sobre triângulos amorosos, a crise de identida-de de seus personagens e a referência do teatro dentro do próprio enredo, foram retrabalhados por Shakespeare, Molière, Camões e, no Brasil, por Ariano Suassu-na em suas composições. Em Plauto há cenas que funcionam como peças dentro das peças, com referências constantes à encenação, aos atores e espectadores. Esse tipo de metalinguagem produz um efeito de quebra da ilusão dramática e rompe, propositadamente, a sensação de verossimilhança. “Quando Plauto apre-senta o ator como um enganador, fica en-fatizada a ideia de que o teatro equivale a engano. Essa é uma estratégia muito

Plauto já usava metalinguagem, com cenas que funcionam como peças dentro das peças

desenvolve em Tebas, quando Júpiter é tomado de amor por Alcmena e assume a forma de seu marido, Anfitrião, general grego que comanda legiões tebanas. Jú-piter é auxiliado por Mercúrio, que por sua vez assume a forma de Sósia, o escra-vo de Anfitrião. Júpiter engravida Alcme-na, que dá à luz Hércules, um semideus. Quando retornam da guerra, Anfitrião e Sósia deparam com seus duplos, o que em Plauto resulta em situações cômicas e uma sucessão de mal-entendidos. Esta história, observa Isabella, reaparece na literatura readaptada ao ambiente lusi-tano por Camões em 1587 e na França do século XVII na peça de Molière de mesmo nome. O francês adaptou também aulularia em seu O avarento, mudando ambientes, renomeando personagens e introduzindo situações compatíveis com o teatro do século XVII.

A mesma aulularia, traduzida como a comédia da pa-nela, foi a inspi-ração para o per-nambucano Ariano Suassuna escrever O santo e a porca, a história do avaren-to Euricão, devoto de Santo Antônio, que guarda suas economias numa porca de madeira.

“O interesse pelo estudo das recepções dos clássicos tem aumentado no Brasil. Neste sentido, faz parte do estudo atual sobre a poética de Suassuna entender co-mo ele retrabalha aspectos da Antiguida-de com uma roupagem nordestina”, diz a pesquisadora, que orienta uma pesquisa específica sobre a recepção de Plauto em Suassuna. Um texto em coautoria com sua aluna Sonia Aparecida dos Santos se-rá apresentado este ano em conferência no University College London. n

projetos1. plauto, Anfitrião (nº 2011/17284-6); Modalidade auxílio regular a projeto de pesquisa – publicações Científicas; Pesquisadora responsável isabella tardin Cardoso/ieL--unicamp; investimento r$ 5.000,00 (fapesp).2. plauto, Casina (nº 2011/17283-0); Modalidade auxílio regular a projeto de pesquisa – publicações Científicas; Pesquisadora responsável isabella tardin Cardoso/ieL--unicamp; investimento r$ 5.000,00 (fapesp).3. a fuga da sogra: poesia, humor e família em Hecy-ra (nº 2012/00726-9). Modalidade bolsa de iniciação Científica; Pesquisadora responsável isabella tardin Car-doso/ieL-unicamp; Bolsista aline Lazaro; investimento r$ 4.627,92 (fapesp).

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estudo revela a arquitetura rural do século XiX

no interior do Nordeste

outros sertões

patriMôNiO y

Juliana sayuri

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o sertão é do tamanho do mundo, dizia Guimarães Rosa. Dizia como ainda dizem os que se enveredam pelos tor-tuosos caminhos dos rincões nordes-

tinos em busca de histórias, respostas, saberes. Não raro, porém, muitos retornam dessas terras ainda mais intrigados com novas questões. A pesquisadora Nathália Maria Montenegro Diniz mergulhou diversas vezes nesse território. Ali nasceram a dissertação de mestrado Velhas fazen-das da Ribeira do seridó (defendida em 2008) e a tese de doutorado Um sertão entre tantos outros: fazendas de gado nas Ribeiras do Norte (em 2013), ambas realizadas sob orientação de Beatriz Pic-colotto Siqueira Bueno, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Nessas empreitadas, ela encontrou não apenas respostas a seus estudos sobre a arquitetura rural do século XIX sertão

adentro, mas também questionamentos novos que deram fôlego para um novo projeto de pesquisa, vencedor da 10ª edição do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica – Clarival do Prado Vallada-res, divulgado em dezembro. O projeto O conhe-cimento científico do mundo português do século XVIII, de Magnus Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz, também foi premiado. Os vencedores foram escolhidos entre 213 trabalhos inscritos pela originalidade dos temas. O prêmio inclui a produção e publicação de um livro, sem valor predeterminado.

É difícil desvencilhar a história pessoal de Na-thália Diniz de seu itinerário intelectual. De uma família de 11 filhos originária de Caicó, na região do Seridó, interior do Rio Grande do Norte, ela foi a primeira a nascer na capital potiguar. Em 1975, a família mudou-se para Natal – professores de matemática por ofício, os pais pretendiam ofe-

Casa da fazenda sabugi (ao lado) e casa da fazenda almas de Cima (acima), ambas no rio grande do Norte: preservação ainda precária

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Norte, sesmeiros pernambucanos finca-ram raízes no Seridó. Foi no século XVIII que surgiram as casas na região feitas de taipa, com madeiramento amarrado com couro cru, chão de barro batido e térreas, com telhado de beira e bica. Lentamente, as casas de taipa passaram a alvenaria, com tijolos apenas na fachada. Por fim, no século XIX, o Seridó ficou marcado pela construção de grandes casas de fa-zenda, habitadas pelo proprietário, fa-miliares, agregados e escravos.

No doutorado, a arquiteta expandiu horizontes, territoriais e teóricos. Por um lado, debruçou-se sobre a arquite-tura rural vinculada às fazendas de ga-do nos sertões do Norte (atuais estados da Bahia, Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte). Ela ma-peou um acervo de 116 casas-sede a par-tir de levantamentos arquitetônicos do Piauí, Ceará e Bahia. A fim de melhor compreender o patrimônio material e imaterial nas habitações rurais dessa região, entrou nos campos da história social e da história econômica.

Do inventário de 116 casas-sede ali-cerçadas em pedra bruta, erigidas em diferentes ribeiras (Ribeira do Seridó, do Piauí, da Paraíba, dos Inhamuns e

recer melhores condições educacionais para os filhos. Nas férias e feriados todos retornavam à pequena cidade, onde fica-vam em uma das casas das fazendas que pertenceu ao tataravô da pesquisadora. “Logo cedo pude notar as visões diferen-tes construídas sobre o sertão nordestino. As casas que eu via não eram as mesmas retratadas nas novelas de época, da aris-tocracia rural. Era outro sertão”, lembra.

Graduada em arquitetura e urbanis-mo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Nathália quis explorar os outros sertões esquecidos no século XIX, mais especialmente no Seri-dó, uma microrregião do semiárido que ocupa 25% do território do estado. Lá o povoamento se iniciou no século XVII com as fazendas de gado e o cultivo de algodão. Ainda estudante, deu o primeiro passo nessa direção quando participou de um projeto de extensão que investi-gou os núcleos de ocupação original do Seridó a partir de registros fotográficos e fichas catalográficas feitas por estudan-tes e pesquisadores. Descobriram, assim, que essas casas, posteriores ao período colonial, mantinham características her-dadas da arquitetura colonial ao lado de elementos ecléticos modernos.

Uma vez bacharel, Nathália viajou a São Paulo para participar de um encon-tro de arquitetos e deparou com o pro-cesso seletivo para mestrado na FAU. Decidiu, então, despedir-se do Nordes-te para estudar na capital paulista. “Foi preciso partir para poder redescobrir os sertões”, diz ela. Para seu projeto de dissertação, a jovem arquiteta tinha um trunfo: a originalidade da pesquisa sobre as casas de Seridó. “Quase ninguém co-nhece aquele patrimônio. Quis apresen-tar essa realidade nas minhas pesquisas.”

acervo arQuitetônicoNathália investigou o acervo arquitetô-nico rural do Seridó, de formas simples e austeras, sem o apelo estético de ou-tros exemplares do litoral nordestino. Essas construções, entre casas de famí-lias, casas de farinha e engenhos, repre-sentam um tipo de economia do século XIX alicerçado no pastoreio e no cultivo de algodão. Embora fundamental para a identidade da região, segundo o estudo, esse acervo composto por 52 edificações conta com poucas iniciativas concretas para tornar viável sua preservação.

No início do século XVII, com o po-voamento do interior do Rio Grande do

exemplos da arquitetura sertaneja na paraíba: andar do sótão de casa da fazenda Dois riachos (à esquerda); sede da fazenda sobrado (abaixo); e casa da fazenda santa Casa (à direita)

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arquitetônica das casas-sede, explorando uma lacuna na historiografia brasileira sobre as relações sociais e suas conse-quências materiais nos sertões, ainda hoje um universo inóspito e incógnito, marcado por longas distâncias e imensos vazios. Esses territórios ficaram esqueci-dos, apesar de presentes na literatura e nos relatos memorialistas. Daí brotaram generalizações sobre o Nordeste e sua arquitetura rural, ainda compreendida a partir dos padrões dominantes da Zona da Mata pernambucana e do Recôncavo Baiano – o que, nas palavras da pesquisa-dora, não condiz com a realidade.

oriGinalidade do temaO novo trabalho será bancado com o prêmio ganho em dezembro e desen-volvido com o apoio de Beatriz Bueno, da FAU-USP. “O projeto de Nathália foi escolhido pela originalidade do tema e pela oportunidade que nos proporciona de compreender o processo de ocupa-ção do sertão brasileiro e suas dimen-sões econômica, histórica e social”, diz o coordenador do Comitê Cultural da Odebrecht, Márcio Polidoro. Na econo-mia, ela destacará o ferro que marcava o gado e que permitia identificar a fazenda

de acordo com a pesquisadora, a arquitetura rural sertaneja não segue modelos

do São Francisco e Alto Sertão Baiano), a pesquisadora notou a heterogeneidade das construções arquitetônicas nas rotas do gado no Nordeste, que mantinham um mercado interno agitado, embora desconhecido, no cal-canhar da economia do litoral exportador. Eram ainda constru-ções pensadas para a realidade sertaneja, com sótãos e outras estruturas propícias para arejar os ambien-tes castigados pela al-ta temperatura e pelo tempo seco.

Contornando ri-beiras e atravessan-do sertões, Nathália Diniz construiu suas investigações a partir de vestígios de tijolo, pedra e barro. Muitas casas de taipa, men-cionadas nos arquivos, não resistiram ao tem-po e desapareceram. Restaram fazendas formadas por casas-sede e currais. Entre as características da maioria das constru-ções estavam à disposição dos ambientes: os serviços nos fundos do terreno, com tachos de cobre, pilões, gamelas; e a in-timidade da vida doméstica no miolo das edificações, com mobiliário trivial, como mesas rústicas e redes, assentos de couro e de sola, baús e arcas de madeira. Em muitas fazendas, em paralelo a criação de gado, cultivaram-se cana-de-açúcar e mandioca, de onde viriam a rapadura e a farinha, que, ao lado da carne de sol, tornaram-se a base da alimentação ser-taneja. “A arquitetura rural não segue modelos”, diz Nathália. “Os primeiros proprietários dessas casas eram filhos dos antigos senhores de engenho do litoral. Se a arquitetura rural tivesse um modelo, eles teriam construído casas similares às de seus pais no litoral, o que não ocor-reu. A arquitetura dos sertões mostra a formação de uma sociedade a partir da interiorização dos sertões do Norte, de uma economia marcada pelo gado.”

Depois do doutoramento em São Pau-lo, a pesquisadora retornou a Natal, onde é professora de história da arte e de ar-quitetura no Centro Universitário Facex. Seu projeto atual é aprofundar a análise

projetopaisagem cultural sertaneja: as fazendas de gado do ser-tão nordestino (nº 2009/09508); modalidade bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável beatriz piccolotto siqueira bueno; bolsista Nathália Maria Montenegro Diniz; investimento r$ 130.587,92 (fapesp).fo

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à qual pertencia – até agora, a pesquisa-dora já coleciona 653 desenhos de ferro diferentes. “Num sertão disperso, sem fronteiras claramente visíveis, pontua-do por tribos indígenas inimigas, o gado carregou a representação do território e da própria propriedade dos que vinham de outros lugares”, define. Na sociedade, ao cruzar os inventários post-mortem encontrados nos arquivos e nas casas, pretende compreender e revelar a vida cotidiana do sertanejo que se desenrola-va a morosos passos no século XIX. Fará novas viagens para refazer fotografias e rever anotações. Mais uma vez, um re-torno às suas raízes e às terras, tão di-ferentes das que via nas novelas na sua infância. “Ainda procuro o que buscava desde o início: quero mostrar o que eram esses outros sertões. Nós conhecemos a riqueza da arquitetura litorânea, a arqui-tetura do açúcar e do café. Falta a arqui-tetura sertaneja”, conclui. n

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neldson marcolin

Maior parte das pesquisas

de emil snethlage,

realizadas com indígenas

em rondônia nos anos

1930, permanece inédita

memÓria

A Alemanha guarda desde os anos 1930 registros únicos de indígenas do alto rio Madeira e do vale do rio Guaporé, em Rondônia. São informações sobre

costumes, localização, anotações de palavras e frases de línguas de etnias em via de desaparecer, além de fotografias, um filme mudo de danças e rituais, músicas gravadas em cilindros de cera, 2.400 objetos e depoimentos de nativos, que auxiliariam os descendentes dos habitantes daquela região a resgatar um período de sua própria história. Parte desse acervo está disponível para consulta no Museu Etnográfico de Berlim e no Arquivo Fonográfico de Berlim. Outra parte, igualmente importante, permanece inédita com Rotger Snethlage, filho do etnólogo Emil-Heinrich Snethlage, pesquisador alemão que realizou um extenso trabalho de coleta e observação durante duas longas visitas ao país.

Emil Snethlage (1897-1939) era sobrinho de Emilia Snethlage (1868-1929), ornitóloga alemã contratada por Emílio Goeldi para o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém, no ano de 1905. Emilia é uma das principais cientistas da história do museu, que dirigiu em duas ocasiões. As histórias e cartas da tia inspiraram o filho

histórias na gaveta

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“O diário de campo de Snethlage é um material riquíssimo para antropólogos e descendentes dos povos indígenas visitados por ele”, diz o linguista holandês Hein van der Voort, pesquisador do MPEG, que trabalha com os índios do Guaporé e teve acesso ao manuscrito. Em 2009, nove índios daquela região visitaram museus da Basileia (Suíça), Viena (Áustria), Leiden (Holanda) e Berlim. Eles levaram objetos originais de seus povos e conheceram os acervos indígenas dessas instituições. “Uma indígena reconheceu em uma gravação feita por Emil nos anos 1930 as músicas cantadas por seu pai; outro, de uma etnia que quase foi extinta, redescobriu nomes de antepassados, já perdidos no tempo”, conta Gleice, que acompanhou o grupo que viajou por meio de um projeto financiado por museus europeus e um antropólogo alemão. Se conseguirem publicar o diário de Emil em alemão e português, muitas outras informações se tornarão disponíveis.

de seu irmão a seguir carreira científica como pesquisador viajante. Aconselhado por ela, Emil estudou botânica e se doutorou em 1923 em Berlim.

No mesmo ano ele veio para o Brasil e iniciou uma expedição – acompanhada em parte por Emilia – por vários estados do Nordeste para ajudar a formar uma coleção para o Museu Field de História Natural de Chicago, nos Estados Unidos. Orientado pela tia, Emil catalogou 449 espécies de aves e escreveu três artigos para o Journal für Ornithologie. Também encontrou vários povos indígenas pelo caminho, sempre tomando notas sobre sua cultura. Voltou para a Alemanha em 1926 e uma palestra na Sociedade Berlinense de Antropologia o levou a ser contratado como assistente pelo Museu Etnográfico de Berlim. Rapidamente Emil deixou a botânica e a zoologia em segundo plano para abraçar a etnologia.

Em 1933 voltou ao Brasil a serviço do museu berlinense e conheceu o vale do rio Guaporé, na parte fronteiriça entre Brasil e Bolívia, a mesma região visitada por Claude Lévi-Strauss anos mais tarde. Snethlage ficou na área até 1935 e esteve em contato com pelo menos 13 etnias. Nesse período escreveu um extenso diário, além de fazer gravações, fotos e pelo menos um filme mudo.

“Os estudos feitos por ele são o único registro científico e sistemático daqueles povos indígenas entre as décadas de 1930 e 1950, mas permanecem inéditos na maior parte”, diz Gleice Mere, jornalista e fotógrafa pós-graduada em

design fotográfico na Alemanha. Ela é a procuradora do acervo de Emil Snethlage no Brasil e pesquisadora independente, sem vínculo institucional. Na edição de setembro-dezembro de 2013 do Boletim do MPeG – Ciências Humanas ela publicou um artigo científico com notas biográficas, análise das duas expedições do pesquisador e cartas do etnólogo Curt Nimuendajú.

Emil escreveu 1.042 páginas de diário de campo. Não conseguiu publicar a maior parte dos estudos feitos no Brasil porque morreu precocemente, aos 42 anos, em consequência de uma embolia pulmonar. “De acordo com Rotger”, conta Gleice, “depois da morte do pai, sua mãe, Anneliese, datilografou o manuscrito e o protegeu dos nazistas – Emil não era membro do partido de Hitler – e dos bombardeios a Berlim”. Hoje, Rotger, na Alemanha, e Gleice, no Brasil, tentam obter financiamento para publicar esse material.fo

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1 snethlage na reserva técnica do Museu etnográfico de berlim, nos anos 1930

2 sequência de filme mudo de snethlage mostra índios amniapé e guarategaja jogando bola de látex, que podia ser tocada exclusivamente com a cabeça (s/d)

3 índio apinajé, provavelmente no Maranhão (s/d)

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pesquisador e violeiro,

ivan vilela lança livro

sobre o universo caipira

ivan vilela se apresenta em

goiânia em julho de 2013: a viola foi

feita pelo luthier vergílio arthur de

Lima, de sabará

compositor, arranjador, pesquisador e pro-fessor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

na cadeira de viola caipira, história da música po-pular e percepção musical, Ivan Vilela, paralela-mente à carreira de músico e instrumentista, vem contribuindo de forma incisiva para a valorização do instrumento que assumiu em 1995, bem como todo o universo que o envolve. Em 1997, quando lançou o primeiro de uma série de elogiados dis-cos de viola, Vilela começou uma ampla pesquisa desse universo caipira, que transformou em tese de doutorado em 2007 e agora ganhou edição em livro: Cantando a própria história – Música caipira e enraizamento (Edusp).

No prefácio, o professor Alfredo Bosi sugere que o livro “deve ser lido como um generoso tri-buto à cultura popular brasileira”. Vilela intro-duz o leitor ao universo da viola apresentando a história do instrumento, desde as origens árabes e ibéricas e as variações de modelos e afinações. Em seguida, com citações de vários clássicos im-

lauro lisboa Garcia

arte

tributo à cultura popular

1

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tipos de viola caipira: Minervino, viola de queluz e viola do zé Coco do riachão

portantes da música caipira, o autor analisa todo o histó-rico e as transformações por que passou a viola desde que chegou ao Brasil na época do Descobrimento – das raízes, passando pela urbanização diluída no mercado, até uma “volta às origens”.

A ideia toda desse traba-lho vem do doutorado feito na Psicologia Social da USP sob orientação da Ecléa Bo-si, que trabalha com memó-ria oral. “Fiz história antes de estudar música, não cheguei a terminar o curso, mas o que sempre me incomodou foi a falta de a história ser contada pela perspectiva do povo pe-queno, que é um povo com o qual sempre lidei”, diz Vilela.

A segunda metade do livro é composta de entrevistas com personagens desse “povo pe-queno”, migrantes que contam suas memórias a partir de um questionário comum a todos. Muitas lembranças são asso-ciadas à música que se ouvia no rádio, veículo que Vilela considera de fundamental importância na difu-são da música caipira e de viola a partir dos anos 1920. Centrando sua tese nas figuras do violeiro e do migrante, o pesquisador contesta teorias de estudiosos como a do sociólogo Waldenyr Caldas, especialmente na questão da radiodifusão, bem como a da popularização do disco, que teriam de-turpado essa música que vem do sertão.

“Quem faz música caipira nunca entrou no mé-rito da questão musicológica, porque quem escre-veu sobre isso normalmente foi historiador, cien-tista social, sociólogo. Há algo depreciativo na mí-dia sobre esse tema”, diz. “É um absurdo falar que esse tipo de música foi transmutada, prostituída a partir do disco. Não foi. Na realidade o disco e o rádio foram grandes armas de divulgação.”

Na questão da identidade nacional e do regio-nalismo, ele levanta, entre outras questões, o pre-conceito com o linguajar do caipira e uma série de características que são tratadas com desdém pela elite urbana. “Com o advento da Repúbli-ca, em fins do século XIX, o ideal positivista fez com que toda a tradição oral ligada à escravidão e às relações patrimoniais fosse jogada fora”, diz o pesquisador. “E antes, quando a nossa cultura popular estava sendo criada, nos séculos XVIII e XIX, a elite estava olhando para fora, tentando ser europeia. Ela não presenciou esse processo

sócio-histórico e ainda hoje vê essa cultura e não a reconhece como sua.”

Vilela alerta para o alto grau de complexidade das composições, que se nota a partir da trans-crição para a partitura. “Como é uma música que está presa ao texto, as divisões de tempo são total-mente atípicas, muito complicadas, difíceis mesmo de ler”, diz. São outros parâmetros, diferentes da sofisticação harmônica que se valoriza dentro da MPB, segundo ele. “As texturas construídas em música folclórica, em música caipira, a gente que estuda não é capaz de fazer. Há outras sofisticações que nunca foram levadas em conta, principalmente por causa da depreciação sócio-histórica.”

Há um CD acompanhando o livro, Paisagens, que o violeiro lançou em 1998, interpretando uma maioria de composições próprias. O refinamento de seu trabalho, desde esse disco complementar ao livro, representa tanto uma abertura como a manutenção de um ideal dentro do universo cai-pira. O autor diz que a mensagem subliminar que há no livro é a defesa da cultura popular como assunto de segurança nacional, como ele vê nos países desenvolvidos. “Todo esse sentimento de nação, de coletivo, de povo, que existe nesses países, vem de pensar conjuntamente, e não in-dividualmente como fazemos no Brasil”, observa. “Isso está ligado à cultura popular.” nfo

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Começa hoje, em são Paulo, o Congresso Internacional do Medo, no teatro da aliança Francesa. Idealizado pelo filósofo e jornalista adauto Novaes, o encontro homônimo ao poema de Carlos Drummond de andrade, publicado em 1940, em Sentimento do mundo, reúne 14 intelectuais estrangeiros e do Brasil para falar da relação entre medo e política.

[Folha de s. Paulo, 24 de agosto de 2004]

é sabido que depois do ataque às torres gê-meas não há quem durma sem remédios, quem festeje o aniversário sem pensar que

talvez seja o último, quem ainda queira colocar filhos no mundo. Eu mesma renunciei a esse pro-jeto no dia seguinte ao atentado.

Desde o acontecido, o cheiro da fumaça, os gritos, a lembrança dos corpos saltando, a grossa camada de cinzas nas calçadas intoxicam meu espírito e obnubilam meus pensamentos, que nunca foram dos mais cristalinos.

Hoje de manhã tudo voltou à lembrança ao receber um telefonema do Brasil me convidan-do para participar do Congresso Internacional do Medo.

O evento será realizado em São Paulo no mês que vem para celebrar o terceiro aniversário da tragédia.

O organizador ficou de me mandar a progra-mação por e-mail.

Prometi pensar sobre o assunto mas fui logo avi-sando que nunca mais pus os pés num avião nem passei perto de aeroporto. Não posso nem pensar em voar para um lugar tão longe da minha casa.

Outro dia uma sobrinha minha fez aniversá-rio em Elizabethtown, mas cadê coragem pra ir?

Cabe a intelectuais como você apontar caminhos para que possamos sobreviver ao medo e não ser-mos paralisados por ele, escreveu o organizador no e-mail que me enviou.

Fiquei lisonjeada ao ver meu nome ao lado de pensadores ilustres que, como eu, têm se debru-çado sobre o medo como objeto de estudo.

Ah, caro senhor, soubesse eu o caminho para superar o medo e não viveria no estado que te-nho vivido.

Deus sabe quanto me custa sair da cama pela manhã, ir à universidade, dar aulas, corrigir pro-vas, fazer reuniões e voltar correndo pra casa an-tes que escureça, tomar meus remédios e dormir até o dia seguinte, quando o despertador toca e o tormento recomeça.

Ph.D. em Antropologia pela Columbia Univer-sity, estudo a história do medo há muitos anos. Tenho centenas de artigos publicados sobre o assunto no mundo todo. O medo primitivo do homem primitivo; O medo médio do homem da Idade Média; O medo da morte nos silvícolas da américa Central; O medo moderno do homem do século XX; O medo como pauta para o século XXI; O medo do medo é o pior dos medos e por aí vai.

Do primeiro vagido ao último suspiro vivemos sob a égide do medo. Não só ao nível do sujeito, na escala individual, como na escala social, pos-to que as sociedades civilizadas têm seus pilares fincados no medo.

O medo faz parte constitutiva do ser humano. Eu o chamo de exoesqueleto emocional, já que sem ele não paramos em pé.

O farol do medo ilumina nossos passos desde que pusemos o pé pra fora da caverna. Graças a ele chegamos sãos e salvos até aqui.

Olhando minha produção acadêmica, pode-se ver que sempre tive o medo em grande conta e enalteci-lhe as virtudes.

conto

congresso internacional do medoivana arruda leite

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ivana arruda leite nasceu em 1951, em araçatuba; é mestre em sociologia pela universidade de são paulo. publicou os livros de contos Falo de mulher e Ao homem que não me quis e os romances Hotel Novo Mundo e Alameda Santos. também escreve livros infantis e infantojuvenis.

Até os esportes têm lá sua parcela de culpa. O que são as Olimpíadas se não um espetáculo de horror a todos os que não conseguem alcançar o ideal da perfeição, do tempo recorde, da supera-ção de obstáculos? Os fracos se apavoram diante de corpos com tamanha competência.

E as babás, senhores, essas almas perversas que nos mitigam o medo quando ainda somos totalmente indefesos, fazendo com que sejamos perseguidos pelo resto da vida por lobos maus, bruxas com caldeirões ferventes, dragões que soltam fogo pelas ventas, velhinhas que tranca-fiam crianças em jaulas.

Depois disso tudo, um emérito sociólogo por-tuguês ainda tem coragem de falar que o terror é um “instrumento político do governo dos Es-tados Unidos”?

Quanta insanidade.Pensando bem, nem acho que o Brasil seja o

lugar ideal para a realização de um congresso desse tipo. Os brasileiros me parecem folgazões em excesso para analisar um tema tão sombrio. Seu destemor beira a inconsequência.

Um povo que consegue chamar de festa um dos espetáculos mais aterrorizantes da face da terra está longe de poder compreender o medo com a seriedade que ele exige.

Durante três dias a multidão entope as ruas das grandes cidades com gritos ensurdecedores e fantasias apavorantes ao som de uma músi-ca infernal. Isso sem contar os touros que saem desembestados, pisoteando quantos encontram pelo caminho.

Eles resolvem o problema do medo na base da cachaça. E nós? Que saída temos?

Por fim, leio que o simpósio é aberto a todos os interessados e reconhecido como curso de exten-são universitária. Recebem o certificado aqueles que comparecerem a 75% das conferências.

Prometi pensar no assunto, mas é certo que não irei.

Mas hoje isso é página virada. O terrível acidente das torres gêmeas me fez

experimentar na carne o lado negro do medo, seu poder paralisante.

O medo na verdade é um poderoso instrumento de tortura da alma humana. É assim que tenho vivido. Torturada pelo medo.

Pra piorar, pelo que vejo na programação, a tendência do tal congresso é culpar-nos (os Es-tados Unidos e os americanos) pela instauração do medo como modus vivendi do século XXI.

Que loucura!Como podem acusar-nos de espalhar o medo

quando somos os que mais sofrem com ele? So-mos vítimas e não algozes. O medo veio do Mé-dio Oriente, senhores. Foi a turma do Bin Laden quem trouxe a notícia que o fim do mundo está próximo. Quem quiser achar que isso é fantasia americana, que ache.

Um importante físico francês, integrante do Comissariado de Pesquisa Atômica, fará uma palestra sobre a ciência como ameaça da huma-nidade. Hoje somos capazes de construir bombas capazes de exterminar não sei quantos mundos iguais ao nosso.

Mas eu pergunto: seriam os Estados Unidos e a ciência os únicos vilões dessa história?

Não vejo na programação, por exemplo, nenhu-ma alusão à religião como propagadora mundial do medo. Não são elas que nos assustam desde o berço com demônios e ameaças de fogo eterno? Por que não cobrar explicações dos padres, bispos, rabinos e aiatolás que se regozijam em colocar-nos de joelho frente ao poder terrificante do sagrado?

E as artes, não são elas também culpadas pelo estado de pânico em que vivemos? O que fizeram Picasso, Schoemberg, Stravinsky, Baudelaire, Ver-laine, Rimbaud, Kerouak, Ginsberg, Burroughs, Buñuel, Fellini, Godard, Kafka se não jogar uma pedra na plácida superfície do cotidiano e reve-lar-nos uma dimensão assustadora da realidade que desconhecíamos?

E Freud? E Nietzsche? As artes, a psicanálise e a filosofia se dedicam

com afinco à tarefa de deixar-nos num estado de insônia permanente. L

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das Doenças aos artigos que identificam e discutem instituições, acervos e projetos relacionados com a institucionalização e disponibilização de docu-mentos para a pesquisa na área da medicina, saúde, instituições e práticas médicas, de cura e cuidado.

Em meio a artigos de grande interesse, entre os quais a excelente abordagem de Ana Maria Galdini Raimundo Oda, que traça o percurso do banzo no capítulo “Escravidão e nostalgia no Brasil: o ban-zo”, emergem aspectos que, se não comprometem, de certo modo fragilizam a qualidade do conjun-to. Trata-se, no caso, da ausência de imagens nos dois capítulos inseridos na parte inicial do livro, O Imaginário sobre a Doença. Ambos constroem suas análises a partir de objetos imagéticos: a charge e as artes visuais na expressão de ex-votos e da pintura de a virgem e o menino. Nos capítulos “Doença e medo: charges, sentidos e poder na sociedade midiá-tica”, de Nilson Alves de Moraes, e “Arte e doença: imaginário materializado”, de Maria Izabel Branco Ribeiro, os leitores são privados da substância que compõe a análise, ou seja, as imagens. A omissão se torna uma lacuna praticamente imperdoável quando se confrontam a qualidade geral da edição e o ótimo projeto gráfico desenvolvido.

As organizadoras foram hábeis na caracteriza-ção das seções que subdividem a coletânea. Além das partes mencionadas, encontram-se ainda as seções Doenças e Medos na Formação da Socie-dade Brasileira e A Difusão dos Medos. Ao longo das subdivisões, se alinham trabalhos com novas temáticas, como o capítulo do experiente histo-riador José Carlos Sebe Bom Meihy, “O caminho do medo: apagamento das raízes brasileiras do debate sobre o tabaco”. Outros pesquisadores igualmente experientes retomam seus repertórios de pesquisa, como Cláudio Bertolli, André Mota, Rita de Cássia Marques, Beatriz Kushnir e Yara Maria Aun Khoury. Amparados pela competência habitual, atualizaram ou amplificaram suas abor-dagens e contribuíram para qualificar a obra como referência no campo da história social da saúde, da medicina, da cura e do cuidado.

as doenças e os medos sociais é um livro que merece ser lido, consultado e indicado. Or-ganizado por Yara Nogueira Monteiro, pes-

quisadora do Instituto de Saúde (SES-São Pau-lo), e pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro (FFLCH-USP), a obra é uma coletânea de 16 arti-gos distribuídos em quatro seções. Produzida por pesquisadores de diferentes instituições, a edição compõe o catálogo da Editora Fundação de Apoio da Universidade Federal de São Paulo (FAP-Unifesp).

O livro é resultado de um seminário promovi-do em 2009 pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Univer-sidade de São Paulo (LEER-USP) – centro mul-tidisciplinar de pesquisa criado em 2005 que se organiza em torno de diferentes núcleos. O Nú-cleo de Estudos sobre Discriminação promoveu o seminário que originou o livro. Com o propósi-to de relacionar as doenças, os aparatos de saú-de, as intervenções estatais e paraestatais com o preconceito e a discriminação oriundos do temor provocado pela disseminação e contágio de males desconhecidos – ou insuficientemente controlados –, a obra reproduziu e ampliou a participação dos pesquisadores naquele seminário.

Em razão do formato original, a publicação não oferece um tratamento estrito dos medos sociais relacionados com as doenças, mas um conjunto de proposições analíticas que convergem ou tangen-ciam a temática anunciada. A diversidade e ampli-tude de autores asseguram a variedade dos temas e das abordagens, mas evidenciam também uma acentuada assimetria na densidade dos artigos. A transposição imprimiu certa ambiguidade e tensão ao resultado. Ainda que a obra em seu conjunto mantenha relevância e interesse, alguns capítu-los teimam em escapar da temática proposta em direção às áreas de pesquisa nas quais os autores firmaram suas trajetórias acadêmicas.

A ambiguidade mencionada pode ser verificada pela presença de conteúdos que não são exatamente inéditos, mas que, ainda assim, propiciam releituras pertinentes e bem-vindas. Para acomodar capítu-los que não tratam exatamente dos medos e das doenças, mas de questões paralelas e relevantes para a pesquisa em saúde, as organizadoras ado-taram recursos engenhosos na edição do material. Destinaram a última seção Fontes para a História

vertentes do medo, na saúde e na doença

resenhas

as doenças e os medos sociaisyara Nogueira Monteiro e Maria Luiza tucci Carneiro (orgs.)fap-unifesp editora432 páginas, r$ 60,00

maria Gabriela s.m.c. marinho

maria Gabriela s.m.c. marinho é doutora em história social e docente da universidade federal do abC (ufabC), onde coordena o Núcleo de Ciência, tecnologia e sociedade. atua também como pesquisadora associada do Museu histórico da faculdade de Medicina da usp.

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seu legado à cultura brasileira. O livro é fartamente ilustrado com imagens de eventos e documentos de época, o que contribui para a reconstrução his-tórica dos primeiros 15 anos de trajetória do MAC.

Alguns aspectos da prática intelectual de Zani-ni analisados pela autora devem ser salientados: a ideia de um museu que põe em convivência o acervo histórico e a contemporaneidade, trans-formando-se em lugar para a ação dos artistas – um museu como espaço operacional onde pro-dução e recepção podem confluir; a procura de uma ação em rede, capaz de causar forte efeito sobre a realidade cultural, criando-se um trânsito de exposições e obras, de ideias e inovações no campo da arte e da museologia, com as mostras de arte postal e exposições itinerantes de acer-vo ou com exposições internacionais relevantes trazidas ao museu. Desenha-se o perfil de um diretor de museu que pensou a criação da Asso-ciação dos Museus de Arte do Brasil (Amab), a qual proporcionaria intercâmbios entre os mu-seus brasileiros; um diretor que, mais tarde, em reunião dos Museus de Arte Moderna (Cimam), lançará a ideia de uma associação de museus latino-americanos e depois, quando foi curador da 16ª e 17ª bienais, projetaria uma associação de bienais. Portanto, um diretor que pensava práti-cas na esfera das políticas públicas.

A autora informa que, para ampliar a comuni-cação com o público, além do boletim informativo mensal do MAC, Zanini concebeu um programa, que não se concretizou, de mostras para serem realizadas em um vagão de trem especialmente adaptado (o projeto chegou a ser feito por Lina Bo Bardi). Deslocando-se, o trem levaria às ci-dades do interior do estado de São Paulo expo-sições de arte e outras atividades culturais como conferências.

A construção por Zanini de um acervo multi-mídia para o museu e suas inovações na organi-zação da Bienal de São Paulo são outros pontos densamente analisados pela autora.

O livro é leitura obrigatória para os interessa-dos em arte e cultura, exposições e museologia.

o livro reúne um conjunto de textos de au-toria de Walter Zanini, professor da Uni-versidade de São Paulo (USP), falecido em

janeiro de 2013. Zanini era historiador e crítico de arte, foi o primeiro diretor do Museu de Ar-te Contemporânea (MAC) da USP, responsável por sua instalação junto à universidade. Alguns textos constantes da publicação são inéditos; uma grande parte resulta de sua reflexão moti-vada pelo desafio de construir um projeto para o novo museu que nascia em São Paulo; outros foram elaborados em função das suas curadorias na bienal ou de participação em eventos.

Os temas são: museus e museologia, novas tec-nologias em arte – em especial videoarte, que sur-gia na época, bienais, universidade, arquitetura de museus. E há também comentários sobre artistas modernos e contemporâneos, apresentações de ex-posições que organizou e textos sobre os desafios de um museu atento à atualidade da arte e da cultura.

O projeto de publicação é de Cristina Freire, primeira professora titular do MAC. O livro resul-ta de seu trabalho de pesquisa sobre arte concei-tual que a levou a investigar a gestão do professor Zanini, incentivador e introdutor dessa vertente da arte na instituição, ao promover eventos que resultaram na formação do mais importante acer-vo internacional da América do Sul nesse campo.

Com a seleção de textos realizada, Cristina Frei-re desenha a personalidade intelectual de Zanini, ao mesmo tempo que revela seu perfil vanguardista no desafio de construir um novo museu da USP. O livro traz ainda cronologia de todas as exposições realizadas pela instituição na gestão de Walter Zanini, que se estendeu de 1963 a 1978.

Em sua apresentação – um denso estudo sobre a prática intelectual de Zanini — a organizadora põe em evidência que, naquele período, o MAC-USP se tornaria um laboratório para os artistas, assim como seria um espaço de inovações pertinentes a um museu em coerência com as novas tendên-cias da arte. Freire observa que “a serem levadas a outros contextos, essas ideias transformariam radicalmente as maneiras de conceber exposições e instituições nas décadas seguintes no Brasil”.

Na leitura do ensaio da autora e dos textos que reuniu em Walter Zanini, escrituras críticas tem-se a oportunidade de conhecer a trajetória de Zanini e

trajetória intelectual e vanguarda

Walter zanini: escrituras críticasCristina freire (org.)anablume / MaC usp / fapesp420 páginas, r$ 50,00

lisbeth rebollo Gonçalves

lisbeth rebollo Gonçalves é professora titular da escola de Comunicações e artes da universidade de são paulo (eCa-usp) e presidente da associação brasileira de Críticos de arte (abCa).

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carreiras

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cientistas empreendedorespesquisadores dividem o tempo entre institutos de pesquisa e as próprias empresas

empresas | retribuição

O físico Vladimir Airoldi, de 59 anos, se divide, há quase 17 anos, entre o trabalho como pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a administração de sua empresa, a Clorovale, também instalada na cidade paulista de São José dos Campos. Ele adaptou a tecnologia de diamantes sintéticos utilizados na indústria espacial para brocas odontológicas e outros equipamentos como brocas de perfuração de poços de petróleo. Hoje já exporta para países da América do Sul e Europa, e atingiu o faturamento de R$ 4 milhões em 2013. Airoldi começou a empresa em 1997, quando foi aprovado um projeto dentro do Programa Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe) da FAPESP.

“O Inpe tem o regime jurídico único, o que significa trabalhar 40 horas por semana, em período integral, mas não exclusivo”, explica. “Houve dias, quando estava montando a empresa, que trabalhei 20 horas.” Airoldi diz que quase todos os dias passa na empresa às 7 horas e às 8 horas já está no Inpe. Passa novamente na Clorovale na hora do almoço e à noite, depois do expediente no instituto, quando se dedica mais à empresa. Hoje ele tem diretores na administração, na parte comercial e tecnológica da Clorovale, muitos seus ex-alunos de doutorado. “O mais difícil é gerir a inovação, principalmente no início”, diz. Para melhorar a gestão, ele fez um curso de Master Business Administration

(MBA). “Também fui estudar a cultura de inovação em outros países”, diz. Airoldi poderia ter recorrido à Lei da Inovação e pedido licença do Inpe para tocar a empresa. “Mas a saída significa cortar o cordão umbilical do processo de inovação que é constante no Inpe”, explica.

Outro físico, Spero Morato, de 70 anos, também montou a sua empresa com os conhecimentos adquiridos em mais de 30 anos de trabalho como pesquisador no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, onde chegou à superintendência, cargo equivalente à presidência. No caso de Spero, a ideia de fazer uma empresa veio após a aposentadoria, em 1995. “Fui chamado pela Organização das

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retribuiçãO

dívida pagabiólogo volta ao brasil para instalar o primeiro laboratório de neuroproteômica da américa Latina

O biólogo Daniel Martins-de-Souza retornou ao Brasil este mês depois de seis anos no exterior com uma dívida paga e uma missão científica ambiciosa. A dívida refere-se ao apoio que recebeu por oito

anos em bolsas e auxílios da FAPESP. “Estudei em universidade pública, recebi financiamento de agência do Estado e creio ser justo trazer para o país o que aprendi nos anos que fiquei fora”, diz ele. A missão é instalar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) o primeiro laboratório de neuroproteômica da América Latina com a meta de desenvolver um método preditivo para a esquizofrenia. O projeto foi aprovado no âmbito do programa Jovens Pesquisadores, da Fundação.

Martins-de-Souza percebeu sua predileção pela carreira científica cedo. O Departamento de Bioquímica da Unicamp tinha em seu programa de pós-graduação a política de admitir para doutorado direto os alunos que houvessem publicado artigos resultantes da iniciação científica. “Era exatamente o meu caso”, conta. Seu tema de estudo era a proteômica com a pretensão de descobrir aplicações para a saúde humana. Achou o orientador ideal quando conheceu Emmanuel Dias Neto, do Hospital A.C. Camargo, na época no Departamento de

Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Depois do doutorado, durante o qual passou seis meses na Alemanha, Martins-de-Souza fez um curto pós-doutorado na Unicamp, em seguida outro no Instituto de Psiquiatria do Instituto Max Planck (Alemanha), com bolsa paga pelos alemães, e um último pós-doc na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, a convite de Sabine Bahn, criadora do primeiro teste molecular para o diagnóstico de esquizofrenia. “Isso culminou com meus interesses em esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas”, diz ele.

Agora, aos 34 anos, ele está de volta, mesmo com possibilidades reais de conseguir uma posição como professor na Europa e nos Estados Unidos. Vai montar o laboratório de neuroproteômica no Departamento de Bioquímica da Unicamp com auxílios de R$ 208.899,00 e US$ 329 mil, além de um espectrômetro de massa, que será concedido como equipamento multiusuário. A diferença de estrutura entre o que existe de pesquisa no exterior e a encontrada no Brasil ainda é grande. “Estamos começando o laboratório do zero, mas com o financiamento concedido e a colaboração indispensável dos meus colegas, entre eles, os professores Wagner Gattaz, do Instituto de Psiquiatria da USP, e Marcos Eberlin, do Instituto de Química da Unicamp, vamos equiparar essa condição”, conclui Martins-de-Souza.

Nações Unidas (ONU) para dar cursos tecnológicos sobre aplicações de laser. Eu e outros professores demos cursos em vários países, mas eles terminaram em 1998. Quando voltei, percebi que poderia abrir uma empresa e foi o que fiz com um projeto aprovado no Pipe.” A empresa, a Lasertools, foi incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), que fica dentro do prédio do Ipen, na Cidade Universitária, em São Paulo. Ele convidou mais quatro pesquisadores do instituto que trabalhavam com ele na área de laser por algum tempo.

Em 2009, Spero voltou para o Ipen depois de ter ganho o título de pesquisador emérito. “Estamos desenvolvendo tecnologias para produtos da área médica e de biotérios que depois poderão ser transferidas para outras empresas.” Hoje ele tem 25 funcionários na Lasertools e fatura cerca de R$ 2,5 milhões por ano na manufatura de peças automotivas, produtos médicos e promocionais com laser. Também criou outra empresa, a Innovatech, que foi a pioneira na produção de stents no país. Esses pequenos cilindros metálicos são colocados nas artérias do coração obstruídas por placas de gordura ou cálcio para refazer a passagem do sangue. No ano passado, ele repassou a tecnologia de fabricação para outra empresa, a Scitech, de Goiás. Para os novos pesquisadores empreendedores, ele recomenda ter a visão do produto final. “É uma condição pessoal ser empreendedor, mas o Brasil não precisa apenas de tecnologia de última geração, tem muita inovação possível de ser feita com a tecnologia importada, que não temos aqui.” fo

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