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Bradicinina transforma células-tronco em células cerebrais transmissoras de informação Como fazer neurônios NOVEMBRO DE 2011 . WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR ENTREVISTA MARTA ROVIRA A Argentina restaura seu sistema científico URANO TORTO Dupla colisão alterou eixo de rotação do planeta AVE RUMINANTE Paleontólogo explica enigma da espécie HIPERTENSÃO Empresa desenvolve teste para diagnóstico MOTIM DO VINTÉM Sul dos EUA inspirou controle de revoltas do século xix no Brasil 9 771519 877001 00189 R$ 9,50 #189 PESQUISA FAPESP NOVEMBRO DE 2011 #189

Pesquisa FAPESP ed. 189

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Pesquisa FAPESP ed. 189, novembro de 2011

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Page 1: Pesquisa FAPESP ed. 189

Bradicinina transforma células-tronco em células cerebrais transmissoras de informação

Como fazer neurônios

novembro de 2011 . www.revistapesquisa.fapesp.br

EntrEvista Marta rovira A Argentina restaura seu sistema científico

urano torto Dupla colisão alterou eixo de rotação do planeta

avE ruMinantEPaleontólogo explica enigma da espécie

hipErtEnsãoEmpresa desenvolve teste para diagnóstico

MotiM do vintéM Sul dos EUA inspirou controle de revoltas do século xix no Brasil

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instituto datafolha

A satisfação com pesquisa FapEsp

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noventa e nove por cento dos leitores de pesquisa FapEsp a avaliam como uma publicação altamente satisfatória – 68% a consideram ótima e 31% boa. setenta por cento fazem parte da população economicamente ativa e, dentre estes, 58% são professores e 20% gestores e pesquisadores científicos. a idade média é de 47 anos e 39% têm renda acima de 10 salários mínimos.

todos esses indicadores saíram de pesquisa realizada pelo instituto datafolha entre julho e setembro deste ano com 858 assinantes pagos, assinantes clientes da fapesp (pesquisadores e bolsistas que aparecem como “cortesia”) e compradores em banca.

quando foi perguntado por quais motivos costumam ler a revista, 96% dos leitores se referiram espontaneamente à diversidade das reportagens, 34% aos assuntos de áreas de interesse e 26% para se manter atualizados. entre os assinantes pagos, 25% têm de 16 a 25 anos e, outros 25%, de 26 a 35 anos.

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fundamental/médio

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Buquê no látexmundos invisíveis aparecem nas imagens obtidas por microscópio eletrônico de varredura. na foto acima, um buquê do protozoário Phytomonas françai foi flagrado em seu ambiente natural, os dutos de látex nas folhas de mandioca. o parasita causa o chamado “chochamento” das raízes, ou seja, elas ficam muito pequenas.

Elliott KitajiMaEngenheiro agrônomo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), USP

FotolaB

se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 mb

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4 | novembro de 2011

66 sistema solarChoques com dois grandes objetos teriam feito eixo de rotação de Urano se inclinar 98 graus

tECnologia

68 biocombustíveisMenor compactação do solo e acesso a terrenos íngremes são inovações na colheita de cana

72 siderúrgicasNovo sistema produz de forma limpa carvão vegetal sustentável dentro de floresta de eucaliptos

76 controle de pragasPercevejo-marrom da soja pode ser monitorado com feromônio sintético desenvolvido pela Embrapa

78 proteínas recombinantesEmpresa investe no desenvolvimento de insumos para a pesquisa científica

huManidadEs

82 biografiaA experiência de salvar judeus na Alemanha nazista marcou a vida e a obra de Guimarães Rosa e sua mulher Aracy

88 memóriaAo questionar o senso comum, o economista Antônio Barros de Castro anteviu os rumos e as necessidades do Brasil

92 cultura arquitetônicaPioneirismo “esquecido” de Gregori Warchavchki é revelador das tensões da vanguarda nacional

96 rebeliões regionaisParticipação popular nas revoltas do século XIX foi maior do que se pensa

polítiCa CiEntíFiCa E tECnológiCa

32 comemoração FAPESP Week expõe e reforça os laços de pesquisa entre o Brasil e os Estados Unidos

35 História da fapesp viDas previsões meteorológicas ao aquecimento global, Fundação investiu nas ciências do clima

39 formação de engenheirosCarlos Américo Pacheco assume reitoria do ITA com a missão de duplicar o número de vagas

CiÊnCia

42 envelhecimentoAumento da expectiva de vida faz surgir novos problemas nas pessoas com deficiência mental

46 parede celularSamambaias têm estruturas diferentes das já encontradas

48 fósseisOrigens de ave amazônica que só come folhas e “rumina” estão na África

52 eventos extremosAlterações no campo magnético da Terra podem alertar sobre a chegada de tsunamis

56 Estudo explica a formação e o desenvolvimento dos ciclones na costa do Brasil

58 ano internacional da químicaEducação, ciência, tecnologia e inovação devem ser vistas de forma integrada

62 Caminhos de mão dupla ligam a pesquisa à indústria

18 Capamedicamento que controla a pressão arterial direciona o desenvolvimento das células cerebrais

imagem da capa neurônio (em vermelho) obtido a partir de células-tronco de rato

Crédito cleber trujillo / iq-usp

EntrEvista

24 Marta roviraa presidente da principal agência de apoio à pesquisa da argentina aposta na recuperação da capacidade científica de seu país

sEçÕEs

3 fotolab6 cartas7 carta da editora8 on-line 9 wiki10 dados e projetos11 boas práticas12 estratégias14 tecnociênciatecnociênciat30 memória100 resenhas102 arte104 conto106 classificados

novembronovembro 2011 #189

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pEsquisa FapEsp 189 | 5

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82

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35

agropecuária

arquitetura

astronomia

biotecnologia

botânica

economia

educação

engenHaria

evolução

farmacologia

física

fisiologia

geologia

genética

História

inovação

literatura

medicina

meteorologia

mudanças climáticas

neurociência

paleontologia

química

sustentabilidade

bioquímica

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6 | novembro de 2011

éticaBem-vindo o código de conduta para cientistas da FAPESP (“Boas práticas científicas”, edição 188). Boa parte dos tópicos nele abordados já vimos discutin-do em disciplina que ministro no Insti-tuto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP) desde 2008, “Ética para os profissionais de química”. Em nossos debates acabou se destacando a figura do “assessor anônimo”. Personagem criado para a avaliação de projetos e relatórios, mantido no anonimato para preservá-lo de possíveis represálias de solicitantes frustrados e que, assim tranquilizado, possa ser objetivo em seus pareceres. Prevaleceu em nossa conclusão que é equivocada a suposição de os cientistas serem mais isentos no anonimato do que em público. O anonimato abre espaço para subjetividades, manifestação de emoções nem sempre éticas e inquieta-ção geral, e torna eventuais represálias difusas, mas possíveis. Além da questio-nável aplicação de fundos públicos com base em recomendações anônimas. Está na hora de confiarmos na objetividade do cientista e contemplar no código de con-duta a abolição do assessor anônimo.tibor rabóczkay

iq/usp, usp, usp são paulo, sp

Parabéns à revista e ao boletim eletrô-nico por, enfim, contemplarem o tema (ética) que venho sugerindo e questio-nando já faz tempo. Mariangela amendola

feagri/unicamp, campinas, sp

EditorialSou professora de geografia de escola pú-blica e me encantei com o programa de rádio Pesquisa Brasil, que ia ao ar aos sá-bados, comandado por Mariluce Moura. Por ouvi-la no programa, passei a assinar Pesquisa FAPESP e suas reportagens en-riquecedoras têm ilustrado minhas aulas. Ao receber a edição 188, me surpreen-di com a Carta da Editora, em como a

jornalista transmite com encantamento assuntos relacionados à geografia física, tornando-os fascinantes. Tenha certeza de que essas palavras abrem novos hori-zontes, enriquecem meus conhecimentos e motivam minhas aulas.Maria Carolina Zázera Bazani

itapira, sp

jean-pierre Changeaux Estou no quarto ano de biotecnologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e gosto do curso. Porém esta-va desanimado, pois nenhum tema me despertava grande interesse. Tudo mu-dou quando li na edição 186 de Pesquisa FAPESP a entrevista com Jean-Pierre Changeaux. Fiquei admirado. Um trecho resume a entrevista e também a filosofia de Changeux: “... para irmos mais longe, é indispensável compreender a organiza-ção do sistema, compreender como ele se organiza para aceder às chamadas fun-ções superiores do cérebro ou funções cognitivas, que intervêm na aquisição do conhecimento. Essa é a minha ideia filosófica geral”. Me senti preenchido e sei que quero seguir essa ideia.paulo M. r. alexandrino

ufscar, são carlos, sp

Cartas [email protected]

cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim antunes, 727 - 10o andar - cep 05415-012 - pinheiros - são paulo, sp. sp. sp as cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

empresa que apoia a ciência brasileira

Celso lAferpresidente

eduArdo moACyr kriegervice-presidente

ConsElho supErior

Celso lAfer, eduArdo moACyr krieger, HoráCio lAfer PivA, HermAn jACobus Cornelis voorwAld, mAriA josé so

yr krieger, Horá josé so

yr krieger, HoráAres

mendes giAnnini, josé de souzA mArtins, josé josé so

josé josé so

tAdeu jorge, luiz gonzAgA belluzzo, sedi HirAno, suely vilelA sAmPAio, vAHAn AgoPyAn, yosHiAki nAkAno

ConsElho téCniCo-adMinistrativo

riCArdo renzo brentAnidiretor presidente

CArlos Henrique de brito Cruzdiretor científico

joAquim j. de CAmArgo englerdiretor administrativo

ConsElho EditorialCArlos Henrique de brito Cruz (presidente), CAio túlio CostA, eugênio buCCi, fernAndo reinACH, josé Ar

), Cosé Ar), C

AnAvArelA, josé eduArdo krieger, luiz dAvidoviCH, mArCelo knobel, mArCelo leite, mAriA Hermíni

rieger, Hermíni

rieger, A tAvAres de AlmeidA,

mArizA Corrênobel,

Corrênobel,

A, mAuríeite,

uríeite,

Cio tuffAni, moniCA teixeirA

CoMitÊ CiEntíFiColuiz Henrique loPes dos sAntos (presidente), Cylon gonçAlves dA silvA, frAnCisCo Antônio bezerrA CoutinHo, joão furtAdo, joAquim j. de CAmArgo engler, josé roberto PArrA, luís joão furt

, luís joão furt

Augusto bArbosA Cortez, luis fernAndezloPez, mArie-Anne vAn sluys, mário josé

ortez, luis fernn sluys, mário josé

ortez, luis fernAbdAllA sAAd,

PAulA montero, riCArdo renzo brentAni, sérgio queiroz, n sluys, mário josé

ni, sérgio queiroz, n sluys, mário josé d,

ni, sérgio queiroz, d,

wAgner do AmArAl, wAlter Colli

CoordEnador CiEntíFiColuiz Henrique loPes dos sAntos

dirEtora dE rEdaçãomAriluCe mourA

Editor ChEFEneldson mArColin

EditorEs ExECutivosCArlos HAAg (humanidades), fAbríCbríCbrí io mArques (pOLÍtiOLÍtiOLÍ Ca), mArCos de oliveirA (tetet CnOLOgia), mAriA guimArães (ediçãO On-Line), riCArdo zorzetto (CiênCia)EditorEs EspECiaisCArlos fiorAvAnti, mArCos PivettA

Editoras assistEntEsdinorAH ereno, isis nóbile diniz (ediçãO On-Line)

rEvisãomárCio guimArães de ArAújo, mArgô negro

Editora dE artElAurA dAviñA e mAyumi okuyAmA (COOrdenaçãO)

artEAnA PAulA CAmPos, mAriA CeCiliA felli

FotógraFoeduArdo CesAr

ColaBoradorEsAnA limA, André serrAdAs (banCO de imagensCO de imagensCO ), CAtArinAbessell, dAniel bueno, drüm, estevAn Pelli, furio lonzA, giovAnA AngerAmi, Heloís

ueno, mi, Heloísueno, rüm, mi, Heloís

rüm, A Pontes, igor zolnerkeviC,

márCio ferrAri, mAriA HirszmAn, mArizA romero, reinAldo josé loPes, tHeo firmo, tiAgo Cirillo, yuri vAsConCelos

é proiBida a rEprodução total ou parCial dE tExtos E Fotos sEM prévia autori

produção total ou par prévia autori

produção total ou parZação

produção total ou paração

produção total ou par

para falarcom a redação(11) [email protected]

para anunciar(11) [email protected]

tiragem 39.500 exemPlAres

gestão administrativainstituto uniemp

pesquisa fapesprua Joaquim antunes, no 727 - 10o andar, cep 05415-012pinHeiros - são paulo – sp

fapesprua pio Xi, no 1.500, cep 05468-901alto da lapa – são paulo – sp

secretaria de desenvolvimento econômico, ciência e tecnologia govErno do Estado dE são paulopaulop

fundação de amparo à pesquisa do estado de são paulo

para assinar(11) [email protected]

distribuiçãodinAP

impressãoPlurAl indústriA gráfiCA

issn 1519-8774

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pEsquisa FapEsp 189 | 7

Planos e peripécias Mariluce Moura

diretora de redação

Carta da Editora

Esta edição de Pesquisa FAPESP tem um caráter especial. Ela inaugura o novo pro-jeto gráfico da revista, em paralelo a leves

mudanças no projeto editorial. Trata-se de uma evolução que busca responder a recentes avalia-ções do conselho editorial e do comitê científico da publicação, no sentido de um aperfeiçoamento para tornar sua leitura mais agradável e fácil, sem nenhuma concessão, entretanto, ao rigor das informações e à relevância científica e jor-nalística dos temas escolhidos como objeto das reportagens, notícias e comentários.

Destaco entre os aspectos mais importantes desse novo projeto gráfico, cuja autora é nossa jovem editora de arte, a designer Laura Daviña, 29 anos, com suporte de nossa consultora Mayumi Okuyama, a escolha de uma família tipográfica para ser usada na revista inteira, lhe conferindo identidade clara e coesão, e o desenvolvimento de uma fonte exclusiva da Pesquisa FAPESP para a titulagem, trabalho do designer Paulo André Chagas, orientado por Laura a perseguir dese-nhos de letras que trouxessem uma harmonia entre formas geométricas puras e as chamadas formas orgânicas. Ressalto também, no campo da linguagem visual, o uso mais intenso da fotografia como fonte efetiva de informação, a eliminação dos grafismos, ou seja, dos elementos meramente decorativos que por vezes “enfeitavam” a revista e o recurso recorrente aos infográficos, nos quais fotos ou ilustrações são peças de uma estrutura narrativa. A capa se manterá em harmonia com a concepção geral do novo projeto gráfico, mas tivemos o cuidado de preservar a logomarca da revista muito próxima daquela que se afirmou ano após ano aos olhos de nossos leitores. Para os amantes do design, muitos outros detalhes do projeto podem ser lidos em nosso site.

Quanto ao que chamei de leves mudanças editoriais, será possível observar que, além de termos criado novas seções, concentramos pra-ticamente todas no começo da revista. É esse o caso de Wiki, respondendo a questões propostas pelos leitores, na página 9, e de On-line, na página 8, com dicas sobre nosso site. Também de Dados

e projetos, na página 10, que traz os mais recentes temáticos contratados pela FAPESP, além de uma tabela relevante para a cienciometria nacional, e de Boas práticas, na página 11, que destaca casos internacionais relevantes de combate a fraudes científicas. Ambas são contribuições diretas da Diretoria Científica da Fundação. Vale dizer ainda que renomeamos a página 3, Imagem do mês, para Fotolab. O que queremos com ela é mostrar belas imagens do processo de produção de conhecimento científico no país e por isso estamos solicitando aos pesquisadores que nos apresentem as fotografias mais especiais de seus trabalhos. Deixamos ao olhar atento do leitor a identificação de outras mudanças.

Para finalizar, gostaria de comentar a reporta-gem de capa desta edição, sobre o efeito da bra-dicinina na transformação de células-tronco em neurônios. Obtê-la foi resultado de um percurso cheio de peripécias depois que constatamos, por volta do dia 15 de outubro, que a capa programa-da, por ora, precisava ser derrubada. Começou então nossa caçada a um tema de pesquisa rele-vante, com novidades de indiscutível interesse jornalístico e que pudesse ser bem destrinchado em poucos dias. A lista dos projetos temáticos recém-concluídos no site institucional da FA-PESP foi um bom guia. Depois de descartarmos por diferentes razões várias hipóteses, no dia 21, nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, propôs que fôssemos atrás do temático coordenado por Alexander Ulrich. Embarcamos nessa sugestão. Na tarde do dia 22, um sábado, ele estava na casa do pesquisador para entrevistá-lo. Ao sair de lá tinha certeza de que estávamos em posse de um belo assunto para a capa. A partir daí, tratava-se de ler vários artigos, entrevistar vários pesqui-sadores, levantar os dados relevantes para um infográfico e, por fim, escrever. Para dividir com ele a tarefa, o escalado foi o editor especial Carlos Fioravanti. E do trabalho dos dois resultou uma bela reportagem que mostra a partir da página 18 um avanço muito interessante nos caminhos da diferenciação celular e da formação dos ainda misteriosos neurônios humanos. Boa leitura!

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8 | novembro de 2011

o site de Pesquisa FAPESP tem conteúdo exclusivo aberto a todos os internautas – além de disponibilizar a edição impressa completa. são notícias e galerias de fotos feitas para a mídia on-line. um exemplo é a notícia “divulgar é preciso”, sobre um banco de imagens montado por pesquisadores do centro de biologia marinha da universidade de são paulo (cebimar/usp) com fotos e informações relacionadas à biodiversidade do mar (foto acima). depois de navegar pelas curiosidades marinhas, o internauta pode conhecer na galeria de imagens abelhas brasileiras que se alimentam de óleo, e náo de pólen. em seu mais recente artigo, o colunista augusto damineli, astrofísico da usp, conta como a descoberta da expansão acelerada do universo, premiada em outubro com o nobel de física, mudou um paradigma sobre o funcionamento do cosmos. leia também como um grupo de pesquisadores conseguiu medir com precisão o raio do planeta anão eris, encerrando um debate que começou em 2005. saiba mais sobre essas notícias – e outras – no site <http://revistapesquisa.fapesp.br/>.

das profundezas ao infinito

on-linePesquisa Brasil volta como podcast

eles curtiramvídeo do mês

o Pesquisa Brasil está de volta. mais curto (cerca de meia hora) e com novas vinhetas, um novo podcast vai ao ar no site de Pesquisa FAPESP toda sexta-feira e poderá ser ouvido on-line ou baixado para o computador, tocador de mp3 ou outro aparelho

eletrônico. Jornalistas da revista comentam as reportagens da edição impressa e entrevistam alguns pesquisadores que foram fontes dos principais temas abordados. em outubro, entre outros entrevistados, o ex-empresário israel

colônia porpita vive flutuando na superfície do mar

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assista ao vídeo:

Químicos mostram como combater doenças tropicais negligenciadas que infectam 20% da população mundial

Klabin conversou sobre desenvolvimento sustentável. neste mês, um dos destaques do podcast é o bioquímico alexander Henning ulrich que fala sobre como a bradicinina ajuda células-tronco a se transformarem em neurônios.

suzel tunes_ pois é, ana pinheiro, e o mais triste é perceber os jovens reproduzindo comportamentos e valores que já deveriam ser superados... (sobre matéria “tempos de cólera no amor”)

renata richter_ eu simplesmente amo essa parte da fisica... ( “mais rápidos que a luz”)

amanda lima_ eu fuiiiiiiiii!!!! muito bom!!!!! ;-) (ciclo de conferências ano internacional da química)

ricardo pereira_ incrível! e excelentes notícias para doentes com leucemia! (“quando a leucemia resiste à quimioterapia”)

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pEsquisa FapEsp 189 | 9

orlando pErEs Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp

Há uma discussão sobre o tema porque o opera produziu neutrinos que percorreram cerca de 800 quilômetros 60 bilionésimos de segundo mais rápido do que a luz. caso o resultado esteja certo, o comportamento deles não segue a teoria da relatividade restrita, de einstein. calcula-se a velocidade do neutrino com base no tempo que leva para percorrer certa distância. ironicamente, usam-se aparelhos de gps, que precisam usar a teoria da relatividade, para ter uma precisão de metros nessas medições. a grande dificuldade é detectar o tempo de chegada dos neutrinos, porque só medimos as partículas geradas pela colisão deles com o detector. é necessário esperar outras medidas para termos certeza.

MarCElo guZZo Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp

a hipótese de que a velocidade da luz é a velocidade limite para os corpos é uma das mais bem testadas da física. os resultados do opera merecem atenção por contrariar os de outros experimentos. se existissem táquions, partículas capazes de viajar a velocidades superiores à da luz, eles poderiam transportar informações mais rápido que ela. segundo a relatividade restrita, isso violaria a relação que estabelece que a causa vem antes do efeito (uma vidraça poderia quebrar antes de a pedra a atingir) e se perceberia uma inversão do tempo. se neutrinos viajassem à velocidade medida pelo opera, os da supernova de shelton, detectados em 1987, deveriam ter chegado à terra quatro anos antes. precisamos aguardar outros testes.

se o neutrino for mais veloz que a luz, como “partícula”, ele estará viajando no tempo para o futuro? se sim, como medir?

paulo ganns [@pganns, pelo twitter], sobre experimento opera, do centro europeu de pesquisas nucleares (cern), do dia 23 de setembro

precisamos dormir bem

Os seres humanos passam um terço de suas vidas dormindo e daí a importância desse estado fisiológico para a saúde e qualidade de vida.

Dormir bem significa respeitar a quantidade de horas necessárias de sono, que são individualmente determinadas, e ter qualidade de sono.

As horas de sono necessárias são aquelas após as quais a pessoa passa pelo período de vigília com bom estado de alerta, de humor e de desempenho cognitivo (atenção, memória e raciocínio). Já a qualidade do sono é determinada pelos bons hábitos de vida (alimentação, exercício, cuidado com a saúde física e mental, entre outros) e pelo tratamento de alguns distúrbios do sono se esses estão presentes (insônia, apneia, pernas inquietas, bruxismo). Estudos em animais e humanos já comprovaram que a privação do sono total ou de alguns dos seus estágios pode desencadear déficits em diversas esferas do organismo. Entre esses, os principais são: diminuição de memória, atenção, raciocínio, aumento de sonolência e risco de acidentes, alterações de humor, risco de hipertensão arterial, piora de outras doenças cardiovasculares, risco de diabetes, aumento de peso, disfunção sexual e diminuição da imunidade. Pesquisas comprovam que quem dorme menos do que precisa e/ou com baixa qualidade de sono está sujeito a maiores taxas de mortalidade no decorrer dos anos.

lia rita azeredo Bittencourt e Monica levy andersen, professoras adjuntas de Medicina e Biologia do Sono – Unifesp

pErguntE aos pEsquisadorEs

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mande sua pergunta para o e-mail [email protected], pelo facebook ou pelo twitter @pesquisaFapesp

Page 10: Pesquisa FAPESP ed. 189

10 | novembro de 2011

sinalização por c-di-gMp e o siste-ma de secreção de macromoléculas do tipo iv em Xanthomonas citri pesquisador responsável: shaker chuck farahinstituição: instituto de química/uspprocesso: 2011/07777-5vigência: 01/12/11 a 30/11/16tema: desenvolvimento de duas vertentes de pesquisa sobre a biologia do Xanthomonas citri (Xac), o agente causador do cancro cítrico: 1) estudar a estrutura, interações e funções de proteínas envolvidas na sinalização pelo segundo mensageiro c-di-gmp que controle transições de comporta-mento bacteriano e 2) realizar estu-dos estruturais e funcionais sobre um dos sistemas que a Xac utiliza para transferir proteínas para dentro da célula hospedeira.

Biodiversidade e conectividade de comunidades bênticas em subs-tratos orgânicos (ossos de baleia e parcelas de madeira) no atlântico sudoeste profundo - Biosuorpesquisador responsável: paulo Yukio gomes sumidainstituição: instituto oceanográfico/uspprocesso: 2011/50185-1vigência: 01/08/2011 a 31/07/2015tema: estudo de ilhas orgânicas de biodiversidade no mar profundo e

tEMátiCos rECEntEs

projetos contratados em julho e agosto de 2011

seus padrões de conectividade em di-ferentes profundidades e bacias oceâ-nicas. como estudos experimentais e o acesso a essas regiões do oceano requerem uma logística complicada e cara, o presente estudo será realizado com veículos autônomos (landers) de baixo custo, por meio dos quais serão depositados ossos de baleia e parcelas de madeira visando a sua colonização por organismos endêmicos e micror-ganismos quimiossintetizantes.

Mapeamento de adutos gerados por aldeídos endógenos e exóge-nos. utilização como biomarcado-res de estresse redoxpesquisadora responsável: marisa Helena gennari de medeirosinstituição: instituto de química/uspprocesso: 2011/10048-5vigência: 01/09/11 a 31/08/15tema: estudo dos mecanismos de le-são em biomoléculas promovidos por aldeídos reativos endógenos e exóge-nos utilizando tecnologias modernas e ultrassensíveis em células e animais transgênicos modelo para esclerose lateral amiotrófica. também serão pesquisados danos em biomoléculas promovidos por aldeídos exógenos gerados pela poluição urbana e fumaça de cigarro in vitro, em animais experimentais e em sangue e urina de humanos.

a circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século xixpesquisadora responsável: marcia azevedo de abreuinstituição: instituto de estudos da linguagem/unicampprocesso: 2011/07342-9vigência: 01/09/11 a 31/08/15tema: compreender a globalização da cultura no “longo século XiX” (1789 - 1914), examinando os impressos e as ideias em circulação entre inglaterra, frança, portugal e brasil. seus principais objetivos são identificar e analisar as práticas culturais realizadas em escala transnacional, por meio da observação dos escritos e das ações dos letrados, bem como das ativida-des de companhias teatrais, censores, editores, impressores e livreiros.

desenvolvimento de compostos com interesse farmacológico ou medicinal e de sistemas para seu transporte, detecção e reconheci-mento no meio biológicopesquisadora responsável: ana maria da costa ferreirainstituição: instituto de química/uspprocesso: 2011/50318-1vigência: 01/09/11 a 31/08/16tema: estudos sistemáticos sobre es-pécies planejadas para serem reativas no meio biológico, implicadas em pro-

cessos vitais ou patológicos. visam-se principalmente processos em que as espécies investigadas possam atuar como agentes farmacológicos ou medicinais. prevê-se providenciar metodologia adequada para prepara-ção, deteccão e monitoramento, bem como para seu transporte, reconhe-cimento e estudos de toxicidade ante alvos biológicos selecionados.

Competência para a expressão do metabolismo ácido das crassulá-ceas (CaM) em bromélia epífita: si-nalização, modulação da expressão, perfil transcricional e interação com o metabolismo de nitrogêniopesquisadora responsável: Helenice mercierinstituição: instituto de biociências/uspprocesso: 2011/50637-0período: 01/10/11 a 30/09/16tema: estudar a indução e modulação da expressão de um tipo de fotossínte-se (cam) por estresses ambientais, tais como seca ou deficiência nutricional em uma bromélia epífita, Guzmania monostachia, que pode optar entre os modos c3 ou cam, dependendo do grau de estresse a que está submetida. tais conhecimentos podem ser usados como futuras ferramentas biotecnoló-gicas, além de representar um avanço significativo no entendimento da fisiologia de plantas epífitas.

dados e projetos

os dados se referem ao período 2006–2010 e foram obtidos do thomson reuters national science indicators (nsi) (v. 2010). as áreas do conhecimento da tabela são as definidas pelo nsi. o significado das colunas é: a) impacto mundo = número de vezes em que os trabalhos da área foram citados/número de trabalhos na área; b) impacto brasil = número de vezes em que os trabalhos com brasil no endereço de autores em determinada área foram citados/número de trabalhos brasil no endereço de autores; c) impacto relativo = impacto brasil/impacto área. o impacto relativo, portanto, é uma estimativa da visibilidade dos trabalhos produzidos por autores brasileiros comparada com a visibilidade de todos os trabalhos indexados na mesma área.

impacto relativo de publicações brasileiras

árEa do ConhECiMEnto

engenharia

matemática

física

ambiente/ecologia

geociências

ciência espacial

ciência da computação

química

ciência dos materiais

imunologia

medicina clínica

iMpaCto rElativo Brasil

0,94

0,92

0,87

0,77

0,77

0,76

0,70

0,68

0,68

0,66

0,65

iMpaCto rElativo Brasil

0,64

0,61

0,57

0,54

0,52

0,51

0,49

0,47

0,45

0,41

iMpaCto Brasil

2,19

1,46

3,90

3,77

3,32

5,97

1,31

3,71

2,51

6,81

3,77

iMpaCto Brasil

2,99

4,15

3,26

1,30

4,25

3,74

1,62

0,97

1,38

4,48

iMpaCto Mundo

2,34

1,59

4,46

4,87

4,32

7,88

1,88

5,47

3,68

10,24

5,78

iMpaCto Mundo

4,65

6,85

5,68

2,40

8,17

7,27

3,29

2,06

3,05

10,97

árEa do ConhECiMEnto

psiquiatria

microbiologia

farmacologia

economia e negócios

neurociências

biologia e bioquímica

ciências das plantas e dos animais

ciências sociais

ciências agrícolas

biologia moleculare genética

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o exemplo da universidade de Konstanz

contra o efeito do queijo suíço

boas práticas

Parece difícil imaginar uma sentença da Justiça confirmando que determinada universidade tem o direito legal de revogar um título acadêmico concedido anos antes a um pesquisador, em razão das evidências de sua má conduta posterior em outra instituição. Mas foi exatamente o que fez em setembro a Corte Administrativa de Baden- -Württemberg, na Alemanha, quando decidiu que foi um ato legal a revogação do título de Ph.D. de Jan Hendrik Schön pela Universidade de Konstanz, em 2004, devido ao seu comportamento nada ético nos Bell Labs.

Schön esteve no centro de um grande escândalo em 2002, quando se descobriu que ele usara dados falsos em pelo menos 17 artigos científicos, elaborados enquanto era pesquisador nos Laboratórios Bell, em Murray Hill, Nova Jersey. Como relembrou em 19 de setembro o blog Science Insider, da revista Science, a Universidade de Konstanz determinou então uma investigação sobre as práticas de seu antigo aluno e, embora não tenham sido encontradas evidências de má conduta no período em que ele esteve lá, a instituição invocou uma lei estadual que permite a revogação de um título quando quem o recebeu se revela “indigno”.

O pesquisador processou a universidade e, no ano passado, obteve uma sentença favorável. Mas a universidade apelou e em meados de setembro a Corte do estado de Baden-Württemberg, na cidade de Mannheim, decidiu por seu direito de cassar o título. Na defesa oral de seu veredicto, o juiz Reinhardt Schawn foi enfático: “A conquista de um doutorado é uma confirmação da capacidade

de quem obtém o título para conduzir pesquisa científica independente. Um Ph.D. traz junto com ele a percepção pública de ser um membro da comunidade científica e pressupõe um alto nível de confiabilidade”. Quando um detentor desse título viola princípios básicos da boa prática científica, prosseguiu, “o título já não se aplica e deve ser corrigido”. O juiz observou que Schön, hoje empregado como engenheiro de processo numa empresa alemã, ainda pode trabalhar como um físico sem doutorado. O pesquisador poderá apelar a uma corte federal, mas são mínimas suas chances de sucesso.

O Instituto de Medicina, organização vinculada à Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, está ajudando a Universidade Duke a criar padrões que garantam a integridade ética dos testes clínicos feitos por seus pesquisadores. O trabalho, que deve ser concluído em meados de 2012, é uma resposta a um escândalo que envolveu dois pesquisadores de Duke: Anil Potti e Joseph Nevins. Em artigos publicados em 2006, a dupla apresentou um método que seria capaz de predizer a evolução de pacientes com câncer pulmonar e uma técnica que usou a expressão gênica em culturas de células de câncer para prever qual quimioterapia seria mais eficaz em cada vítima de câncer de pulmão, de mama ou de ovário. Os pesquisadores Keith Baggerly e Kevin Coombes, do MD Anderson Cancer Centre, encontraram inconsistências nos artigos e pediram esclarecimentos. Potti e Nevins admitiram vários

erros, mas começaram a recrutar pacientes para ensaios clínicos envolvendo as técnicas. Lisa McShane, do Instituto Nacional do Câncer (NCI), também não conseguiu reproduzir os resultados – e avisou seus superiores. O NCI pediu providências e os testes foram suspensos. Mas o comitê de investigação de Duke se contentou com as explicações de Potti e liberou os ensaios em fevereiro de 2010. Soube-se em seguida, numa carta publicada na revista Cancer Letters, que Potti também mentira ao informar sobre seu currículo e dotações que recebeu. No final de 2010, Potti deixou Duke, acusado de roubar dados de outros pesquisadores. Na investigação feita pelo Instituto de Medicina, Rob Califf, vice-reitor da universidade, classificou o escândalo como um caso de “efeito queijo suíço”, em que 15 coisas diferentes tinham de dar errado para que os problemas fossem detectados.

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12 | novembro de 2011

a agência espacial europeia selecionou as duas primeiras missões espaciais no âmbito do seu programa visão cósmica 2015-2025. o solar orbiter, satélite com lançamento previsto para 2017, vai estudar fenômenos solares a partir de uma órbita a 41,9 milhões de quilômetros da superfície do sol – a distância da terra ao sol é de cerca de 150 milhões de quilômetros. trata-se de um esforço bilateral com a nasa, que fornecerá parte da carga útil do satélite e um foguete atlas para o lançamento. segundo a agência SpaceNews, o custo da missão é de € 1 bilhão. Já o telescópio espacial euclid, a ser lançado em 2019, tentará responder a questões-chave para a

do sol à matéria escura

a corrida pela excelência

física fundamental e a cosmologia, como a natureza da matéria e da energia escura, que comporiam a maior parte do universo. ao euclid caberá mapear a distribuição das galáxias de forma a revelar a arquitetura “escura” do universo – a um custo estimado em € 590 milhões. a competição para selecionar as missões começou em 2007, com cinco candidatos. na reta final havia três finalistas. a missão preterida foi a do satélite plato, que iria procurar planetas semelhantes à terra em torno de estrelas próximas. mas ela poderá concorrer na próxima seleção de missões e, se for escolhida, ir ao espaço por volta de 2022.

os países em desenvolvimento devem investir em universidades de pesquisa de classe mundial apenas depois de criarem um sistema de educação superior consistente, recomenda um relatório do banco mundial. o documento examina a experiência de 11 universidades públicas e privadas em nove países da áfrica, ásia, américa latina e leste europeu. as instituições de melhor desempenho exibem características como elevada concentração de professores e alunos talentosos, recursos em abundância e visão estratégica. “dinheiro é importante, mas o quadro regulatório e os mecanismos de governança são fundamentais”, disse à agência SciDev.Net Jamil salmi, coordenador para educação superior do banco mundial.

circunstâncias políticas e econômicas também podem ser decisivas. a universidade de ibadan, na nigéria, perdeu seus pesquisadores mais talentosos durante sucessivas ditaduras militares, enquanto o crescimento econômico da índia tem atraído muitos pesquisadores que haviam migrado. salmi atribui o rápido crescimento da universidade Hong Kong de ciência e tecnologia “à política sistemática de atrair pesquisadores chineses que haviam migrado”. José Joaquín brunner, ex-ministro da educação do chile, criticou a corrida para criar instituições desse tipo. “os países devem buscar sistemas de ensino superior que respondam às suas necessidades, com foco na formação de capital humano e na produção de conhecimento relevante”, avaliou.

dois formatos possíveis para o telescópio europeu que vai estudar o sol a partir de 2019

universidade Hong Kong de ciência e tecnologia atraiu talentos de outros países

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parceria contra o câncer

o Hospital sírio-libanês (Hsl) e o instituto ludwig de pesquisa sobre o câncer firmaram uma parceria para a criação do centro de oncologia molecular. o objetivo da instituição é desenvolver pesquisas em busca de avanços em diagnóstico, na compreensão dos fatores prognósticos dos diferentes tumores, na capacidade de prever a resposta aos tratamentos e nos próprios recursos terapêuticos. a unidade será coordenada por

anamaria aranha camargo, pesquisadora do instituto ludwig, que se transferirá juntamente com todo o grupo de pesquisa em biologia molecular e genômica para o instituto sírio- -libanês de ensino e pesquisa (iep), em são paulo. atualmente, anamaria conduz o projeto “tratamento neoadjuvante em câncer de reto: identificação de uma assinatura gênica capaz de predizer a resposta ao tratamento e desenvolvimento de biomarcadores

melhor tese de 2010

o prêmio de melhor tese de 2010 da associação nacional de pós-graduação em geografia (anpege) foi concedido ao bolsista da fapesp lutiane queiroz de almeida, pela pesquisa “vulnerabilidades socioambientais de rios urbanos. bacia hidrográfica do rio maranguapinho – região metropolitana de fortaleza, ceará”, realizada durante seu doutorado no instituto de geociências e ciências exatas da universidade estadual paulista (unesp), campus de rio claro. o objetivo da pesquisa foi analisar os riscos e as vulnerabilidades de rios urbanos no brasil, tendo a bacia de maranguapinho como área de estudo de caso. uma das conclusões é que há fortes ligações entre os espaços suscetíveis a processos naturais perigosos, como inundações, e os espaços da cidade que apresentam os piores indicadores sociais.

FapEsp lança Bolsa Estágio de pesquisa no Exterior

A FAPESP criou uma nova modalidade de bolsa, a Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe). A finalidade é apoiar a realização de estágios de pesquisa de curta e média duração no exterior, por bolsistas da FAPESP de iniciação científica, mestrado, doutorado/doutorado direto e pós-doutorado. O estágio no exterior é parte integrante de bolsa de pesquisa no país e não pode ser solicitado

independentemente. A duração é variável, a partir de um mês, e de acordo com a modalidade de bolsa usufruída pelo candidato. As propostas devem demonstrar que o estágio no exterior trará uma contribuição substancial para a pesquisa que o bolsista desenvolve no Brasil. Os valores das mensalidades são: US$ 1.100 em iniciação científica; US$ 1.300 em mestrado; US$ 1.600 em doutorado ou doutorado direto;

personalizados para avaliar doença residual mínima”, com apoio da fapesp. o trabalho realizado pelo grupo da pesquisadora no centro de oncologia molecular contará com o apoio financeiro do instituto ludwig e do Hospital sírio-libanês. “a experiência do ludwig em pesquisa na área de genética do câncer e no desenvolvimento de novas drogas irá se somar à excelência no tratamento do Hospital sírio-libanês”, disse anamaria.

e US$ 2.800 (mais R$ 5.333,40) em pós-doutorado. A esses valores somam-se reserva técnica, auxílio instalação (para bolsas com duração de três meses ou mais) e seguro saúde. Nas solicitações de bolsas no país, a FAPESP passará a incentivar a apresentação de propostas que contemplem, em sua vigência, um estágio de pesquisa no exterior. Mais informações estão disponíveis em <www.fapesp.br/bolsas/bepe>.

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14 | novembro de 2011

entre 710 e 635 milhões de anos atrás, a terra teria vivido um período glacial extremo e seria um mundo totalmente coberto de gelo. o fim dessa era do gelo global teria ocorrido devido a intensas atividades vulcânicas, que teriam expelido tanto dióxido de carbono a ponto de a concentração do gás na atmosfera ter atingido níveis 300 vezes maiores do que os de hoje. dessa forma, o planeta teria esquentado e o gelo derretido. essa hipótese, apelidada de “a terra como bola de neve”, foi formulada no início dos anos 1990, mas agora foi contestada por um estudo feito por geofísicos brasileiros, franceses e norte- -americanos (Nature, 6 de outubro). a partir

a bola de neve era menor

carro elétrico em expansão

de amostras obtidas no mato grosso de depósitos de cabonatos que recobrem os sedimentos da chamada glaciação marinoan, os pesquisadores calcularam a concentração de c02 daquele período e concluíram que a taxa deveria ser próxima da atual. ou seja, é provável que a era do gelo global não tenha sido tão radical como se supunha e seu fim não deve ter sido provocado por um superaquecimento global em razão do excesso de gás carbônico. o geofísico ricardo trindade, da universidade de são paulo, e o geólogo afonso nogueira, da universidade federal do pará, são os brasileiros que assinaram o estudo.

iniciativas em todo o mundo fortalecem o uso do carro elétrico. no brasil surgiu o primeiro carro elétrico para competições. ele supera os 100 quilômetros por hora com 200 volts contidos em 1,4 mil baterias de celular, do tipo íon de lítio. foi desenvolvido no curso de engenharia mecânica do centro universitário da fundação educacional inaciana (fei), de são bernardo do campo, na região metropolitana de são paulo, sob a coordenação do professor roberto bock. é um carro do tipo monoposto que pode rodar 30 minutos com a carga das baterias. o recarregamento dura quatro horas. o carro mede 2,7 metros e deve pesar no máximo 320 quilos com o piloto. a sae brasil, entidade que reúne engenheiros, técnicos e executivos

ligados à indústria automotiva, marítima e aeroespacial, colaborou no desenvovimento do carro junto com as empresas weg motors e magneti marelli. a entidade anunciou uma competição em 2012 com veículos dessa categoria. poderão participar estudantes de graduação e pós-graduação em engenharia de instituições de ensino do brasil e do exterior.na dinamarca foi dado um passo importante para a popularização dos carros elétricos. a empresa norte- -americana better place está instalando 20 postos que fazem a troca automática em dois minutos da bateria dos veículos. pelo gps, o motorista encontra o posto mais próximo. o gasto é entre r$ 316 e r$ 571 por mês, de acordo com a quilometragem.

pedreira terconi, em mirassol d’oeste, mato grosso: rochas do brasil foram usadas para calcular níveis antigos de co2

monoposto da fei é impulsionado por 1,4 mil baterias usadas em celular

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pEsquisa FapEsp 189 | 15

a “lenta” saída do elétron da molécula

bactérias na válvula cardíaca

um elétron demora 356 attossegundos a mais do que se acreditava para deixar uma molécula de hidrogênio ionizada (que se tornou carregada eletricamente) por um pulso de laser. a medida foi obtida experimentalmente e por meio de cálculos por físicos dos estados unidos e da alemanha (Physical Review Letters, 30 de setembro). um attossegundo equivale a um quintilionésimo (10-18)

de segundo. “o resultado foi uma grande surpresa”, diz andreas becker, da universidade de colorado em boulder, autor do trabalho ao lado de colegas da universidade de frankfurt. “nós também achávamos que o processo de ionização dessa simples molécula já era bem compreendido.” segundo o pesquisador, era esperado que o elétron saísse exatamente no

alterações genéticas presentes em certas variedades de Staphylococcus aureus tornam a bactéria propensa a formar biofilmes em substratos sólidos. dessa forma, o microrganismo adere e se mantém na superfície de implantes cardíacos, onde pode se tornar a causa de perigosas infecções para os pacientes. a descoberta foi feita por pesquisadores dos estados unidos, suíça, tailândia e o brasileiro roberto lins, da universidade federal de pernambuco, que utilizaram um microscópio de força atômica para estudar as forças que fazem a Staphylococcus grudar nos minerais (PNAS, on-line em 24 de outubro). além dessas abordagem, fizeram também simulações da dinâmica molecular para entender melhor quais eram as proteínas da bactéria infecciosa que possibilitavam sua adesão aos implantes. no final dos trabalhos, os cientistas levantaram evidências de que ao menos três mutações favorecem a formação de biofilmes nos implantes.

sinal de celular ajusta fases dos faróis

Quando cidades são atingidas por furacões, tsunamis e outras catástrofes ambientais, um dos maiores desafios das autoridades é evacuar o lugar de forma ordenada. Para ajudar nessa tarefa, a empresa alemã Siemens está testando um sistema piloto no condado de Harris, no Texas (EUA), um dos mais populosos do país, com mais de 4 milhões de habitantes. O protótipo consiste em um sistema

que mede o volume de tráfego e, a partir desse dado, ajusta as fases de verde e vermelho dos faróis. A novidade é que a contagem dos veículos é estimada por meio do registro de sinais de celular dos motoristas. Testes revelaram que o sistema, simples e barato, é confiável mesmo quando nem todos os motoristas estão com celular. A tecnologia também poderá ser adotada por serviços

momento em que o vetor do campo elétrico se tornasse paralelo ao eixo molecular. “mas não foi esse o caso e o processo ocorreu um pouco depois. a dinâmica do elétron é muito mais complicada.” como muitos processos físicos e químicos têm como etapa inicial a ionização de uma molécula, medir com máxima precisão o momento em que isso ocorre é de grande importância.

de emergência, como ambulâncias e bombeiros, fazendo com que o sinal passe automaticamente para o verde quando essas viaturas se aproximam. Os idealizadores da tecnologia dizem que ela poderá ajudar a ordenar o trânsito em dias normais, melhorando o fluxo de veículos, reduzindo o número de acidentes e trazendo ganhos ambientais, em razão da diminuição do consumo de combustível.

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Staphylococcus aureus (em vermelho) forma biofilme em implante

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16 | novembro de 2011

gravidez hipertensa eleva riscos para feto

mulheres com pressão alta no início da gravidez, independentemente do medicamento anti-hipertensivo que estiverem tomando, são mais propensas a ter bebês com defeitos de nascimento, como malformações cardíacas congênitas ou falhas no tubo neural. a conclusão sugere que a hipertensão da mãe, mais do que o uso de remédios capazes de reduzir a pressão arterial,

Como descobrir o sexo do pirarucu

Como saber se um pirarucu é macho ou fêmea? A informação é importante para gerenciar os criadouros, mas nem sempre as sutis diferenças de tons nas escamas vermelhas bastam para distinguir o sexo do Arapaima gigas, maior peixe de escamas de água doce do mundo. Agora pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, do Instituto de Ciências do Mar e do Centro de Pesquisas em Aquicultura Rodolpho von Ihering,

também no Ceará, verificaram que a laparoscopia – técnica usada em pessoas para retirar a vesícula biliar – pode ser útil para determinar o sexo desse peixe (Acta Amazonica, setembro). Em um teste, 10 peixes jovens foram anestesiados, por meio da inalação de clorofórmio. Em três minutos, as imagens que vieram do laparoscópio, de 15 centímetros de comprimento por 5 milímetros de diâmetro, permitiram identificar as gônadas com precisão.

pode aumentar o risco de defeitos de nascimento. pesquisadores do instituto de pesquisa fundação Kaiser, dos estados unidos, chegaram a esse resultado após examinarem as informações sobre 465.754 pares de mães e filhos atendidos em hospitais do norte da califórnia entre 1995 e 2008 (British Medical Journal, outubro). o objetivo do estudo era

analisar se os inibidores da enzima conversora de angiotensina, prescritos normalmente para tratar hipertensão, poderiam ter algum efeito prejudicial no início da gravidez – seus malefícios sobre o feto no segundo e terceiro trimestre de gestação já eram conhecidos. os resultados indicaram que os problemas dos bebês devem resultar da hipertensão da mãe, e não da medicação.

laparoscopia pode ser útil para diferenciar macho e fêmea da espécie de peixe

comércio inteligente na interneta empresa omnilogic, abrigada até maio deste ano na inova ufmg, incubadora de empresas da universidade federal de minas gerais, desenvolveu um sistema capaz de identificar padrões relevantes de comportamento dos internautas para recomendar ações mais eficazes no comércio eletrônico. a tecnologia desenvolvida, baseada em técnicas de análise quantitativa e modelagem computacional, permite capturar, tratar e processar grandes volumes de dados e, a partir deles, otimizar métricas de negócios on-line, como custo por aquisição de cliente e vendas. a empresa atua em duas áreas por meio dos softwares omniads e o omnirec. o primeiro, direcionado para peças publicitárias na internet, identifica as opções de anúncios, analisa o perfil do consumidor e direciona a publicidade com maior possibilidade de conversão para usuários selecionados. o segundo tem como foco a recomendação de produtos e conteúdos em lojas virtuais e portais de notícias. o sistema desenvolvido consegue processar cerca de 2 bilhões de requisições por mês, o que equivale a terabytes de dados sobre análise de padrões de navegação e dos espaços mais adequados para cada propaganda.

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pEsquisa FapEsp 189 | 17

a versatilidade do arroz

nanotubos de carbono mais flexíveis

cientistas australianos e norte-americanos desenvolveram um tipo de arroz geneticamente modificado com altos teores de ferro e zinco. deficiências desses dois minerais afetam milhões de pessoas em países pobres do mundo. o arroz transgênico contém quatro vezes mais ferro e duas vezes mais zinco do que o grão convencional, segundo alex Johnson, do australian centre for plant functional genomics. a pesquisa contou com o apoio da companhia Harvestplus, dos estados unidos, focada em melhoramento genético de plantas. os autores da descoberta advertem, no entanto, que ainda levará um tempo para que o arroz rico em ferro e zinco chegue ao mercado. antes é preciso fazer avaliações no campo e descobrir quais serão os níveis de absorção do ferro pelo organismo humano. outra interessante

plantação de arroz: versão transgênica do alimento poderá ter altos teores de ferro e zinco

fios de nanotubos de carbono, um dos materiais mais promissores da atualidade, foram usados por uma equipe internacional de pesquisadores para criar um novo tipo de músculo artificial, que alia grande resistência e extrema flexibilidade. a junção dessas duas características num material poderia ser útil para criar nanorrobôs ou estruturas capazes de executar movimentos em ambientes apertados, como o interior do corpo humano, onde poderiam realizar procedimentos ou exames de saúde. segundo o pesquisador geoff spinks, da universidade de wollongong, na austrália, um dos autores do trabalho, os fios de nanotubos também poderiam ser empregados no desenvolvimento de versões em escala nanométrica de motores e outros equipamentos. (Science, 28 de outubro). a maneira utilizada

pelos cientistas para torcer os fios de nanotubos e produzir estruturas entrelaçadas em forma de hélice foi a responsável por conferir propriedades especiais ao material. eles submergiram os fios num líquido condutor de eletricidade e conectaram uma de suas extremidades a uma bateria de baixa voltagem. quando uma carga era aplicada, o fio absorvia um pouco do líquido e inchava. a pressão causada por esse processo fazia a estrutura em hélice se desenrolar parcialmente, criando um efeito de rotação. o nanorrotor atingiu até 600 rotações por minuto. no experimento, os cientistas conseguiram até controlar o sentido do movimento rotacional. diminuindo a voltagem original aplicada na hélice, a estrutura girava para o outro lado. os nanotubos de carbono são estruturas cilíndricas formadas exclusivamente por átomos de carbono.

pesquisa com arroz foi feita no egito. nesse caso, cientistas do egyptian national research centre criaram um método mais eficaz de produzir papel a partir da palha do arroz. a nova metodologia transforma mais de 65% da palha em polpa para uso na indústria de papel. as tecnologias atuais aproveitam, no máximo, 30% da palha, segundo os pesquisadores. um estudo de viabilidade da metodologia revelou que a reciclagem de 1 milhão de toneladas de arroz por ano deverá gerar 100 mil empregos e receita da ordem de us$ 85 milhões. também evitará a emissão de 85 mil toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, provenientes da queima da palha. a primeira unidade industrial com a nova tecnologia deverá começar a operar no próximo mês em noubariya, a 120 quilômetros do cairo (SciDev, 3 de outubro).

concepção artística de microrrobô: fios de nanotubos de caborno enrolados giram como hélices

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18 | novembro de 2011

Fazedorde neurônios

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composto que controla a pressão arterial direciona o desenvolvimento das células cerebrais

ricardo Zorzettocolaborou carlos fioravanti

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bioquímica

farmacologia

fisiologia

neurociência

pEsquisa FapEsp 189 | 19

a mesma molécula que 53 anos atrás pesquisadores brasileiros apresen-taram ao mundo como um potente regulador da pressão arterial – ela originou toda uma classe de medi-

camentos anti-hipertensivos – volta a surpreen-der por sua versatilidade. Passadas mais de cinco décadas de sua identificação pelos médicos Mau-rício Rocha e Silva, Wilson Teixeira Beraldo e Gastão Rosenfeld, essa molécula, a bradicinina, um fragmento de proteína (peptídeo) naturalmen-te encontrado no sangue e em outros tecidos do corpo e liberado em concentrações mais elevadas na inflamação, chama agora a atenção por efeitos que não se imaginava que pudesse produzir. Es-tudos conduzidos nos últimos anos, também por equipes brasileiras, mostram que a bradicinina faz células-tronco se transformarem em neurônios e os protegem da morte em lesões cerebrais. No tecido adiposo, sugere outro trabalho, ela regula a liberação do hormônio que induz à saciedade e reduz o acúmulo de gordura. Ainda sem aplicação clínica, esses achados abrem novos caminhos para se compreender como o cérebro se forma e co-mo surgem certas doenças neurológicas, além da obesidade. Renovam ainda a expectativa de que, quem sabe em alguns anos, conduzam a formas mais eficientes de tratar esses problemas.

A suspeita de que a bradicinina poderia fazer algo além de baixar a pressão sanguínea e desen-cadear inflamações localizadas, resposta natural do organismo a lesões, surgiu em meados dos anos 1990, durante o doutorado do bioquímico Alexan-

Como uma explosão: formação de neurônios, em vermelho

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20 | novembro de 2011

der Henning Ulrich, na Universidade de Hamburgo, Alemanha. Ulrich investiga-va os mecanismos de proliferação de tu-mores do tecido neural e observou que a bradicinina acionava certos mecanismos de sinalização nessas células – o efeito era mais ameno ou nulo em outras célu-las. A partir de 2002, como professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), ele retomou o estudo sobre esse papel da bradicinina.

O biomédico Antonio Henrique Mar-tins, em seu doutorado no laboratório de Ulrich, acompanhava a transformação de células-tronco (imaturas) em neurônios – as células cerebrais que armazenam e transmitem informações e nos permitem aprender, lembrar e até mesmo pensar sobre a capacidade de pensar – quando viu um resultado inesperado. Neurônios cultivados em um dos frascos plásticos permaneciam adormecidos mesmo depois de receberem um banho do neurotrans-missor acetilcolina, um dos mensageiros químicos que costumam despertá-los.

Henrique chamou Ulrich: “Devo estar fazendo algo errado. Essas células não respondem à acetilcolina”. Eles repe-tiram os testes, mas os resultados não mudaram. Novamente surgiram células que lembravam os neurônios, mas não se comportavam como neurônios, semanas depois de as células-tronco terem sido colocadas em frascos com uma sopa de nutrientes que as estimula a assu-mir funções específicas num processo conhecido como diferenciação celular. Algo estava interferindo no amadureci-mento das células-tronco.

os pesquisadores reexaminaram os ingredientes do meio de cultura das células. O único componen-

te diferente era um composto sintético conhecido como HOE-140, que inibe a atividade da bradicinina, à época ainda sem ação conhecida sobre o cérebro. Numa espécie de corrida molecular, ele adere a uma proteína de superfície das células, o receptor B2, a que a bradici-nina deveria se ligar. Assim, o HOE-140 impede a bradicinina de interagir com as células.

Ao se ligar ao receptor B2, a bradi-cinina aciona uma cadeia de reações químicas que modifica o ambiente in-tracelular. Pequenas bolsas liberam íon cálcio para o citoplasma, a porção gelati-nosa da célula, que envolve o núcleo. No

citoplasma, oscilações na taxa de cálcio – os níveis podem aumentar de 10 a 100 vezes – funcionam como um código que aciona certos grupos de genes no núcleo e define o destino da célula: seguir se multiplicando e preservar o potencial de originar diferentes tipos de células ou se especializar em determinada função.

Henrique e Ulrich prepararam a se-guir outra série de ensaios com a mes-ma linhagem de células embrionárias de tumor de camundongo, capazes de originar fibroblastos, células de músculo e de tecido cerebral. Durante oito dias, tempo que as células imaturas levam para se transformar em neurônios em laboratório, eles mediram a quantidade de receptores B2 e a liberação de bra-dicinina. Também compararam o grau de amadurecimento das células tratadas com bradicinina com o das que recebe-ram uma combinação de bradicinina e HOE-140, que anula o efeito do peptídeo identificado nos anos 1940 por Rocha e Silva e seus colegas. Ao final, constata-ram: sem bradicinina, a transformação e o amadurecimento não se completam. Os neurônios são imperfeitos.

Os pesquisadores observaram que, no processo natural de diferenciação, o número de receptores de bradicinina aumenta gradualmente. Além disso, as células lançam para o meio externo par-te da bradicinina fabricada por elas pró-prias, influenciando o funcionamento de suas vizinhas. Como resultado, surgem neurônios sensíveis ao neurotransmissor acetilcolina, mensageiro químico que conduz a informação de uma célula ce-rebral a outra, como detalhado em um artigo publicado em 2005 no Journal of Biological Chemistry. Sob ação de HOE--140, porém, a transformação parava no meio. Ao final dos testes, as células não respondiam à acetilcolina nem apre-sentavam os prolongamentos caracte-rísticos dos neurônios. “Os neurônios ficavam incompletos e só um número menor deles sobrevivia”, diz Henrique, atualmente professor da Universidade Central do Caribe, em Porto Rico.

“A bradicinina não inicia a diferenciação celular, mas define o caminho que as cé-lulas vão seguir”, explica Ulrich, que veio para o Brasil em 1999 trabalhar na USP com o médico Walter Colli, um dos gran-

Modulador de células nervosasbradicinina favorece a formação de neurônios

uuuma esfera com cercacercacercacerca de 100 mil células-tronccélulas-tronccélulas-tronccélulas-tronccélulas-tronco neurais é a matéria-prima é a matéria-prima é a matéria-prima é a matéria-prima para o estudo da para o estudo da para o estudo da para o estudo da açãoaçãoaçãoaçãoação da bradicinina

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Célula-troncoCélula-tronco

CitoplasMa

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a bradicinina liga-seao receptor b2, causando oscilações nos níveis de cálcio no interior da célula

BradiCinina

mudanças na taxa de cálcio ativam genes que definem o tipo de célula que se formará e alteram a expressãodos receptores de neurotransmissores

CálCio

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neurônio

astrócito

ooligodendrócito

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des especialistas mundiais em doença de Chagas, na busca de moléculas que pudes-sem impedir o causador da enfermidade de invadir as células de mamíferos.

Para avaliar o efeito da bradicinina na diferenciação e no amadurecimen-to neuronal em outros modelos expe-rimentais, o biólogo Cleber Trujillo, outro estudante de doutorado de Ulri-ch, testou células-tronco extraídas do tecido cerebral de embrião de camun-dongos, com a ajuda da química Telma Tiemi Schwindt e da bióloga Priscilla Negraes. Cleber colocou células-tronco isoladas em meio de cultura e aguardou que cada uma originasse as chamadas neuroesferas, agrupamentos com cerca de 100 mil células progenitoras dos dois tipos de células cerebrais – os neurô-nios e as células da glia. Em seguida, adicionou bradicinina e esperou para ver o que acontecia.

“Quando acrescentamos bradicinina ao meio de cultura, mais células proge-nitoras percorreram distâncias maiores”, conta Ulrich. Esse deslocamento celular está diretamente relacionado à formação e à maturação de neurônios. Quanto mais

ber acrescentou às células-tronco em diferenciação um composto chamado captopril. Primeiro medicamento anti--hipertensivo a agir, de modo indireto, sobre a bradicinina, mantendo-a ativa por mais tempo, o captopril foi de-senvolvido nos anos 1970 por pesqui-sadores norte-americanos a partir de uma molécula identificada no veneno da cobra jararaca pelo farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, durante seu doutorado com Maurício Rocha e Silva na USP em Ribeirão Preto.

A reorientação do destino celular A reorientação do destino celular A determinada pela bradicinina A determinada pela bradicinina A foi confirmada em testes com A foi confirmada em testes com A camundongos transgênicos fornecidos pela equipe de João Bosco Pesquero, bió-logo molecular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De acordo com os dados submetidos para publicação, células-tronco cerebrais de roedores ge-neticamente alterados para não produzir o receptor B2, quando isoladas e induzi-das a se diferenciarem, não originavam uma proporção maior de neurônios.

Como os resultados haviam sido ob-tidos com camundongos e ratos, era preciso descobrir o que aconteceria com células humanas. Cleber foi para o laboratório do pesquisador brasilei-ro Alysson Muotri na Universidade da Califórnia em San Diego. Ali, aprendeu a trabalhar com células-tronco humanas obtidas a partir da reprogramação de células da pele. Mais uma vez a bradi-cinina influenciou as células-tronco a se transformarem em neurônios.

Alguém pode perguntar qual a vanta-gem de aumentar no cérebro a quantida-de de neurônios em comparação com a de células da glia. Nos organismos sau-dáveis, é até provável que essa vantagem não exista. É que alterar a proporção en-tre esses dois tipos celulares pode afetar a arquitetura cerebral. E a forma como as células estão dispostas e conectadas entre si determina o funcionamento cerebral – ao menos, o funcionamento como se conhece hoje.

Em um estudo recente, as equipes de Roberto Lent e Suzana Herculano--Houzel, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e de Wilson Jacob Fi-lho, na USP, sugerem que o cérebro humano contém praticamente a mes-ma proporção de neurônios e células gliais. Um homem adulto teria cerca de

se avançar como esperado, a pesquisa com bradicinina pode levar a novas formas de recuperar lesões cerebrais

as células se afastam da neuroesfera, mais neurônios se originam, com mais ramificações, que são fundamentais para a formação das conexões cerebrais.

Na presença da bradicinina, forma-ram-se até 30% mais neurônios do que o normal – e uma proporção menor de células da glia. A produção de neurô-nios cresceu ainda mais quando Cle-

efeito sobre as células-tronco

migração e diferenciaçãoIn vitro, os neurônios formados sob a ação da bradicinina percorreram distâncias 20% maiores. o Hoe-14, que inibe o efeito da bradicinina, reduziu o deslocamento das células

a célula-tronco neural, estimulada pela bradicinina, vai formar, principalmente, neurônios e, em menor número, células gliais (astrócitos e oligodendrócitos)

7 dias6543210-7

células-tronconeurais em diferenciação

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Bradicinina hoE-140 Controle

células gliais

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o núcleo estriado – produtoras do neuro-transmissor dopamina. Como roedores não manifestam esses sintomas, Telma usa outra estratégia para avaliar a evo-lução da doença. Por meio da injeção de compostos químicos específicos, ela in-duz a morte dos neurônios da substância negra e do núcleo estriado em apenas um dos hemisférios cerebrais dos roe-dores. A consequência é que, ao receber um composto estimulante, os animais passam a andar em círculos.

Num primeiro teste, Telma viu que a bradicinina, mesmo aplicada depois da morte dos neurônios, permitiu a re-cuperação das duas regiões afetadas. Dos cinco animais que fizeram parte do experimento, quatro deixaram de rodar em círculos após o tratamento. “Células-tronco do cérebro dos animais podem ter migrado para as regiões da-nificadas e se diferenciado em neurô-nios”, comenta a pesquisadora.

A reposição celular observada nesses experimentos com animais, porém, não foi o único efeito benéfico da bradicini-na no sistema nervoso central. Testes recentes feitos por Henrique e a biomé-dica Janaina Alves, aluna de doutorado de Ulrich, indicam que a bradicinina pode evitar a morte dos neurônios na isquemia, a interrupção do fluxo de oxigênio e nutrientes provocada pelo

86 bilhões de neurônios e 85 bilhões de células da glia (astrócitos, oligodendró-citos e microglia). Até pouco tempo atrás consideradas apenas suporte físico para os neurônios, as células da glia, palavra de origem grega que significa cola, vêm ganhando importância com a verificação de que executam funções tão relevantes quanto os neurônios: auxiliam na trans-missão dos impulsos nervosos e na de-fesa do sistema nervoso central contra microrganismos invasores.

mas a produção de uma quanti-dade maior de neurônios pode ser interessante em algumas

situações, além de ajudar a entender certa capacidade que o cérebro tem de se recuperar de lesões, acreditam os pesquisadores. Existe a chance de que, ao se controlar a formação de neu-rônios a partir de células-tronco, seja possível substituir as células mortas em caso de doenças neurodegenera-tivas, a exemplo do mal de Parkinson, ou em caso de isquemia, a interrupção do fluxo de oxigênio e nutrientes por entupimento dos vasos sanguíneos.

“Já se sabe, de experimentos com ani-mais, que transplantar para o cérebro as células já diferenciadas não funciona porque elas são incapazes de refazer as conexões corretas e morrem”, diz

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Telma. “Mas talvez se possa implan-tar as células imaturas e induzi-las a se transformarem em neurônios.” Ela e Enéas Ferrazoli atual mente testam a hipótese em um modelo de Parkinson em ratos, em colaboração com Beatriz Longo, da Unifesp. Os resultados ini-ciais são encorajadores.

Quem sofre do mal de Parkinson cos-tuma apresentar tremores, dificuldade de executar vários movimentos e de manter a postura corporal, em conse-quência da morte dos neurônios em duas regiões cerebrais – a substância negra e

bradicinina em ação: a partir da neuroesfera, no canto inferior direito, formam-se mais neurônios, em vermelho, do que células da glia, em verde

30%mais neurônios se formaram em culturas de células sob a ação da bradicinina

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entupimento de vasos sanguíneos. Em um modelo que reproduz os danos da isquemia, Henrique e Janaina trataram uma região do cérebro de ratos com N- -metil-D-aspartato. Esse composto, mais conhecido como NMDA, faz uma torrente de cálcio invadir as células – as taxas chegam a ser mil vezes superiores ao normal –, matando-as. A medição da atividade neuronal mostrou que 80% das células do hipocampo morreram após a administração de NMDA. A taxa de morte celular, porém, caiu para 20% quando o hipocampo, além de NMDA, recebeu bradicinina, de acordo com um artigo enviado recentemente para uma revista científica.

na Universidade Central do Caribe, em parceria com os neurocien-tistas Pedro Ferchmin e Vesna

Eterovic e a estudante Wilmare Torres, Henrique verificou que a bradicinina evita a morte de neurônios expostos a um composto que causa os mesmos efeitos do gás sarin, desenvolvido na Alemanha durante a II Guerra Mundial e usado em um atentado terrorista em 1995 em Tóquio. Os compostos que ten-tam amenizar os efeitos dessas armas químicas não são totalmente eficazes. “Soldados que lutaram na Guerra do Golfo e foram expostos a armas quími-cas receberam um antídoto e sobrevive-

ram, mas agora apresentam problemas de memória”, diz Henrique.

Ele, Janaina e Ulrich propõem uma nova explicação para o efeito neuro-protetor da bradicinina. Ela impedi-ria a morte das células por glutamato, neurotransmissor que é tóxico em doses elevadas, e não apenas por melhorar a chegada de oxigênio e nutrientes por provocar vasodilatação, como se acredi-tava. Segundo Henrique, experimentos indicam que a bradicinina ativa proteí-nas que evitam a morte celular.

Por um mecanismo distinto, Pesquero, da Unifesp, constatou que a bradicinina influencia o consumo de energia no or-ganismo. “Identificamos uma ação direta da bradicinina no metabolismo energé-tico”, conta. Anos atrás Pesquero obser-vou que camundongos transgênicos que ele havia produzido durante estágio no Instituto Max Delbrück, na Alemanha, engordavam menos que os camundon-gos comuns quando submetidos a uma dieta altamente calórica. A diferença en-tre os dois grupos de roedores é que os transgênicos não apresentavam em suas células o receptor B1, ao qual um sub-produto da bradicinina se liga e dispara fenômenos típicos da inflamação.

Os animais sem o receptor B1 eram mais sensíveis ao hormônio leptina, revelaram testes feitos pelo biomédico Marcelo Mori e pelo médico veterinário Ronaldo da Silva Araújo, ambos da equi-pe de Pesquero e hoje professores da

os proJetos1. modulação artificial da diferenciação neuronal e função de receptores por oligonucleotídeos sintéticos atuantes aos níveis gênico e proteico – no 2001/08827-4

2. bases moleculares da diferenciação de células-tronco e progenitoras neurais – no 2006/61285-9

3. duplo transplante de microesferas e células-tronco neurais como terapia para a doença de Parkinson – no 2009/50540-6

ModalidadE1. e 3. Jovem pesquisador 2. projeto temático

Co or dE na dorEs1 e 2. alexander Henning ulrich – iq/usp3. telma tiemi schwindt – iq/usp

invEstiMEnto1. r$ 1.419.510,07 (fapesp)2. r$ 1.038.469,28 (fapesp)3. r$ 193.442,57 (fapesp)

artigos científicos1. MARTINS, A. H. et al. Neuronal differentiation of P19 embryonal carcinoma cells modulates kinin B2 receptor gene expression and function. Journal of Biological Chemistry. v. 280, p. 1.9576-86. 20 mai. 2005.

2. MORI, M.A. et al. Kinin B1 receptor deficiency leads to leptin hypersensitivity and resistance to obesity. Diabetes. v. 57, p. 1.491-1.500. Jun. 2008.

Em animais de laboratório, a bradicinina regulou a ação de um hormônio que controla a fome e o ganho de peso

assista às entrevistas em revistapesquisa.fapesp.br

Unifesp, publicados em 2008 na revista Diabetes. Secretado pelo tecido adipo-so, esse hormônio induz à saciedade e aumenta o consumo de energia do orga-nismo. Segundo Pesquero, a eliminação do receptor B1 aparentemente induz as células a produzirem mais receptores B2, ao qual se liga a bradicinina. “Isso sugere que ela regula a sensibilidade à leptina”, conta o pesquisador.

Ele verificou, em camundongos trans-gênicos, que a produção de B1 apenas no tecido adiposo é suficiente para fazê-los engordar como os animais comuns. Pes-quero acredita ser possível chegar a um composto que bloqueie a atividade do receptor B1 e auxilie no controle da obe-sidade. Ele testou uma molécula antago-nista do receptor B1, que uma empresa farmacêutica estava desenvolvendo para combater a dor associada à infla mação. A molécula se mostrou eficiente para controlar o ganho de peso dos animais, mas a empresa a descartou por causa dos efeitos colaterais indesejados.

Apesar dos resultados promissores, ainda é pouco provável que um dia a bradicinina seja usada para

tratar isquemia ou obesidade. Embora sua forma sintética exista há quase meio século, ela não foi aprovada para uso em humanos. Alguns estudos sugerem que a administração da bradicinina cause efeitos indesejáveis graves, como edema cerebral e queda importante da pressão arterial. “In vitro a bradicinina se mos-trou neuroprotetora, mas in vivo a coisa complica porque há muitas interações que nem sempre se pode prever”, conta Henrique. A esperança é obter uma mo-lécula análoga à bradicinina que provo-que menos efeitos colaterais e também seja neuroprotetora. Por ora, lembra Cleber Trujillo, “entender como ela age no tecido adiposo e no sistema nervoso central já é bastante significativo”. n

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um lugar ao sol para a ciência

a rotina da astrofísica argentina Mar-ta Rovira sofreu uma transforma-ção em abril de 2008, quando ela passou a conciliar o trabalho de pesquisadora do Instituto de As-

tronomia e Física do Espaço (Iafe), situado no campus da Universidade de Buenos Aires, com o cargo de presidente do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet, na sigla em espanhol), principal agência de pro-moção da ciência e da tecnologia do país. Ela é a primeira mulher a comandar o órgão, criado em 1958 por Bernardo Houssay, prêmio Nobel de Medicina de 1947. À frente do Conicet, Marta Rovira lidera uma estratégia que vem resgatando a capacidade científica do país, comprometida por um forte aperto orçamentário nos anos 1990 e pela aguda crise que esfacelou a política eco-nômica calcada na paridade peso/dólar e que levou à renúncia, em dezembro de 2001, do então presidente Fernando de la Rúa. O orçamento do Conicet cresceu de um patamar inferior a US$ 100 milhões em 2003 para US$ 335 milhões no ano passado. Tal volume de recursos permitiu que seus 142 institutos de pesquisa, na maioria ligados a universidades, como o Iafe, e 12 centros científicos e tecnológicos regionais, elevassem o quadro de pesquisadores de 3.804 em 2003 para 6.350 no ano passado. No mesmo ritmo, o número de bolsistas saltou de 2.378 para 8.122 no período.

EntrEvista

Marta rovira

a presidente da principal agência de apoio à pesquisa da argentina aposta na recuperação da capacidade científica de seu país

Fabrício Marques

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A estratégia também inclui a repatriação de pesquisadores argentinos tangidos para o exterior pela crise do início dos anos 2000 – a Argentina já sofrera fugas de cérebros nos anos 1970, por causa da ditadura militar, e nos 1960, por conta-rem com bons cientistas talhados para as oportunidades que surgiam nos Es-tados Unidos e na Europa. Um progra-ma chamado Raíces vem conseguindo trazer pelo menos 100 pesquisadores argentinos a cada ano, integrando-os às universidades, a empresas e, sobretudo, às vagas abertas pelo próprio Conicet. Doutora em física pela Universidade de Buenos Aires, Marta Rovira é autora de mais de 120 artigos científicos e dirigiu o Iafe entre 1995 e 2008. Seu tema de interesse é física solar, com destaque para o estudo de fenômenos solares ati-vos e a relação Terra-Sol. Ex-presidente da Associação Argentina de Astrono-mia por três mandatos, atualmente é vice-presidente da União Astronômi-ca Internacional. Em seu gabinete em Buenos Aires, ela concedeu a Pesquisa FAPESP a entrevista a seguir:

O orçamento do Conicet aumentou en-tre 2003 e 2010 mais de 400%, em valo-res em dólar. Como foi possível ampliar o investimento em ciência e tecnologia num período em que o país conviveu com limitações orçamentárias e deman-das crescentes em outras áreas?

Claramente, foi uma política de governo. Houve a decisão de governo no sentido de ampliar o orçamento de ciência e tecnolo-gia. Isso permitiu que ingressassem mais pesquisadores, bolsistas e outros funcio-nários no sistema. No total, incluindo-se todas as categorias, o aumento foi de 9 mil pessoas em 2003 para mais de 17 mil em 2010. Houve uma decisão governamen-tal que ampliou o orçamento do Conicet e permitiu a criação de mais cargos e o pagamento dos salários.

É possível medir o impacto do cresci-mento do número de bolsas e cargos. Algumas áreas se destacaram?É muito difícil dizer quem se destacou. Alguns temas acabam esquecidos ou se cria um viés que depende da formação de quem analisa. No Conicet, a conces-são de bolsas e o ingresso na carreira de pesquisador sempre se deram por ordem de prioridade. Nas comissões assessoras estabelece-se uma ordem de acordo com os antecedentes e a produção de cada pesquisador e eles ingressam no sistema obedecendo a essa ordem. No ano pas-sado, decidimos mudar pela primeira vez essa regra e estabelecemos que 80% continuariam a ingressar por mérito, pois o que se busca é a excelência, mas os outros 20% atenderiam necessida-des regionais e áreas do conhecimen-to estratégicas. O objetivo é orientar um pouco a pesquisa para temas que

consideramos mais importantes. Mas, sobretudo, queremos garantir que as necessidades das diversas regiões do país sejam atendidas.

Poderia citar um exemplo?O Conicet, em sua estrutura, dispõe de 12 centros científicos e tecnológicos espalhados por várias regiões. As ne-cessidades da população de Mendoza [quarta maior cidade da Argentina, polo de produção de vinho e alimentos], onde temos um desses centros, são muito dis-tintas das necessidades da população de Ushuaia, capital da província da Terra do Fogo, onde há o Centro Austral de Pesquisas Científicas. Então estamos levando em conta essas necessidades. O que se estuda nessa região precisa ter alguma relação com o que interessa ao governo e à sociedade dali. Antes isso não era contemplado, o que valia eram os antecedentes dos candidatos. A nossa população está muito concentrada no centro do país. Precisamos garantir que existam e floresçam outros grupos de pesquisa tanto ao norte quanto ao sul. Oitenta por cento dos nossos quadros estão em Buenos Aires, Santa Fé, Rosá-rio, Córdoba e Mendoza.

E os pesquisadores estão dispostos a trabalhar em regiões distantes?Estamos criando incentivos para que os pesquisadores sejam atraídos para essas regiões. É bastante provável que não haja pesquisadores seniores em número sufi-ciente para liderar os grupos. Depende muito dos temas. A vida nessas regiões pode ser muito diferente. Uma coisa é viver em Buenos Aires, outra é morar em Ushuaia, onde as temperaturas são terrí-veis. Existe um complemento de salário, em alguns lugares, de 60% a mais do que na capital federal. Mas não é tanto a pon-to de ter gente desesperada para ir. Tem gente que gosta. Agora estamos pensando em dar moradia, pois em alguns locais ela custa muito caro, e outras coisas que os atraiam.

Cerca de 40% dos trabalhos científicos do Conicet são feitos em colaboração com outros países. No Brasil, a colabo-ração internacional está estacionada em 30% em alguns anos. Como avalia o atual patamar de cooperação entre Brasil e Argentina e as possibilidades que se abrem?

resgate dos recursos humanoso crescimento do pessoal contratado pelo conicet

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pesquisadores

técnicos

bolsistas

administrativos6.350

2.309

761

8.122

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Nós temos muitos acordos com dife-rentes universidades e agências bra-sileiras, mas também há muitos traba-lhos em colaboração entre brasileiros e argentinos que não estão vinculados a nenhum desses convênios. A ciên-cia é universal e interdisciplinar. Em alguns temas, é muito importante ter colaborações com outros países. Não é porque outros países sejam muito me-lhores ou diferentes de nós. É que o trabalho conjunto é sempre interessante. Veja o meu campo, por exemplo. Eu estudo o Sol. Nesse tipo de pesquisa, as imagens de sa-télite são muito importantes. No momento em que as ima-gens são postas à disposição de todo mundo, vários grupos começam a trabalhar. E cada vez é mais frequente que da-dos de várias áreas tornem- -se públicos para que toda a comunidade possa usar.

Na sua área há colaboração com o Brasil. O Telescópio Solar para Ondas Submili-métricas (SST) foi instala-do no final dos anos 1990 no Complexo Astronômico El Leoncito (Casleo), vinculado ao Conicet, e é uma iniciativa conjunta do Centro de Rádio Astronomia e As-trofísica do Mackenzie (Craam), aliás, com financiamento da FAPESP.O professor Pierre Kauffman [astrofísi-co brasileiro e pesquisador do Craam] trouxe o radiotelescópio solar para El Leoncito, nos Andes argentinos, e ele funciona muito bem. As condições para a instalação eram muito boas. Funcio-navam outros telescópios no Casleo, a estrutura já existia...

Há alguma área em que a Argentina tenha interesse específico em colaborar com o Brasil? No acordo de coopera-ção celebrado no ano passado entre o Conicet e a FAPESP todas as áreas do conhecimento estão contempladas. Com o Brasil há mais colaboração em física do que em outras áreas. Trinta e dois por cento dos artigos publicados por pesquisadores brasileiros e pesqui-sadores do Conicet entre 2000 e 2009 estavam vinculados às ciências físicas. Em seguida vêm as ciências biológicas,

com 15%, as ciências químicas, com 13% e a medicina básica, com 10%. Mas não creio que tenha havido uma orientação. Isso deve ser resultado da dinâmica na-tural de colaborações nessas áreas. Um dado de 2007 mostra que o Brasil foi o terceiro país com o qual os pesquisado-res do Conicet mais publicaram artigos em cooperação. Os dois primeiros foram os Estados Unidos e a Espanha.

Numa apresentação em que falou dos desafios que o Conicet vai enfrentar, a senhora citou a necessidade de investir na internacionalização, sem deixar de responder cada vez mais a demandas re-gionais. Como conciliar as duas coisas?A ciência básica nós temos que seguir pesquisando. Porque é a partir da ciên-cia básica que se chega à ciência aplica-da, ao desenvolvimento tecnológico. Em geral, os trabalhos com ciência básica se publicam em revistas internacionais. É uma exigência que atesta a qualidade da pesquisa. Quando a revista é boa, os tra-balhos costumam ser bons. Queremos agora que os grupos que fazem pesquisa numa determinada região se dediquem um pouco aos problemas dela. Nem to-dos vão fazer isso, naturalmente. Mas é necessário que uma porcentagem des-sas pessoas se dedique aos problemas da região para tratar de solucioná-los e melhorar a vida das pessoas que vivem ali. Não são objetivos excludentes. Há muito desenvolvimento tecnológico que depois de alguns anos se transforma em

algo que se pode efetivamente transferir para a sociedade.

A Argentina tem melhores indicadores em educação que o Brasil, tanto no en-sino básico quanto no acesso ao ensino superior público. Já o Brasil criou um sistema de pós-graduação que é único na América Latina. O que um vizinho tem a aprender com o outro?

O Brasil investe mais que a Ar-gentina em ciência. Tem mui-to mais bolsistas, forma mais doutores. A Argentina vem aumentando o investimento em ciência a partir de 2003. Em 2007 criou o Ministério da Ciência. Em educação primá-ria e secundária, não sei, mas o Brasil vem crescendo bastante em ciência e tecnologia nos úl-timos anos.

Um sociólogo argentino radi-cado no Brasil chamado Hugo Lovisolo escreveu a respeito das diferenças dos sistemas universitário e de ciência e tecnologia dos dois países. Ele observou que o Brasil investiu em universidades voltadas à pesquisa e pós-graduação, en-quanto a Argentina apostou

em instituições capazes de receber uma grande massa de alunos na graduação e a se comprometer com mais ênfase com demandas da sociedade. Concorda com essa avaliação?Não conheço bem o caso do Brasil. Mas na Argentina, faz alguns anos, os pesqui-sadores ingressavam de acordo com seus antecedentes, sem levar em conta o tema a que se dedicavam. Agora é que se está orientando um pouco mais para temas ca-pazes de criar transferência tecnológica. Queremos gerar na hierarquia do nosso sistema grupos que tenham mais peso e atuem mais como intermediários entre os resultados das pesquisas que são trans-feríveis e as empresas que poderiam co-mercializar isso. A maioria dos pesquisa-dores não gosta de lidar com empresários e prefere se dedicar aos seus trabalhos. Há muitas coisas que são feitas e têm re-sultados transferíveis, mas o pesquisador, em geral, não está preparado para falar com a empresa e vender o produto de sua pesquisa. Houve de fato uma política de governo para estimular isso.

há muita pesquisa com resultados transferíveis para a sociedade, mas o pesquisador não está preparado para falar com as empresas

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A ênfase na transferência tecnológica é uma forma de legitimar na sociedade o investimento crescente em ciência?Não há a condição de que para investir em ciência temos que transferir para a sociedade. Mas vivemos um período em que consideramos que, se é possí-vel transferir, temos de transferir. Não é que o governo diga: vamos dar mais dinheiro, mas vocês vão ter que trans-ferir. O governo gostaria que isso acontecesse, mas não nos pede esses resultados.

E os resultados estão apare-cendo?Há desenvolvimentos de que participam os pesquisadores e as empresas. Tem um caso que costumo citar que é o Yo-gurito, um produto lácteo, fei-to de iogurte, comercializado por uma empresa e que con-tou com toda a pesquisa para que o iogurte fosse bom para as crianças, que as proteges-se de doenças respiratórias e intestinais. É um exemplo de trabalho conjunto entre um instituto e uma empresa. Acordo firmado entre o Coni-cet e a província de Tucumán garantiu o fornecimento do iogurte para 56 mil estudantes. Há ou-tros exemplos, como o desenvolvimento de aves transgênicas capazes de produ-zir proteínas de interesse da indústria farmacêutica, de variedades de batatas resistentes a vírus e de diversas plantas geneticamente modificadas. Queremos fomentar isso, fazer com que existam mais relações entre os institutos que fazem desenvolvimento e as empresas. Um dos objetivos do Conicet é reduzir a distância entre a ciência e a socieda-de, mostrar que o que se pesquisa pode ajudar as pessoas a viver melhor.

A sociedade reconhece esse esforço?A sociedade não reconhece muito por-que não conhece bem o que os pesquisa-dores do Conicet fazem. Por isso se criou no ano passado uma direção de comu-nicação e imprensa, para que tenhamos mais presença na sociedade, para que as pessoas saibam o que nossos pesquisa-dores estão fazendo. Ainda hoje, quem mais conhece o que está acontecendo são os próprios pesquisadores.

Na campanha eleitoral à reeleição, a presidente Cristina Kirchner apresen-tou uma propaganda em que mostrava os resultados de programas de governo para repatriar cientistas argentinos que haviam migrado. A Argentina ainda so-fre com a fuga de cérebros?Nesse momento, o que nos chama a aten-ção felizmente são os pesquisadores que estão voltando. Há muitos voltando. Para

o Conicet, são entre 100 e 110 por ano. Temos um programa de repatriação de cientistas, o programa Raices. Quando alguém quer retornar à Argentina para trabalhar no Conicet, nas universida-des ou em outras instituições, tentamos incorporá-lo.

Os pesquisadores que voltaram têm boas posições? Conseguem trabalhar?O Conicet é um dos destinos. Uma porcentagem alta dos que vêm do ex-terior entra facilmente nos institutos ligados ao Conicet, porque em geral tem antecedentes melhores do que os candidatos daqui. Creio que eles estão voltando porque têm melhores condi-ções de trabalho. Nos últimos anos, os recursos para compra de equipamentos aumentaram, e são equipamentos de úl-tima geração, bastante competitivos. Os laboratórios estão mais bem equipados para dar aos pesquisadores condições mais parecidas com as que teriam no exterior. Os salários são razoáveis, es-tão num patamar muito melhor do que

alguns anos atrás. E aumentou bastante o número de bolsistas. Em 2003, todos os pesquisadores que se apresentaram para ingressar na carreira entraram. No ano passado, cerca de 130 não entraram na carreira de pesquisador, tendo sido aprovados em todas as instâncias de avaliação por pares, os conselhos asses-sores. Tem um programa que subven-ciona as empresas que empregam e, se

há empresas que pedem pes-quisadores com determinado perfil, o Conicet pergunta a eles se querem que se ofereça o currículo para a empresa. A empresa os entrevista. Faz pouco que começamos. Nu-ma companhia entraram dois, por exemplo, e em outras em-presas também. Gostaríamos que entrassem mais na parte pública, nos ministérios. Há pesquisadores do Conicet na Comissão de Energia Atômi-ca, em ministérios, em dis-tintos lugares. Gostaríamos que as empresas empregas-sem mais doutores, mesmo que eles não vão dedicar-se especificamente ao tema em que se formaram. O doutora-do oferece uma formação que permite fazer outras coisas

que não sejam exatamente aquelas a que eles se dedicaram.

No Brasil há quem defenda que deveria haver mais cientistas radicados no ex-terior, porque eles acabam funcionando como interlocutores internacionais dos pesquisadores em atividade do país, aju-dando a celebrar colaborações. Existe um lado positivo na fuga de cérebros?É certo que, em geral, entre os pesquisado-res argentinos no exterior, uma porcenta-gem elevada colabora com pesquisadores que estão na Argentina. De certa maneira, se estabelece alguma relação que pode trazer benefícios. Eles continuam sendo argentinos mesmo estando no exterior.

No início de outubro, um ranking de universidades latino-americanas fei-to pela empresa britânica QS colocou o Brasil na dianteira, com 65 das 200 primeiras universidades da lista, quase o dobro do México (35) e muito mais do que Argentina e Chile (25 cada um). Esse resultado a preocupa?

o que nos chama atenção, felizmente, são os pesquisadores que estão retornando do exterior. são cerca de 100 por ano

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Honestamente, não posso opinar sobre rankings. Mas temos uma relação forte com as universidades, porque, afinal, nossos bolsistas estão vinculados a elas. Pagamos para que estudem, mas é a universidade que os forma. O bolsista é aquele que concluiu a graduação e tem um total de cinco anos, em duas etapas, para fazer o doutoramento. O Conicet dá a bolsa de estudos e o título é concedido pela universidade, pública ou privada, onde ele faz seus estudos. Dos institu-tos de que o Conicet dispõe, distribuí-dos um pouco mais na região central, quase todos são nas dependências das universidades. Quase 90% dos nossos pesquisadores estão vinculados às uni-versidades. O pesquisador do Conicet deve ter pós-graduação para ingressar em uma das quatro categorias (assisten-te, adjunto, independente e principal) e na de pesquisador superior.

A Agencia Nacional de Promoción Científica y Tecnológica (ANPCyT) foi criada em 1996 para dar mais fle-xibilidade ao financiamento à pesquisa na Argentina. Se dizia que a estrutura do Conicet havia ficado grande demais para cuidar ao mesmo tempo dos ins-titutos e dos bolsistas e ainda para

pensar em grandes estratégias. Numa apresentação recente que a senhora fez, afirmou que um dos desafios do Conicet é aperfeiçoar seus processos. Há problemas? Não. Temos nesse momento 22 comis-sões assessoras, vinculadas a quatro grandes áreas [ciências biológicas e de saúde; ciências exatas e naturais; ciên-cias sociais e humanidades; e agricul-tura e engenharias]. Essas comissões se reúnem uma vez por mês e têm que avaliar os ingressos, recursos, trans-ferências de local de trabalho. Os que se apresentam para bolsas, também. São quantidades muito importantes. Se criaram outras 22 comissões das mes-mas disciplinas. Mas funciona tudo pe-la internet, as avaliações, as inscrições, tudo. Há documentos que mantemos em papel, por razões legais, mas para as avaliações usamos a via digital.

Como é a relação entre o Conicet e a ANPCyT?A agência depende do Ministério da Ciên- cia, como o Conicet. O Conicet tem bol-sistas, pesquisadores, pessoal de apoio, e a agência não tem pesquisadores que dependam dela. A agência dá subsídios, para os quais se apresentam muitos pes-

quisadores do Conicet. Os pesquisadores podem obter fundos importantes para seus projetos.

Trabalham de forma complementar...Os pesquisadores se apresentam para obter subsídios da agência, não só para pesquisa, para compra de equipamentos, mas para repatriação também. Antes de criar a agência, o Conicet era quem dava recursos para projetos de pesquisa. Há três anos mais ou menos, o Conicet voltou a dar dinheiro para projetos de pesquisa. Já a agência tem recursos destinados a grupos de pesquisa, como os concedi-dos pelo Conicet, mas também tem para temas em particular, vinculados aos cha-mados fundos setoriais e voltados para determinadas áreas [modernização de laboratórios, informática, energia, entre outras]. Quem trabalha nessas especia-lidades pode disputar os recursos. Creio que os dois modelos se complementam. A agência não tem institutos, não tem pessoal, mas concede fundos.

Há dois anos entrevistei um cientista argentino, o biomédico Alberto Korn-blihtt, da Universidade de Buenos Ai-res, que se interessou em saber como funcionava a FAPESP. Expliquei que a Fundação recebe desde os anos 1960 uma porcentagem da arrecadação de impostos para investir em pesquisa e ele observou que era essa regularidade de investimento que fazia falta à Ar-gentina. Qual é o prejuízo disso?É muito difícil levar adiante um programa de pesquisa sem saber quanto dinheiro es-tará disponível. É preciso contar com pelo menos um patamar mínimo, principal-mente no desenvolvimento aplicado, que necessita de equipamentos, que necessita de vários tipos de aparatos. É preciso sa-ber se vai haver dinheiro para comprar os equipamentos ou modernizá-los. Acredito que, no passado, não se desenvolvia tanto na Argentina a ciência aplicada porque não se sabia se no ano seguinte haveria dinheiro para seguir fazendo.

Mas a Argentina conseguiu manter uma base científica consistente...É verdade, mas os instrumentos não duram sempre. Eles se quebram, ficam obsoletos, surgem outros muito mais de-senvolvidos. É indispensável renová-los para manter os pesquisadores trabalhan-do de forma competitiva. n

a força da colaboraçãoáreas em que pesquisadores do conicet produziram artigos

científicos em parceria com brasileiros entre 2000 e 2009

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deu no Mercurio Portuguez: “... e do Brasil virá também o galeão chamado Padre Eterno, que se faz no Rio de Janeiro, e

é o mais famoso baixel de guerra que os mares jamais viram”. A gazeta mensal lisboeta trazia a notícia acima fechando a edição de março de 1665. O periódico de Antônio de Souza de Macedo, secretário de estado do Reino de Portugal, se referia ao barco de 53 metros (m), que deslocava 2 mil toneladas (t), com um mastro feito num só tronco de 2,97 m de circunferência na base. O navio começou a ser construído em 1559 a mando do governador da capitania do Rio, Salvador Correia de Sá e Benevides, na Ilha do Governador, em um local conhecido como Ponta do Galeão (onde fica hoje o Aeroporto Internacional Tom Jobim). Militar e político português, dono de engenhos e currais, Sá fez o mais potente galeão que pôde para evitar depender da proteção das frotas do governo ao se aventurar no comércio pelos mares.

Para confeccioná-lo, Sá mandou vir técnicos da Inglaterra, embora os mestres e artesãos coloniais tenham feito a maior parte da embarcação com a ajuda da mão de obra indígena, segundo conta o professor de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris, Luiz Felipe de Alencastro em O trato dos viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras, 2000). O Padre Eterno passou por Lisboa em novembro de 1665 e causou forte impressão no Reino e nas embaixadas europeias. Ficou conhecido como o maior barco da época. Alencastro, entretanto, registra que o sueco Kronan, de 2.200 t, e o francês Soleil-Royal, de 2.500 t, eram maiores. O galeão brasileiro usava madeiras nativas leves e era fácil de manobrar, característica importante nas frequentes batalhas navais. Essas vantagens não foram suficientes para evitar seu naufrágio alguns anos depois no oceano Índico, em data e circunstâncias desconhecidas.

Por mares sempre navegados

indústria naval do brasil colônia produziu no século Xvii o galeão padre eterno, um dos maiores do período — neldson Marcolin

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MEMória

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o galeão de 2 mil toneladas foi o

expoente de uma indústria importante

até o final do século xviii

padrE EtErno

Comprimento: 53 m Carga: 2 t Canhões: 144 Mastro: 2,97 m de circunferência na base

Os projetos de construção eram levados a cabo de modo quase inteiramente empírico até meados do século XVIII. Pouco se sabia sobre estabilidade, durabilidade de materiais e resistência às ondas e aos ventos. “O único suporte científico eram rudimentos que datavam das experiências de Arquimedes na Antiguidade”, explica Telles, hoje professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Não havia engenheiros para projetar e orientar a construção e era preciso trazer mestres de Portugal.”

Esses mestres vinham para a Bahia e o Rio, na maioria das vezes. No final do século XVI, o governo de dom Francisco de Souza deu caráter oficial ao estaleiro da Ribeira das Naus, de Salvador, que já funcionava desde antes, com Tomé de Souza. Em 1650, uma carta régia estabelecia que se deveria lançar ao mar anualmente pelo menos um galeão de 700 a 800 t. A tonelada correspondia à capacidade que o navio tinha de transportar tonéis. Segundo Telles, um navio de 100 t daquela época teria um deslocamento carregado de cerca de 250 t, segundo se entende hoje. A qualidade e abundância das madeiras brasileiras contribuíram para a forte atividade da construção naval da época.

Outros estados construíram estaleiros para construção e reparos de barcos no Brasil Colônia. Mas depois de Salvador foi o Rio que construiu mais navios. Em 1666 foi fundada na Ilha do Governador uma fábrica de fragatas. Do mesmo lugar de onde saiu o Padre Eterno foram feitos outros barcos que orgulharam os reis portugueses, como a fragata de guerra Madre de Deus e um grande navio, o Capitânia Real.

as américas, como eram vistas no século Xvii em Description de l’Univers (1683), de a.m. mallet. na outra página, gravura do padre eterno na entrada do rio tejo, em portugal, no mesmo livro

O Padre Eterno foi o expoente de uma indústria importante no Brasil Colônia até o final do século XVIII. Já em 1550, o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, mandou instalar oficialmente em Salvador uma empresa de conserto e fabricação de embarcações. Os portos brasileiros eram frequentados não apenas por razões comerciais, mas pela necessidade de se fazer reparos em navios depois de longos meses no mar.

Os portugueses dominavam a arte de construir todos os tipos de barco e de criar outros, como as caravelas, e foi essa indústria uma das responsáveis pela epopeia das grandes navegações naquele período. Tal sucesso foi facilitado pela padronização que os portugueses adotaram das proporções e medidas dos vários modelos de navio, feita pelo estaleiro lisboeta Junta das Fábricas da Ribeira. O livro das traças (1616), de Manuel Fernandes, por exemplo, trazia desenhos detalhados de 20 tipos de barco, segundo conta o engenheiro Pedro Carlos da Silva Telles no livro História da construção naval no Brasil (Fundação Estudos do Mar, 2001).

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32 novembro de 2011

Parcerias sem fronteiras

um encontro de cientistas de várias nacionalidades, radicados no Brasil e nos Estados Unidos, marcou as co-memorações do cinquentenário da FAPESP, que se completa em maio

de 2012. Além de estudos sobre o Brasil com uma visão diferente do que se vê dentro do país, talvez até pelo distanciamento que o olhar estrangeiro permite, os pesquisadores da América do Norte também mostraram por que buscam parcerias com brasileiros. Em áreas como bioenergia, medi-cina tropical e biodiversidade, o Brasil oferece não só os objetos de estudo, mas também uma infraes-trutura privilegiada e pesquisadores de formação sólida. No total, os 45 palestrantes deixaram claro que as colaborações internacionais têm sido e serão cada vez mais fundamentais para o avanço do conhecimento. A FAPESP Week se deu entre 24 e 26 de outubro na capital norte-americana, mais especificamente no Wilson Center, dedicado ao encontro entre estudiosos do mundo todo. Dele faz parte o Brazil Institute, fundado em 2006 e dirigido pelo jornalista Paulo Sotero.

fapesp week expõe e reforça os laços de pesquisa entre o brasil e os estados unidos

Maria guimarães, de washington

polítiCa _ comemoração

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Foi um bom momento para o anúncio feito pelo diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, de um programa que cederá finan-ciamento a pesquisadores estrangeiros, com a contrapartida de passarem ao menos 12 semanas por ano no Brasil, ao longo de três a cinco anos, e manterem pelo menos um pós-doutorando no país à frente do projeto. Em primeira mão, ele adiantou também uma parceria com a Boeing e a Embraer para criar um centro de pesquisa sobre biocombustíveis para a aviação, que se concre-tizará depois de um estudo de viabilidade com duração prevista de 9 a 12 meses.

“A FAPESP foi concebida com o reconheci-mento pioneiro da importância da pesquisa e a capacidade do Brasil de responder à moderniza-ção”, disse Celso Lafer, presidente da Fundação, na abertura do evento. Ele ressaltou que o conhe-cimento é internacional em sua abrangência e suas características e que as colaborações trazem resultados frutíferos para ambos os países. “A internacionalização sempre foi uma preocupação minha”, afirmou Lafer, que já foi ministro das

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1. paulo sotero, o embaixador mauro vieira e celso lafer na sessão de abertura

2. recepção na residência da embaixada brasileira

3. palestra de brito cruz no auditório do wilson center

4. palestras aconteceram também em sala de conferências

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Relações Exteriores. Mas ele não toma para si o crédito desse foco na FAPESP: “Já encontrei o esforço de internacionalização quando assumi a presidência, e apenas ajudei a estimulá-lo”.

A diretora adjunta da National Science Foun-dation (NSF), Cora Marrett, ressaltou a longa parceria entre a agência paulista e a norte-ame-ricana em várias áreas da ciência, como energia, química e engenharia. Estão em negociação, por meio de reuniões de especialistas radicados nos dois países, as diretrizes do Dimensions of bio-diversity, que aproxima o Biota-FAPESP e uma iniciativa semelhante da NSF. “Vamos colar os dois programas”, disse Brito Cruz.

EnControsComo uma boa festa de aniversário, o aconteci-mento em Washington foi palco de encontros, tanto entre brasileiros e estrangeiros como entre pesquisadores de áreas distintas, que raramente têm contato com o trabalho uns dos outros.

Na sessão sobre óptica e fotônica a israelense Michal Lipson, radicada na Universidade Cor-

nell, contou de seu espanto ao visitar o Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e ver diante de si fibras ópticas disponíveis para pesquisa. Esse tipo de equipamento costuma ser usado para comunicação, muito longe dos labo-ratórios. Segundo Hugo Fragnito, da Unicamp, que apresentou as linhas de pesquisa do CePOF, Michal busca colaborações no Brasil não só por causa dos equipamentos mas também da quali-dade da formação das pessoas – a começar pe-los estudantes. O físico Paulo Nussensweig, da Universidade de São Paulo (USP), que falou na mesma sessão, está justamente fazendo as malas a caminho de um ano em Cornell.

Um chamado para parcerias também foi o mote de Reynaldo Victoria, da USP, ao apre-sentar o programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, coordenado por ele. O Brasil está avançando em várias frentes nessa área, uma delas a elaboração de um modelo climático adequado para a região graças ao su-percomputador instalado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) (ver reportagem a partir da página 35). O diretor do Inpe, Gilberto Câmara, ressaltou a necessidade de aperfeiçoar a capacidade de observação por satélite. “É preciso monitorar a Amazônia em tempo real e criar a consciência de que o satélite está de olho”, disse. A tecnologia agora permite imagens muito mais detalhadas, conforme mostrou Robert Green, da agência espacial norte-americana, a Nasa. “Agora falamos em medição remota, muito além de sensoriamento remoto.” Câmara informou que uma parceria na missão denominada Global Terrestrial Ecosystem Observatory, por meio de

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1. brentani na sessão sobre saúde 2. michael van dusen, sotero, vieira, lafer, cora marrett e Janies

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34 novembro de 2011

um satélite conjunto, está em negocia-ção com a Nasa. Para ele, a informação gerada por esse tipo de fiscalização pre-cisa ser completamente disponível para todos os cidadãos, algo que ainda deve ser negociado.

Em negociação está, ainda, o progra-ma científico, liderado por Carlos Al-fredo Joly, da conferência Rio+20, que acontecerá no Rio de Janeiro no próximo ano. Coordenador do programa Biota- -FAPESP, o pesquisador da Unicamp se empenha não só em pesquisa sobre bio-diversidade, mas também em discussões políticas que visem a sua preservação.

A política e a pesquisa também se en-contram na discussão sobre bioenergia. “O aumento da produção de combustível a partir de biomassa poderia aumentar a segurança alimentar”, afirmou Lee Lynd, do Dartmouth College, que advoga o uso da imaginação para que combustíveis e alimentação deixem de ocupar campos opostos. Para ele, o exemplo brasileiro de-ve liderar os esforços nesse sentido. A FA-PESP tem participação importante nesse desenvolvimento por meio do Programa de Pesquisa em Bioenergia, o Bioen, apre-sentado por sua coordenadora Glaucia Souza, da USP. Marie Anne Van Sluys, da mesma universidade, mostrou como a genômica de plantas pode contribuir no melhoramento da cana. Seu trabalho tem revelado que alguns trechos duplicados do material genético, os elementos de trans-posição, são exclusivos da cana-de-açúcar e podem trazer informações importantes à investigação do complexo DNA dessa planta líder em bioenergia.

A importância dos olhares diversos foi ressaltada no combate a doenças na forma das células-tronco apresentadas por Mayana Zatz, da USP, e de esforços recentes em vacinas pelo Instituto Bu-tantan, segundo seu diretor Jorge Ka-lil. O câncer foi abordado por Ricardo Brentani, diretor-presidente da FAPESP e presidente do hospital AC Camargo. “Não podemos tratar hoje os pacientes da mesma maneira que antes, por isso in-vestimos em pesquisa”, disse. Pesquisa-dores dos dois países revelaram avanços na compreensão de enfermidades. Wal-ter Colli, da USP, mostrou como genes do parasita Trypanosoma cruzi podem agir contra a doença de Chagas. Houve espaço para abordagens incomuns, como o estudo da tuberculose a partir de alte-rações ósseas em fósseis e de DNA antigo por Jane Buikstra, da Universidade Esta-dual do Arizona. Também vale destacar os modelos computacionais usados por Daniel Janies, da Universidade Estadual de Ohio, para identificar como doenças se diversificam mundo afora.

Um encontro desses não se limita às palestras. Conversas informais propi-ciam novos intercâmbios, como a troca de ideias entre o médico da USP Marcelo Urbano Ferreira e o físico Vanderlei Bag-nato, da USP de São Carlos, sobre a via-bilidade de matar com luz solar as larvas de mosquitos transmissores da dengue e da malária. Oportunidades preciosas num contexto em que a ciência é cada vez mais interdisciplinar e internacional. n

diMEnsão huManaNum encontro pouco comum entre ciên-cias exatas e humanas, o simpósio teve espaços para olhares sobre a política brasileira. Olhares inclusive estrangei-ros, como a análise de Tulia Faletti, da Universidade da Pensilvânia, sobre a reforma radical e bem-sucedida (em-bora ainda mal financiada) no sistema público de saúde que deu origem ao SUS; as conclusões de Scott Desposato, da Universidade da Califórnia em San Diego, sobre democracia racial e cor-rupção; e o estudo de Elizabeth Stein, da Universidade de Nova Orleans, que exa-mina a luta ousada da imprensa durante a repressão da ditadura militar.

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o radar do projeto chuva é instalado em outubro, em são José dos campos, para estudar os temporais que duram muitos dias e causam deslizamentos

_ História da fapesp vi

meteorologia

mudanças climáticas

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tempo firme

muito antes de o aquecimento glo-bal invadir a agenda de inquie-tações do planeta, a FAPESP já fazia investimentos de fôlego na ciência do clima. De um radar

meteorológico instalado na década de 1970 no interior paulista para monitorar as chuvas e abas-tecer de informações os agricultores e a Defesa Civil até o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), que investirá pelo menos R$ 100 milhões até 2018, a Fundação demonstrou uma preocupação con-tínua em formar recursos humanos e aumentar a quantidade e a qualidade da contribuição dos pesquisadores de São Paulo no avanço do conhe-cimento sobre o tema – com isso, ajudou o país a conquistar espaço no debate mundial sobre as mudanças climáticas. “Ao patrocinar projetos de cientistas do estado de São Paulo mesmo quando eles estudam fenômenos em outros estados, como é o caso da Amazônia, a FAPESP ajudou a moldar uma comunidade de pesquisadores que hoje pro-duz ciência do clima de classe internacional”, diz Reynaldo Victoria, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), do campus Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo em Piraci-caba, coordenador executivo do PFPMCG.

O primeiro grande investimento da FAPESP ocorreu em 1974, com a instalação de um radar meteorológico na cidade de Bauru, no interior paulista. Implantado no Instituto de Pesquisas Meteorológicas (Ipmet), que depois seria incor-porado à Universidade Estadual Paulista (Unesp),

das previsões meteorológicas ao aquecimento global, fapesp investiu nas ciências do clima

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1974radar de bauru estimulou a pesquisa e forneceu previsões meteorológicas de qualidade

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reportagem da Folha de S. Paulo sobre o radar, em 23 de julho de 1974

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o equipamento se tornou o ponto de parti-da da atual rede paulista de radares meteo- rológicos. Na época, os radares disponí-veis em São Paulo pertenciam à Aero-náutica e eram talhados para monitorar o espaço aéreo.

Proposto no início dos anos 1970 co-mo um projeto especial da FAPESP pelo então diretor científico Oscar Sala (1922- -2010), o Radar Meteorológico de São Paulo (Radasp) tinha um duplo objetivo: criar um ambiente capaz de formar re-cursos humanos em meteo rologia, usan-do técnicas avançadas pa ra a época, e ofe-recer, com rapidez, previsões do tempo que permitissem à agricultura paulista se programar e à Defesa Civil monitorar os efeitos de tempestades. “O professor Sala anteviu a importância que a meteorologia teria no contexto das ciências atmosfé-ricas e tomou a iniciativa de propor um programa piloto, que, além de fomentar a pesquisa, envolvia uma transferência direta de conhecimento para a sociedade e o setor produtivo”, diz Roberto Vicente Calheiros, professor titular da Unesp e pesquisador do Ipmet. Logo que o radar entrou em operação, a Rádio Eldorado, de São Paulo, começou a divulgar infor-mações sobre previsões de chuva obtidas pelo equipamento.

sErviço EssEnCialO radar de Bauru permitiu acompanhar em tempo real a ocorrência de chuvas no estado e fornecer previsões imediatas, de alguns minutos até horas adiante. “Trata- -se de um serviço essencial à sociedade,

como a segurança pública e o sistema de saúde”, diz Calheiros. As pesquisas incorporaram equipes do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), da Escola Politécnica e da Escola de Enge-nharia de São Carlos (USP) e da Escola de Engenharia de Ilha Solteira (Unesp), com destaque para estudos sobre chuvas de verão e camadas da atmosfera. Um dado curioso: o radar instalado em 1974 foi substituído, nos anos 1990, por um equipamento mais moderno. Recente-mente, a Universidade Federal de Ala-goas levou-o para Maceió, onde o velho radar voltou a funcionar.

Os bons resultados do projeto levaram- -no a uma segunda etapa. Em 1982 come-çou a ser implantado o Radasp II, sob a coordenação de Roberto Vicente Calhei-ros. Com a instalação de um segundo ra-dar, na barragem do Daee, em Ponte Nova (MG), o programa permitiu aprimorar técnicas de previsões meteorológicas no estado, com benefícios principalmente

para o planejamento agrícola. Calheiros desenvolveu uma técnica de quantifica-ção de chuva com radar, apresentada em sua tese de doutorado e depois em um artigo na Journal of Climate and Applied Meteorology. Entre outros trabalhos, os experimentos de campo ajudaram a ex-plicar a origem das chuvas intensas de verão na cidade de São Paulo, por meio de uma pesquisa coordenada por Maria Assunção Faus da Silva Dias. Mais re-centemente, um destaque de pesquisa propiciada pelos radares é a contribuição da meteorologista Maria Andrea Lima no entendimento sobre o desenvolvimento de tempestades – seus estudos acompa-nham as tempestades até certo ponto tentando antever o volume de chuvas que ainda poderão gerar.

Na década de 1990, o apoio da FAPESP propiciou a formação de recursos huma-nos e a criação de infraestrutura avançada de pesquisa, ajudando a criar lideranças nacionais no estudo das mudanças cli-máticas globais num momento em que o tema ganhava importância e repercussão. O climatologista Carlos Nobre, do Institu-to Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cita dois exemplos dessa contribuição. O primeiro foi o investimento, em 1996, no Laboratório de Instrumentação Meteo-rológica (LIM) do Inpe, em Cachoeira Paulista, que se tornou referência para pesquisadores das ciências ambiental e meteorológica no Brasil. O LIM especiali-zou-se em preparar, instalar, testar e cali-brar sensores e medidores ambientais uti-lizados em pesquisas de diversos campos do conhecimento. O segundo exemplo, em 1999, foi a criação de um sistema de dados e informações do Experimento de Grande

os experimentos de campo ajudaram a explicar a origem das chuvas intensas de verão na cidade de são paulo

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2010o computador tupã vai ajudar a desenvolver o primeiro modelo climático brasileiro

inauguração do supercomputador tupã, em dezembro de 2010, no centro de previsão do tempo e estudos climáticos do inpe

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nomes como Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, Alberto Setzer e Carla Longo, pesquisadores do Inpe. “Houve um enorme avanço nesse campo”, observa Carlos Nobre. A mo-delagem da integração entre vegetação e clima também avançou, mostrando os riscos das mudanças climáticas para a manutenção dos grandes biomas brasi-leiros, como a Amazônia e o cerrado, sob a liderança de pesqui-sadores como Carlos Nobre e Gilvan Sam-paio, do Inpe, e Hum-berto Ribeiro da Ro-cha, professor do Ins-tituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. O entendi-mento dos impactos ambientais nos ci-clos biogeoquímicos da cana-de-açúcar, principalmente nos sistemas aquáticos, sob a liderança de Luiz Martinelli, da USP, e o balanço de-talhado das emissões de carbono pelo uso de biocombustíveis, notadamente o etanol, sob a liderança de Isaias Ma-cedo, da Unicamp, foram contribuições originais lideradas por brasileiros. No campo da oceanografia também houve progressos no entendimento da circula-ção de correntes oceânicas no Atlântico, em pesquisas lideradas por Paulo Nobre, do Inpe, e Edmo Campos, do Instituto Oceanográfico da USP, com destaque

Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazô-nia (LBA), uma das maiores experiências científicas do mundo na área ambiental: soma 156 projetos de pesquisa, desen-volvidos por 281 instituições nacionais e estrangeiras. “Foi a primeira vez que foi possível reunir dados de um experimento multidisciplinar. Não tenho dúvidas de que o sucesso do programa não teria sido o mesmo sem esse sistema”, diz Carlos Nobre, que foi o primeiro coordenador executivo do PFPMCG e atualmente é secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Minis-tério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “O sucesso foi tão grande que serviu de inspiração para bancos de dados de outros programas, como o Biota-FA-PESP e o Programa FAPESP de Mudanças Climáticas”, afirma. A FAPESP, observa Nobre, também foi uma das principais fontes de financiamento do LBA ao pa-trocinar projetos de pesquisa de cientistas paulistas vinculados ao programa, que foi gerenciado pelo MCTI e coordenado pelo Inpe e pelo Instituto Nacional de Pesqui-sas da Amazônia (Inpa).

voluME E dEnsidadENos anos 2000, a pesquisa sobre mudan-ças climáticas no Brasil ganhou volume e densidade, gerou um conjunto de contri-buições originais e alcançou visibilidade internacional. Vários grupos do estado de São Paulo se destacaram nesse esfor-ço, com apoio da FAPESP. Avançou-se, por exemplo, na determinação do papel das queimadas como fator de pertur-bação do equilíbrio da atmosfera e dos ecossistemas, em projetos liderados por

para a interação entre a corrente brasi-leira e a das Malvinas.

De caráter multidisciplinar, o tema das mudanças climáticas envolve especialis-tas de diversas áreas. Um livro publicado há três anos pela FAPESP compilou a contribuição da pesquisa paulista para o conhecimento das mudanças climáti-cas, produzida entre 1992 e 2008. A obra reuniu informações sobre 208 projetos

temáticos e auxílios a pesquisa – duas mo-dalidades de apoio da Fundação – e 437 bolsas, financiados pela FAPESP. Havia pesquisas das áreas de agrárias e vete-rinária, arquitetura e urbanismo, bioló-gicas, engenharias, física, geociências, humanas e sociais, química e saúde.

Essa massa crítica serviu de alicerce pa-ra um grande esfor-ço multidisciplinar na compreensão dos

fenômenos climáticos. Foi lançado em agosto de 2008 o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), que prevê investi-mentos de R$ 100 milhões em 10 anos – ou cerca de R$ 10 milhões anuais – na articulação de estudos básicos e apli-cados sobre as causas do aquecimento global e de seus impactos sobre a vida das pessoas. É provável que o valor se-ja maior – só nos três primeiros anos,

de caráter multidisciplinar, o tema das mudanças climáticas envolve pesquisadores de áreas diversas

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38 _ novembro de 2011

mais de R$ 40 milhões já foram de-sembolsados. Os projetos de pesquisa estão vinculados a seis temas distintos. O primeiro é o funcionamento de ecos-sistemas, com ênfase na biodiversidade e nos ciclos de carbono e de nitrogênio. O segundo é o balanço da radiação at-mosférica, em especial estudos sobre os aerossóis, e a mudança no uso da terra. O terceiro trata dos efeitos das mudanças climáticas sobre a agricul-tura e a pecuária. O quarto, da energia e do ciclo de gases de efeito estufa. O quinto aborda os impactos na saúde e o sexto, as dimensões humanas da mu-dança ambiental global. “Todos nós que tivemos financiamento pelo LBA senti-mos a necessidade de conversar mais de perto e somarmos experiências”, afirma Reynaldo Victoria, que além de coor-denar o programa lidera um grupo que vai analisar o papel dos rios nos ciclos regionais de carbono. O PFPMCG já dis-põe de 18 projetos de pesquisa e almeja chegar a mais de uma centena. Em breve deverão incorporar-se ao programa pe-lo menos duas dezenas de projetos do âmbito de convênios estabelecidos entre a FAPESP e as fundações de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) e de Pernambuco (Facepe). A compra de um navio oceanográfico pela USP foi incorporada ao programa – a embarca-ção, que deve estar pronta para uso em 2012, cumprirá um papel fundamental no programa. “Permitirá que saibamos muito mais sobre o papel do Atlântico Sul no clima”, diz Victoria.

a incidência de chuvas captada pelo sistema paulista de radares, em 2009 (alto) em 1992 (ao lado)

ModElo CliMátiCoUma grande ambição do programa é criar o primeiro modelo climático bra-sileiro, um software capaz de fazer si-mulações sofisticadas sobre fenômenos do clima. Hoje, para projetar os efeitos das mudanças climáticas, utilizam-se ferramentas computacionais inespecí-ficas. Para utilizar tal programa de mode-lagem, foi comprado por R$ 50 milhões (R$ 15 milhões da FAPESP e R$ 35 mi-lhões do MCTI) um supercomputador capaz de realizar 224 trilhões de operações por segundo. Batiza-do de Tupã, foi ins-talado no Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe e até o início de 2012 deverá estar em pleno funcionamen-to. “A criação do CPTEC na década de 1980 colocou a meteorologia brasileira no mesmo patamar dos países desen-volvidos e a aquisição do Tupã é um esforço para que nos mantenhamos competitivos em termos de previsão de tempo e clima”, diz Osvaldo de Moraes, coordenador-geral do CPTEC. “Será utilizado para o trabalho do CPTEC em previsões climáticas, mas também estará disponível a todos os grupos de pesquisa do programa FAPESP.” Hoje o compu-tador é o 29º da lista dos 500 mais po-

o projeto Chuva busca incorporar aos modelos de previsão fenômenos que ocorrem em escala pequena

tentes do planeta. “A aquisição da nova máquina não garante automaticamente uma melhora nas previsões. Temos de aperfeiçoar nossos modelos para que as previsões fiquem mais apuradas”, afirma Moraes, que destaca também o apoio da Fundação no financiamento de bolsas e projetos de pesquisa no CPTEC.

Uma dessas iniciativas, com recursos no valor de R$ 1,4 milhão concedidos pela FAPESP, é um projeto temático batizado de Projeto Chuva, que começou em 2009, liderado por Luiz Augusto Machado, pes-quisador do CPTEC. Um dos objetivos é incorporar aos modelos de previsão meteorológica fenômenos que hoje não são detectados, porque têm escala de tempo e espaço muito pequenas. “Um exemplo são as tempestades de 30 mi-nutos que causam grandes alagamentos, mas não são detectadas pelos modelos, por serem rápidas demais”, diz Osvaldo de Moraes. “À medida que os modelos aumentam as resoluções espaciais, pre-cisam começar a descrever os processos que ocorrem no interior das nuvens, tais como tamanhos das gotas de chuva, ou descrever os inúmeros tipos de cristais de gelo que existem em uma nuvem de

tempestade”, afirma Luiz Augusto Macha-do. Para estudar tais fenômenos, os pes-quisadores estão uti -lizando radares e ou-tros equipamentos trazidos do exterior, que são instalados por um período de-terminado em áreas onde os fenômenos ocorrem. Os experi-mentos já ocorreram em Alcântara (MA),

Fortaleza (CE) e Belém (PA), e em no-vembro e dezembro serão realizados no Vale do Paraíba. Machado explica que a pesquisa no Vale do Paraíba vai cobrir dois eventos meteorológicos típicos na região nessa época do ano. O primeiro deles é a tempestade severa, acompa-nhada de chuvas intensas e granizo. O segundo tipo de chuva é aquela contínua, que permanece por dias seguidos. Essas chuvas costumam provocar inundações e deslizamentos de terra, como as que atingiram São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba, e Teresópolis (RJ), nos últi-mos tempos. n Fabrício Marques

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carlos américo pacheco: de volta ao ita, onde se graduou em 1979

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engenHaria

pEsquisa FapEsp 189 39

onovo reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) é o engenheiro e eco-nomista Carlos Américo Pacheco, 54 anos,

professor do Instituto de Economia da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele foi nomeado no dia 21 de setembro pelo ministro da Defesa, Celso Amorim, e assume a direção de uma das mais prestigiadas instituições de ensino supe-rior em engenharia no país. Famoso pelo rigor de seu vestibular. o ITA é responsável pela formação de gerações de profissionais que consolidaram a indústria aeronáutica, espacial e de defesa na região de São José dos Campos e tiveram papel de destaque também na indústria eletrônica e de telecomunicações e no meio acadêmico.

Uma das principais missões de Pacheco será coordenar a duplicação dos cursos de graduação do instituto, que hoje recebem 120 alunos por ano e dispõem de 120 professores. Outra tarefa será ampliar a qualidade dos cursos de pós-graduação, levando-os a ter nota máxima na Capes. A expan-são do ITA, diz Pacheco, busca tornar o instituto mais relevante para o desenvolvimento nacional e atualizar princípios que nortearam a sua fun-dação, especialmente a formação de engenheiros capazes de auxiliar o país a dominar tecnologias em setores estratégicos.

_ formação de engenHeiros{

o voo do itareitor assume com a missão de duplicar o número de vagas da renomada escola de engenharia

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8%A evasão de estudantes do itA é uma das menores entre as universidades brasileiras

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40 novembro de 2011

Tais metas fazem parte do Plano de Desenvolvimento Institucional do ITA aprovado pelo Comando da Aeronáu-tica e traçado na gestão do antecessor de Pacheco, o brigadeiro Reginaldo dos Santos, nomeado para dirigir a Alcântara Cyclone Space, parceria entre o Brasil e a Ucrânia para explorar a base de lan-çamento de satélites de Alcântara, no Maranhão. “O fato de o ITA estar viven-do esse momento interessante serviu de estímulo para que eu me candida-tasse ao cargo de reitor”, diz Pacheco, que disputou a posição com outros sete postulantes e encabeçou a lista tríplice encaminhada por uma comissão de bus-ca ao Ministério da Defesa.

Pacheco será o 19º reitor na linha de sucessão de Richard Harbert Smith, pesquisador do Massachusetts Ins-

titute of Technology (MIT) contratado para ser o primeiro dirigente da institui-ção, criada em 1950. Graduado em en-genharia eletrônica pelo ITA em 1979, o novo reitor é um daqueles quadros que o instituto formou e cedeu para o ambiente universitário. É mestre e doutor em ciên-cia econômica pela Unicamp e pós-dou-tor pela Universidade Columbia, Estados Unidos. Com experiência em economia urbano-regional e economia industrial e tecnológica, foi secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia entre

1999 e 2002 e presi-dente do conselho de administração da Financiadora de Es-tudos e Projetos.

A ideia de duplicar as vagas do ITA vem sendo amadurecida há algum tem-po. A instituição ampliou o espectro de cursos oferecidos: além de engenharia aeronáutica, eletrônica, mecânica e ci-vil, criados entre os anos 1950 e 1970, surgiram os cursos de engenharia da computação, em 1989, e de engenharia aeroespacial, em 2010. Mas o número de vagas e professores ficou do mesmo tamanho. A necessidade de formar um contingente maior de engenheiros in-suflou os planos de expansão: segundo dados de 2007, apenas 5% dos formados no ensino superior são engenheiros, ante 6,1% dos Estados Unidos e 25% da Co-reia do Sul. Entre 2003 e 2008, a taxa de emprego no campo da engenharia cres-ceu 8,3% ao ano, em contraste com uma média de 2,6% da ocupação total.

Um argumento forte em favor da ex-pansão foi uma análise do desempenho

dos candidatos no vestibular. Concluiu- -se que pelo menos 400 candidatos têm alto desempenho e poderiam ser aproveitados pela instituição, mas só há vagas para 120 deles. No último vestibu-lar, a quantidade de inscritos cresceu de 7,5 mil para 9 mil, resultado provável do aquecimento do mercado para en-genheiros. “Temos a convicção de que é possível expandir com qualidade. É um desperdício não aproveitar esses talentos. O custo da expansão do ITA é baixo em relação ao retorno, que é im-pressionante”, diz o novo reitor. Ele se refere ao perfil do profissional formado pela instituição. “Os estudantes do ITA aprendem valores como liderança, res-ponsabilidade e respeito ao mérito. Esse conjunto de valores é conhecido como Disciplina Consciente, que permite, por exemplo, que os professores se ausentem da sala de aula durante um exame”, afir-ma. O brigadeiro Reginaldo dos Santos, reitor que deixa o cargo, lembra que o desenvolvimento de várias áreas da tec-nologia contou com a contribuição dos alunos do ITA. “A qualidade dos nossos engenheiros é reconhecida nacional e internacionalmente”, afirmou, na forma-tura da turma de engenheiros de 2010, realizada em janeiro.

A evasão de estudantes do ITA é de cerca de 8% ao longo do curso – uma das mais baixas do país. Nas universida-des federais, 27% dos alunos em média abandonam o curso antes de sua con-clusão, de acordo com dados de 2007 do Ministério da Educação. A logística da expansão não é simples, uma vez que os

Cerca de 400 candidatos têm notas muito altas no vestibular, mas só há lugar hoje para 120

formatura da turma de engenheiros de 2010: aprendizado de alto nível e valores éticos

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referindo-se à criação na região de São José dos Campos de um aglomerado de empresas e laboratórios nos moldes dos que existem em Toulouse, na França, ou em Hamburgo, na Alemanha. A partici-pação do ITA neste tipo de esforço não é uma novidade, ele observa. Quando o instituto nasceu, fazia parte de um conjunto de instituições idealizado para criar a indústria aeronáutica, como o Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento e o Instituto de Fomen-to Industrial, dentro do Centro Técnico Aeroespacial, hoje CTA. “Recentemen-te, a criação do Par-que Tecnológico de São José dos Cam-pos também buscou criar um ambiente complementar ao do CTA”, afirma. A cola-boração entre univer-sidades e empresas, diz, será cada vez mais frequente, pois tal modelo consolidou-se no país nos últimos 20 anos. “O Brasil está maduro para fazer grandes apostas, mas para isso precisará de instituições e empresas que ajudem a catalisar esse processo, que destravem a seleção de nossas es-colhas”, afirma.

A indústria de defesa também deve ganhar importância. “Sempre tivemos indústria de defesa importante e avan-

estudantes do ITA recebem alojamento e alimentação. A contratação de novos professores será um dos pontos mais de-licados. “Vamos precisar formar novos quadros, inclusive mandando-os para fo-ra do Brasil, e trazer mais pesquisadores estrangeiros. O mercado de trabalho no Brasil está muito aquecido e os melhores talentos estão empregados. Mas a crise na Europa e nos Estados Unidos pode nos ajudar a atrair bons profissionais”, diz Pacheco. A ampliação do quadro de professores terá impacto também na pós-graduação, cujo desafio é também crescer, mas, antes de tudo, atingir o nível elevado de qualidade que sempre marcou a graduação. Segundo dados do Plano de Desenvolvimento Institucional do ITA, na avaliação da Capes os cursos de pós-graduação do ITA têm conceito 4 em engenharia eletrônica e da com-putação, engenharia de infraestrutura aeronáutica e física, e 6 para engenharia aeronáutica e mecânica. A meta é che-gar à nota 7. O mestrado profissional em engenharia aeronáutica e mecânica tem nota 5, a máxima para esse tipo de cur-so. Atualmente, a pós-graduação do ITA tem mais de mil alunos, sendo um terço no mestrado, um terço no mestrado pro-fissional e um terço no doutorado.

P acheco ressalta que o ITA nunca deixou de ser uma escola muito im-portante. “Mas o Brasil era menor

nos anos 1950 e o impacto de ter uma es-cola de elite para formar uma centena de engenheiros por ano naquela época era mais significativo. Surgiram boas escolas de engenharia e mesmo a formação de engenheiros aeroespaciais é oferecida em outras instituições”, afirma. Os desafios atuais são mais complexos. “Nos primór-dios do ITA, o país tinha uma indústria aeroespacial nascente e estatal. Hoje é uma indústria forte e dinâmica. Temos a terceira principal empresa de montagem de aviões do mundo, a Embraer, que tem fornecedores, como a General Electric, muito maiores do que ela”, explica.

A ampliação da capacidade do ITA busca formar profissionais que ajudem o setor aeroespacial e de defesa a en-frentar o futuro. “O mercado vai mudar com a concorrência de empresas chi-nesas e de outros países emergentes, e precisamos criar um ambiente externo de apoio às inovações nos setores ae-ronáutico, espacial e de defesa”, diz,

a ampliação do quadro de professores vai beneficiar também os cursos de pós-graduação

çada, caso da Avibrás e da Engesa. Como a estratégia nacional de defesa requer o domínio de novas tecnologias e o go-verno se propõe a fazer encomendas, o setor privado começou a se preparar”, diz Pacheco, referindo-se à criação de duas empresas, a Embraer Defesa e a Odebrecht Defesa, subsidiária da com-panhia de infraestrutura criada após a aquisição da Mectron, uma consagrada

empresa instalada em São José dos Campos. “São empresas com capacidade financei-ra e gerencial enorme e isso dá musculatura para o setor privado”, afirma. As perspecti-vas de desenvolvimen-to despertam interesse também em outros se-tores. “A pesquisa de materiais avançados, como fibra de carbo-no, talvez seja até mais importante para o se-

tor de petróleo do que para o aeroespa-cial. O campo da aviação não tripulada, que vai exigir investimentos e domínio tecnológico, vai necessitar de gente ca-pacitada. Os desdobramentos para a in-dústria automotiva e de telecomunica-ções também serão importantes”, afirma Pacheco, lembrando que nos anos 1970 o ITA já fornecia quadros para a estatal de telecomunicações Telebras e seu braço de pesquisa, o CPqD. n Fabrício Marques

Escassez de profissionais

FontE: PACHeCo, 2010 (dAdos brutos oeCd)

número de engenheiros por 10 mil habitantes

coreia do sul

china

Japão

frança

reino unido

espanha

méxico

alemanha

estados unidos

chile

brasil

0 2 4 6 8 10 12 14 16 18

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desenhos e ilustrações feitos por crianças e adultos atendidos na apae de são paulo rE

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42 novembro de 2011

aumento da expectiva de vida faz surgir novos problemas nas pessoas com deficiência mental

Carlos Fioravanti

as pessoas com deficiência intelectual, que s pessoas com deficiência intelectual, que há 40 anos morriam na adolescência, hoje há 40 anos morriam na adolescência, hoje podem viver mais de 60 anos. Como estão podem viver mais de 60 anos. Como estão vivendo mais, outros problemas orgânicos estão surgindo. Reunidos durante dois dias estão surgindo. Reunidos durante dois dias em agosto na Associação de Paes e Amigos em agosto na Associação de Paes e Amigos

dos Excepcionais (Apae) de São Paulo, médicos e pesquisa-dores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de São Paulo (USP), psicólogos, terapeutas, Universidade de São Paulo (USP), psicólogos, terapeutas, advogados, assistentes sociais e outros profissionais da saúde reconheceram um dos graves problemas emergentes, a pos-sibilidade de envelhecimento precoce.

Em um levantamento preliminar feito em 2009 em seis ins-tituições da cidade de São Paulo, de um grupo de 373 pessoas tituições da cidade de São Paulo, de um grupo de 373 pessoas com deficiência intelectual (ou DI; a expressão deficiência mental não é mais recomendada) e mais de 30 anos de idade, 192 apresentavam pelo menos três sinais de provável envelhe-cimento precoce, de acordo com um questionário que avaliava eventuais perdas de memória, de autonomia nas tarefas do dia a dia, de interesse por atividades ou de visão e audição. Para a dia, de interesse por atividades ou de visão e audição. Para dimensionar esse problema, está sendo preparado um levanta-mento mais abrangente e detalhado, com cerca de 500 pessoas mento mais abrangente e detalhado, com cerca de 500 pessoas com DI e idade entre 30 e 59 anos da Grande São Paulo.

Os estudos em andamento são essenciais para “vermos o que pode ser feito, em termos de atendimento médico e de políticas pode ser feito, em termos de atendimento médico e de políticas

ciência _envelhecimento

o preço da longevidade

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medicina

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44 novembro de 2011

públicas”, diz Regina Leondarides, coordenadora do grupo de estudo de envelhecimento precoce das pessoas com deficiência intelectual, que reúne 10 instituições de atendimento. “Temos muitas políticas de saúde voltadas para a criança, mas as políticas para o envelhecimento estão começando a ser construídas”, comenta Esper Cavalheiro, professor da Unifesp e presidente do conselho científico do Instituto Apae de São Paulo. “Es-tamos atrasados, em vista do envelhecimento acelerado da população brasileira.”

Um estudo da Espanha publicado em 2008 indicou que as pessoas com DI envelhecem pre-maturamente – as com síndrome de Down, de modo mais intenso. Para chegar a essas conclu-sões, os pesquisadores acompanharam a saúde de 238 pessoas com DI e mais de 40 anos de idade durante cinco anos. Não se trata, aparentemente, de um fenômeno inevitável. O envelhecimento precoce das pessoas com DI leve e moderada resulta da falta de programas de promoção de saúde e do acesso reduzido a serviços médicos e sociais. As pessoas com DI se mostraram com maior tendência à obesidade (apenas 25% tinham peso considerado normal), à hipertensão arterial (25% do total) e a distúrbios metabólicos, como diabetes e hipotireoidismo (10% do total).

“O envelhecimento precoce, se confirmado, po-de ter causas genéticas ou ambientais, indepen-dentemente da deficiência intelectual”, comenta Dalci Santos, gerente do Instituto Apae de São Paulo. Matemática de formação, com doutorado em andamento na Unifesp, ela acrescenta: “Não conseguiremos avançar muito até esclarecermos melhor a origem das deficiências intelectuais”. As causas podem ser genéticas, como na síndrome de Down, ou ambientais (causas não genéticas), incluindo infecções, baixa oxigenação do cérebro do feto, alcoolismo, radiação, intoxicação por chumbo durante a gravidez ou prematuridade – muitas vezes, vários fatores em conjunto.

Causas aMBiEntais ou gEnétiCasEm um artigo no primeiro número da Revista de Deficiência Intelectual DI, publicação do Institu-to Apae lançada em outubro, João Monteiro de Pina-Neto, médico geneticista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, apresenta os resultados de um estudo sobre as causas da deficiência intelectual em 200 pessoas atendidas nas Apaes de Altinópolis e Serrana, dois municí-pios da região de Ribeirão Preto. Esse estudo faz parte de um levantamento maior, com cerca de mil pessoas com DI atendidas em quatro Apaes, que Pina-Neto e sua equipe pretendem concluir em meados de 2012. Os resultados obtidos até agora indicam o predomínio de causas ambientais (42,5% do total), seguidas pelas genéticas (29%) e indeterminadas (20%).

Um estudo similar feito com 10 mil pessoas na Carolina do Sul, Estados Unidos, apresentou o mesmo percentual de causas genéticas, mas apenas 18% de causas ambientais e 56% de cau-sas desconhecidas. Alguns contrastes chamam a atenção. Enquanto a deficiência intelectual cau-sada por falta de oxigenação cerebral responde por 5% do total das causas de DI nos Estados Unidos, em São Paulo é 16,5%; a prematuridade, de 5% nos Estados Unidos, foi de 14,5% no estudo paulista; o efeito das infecções, de 5%, é quase o dobro aqui, 9%.

A conclusão que emerge dessa comparação é que o número de nascimentos de bebês com DI poderia ser reduzido por meio de algumas medidas preventivas. “Melhorar o atendimento pré-natal e a qualidade do parto são uma prioridade”, res-salta Pina-Neto. “Ainda temos casos de deficiência causada por sífilis, rubéola ou toxoplasmose con-traída durante a gestação e meningites pós-natais”, lamenta. Segundo ele, outro problema que pode ser controlado é o alcoolismo. “De 20% a 30% das mulheres da região de Ribeirão Preto consomem bebida alcoólica em excesso e, como resultado, de cada 100 gravidezes, nasce uma criança com DI causada por síndrome alcoólica fetal”, diz ele. “Não fazemos ainda a adequada prevenção das causas da deficiência intelectual.”

As causas genéticas podem ser controladas, já que o risco de uma criança nascer com síndro-

5,5%dos brasileiros com 65 anos ou mais apresentam capacidade de raciocínio bastante abaixo da média

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me de Down aumenta muito com a idade dos pais. “As mulheres estão tendo filhos após os 35 anos de idade, portanto mais propen sas a terem filhos com Down, e os homens estão se casando várias vezes, tendo filhos em cada ca samento”, diz Pina-Neto. Segundo ele, homens estéreis que procuram as clínicas de reprodução deveriam ser mais informados sobre a possibilidade de terem alterações genéticas que podem ser trans-mitidas aos filhos caso se tornem férteis.

As pessoas com DI apresentam capacidade de raciocínio bastante abaixo da média e limitações para aprender, se cuidar ou se comunicar com outras, mas atualmente são muito mais integra-das socialmente, autônomas e produtivas, com mais oportunidades para expressar a criatividade do que há algumas décadas. Frequentam escolas regulares, com outras crianças e adultos, parti-cipam de competições esportivas e conquistam mais postos de mercado de trabalho. Crianças e adultos com DI não vão mais à Apae de São Paulo para aprender todo dia, mas aparecem algumas vezes por semana para atendimento educacio-nal especializado ou para consultas médicas. O serviço de apoio ao envelhecimento atende 132 pessoas com idade entre 30 e 67 anos.

Ainda há muitas dúvidas sobre como lidar com os novos problemas. Crianças e adultos com de -ficiência precisam de hábitos e horários para se sentir calmos e confortáveis. Ao mesmo tempo,

hábitos imutáveis podem favorecer o surgimento da doença de Alzheimer, doença neurológi ca que se agrava com o envelhecimento. Vem daí um impasse: manter a rotina inalterada poderia ali-mentar a propensão ao Alzheimer, mas quebrar a rotina pode ser perturbador.

propEnsão ao alZhEiMErO cérebro das pessoas com Down pode exibir um dos sinais típicos do Alzheimer: o acúmulo de placas amiloides, que dificultam o funciona-mento adequado dos neurônios. Uma equipe da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos, encontrou placas amiloides em quantidade mais elevada no cérebro de pessoas com Down do que em pessoas com Alzheimer já diagnosticado e em pessoas normais.

“Os sinais biológicos de Alzheimer podem surgir antes dos sinais clínicos”, observa Orestes Forlenza, professor da Faculdade de Medicina da USP. “Ter amiloide não significa ter demência futura. Qual a melhor intervenção futura? Não sabemos. Talvez via nutrição ou atividade física seja mais seguro do que por medicamentos.” Ira Lott e sua equipe da Universidade da Califórnia em Irvine fizeram um estudo duplo-cego duran-te dois anos com 53 pessoas com síndrome de Down para ver se a complementação da dieta com compostos antioxidantes poderia melhorar o funcionamento mental ou estabilizar a perda da capacidade cognitiva. Os resultados, publica-dos em agosto na American Journal of Medical Genetics, indicaram que não.

Esper Cavalheiro apresentou três perguntas ainda sem resposta. De que modo as alterações próprias do envelhecimento, como as doenças cardiovasculares, diabetes e câncer, se apresen-tam nas pessoas com DI? Como alterações fre-quentes nessas pessoas, a exemplo de demências e osteoporose, se comportam no envelhecimento? Os medicamentos usados para tratar hipertensão, diabetes e outras doenças típicas do envelheci-mento funcionam nas pessoas com DI do mesmo modo que em outros indivíduos?

Outra dúvida: as estratégias de controle dos fatores de risco de doenças cardiovasculares re-comendadas para pessoas normais, como o estí-mulo a atividades físicas, têm o mesmo impacto sobre a saúde das pessoas com e sem deficiência intelectual? “Supomos que sim, mas não sabemos ao certo”, diz Ricardo Nitrini, da USP.

Segundo Cavalheiro, as pessoas com DI com 65 anos ou mais correspondiam a 4% da população total no Censo de 2000; hoje respondem por 5,5% da população total. “Não podemos nos contentar apenas com estatísticas e diagnósticos”, alerta. “Temos de enfrentar esse problema com rapidez. Quanto mais gente dialogando e pensando nesses problemas, melhor.”

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16,5%dos casos de deficiência intelectual em são Paulo são causados por falta de oxigenação cerebral

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46 _ novembro de 2011

plantas têm estruturas diferentes das já encontradas

botânicos de São Paulo, em colaboração com colegas dos Estados Unidos, veri-ficaram que a parede celular de várias espécies de samambaias apresenta uma

composição diferente de outras estruturas de revestimento de plantas já caracterizadas. Eles acreditam ter identificado um terceiro tipo de parede celular, rica em manose, um tipo de açú-car que forma polímeros chamados mananos e aparece em proporções baixas em outros tipos de parede. Além de mais informações sobre a estrutura e a evolução do mundo vegetal, o es-tudo pode favorecer o aproveitamento de outras plantas – de paredes externas menos resistentes – para produzir biocombustíveis e papéis com características especiais.

O trabalho resulta de uma colaboração entre Giovanna Silva, Marcos Buckeridge e outros pes-quisadores do Instituto de Biociências da Uni-versidade de São Paulo (USP), Jefferson Prado, do Instituto de Botânica, e Nicholas Carpita, da Universidade Purdue, Estados Unidos. Carpita foi um dos botânicos que identificaram os dois pri-meiros tipos de parede celular, deixando implícito o pressuposto – agora desfeito – de que qualquer planta deveria ter um tipo ou outro.

Como se fosse um esqueleto externo, essa es-trutura de revestimento das células vegetais lhes confere resistência mecânica, proteção contra predadores e porosidade à água, a nutrientes e à luz solar, indispensável para a fotossíntese. A for-ma, composição e propriedades da parede externa das células da raiz, do caule ou das folhas de uma mesma planta podem ser diferentes, mas essen-cialmente essa estrutura consiste em uma teia de microfibras de variados açúcares. As microfibras mais fortes são de celulose, uma longa molécula

_ parede celular

o revestimento das samambaias

formada unicamente por glicose. Hemiceluloses – estruturas mais complexas, com vários tipos de açúcar – envolvem as microfibrilas de celulose ou se entrelaçam com elas. Moléculas de lignina colam as fibras, funcionando como um cimento, e ampliam a resistência da parede celular. Segundo Buckeridge, essa é uma das principais razões pe-las quais os troncos das árvores, ricos em lignina, normalmente demoram para se decompor.

Carpita e David Gibeaut, que em 1993 fazia pós-doutorado com Carpita em Purdue e traba-lha atualmente na Universidade do Estado de Oregon, Estados Unidos, tinham classificado as paredes celulares em dois tipos em 1993, depois de verem que a proporção de açúcares entre elas variava bastante, determinando maior ou me-nor resistência e permeabilidade. O tipo 1 é o das eudicotiledôneas, grupo que engloba a maioria das plantas atuais. Na parede celular das plantas desse grupo um açúcar conhecido como xiloglu-cano é o principal componente da hemicelulose, respondendo por 20% do total dos açúcares em peso. Há um equilíbrio entre as proporções de celulose, hemicelulose e outra combinação de açúcares conhecida como pectina. Na parede tipo 2, típica de gramíneas como arroz, trigo e cana-de-açúcar, outro açúcar, o arabinoxilano, predomina na hemicelulose (20% do total) e há menos pectina do que celulose e hemicelulose.

Essa classificação se mostrou questionável em 2004 quando Giovanna Silva, então no Instituto de Botânica, começou a observar que o açúcar ma-nose era o principal componente da hemicelulose da avenca (Adiantum raddianum), planta comum amplamente cultivada em todo o mundo, e de ou-tras espécies das samambaias, um grupo de plantas com origem bastante antiga na escala evolutiva

avenca: planta tem novo tipo de parede celular, rica no açúcar manano

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Escudos vegetaiscada tipo de parede celular apresenta uma combinação distinta de seus principais

ingredientes, os polissacarídeos hemicelulose, celulose e pectina

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o polímero formado por manose, apresentaram maior resistência, rasgando menos facilmente que os outros, com diferentes açúcares.

“As propriedades físicas da parede celular mudam drasticamente de acordo com a com-posição”, diz Jefferson Prado, pesquisador do Instituto de Botânica que participou desse tra-balho. Ele acredita que uma parede celular mais rica em manose pode trazer mais permeabilida-de e porosidade e, além disso, permitir o cres-cimento mais rápido das samambaias. “Pegue uma avenca como a Adiantum e corte todas as folhas”, sugere Prado. “Em um mês já cresceu tudo outra vez!”

O fato mais intrigante, ainda sem explicação, é que muitas espécies de samambaias têm parede celular do tipo 1, enquanto outras apresentam a do recém-descoberto tipo 3. Os botânicos viram que – diferentemente do que imaginaram – o tipo de parede não guarda nenhuma relação com o am-biente ou o porte da planta: samambaias rasteiras e arborescentes, as mais simples e mais complexas podem ter o mesmo tipo de revestimento.

O que mais está entusiasmando Prado e Bu-ckeridge são as perguntas ainda sem respostas. Se há dois tipos de parede em samambaias, ou-tros grupos de plantas também podem ter. Ou podem existir muitos outros tipos de parede ainda não identificados. Os pesquisadores de São Paulo e dos Estados Unidos agora estão à procura de novas variedades da parede celular das plantas. n Carlos Fioravanti

artigo científicoSILVA, G.B. et al. Cell wall polysaccharides from fern leaves: evidence for a mannan – rich Type III cell wall in Adiantum raddianum. Phytochemistry (on-line)

da flora terrestre. Giovanna, Buckeridge, Prado e Carpita inicialmente olharam com desconfiança os resultados obtidos inicialmente com uma amostra de 11 espécies de samambaias, mas uma análise mais ampla, com 61 espécies, confirmou as con-clusões. Segundo o estudo, publicado na revista Phytochemistry, a manose representava 20% da parede total ou 35% do total de açúcares da parede de uma em cada três espécies examinadas.

Por ser tão abundante nas samambaias, a ma-nose poderia ser usada para produzir biocombus-tíveis. “Duas enzimas podem quebrar o manano e produzir manose livre, que pode ser fermentada por meio de leveduras”, diz Buckeridge, coorde-nador do Instituto Nacional de Ciência e Tec-nologia (INCT) do Bioetanol, com sede na USP, e diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas. As pesquisas em andamento visando à produção de etanol celulósico ainda esbarram na dificuldade de processar pentoses como a xilose, um dos açúcares mais abundantes da pa-rede celular da cana-de-açúcar, a gramínea mais utilizada no Brasil para a produção de etanol. Quebrar as moléculas de lignina persiste como um problema ainda mais difícil.

papéis Mais rEsistEntEsAs informações sobre as variações da composição da parede celular podem não só exibir os cami-nhos tortuosos da evolução, mas também ajudar a produzir papéis de melhor qualidade. Em um estudo piloto realizado no Instituto de Botânica, Denis Lima, Rubens Oliveira e Buckeridge verifi-caram que as propriedades do papel variam com a adição de diferentes tipos de hemicelulose. As amostras que receberam doses extras de manano,

tipo 1 tipo 2 tipo 3

ácido ferúlico

microfibrilas de celulose

Hemiceluloses

pectinas

microfibrilas de celulose

Hemiceluloses

pectinas

1. o polímero de açúcar xiloglucano é o principal componente da hemicelulose. a parede apresenta quantidades parecidas de celulose, hemicelulose e pectina. a maioria das plantas dispõe desse tipo de revestimento celular

2. outro polímero, o arabinoxilano, predomina na hemicelulose. Há menos pectina do que celulose e hemicelulose. as células vegetais são revestidas pelo ácido ferúlico. gramíneas têm essa forma de parede

3. descoberto em samambaias, o novo tipo de parede tem o manano como o principal componente da hemicelulose. esse açúcar poderia ser usado na produção de biocombustíveis e papéis especiais

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48 _ novembro de 2011

Opisthocomus hoazin, a ave cigana: antepassados teriam migrado da áfrica para a américa do sul a bordo de pequenas balsas feitas de plantas que cruzaram o atlântico ao sabor dos ventos e correntes marítimas

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evolução

paleontologia

pEsquisa FapEsp 189 _ 49

origens de ave amazônica que só come folhas e

“rumina” estão na áfrica

Marcos pivetta

ela voa de forma desengonçada em meio à vegetação ribeirinha da floresta amazônica, seu único hábitat contemporâneo. Ali come apenas folhas e nada mais. Tem um grande papo e o sistema digestivo lembra o de um mamífero ruminante. As fezes têm cheiro de esterco de vaca. Os taxonomistas ainda

não chegaram a um acordo sobre como classificá-la. Para al-guns, seria parente distante da galinha, embora a aparência e o porte tenham um quê de cuco, com o qual, segundo outros, teria um parentesco. Existe ainda quem a coloque ao lado do turaco, uma ave africana. Há mais de 230 anos, quando foi des-coberta, a ave cigana (Opisthocomus hoazin), típica das bacias dos rios Amazonas e Orinoco, intriga os pesquisadores, que hoje tendem a considerá-la como único membro vivo de uma ordem de aves separada das demais, a das Opisthocomiformes. Mas a descoberta, no Brasil, da mais antiga espécie extinta de aves aparentadas da cigana — um fóssil de mais de 20 milhões de anos denominado Hoazinavis lacustris — e a confirmação de que houve, na África, ao menos uma forma de vida similar à atual ave amazônica no passado remoto forneceram pistas importantes sobre a provável origem do misterioso animal. Até agora não havia registro algum de aves dessa ordem fora da América do Sul.

Os dois achados foram divulgados num estudo publicado neste mês na revista científica alemã Naturwissenschaften por paleontólogos e ornitólogos do Brasil, Alemanha e França. De acordo com os pesquisadores, a análise de todo o mate-rial fóssil sugere que as origens da ave sul-americana estão na África, embora a espécie mais antiga relacionada com a

a longa viagem da cigana

_ fósseis

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asas ao longo de uma jornada de milha-res de quilômetros e atravessar o oceano pelo ar era uma tarefa impossível para os antepassados da ave sul-americana, que pareciam apresentar capacidades tão limitadas de voo quanto as da cigana. Por exclusão, o único jeito era vir por mar. “Essas aves antigas devem ter cruzado o Atlântico a bordo de balsas formadas por restos de plantas, que funcionaram como pequenas ilhas flutuantes a ligar os dois continentes”, afirma Alvarenga, especialista em aves fósseis.

ao saBor dos vEntos E CorrEntEsA hipótese pode parecer fantasiosa para um leigo no assunto, mas há evidências científicas capazes de sustentá-la. “To-das as reconstituições de como eram os ventos e as correntes marítimas naquela época favorecem a dispersão de espécies da África para a América do Sul, e não no sentido contrário”, diz o ornitólogo Gerald Mayr, do Museu Senckenberg, em Frankfurt, outro autor do artigo. Em aves com limitada capacidade de voo es-se tipo de travessia intercontinental, a

bordo de algum tipo de jangada vegetal que teria navegado o Atlântico ao sabor dos ventos e das correntes, nunca foi do-cumentado. Mas outros animais possi-velmente vieram para cá dessa forma. “Essa é a ideia mais aceita sobre como se deu a migração dos roedores caviomor-fos e dos primatas platirrinos da África para a América do Sul”, comenta a pa-leontóloga Cécile Mourer-Chauviré, da Universidade Claude Bernard - Lyon 1, outro pesquisador que assina o traba-lho científico. Os roedores caviomorfos incluem animais típicos da América do Sul, como a capivara e a paca, e os pri-matas platirrinos abrangem os chamados macacos do Novo Mundo, encontrados apenas nas Américas.

A formulação da nova teoria que tenta explicar as origens da ave sul-americana só foi possível graças à descoberta em solo brasileiro da nova espécie extinta e ao trabalho de revisão do pouco material fóssil relacionado às Opisthocomiformes depositado nos museus internacionais. Essa dupla abordagem permitiu aos pes-quisadores fazer algo que até agora não

cigana tenha sido encontrada no estado de São Paulo. “Apesar de mais novos, os fósseis africanos apresentam caracterís-ticas anatômicas mais primitivas do que as presentes no nosso material”, explica o paleontólogo Herculano Alvarenga, fundador e diretor do Museu de História Natural de Taubaté, no interior paulista, um dos autores do estudo. Se essa linha de raciocínio estiver correta, é razoável supor que deve haver fósseis mais velhos do que o da H. lacustris em alguma parte daquele continente. O problema é que eles ainda não foram encontrados e nada garante que um dia o sejam.

Mais surpreendente do que as possí-veis raízes africanas da cigana amazônica é a forma como os antepassados dessa ave teriam feito, há algumas dezenas de milhões de anos, a longa migração entre a África e a América do Sul. Nessa época não havia mais conexão terrestre entre os dois continentes. África e América do Sul já tinham se separado havia muito tempo e o Atlântico, embora mais estrei-to que hoje, era a barreira a ser vencida numa travessia intercontinental. Bater

os antepassados da ciganatrês espécies extintas parecem guardar relação com a atual ave amazônica

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é a mais antiga forma extinta desse grupo de aves, cujo único fóssil foi encontrado em taubaté. viveu entre 22 e 24 milhões de anos atrás. outra espécie extinta é a hoazinoides magdalenae, da colômbia (número 4).

fóssil de ave extinta encontrado na namíbia que teria vivido há 17 milhões de anos. inicialmente não foi considerada como membro das opisthocomiformes. mas o novo estudo a coloca nessa ordem.

2 naMiBiavis sEnutaE

da áFriCa para a aMériCa

embora o representante mais antigo desse grupo de aves tenha sido encontrado no brasil, o novo estudo defende a ideia de que os ancestrais da cigana se originaram na áfrica. a espécie extinta da namíbia apresenta traços anatômicos mais primitivos que os do fóssil de taubaté. Há cerca de 35 milhões de anos, os ventos e as correntes marítimas favoreciam o deslocamento da áfrica para a américa do sul. por isso, os paleontólogos acreditam que os antepassados da cigana podem ter sido transportados para nosso continente a bordo de balsas formadas por restos de plantas, que teriam funcionado como meio de transporte para as aves.

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a cigana é a única representante viva da misteriosa ordem das aves opisthocomiformes. voa com dificuldades e come apenas folhas. ocorre nas bacias dos rios amazonas e orinoco.

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tinha sido possível: traçar um cenário de relações evolutivas entre seres do pas-sado e a única forma viva dessa ordem de aves, a cigana.

Mais velha das espécies extintas das Opisthocomiformes, a H. lacustris ha-bitou entre 22 e 24 milhões de anos a Formação Tremembé, na região de Taubaté, rica em fósseis de animais. Três partes do esqueleto de um único exemplar da ave — um úmero comple-to (principal osso da asa), um pedaço da escápula e outro do coracoide (osso da cintura) — foram encontrados por Alvarenga em sedimentos de um antigo lago (daí o nome lacustris) em 2008. “A morfologia desses três ossos associados não deixa dúvidas de que se tratava de uma ave relacionada com a cigana”, diz o paleontólogo paulista. O estudo dos frag-mentos do esqueleto também revelou que a antiga ave deveria ter um grande papo, no qual possivelmente bactérias se encarregavam de degradar parte de sua dieta antes de o alimento chegar ao estômago. Tudo muito similar à atual ci-gana. A descrição do fóssil foi feita pelo brasileiro e seus colegas europeus no paper da Naturwissenschaften.

osso da sortEAntes da H. lacustris, os restos de apenas um único exemplar de outra espécie de ave extinta aparentemente relacionada com a cigana haviam sido descobertos no final dos anos 1990 na América do Sul. Trata-se de um fragmento de um crânio da Hoazinoides magdalenae, animal que teria vivido na Formação Villavieja a oes-te dos Andes, um território hoje situado na Colômbia, entre 11,8 e 13,5 milhões de anos atrás. Embora haja escasso mate-rial ósseo para fazer uma comparação detalhada, a H. magdalenae parece ser muito similar à atual cigana. Seu porte apenas era um pouco maior do que o de sua parente amazônica contemporânea. É interessante notar que as duas espé-cies extintas de Opisthocomiformes en-contradas na América do Sul ocuparam partes do continente que se situam fora da Amazônia, hoje o hábitat da cigana — um indício de que as formas mais antigas dessa ave podiam se distribuir por uma área geográfica bem maior.

A reclassificação de uma espécie ex-tinta de ave africana, a Namibiavis se-nutae, dentro da ordem filogenética da cigana expandiu ainda mais os antigos

mente conhecida como “osso da sorte” — ainda não se encontram fundidos, como se fossem uma única estrutura. Nos exemplares adultos da moderna ci-gana a fusão desses e de outros ossos já se completou. Foram justamente esses traços mais ancestrais dos fósseis da N. senutae que ampararam a formulação da hipótese da origem africana das aves Opisthocomiformes.

Para o biólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), a nova teoria que situa o berço dos ancestrais da cigana fora da América do Sul deve ser levada a sério e testada à medida que novos fósseis forem descobertos. “O estudo é muito interes-sante e benfeito”, afirma Silveira, que não participou do trabalho. “A origem da ci-gana e, consequentemente, suas relações de parentesco estão entre os maiores pro-blemas da sistemática (classificação) das aves. Ninguém sabe se essa ave é mais próxima das galinhas, dos cucos ou dos turacos.” Essa questão não foi resolvida pelo novo estudo. No entanto, se a origem dessa ordem de aves for mesmo a África, o trabalho dos paleontólogos e ornitólo-gos talvez tenha de voltar seu foco prio-ritariamente para aquele continente, e não tanto para a América do Sul, onde a cigana vive nos dias de hoje. n

artigo científicoMAYR, G.; ALVARENGA, H.; MOURER-CHAUVIRÉ, C. Out of Africa: Fossils shed light on the origin of the hoatzin, an iconic Neotropic bird. Naturwissenschaften. v. 98, n. 11, p. 961-66. nov. 2011

Fóssil de antiga ave encontrada na áfrica é mais novo do que espécie extinta achada no Brasil, mas seus traços anatômicos são mais primitivos

filhote de cigana e detalhe de sua asa: ave voa de forma desengonçada e tem papo de “ruminante”

domínios desse grupo de seres alados, papo grande e dieta vegetariana. Des-critos pela primeira vez no início dos anos 2000, os fósseis da espécie foram encontrados na Namíbia e, originalmen-te, situados como membros de um grupo extinto de aves daquele continente, as Idiornithidae. No entanto, as análises feitas por Alvarenga e seus colegas eu-ropeus mudaram essa classificação e co-locam a N. senutae, que viveu há uns 17 milhões de anos, dentro das Opisthoco-miformes. “Os fósseis africanos são mais diferentes da moderna cigana do que o da H. lacustris encontrado no Brasil”, afirma Mayr. “Mas eles ainda se parecem muito com a ave atual.” Entre as distin-ções anatômicas mais primitivas da ex-tinta espécie africana, a francesa Cécile destaca o fato de que os ossos coracoide e fúrcula — este último constituído pelas duas clavículas ligadas ao esterno, uma estrutura do esqueleto das aves vulgar-

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uma bússolapara os tsunamis

alterações no campo magnético da terra podem alertar sobre a chegada de ondas gigantes — igor Zolnerkevic

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redemoinho formado por ondas do tsunami de março de 2011 em iwaki, costa norte do Japão

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_ eventos eXtremos

E m 11 de março deste ano, um terremoto de magnitude 9 na escala Richter produziu uma onda gigante, ou tsunami, que devas-tou a costa leste do norte do Japão, cau-sou quase 16 mil mortes e deixou cerca de

10 mil pessoas feridas e desaparecidas. Em meio às notícias da catástrofe, circulou pela imprensa uma nota curiosa: segundo estimativas de geofísicos norte-americanos e italianos, o terremoto japonês deslocou em alguns centímetros o eixo ao redor do qual se distribui a massa da Terra. Provocado pelo deslizamento de uma placa tectônica para baixo de outra durante o tremor, o rearranjo da massa do planeta também teria acelerado a rotação da Terra e encurtado o dia em 6,8 milionésimos de segundo, produzindo um efeito similar ao de uma patinadora no gelo que passa a girar mais rápido quando recolhe seus braços.

Mas essas duas sutis alterações geofísicas não foram as únicas produzidas por terremotos se-guidos de tsunamis. Segundo um estudo produ-zido por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, e do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro, esses grandes fenômenos naturais provocam ínfimas perturbações no campo mag-nético da Terra que podem ser medidas e usadas para monitorar o surgimento e a evolução das ondas gigantes. A viabilidade dessa abordagem é defendida num artigo científico que acaba de ser submetido a uma revista internacional. De acor-do com os geofísicos brasileiros, as conclusões do trabalho podem servir de base para produzir melhorias significativas e de baixo custo nos sis-temas atuais de alerta contra tsunamis.

Não é novidade que os oceanos podem influen-ciar sutilmente o campo magnético percebido pelas bússolas e gerado no centro da Terra. Pes-quisadores mediram já no final dos anos 1960 a variação no campo geomagnético induzida pelo movimento diário das marés. O sal dissolvido na forma de íons de cloro e sódio eletricamente car-regados faz da água do mar um fluido condutor de eletricidade. Os movimentos desse fluido com respeito ao campo magnético da Terra induzem pequenas correntes elétricas no mar, explica a geo física Virgínia Klausner, do ON, uma das auto-ras do estudo dos tsunamis. Chamado de efeito de dínamo, o fenômeno é o mesmo que gera corrente elétrica em um fio de metal condutor quando este se movimenta próximo de um ímã, afirma o físico Odim Mendes Junior, do Inpe, um dos orientadores de doutorado de Virgínia. “Essas correntes elétricas sustentadas no mar por sua vez criam um campo magnético que se sobrepõe

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o projEtoAnálise das características do acoplamento eletrodinâmico plasma solar-magnetosfera com base nos efeitos das correntes elétricas planetárias - no 2007/07723-7

ModalidadEauxílio regular a projeto de pesquisa

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co que tinham desenvolvido, há mais de seis anos, para o estudo de perturbações geomagnéticas na busca por sinais dessa natureza associados aos tsunamis.

A técnica matemática é chamada de “análise wavelet” – ondas pequenas seria a tradução de wavelet. Ela é muito usada por físicos e engenheiros para distinguir estruturas localizadas ou, posto de forma mais coloquial, “agulhas em palheiros”. A ferramenta age como uma espécie de microscópio capaz de dar um zoom em características de sinais que passariam despercebidas. Essa propriedade permite identificar irregularidades locais no sinal geomagnético, entre as quais o começo de um tsunami e a assinatura típica de sua propagação.

Utilizando uma implementação dessa técnica, Virgínia, Mendes e Papa analisa-ram junto com Margarete Domingues, es-

pecialista do Inpe em wavelets, os dados de estações nos oceanos Índico e Pacífico que fazem parte da rede Intermagnet, mantida por 44 países, incluin-do o Brasil, e que dis-ponibiliza seus dados pela internet. Para três tsunamis recentes – o japonês de 2011, o chi-

leno de 2010 e o de Sumatra-Andaman, que em 26 de dezembro de 2004 causou quase 300 mil mortes em vários países do oceano Índico –, os pesquisadores encontraram sinais magnéticos antece-dendo a chegada das ondas gigantes em 10 estações da Intermagnet.

Virgínia lembra que não foi fácil en-contrar estações magnéticas próximas

tim EOS, da União Geofísica Americana, de 11 de janeiro de 2011, era consistente com a altura da onda detectada pelos sensores de pressão submarinos em alto- -mar (15 centímetros).

O artigo chamou a atenção de Virgí-nia, que, orientada por Mendes e pelo geofísico Andrés Papa, do ON, trabalha analisando perturbações geomagnéticas decorrentes da interação Sol-Terra, regis-tradas pelo observatório de Vassouras (RJ) e pela Rede Internacional de Ob-servatórios Magnéticos em Tempo Real (Intermagnet). O Brasil localiza-se nu-ma região bastante peculiar do ponto de vista geofísico: está sob a influência da Anomalia Magnética do Atlântico Sul, do Eletrojato Equatorial e da anomalia de ionização equatorial (ou de Appleton). Tais fenômenos tornam mais complexo o efeito das pertubações do campo mag-nético sobre o território brasileiro, que podem atrapalhar a prospecção de mi-nérios e afetar linhas de transmissão de energia elétrica. Os cientistas perceberam que poderiam usar um método numéri-

nova abordagem poderia ser usada para monitorar o surgimento e a evolução de ondas gigantes

ao campo magnético da Terra e que você pode medir com magnetômetros ade-quados”, diz Mendes, cujos trabalhos são financiados pela FAPESP.

Medir o magnetismo de um tsunami, entretanto, parecia algo impossível até pouco tempo atrás. Enquanto a inten-sidade do campo magnético da Terra é da ordem de 30 a 50 mil nanoteslas – 20 vezes menor que a de um ímã de geladei-ra – a variação nesse campo provocada por um tsunami seria de 1 a 10 nanotes-las. Até existem magnetômetros com a precisão necessária para medir essas va-riações, mas o sinal pode ser mascarado por perturbações magnéticas centenas de vezes mais intensas provocadas, por exemplo, por tempestades solares.

O Sol, porém, passava por uma fase excepcionalmente calma quando, em 27 de fevereiro de 2010, um terremoto de magnitude 8,8 na costa do Chile gerou um tsunami que se propagou por todo o Pacífico. Com grande dificuldade, os geo-físicos Chandrasekharan Manoj e Stefan Maus, da Agência Norte-americana de Administração da Atmosfera e dos Ocea-nos (Noaa), nos EUA, junto com Arnaud Chulliat, do Instituto de Física do Globo de Paris, na França, conseguiram distin-guir visualmente um sinal de 1 nanotesla captado por um magnetômetro instalado na ilha de Páscoa, a 3.500 quilômetros do epicentro do terremoto. O sinal coincidia com a chegada do tsunami à ilha e sua intensidade, de acordo com os cálculos publicados pelos pesquisadores no bole-

ondas gigantes na costa do sri lanka: um dos locais atingidos pelo tsunami de 2004 no oceano índico

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aos centros de origem dos tsunamis, sobretudo para os eventos de 2004, que atingiu uma área de países pobres, com poucas estações, e o de 2011, que ocorreu tão perto da costa que houve interrupção no fornecimento de da-dos do observatório mais próximo, o de Kakioka, no Japão. O fato de nem sempre conseguirem dados de estações costeiras equipadas tanto com magne-tômetros como marégrafos também di-ficultou uma comparação mais detalha-da entre sinais magnéticos e o nível do mar. A exceção foi a estação de Papeete, na Polinésia Francesa, equipada com ambos instrumentos. Ali foi possível captar sinais magnéticos do tsunami chileno de 2010 até duas horas antes da chegada da onda.

CoMo nasCE uM tsunaMi Geralmente produzidos por desloca-mentos abruptos de falhas geológicas no assoalho oceânico (a causa também de terremotos), os tsunamis começam como ondas de comprimento da ordem de centenas de quilômetros. De início em águas profundas, elas se propagam rápido, cruzando os oceanos com velo-cidades entre 600 e 800 quilômetros por hora, mas se elevando apenas algumas dezenas de centímetros acima do nível do mar, passando despercebidas por bar-cos e navios. Quando alcançam o lito-

ral, porém, a mudança de profundidade produz uma transformação radical em seu formato: o comprimento da onda encolhe, sua velocidade cai e, o mais im-pressionante, sua altura cresce, podendo alcançar dezenas de metros.

Como nem todo terremoto oceânico provoca tsunamis, os sismógrafos espa-lhados pelo planeta não são suficientes para alertar populações em áreas de ris-co. Para tanto, existem dezenas de sen-sores de pressão instalados no fundo do mar, a maioria no Pacífico. Entretanto, apenas os países mais ricos têm recursos para bancar a instalação e manutenção dos sensores, situação que deixa várias populações litorâneas vulneráveis. Além disso, o sistema pode levar horas para identificar um tsunami e nem sempre calcula com exatidão suas dimensões. Um boletim meteorológico japonês do último 11 de março, por exemplo, alertava para a chegada de um tsunami com pelo menos 3 metros de altura, quando as on-das de fato alcançaram até 50 metros.

Algumas limitações do sistema atual de alerta sobre a chegada de tsunamis talvez possam ser suplantadas com a adoção da abordagem defendida pelos brasileiros. O geofísico Maurício Bolog-na, da Universidade de São Paulo, que não participa do trabalho da equipe do Inpe e do ON, nota “uma vantagem im-portante” do sensoriamento magnético sobre os sensores submarinos de pres-são: a capacidade de determinar não só a amplitude, como a direção e o sentido das ondas, o que ajudaria nos cálculos das propriedades dos tsunamis em tem-po real. Bologna também destaca o baixo custo do método, que aproveitaria os ob-servatórios já existentes da Intermagnet. A construção de novas estações em terra também seria mais barata que a instala-ção de sensores no fundo do mar.

Para o geofísico Robert Tyler, da Nasa, a agência espacial americana, o trabalho dos brasileiros é “importante e oportu-no”. Tyler explica que o método desen-volvido poderia ser usado para analisar os dados, por exemplo, da missão Swarm, da Agência Espacial Europeia, que lan-çará em 2012 três satélites dedicados a medir variações geomagnéticas provo-cadas por alterações nas correntes oceâ-nicas. “Os fluxos dos oceanos têm um papel central nas mudanças do sistema climático e também em desastres natu-rais, como os tsunamis”, ele diz. n

10 tEslas é a variação máxima provocada no campo magnético da terra por um tsunami

modelo do noaa sobre o tsunami japonês de março de 2011: tons mais próximos do preto e púrpura indicam áreas do pacífico com previsão de ondas maiores

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flechas indicam a direção do vento e, conforme o tamanho delas, a velocidade. quanto maior, mais veloz

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estudo explica a formação e o desenvolvimento dos ciclones na costa do brasil

isis nóbile diniz

Acomunidade científica costuma cate-gorizar os ciclones do Atlântico Sul da mesma maneira: como ciclones extra-tropicais. Porém, ao estudar três ciclones

formados próximos à costa brasileira, os pesquisa-dores Rosmeri Porfírio da Rocha e João Rafael Dias Pinto, do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), concluíram que o desenvolvimento de um deles foi diferente do esperado para um ciclone extratropical da região. Publicado no Journal of Geophysical Research em julho deste ano, o estudo procura explicar a formação, a evolução e a dissi-pação de ciclones próximos à costa do Brasil para, no futuro, os meteorologistas terem à mão dados mais precisos sobre o desenvolvimento desses sistemas. Afinal, ignorar essas informações pode levar a previsões meteorológicas equivocadas ou surpreender os especialistas, como ocorreu com o furacão Catarina.

Em 2004, o Catarina atingiu principalmente os estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, causando danos em cerca de 60 mil edifica-ções. Apenas na região catarinense o prejuízo foi de mais de R$ 200 milhões, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Enquanto sopravam os ventos fortes, os meteorologistas debatiam se o Catarina era um furacão ou um ciclone extratropical – a falta de dados e de re-gistros da passagem de furacões sobre o Atlântico Sul dificultava a análise. A confirmação ocorreu, principalmente, graças às informações coletadas por satélites internacionais, embora as medições de instrumentos brasileiros tenham colaborado.

Para amenizar essa falta de informações sobre as ciclogêneses na costa brasileira, os pesquisa-dores do IAG decidiram estudar o comporta-mento de três ciclones que se desenvolveram em diferentes regiões onde o fenômeno é mais comum. O primeiro escolhido foi formado en-tre o sul do Brasil e o Uruguai em agosto de 2005. O segundo, na região do rio da Prata, em junho de 2007, e, por último, o ciclone do sul da Argentina, em julho de 2008. Todos surgiram como ciclones extratropicais.

Qualquer ciclone pode nascer extratropical, subtropical ou tropical e mudar de categoria, ou seja, fazer uma transição. “Por exemplo, o Cata-rina nasceu como um ciclone extratropical que fez transição para furacão (também chamado de ciclone tropical ou tufão). As particularidades são o que difere um do outro”, conta Dias Pinto. Os ciclones extratropicais possuem frente fria e

de olho no furacão

_ eventos eXtremos

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artigo científicoDA ROCHA, R. P.; DIAS PINTO, J. R. The energy cycle and structural evolution of cyclones over southeastern South America in three case studies. Journal of Geophysical Research. v. 116, p. D14112. 26 jul. 2011.

dois dos três eventos analisados, da esquerda para a direita: ciclones na região do rio da prata e ao sul da argentina

pEsquisa FapEsp 189 _ 57

três dias. “O mar sob atuação de um ci-clone extratropical com essa intensidade provoca ondas grandes no oceano e res-saca devido aos fortes ventos”, completa Rosmeri. Ou seja, tratava-se de um ciclo-ne extratropical, mas com características diferentes das condições corriqueiras. O terceiro ciclone, formado mais ao sul, mostrou-se um extratropical típico com todas as características já esperadas pelos meteorologistas.

EnErgiaDois principais tipos de instabilidade podem contribuir para a formação, evolução e dissipação de um ciclone. A fonte de energia mais comum no Atlântico Sul é a baroclínica, obtida quando o ar frio (mais denso) e o ar quente (menos denso) se encontram gerando ondas. Uma outra fonte é a ba-rotrópica, gerada pela mudança da ve-locidade dos ventos horizontalmente. “Usando a combinação de ferramentas conseguimos entender como esses me-

O fenômeno pode nascer extratropical e mudar para tropical, outra categoria

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canismos físicos atuam para diferentes desenvolvimentos e fortalecimentos de ciclones”, afirma Rosmeri.

Se os meteorologistas classificarem os ciclones como extratropicais durante to-do o seu desenvolvimento, podem errar a previsão: a chuva pode perdurar por mais dias e os ventos serem mais intensos. “Foi o que ocorreu com o Catarina. Ele nasceu extratropical e virou um furacão”, con-ta Rosmeri. Os meteorologistas sabiam que se tratava de um evento catastrófico, mas discutiam sobre sua classificação, ou seja, se era um furacão ou um ciclone extratropical. “Na véspera de atingir a costa do Brasil, cada sistema de alerta – brasileiro e americano – apontava para uma resposta”, afirma Rosmeri.

A pesquisadora ressalta: “Não quere-mos fazer previsão do tempo, mas expli-car a formação dos ciclones que atingem a costa brasileira. Entender a evolução dos ciclones dessas regiões do Atlântico Sul fornece subsídio para conhecermos o ciclo de vida deles e apontar possíveis fu-racões”. Segundo Rosmeri, por enquan-to, usar apenas modelos numéricos para prever a evolução de um ciclone pode in-duzir a erros. “A maioria dos estudos que existem são sobre os ciclones do Atlânti-co Norte”, conta a meteorologista. n

frente quente associadas e se formam em latitudes médias entre 30° e 60º (no hemisfério Sul, próximo à Região Sul do Brasil até o sul da Argentina) graças à di-ferença de temperatura do equador com-parada ao frio dos polos. Os subtropicais podem ou não ter frentes e, geralmente, se formam entre as latitudes de 15° até 40° (que correspondem à área entre o Sudeste e o Sul do país). Os furacões não têm frente fria nem frente quente e se formam principalmente devido à energia obtida por meio da evaporação de águas oceânicas mais quentes.

As ferramentas escolhidas pelos pes-quisadores para analisar os ciclones foram: uma técnica de Robert Hart, professor da Universidade do Estado da Flórida, e a teoria do ciclo de ener-gia desenvolvida por Edward Lorenz, criador da teoria do caos. A técnica de Hart permite classificar qualquer ciclo-ne independentemente de sua natureza. Já o modelo de Lorenz mostra a prove-niência da energia usada pelo sistema para se desenvolver e também para onde essa energia é dispersada. “Ambas nos permitem analisar mais profundamente os ciclones e identificar seus diferentes tipos, evitando que outro furacão nos pegue de surpresa”, diz Dias Pinto.

Aplicando as técnicas, os pesquisado-res descobriram que o primeiro ciclone quase se tornou subtropical. “O segundo era um extratropical bomba, isso significa que teve rápido e intenso desenvolvimen-to em 24 horas”, explica Dias Pinto. O tempo médio de vida de um ciclone é de

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ano intErnaCional da quíMiCa prEtEndE - informar sobre contexto químico em que vivemos

- destacar riscos e benefícios da química

- despertar vocações e talentos

apliCaçÕEs da quíMiCa- medicamentos - combustíveis - metais - praticamente todos os manufaturados

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educação

inovação

química

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educação, ciência, tecnologia e inovação devem ser vistas de forma integrada

texto Maria guimarães

ilustrAção Estevan pelli

a formação de futuros talentos é um assunto que não podia faltar numa ce-lebração batizada Química: nossa vida, nosso futuro, como é o caso deste Ano Internacional decretado pela Unesco.

E, condizente com a importância da discussão, foi de peso o trio responsável por ela: Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universida-de Estadual de Campinas, César Zucco, presidente da Sociedade Brasileira de Química e professor do Departamento de Química da Universidade Fede-ral de Santa Catarina e Ronaldo Mota, secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, além de professor da Universidade Federal de Santa Ma-ria, no Rio Grande do Sul. “É preciso transformar o conhecimento gerado nas universidades e nas empresas em benefício para a população”, disse Paulo Cezar Vieira, da Universidade Federal de São Carlos, coordenador no dia 5 de outubro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química no âmbito do Ano Internacional da Química.

Do ponto de vista privilegiado da FAPESP, uma das principais agências de fomento à pesquisa do

Procura-se criatividade

EspECial _ ano internacional da química

país, Carlos Henrique de Brito Cruz mostrou que a comunidade de pesquisadores na área de quími-ca no Brasil ainda é pequena para as necessidades nacionais. Ao longo da última década, a taxa de aprovação de projetos em química na FAPESP tem ficado em torno de 60%. A taxa é muito mais alta do que se vê em outros países, a exemplo dos 20% da Inglaterra (Research Councils) e dos 17% dos Estados Unidos (NSF). Sem perder o contexto de vista, o diretor científico da FAPESP considera que esses números refletem a diferença entre países que já têm uma comunidade formada e aqueles que a estão formando.

De 1996 para cá, o número de pesquisadores que pedem financiamento à FAPESP a cada ano se es-tabilizou entre 350 e 400. “Para cobrir os temas necessários ao desenvolvimento do Brasil com alto impacto mundial, precisamos de uma comunidade maior”, afirmou Brito. Para ele, isso significa mais universidades, mais institutos de pesquisa e mais pesquisa nas empresas. Um dado marcante é que os editais do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia, o Bioen, que necessariamente envolve muitos químicos, têm recebido quantidade limitada de propostas. “Todos os pesquisadores de peso es-tão ocupados com projetos financiados”, avaliou.

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60 _ novembro de 2011

Por “alto impacto mundial”, entenda-se resul-tados relevantes para uma comunidade científica mais ampla. Uma boa medida do impacto de uma pesquisa, mostrou Brito, é a extensão com que os artigos científicos são citados por outros pesqui-sadores. A China, por exemplo, nos últimos cinco anos se tornou um dos países mais produtivos em termos do número de artigos publicados. Em quí-mica, os artigos originados no Brasil têm impacto igual a 60% da média mundial, como os da Chi-na. Já os da Espanha têm impacto 120% da média mundial. A quantidade não se reflete na taxa de citações, deixando evidente uma falta de influência na área. “Queremos fazer muitos artigos ou artigos muito bons?”, perguntou, propondo o desafio de valorizar o impacto do trabalho de qualidade e de fazer menos “numerologia”, inclusive como critério nas avaliações de projetos feitas pelos assessores da FAPESP. Uma estratégia para os pesquisadores brasileiros, segundo ele, é valorizar mais as colabo-rações internacionais, que têm maior impacto.

“A pesquisa com mais impacto é aquela que descobre algo que o livro de química dizia ser impossível”, disse, referindo-se à coincidência oportuna de estar falando no mesmo dia em que foi anunciado o Prêmio Nobel de Química de 2011. O ganhador foi o israelense Dan Shechtman, que anotou em seu caderno de laboratório que aquilo era impossível, quando viu um quase-cristal pela primeira vez. E foram justamente esses quase- -cristais que lhe renderam o reconhecimento mundial. Muitas vezes aquilo que era considerado impossível se revela não só possível, mas impor-tante. E pode gerar aplicações econômicas.

Mas essa ciência ousada que acaba destacada pela importância nem sempre é feita com o uso em mente. Para ganharmos competitividade, é preciso que os bons cientistas não gastem tempo com afazeres burocráticos, como gerenciamento da manutenção de aparelhos, de alojamento de visitantes e prestação de contas. “Estamos tra-balhando nas universidades para que os pesqui-sadores tenham mais apoio institucional.” Seria um passo importante para a abertura de espaço criativo e para o ensino de qualidade.

oniprEsEntE O ensino foi, justamente, o destaque da fala de César Zucco. “O conhecimento do mundo natural é basicamente assentado na química e serve para a humanidade toda”, ressaltou. Mas, como tudo que traz benefícios, não se pode ignorar os riscos da química. Por isso mesmo é preciso aprofundar o conhecimento, frisou. E a sala de aula entra nessa equação com benefícios nos dois sentidos, ele mostrou, citando o polonês Roald Hoffman, ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1981, que declarou só ter se tornado um bom pesquisa-dor porque precisou ensinar turmas iniciantes.

Os cursos tradicionais de química preparam os estudantes para conhecer, usar e interpretar as explicações científicas da natureza. Mas o ensino, segundo Zucco, só formará mentes inovadoras se tiver sucesso no desafio de inovar a si próprio. “Pre-cisamos preparar os estudantes para gerar evidên-cias, entender o processo da ciência e participar”, explicou. As características centrais do químico do futuro, segundo ele, devem ser ousadia e rebeldia

núMEro dE ConCluintEs 40,6% licenciatura 49,1% bacharelado se formam em química, em relação aos que ingressaram quatro anos antes

Cursos dE quíMiCa tripliCaraM 119 em 2000 344em 2009

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intelectual. Para o Nobel deste ano, enxergar uma estrutura que fugia aos cânones exigiu ousadia para superar os estudos. E para convencer o mundo dis-so, a ponto de merecer a maior premiação da ciên-cia mundial, foi preciso persistência e confiança.

“É preciso criar um lugar para ensinar inven-ção, tecnologia e criatividade.” Esse lugar deve ser muito mais do que um laboratório: algo que integre ensino, laboratório e fábrica. Um modelo pode ser o FabLab@School, fundado em 2009 na Universi-dade Stanford, na Califórnia, pelo brasileiro Paulo Blikstein, que visa justamente criar condições para que crianças participem de projetos inventivos.

O bom professor, na visão de Zucco, deve ter muito mais do que títulos e carisma. Precisa de técnicas que inspirem os jovens. Ele mostrou números que indicam que a quantidade de cursos de química, somando bacharelado e licencia-tura, triplicou na última década, e o número de professores também vem crescendo nessa área da ciência. Mas não basta, porque as taxas de evasão são muito altas: menos de metade dos que começam um curso superior consegue concluir quatro anos depois.

A falta de professores licenciados – um déficit de 50 mil nas disciplinas de física e química – é um problema, mas o mais importante é abraçar a responsabilidade do químico diante do desafio do século XXI, de perceber a finitude e a esgota-bilidade dos recursos naturais e garantir a con-tinuidade da vida na Terra. Afinal, um mundo sem química seria, como ele disse, um mundo sem materiais sintéticos. Sem telefone, cinema, cosméticos, medicamentos e plásticos.

dEsEnvolviMEntoOs avanços proporcionados pela química na vida cotidiana dependem, em grande parte, também da participação das empresas nesse processo, depois da descoberta científica ou mesmo do protótipo desenvolvido. Ronaldo Mota mostrou que no Brasil o acoplamento entre pesquisa e empresa é ainda fraco, e as empresas investem pouco na expansão do conhecimento. Muito recentemente, segundo ele, surgiram no país condições mais propícias para a inovação, desde que foi implantado o marco regu-latório que compartilha entre governo e empresa os riscos econômicos do investimento em pesquisa e inovação. Da mesma forma, crucial estabilidade macroeconômica, inflação sob controle, responsa-bilidade fiscal, moeda valorizada etc.

Para ele, a relação tem mão dupla. “Não é desejá-vel fazer ciência totalmente desacoplada da política industrial, e não dá para fazer inovação sem boa ciên- cia.” Daí a importância de uma mudança cultural que, a seu ver, já começou a acontecer. Quando a boa ciência não é incorporada no sistema produtivo, ela não se transforma em benefícios sociais – um desperdício. “Agora a cobra mordeu o rabo: a inova-ção não é só o ponto de chegada, é também o ponto de partida. A inovação passa a ser cada vez mais um dos balizadores que contribuem com a definição dos principais programas de pesquisa.”

Além de todos os mecanismos econômicos e de política industrial, um fator se destaca nessa mudança cultural: uma educação compatível com a era da inovação. Para isso, é preciso inserir os estudantes no processo para que conheçam o mundo e as demandas da produção, mas, segundo ele, a estrutura universitária ainda não enten-deu o que está acontecendo. “O mundo mudou, a forma de produzir conhecimento se alterou, as metodologias com que se transfere conhecimento têm se modificado muito rapidamente. Mas o sis-tema de ensino continua o mesmo”, protestou.

“A forma como ensinam vocês está errada”, avi-sou aos estudantes da plateia, “querem que vocês tenham a cabeça em branco, sem nada antes, que só estudem depois quando o segredo é estudar antes, explorando no limite superior o processo autoinstrutivo”. A proposta é radical. Declarada a falência do modelo aula expositiva-estudo-prova, os alunos precisam ter acesso ao conhecimento antes mesmo da aula. Todo o programa deveria estar disponível desde o início do curso, explo-rando as novas tecnologias em um contexto onde o conhecimento é totalmente acessível e gratui-tamente disponível, e que analisar esse conteúdo de antemão seja um pré-requisito para a presença dos estudantes. Não tem sentido as disciplinas não terem respectiva página com espaços virtuais de interação. “A aula é um espaço de pessoas que mostraram interesse preliminar e de professores que entenderam o novo processo.” n

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“A pesquisa com mais impacto é aquela que descobre algo que o livro de química dizia ser impossível”, disse Brito

carlos Henrique de brito cruz, ronaldo mota e césar Zucco

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caminhos de mão dupla ligam a pesquisa à indústria

outubro foi mês de dobradinha no ciclo de pa-lestras do Ano Internacional da Química, rea-lizado no auditório da FAPESP. Uma dupla de assuntos muito longe de ser casual. Depois de pensar em como o ensino deve ser modificado

para dar origem a mentes inovadoras, não se podia deixar de descrever casos reais em que o conhecimento chegou à indústria, como para aprimorar a mineração, produzir plásticos e combustíveis e buscar medicamentos inovadores com base na biodiversidade vegetal. Foi exatamente isso que aconteceu no dia 19 de outubro, com uma mudança de procedimento: o coordenador da mesa, José Fernando Perez, se tornou palestrante e falou da criação da Recepta Biopharma. A ele se seguiram Luiz Eugênio Mello, do Ins-tituto Tecnológico da Vale, Edmundo Aires, da indústria química Braskem, e Thais Guaratini, da Lychnoflora – em-presa nascida na universidade. Bons exemplos de distâncias percorridas por mentes inovadoras.

Um engenheiro que virou físico, José Fernando Perez mu-dou de rumo quando se deu conta das circunstâncias especiais que existem no Brasil para desenvolvimento de conhecimento relacionado à saúde. “Temos gente qualificada, instalações adequadas, excelentes empresas de logística, os custos opera-cionais são mais baixos do que em outros países e temos acesso mais fácil a pacientes para testes clínicos”, resumiu. Com base

da teoria à prática

patEntEs rEgistradas nos Eua EM 2004/2009: China 404/1.655 Brasil 106/103

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nessa percepção, ele montou em 2007 a Recepta Biopharma, que busca inovar em terapias dire-cionadas para o tratamento do câncer.

Em associação com o Instituto Ludwig de Pes-quisa sobre Câncer, que foi parceiro da FAPESP no projeto Genoma do Câncer, de cuja iniciativa Perez participou na condição de diretor científi-co, a Recepta pode assumir um papel diferente do habitual: obteve os direitos intelectuais sobre anticorpos monoclonais específicos, delineou os caminhos da pesquisa e desenvolvimento dessas drogas, visando levá-las à clínica. “Nossos pro-dutos são intangíveis: propriedade intelectual de medicamentos para os quais se demonstra sua eficácia clínica.” São as ideias, o pensamento inovador, o planejamento de experimentos que poderão dar origem a medicamentos.

Uma grande aventura para um engenheiro, que não perde as referências de sua formação original. Perez ressalta a grande incerteza nesse tipo de pesquisa médica, muito maior do que na engenharia: “Até o último momento, o último teste clínico, não sabemos se o ‘avião’ vai voar”. Mesmo assim, as perspectivas são promissoras e a Recepta está em destaque no que diz respeito

ao desenvolvimento de fármacos, uma área cuja prática ainda não está estabelecida no Brasil. “Já temos três testes clínicos em fase II”, comemora o fundador da empresa, otimista.

rEpEnsar o BEM-suCEdidoNum sentido oposto ao de Perez, Luiz Eugênio Mello se definiu como um médico agora enve-redando pela mineração. Sua contratação como diretor da Vale – uma das maiores companhias de mineração do mundo –, para criar o Instituto Tecnológico da empresa, reflete uma busca da empresa por novos caminhos. Reflete ainda seu esforço para contrariar a imagem nociva que ne-cessariamente evoca quando se pensa no impacto ambiental causado pela extração de minério.

A importância da Vale vem, em grande par-te, da riqueza dos depósitos de ferro brasilei-ro, que são de boa qualidade pela facilidade de extração – quando o ferro está associado a outros materiais, como o silício, torna-se mui-to caro separá-lo. Mas mesmo assim a empre-sa não pretende acomodar-se. Ao contrário, busca diversificar suas atividades. Uma va-riação ao minério de ferro são as terras-raras,

133 milpesquisadores no brasil:

57% academia

37% indústria

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inovação

química

sustentabilidade

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64 _ novembro de 2011

vErdE O maior desafio, para Edmundo Aires, é usar com cuidado a Terra, que é uma só. “Se vê agora uma convergência de interesses: o social, o econômico e o ambiental.” Ele define crescimento sustentá-vel como um processo baseado em melhoria de padrões, em vez de crescimento. “Esses padrões substituem outros considerados insatisfatórios pela sociedade.” A química entra exatamente aí. Vista como vilã até o século passado, ela agora tem a oportunidade de se tornar solução.

A Braskem tem buscado o desenvolvimento e a produção de produtos químicos e energia a partir de biomassa, que pode ser capim-elefante, cana-de-açúcar, algas, entre outros. “Conhecer as particularidades de cada fonte de biomassa pode definir a tecnologia a ser empregada”, explicou.

Outro objetivo é a produção de plásticos sus-tentáveis. Tornar essa indústria mais adequada à realidade atual é uma necessidade até agora pouco desenvolvida. Um exemplo é a alardeada garrafa vegetal. “O plástico utilizado nessas gar-rafas só é 30% verde, os outros 70% precisam de paraxileno, uma matéria-prima ainda não dis-ponível a partir de fonte renovável.” A Braskem, segundo ele, já tem várias moléculas candidatas a serem os blocos de construção de novos tipos de plástico. “Até 2015 devemos ter processos comer-

indústria quíMiCa: Maior déFiCit na Balança CoMErCial

us$ 2,6 bilhões em 2010

us$ 0 em 2020 (objetivo)

elementos como o európio, o ítrio e o térbio, que têm uso importante na tecnologia como em telas de com-putadores, em lâmpadas fluorescentes e no isolamen-to de campos radioativos, o que as torna essenciais em usinas nucleares. “Talvez sejam os elementos químicos do futuro no que agregam à tecnologia da humanidade”, disse Mello. O mercado mundial de terras-raras é ordens de grandeza menor do que o de ferro na escala mundial, mas investir nesse novo veio deve valer a pena no Brasil, cujo solo conta também com relativa abundância desses elementos. Além disso, ressaltou Mello, a Vale é a segunda mineradora de níquel do mundo e está crescendo como produtora de cobre e de potássio.

Embora a mineração seja de longe o carro- -chefe da empresa, outros ramos também vêm se desenvolvendo há tempos. É o caso da logística, que inclui uma empresa de transporte, e da ge-ração de energia. Nesses setores nem sempre a química é tão protagonista quanto nos elementos que integram a tabela periódica, mas a pesquisa é fundamental neles e ganha cada vez mais peso na Vale, segundo o palestrante.

Essa pesquisa pode envolver diretamente os elementos químicos, como entender o quanto al-guns deles, que aparecem em baixos teores junto ao minério desejado, interferem no processo de mineração. Outra aplicação direta é a caracteriza-ção de novos depósitos de minérios para saber se a extração do recurso é viável.

E, claro, uma frente importante de pesquisa daqui para a frente deve ser sobre a chamada eco-nomia verde. Mello mostrou imagens de projetos de centros que estão sendo construídos para via-bilizar essa pesquisa. Um deles, um dos braços do Instituto Tecnológico Vale, em Belém, tem projeto do premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha e será uma releitura moderna das construções tradicionais da região amazônica, sobre palafitas. “Queremos pensar em mineração verde e o pri-meiro passo é fazer um prédio verde”, afirmou. Será um centro de 40 mil metros quadrados, onde trabalharão 400 pessoas. Outro braço do Instituto Tecnológico, em Minas Gerais, será uma constru-ção em forma de cubo em parte incrustado numa montanha, com uma face de aço escovado refle-tindo as árvores em torno e uma face que sofrerá oxidação, mostrando o lado orgânico do ferro.

Os centros de pesquisa ainda não estão prontos, mas o serviço de recrutamento dos pesquisado-res que chefiarão o trabalho neles já começou. “As pessoas são o essencial, são elas que fazem as entidades.” E são esses pesquisadores que devem garantir o futuro da Vale e impedir que a compa-nhia, de 69 anos, desapareça, seguindo o ciclo de vida natural de boa parte das empresas. “O mundo é movido por desafios e por pessoas que encaram esses desafios”, concluiu.

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ciais para outras substâncias”, disse. A previsão é de que a empresa produzirá, até 2020, outros plásticos verdes além do polietileno produzido no Rio Grande do Sul. Até lá, 10% dos produtos químicos deverão ter origem verde, de acordo com o Pacto Nacional da Indústria Química, lan-çado em 2010.

Cria da Casa Outra empresa centrada na química verde é a Lychnoflora, representada por Thais Guaratini. Fundada em 2008 em Ribeirão Preto, ela busca desenvolver produtos inovadores para a indús-tria da saúde, sobretudo a partir da química de produtos naturais. Ainda durante a formação em ciências farmacêuticas, Thais teve contato com o mundo empresarial e começou a pensar na pesquisa como oportunidade para negócios. A partir disso, foi para a empresa criada por membros da própria universidade, dentro da incubadora da USP de Ribeirão Preto. “O ce-nário no país e na universidade se tornou mais favorável depois da lei da inovação de 2004”, contou. “O incentivo à inovação e à pesquisa científica agora é maior.”

Alguns exemplos dos produtos que ela vem desenvolvendo são um fármaco para tratamento de leishmaniose, produtos para proteção solar e

um analgésico. Voltando ao início das discussões de outubro, para Thais a atividade empresarial traz melhorias ao ensino e também à pesquisa, à medida que os alunos têm a experiência de lidar com os desafios impostos pela sociedade.

Agora a Lychnoflora se prepara para alçar no-vos voos e, depois de se expandir dentro da incu-badora, reforma um laboratório para se instalar. E se prepara também para superar desafios que vão muito além do mercado, como a regulamentação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). A empresa já obteve outras licenças, mas casos específicos estão encontrando entraves que acabam por dificultar o acesso às espécies nativas e obrigar os pesquisadores a trabalhar, nessa fase inicial, com plantas originárias de outros países, de acordo com Thais.

No mesmo espírito da cobra que mordeu o ra-bo, mencionada por Ronaldo Mota (ver página 61), Thais vê a formação de alunos e o desenvol-vimento de inovações com potencial econômico como um contínuo. Por isso, entre os trabalha-dores da Lychnoflora estão estudantes de gra-duação de química e de farmácia, além de seis doutores. E a pesquisadora está planejando um pós-doutorado em algo que a empresa identificou como sendo necessário para o desenvolvimento de inovações. n Maria guimarães

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“Vista como vilã até o século passado, a química agora tem a oportunidade de se tornar solução”, disse Aires

edmundo aires, thais guaratini,

José fernando perez e luiz

eugênio mello

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choques com dois grandes objetos teriam feito eixo de rotação do planeta se inclinar 98 graus

um dos grandes problemas em aberto da astronomia do sistema solar pode ter sido resolvido por uma equipe in-ternacional de cinco pesquisadores,

incluindo um brasileiro. Por meio de simu-lações computacionais, o time liderado pelo italiano Alessandro Morbidelli, do Observató-rio da Côte d’Azur, em Nice, na França, obteve indícios de que a inclinação anômala do eixo de rotação de Urano não se deve a apenas uma grande colisão com um corpo do tamanho da Terra, como se pensava, mas sim a dois choques com objetos de porte significativo. O planeta gira em torno de um eixo cuja inclinação é de 97,7 graus em relação ao plano de sua órbita em torno do Sol. As duas trombadas teriam ocorrido em momentos distintos do processo de nascimento de Urano. “Elas explicariam por que Urano gira deitado”, diz Rodney Gomes, do Observatório Nacional (ON), no Rio de Ja-neiro, um dos autores do estudo. Apresentada em outubro no Congresso Europeu de Ciência Planetária, em Nantes, na França, a nova hipó-tese pode mudar a visão que se tem da primeira fase da formação do sistema solar.

Os planetas começaram a se formar há 4,5 bilhões de anos a partir de um disco de gás e poeira girando em torno do Sol. Durante seus primeiros milhões de anos, o material do disco foi se aglutinando, formando corpos cada vez

por que urano gira de lado

ilustração mostra que o eixo de rotação (linha imaginária rosa) de urano tem uma inclinação de quase 98 graus em relação à linha perpendicular ao plano de sua órbita em torno do sol. a angulação da terra é de 23 graus. ambos os planetas giram no sentido anti-horário. o sol, a terra e urano estão fora de escala

urano 98o

maiores de proporções semelhantes à dos aste-roides e cometas, os chamados planetesimais. Por meio de colisões entre si, os planetesimais continuaram a crescer, até formarem embriões planetários — corpos com dimensões similares aos planetas atuais. Alguns desses embriões capturaram rapidamente o gás do disco, que se dissipou nos primeiros milhões de anos, formando os planetas gigantes gasosos e os de gelo. Os embriões restantes no interior do sistema solar continuaram a colidir entre si até formarem os planetas rochosos. Esse cenário implica que todos os planetas nasceram orbi-tando no plano desse disco primordial, com o eixo de rotação em torno de si perpendicular a esse plano. Encontros posteriores entre pla-netas, planetesimais e embriões planetários restantes, porém, teriam desviado seus eixos dessa norma. O eixo de rotação da Terra, por exemplo, é inclinado cerca de 23 graus. Já Ura-no é um caso extremo, com uma inclinação de quase 98 graus. Por isso, seus polos norte e sul se situam nos lados da esfera planetária em vez de em cima e embaixo.

Desde os anos 1960, os cientistas acreditam que essa obliquidade acentuada seria fruto de um choque violento entre Urano e um grande embrião planetário. Mas sempre houve um problema com essa explicação: as dezenas de luas e anéis de Urano também giram em tor-

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66 novembro de 2011

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no do eixo de rotação extremamente inclinado do planeta. Durante uma colisão abrupta, dizem os críticos da hipótese, não haveria tempo para que esses anéis e satélites tivessem acom-panhado a inclinação de Urano. Eles deveriam ter permanecido num plano orbital menos angulado.

Para explicar essa discrepância, os astrofísicos Gwenaël Boué e Jacques Laskar, do Observatório de Paris, pro-puseram em 2009 uma teoria alterna-tiva. Segundo eles, Urano teria tido no passado uma lua enorme, do tamanho da Terra. A presença do satélite massi-vo teria feito com que o movimento de precessão do eixo de rotação do plane-ta, semelhante à oscilação produzida por um pião girando, se ampliasse aos poucos de tal forma que, em razão de uma série de interações, levasse o pla-neta a lentamente se “deitar”. Essa in-clinação seria um processo tão gradual que os anéis e demais satélites acom-panhariam o equador do planeta.

Caos no sistEMa solarO problema parecia resolvido até Mor-bidelli e Gomes decidirem examinar a teoria em detalhe. No ano passado,

eles depararam com uma contradição. De acordo com seus cálculos, a mesma influência gravitacional do satélite hi-potético que aos poucos teria tomba-do Urano atrairia os demais satélites e anéis de tal forma que impediria que esses acompanhassem o planeta em sua inclinação. A teoria dos franceses, portanto, não funcionava.

Os cientistas decidiram retomar a ideia de uma colisão primordial, mas com modificações. Realizaram simula-ções das interações gravitacionais que teriam ocorrido se um corpo do tama-nho da Terra tivesse se chocado contra Urano em sua infância, quando suas luas e anéis ainda não tinham se formado a partir de um disco de gás e poeira. O im-pacto teria deitado Urano e os detritos da colisão formado um segundo disco ao redor de seu equador. A influência gravitacional do disco mais interno teria feito com que o material do primeiro disco se espalhasse na forma de uma “rosquinha”, tecnicamente denomina-da toro, ao redor do equador de Urano. Com o tempo, o disco interno teria sido absorvido pelo planeta e o toro se acha-tado na forma de outro disco, a partir do qual se originaram as luas e anéis.

Esse cenário explica o eixo tomba-do de Urano, exceto por um detalhe: as luas formadas nas simulações gira-vam no sentido oposto ao da rotação de Urano, que é anti-horária. Para que o resultado do modelo computacional batesse com a realidade do sistema so-lar, os pesquisadores descobriram que Urano deveria ter sofrido outra colisão com mais um embrião planetário. Es-se choque deveria ter ocorrido antes daquele que teria entortado tanto o eixo do planeta como o disco que deu origem a suas luas e anéis. “Se acon-teceram duas colisões dessa ordem, deveria haver muitos embriões plane-tários do tamanho da Terra perto de Urano naquela época”, diz Gomes.

“É uma ideia interessante e inteira-mente provável”, comenta o astrofísi-co brasileiro Wladimir Lyra, do Museu Americano de História Natural, em Nova York. “As pesquisas mostram que o sistema solar era um lugar caó-tico em seus primórdios. Houve mui-ta interação entre os protoplanetas. Os oito planetas que vemos hoje são apenas os ‘vencedores’ de uma luta que ganharam à custa de algumas cicatrizes.” n igor Zolnerkevic

pEsquisa FapEsp 189 67

terrA 23o

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menor compactação do solo e acesso a terrenos íngremes são inovações na colheita de cana

dinorah Ereno

uma proposta inovadora para o plantio e a colheita de cana-de-açúcar, cujo objetivo é aumentar a produtividade em campo e reduzir custos, está em gestação no Laboratório Nacional de

Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, no interior paulista. Trata-se de uma máquina chamada de estrutura de tráfego con-trolado (ETC), capaz de executar todas as opera-ções mecanizadas do ciclo agronômico da cana. O equipamento consegue atingir áreas íngremes que as colhedoras de hoje não alcançam.

“A operação de colheita mecanizada como é feita atualmente utiliza basicamente a mesma tecnologia de 50 anos atrás, desenvolvida na Austrália”, diz o professor Oscar Braunbeck, da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas, coor-denador do projeto da ETC. Uma das vantagens da nova máquina, atualmente em testes num laboratório que imita as condições de campo de uma lavoura de cana, é reduzir o tráfego na área plantada e, com isso, a compactação do solo, prejudicial para o crescimento das plantas nas safras seguintes.

máquina versátil

CO2

gases poluentes

CH4

N2O

ColhEita Manual

queima da cana crua, utilizada antes da colheita para facilitar a entrada do boia-fria no canavial, libera para a atmosfera gases de efeito estufa, como dióxido de carbono, óxido nitroso, metano e carvão, prejudiciais ao ambiente e à saúde.

tecnologia _biocombustíveis

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19% dE dEClividadE

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ColhEita MECaniZada

sem a queima, além de não haver a liberação de gases do efeito estufa, a parte da palha que fica no campo funciona como um sumidouro de carbono. estudo identificou uma média de acúmulo de 1.500 quilos de carbono por hectare ao ano.

plantio dirEto

após colher a cana e sem arar o solo, máquina vai abrir em locais predeterminados sulcos, onde serão distribuídos os brotos para plantio, de maneira a aumentar a produtividade e reduzir as perdas com as mudas.

trabalho no campoconheça os diferentes tipos de colheita de cana e as vantagens da nova máquina

nova Máquina

equipamento articulado reduz o tráfego na área plantada e a compactação do solo, que estimula a erosão. mais largo do que as máquinas atuais, se mantém estável em áreas com até 19% de declividade.

19% dE dEClividadE

agropecuária

engenHaria

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70 novembro de 2011

Enquanto a ETC tem uma bitola (dis-tância entre as rodas) de 9 metros, as colhedoras atuais têm bitola de 1,6 a 2,4 metros. Em razão disso e de seu peso, elas só conseguem colher uma linha de cana de cada vez da plantação e provo-cam uma compactação de cerca de 60% da superfície do solo, que acaba preju-dicando o desenvolvimento da cultura. “A compactação estimula a erosão e di-ficulta a entrada da água no solo”, diz Braunbeck. Os 40% de terreno por onde as máquinas atuais não circulam são a área preservada, em que a cana consegue produzir. “Com uma bitola mais larga, a área preservada para plantio chegaria a 87%”, compara Braunbeck. “Reduzindo o tráfego pesado nos canaviais, abrimos oportunidade para o plantio direto da cana, como é feito com os cereais.”

A primeira versão do equipamento foi concebida para se adaptar à estrutura de mecanização atual. Assim, ele foi feito de maneira articulada, com tração e di-reção nas quatro rodas, braços que se recolhem para poderem ser transporta-dos na estrada e frentes de colheita que se posicionam para colher seis linhas de cana, sendo duas de cada vez. A direção ficará a cargo de um piloto automático com GPS, que será supervisionado por um operador.

tErrEnos íngrEMEsA ETC vai conseguir trafegar por áreas mais íngremes. “A primeira versão do equipamento que estamos desenvolven-do, por ser mais largo, consegue se man-ter estável em locais com até 19% de de-clividade”, diz Braunbeck. As colhedoras de hoje conseguem entrar em terrenos com declives de até 12%. “Acima disso, como são estreitas, tombam com relativa facilidade”, diz o engenheiro agrícola Guilherme Ribeiro Gray, ex-aluno da Fea- gri e um dos sócios da Agricef, empresa que participa do projeto.

Fundada em 2005, a empresa ficou abrigada até 2008 na incubadora da Unicamp, a Incamp. A Agricef já teve três projetos aprovados na modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Em-presas (Pipe), da FAPESP, e desde 2009 participa do projeto do CTBE, em que é responsável pelo desenvolvimento do módulo de colheita.

Braunbeck ressalta que não houve evolução no sistema de manejo agríco-la da cana na medida em que mudaram

princípio diferente do atual.” Em vez de uma colhedora que tem um divisor para separar as linhas dos canaviais – o que resulta em emaranhamento e quebra da cana –, a base da operação proposta é fixar a cana na máquina, depois disso ela é cortada na base, puxada e removida por tração para a parte superior, quando é picada em rebolos (pequenos pedaços) e transferida para o transbordo – veícu-lo de transporte da cana. “O separador que fica nas laterais do equipamento é sincronizado com a velocidade de deslocamento da máquina”, diz Gray. Ele levanta o colmo (caule) para o me-canismo puxador – com correntes ou esteiras – pegar a cana. A ideia é mexer o mínimo possível com a cana antes de ela ser cortada, para reduzir os danos às soqueiras (raiz que fica na terra para rebrotar) e as perdas no campo.

Quando os rebolos são transferidos pa-ra o transbordo, a proposta do projeto é colocar junto parte da palha e o restante ficará como cobertura do solo no campo. Essa cobertura ajuda a diminuir a tempe-ratura do solo, controla as ervas daninhas e reduz a evaporação de água. Atual mente, na maioria dos casos, toda a palha é joga-da no solo, pois como ela tem densidade muito baixa o custo do transporte acaba ficando alto. A proposta é levar a palha de carona com os rebolos, picada em pedaços pequenos de forma que se acomode nos interstícios da cana. O projeto da nova máquina tem como empresa parceira a Jacto, indústria de máquinas agrícolas e veículos elétricos com sede em Pompeia,

a perda nos canaviais está em torno de 10%, enquanto para os grãos é de 1,5%

as exigências ambientais, econômicas e sociais. A colheita, por exemplo, embora tenha passado por um grande avanço com a proibição gradual da queima da palha da cana no sistema manual, ainda utiliza máquinas concebidas na déca-da de 1950 na Austrália. “As máquinas para colheita de cana sofreram apenas algumas adaptações desde a concepção, enquanto a colheita de cereais teve gran-de avanço.”

O foco nos cereais tem razão de ser. A área plantada com cereais no mundo é de cerca de 700 milhões de hectares, enquanto a cana ocupa 22 milhões de hectares. “A perda durante a colheita mecânica nos canaviais hoje está em torno de 10%”, diz Gray. Para efeito de comparação, a perda na colheita de grãos é de cerca de 1,5%. “Para reduzir os da-nos nos canaviais estamos propondo um

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sistema de colheita feito com a máquina atual resulta em tráfego pesado nos canaviais

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no interior paulista, e apoio do Banco Na-cional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no valor de R$ 16 mi-lhões. Em quatro anos o equipamento tem que estar testado e funcionando e a empresa parceira tem mais dois anos para colocar o produto à venda.

ManEjo sustEntávEl O plantio direto da cana, em que a plan-tação é feita sem arar o solo, é uma das vertentes do projeto. “É um manejo mais sustentável, porque cada vez que se ara

o solo há perda, que terá impacto ao lon-go dos anos”, diz Braunbeck. A ideia é que a máquina abra sulcos em lugares predefinidos, onde serão depositados os rebolos na quantidade correta e com distribuição uniforme. Atualmente as máquinas os distribuem irregularmente. “A distribuição é muito ruim e mais de 50% das mudas morrem por competição entre elas.”

O CTBE tem também um projeto de exploração da agricultura de precisão, para aumentar a produtividade, reduzir os custos de adubação e os impactos am-bientais. O objetivo é fazer o manejo do solo personalizado. Nos canaviais deverão ser desenvolvidos sensores para medir propriedades do solo ou da planta. Com as informações dos sensores, as máquinas, ao se locomoverem, já tratariam o solo com os insumos necessários. Uma área de 100 hectares na Usina da Pedra, em Serrana, no interior paulista, está sendo utilizada para testes. Outros parceiros são a Em-presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a empresa Valtra, fabricante de tratores de Mogi das Cruzes, no inte-rior de São Paulo, além da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (USP) e a Unicamp.

Os estudos que resultaram no projeto da máquina agrícola tiveram início na década de 1990 e se estenderam pelos anos seguintes, quando Braunbeck, com apoio da FAPESP, fez pesquisas básicas sobre corte e limpeza de cana. Posterior-

mente, outros estudos, abordando aspec-tos da colheita mecanizada, foram feitos pelos sócios da Agricef sob orientação de Braunbeck. “Todo esse conhecimento serviu de base para o projeto atual”, diz o professor. Na sua avaliação, a mudança da colheita manual para a mecânica foi bem rápida, considerando o passado de 500 anos da lavoura de cana no Brasil.

No estado de São Paulo, principal produtor de cana brasileiro, um acor-do firmado em 2007 entre produtores, usina e governo, chamado Protocolo Agroambiental, determina a elimina-ção da queima da palha em 2014 em áreas mecanizáveis e em 2017 em todas as áreas com cultivo de cana. No resto do país, a legislação ambiental dá prazo até 2020 para acabar com as queimadas dos canaviais.

“Na conversão da colheita manual para mecanizada, há um duplo ganho ambiental”, diz o pesquisador Marce-lo Valadares Galdos, do programa de Sustentabilidade do CTBE, que fez um balanço completo de carbono do etanol da cana-de-açúcar no Brasil, estudo feito em parceria com pesquisadores da Esalq. “De um lado, quando os resíduos da ca-na não são mais queimados, deixamos de mandar para a atmosfera dióxido de carbono, mas também outros gases que contribuem para o efeito estufa e são ainda mais potentes, como o óxido nitroso”, diz Galdos.

O segundo ganho é que, ao manter a palha na lavoura, quando ela se de-compõe acaba sendo incorporada ao terreno e há um aumento no estoque de carbono no solo, muito importante para o ecossistema. “Identificamos uma média de acúmulo anual de 1.500 quilos de carbono por hectare com o sistema sem queima e mantendo a palhada no solo”, completa Galdos. “Há cerca de duas a três vezes mais carbono em uma camada de até 1 metro do solo do que em toda a vegetação.” Dessa forma há uma redução nas emissões de gases de efeito estufa. No balanço foi computado também o material particulado, a fuli-gem. “Esse material vai para a atmosfera e tem um efeito relacionado ao aqueci-mento global.” n

os projEtos1. desenvolvimento de um auxílio mecânico para colheita de cana-de-açúcar sem queima prévia – no 2004/14468-52. Controle automatizado do sincronismo entre a colhedora de cana-de-açúcar e o transbordo – no 2006/56581-83. implemento acoplado a trator para colheita de cana-de-açúcar sem queima prévia – no 2007/59163-5

ModalidadE1. 2. e 3. pesquisa inovativa em pequenas empresas (pipe)

Co or dE na dorEs1. efraim albrecht neto – agricef2. rodrigo fernando galzerano baldo – agricef3. guilherme ribeiro gray – agricef

invEstiMEnto1. r$ 430.251,88 (fapesp)2. r$ 35.954,21 (fapesp)3. r$ 12.491,00 (fapesp)

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maquete eletrônica da nova máquina com distância de 9 metros entre os eixos

artigo científicoGALDOS, M.V. et al. Net greenhouse gas fluxes in Brazilian ethanol production systems. Global Change Biology Bioenergy. v 2. p. 37-44. 2010.

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72 _ novembro de 2011

mais conhecido por abastecer as ais conhecido por abastecer as churrasqueiras, o carvão vege-tal no Brasil é responsável tam-bém pela produção de 30% do bém pela produção de 30% do ferro-gusa, a liga metálica que

dá origem ao aço utilizado em veículos, máqui-nas, navios, trens, cabos, entre outros produtos. No mundo essa porcentagem não chega a 1%. No mundo essa porcentagem não chega a 1%. Assim, parte da produção de aço feita no país é renovável, ao contrário do uso do carvão mineral, renovável, ao contrário do uso do carvão mineral, que exige a exploração de minas finitas, muitas vezes no subsolo, e é, no caso brasileiro, quase todo importado. O carvão vegetal ou o mineral são todo importado. O carvão vegetal ou o mineral são imprescindíveis para fornecer carbono ao ferro--gusa. O problema é que cerca de 50% da produ-ção nacional de carvão vegetal – para churrasco ção nacional de carvão vegetal – para churrasco ou para uso na produção de aço – ainda é feita de ou para uso na produção de aço – ainda é feita de forma rudimentar, em fornos muito poluentes fei-tos de tijolos, com a aparência de uma oca ou iglu, chamado meda ou rabo-quente, e muitas vezes utilizando madeira nativa. As soluções, inclusive a social, porque emprega, em muitos casos, crianças social, porque emprega, em muitos casos, crianças e mão de obra escrava, começam a aparecer como e mão de obra escrava, começam a aparecer como resultado de pesquisas de empresas e universida-des e da necessidade de se avançar na tecnologia de produção de carvão. de produção de carvão.

_siderúrgicas

novo sistema produz de forma limpa matéria-prima dentro de floresta de eucaliptos

Marcos de oliveira

Carvão vegetal sustentável

Uma delas vem da persistência, por mais de 20 anos, do engenheiro de produção Nilton Nunes Toledo, professor aposentado da Escola Politéc-nica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). Ele desenvolveu um sistema mais avançado e ambientalmente correto de produzir carvão ve-getal com geração de energia elétrica durante o próprio processo de gaseificação de restos de madeira e serragem, por exemplo. Além disso, o sistema dispensa o uso de caminhões na produ-ção, corte e transporte do eucalipto, cultura de reflorestamento melhor indicada para o processo de carvoejamento, embora também possa ser pro-duzido com capim-elefante e bagaços de laranja, cana, casca de arroz e outros resíduos.

“A usina de carvão deve ficar instalada dentro da floresta de eucaliptos, com um enfoque que abrange desde a forma de plantar, colher, ma-nusear e carvoejar com otimização do consumo de calor e uma nova maneira de resfriamento rápido, além do aproveitamento de subprodutos como o bio-óleo, o alcatrão e o ácido pirolenhoso, usados na indústria química e de cosméticos e que podem valer mais que o próprio carvão”, diz Nilton, que é atualmente diretor-presidente da Fundação para o Desenvolvimento Tecnoló-

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2 Etapas da usina

a madeira chega à usina pela monovia e as toras são inseridas nas retortas (1). elas seguem para o forno (2) onde é realizado o carvoejamento. o carvão pronto é colocado no caminhão (3). a fumaça gerada no forno é transferida para a área bioquímica (4) da usina. parte da energia da usina é gerada pela gaseificacão de resíduos (5)

1 tElEFériCo FlorEstal

na plantação de eucaliptos, a madeira cortada viaja até a usina por meio de um sistema chamado monovia, semelhante a um teleférico. os cabos de aço são presos a postes e ancorados nas árvores

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engenHaria

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gico da Engenharia (FDTE), entidade formada por engenheiros da Poli, que ficou responsável pela coordenação do projeto. Ele começou a estudar o assunto quando foi coproprietário, com outros empresários, de uma fazenda produtora de madeira nos anos 1980, na região do Vale do Ribeira, no interior paulista.

“Começamos vendendo madeira pa-ra embalagens, em paralelo passamos a estudar o que é fazer carvão e a montar vários tipos de forno que eram aquecidos por meio de maçaricos. Mas o sistema foi uma decepção, por problemas no processo como a demora excessiva para a madeira se transformar em carvão.” Desde os anos 1980, ele imagina desenvolver a segunda versão que foi finalizada recentemente. “Agora não penso em usar células de tijo-los, mas sim um túnel com o mesmo mate-rial para funcionar como forno. A madeira deve ser aquecida dentro de caixas cilín-dricas metálicas, chamadas de retortas, hermeticamente fechadas, sem a presença de oxigênio que pode alterar o rendimento do carvoejamento.” Elas entram rolando dentro do forno e, em média, em 10 horas, em temperatura ao redor de 400°C, a ma-deira se transforma em carvão vegetal.

A fabricação de produtos químicos que podem substituir os congêneres obtidos do petróleo é feita com a con-densação do vapor. Ele é levado para as torres de separação instaladas ao lado do forno onde os gases combustíveis vindos

compostos na usina é difícil, mas viável porque são processos clássicos.” O siste-ma de produção e o forno que recebe as retortas e possui um mecanismo proje-tado para a separação dos subprodutos e dos gases de aquecimento direciona-dos para a estufa de secagem da lenha são duas das três patentes depositadas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). A terceira é sobre o transporte da madeira feito por um sis-tema chamado de monovia, semelhante a um teleférico. As madeiras viajam do local de colheita até a usina em suportes que se movimentam ao longo da planta-ção de eucaliptos em cabos de aço presos a postes de dois metros de altura ancora-dos nas próprias árvores. “Esse sistema evita o uso de tratores ou caminhões para o transporte dos troncos até a usina”, ex-plica. Ele estima que a produção diária de carvão vegetal no novo sistema, que leva o nome de silvoquímico, será de 40 toneladas numa fazenda de 5 mil hecta-res e deve empregar 300 pessoas.

na comparação com os fornos ra-bo-quente, o novo leva vantagem em gastar 432 quilos a menos de

madeira para cada tonelagem de car-vão produzido. Da mesma quantidade de carvão é possível obter 333 quilos de subprodutos químicos. O projeto, depois de bem avaliado na fase laboratorial, pre-cisa de uma usina piloto, que deve custar cerca de R$ 2 milhões, para verificação da eficiência de todas as etapas. “Esta-mos buscando recursos para essa fase no meio empresarial”, diz. A implantação final da usina deve custar R$ 10 milhões. “Esse tipo de modelo industrial é usado em outros países e no Brasil já foi ten-tado no passado, nas décadas de 1970 e 1980, quando se fazia carvão somente com mata nativa, que era abundante”, diz o professor José Otávio Brito, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP.

“Após um certo marasmo tecnológico nos anos 1990, houve uma crescente reto-mada pela siderurgia a carvão vegetal no Brasil porque o país possui potencial para ser o grande competidor mundial na pro-dução do chamado “aço verde” obtido do ferro-gusa produzido com carvão vege-tal”, diz Brito. Em relação às tecnologias, algumas empresas como a Bricarbras, do Paraná, e a Ondatec, de Uberaba (MG), são exemplos de investimento no desen-

fornos de alvenaria no pará: sistema rudimentar que polui e muitas vezes utiliza mão de obra escrava e infantil

do processo de carvoejamento se juntam aos gases produzidos no gaseificador e colaboram para a usina ser autossuficien-te em energia. “A condensação é dividida em duas partes, uma fase oleosa de onde saem o alcatrão vegetal e o bio-óleo, uma mistura complexa de muitos produtos, e a fase aquosa, que produz o ácido piro-lenhoso, que pode ser transformado em metanol e ácido acético”, explica Nilton. O bio-óleo, passível de ser aproveitado na geração de energia elétrica, é um líquido escuro utilizado tanto em caldeiras para queima ou para uso na indústria química na fabricação de resinas, por exemplo. O alcatrão, outro tipo de combustível, tam-bém é matéria-prima para desinfetantes. O metanol é muito utilizado na produção de biodiesel e o ácido acético na fabrica-ção de solventes e tintas. “Produzir esses

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432 quilos a menos de carvão por tonelada é quanto o novo sistema da usP gasta

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volvimento de fornos para transformar madeira em carvão. A primeira no final dos anos 1990 começou a desenvolver um sistema em que o carvoejamento acontece em contêineres cilíndricos, apresentando bons resultados e diminuindo as emissões de gases, por meio de um incinerador, em relação aos fornos de barro ou alvenaria. “Mas esse sistema é muito caro para mé-dios e pequenos proprietários”, diz o pro-fessor Benedito Vital, do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Ge-rais. Com foco nessas empresas, Vital e a professora Angélica de Cássia Carneiro, desenvolveram um sistema semelhante ao usado por grandes siderúrgicas que, além de fazer o trabalho de carbonização de forma mais eficiente que os artesanais, queima os gases do processo. “É uma alta queima da fumaça em jatos de ar quente de mais de 1.000°C. Por meio de trocado-res de calor conseguimos resfriar o carvão rapidamente, para a venda do produto em tempo curto”, diz Vital. “Esse sistema está pronto para ser repassado às empresas.”

Outra novidade para o setor ainda está cercada de sigilo. A Ondatec, que nasceu na Incubadora de Tecnologia e Negócios da Universidade de Uberaba (Uniube), de Minas Gerais, está para lançar um novo forno de carbonização. Idealizada pelo professor Ricardo Naufel, do curso de engenharia elétrica, que também é dire-tor técnico da empresa, o forno terá co-mo diferencial a modelagem matemática no sistema de controle da carbonização que será muito preciso. “Será um forno inteligente”, garante Naufel. Segundo

ele, foram investidos R$ 10 milhões por investidores privados que não podem ser revelados antes do lançamento. “Instala-mos uma unidade piloto em Uberaba e durante um ano fizemos as observações sobre o sistema. Agora instalamos a pri-meira unidade industrial na cidade de Tietê, no interior paulista, para, no início, produzir carvão para churrasco. Depois vamos produzir unidades maiores desti-nadas às siderúrgicas.”

grande parte dos problemas rela-cionados às carvoarias atuais está na prática de alguns guseiros, em-

presas que produzem ferro-gusa de for-ma independente das grandes siderúr-gicas para venda a fundições e aciarias. Muitas vezes a madeira é oriunda de mata nativa. A produtividade é baixa e as condições de controle não são eficazes. Na outra ponta do setor estão algumas siderúrgicas instaladas no país, como a Vallourec & Mannesmann e a Aperam, ex-ArcelorMittal, ambas em Minas Ge-rais, e a Votorantim Siderurgia, no Rio de Janeiro, que utilizam carvão vegetal e possuem sistemas próprios de produção

desse insumo. Outras usinas utilizam o carvão mineral para a mesma função. Para suprir esse uso, o Brasil, nono pro-dutor mundial de aço, importou 15,9 mi-lhões de toneladas de carvão mineral em 2010, segundo a World Steel Association, ao custo de US$ 1,6 bilhão.

“A siderúrgica a carvão vegetal é uma peculiaridade da indústria siderúrgica brasileira”, revela o documento técnico Siderurgia no Brasil 2010-2025, um estudo publicado em 2010 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma or-ganização ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O documento aponta que o carvão vegetal é um tipo de biomassa, passível de ser produzido com vários vegetais como uma mina renovável. Se-gundo o pesquisador José Dilcio Rocha, da Embrapa Agroenergia, de Brasília, o “aço verde” possui um apelo ambiental na diminuição das emissões de gases do efeito estufa do setor siderúrgico. “Esta-mos carentes de políticas públicas e bons projetos, como o do professor Nilton, que possam elevar o setor de produção de carvão vegetal para um nível igual à produção de etanol”, diz Rocha. n

usina da aperam, em minas gerais, utiliza carvão vegetal produzido pela própria empresa e destinado à produção de aço

no Brasil, 70% da produção de aço é feita com carvão mineral. o restante pode ser considerado como aço verde porque é feito com material renovável

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76 _ novembro de 2011

percevejo-marrom da soja pode ser monitorado com feromônio sintético desenvolvido pela embrapa

s inalizadores químicos que servem de comunicação entre indivíduos da mes-ma espécie, os feromônios são usados pelos insetos na atração de parceiros para o acasalamento, demarcação de

território ou mesmo como alerta em situação de perigo. Quando sintetizados, podem ser aplicados em armadilhas no campo para capturar insetos com diferentes objetivos, como identificação, monitoramento populacional ou ainda controle populacional. No Brasil, seu uso ainda é restrito a poucas culturas, como maçã, café, citros e cana- -de-açúcar, mas o potencial de aplicação tende a se ampliar, como mostram resultados obtidos em pesquisa conduzida na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, que le-varam à síntese química do feromônio sexual do percevejo-marrom (Euschistus heros), considera-do a principal praga das lavouras de soja. Testada experimentalmente em campo, a tecnologia foi transferida para a empresa Isca Tecnologia, de Ijuí, no Rio Grande do Sul, que está na fase de experimentos em grande escala no campo.

No Brasil, os produtores usam cerca de 6 milhões de litros de inseticida a cada safra de soja apenas para combater o percevejo. “Além de causar um problema ambiental, inseticidas

_ controle de pragas

armadilhas biológicas

em excesso também acabam com os insetos benéficos para a plantação”, diz o pesquisador Miguel Borges, do Laboratório de Semioquí-micos da Embrapa, responsável pela pesquisa com os feromônios. A soja não é a única cultura atacada pelo percevejo-marrom. Milho, trigo e algodão também são alvos do apetite do inse-to. “Embora existam algumas plantas geneti-camente modificadas, elas foram estruturadas para controlar pragas mastigadoras, como as lagartas, e não sugadoras como os percevejos”, diz Borges. Por isso hoje eles ocuparam outros nichos além da soja.

As substâncias liberadas pelos insetos são, em sua maioria, compostos voláteis. Os percevejos machos, quando sexualmente maduros, liberam o feromônio sexual para atrair as fêmeas ao aca-salamento. Para viabilizar o seu uso no campo, as primeiras tarefas do pesquisador são identificar do que são constituídos esses sinais químicos, re-conhecidos prontamente pelas fêmeas da mesma espécie, e sintetizar o composto em laboratório. Os testes têm início após o reconhecimento e síntese das substâncias que compõem o buquê aromático. “Colocado dentro de uma armadilha no campo, o feromônio sintético tem que liberar o composto de forma idêntica à liberada pelo inseto, para atrair o Fo

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responde por uma produção anual de 67 milhões de toneladas no Brasil. “O dano que o percevejo causa na soja é irreversível”, diz Borges. Isso porque, diferentemente das lagartas, que comem apenas as folhas, esse inseto consegue perfurar a planta e sugar a seiva e as vagens. “Alguns produtores, no entorno do Distrito Federal, já tiveram perdas de 80% a 100% da plantação por conta desse inseto”, relata o pesquisador, que iniciou o trabalho com feromônios em 1989, du-rante seu doutorado na Universidade de Southampton, na Inglaterra. Atualmente o controle tem sido feito com a aplicação de inseticidas perto da época da floração da planta, sem levar em conta a dinâmica dos percevejos no campo.

MEnos insEtiCidaO feromônio sintético foi testado expe-rimentalmente em lavouras de Goiás, no entorno do Distrito Federal, em Mato Grosso e em Uberlândia (MG). “O uso das armadilhas com feromônio permite monitorar as populações de percevejos de forma mais precisa e evita o surto da praga principalmente na fase mais crítica de formação da soja, quando há o enchi-mento do grão”, diz Borges. “Em um dos experimentos feitos em Uberlândia, na área tratada com feromônios, a aplicação de inseticida caiu em 50%.” As armadi-lhas foram colocadas a cada 1 hectare de plantação e funcionaram perfeitamente. “Se forem colocadas a cada 200 metros, o custo-benefício vai ser muito grande.”

A parceria com a Isca foi fechada em outubro de 2010. Mas só agora, depois de encerrados os ensaios experimentais em campo, é que a empresa deu início a testes mais amplos com produtores de soja no Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, Minas Gerais e Distrito Federal. Os testes começaram em outubro deste ano, início da safra de soja, e se esten-derão até março, quando ela se encerra. “Vamos comparar as armadilhas com fe-romônios com a técnica batida de pano”, diz Rafael Borges, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Isca. A empresa também está desenvolvendo três tipos de armadilha, com maior poder de captura e retenção de insetos, e avaliando a melhor concentração dos compostos sintéticos. “O primeiro desafio é desenvolver uma armadilha com viabilidade comercial, que facilite a introdução da tecnologia no campo.” n dinorah Ereno

parceiro ao acasalamento”, diz Borges. Ao cair na armadilha, o percevejo fica preso e, com base no número de insetos encon-trado, dá para saber se há necessidade ou não de aplicação de inseticida. “Mesmo quando a aplicação for necessária, ela se-rá feita de forma seletiva, o que resultará em redução de gastos para o produtor, além de proteção para o trabalhador e para o ambiente”, diz Borges.

O único método existente para moni-toramento de percevejos é o chamado pano de batida, em que se usa um pano ou lona, com 1 metro de comprimento por 0,5 metro de largura, com suporte de madeira nas bordas laterais inserido entre duas fileiras de soja. As plantas são inclinadas e batidas sobre o pano, sendo feita então a contagem dos per-cevejos. Mas a redução do espaçamento entre as plantas, as grandes extensões das lavouras de soja e o porte elevado de alguns cultivares, principalmente em anos chuvosos, tornaram pouco prática a utilização desse método. A cultura, es-palhada por 16 estados e com área plan-tada superior a 24 milhões de hectares,

percevejo-marrom no campo (acima) e a armadilha que libera feromônio sexual, feita com telas por onde ele entra com facilidade, mas não consegue sair

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representação da molécula de dna: matéria-prima para confecção de reagentes e proteínas recombinantes

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bioquímica

biotecnologia

economia

genética

medicina

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empresa investe no desenvolvimento de insumos para a pesquisa científica

Yuri vasconcelos

se as próximas etapas do estudo con-duzido pela bióloga molecular Dulce Elena Casarini correrem conforme o programado, o primeiro kit para diag-nóstico preventivo de hipertensão feito

a partir de um exame de urina deverá ser coloca-do no mercado no próximo ano. A concretização do método, não invasivo, é o coroamento de um trabalho iniciado há mais de 10 anos, quando Dulce, professora do grupo de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), identificou uma nova forma da enzima conver-sora de angiotensina I (ECA) que funciona como marcador biológico da pressão alta. Seus estu-dos revelaram que animais hipertensos, ou com predisposição para desenvolver a hipertensão, secretam na urina a ECA de peso molecular 90 kDa (quilodáltons, unidade de massa atômica). O kit está sendo desenvolvido em conjunto com a kit está sendo desenvolvido em conjunto com a kitProteobras, uma empresa de biotecnologia sedia-da em Paulínia, no interior de São Paulo, coman-dada pelo engenheiro Paulo Roberto Pesquero e pelos irmãos biólogos moleculares, no conselho científico, professores João Bosco Pesquero, da Unifesp, e Jorge Luiz Pesquero, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A empresa obteve, no ano passado, um finan-ciamento de R$ 280 mil de um projeto do Pro-grama Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas

reagentes da saúde

_proteínas recombinantes {

(Pipe) da FAPESP, para desenvolver três pro-teínas recombinantes – produzidas a partir de genes clonados – e seus respectivos anticorpos para uso no kit. A expectativa de Pesquero é que o kit possa contribuir para a sua utilização em programas de políticas públicas. “Uma pessoa que possua o marcador de hipertensão poderá receber orientações sobre como melhorar sua qualidade de vida, adotando uma alimentação adequada, fazendo exercícios e se abstendo do fumo e de bebidas”, afirma Dulce. Segundo ela, um grupo de 1.150 voluntários com e sem história de hipertensão na família fez parte da primeira fase da pesquisa e os resultados obtidos em 2001 (ver em (ver em ( Pesquisa FAPESP n° 69) mostraram a efi-ciência do kit ao revelar o risco em pessoas com kit ao revelar o risco em pessoas com kithistórico familiar da doença e que apresentavam a ECA de peso molecular 90 kDa na urina. “Es-tamos terminando a segunda fase desse estudo na qual os mesmos pacientes são avaliados para sabermos quais os que apresentavam o marcador molecular e tornaram-se hipertensos.”

O kit será composto por uma proteína e seu anticorpo capaz de acusar a presença do marca-dor biológico da hipertensão e poderá ser usado no diagnóstico preventivo de lesões renais, prin-cipalmente as que ocorrem nos túbulos renais, estruturas microscópicas que integram o sistema de filtragem dos rins. Esse diagnóstico, segundo Fo

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produzido em laboratório por técnicas de clonagem”, afirma João Bosco. “Já clonamos a enzima conversora e agora estamos na fase de expressão e purifica-ção. Em seguida, iniciaremos a produção dos anticorpos para uso no kit.”

insuMos inovadorEs O desenvolvimento do kit de diagnóstico kit de diagnóstico kitpara hipertensão é um dos projetos da Proteobras, empresa criada em 2004, em Mogi das Cruzes (SP), para suprir o mercado brasileiro com proteínas re-combinantes de interesse socioeconô-mico e comercial e que, até então, eram apenas importadas. Passados sete anos, esse mercado ainda é incipiente no país e poucas empresas nacionais dominam a tecnologia de produção. No mundo, o mercado relacionado a reagentes, que incluem as pesquisas com proteínas, DNA e biologia celular, totaliza US$ 42 bilhões por ano e deve atingir os US$ 81 bilhões em 2016, segundo estudo publi-cado em abril deste ano pela empresa norte-americana BCC Research de pes-quisa de mercado.

“O Brasil é um mercado enorme, mas reprimido. É difícil estabelecer seu ta-manho, uma vez que todas as áreas de conhecimento, setores da economia e atividades envolvendo humanos e outros animais podem fazer uso desses produ-tos”, diz João Bosco. Proteínas recombi-nantes têm aplicação nos campos da saú-de, biologia, bioquímica, biotecnologia, microbiologia e agricultura, entre outros. Laboratórios de análises clínicas usam o material em diversos exames e trata-mentos de certas enfermidades genéti-cas como doenças ligadas ao processo de coagulação de hemofílicos e erros inatos do metabolismo. “Outro fator que limita o uso de recombinantes é a dificuldade de obtenção e purificação da proteína. O processo possui várias etapas e elevado grau de dificuldade”, diz João Bosco. Pa-ra ele, “o país tem hoje um número mui-to pequeno de profissionais experientes em técnicas que envolvem proteínas, o que dificulta avanços no setor”.

A Proteobras já domina o processo de produção, que se inicia com a definição da proteína de interesse que se pretende

Dulce, é “importantíssimo” para o pa-ciente diabético e auxiliará os médicos no tratamento precoce do rim para que a pessoa não desenvolva a chamada ne-fropatia diabética, que pode levar à in-suficiência renal. “Essa nova função para o nosso kit é resultado de um trabalho finalizado recentemente e cujos resulta-dos nos surpreenderam”, diz a bióloga. Uma patente sobre o kit já foi depositakit já foi depositakit -da nos Estados Unidos e nos principais países europeus e também, desde 2001, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Nos laboratórios da Proteobras, cujo faturamento anual é de R$ 200 mil, pro-duzindo reagentes para a rotina de labo-ratórios que trabalham com proteínas e DNA, o desenvolvimento do kit diagnóskit diagnóskit -tico encontra-se em estado avançado. “Nosso objetivo é produzir uma molé-cula que reconheça essa enzima conver-sora de angiotensina I, como se fosse um anticorpo. Mas para desenvolver essa molécula – que é uma proteína recom-binante – é preciso, antes, ter grandes quantidades da enzima. Esse material é

por dentro do processoconheça as principais etapas de desenvolvimento das proteínas recombinantes

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isolamento do dnapara a produção da proteína. ele pode ser extraído do material genético do sangue ou da saliva de uma pessoa, por exemplo.

amplificação do dna com o objetivo de aumentar o número de cópias.

o dna é, então, inserido em um vetor de clonagem, espécie de matriz molecular que serve de suporte para o dna de interesse.

o vetor é colocado dentro de um organismo que pode ser uma bactéria, uma levedura ou uma célula vegetal, de mamífero ou de inseto. o organismo funcionará como um biorreator para a produção da proteína.

o organismo é colocado numa placa com antibiótico que irá matar os organismos sem o dnade interesse (clones negativos) e selecionará os clones positivos, resistentes ao antibiótico.

os clones positivos são isolados e multiplicados no meio de cultura.

o organismo, então, expele a proteína no meio de cultura.

no final, é feita a purificação da solução para isolar a proteína de interesse. usos da proteína: teste de hipertensão – kit com kit com kitmarcador da pressão alta; enzima polimerase – usada em testes de paternidade.

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produzir. O primeiro passo é o isolamen-to do DNA a ser empregado que pode ser extraído do sangue ou da saliva de uma pessoa que tenha a proteína. Em segui-da, é preciso multiplicar o número de cópias desse DNA – processo chamado pelos cientistas de amplificação – com uso da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR, na sigla em inglês). Feito isso, pode-se iniciar a clonagem do DNA, que é inserido em um vetor de clonagem ou expressão, originando um vetor recombinante. O vetor é uma es-pécie de matriz molecular que serve de suporte para o DNA de interesse. Esse vetor recombinante é inserido dentro de um organismo – uma bactéria, uma levedura, uma célula de mamífero, de inseto ou de planta –, que funcionará como um biorreator, onde a proteína será produzida – ou expressada, no jar-gão científico. A escolha do organismo depende de fatores como quantidade, custo, o tipo de molécula que se quer clonar e a sua aplicação. O organismo é, em seguida, colocado numa placa com antibiótico que irá matar aqueles que não incorporaram o DNA, restando apenas os organismos positivos, resistentes ao antibiótico. Essa é a etapa de seleção. Os clones positivos são isolados e multipli-cados em um meio de cultura. No final do processo, o organismo expele a proteína e os cientistas procedem à purificação da substância. “Essa é a parte mais impor-tante do processo, que pode ser feita se-parando a proteína por tamanho ou por carga elétrica, entre outros métodos”, explica o professor da Unifesp.

Além de moléculas ainda em desen-volvimento, a Proteobras começará a

comercializar, em novembro, dois novos produtos para a comunidade científica: uma polimerase de DNA e um padrão de massa molecular de DNA. A polimerase é uma enzima de interesse biotecnológi-co com aplicações em diagnósticos, usa-da tanto no processo de amplificação do DNA – durante a produção de proteínas recombinantes –, por exemplo, como em testes de paternidade e outros exames moleculares feitos por laboratórios de análises clínicas e hospitais. O padrão de massa molecular também é empre-gado no desenvolvimento de proteínas recombinantes e serve para indicar se o tamanho do fragmento do DNA a ser clonado e selecionado pelo pesquisador está correto, portanto de ampla aplica-ção na biologia molecular. Segundo João Bosco, esse insumo não era, até então, fabricado no Brasil.

Para viabilizar o desenvolvimento de novas moléculas, a Proteobras tem con-tado, desde a sua criação, com recursos de órgãos de fomento à pesquisa. O pri-meiro financiamento público, obtido em 2005, foi um Pipe no valor de R$ 75 mil,

cujo objetivo era estabelecer um proto-colo de produção do hormônio folículo estimulante (FSH) bovino para aplicação em superovulação, técnica que visa ao aumento e à melhora do rebanho. Em 2009, a empresa obteve um financiamen-to de R$ 390 mil do Programa Subvenção Econômica da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para criar um proto-colo de produção de algumas proteínas recombinantes e desenvolver estudos de caracterização de proteínas.

Com forte espírito empreendedor, Jo ã o B o s c o Pe s q u e -ro também colabora na montagem da empresa Exxtend, criada em ou-tubro deste ano em par-ceria entre a Proteobras e o grupo alemão K&A. O objetivo do novo empreen- dimento é oferecer um reagente básico, chamado oligonucleotídeos muito usado por pesquisadores em biologia molecular e diagnósticos na área da saúde. Seus principais usuários são laboratórios de pesquisa, clínicas mé-dicas, hospitais, institutos de pesquisa e laboratórios

privados. A empresa alemã, presente em 80 países, é a segunda maior produtora do insumo no mundo. Ela entrou com a tecnologia e forneceu parte dos equi-pamentos utilizados na síntese de oligo-nucleotídeos. “Hoje não temos empresa produtora de oligos no país, apenas re-presentantes de grupos estrangeiros. Es-ses reagentes são importados da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia, levando, em média, de 15 a 20 dias para chegar às mãos dos pesquisadores.” A Exxtend vai disponibilizar o produto em peque-nos frascos via correio em cerca de dois dias para seus clientes. De acordo com João Bosco, não existem dados precisos sobre o mercado de oligonucleotídeos no Brasil, mas estimativas apontam que a demanda pelo reagente seja da ordem de 200 mil a 300 mil unidades anuais. Se todo esse material for comercializado, a empresa alcançará um faturamento de R$ 7 milhões – cada oligo custa cerca de R$ 25. “Com a Proteobras e a Exxtend, pretendemos produzir diversos insumos para a pesquisa no país que atualmente só são importados”, diz João Bosco. n

parceria com empresa alemã vai levar à produção do oligo, um reagente muito usado no país

protótipo do kit composto com proteína recombinanteque funciona como marcador da hipertensão

o proJetodesenvolvimento de kit diagnóstico de hipertensão através de marcadores moleculares envolvendo enzima conversora de angiotensina e isoformas – no 2009/51574-1

ModalidadEpesquisa inovativa em pequenas empresas (pipe)

Co or dE na dorpaulo roberto pesquero - proteobras

invEstiMEntor$ 280.000,00 (fapesp)

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a experiência de salvar judeus na alemanha nazista marcou a vida e a obra de guimarães rosa e sua mulher aracy

Carlos haag

ahistoriadora brasileira Mônica Schpun, da École des Hautes Étu-des em Sciences Sociales, de Pa-ris, começou a pesquisar a vida de Aracy de Carvalho Guimarães Ro-

sa (1908-2011), segunda mulher do escritor João sa (1908-2011), segunda mulher do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), para fazer justiça à história de Aracy, que, funcionária d o consulado história de Aracy, que, funcionária d o consulado brasileiro em Hamburgo, ajudou a conceder inú-meros vistos de entrada no Brasil a judeus, apesar meros vistos de entrada no Brasil a judeus, apesar das instruções em contrário de circulares secretas do Itamaraty nos tempos de Vargas.

A história nunca foi contada em profundidade e é comum atribuir todo o mérito ao escritor, pois e é comum atribuir todo o mérito ao escritor, pois ele é que teria o poder real de assinar os passa-portes. O projeto acaba de virar o livro Justa – Justa – Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus trocando Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus trocando a Alemanha nazista pelo Brasil (Record). Essa (Record). Essa tão esperada biografia é importante, pois falar de Aracy é não só descobrir a grande influência de Aracy é não só descobrir a grande influência que ela teve na obra do escritor, como voltar ao momento em que Rosa viveu na Alemanha, onde momento em que Rosa viveu na Alemanha, onde os dois se conheceram e viram juntos os horrores os dois se conheceram e viram juntos os horrores da guerra e do regime nazista. Ao mesmo tempo, da guerra e do regime nazista. Ao mesmo tempo, essa experiência permitiu ao escritor ir mais a fundo nas “maravilhas da cultura alemã”, usa-

A guerra dos rosas

aracy e rosa longe do frio

alemão em viagem à itália,

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da, mais tarde, como fermento de suas maiores criações, cujas expressões máximas aparecem na violência de Riobaldo e no dilema faustiano da trajetória do vaqueiro de Grande sertão: veredas, aliás, dedicado a “Ara”, apelido de Aracy. São, note-se, experiências contraditórias da mesma cultura que resultaram num dilema cuja resolu-ção levou Rosa a repensar sua escrita. O ponto em comum entre elas é Aracy.

Batizada de “Anjo de Hamburgo”, ela é a única mulher citada no Museu do Holocausto, em Israel, como um dos 18 diplomatas que salvaram judeus da morte, e a única brasileira merecedora dessa honraria, ao lado do embaixador Souza Dantas, que concedeu, desobedecendo ordens do governo varguista, vistos de entrada no Brasil para judeus franceses. Em 1982, ela foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, um título honroso dado por Israel para pessoas que ajudaram, com risco de vida, judeus perseguidos. Para ser merecedor da honraria, é preciso que várias testemunhas for-neçam informações sobre as ações do “Justo” que justifiquem sua nomeação. Aracy contou com inú-meras recomendações de pessoas às quais ajudou. Apesar disso, paira sobre ela um estranho des-conhecimento. Ainda mais grave é que há quem

xhumanidades _biografia

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literatura

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negue que teve qualquer importância na obra do marido, apesar das três décadas de convivência harmoniosa e amorosa. A biografia de Aracy traz elementos para mudar isso, não apenas resgatando sua ação corajosa na Alemanha nazista, como também jogando novas luzes sobre seu papel na vida e obra do escritor, incluindo uma pouco discutida influência sobre a atitude de Rosa diante da política, ponto controverso na sua suposta trajetória de “apolítico”.

os dois se conheceram em 1938, no consulado brasileiro da cida-de portuária de Hamburgo, para

onde o então jovem diplomata foi indica-do para seu primeiro posto, o de cônsul adjunto, após concluir seus estudos no Itamaraty. Foi também naquela cidade que adotou um novo hábito, celebrizado em Grande sertão: veredas, a escrita em cadernetas de anotações (herdado, como afirma, do colega Machado de Assis). O resultado é o chamado “diário alemão”, escrito entre 1938 e 1942, uma notável e moderna “colagem” de recortes de jor-nais, citações, anotações precisas sobre o horário dos alarmes de bombardeios, lista de livros, relação de temperos, co-mentários sobre suas constantes visitas ao zoológico, descrições de paisagens e climas, ideias para futuros romances e críticas às medidas contra os judeus.

Há, porém, entre esses elementos tão diversificados uma inter-relação que não escapa ao olhar dos especialistas, como arquivar, na mesma página, a notícia da morte de um líder nazista ao lado da ob-servação de que vendera seu carro. O texto completo, cuja publicação estava prevista para o final deste ano, permane-ce inédito, embargado pelas herdeiras de Rosa, embora esteja totalmente organi-zado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Quando o escritor desembarcou em Bremen, já separado da primeira mulher, que ficou com as duas filhas no Brasil, ainda não havia publicado nenhum li-vro, trazendo na bagagem a sua primeira obra, que pretendia revisar nas pausas do trabalho diplomático, então ainda chamado Contos e assinado por Viator. Uma mostra da importância do “diário alemão” são várias anotações “casuais” sobre os vários significados das “sagas”, forma germânica de contar histórias, e que foram fundamentais no formato e

saídas para o dilema. Uma, a ironia, como quando escreve ‘Heil Goethe!’, paródia da saudação hitlerista, após assistir ao Fausto. Outra era voltar-se para a natu-reza ao seu redor como território neutro que permite ao ‘eu’ evitar o confronto entre as imagens conflitantes dos ale-mães. A ‘paz’ da natureza ajuda a resistir à guerra que macula a imagem precon-cebida dos alemães.” E foi com Aracy que observou essa Alemanha perversa. “Passeio hoje com Ara. Num recanto vi uma praiazinha para crianças. Ondazi-nhas vêm lamber a praia de brinquedos. Mas para estragar toda a mansa poesia do lugar arvoraram num poste uma tabo-letazinha amarela: ‘Lugar de brinquedo para crianças arianas’.” Ou, ainda: “Pas-seio de automóvel com Ara. Até crianças de 4 anos, ou menos, com o distintivo amarelo, infamante!”. Aracy acaba por colocar em xeque o Rosa “apolítico”, algo que escapa a muitos historiadores.

na revisão do título da primeira criação. “Ele revisou o livro e, em 1946, deixou de lado o título Contos por Sagarana, um hibridismo da fusão de ‘saga’ com tupi ‘rana’, que significa ‘parecido’”, observa o professor de literatura Reinaldo Mar-ques, da UFMG, um dos responsáveis pela edição. “Isso é só uma parte do que se pode descobrir no diário. No todo, é o único testemunho de um escritor do seu porte sobre um dos momentos mais trá-gicos do século XX, signo contundente do esgotamento do projeto da moderni-dade”, nota o pesquisador.

Rosa chega à Alemanha admirador da cultura alemã. “Mas não ignora o nazis-mo e fica indignado com a perseguição aos judeus. Seu encontro com a cultura alemã torna-se ambivalente, um choque entre o passado, com conotações positi-vas, e um presente nefasto”, afirma o pro-fessor da UFMG Georg Otte, também da equipe do “diário alemão”. “Havia duas

aracy de carvalho em seu trabalho, no setor de passaportes do consulado, em 1939

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A reunião da biografia de Aracy ao lado do diário é uma trama complexa e ple-na de sutilezas que pode mudar a nossa forma de entender o universo rosiano, só compreensível quando se relacionam as várias facetas do escritor como diploma-ta, literato e um paradoxal observador da realidade crua da violência da guerra, que o leva, na contramão, para a fantasia, para a animalização do mundo como forma de sobreviver e digerir, pela negação, o mundo moderno. Com Aracy, teve, além da companheira de quase três décadas, uma leito-ra atenta e participativa em suas criações, bem como um modelo de coragem e posicio-namento diante das injustiças. Afinal, ao ser perguntada por que se arriscara ao conceder vistos a judeus ela respondeu: “Porque era justo”.

Curiosamente, será com quase as mesmas palavras que Rosa irá justificar a sua participação nas ações de Aracy e descrever o seu credo como diplomata anos mais tarde numa entre-vista. É possível perceber como Ara o ajuda a adotar sua atividade diplomática numa nova perspectiva e de como essa visão irá moldar a sua nova forma de perceber o mundo para transformá-lo em literatura de primeira modernidade. De um só golpe, Rosa absorveu o lado “bom” dos alemães, sua cultura, e o la-

tes. Chegou a transportar na mala do carro um judeu até a fronteira da Dinamarca, só escapando pela placa do corpo consular. Visitava judeus para levar mantimentos e dava conselhos sobre como repatriar bens para fora do país, guardando valores de judeus até o embarque para evitar que fossem roubados por nazistas. “Rosa di-zia que qualquer dia ela iria desaparecer. Afinal, era na casa dela que se abrigavam judeus fugitivos”, conta Tucci.

Mas era algo incoerente quando falava do papel do marido nas ações. “O Guima tinha um papel fundamen-tal. Era ele que assinava os passaportes”, disse numa entrevista. Em outra decla-rou: “Nunca tive medo, quem tinha medo era o Joãozinho. Ele dizia que eu exagerava, que estava pondo em risco a mim e a toda a família, mas

não se metia muito e me deixava ir fa-zendo”. Para Mônica, trata-se de uma questão de gênero. “Além de ele ser o diplomata, Aracy é citada como a viúva do Rosa. Mas o título de ‘Justa’, pessoal, foi atribuído somente a ela”, nota.

mais importante, porém, do que os créditos pela ajuda aos ju-deus é discutir a importância

de Aracy na vida e obra do escritor. Duas pesquisadoras, Elza Miné, da USP, e Neu-ma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará (UFC), estudaram as cartas, ainda inéditas, do casal. “Serás tudo para mim: mulher, amante e companheira. Sim, querida, hás de ajudar-me a es-crever os nossos livros. Tu mesma não sabes o que vales. Eu sei. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa, apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante’”, escre-veu Rosa em 1942. Em 1938, quando ela saiu de férias e ele ficou em Hambur-go, jurou: “Tenho sonhado o dia inteiro acordado com você. Reafirmo que serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas, todas, viraram sapos!”.

“Revela-se, nestas cartas, além do amor, a importância de Aracy como leitora primeira de Rosa”, nota Neuma. “O teu, o nosso Sagarana está quase pronto. Pegue um exemplar para nós. Seria uma alegria dupla: a chegada de ARA e SAGARANA. Mas em caso de

do “perverso” dessa mesma civilização, encontrando para esse dilema soluções que serão a chave de sua nova literatura. Nada disso, porém, seria possível sem a presença de Aracy ao seu lado naquele momento fundamental.

Como essas duas trajetórias se reú-nem? Aracy, filha de pai português e mãe alemã, aproveitou-se da nacionalidade materna para deixar o país com o filho após se separar do marido. Na Europa,

não enfrentava o assédio que as mulheres divorciadas sofriam no Brasil, vivendo em liberdade. Em 1935, com a interferência do chanceler Macedo Soares, conseguiu um emprego na divisão de passaportes do consulado em Hamburgo. Nascidos, Rosa e ela, no mesmo ano (Aracy fazia aniversário com Hitler em 20 de abril), logo que se conheceram se apaixonaram. “Fui ver casas com o cônsul adjunto!”, anota. Em um mês o tom esquenta: “Es-tive linda. Ele me ama muito, muito!”. Já podiam compartilhar segredos. “Sem ser diplomata, Aracy tinha um cargo admi-nistrativo estratégico, lidando diretamen-te com a concessão de vistos, ainda que sem autoridade para assiná-los, privilégio do cônsul-geral e de seu adjunto”, expli-ca Mônica. “Aracy ignorou a limitação do número de vistos concedidos aos judeus imposta pelo Estado Novo e continuou a prepará-los, facilitando o embarque de quase uma centena deles para o Brasil. Para que o cônsul-geral Souza Ribeiro assinasse os vistos, colocava-os entre a papelada e conseguiu passaportes sem o ‘J’ em vermelho dos judeus com amigos”, conta a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP), autora do recém-lançado Cidadão do mundo (Perspectiva), continuação de suas análises da diplomacia antissemita do regime de Vargas.

Forjava atestados de residência falsos, para poder atender judeus de outras cida-des onde havia diplomatas menos lenien-

fachada do consulado brasileiro em Hamburgo, que foi destruído na guerra

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Chegou a transportar judeus na mala do seu carro, aproveitando a chapa do corpo consular

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modo específico. “Havia mais temor dos alemães no Brasil, vigiados pelo governo. A explosão do antissemitismo internacio-nal foi acompanhada por uma indiferença quanto ao destino dos judeus. Isso incidiu mais nas restrições do que o antissemi-tismo das elites dirigentes nacionais, já que os judeus não foram reprimidos por Vargas”, analisa Mônica. Aqui, no lugar da degeneração, o estranho trazia progresso. “A mitologia nacional desvalorizava o ne-gro e valorizava o imigrante que pudesse reconstruir-se e fundir-se nas massas.”

Assim, sem desmerecer a coragem de Aracy, suas ações não eram um risco com os nazistas, que queriam se livrar dos judeus. O risco era o governo brasileiro. “Riscos corridos com gente como Souza Dantas que, submetido a inquérito, não sofreu sanções. O mesmo não aconte-

ceu com o ‘Justo’ português, o embaixador Aristides de Sousa Mendes, cônsul em Bordeaux, que concedeu vistos a mais de 30 mil judeus até ser destituído pelo regime de Salazar e mor-rer na miséria.” Nada disso di-minui a coragem e o filossemi-tismo de Aracy que, em 1950, em Paris com Rosa, reclamava da dificuldade de obter vistos para judeus, embora sem ne-nhuma função na embaixada. Esse caráter combativo ajudou Rosa a reforçar e moldar seu ideal de diplomacia. “Um di-plomata é um sonhador e eu jamais poderia, por isso, ser um político, que vai praticando atos irracionais. Talvez eu seja um político, mas desses que só jogam xadrez quando podem fazê-lo a favor do homem. O político pensa em minutos. Eu penso na ressurreição do

homem”, disse numa entrevista, estabe-lecendo uma inusitada separação entre diplomata e político.

“Ao falar sobre suas ações em Ham-burgo, dizia que como ‘homem do sertão’ não podia presenciar injustiças. A tirania do político era, para ele, injustiça. Para ele, a atividade dos Rosas em favor dos judeus não era exemplo de ação política, algo que o nazismo fazia, mas de ação di-plomática. Quando nada escapa da tira-nia, é preciso abrir uma brecha no muro da injustiça. Isso motivou a separação: a razão de justiça”, analisa a embaixa-

para rosa, o diplomata era um sonhador e jamais poderia fazer política se não fosse para defender o homem

tórios”. O que, segundo Mônica, revela que a motivação da medida seriam in-formações exageradas de representações diplomáticas que falavam numa “invasão de levas de semitas”. Além disso, o inte-resse do governo era atrair braços para a agricultura, para a qual eram reservados 80% dos vistos.

“Claro que houve racismo, mas não ha-via regras claras e tudo dependia da boa vontade do funcionário e de seus pre-conceitos pessoais. Os brasileiros eram diametralmente opostos aos nazistas, que queriam isolar os judeus. Aqui, o temor, e não só sobre judeus, era a formação de ‘quistos’ de imigrantes não integrados, por causa da política de Vargas que pre-gava a união dos imigrantes à sociedade nacional.” Era uma política migratória restritiva a todos e também aos judeus de

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perigo, joga fora o Sagarana e venha só a ARA, que é 300 bilhões de vezes mais importante para mim”, escreve em 1946. O resumo está em outra carta: “Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso”.

Alguém tão zeloso deixaria a amada tão exposta? Essa é a tese que Mônica contesta, na contramão de estudos que defendem o total antissemitismo do Es-tado Novo como política oficial e secreta. “A gestão da imigração judaica pode ser incluída num movimento maior como a discussão sobre a restrição aos japoneses, que antecedeu medidas contra os judeus. O segredo era normal num Estado auto-ritário e as críticas sofridas em 1934, por causa das medidas de imigração, levaram as autoridades a manter essas discussões, não só dos judeus, em sigilo”, observa.

Para ela, lei de cotas não foi interven-ção original brasileira, nem o país estava isolado nisso, com os EUA

nos precedendo em uma década. “As bases da política migratória restritiva, mesmo as étnicas, nasceram antes dos refugiados judeus.” A famigerada “circu-lar secreta 1.127”, sobre a entrada dos ju-deus, já afirmava que: “Por informações repetidamente recebidas das missões diplomáticas, o governo federal tem co-nhecimento de que, para o Brasil, se vêm dirigindo numerosas levas de semitas e que os governos de outras nações estão empenhados em afastar de seus terri-

aracy em seu apartamento em copacabana (1992)

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dora Heloísa Vilhena de Araújo, autora de Guimarães Rosa, diplomata. Só havia libertação no sonho. “Aqui se invertem os conceitos. Na verdade, a realidade foi a ação diplomática de Rosa, ao salvar vi-das; o sonho, ou pesadelo, foi o nazismo. Assim, em Hamburgo, o desligamento da política significou um ato político em seu mais alto grau de refinamento. Com ele, a política encontra seus limites e vira-se contra si mesma.”

Isso se apresenta de forma clara nas anotações do “diário alemão”. “Estou escrevendo na cama, ao som dos estam-pidos da Flak (artilharia antiaérea). São como socos retumbantes dados por pu-nhos enormes no bojo elástico do ar alto. Outros ribombam festivos. Uns tocam tambor”, anotou em 1940. “São registros nitidamente poéticos, apesar da fúria do momento. Para não sucumbir ao horror da guerra, os sons são alegorias de um gigante de ‘enormes punhos’. O texto rosiano vira uma fuga da ‘corriqueira problemática cotidiana’. Não aderir à crueza da realidade é critério impres-cindível para a sobrevivência”, obser-va João Batista Sobrinho, professor da UFMG e autor de O narrável da guerra e o céu de Hamburgo (2009).

o mesmo pode explicar as inúmeras visitas ao zoológico de Hambur-go, listadas no diário, momento

para reflexão, anotações e desenhos de animais. “A fixação na vida animal e na observação quase obsessiva da natureza alemã seria a proposta poética de Rosa de deslocar não só traços comuns da sobrevivência humana, mas também da ameaça de morte causada pela guerra. Nas anotações se animaliza a guerra, que se naturaliza, um esforço de diminuir sua ação destrutiva”, nota a pesquisadora da UFMG Eneida Maria de Souza, do grupo do “diário alemão”. “A ‘metaforização’ da guerra, graças à mediação animal, não é apenas um reforço da barbárie, mas, ao contrário, atração mútua e uma in-quietante familiaridade.” Escreve Rosa: “Estou trabalhando o último trecho de ‘O burrinho pedrês’. Mugiram as sirenes. Alarme!”. Essa é uma das muitas passa-gens “animalizadas” dos bombardeios, capazes de “tingir as nuvens com cores de zebus”, com “canhões se acelerando em tempo de grugulejo de peru irado”. “São associações que fazem a leitura do espe-táculo político como espetáculo sertanejo,

um ‘estouro da boiada’. É a metamorfose operada pelo sertanejo-escritor em meio às bombas. A leitura da guerra ocorre pe-lo olhar oblíquo do diarista-escritor, em-penhado na descoberta constante de uma linguagem capaz de transformar fatos em ficção, impressões pessoais em criações de linguagem”, diz Eneida.

Há mesmo a culpa pela impotência como em alguns contos do livro Ave, palavra: “O mau humor de Wotan”, “A senhora dos segredos” e “A velha”. Nos dois últimos, o narrador trabalha numa embaixada e suas personagens, mulheres, pedem ajuda para sair da Alemanha. O narrador nega o visto. “É uma nova forma diversa de falar sobre a barbárie nazista, pelas mulheres e não a partir dos líderes masculinos. Elas são pessoas comuns, abaladas pelos acontecimentos, vítimas impotentes, incapazes de controlar a história e sujeitas às decisões do regi-me”, analisa o historiador da USP Jaime Ginzburg, autor de Guimarães Rosa e o terror total (2008). “Não se pode salvar ninguém, embora o Brasil apareça como esperança de libertação. O narrador tam-

bém não controla o processo histórico e revela-se a limitação da sua capacidade de intervenção na violência da guerra.” Nos textos literários de Rosa há uma pro-blematização da atuação do Brasil (e do próprio escritor-diplomata) nos anos em que judeus tiveram vistos negados.

“Disso resulta a importância de anali-sarmos a reunião entre Rosa e Aracy na ajuda aos judeus. O diplomata convive com o escritor, à medida que o sujeito se volta tanto para as questões de política exterior como para a construção de um universo fabular. Foi a experiência do diplomata, com a mulher, que revelou a convivência entre o embaixador e o homem do sertão, valente e destemi-do”, avisa Eneida. “Também ajudou a construir a relação entre a natureza e o mundo da violência de seus livros. Uma prática nascida do contato com a cultura europeia em crise de guerra e distorção dos princípios de cidadania e liberdade, levando o escritor a desconfiar do apelo da racionalidade moderna, contamina-da pela destruição e ruína dos valores”, avalia a pesquisadora. n

o jovem casal posa para fotografia em Hamburgo, em 1939, distante dos bombardeios e dos canhões

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ao questionar o senso comum, o economista antônio barros de castro anteviu os rumos e as necessidades do brasil

oconhecimento não pode ter mor-daça”: esta frase, dita por Antônio Barros de Castro (1939-2011), define a trajetória profissional e pessoal do economista morto em agosto, víti-

ma de um acidente na laje de concreto que co-bria seu escritório, no Rio de Janeiro, ferindo-o mortalmente. Em seu computador, onde escrevia e que, por uma terrível ironia, não foi atingido, estavam anotações para a aula-conferência que iria proferir na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre o tema que, desde 2007, o fascinava: a China. No Brasil foi, aliás, um dos primeiros a perceber as dimensões do fenômeno asiático e pensar em como o país poderia apro-veitar as lacunas chinesas em seu favor. Estar à frente dos outros e questionar o senso comum eram suas marcas. Como historiador, foi o pri-meiro a mostrar que a agricultura não foi respon-sável pelo atraso da industrialização brasileira. Depois defendeu estratégias de crescimento de um governo militar sem se preocupar com a crítica de colegas à esquerda, que só previam catástrofes e estagnação. Antes mesmo de se fa-

_memória

o rebelde otimista

o economista antônio barros de

castro concede entrevista na

sede do bndes em 2005“

lar na atual ascensão da “classe C”, o economista já afirmava que ela era o centro de gravidade do desenvolvimento econômico, antevendo a sua entrada no mundo do consumo de forma positiva quando outros não acreditavam que seria a de-manda dessas classes, e não as reformas sociais, que colocariam o país em funcionamento. Era também um grande apologista da inovação e crí-tico da “preguiça” das empresas em investir na tecnologia e criar produtos novos e brasileiros.

“Era um intelectual na expressão plena do termo, que nos fará muita falta pelo brilho, pela originalidade, pela forma de nos instigar a pensar de forma criativa os problemas que temos pela frente”, afirma o economista Carlos Américo Pacheco, professor titular do Instituto de Eco-nomia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O que marcou o professor Castro foi a originalidade e uma forma diferente de pensar, de identificar aspectos a que os outros não davam atenção.” “Professor emérito, ele foi reverenciado ao longo de toda a sua vida como docente respeitoso da dignidade e compromisso essencial de ser professor. Foi brasileiro com B

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economia

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maiúsculo. Castro sempre pensou o mundo, a economia, a sociedade a serviço do sonho de uma civilização brasileira sem xenofobia, sem arro-gância, sem prepotência, como uma outorga de nossas qualidades potenciais”, lembrou o amigo de longa data, o economista Carlos Lessa. Foram colegas de turma na antiga Faculdade Nacional de Economia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, onde estudaram juntos entre 1956 e 1959. No futuro, Barros de Castro foi mestre de outros grandes economistas.

“Fui aluno dele na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em 1964, onde ele se destacava pela sua didática notável, pelo seu conhecimento e suas posições políticas de esquerda. Fomos colegas docentes na Uni-camp. Castro sempre sobressaiu por assumir posições que nem sempre eram comuns entre seus colegas economistas críticos, pois esposava um pensamento fortemente otimista. Sem dúvi-da, foi um dos grandes economistas brasileiros”, elogia o economista da Unicamp Wilson Cano. Curiosamente, o irrequieto “otimista” voltou-se para a economia, ainda adolescente, por causa

de uma crise financeira que atingiu seu pai, um fazendeiro de café em Paraíba do Sul, nos anos 1940. “Mais de uma vez chegou a faltar dinhei-ro para o colégio. Tenho a impressão de que foi assim que descobri esse pesado condicionan-te da vida que é, no nosso jargão, a ‘restrição orçamentária’. Desde cedo comecei a ler sobre economia agrícola. Era o apetite pelos problemas econômicos nascendo”, afirmou no livro Conver-sas com economistas II (Editora 34).

A experiência o levou a evitar os números frios e a refletir os problemas econômicos no longo prazo, num viés humanista que cultivou a partir dos 16 anos, quando começou a devorar livros de filosofia de Sartre e Camus. Por isso, após se formar economista, foi cursar a Faculdade de Filosofia, onde ganhou uma bolsa de estudos da Rockefeller Foundation e foi para a London School of Economics. Lá, dizia, dava mais aten-ção às aulas do filósofo da ciência Karl Popper: “Só estudei marginalmente economia”. Numa preleção de Popper, o brasileiro, tímido, deu suas opiniões e encantou o mestre, que o convidou a juntar-se ao seleto grupo de 11 alunos. “Eu era w

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o único bárbaro, o único ignorante no meio daquela gente com Ph.D.” A expe-riência foi marcante. “Por influência se-guramente de Popper, na minha visão de mundo, o ‘faro’ e a sensibilidade contam muito no avanço do conhecimento. A ló-gica e os dados servem para questionar. O que produz é a imaginação.”

Algo que nem sempre encontrara na faculdade brasileira. “Meu curso de economia foi feito numa escola de to-tal insulamento, com professores con-servadores, numa redoma onde não se falava da Cepal ou do debate Roberto Simonsen versus Eugênio Gudin. Era uma formação duplamente anacrôni-ca: não tinha a ver com o país febril de JK, nem com a teoria convencional da época. O movimento político era ínfimo dentro da escola e eu tinha uma tendên-cia de esquerda, sem conseguir tradu-zi-la numa reflexão alternativa sobre o Brasil.” Em Londres teve suas primeiras experiências políticas e, quando voltou ao Brasil, em 1962, teve um verdadeiro choque com o Brasil, “que encontrei ab-solutamente politizado”. Reencontrou Lessa e Maria da Conceição Tavares e foi lecionar com eles no curso BNDE-Cepal, onde foi convidado, ao lado de Lessa, a escrever Introdução à economia: uma abordagem estruturalista (1967).

Naquele momento, intelectuais bra-sileiros questionavam o pensamento econômico tradicional, se recusando a adotar teorias estrangeiras que não davam conta da realidade nacional, bem como do modelo preconizado pelo Par-tido Comunista Brasileiro. “Eu me iden-tificava com o Caio Prado Jr. pela sua rebeldia, pelo seu pensamento crítico, que sempre questionava o que lhe ha-viam ensinado.” Em “Agricultura e de-senvolvimento no Brasil”, publicado em Sete ensaios sobre a economia brasileira (1969), por exemplo, na contramão da época, afirmava que a agricultura não foi um freio à industrialização nacional. Como decorrência, não havia necessi-dade de grandes transformações no sistema de acumulação brasileiro. No livro afirmava que o sistema econômi-co nacional era capaz de se expandir sem reformas sociais. “Era o avesso das teses ‘estagnacionistas’, obsessão da esquerda. Eu não via esgotamento na industrialização brasileira e acredi-tava que estávamos prestes a retomar o crescimento. Era a última coisa que

Mais inovação e nova estrutura produtiva

três contribuições de Barros de Castro para a compreensão da economia brasileira

1 defendeu que embora a indústria tenha passado bem pelo teste da abertura da economia, há limites derivados das respostas espontâneas das empresas. mostrou que, apesar de haver muitas empresas já de classe global, em muitos casos elas têm estratégias pouco inovadoras, dando maior atenção às suas funções produtivas

a esquerda queria ouvir em plena dita-dura, convencida que o país caminhava para uma crise profunda.” O desconfor-to de muitos colegas cresceu quando Barros de Castro analisou o equívoco da esquerda, para a qual o consumo dos setores de baixa renda não era suficien-te para viabilizar o crescimento da pro-dução. Pensava-se que os bens duráveis integravam apenas a cesta de consumo das classes médias e altas, um engano compartilhado, de início, por ele. “Não nos dávamos conta de que os duráveis já eram consumidos pelo operariado industrial. Muitos, obcecados pela má distribuição de renda, ignoravam a di-nâmica da oferta e não acreditavam no funcionamento do capitalismo entre nós.” Em artigos como “O mito do de-senvolvimento econômico segundo Fur-tado” (1979) ou no livro O capitalismo ainda é aquele (1979), Barros de Castro mostrou que o crescimento não era li-mitado pela dificuldade de incorporar novos consumidores ao mercado. “Isso ocorre sem que a distribuição de renda tenha sido corrigida. Somos campeões da desigualdade, mas as diferenças relativas não têm por que congelar o consumo dos pobres.”

CírCulo virtuosoO economista foi pioneiro ao propor um modelo de crescimento via consumo de massas e acreditava na possibilidade de um círculo virtuoso de crescimento com o aumento de investimentos e de produ-tividade aliados ao aumento nos salários dos trabalhadores, rompendo a demanda reprimida. “Há uma tendência de que a

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que respeito que a privatização virou a salvação de empresas sucateadas. Passei a apoiá-la, sem fazer dela um objetivo em si, que, para mim, deveria ser trans-formar as empresas públicas em líderes privadas da economia.”

“Seu olhar sobre as estratégias das empresas se distanciava da vala comum. Alguns só viam modernização passiva e uma especialização regressiva, enquanto outros glorificavam a abertura da eco-nomia e o aumento da produtividade. Barros de Castro viu avanços no que cha-mou de segundo catch-up da indústria brasileira”, nota Pacheco. “Mas temia riscos, em especial na estratégia pouco inovadora das empresas, presas apenas à mudança de suas funções produtivas, presas ao passado.” Criticava a acomoda-ção à mera capacidade de fabricar, insis-tindo para que as empresas inovassem, adaptando produtos para consumidores de baixa renda, o que o levou a obser-var o fenômeno chinês. “Desde cedo as empresas chinesas se voltaram para a massa do seu país, em vez de disputar as classes médias e altas com multina-cionais. Usando a tecnologia, revisaram processos e produtos, o que resultou na revolução dos preços chineses. Agora não são só os pobres chineses que con-somem, mas os pobres brasileiros, os africanos etc. É um novo paradigma”, acreditava. Para ele, o “efeito China” precisava ser compreendido para mudar o modelo brasileiro. “O Brasil precisa se transformar estrutural e historicamente, pois estamos ingressando num mundo sino-cêntrico de onde derivam deman-das e ofertas radicalmente diferentes daquilo com que o país se defrontava até recentemente.” Alertava: “Não tem que melhorar, tem que mudar. Otimização a China faz melhor”.

“Ele queria entender a experiência chi nesa para mapear os desafios que co locava para o desenvolvimento do ca -pitalismo, em especial o brasileiro. Sua morte prematura é a perda de um gran de hum anista, num momento em que o país necessita de contribuições pa ra conso-lidar um desenvolvimento equi librado econômico e social”, observa Claudio Sal vadori Dedecca, professor do Ins-tituto de Economia da Unicamp. “Era um intelectual de grandes insights, no sentido de que ‘o que produz é a imagina-ção’. Ele despertava o desejo de refletir”, avalia Carlos Pacheco. n Carlos haag

missão do intelectual é explicar o fracas-so: para muitos, períodos de crescimento eram apenas suspensões momentâneas do destino.” Ganhou assim o rótulo de “otimista”. Mas a publicação de Econo-mia brasileira em marcha forçada (1985), em que defendia, com ressalvas, a po-lítica econômica do governo Geisel do II PND (Plano Nacional de Desenvol-vimento), rendeu muitas dores de ca-beça. “O plano era ousado e pertinente, ao contrário do populismo da direita li-beralizante do Chile e da Argentina na época. Lá foi um fracasso. Aqui, o PND gerou hidrelétricas e fábricas.”

“Ele viu o que não vimos. Pouco preso às conjunturas, profundamente estrutu-ralista e um economista do mundo real, ele foi buscar outra interpretação dos im-pactos do II PND. Não que concordasse com as consequências do endividamen-to ou que não fosse um crítico ácido do autoritarismo, mas queria entender que rupturas haviam sido postas em marcha com o plano e que permitiriam ao Brasil trilhar novos caminhos, depois de sana-da a crise da dívida”, observa Carlos Pa-checo. Colegas como Lessa e Conceição Tavares o criticaram, bem como os novos colegas da Unicamp, universidade onde fez seu doutorado, em 1977, e lecionou durante os anos 1970, trocando-a pe-la UFRJ em 1980. Em 1993, assumiu a presidência do Banco Nacional do De-senvolvimento Econômico e Social (BN-DES), durante o governo Itamar (voltaria à instituição, em 2004, como diretor e assessor da presidência). “Havia uma desconfiança de que eu estaria travan-do a privatização. Aprendi com pessoas

3 defendeu que o brasil terá de se reinventar para ser bem-sucedido em uma economia mundial mudada pela China. diante da competição chinesa, não adianta proteger setores industriais para que fiquem um pouco mais sofisticados, porque os asiáticos fazem o mesmo com maior velocidade. não adiantar fazer uma política industrial presa ao passado

2 indicou que os interesses presentes, segundo ele, já estabelecidos em nossa estrutura industrial, às vezes impedem o país de avançar. o crescimento funciona, nesse caso, como um anestésico. não raro, mudar a estrutura produtiva passa ao largo do interesse concreto das lideranças industriais

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pioneirismo “esquecido” de warchavchki é revelador das tensões da vanguarda nacional

a nova morada do modernismo

num certo dia (1948), o arquiteto Lú-cio Costa anunciou que a arquitetura moderna brasileira nascera no Rio em 1936, fruto da genialidade de Oscar Niemeyer no projeto do prédio do

Ministério da Educação e Saúde. A partir de então, a história da arquitetura jogou para segundo plano aquele que era o ícone da construção vanguardis-ta: Gregori Warchavchki (1896-1972), ainda que, uma década antes dos cariocas, ele já preconizas-se uma arquitetura em compasso com os novos tempos, de linhas puras, sem adereços inúteis e que seria adequada ao país. Mesmo Mário de Andrade, que, em 1928, festejava seu pioneirismo, nos anos 1930 passou a atribuir a notoriedade do arquiteto apenas ao seu isolamento.

“Desde Lúcio Costa, a obra de Warchavchki foi considerada um esboço individual, sem papel decisivo na constituição da nova arquitetura, uma figura menor que teria preparado o terreno para Niemeyer, este sim capaz de transmutar o estilo internacional em algo instintivamente adequado à cena nacional”, observa José Lira, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni-versidade de São Paulo (FAU-USP), autor da pes-

quisa agora transformada em livro Warchavchki: fraturas da vanguarda (Cosac Naify), que contou com apoio da FAPESP. “Mas sua obra rompeu a prática acadêmica e a versão nacional do neocolo-nial, inspirando não apenas uma nova geração de arquitetos, mas a cultura e a sociedade brasileiras em processo de modernização.” Para Lira, por ser pioneiro, ele passou para a história da arquitetura como um episódio deslocado, fora do tempo e do espaço, avulso e ineficaz. Ou, nas palavras do pro-fessor da FAU-USP Carlos Lemos: “Warchavchki não fez prosélitos e se tivesse dependido dele a arquitetura moderna paulistana teria fenecido ao nascer”. “Durante décadas, ele foi injustiçado pelos arquitetos brasileiros que diziam que ele encarnava uma modernidade relativa na arquite-tura, só iniciada com o MEC, esta sim uma obra pública e que daria início ao modernismo de nossa arquitetura. Mesmo a escala ou o campo privado da sua atuação era olhado como algo negativo”, analisa a historiadora Aracy Amaral, autora de Artes plásticas na Semana de 22 (Editora 34).

“Embora elo fundamental entre arquitetura e modernismo, ele é tão onipresente quanto mal conhecido.” Para Lira, ele não foi o “intruso” li-

_ cultura arquitetônica

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tetura integrada ao mundo moderno, à indústria; o arquiteto como leitor lúcido da realidade e de suas limitações econômicas; ruptura com o pas-sado; uso de novos materiais e técnicas”, observa Agnaldo Farias, da FAU-USP e autor da pesquisa A arquitetura eclipsada: notas sobre Warchavchki (Unicamp, 1990). “Para ele, a arquitetura deveria refletir o espírito de seu tempo, num circuito en-tre razão e máquina. Depois revelaria a natureza política do seu projeto: a construção de casas e fábricas em larga escala, propiciando, com um mínimo de custo, um máximo de conforto, em especial para os mais pobres.” Era o homem cer-to no lugar e momento exatos. O modernismo paulistano, amadurecido, questionava o ímpeto inicial de “destruição e guerra” em favor da ação positiva, de “construção”. Mas, desde o início do movimento, as ideias sobre arquitetura não acompanhavam o vigor do debate literário. “En-tre os anos 1920 e 1930, viviam no impasse entre a defesa do neocolonial, visto, porém, como ana-crônico por alguns, e o moderno ‘estrangeirado’. Se o primeiro não atendia à demanda da socie-dade industrial, o outro subestimava o passado cultural brasileiro”, analisa o historiador Ricardo

casa da rua itápolis, em são paulo, 1930, vista dos fundos do terreno, um exemplo notável da nova arquitetura

gado às vanguardas internacionais e ao universo refinado dos salões, nem o imigrante solitário que trouxe a vanguarda da Europa para São Paulo. “Ele chegou ao Brasil, em 1923, sem grandes re-ferenciais vanguardistas. Foi no espaço dinâmico de trabalho, cultura e sociabilidade de São Paulo que esboçou sua arquitetura, provavelmente com a ajuda do concunhado, o pintor Lasar Segall, que o apresentou aos modernistas”, diz o autor. Tam-bém foi fundamental seu trabalho na Companhia Construtora de Santos, de Roberto Simonsen. “Ali teve contato com o ambiente empresarial inova-dor, a construção taylorizada, e assimilou a con-ciliação entre ecletismo e tecnologia moderna. Por um paradoxo, foi num país industrialmente periférico que conheceu um polo de vanguarda engajado na reorganização produtiva do capital”, analisa Lira. Em 1925, funcionário da empresa, escreveu para um jornal da colônia italiana o artigo “Intorno all’architettura moderna” (re-publicado no Correio da Manhã como “Acerca da arquitetura moderna”), primeiro manifesto de arquitetura moderna do Brasil.

“Foi seu primeiro texto, mas os axiomas funda-mentais o acompanhariam: defesa de uma arqui-r

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Forjaz Christiano Souza, autor de O debate ar-quitetônico brasileiro: 1925-1936 (USP, 2004). “A sintonia de Warchavchki com as tendências da arquitetura internacional despertou o interesse dos modernistas por ele, que deu o complemento arquitetônico de que eles careciam e antecipou, em metonímia, o novo movimento construtivo dessas vanguardas”, nota Lira. “Suas primeiras casas encenavam a passagem da ruptura à dilui-ção do espírito de vanguarda, a imbricação entre ousadia formal e pesquisa local, a libertação do oficialismo acadêmico e uma série de recalques históricos, dramatizando o processo ocorrido havia pouco nas artes plásticas e literatura.”

“Mesmo com o ambiente da época de valori-zação da produção nacional (como o movimento neocolonial na arquitetura), associar a produ-ção moderna que se pretendia universal a uma manifestação nacional, buscando adaptá-la às condições locais, é prova do pioneirismo de War-chavchki”, analisa Monica Junqueira de Camargo, coordenadora do Núcleo de Referência da Cul-tura Arquitetônica Paulista (USP). O arquiteto, porém, arriscou-se ao introduzir seus modelos de sociedade industrial num Brasil cuja renova-ção arquitetônica era uma incógnita. Um símbolo disso foi a casa que construiu para morar, na rua Santa Cruz, vista como a primeira obra da nossa arquitetura moderna, embora fosse levantada em alvenaria de tijolos, disfarçados para pare-cer concreto, tivesse piso de tábuas corridas de madeira, um telhado convencional com telhas de barro e mesmo um alpendre “saudosista”, como diz Lemos. “Muitos frisam as discrepâncias entre a casa, de caráter ‘impuro’ e com concessões ao passado, e o discurso do arquiteto”, nota Lira. “Mas é a obra mais emblemática da virada arqui-tetônica brasileira. Urbana e suburbana, moderna e clássica, inovadora e convencional, a casa repre-senta matrizes compositivas e, ao mesmo tempo, a negação de todos os estilos. Essas discrepâncias visuais, concessões e desvios, em vez de atestarem uma defasagem, aludem às possibilidades concre-tas do moderno em solo brasileiro.”

CoMproMissosPara o autor, as tensões da casa revelam os para-doxos do processo de modernização da cultura e da arquitetura brasileiras pelos compromissos intencionais, os equilíbrios de circunstância e os episódios não resolvidos. Warchavchki desafiou as críticas, alegando que a cidade carecia de mão de obra e materiais apropriados e continuou a divulgar suas ideias em prol da nova arquitetura, que incluíram uma Exposição de uma casa mo-dernista (1930). O esforço rendeu frutos e seus projetos não se limitavam mais a grupos seletos, encantando também parte da velha burguesia paulistana. Foram tempos de aceitação pelos

O acerto dos ponteiros da arquitetura brasileira com o re-lógio da vanguarda internacional não se deu da noite para o dia. Tampouco foi resultado da obra e da vontade de um arquiteto “nacional”. Mas foi em São Paulo que o imigrante russo judeu Gregori Warchavchik (1896-1972), nascido na cosmopolita cidade de Odessa, reviu a formação acadêmica recebida em Roma e lançou as bases da arquitetura moderna no país. Visíveis, ainda que fraturadas em razão da aclima-tação local, elas ganharam um marco simbólico ampliado com a Exposição de uma casa modernista, inaugurada em março de 1930. Construída com a intenção de ser alugada, a casa foi apresentada ao público como uma homenagem de Warchavchik à Pauliceia, cujo ambiente artístico e social, em suas palavras, lhe “permitira realizar, em tão pouco tempo, várias construções dentro da nova orientação”. Decorada com esculturas e telas dos expoentes do modernismo, local e internacional, ela atraiu mais de 20 mil visitantes. Com a exposição, encerrava-se, segundo Oswald de Andrade, o “ciclo de combate à velharia, iniciado por um grupo audacioso, no Teatro Municipal, em fevereiro de 1922”. Se você, leitor, chegou até aqui deve estar se perguntando qual é a novidade, não de Warchavchik, mas da resenha em

Warchavchik, arquiteto da metrópole heloisa pontes

a célebre casa pioneira do arquiteto russo na rua santa cruz, em são paulo

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curso. E com razão. Pois a abertura deste texto ecoa a de outras maté-rias que foram publicadas na gran-de imprensa a partir do lançamento em abril deste ano do livro de José Lira. Assim, se você é um leitor in-teressado no debate cultural, com certeza já está a par do assunto. Mas talvez esteja menos familia-rizado com o andamento analítico de Fraturas da vanguarda.

A visibilidade e o prestígio an-gariados por Warchavchik devem muito à inventividade de sua produ-ção. Mas seriam impensáveis sem a inserção no poderoso clã da família Klabin a partir do casamento, em 1925, com Mina, dois anos depois de sua chegada ao país. Viajada e bem educada, Mina foi bem mais que uma dona de casa requintada. Sobressaiu como paisagista, proje-tando os jardins que compunham as casas desenhadas pelo marido e, por ser a primogênita de uma família de mulheres, ao perder o pai, encontrou em Warchavchik a âncora necessária para assegurar a posse e a ampliação do patrimônio ameaçado na disputa sucessória pelas frações masculinas

modernistas e de ascensão social entre as fa-mílias de imigrantes enriquecidos. Nesses anos dourados conheceu Le Corbusier e foi convidado por Lúcio Costa (com quem construiu várias casas) para lecionar na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio. A chegada do Estado Novo, em 1937, trouxe, porém, a ascensão dos arquitetos cariocas, privilegiados pelas encomendas esta-tais, o desaparecimento da clientela paulistana e a exacerbação do nacionalismo, do bairrismo, da xenofobia e do antissemitismo, antítese de seu pensamento. Warchavchki afastou-se da cena arquitetônica até o quase ostracismo. Nos anos 1950, suas obras, até então na vanguarda, eram acusadas de mera exportação de ideias. A saída foi entrar no mercado. “Até chegou a copiar para um cliente amigo a arquitetura da casa-grande da heroína de … E o vento levou”, conta Carlos Lemos. “Ele se isola e é efetivamente isolado. Passa a projetar edifícios na área central e casas aos montes em Santos e no Guarujá, ao gosto da nova clientela endinheirada. “Ele articulou sua volta à arquitetura fora do universo das vanguar-das, apelando diretamente ao novo capital de in-corporação e às elites de gostos colonizados pelo

simbolismo associado ao moderno. Entrou na nova economia da urbanização como empresário da construção civil”, diz Lira. “Mas, gostemos ou não dos resultados, foram empresas como a dele que efetivamente produziram a nossa cidade.”

“Como precursor ele colheu menos do que semeou. O ciclo paulista conduziu o processo de introdução da arquitetura contemporânea, emprestou ensinamentos ao grupo do Rio, mas as ideias de Warchavchki perderam vigor, inca-pazes de alimentar novos arquitetos e assegurar uma tradição ao movimento moderno”, acredita Ricardo Forjaz. Mas a fera não fora domada. “Em 1958, ele alertava que era preciso superar a con-tradição entre obras individuais e a realidade do crescimento desordenado das cidades brasileiras, colocando o urbanismo como palavra de ordem”, afirma Carlos Ferreira Martins, da FAU-USP. “Ele fez uma crítica das conquistas arquitetônicas, de não participarem na transformação dos cen-tros urbanos. Dizia que elas atenderam a uma classe social e não se esforçaram em resolver o problema da habitação do homem comum. Hoje a situação já identificada por ele só se agravou”, nota Monica. n Carlos haag

retrato de gregori warchavchki (sem data)

da parentela. Não só ela como a mãe e as irmãs, uma delas, Jenny, casada com Lasar Segall. Na divisão do tra-balho familiar coube ao arquiteto a condução dos negócios ligados ao expressivo patrimônio fundiário. E se isso assegurou a Warchavchik um notável capital social – sinali-zado pela rápida incorporação nos círculos ilustrados da cidade e pela clientela que procurava seus servi-ços –, rendeu-lhe também a posição incômoda do artista de vanguarda relegado, ofuscado pelos “cariocas”, Lúcio Costa e Niemeyer, principais responsáveis pela internacionaliza-ção da arquitetura brasileira.

Premido pelas constrições deri-vadas do relevo que assumiu na vida econômica da família, o arquiteto que protagonizou o início do modernismo arquitetônico entre nós foi aos pou-cos arrefecendo o potencial de inven-tividade e a tensão entre a concepção arrojada e as condições efetivas de sua aplicabilidade que marcaram o início de sua trajetória no país. Tal nexo explicativo é apenas sugerido no livro de José Lira. E não poderia ser diferente, visto que o autor se

aproxima de Warcha-vchik não com a lâmina afiada do sociólogo trei-nado na correlação en-tre biografia, experiên-cia social e produção ar-tística, mas com a lente aguçada do historiador competente e erudito no desvelamento da trama arquitetônica em sua interface com a história da cultura e da cidade. Nas palavras de Adrián Gorelik, o prefaciador do livro, José Lira mostra que para “o historiador da cultura arquitetônica não se trata de canonizar figuras ou definir os ru-mos corretos do que foi a arquitetura moderna, mas de compreender”. O resultado é uma visão renovada da história da arquitetura brasileira, de Warchavchik e da metrópole paulista que o acolheu.

Warchavchik: fraturas da vanguarda

José lira cosac naify 552 páginas, rs 89,00

heloisa pontes é professora do departamento de antropologia da unicamp e pesquisadora do núcleo pagu, também da mesma universidade

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História

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participação popular nas revoltas do século XiX foi maior do que se pensa

texto Márcio Ferrari

ilustrAção Catarina Bessell

mesmo que difícil de sustentar com profundidade, um dos mitos da historiografia brasileira tradicio-nal, ainda ecoado nas escolas e na imprensa, é a imagem ordeira

do Segundo Império. Ao mesmo tempo, não é segredo que o século XIX foi marcado por nu-merosas rebeliões regionais, entre elas conflitos célebres como a Guerra dos Farrapos e a Confe-deração do Equador. Alguns desses movimentos duraram vários anos e tiveram uma complexidade ainda pouco estudada. A professora Monica Duar-te Dantas, que leciona história do Brasil no Insti-tuto de Estudos Brasileiros e integra o programa de história social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ambos da Universidade de São Paulo, percebeu isso de perto pela primeira vez na década de 1990, quando, numa pesquisa de pós-graduação financiada pela FAPESP, estudou a população que veio a migrar para o arraial de Canudos, aderindo à liderança de Antonio Conse-lheiro. Monica observou que essa “base” da insur-reição se organizara contra impostos (motivo que

os amotinados do império

_rebeliões regionais {

gerou várias outras revoltas por todo o país) muito antes de aderir ao movimento do líder messiâni-co. Ou seja, parte da sustentação do Conselheiro vinha, na verdade, de uma mobilização articulada e eminentemente política, de início totalmente alheia ao aspecto religioso de Canudos – tanto que, futuramente, a Justiça eximiria o líder do processo que julgou os revoltosos.

Mais tarde, ao organizar um curso sobre as revoltas do século XIX, Monica deparou com uma bibliografia esparsa e cheia de lacunas em relação a vários movimentos, sobretudo os que não foram capitaneados pelas elites, e, mes-mo quando havia textos em fartura, o enfoque era acima de tudo concentrado nas disputas políticas e nos conflitos internos nos grupos de poder. Ela constatou também que havia estudos não publicados sobre a participação popular nesses movimentos, como um artigo escrito pelo historiador mexicano Guillermo Palacios sobre a pouco conhecida Revolta do Ronco da Abelha, ocorrida entre 1851 e 1854 no sertão de cinco estados do Nordeste brasi-

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precisavam de tropas para os decisi-vos combates que conduziam. E essas tropas eram formadas pelos de baixo. Isso é essencial não esquecer”, diz De-nis Antônio de Mendonça Bernardes, professor do Departamento de Ciên-cias Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, autor de dois capítulos do livro, um sobre a revolução republicana de Pernambuco, em 1817, e outro sobre a Confederação do Equador, de 1824. “Nos vários campos em luta pode ser encontrada uma diversificada formação social e racial”, prossegue Bernardes. “Por exemplo: índios do sertão de Per-

as elites, conservadoras ou em ruptura com a ordem vigente, sempre precisam de tropas para seus combates

leiro, contra o censo e o registro civil. Isso a levou a imaginar uma reunião de artigos sobre as sedições do século XIX, dessa vez enfatizando a participação dos “homens livres, pobres e forros”. O projeto, gestado desde 2007, com textos inéditos e outros reescritos, concluiu- -se agora, com a publicação do livro Re-voltas, motins, revoluções pela Alameda Casa Editorial.

“Até os anos 1960, a produção his-tórica privilegiava os chamados mo-vimentos messiânicos sebastianistas. Falava-se muito do aspecto cultural- -religioso, mas não tanto sobre o so-ciopolítico”, diz Monica. “Isso acabava gerando uma visão genérica de líderes carismáticos seguidos por uma popula-ção pobre e ignorante, e assim a dimen-são de protesto acabava se perdendo.” O que os artigos do livro revelam, no entanto, é um intenso, ainda que lento, aprendizado de cidadania por parte dos participantes anônimos dos motins do século XIX – e muitos deles tiveram suas reivindicações atendidas. “Vê-se a constituição do Estado nacional cor-rendo paralela à história institucional”, diz Monica.

“Uma ideia importante com que tra-balhei foi considerar que as elites, quer fossem conservadoras, quer estives-sem em ruptura com a ordem vigente,

nambuco lutaram a favor da monarquia portuguesa e contra os patriotas de 1817. E padres, militares e senhores de enge-nho, para citar apenas três categorias com larga participação em 1817, pagaram, por vezes, muito caro a rebeldia contra o Estado monárquico português.”

A participação de escravos libertos en-tre as tropas que lutaram sob o comando rio-grandense na Guerra dos Farrapos atraiu a atenção de Cesar Augusto Bar-cellos Guazzelli, professor do Departa-mento de História e dos programas de pós-graduação em história e relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seu artigo, ele enfoca a figura do “escravo guerreiro” – armado e a cavalo –, que, embora pra-ticamente desconhecida, desempenhou papel-chave no conflito. E não é por falta de estudos sobre a Guerra dos Farrapos, um episódio muito caro ao Rio Grande do Sul. Segundo Guazzelli, a historiografia tradicional (isto é, a predominante até meados do século passado) sempre mi-nimizou a presença da mão de obra es-

crava no estado, restringindo sua presença às regiões de produção do charque. No entanto, no início do século XIX a então província ficou em terceiro lugar entre as que mais importaram escravos da África. Uma peculiaridade local era que vinham muitas crian-ças pequenas, em idade pouco produtiva, mas apropriada para começar a aprender a montar cavalo. Quando a guerra come-çou, a presidência da província publicou uma convocação aos cidadãos para que, de cada três escravos que possuíssem, liber-tassem um para lutar.

EstânCiasEssa condição deu aos escravos armados algum poder ante os comandantes, assim como já havia, no trabalho nas estâncias, relações de compadrio e empréstimo e a possibilidade de se tornarem agregados – o que explica, em parte, a ocorrência relativamente rara de fugas para além da fronteira, apesar da facilidade ofere-cida pelo transporte animal. Ao fim da guerra, os ex-escravos se tornaram um problema para os farroupilhas e para o governo do Império. Eram numerosos demais para serem mantidos libertos sem que isso provocasse a revolta dos

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ainda escravizados; temia-se que for-massem bandos criminosos; se fossem para o Uruguai, provavelmente seriam pagos para lutar e provocariam um pro-blema diplomático. A “solução” foi pro-mover um massacre na última batalha da guerra, a de Porongos.

Para a pesquisa de Guazzelli, assim como para as demais que originaram os artigos de Revoltas, motins, revoluções, foram importantes fontes como registros civis, correspondências oficiais e parti-culares, processos-crime e documentos policiais. No caso da Guerra dos Farra-pos, além disso, uma contribuição iné-dita foi dada por arquivos da Argentina, principalmente, e também do Paraguai e do Uruguai, mostrando intensas nego-ciações em torno dos escravos.

Os africanos também estão no centro dos episódios analisados em seu artigo por João José Reis, professor do Departa-mento de História da Universidade Fede-ral da Bahia: uma greve de carregadores, escravos e libertos, em 1857 em Salvador, e, no ano seguinte, uma manifestação contra a carestia “reprimida a patas de cavalo”, conhecida como Carne sem Osso e Farinha sem Caroço. Reis ressalta que o movimento de 1857 foi a primeira greve

geral de um setor da classe trabalhadora urbana no Brasil. “Ambos representam episódios de luta pela cidadania, apesar de neles estarem envolvidos escravos, que não eram legalmente cidadãos”, afir-ma Reis. “Um dos movimentos exige do governo providência para se ter comida barata e o outro é um protesto contra a imposição de um novo imposto e outras regras de regulamentação do trabalho informal de rua.”

MoviMEntosApesar da diversidade dos atores e in-teresses envolvidos nas várias insurrei-ções abordadas no livro, em todas estava em jogo, nas palavras de Bernardes, “o confronto entre diversos projetos possí-veis de nação”. Do ponto de vista da po-pulação pobre e livre, tratou-se sempre de demandas por direitos, participação e cidadania. “Há indícios de outros mo-vimentos, mostrando que a população se organizava cotidianamente em prol de reivindicações, e desde o período joa- nino”, diz Monica. Em muitos casos, como o Motim do Vintém (em 1880, no Rio de Janeiro, contra um imposto sobre o transporte urbano) e o já men-cionado Ronco da Abelha, entre outros,

as reivindicações foram atendidas, mes-mo que antes disso os protestos tenham sido violentamente reprimidos.

“Esses episódios mostram por vários lados diferentes que o Estado não se constitui apartado da sociedade e que sua construção não se limita às elites”, diz Monica. Ela ressalta um aspecto in-teressante na variedade de fatos abor-dados no livro: houve mobilizações de protesto e também de apoio às autori-dades, como no caso da solidariedade da população aos vereadores de Salvador durante o movimento Carne sem Osso e Farinha sem Caroço. A Câmara havia aprovado uma medida de controle dos preços dos alimentos e os vereadores eleitos foram ameaçados de destituição pelo governo imperial.

A construção do Estado que se observa no livro se dá, em alguma medida, pela ab-sorção das palavras de ordem e dos valores da elite, como liberdade, igualdade e cida-dania. No entanto, como observa Monica, “o que o senhor do engenho entende como liberdade não é o mesmo que o agregado de suas terras”. Dá-se uma “reinterpre-tação do vocabulário iluminista-liberal” no momento de contribuir para construir instituições como o Judiciário e o sistema eleitoral. Um caso exemplar dessa dinâ-mica é a dos vaqueiros da Balaiada, suble-vados contra o governo imperial (entre 1838 e 1841 no Maranhão, no Piauí e no Ceará), que se apropriaram do discurso do jornal Bemtevi, porta-voz do liberalismo com sede em São Luís cujo único redator era Estêvão Rafael de Carvalho, catedrá-tico da Escola de Comércio, formado pela Universidade de Coimbra e ex-deputado na Corte. A relação entre essas duas pon-tas da sociedade – uma elite “esclarecida” e trabalhadores do interior em geral anal-fabetos – é o tema do capítulo escrito por Matthias Röhrig Assunção, professor da Universidade de Essex, na Inglaterra, e especializado em história do Maranhão.

Numa evidência de que ainda há muito a ser escrito e pensado sobre a organiza-ção do povo durante o Segundo Império, o livro traz na introdução escrita pela organizadora um levantamento – consi-derado pioneiro pela historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias em seu texto de apresentação ao volume – da trajetória das medidas jurídicas e políticas de con-trole das sublevações, importadas do sul dos Estados Unidos e incorporadas ao Código Criminal do Império. n

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engenheiros. Publicado em edição fac-símile, juntamen-te com o Código Sanitário de 1894, criado praticamente como sua consequência, faz parte do livro organizado pela historiadora Simone Lucena Cordeiro, diretora do Centro de Arquivo Permanente do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

A publicação não só faci-lita o acesso à pesquisa per-mitindo estudos sobre temas variados como o da medicina social, engenharia sanitária, habitação popular, cultura ma-terial, imigração, entre outros,

como enseja também vislumbrar as múltiplas e conflituosas dimensões da constituição da nação brasileira nos primórdios da República. O livro ainda traz três renomados historiadores cujos textos inspiraram-se no relatório da comissão.

No primeiro texto, Maria Stella Bresciani pers-cruta a cidade a partir da “questão sanitária”, assinalando seus contrastes, seus conflitos e ao mesmo tempo a ampla difusão entre a popula-ção, dos preceitos sanitários acoplados à ideia de progresso. No segundo texto, Maria Alice Rosa Ribeiro procede a uma rigorosa análise do relatório, capítulo por capítulo, enfatizando o ideal cientificista dos membros da comissão cujo método pressupunha uma abordagem objetiva e neutra da realidade, necessária e em sintonia com as metas republicanas de condução do país na senda do progresso.

No terceiro texto, Jaime Rodrigues detecta os objetivos políticos da comissão subjacentes às me-tas de prevenção e que poderiam ser resumidos no chamamento para “salvar a cidade ameaçada em sua prosperidade e futuro”, indicando que o relatório e as políticas públicas de habitação po-pular propostas não se referem apenas à higiene, mas também às formas de apropriação do espaço urbano e, no limite, à construção do Estado.

a rthur Neiva, em 1916, quando à frente do Ser-viço Sanitário do Esta-

do de São Paulo, discursando sobre a urgência do combate às epidemias e particularmente à de febre amarela, declarou que se o governo não as erradicasse a Fundação Rockefeller o fa-ria. Suas palavras traduzem, nesse princípio do século XX, a urgência da resolução de problemas sanitários que já constavam da agenda política do governo republicano desde os seus primeiros anos.

A cidade de São Paulo, du-rante as décadas finais do sérante as décadas finais do sé-culo XIX, com o desenvolvimento da cafeicultura, passou por um incrível crescimento, desenca-deando um processo que a transformaria rapida-mente em metrópole industrial. Se por um lado essa metamorfose abria perspectivas de enormes lucros para os detentores dos meios de produ-ção, por outro, revelava que a cidade precisava adequar-se às novas necessidades, enfrentando as enfermidades que desorganizavam o traba-lho, desestruturavam o movimento imigratório, dificultavam o intercâmbio comercial e inibiam os investimentos internacionais.

Os graves surtos epidêmicos, que vitimavam grande número de trabalhadores e investidores estrangeiros, impunham o saneamento da cidade, exigência não apenas regional, mas mundial. Des-sa forma, os problemas de saúde pública torna-ram-se questão de Estado e uma das prioridades do governo. Foi com este espírito que no ano de 1893 constituiu-se uma Commissão de Exame e Inspecção das Habitações Operarias e Cortiços no Districto de Sta. Iphigenia, num momento em que um surto de febre amarela havia assolado a cidade, afetando sensivelmente o bairro de Santa Ifigênia, “onde em 60 cortiços habitavam 1.320 indivíduos de diversas nacionalidades e de todas as condições, e que situava-se a 300 metros do nobre Campos Elísios”.

O relatório final que expõe os resultados do inquérito foi elaborado por três médicos e dois

Antes que rockefeller o faça

rEsEnhas

os cortiços de santa ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893)

simone lucena cordeiro (org.). imprensa oficial do estado de são paulo/arquivo público do esp224 páginas, r$ 45,00

Mariza romero

Mariza romero é professora da pontifícia universidade católica de são paulo (puc-sp). Fo

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Conhecimentoda inovação

dilemas bioéticos

um dos desafios da atuali-dade brasileira é o desen-volvimento de produtos e

processos inovadores que possam elevar a competitividade das em-presas brasileiras no cenário na-cional e mundial. O país aparece em posições muito desfavoráveis em estudos internacionais sobre o tema inovação, especialmente quando se considera o fato de ser a sétima economia do mundo. Mas a sétima economia do mundo. Mas bons exemplos de como é possível inovar no Bra-sil existem e o jornalista Renato Cruz conseguiu explorar de forma clara e objetiva a história das empresas que inovaram nas últimas décadas no país no livro O desafio da inovação – A revolução do conhecimento nas empresas brasileiras. Ele aborda o esforço e as estratégias para a inovação de empresas como Embraer, Petrobras, Embrapa, a indústria do etanol e a atuação das empresas transnacionais no Brasil com seus investimentos e desenvolvimentos tecnológicos feitos no país. Não deixa de indicar também, neste processo, o apoio e o papel dos institutos de pesquisa, uni-versidades e das agências de fomento como a Finep e a FAPESP.

Renato, que faz reportagens sobre tecnologia para o jornal O Estado de S. Paulo entrevistou mais de uma centena de empresários, executivos, acadêmicos e dirigentes governamentais e con-sultores para mostrar um panorama recheado de dados da inovação realizada no país. Seu desafio inclui a análise da trajetória de várias empresas ao longo dos 20 anos da Lei de Informática, mos-trando principalmente os ganhos no âmbito dos softwares. O livro avança também para exemplos que podem colaborar para atuais e futuros em-preendedores. Recolhendo histórias em roman-ces do escritor inglês H. G. Wells ou de seriados televisivos dos Simpsons, ele comenta os limites de se ouvir os consumidores no delineamento de um produto novo ou mesmo o risco de um empreendedor se maravilhar em demasia com a própria ideia inovadora e não avançar na tomada de decisões para o crescimento da empresa ou, ainda, deixar de lado a parte administrativa do empreendimento. Marcos de oliveira

pesquisas de opinião sobre o tema nunca foram feitas no Brasil, mas dá para apostar que para a maioria das pessoas os grandes

dilemas bioéticos são subprodutos de tecno-logias novíssimas. A lista incluiria clonagem, obtenção de células-tronco embrionárias, tera-pia gênica e seleção de embriões por métodos moleculares. São possibilidades que surgiram apenas no fim dos anos 1990, ou mesmo depois. Em seu novo livro, Genética: escolhas que nossos avós não faziam, a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, conta como convi-veu com todas essas revoluções e com as dúvidas que elas trouxeram.

O envolvimento da pesquisadora com esse tipo de problema antecede, na verdade, boa parte dos temas de fronteira tratados no livro. Foi nos anos 1970, quando os métodos de “leitura” do DNA mal começavam a engatinhar, que Zatz iniciou sua participação em um serviço de aconselhamento de famílias portadoras de doenças genéticas, por convite de seu mentor, Oswaldo Frota-Pessoa. O contato com os afetados por esses problemas a levou a fundar a Associação Brasileira de Distro-fia Muscular em 1981.

O histórico de engajamento exO histórico de engajamento ex-plica por que o livro da pesquisa-dora em nenhum momento se con-tenta em abordar dilemas bioéticos pelo prisma teórico. Todas as ques-tões enfrentadas por Zatz partem de casos reais com os quais ela teve contato direto. São detalhadas, por exemplo, as saias-justas que ocor-rem quando, ao procurar marcado-res de doenças genéticas, acaba-se achando casos de paternidade bio-lógica diferente da afirmada pela lógica diferente da afirmada pela

família. E fala, claro, de clonagem humana. Em resumo: clones não seriam mais cópias exatas do “original” do que irmãos gêmeos idênticos são cópias uns dos outros.

Se o livro de Mayana Zatz tem um defeito, talvez seja justamente o de mirar majoritaria-mente o leitor sem nenhum conhecimento de biologia. Para os interessados na ciência por trás da bioética, um pouco mais de detalhes seria bem-vindo. reinaldo josé lopes

o desafio da inovação - a revolução do conhecimento nas empresas brasileirasrenato cruz senac, 240 páginas, r$ 42,90

genética: escolhas que

nossos avós não faziam

mayana Zatz editora globo,

202 páginas, rs 29,90

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o fio da meada

cildo meireles deixa o tempo correr entre a ideia e o gesto

Maria hirszman

artE

avelha caixa de madeira contendo um ma-pa do trecho norte do litoral carioca e um velho e esfiapado novelo de linha, obra

de Cildo Meireles que ocupa lugar de destaque no 32o Panorama das artes, em cartaz até o dia 18 de dezembro no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, pode ser considerada co-mo uma espécie de relíquia, como souvenir de um processo de investigação bem mais amplo. Lembrança física do trabalho que consistiu em percorrer a pé 30 quilômetros da trilha de terra que se tornaria a atual rodovia Rio-Santos desen-rolando um novelo ao longo do trajeto e depois recolhendo o que sobrou desse fio, esse objeto também sintetiza a relação tensa, sedutora e ex-tremamente fértil entre o lampejo criativo e a ação cautelosamente planejada, a partir da qual Meireles pauta toda sua trajetória.

Arte física: cordões/30 km de linha estendidos, bem como outras ações idealizadas – nem sempre concretizadas – no mesmo período, nasce da von-tade do artista de ampliar suas pesquisas sobre o espaço ( já iniciadas nos anos de 1967 e 1968 com as séries dos Cantos e espaços virtuais/Cantos) para a grande escala geográfica, planetária, exigindo sempre empenho físico por parte do executor da obra. Caminhar longas distâncias em linha reta, ficar horas sem ingerir nenhum líquido ou escalar o cume mais alto do país para substituir seus últi-mos centímetros por um elemento de forte carga simbólica como um diamante – esta última seria a única das “artes físicas” ainda não realizadas que ele ainda pretende executar – estão entre as ideias concebidas por Cildo no final dos anos 1960 e que

serviram de combustível para uma produção que nasce fortemente vinculada ao caráter questio-nador da arte conceitual e que pouco a pouco vai ganhando contornos cada vez mais sedutores.

É apenas relativa a disparidade entre o registro seco da ação por meio da coleta e exposição de vestígios, como se vê na maleta de Cordões, e as grandes instalações imersivas, com que Cildo Meireles conquista o público sobretudo a partir da década de 80 e que o alçam à posição de um dos mais importantes artistas plásticos contem-porâneos. Promovendo um paradoxal convívio entre conceitos muitas vezes emprestados de outras áreas do pensamento e o efeito plástico e sensorial impactante, ele concilia um elevado grau de abstração e reflexão teórica a uma estra-tégia de arrebatamento do público. Sua intenção era superar a noção de espectador passivo. “Com naturalidade fui me encaminhando para peças que trabalham em grande escala, que se destina-vam a indivíduos com total liberdade espacial e de tempo para desfrutar o trabalho. Queria tirar a pessoa daquele lugar e daquele momento; ar-rebatar, seduzir mesmo”, explica.

Cildo costuma dizer que “o melhor momento é quando o objeto de arte risca o céu da sua cons-ciência, sem limite, sem definição”. Esse longo tempo de maturação agrada o artista: “Essa é uma velocidade legal de trabalhar, sem estar contra o relógio”, diz ele, mesmo vendo um certo pa-radoxo no fato de ter conseguido viabilizar tar-diamente muitos de seus projetos. “O ideal seria que o artista tivesse condições de realizar quando jovem”, pondera. Ele lembra, por exemplo, que

Arte física: cordões/30 km de linha estendidos, 1969, 60 x 40 x 8 cm. exposto no 32o Panorama das artes, no mam

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Desvio para o vermelho, uma de suas obras mais emblemáticas e que atualmente pode ser vista em exposição permanente no Instituto Inhotim (MG), começou a ser pensada junto com a série dos Cantos, ainda nos anos 1960, para adquirir sua forma original em meados dos 80. O mesmo ocorreu com trabalhos como Abajour, mostrado na última Bienal de São Paulo. A instalação, que promove uma sintética e potente crítica, res-saltando as relações causais entre escravidão e deleite plástico, fará parte da grande exposição que o artista está preparando para realizar em 2013 no Museu de Serralves, em Portugal, e que posteriormente segue para Madri. Ainda não há previsão de que a mostra venha para o Brasil.

A possibilidade de dar corpo a uma constru-ção poética apenas décadas após sua concepção não é fruto apenas da inexistência de condições materiais. Esse embate entre conceito e forma é vital para garantir a tensão sentida em boa parte dos trabalhos do artista. Seu exemplo demonstra

Glove Trotter, 1991 malha de aço, bolas de vários tamanhos, cores e materiais, 25 x 520 x 420 cm

o desapego da arte contemporânea em relação à ideia romântica de instante criativo, de geniali-dade iluminadora do autor. Memória, conceito ou encantamento fazem parte de uma estraté-gia de ruptura com modelos e estratégias fixas. Mesmo atuando para além das fronteiras da dita arte conceitual – e sendo comparado pelo crítico cubano Gerardo Mosquera a um pesquisador científico “que explora uma dimensão poética da matemática, da geometria, da física” (e pode-se acrescentar aí outras áreas como a economia, a história e a antropologia) –, Cildo Meireles atri-bui um papel central ao caráter libertário do mo-vimento. “A arte conceitual talvez tenha sido a mais genuinamente democrática, ampliando ao infinito a quantidade de materiais e procedimen-tos”, afirma, ressaltando que depois dessa liber-tação radical em relação aos dogmas tornou-se possível começar do zero a todo momento. “Não devemos abdicar de jogar com essa pluralidade de territórios”, defende. nFo

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Aventura em stratford-on-Avon

Furio lonza

Conto

nunca gostei de Shakespeare. Aquele clima sempre sombrio em florestas fantásticas, castelos mal-assombrados, bruxas profé-

ticas, tempestades sibilantes, bosques malditos, barões perversos e generais desembainhando espadas, aquilo tudo em português já era um saco, imaginem no original.

A questão era a seguinte: sabia da importância do autor, que suas obras tinham ficado para a posteridade mesmo depois de morto, que desen-volvera temas instigantes para a imaginação de forma brilhante, que botara um molho erudito em histórias populares, mas, convenhamos, para um adolescente que ainda não tinha resolvido seus mais prosaicos problemas de espinhas na cara e que estava dando um duro danado para galgar as altas muralhas da conquista do sexo oposto, essa literatura focada em batalhas ao ar livre e assassinos que despejavam cálices de veneno na orelha do rei da Dinamarca não só era bizarra, como beirava a afronta pessoal.

Não tinha a pretensão de subverter comple-tamente todo o universo pedagógico das escolas que, imaginava, tinham levado anos e anos para chegar a um consenso quanto ao que devia ser ensinado aos alunos, com o objetivo de os cati-varem com o maravilhoso mundo da arte, mas, sei lá, deveriam ter levado em consideração que a tecnologia moderna colocara em circulação zilhões de outras maneiras de entretenimento (nem sempre politicamente corretas, concordo) para que o adolescente dispersasse e se enfro-nhasse em labirintos de fantasia bem diferentes daquelas tramas que rolavam na Escócia, Troia, Alexandria, Verona, Roma ou Bretanha.

Por exemplo: aquele maluco que sentia um ciúme doentio da patroa em Veneza. Era fran-camente inverossímil. Em vez de andar de gôn-

dola à luz do luar, o cara ficava se remoendo em quartinhos escuros e tristes, destilando litros e litros de bílis. Quem, hoje, daria a menor bola pro amigo que insiste em desmoralizar a coitada da mulher? Numa versão atualizada e remasterizada, já que não confiava na esposa, o maluco poderia monitorá-la por satélite. Poderiam inclusive bolar um game com esse tema.

Vou contar a minha história: sou filho de pais que viveram intensamente a revolução da década de 60 (política e cultural). Tanto minha mãe quan-to meu pai se envolveram direta e fisicamente em todas as instâncias de rebeldia que caracterizaram essa época tão promissora da humanidade: fizeram teatro, escreveram livros, participaram de saraus poéticos com fundo de jazz, debates, simpósios e se engajaram em tudo quanto foi tipo de modalidade artística. Mesmo quando o mundo deu a guinada que todos sabem, derrubando todas as utopias, eles mantiveram a ferro & fogo seus ideais e me colocaram numa instituição alternativa, que tinha um interesse fora do comum na difusão da cultura universal. Enquanto meus colegas e amigos que estudavam em outros colégios jogavam basquete no pátio, eu tinha que estudar Shakespeare no original. Mesmo levando em conta as boas in-tenções de meus pais e as propostas pedagógicas revolucionárias da escola, achava um exagero.

Isso me criou um grande problema: a professo-ra de inglês. Todos têm uma na vida; elas sempre fizeram parte da mitologia adolescente: falam outra língua, pronunciam as palavras como se estivessem numa abadia cheia de ecos e encaram os alunos como se todos fossem portadores de síndrome de Down. Escandem bem as sílabas, falam muito de-va-gar, são solenes, atenciosas, quase maternais, mas, no fundo, sabemos que elas se acham superiores aos selvagens nativos

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do Terceiro Mundo. Às vezes, parodiando uma música da época, tinha vontade de gritar para ela: Welcome to the jungle, teacher!

Me lembro bem dela: atendia por um nome estranho cheio de consoantes, era casada, tinha cabelos ruivos e vestia-se com recato. Entrava na classe como se estivesse adentrando o recinto do palácio de Buckingham. Ela não andava, flutuava, parecia estar sempre alguns milímetros acima dos pobres mortais. Good morning! Começava assim o nosso suplício. Todas as manhãs de quarta e sexta-feira, ela nos cumprimentava com um sorriso gélido, mas benevolente.

Meus sentimentos em relação à professora de inglês eram dúbios: por um lado, me dava calafrios só de imaginar que ela pudesse declinar meu nome para saber se eu tinha lido o Ato III do Coriolano e, por outro, minha libido subia a alturas insuspeitadas quando seu rosto (loucura minha ou não) detinha-se por fragmentos de segundo nos meus olhos na hora da chamada obrigatória. Pois seu rosto era lindo. Vamos co-locar assim: a palavra proporção deve ter sido inventada quando um estudante de arte ou um pintor qualquer descobriram o rosto dela. Era de uma beleza singular, preciosa, uma gema. A distância entre os olhos podia ser medida por um instrumento de precisão. Nenhum fio das sobrancelhas ou do cabelo estava fora do lugar. O tamanho e formato do nariz deixariam Giotto de quatro. Naqueles instantes mágicos em que ela me olhava, o mundo e o tempo paravam.

Como todo adolescente com os hormônios em combustão, imaginava coisas, cenas, sonhava com ela, mas sabia que o interesse de um estu-dante pela professora era um dos chavões mais surrados da história da humanidade. Por outro lado, o interesse da professora pelo aluno dava

(e dá) cadeia. Nem me lembro quantas vezes ela me pediu para ficar depois das aulas para uma conversa séria. E em todas (repito: todas, sem exceção), ela me espinafrou, dizia que eu não tinha o menor interesse por inglês ou por Shakespeare, que eu era relaxado, dispersivo, não prestava atenção nas aulas, vacilava, e que ela podia me deixar de recuperação, caso não mudasse minha atitude. Gaguejando, eu negava tudo, sempre, até o dia que o diabinho verde que habita as profundezas mais recônditas de nosso cérebro resolveu abrir o jogo (sem o meu consentimento, é claro) e disse:

É que eu fico prestando atenção na senhora!Ela estacou, parou de falar, um tímido sorriso

crispou-lhe o lábio superior e, depois de uma eter-nidade de silêncio, balbuciando como uma criança indefesa, a professora de inglês, perguntou:

Em mim?É, eu disse, no seu rosto. Fico prestando aten-

ção no seu rosto.Naquele dia, entendi o significado da expres-

são “divisor de águas”. Havia um antes e um depois. Havia uma professora de inglês do pas-sado e outra do presente. Ela rejuvenesceu, ficou mais ativa, menos solene, e (o toque de mestre) soltou os cabelos.

Um dia, sabendo da minha dificuldade com as obras do bardo de Stratford-on-Avon, pediu-me para ir a sua casa depois da aula. Argumentou de uma forma que eu, a princípio, não entendi: disse que seria bem mais produtivo aprender Shakespeare na prática. Eu tinha 16, ela 29. Não ouvimos o carro de Otelo chegando.

Furio lonza é escritor, jornalista e dramaturgo. publicou os romances Crossroads, Eric com o pé na estrada e As mil taturanas douradas, a novela experimental História impossível e o poema Sturm und Drang.

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