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1 Piolho Nababo: anti-galeria de arte e diálogos na interface educação/antropologia Gilbert Daniel da Silva 1 Resumo Esta proposta gira em torno das possibilidades de discorrer à propósito de como em minha prática docente, é possível assimilar vivências adquiridas na investigação que resultou na pesquisa do mestrado. Em meu trabalho como professor de arte em uma escola da rede municipal de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, foram produzidos com os alunos fanzines, cartazes lambe-lambes e um leilão de arte, procedimentos inspirados nos dados da pesquisa de campo, cuja observação se deu em uma anti-galeria de arte, denominada “Piolho Nababo”. Essa anti-galeria, ou “boteco das artes”, era coordenada por dois professores de arte e funcionava nas noites de sexta-feira, no espaço Ystilingue, no Edifício Maletta, localizado no hiper- centro da capital mineira. A etnografia foi praticada entre os meses de fevereiro a junho de 2012. Também apresentarei alguns dados de campo posteriores a essa etnografia, dados coletados no contexto de outras pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Culturas (EDUC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O cartaz lambe-lambe é um suporte da publicidade muito usado para a divulgação de serviços, produtos, eventos e propaganda política. Sua presença é fácil de ser notada pelas ruas dos centros urbanos. Esses cartazes colados com cola caseira pelas superfícies – por exemplo, em tapumes de obras de construção civil – resistem mesmo em meio a outras formas de divulgação e impressão digitais. Em contraste com a propaganda veiculada por esse suporte, a prática do lambe-lambe ocorre, também, como proposição artística ou contracultural, muitas vezes com um sentido humorístico, satírico, cuja intenção parece ser confundir, no espaço público das grandes cidades, os limites entre o que é e o que não é propaganda; isto é, de um lado, o cartaz publicitário; ao lado deste, o lambe-lambe de caráter satírico, sem finalidade de venda, anti-propaganda, e cujo conteúdo expressa a rebeldia e a irreverência de jovens artistas, um mecanismo de visibilidade. Em meio a essas realidades e culturas fui afetado por noções correntes à respeito dos jovens. Constatei em diversos momentos em falas de professores com os quais trabalhamos que os jovens representavam para eles grandes desafios. Contraponto às imagens negativas sobre a juventude foi a experiência vivida ao observar um grupo de jovens, durante os anos de 2008 a 2011, em uma escola nas aulas de arte. Essa é a história de como me tornei integrante do coletivo “Arte Liberada”. Palavras-chave: Antropologia. Educação. Juventude. Arte. Neste artigo, discorro à propósito de como em minha prática docente é possível assimilar vivências adquiridas na investigação que resultou na pesquisa do 1 Mestre em Educação pela PUC-Minas, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Santa Luzia e professor da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.

Piolho Nababo: anti-galeria de arte e diálogos na ... · Em meu trabalho como professor de arte em uma ... de venda, anti-propaganda, ... Seu esforço é na direção de se compreender

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1

Piolho Nababo: anti-galeria de arte e diálogos na

interface educação/antropologia

Gilbert Daniel da Silva1

Resumo

Esta proposta gira em torno das possibilidades de discorrer à propósito de como em minha prática docente, é possível assimilar vivências adquiridas na investigação que resultou na pesquisa do mestrado. Em meu trabalho como professor de arte em uma escola da rede municipal de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, foram produzidos com os alunos fanzines, cartazes lambe-lambes e um leilão de arte, procedimentos inspirados nos dados da pesquisa de campo, cuja observação se deu em uma anti-galeria de arte, denominada “Piolho Nababo”. Essa anti-galeria, ou “boteco das artes”, era coordenada por dois professores de arte e funcionava nas noites de sexta-feira, no espaço Ystilingue, no Edifício Maletta, localizado no hiper-centro da capital mineira. A etnografia foi praticada entre os meses de fevereiro a junho de 2012. Também apresentarei alguns dados de campo posteriores a essa etnografia, dados coletados no contexto de outras pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Culturas (EDUC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O cartaz lambe-lambe é um suporte da publicidade muito usado para a divulgação de serviços, produtos, eventos e propaganda política. Sua presença é fácil de ser notada pelas ruas dos centros urbanos. Esses cartazes colados com cola caseira pelas superfícies – por exemplo, em tapumes de obras de construção civil – resistem mesmo em meio a outras formas de divulgação e impressão digitais. Em contraste com a propaganda veiculada por esse suporte, a prática do lambe-lambe ocorre, também, como proposição artística ou contracultural, muitas vezes com um sentido humorístico, satírico, cuja intenção parece ser confundir, no espaço público das grandes cidades, os limites entre o que é e o que não é propaganda; isto é, de um lado, o cartaz publicitário; ao lado deste, o lambe-lambe de caráter satírico, sem finalidade de venda, anti-propaganda, e cujo conteúdo expressa a rebeldia e a irreverência de jovens artistas, um mecanismo de visibilidade. Em meio a essas realidades e culturas fui afetado por noções correntes à respeito dos jovens. Constatei em diversos momentos em falas de professores com os quais trabalhamos que os jovens representavam para eles grandes desafios. Contraponto às imagens negativas sobre a juventude foi a experiência vivida ao observar um grupo de jovens, durante os anos de 2008 a 2011, em uma escola nas aulas de arte. Essa é a história de como me tornei integrante do coletivo “Arte Liberada”.

Palavras-chave: Antropologia. Educação. Juventude. Arte.

Neste artigo, discorro à propósito de como em minha prática docente é

possível assimilar vivências adquiridas na investigação que resultou na pesquisa do

1 Mestre em Educação pela PUC-Minas, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

de Minas Gerais, Campus Santa Luzia e professor da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.

2

mestrado. Em meu trabalho como professor de arte em uma escola da rede municipal

de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, foram produzidos com os alunos

fanzines2, cartazes lambe-lambes e um leilão de arte, procedimentos inspirados nos

dados da pesquisa de campo, cuja observação se deu em uma anti-galeria de arte,

denominada “Piolho Nababo”. Essa anti-galeria, ou “boteco das artes”, era coordenada

por dois professores de arte e funcionava nas noites de sexta-feira, no espaço

Ystilingue, no Edifício Maletta, localizado no hiper-centro da capital mineira. A

etnografia foi praticada entre os meses de fevereiro a junho de 2012. Também

apresentaremos alguns dados de campo posteriores a essa etnografia, dados

coletados no contexto de outras pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e

Pesquisas em Educação e Culturas (EDUC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais.

Cabe primeiro esclarecer o seguinte: a expressão “lambe-lambe” pode nos

fazer lembrar certos fotógrafos populares que em feiras, parques e espaços públicos

focalizam os pedestres e passantes e lhes oferecem fotos instantâneas como

souvenires. Mas não é desse lambe-lambe que falaremos.

O cartaz lambe-lambe é um suporte da publicidade muito usado para a

divulgação de serviços, produtos, eventos e propaganda política. Sua presença é fácil

de ser notada pelas ruas dos centros urbanos. Esses cartazes colados com cola caseira

pelas superfícies – por exemplo, em tapumes de obras de construção civil – resistem

mesmo em meio a outras formas de divulgação e impressão digitais. Em contraste com

a propaganda veiculada por esse suporte, a prática do lambe-lambe ocorre, também,

como proposição artística ou contracultural, muitas vezes com um sentido

humorístico, satírico, cuja intenção parece ser confundir, no espaço público das

grandes cidades, os limites entre o que é e o que não é propaganda; isto é, de um lado,

o cartaz publicitário; ao lado deste, o lambe-lambe de caráter satírico, sem finalidade

de venda, anti-propaganda, e cujo conteúdo expressa a rebeldia e a irreverência de

jovens artistas, um mecanismo de visibilidade.

2 Fanzine é uma abreviação da expressão inglesa Fanatic Magazine, ou “revista de fã”. São publicações

feitas com poucos recursos, muitas vezes fotocopiados, diagramados e distribuídos.

3

Antes de adentrar nesses pressupostos, irei me situar de modo que as escolhas

teóricas encontrem paralelos com as vivências juvenis, experiências como artista e

como professore. Tal contextualização encontra em Peirano (1992) evidente relevância

quando a autora nos ilumina acerca de como, em pesquisas etnográficas, as escolhas

do antropólogo são influenciadas, entre outros fatores, por sua biografia.

Isto fica evidente na leitura de Carles Feixa (2006), De jóvenes, bandas y tribus,3

quando pude reviver parte do que marcou minha juventude aos dezessete anos. Assim

como os dois jovens punks4 pesquisados pelo antropólogo espanhol, a identificação

com essa cultura, ou subcultura, segundo denominação dos Estudos Culturais (FEIXA,

2006), evoca na memória um grupo punk, “A Peste”, no qual eu tocava bateria e era

acompanhado por um guitarrista.

É curioso relembrar esses dados autobiográficos, pois, de certo modo, esses

traços que tanto marcaram minha juventude, ajudam-me, hoje, a compreender os

jovens com os quais interajo em sala, em aulas de arte.

Mas o fato é que em minha trajetória como jovem e estudante, a qual não está

descolada da pesquisa que ora apresenta parcialmente, enveredei pelo caminho das

artes visuais. A graduação em Desenho e Plástica, com Licenciatura Plena, pela Escola

de Belas Artes da UFMG, em 20005, marcou para mim o desafio de atuar como

professor de arte em escolas públicas. Nesses anos, tive experiências pedagógicas com

crianças, jovens e adultos, atuando em diversas modalidades e em múltiplas

realidades, em diferentes escolas da citada rede municipal, e mais recentemente no

ensino técnico e tecnológico, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia,

no Campus Santa Luzia. Nesse instituto federal, pude ministrar aulas em cursos de

nível médio (Técnico de Edificações), subsequente (Paisagismo) e nos curos superiores

(Desing de Interiores e Arquitetura e Urbanismo.)

3 Nessa obra, o autor relata as experiências e desenha as biografias de dois jovens punks, um mexicano (Pablo) e o outro espanhol (Félix). Ao construir interações com esses jovens, o pesquisador retrata as semelhanças e diferenças entre eles, os quais vivem em países diferentes, mas enfrentam desafios e dilemas geracionais compartilhados com outros jovens de outras regiões do mundo. Sobretudo, ele estuda o fenômeno das gangues territoriais de jovens urbanos e os estereótipos a eles atribuídos pela mídia e pela polícia. Seu esforço é na direção de se compreender esse fenômeno das gangues como um movimento social protagonizado pela juventude, descriminalizando-o.

4 Estilo musical originado na Inglaterra, a partir do estrondoso sucesso alcançado pela banda Sex Pistols, em 1977, cuja curta e intensa carreira, influenciou milhares de jovens em diversos países. O documentário O movimento punk (ROSENO, 2013) ilustra as origens dessa cultura.

5 De um dos pesquisadores, da outra, foi em Comunicação Social.

4

Em meio a essas realidades e culturas fui afetados por noções correntes à

respeito dos jovens. Constatamos em diversos momentos em falas de professores com

os quais trabalhamos que os jovens representavam para eles grandes desafios.

Contraponto às imagens negativas sobre a juventude foi a experiência vivida ao

observar um grupo de jovens, durante os anos de 2008 a 2011, em uma escola nas

aulas de arte. Essa é a história de como me tornei integrante do coletivo “Arte

Liberada”.

Arte Liberada: uma experiência de observação de jovens alunos

Abre-se aqui um parêntesis para afirmar que em meu trabalho docente, nas

interfaces entre antropologia e educação, fui mobilizado na direção do desafio que

representa entrar em uma sala de aula e iniciar interações com alunos que

encontramos pela primeira vez. Entrar em uma sala de aula não é pouca coisa,

entretanto, ao longo dos anos, corremos o risco de não atentarmos para os limites e

possibilidades desse trabalho. Isto é, assim como é desafiador para o antropólogo

entrar pela primeira vez no campo da pesquisa para interagir com os nativos – sejam

eles do meio urbano, rural ou indígena – é igualmente complexo iniciar os primeiros

contatos com alunos que vemos pela primeira vez. A cultura é um campo também de

disputas, e enquanto ainda somos todos estranhos dentro de uma sala de aula ou na

prática etnográfica, as disputas ou mal-entendidos prevalecem. Isto, até o momento

em que o diálogo se consolida (ainda que isto não seja uma garantia, afinal, não

conseguimos interagir com todos com a mesma intensidade). Dizemos estas questões

para problematizar o trabalho docente, pensado como desafio aos professores, mas

que não precisa deixar de ser um desafio apaixonante. Talvez seja este desafio que nos

faz professores de verdade.

Será que conseguimos classificar as piscadelas de meus alunos? Creio que um

bom professor conseguiria, assim como um bom etnógrafo com os seus nativos. Mas

para tanto, fazem-se urgente políticas públicas de valorização da profissão docente de

modo a capacitar todos os professores para o desafio da diversidade cultural.

Retomando o projeto Arte Liberada, trata-se de uma experiência na qual a

cultura juvenil e seus estilos, tais como o grafite, os personagens de quadrinhos, o

5

desenho, entre outros, se afirmam e produzem novos sentidos6. Ela surgiu da iniciativa

de estudantes despertados por essas expressões artísticas. Eles criaram um blog, por

meio do qual interagiram com outros jovens, que não participavam do grupo. Esses

alunos produziram sentidos mais irreverentes para as fotos e os vídeos do grupo Arte

Liberada, fugindo de leituras estereotipadas.

Conforme as questões propostas pelos alunos sinalizavam essas reinvenções

dos espaços escolares, produzindo novos sentidos para suas práticas, deparei-me com

novas questões a propósito do que os jovens podiam ser e fazer.

Desse modo, foi possível escutar os jovens como atores no grupo Arte

Liberada. Em um dos encontros, alguém perguntou: ‘‘Por que a gente não faz uma

pintura aqui?’’. V., 16 anos, do alto dos seus 1,90 de altura, expressão séria, mas, ao

mesmo tempo amigável, e certo ar de introspecção (de quem é bastante econômico

nas palavras, muitas das quais monossílabas sussurradas aos ouvidos atentos),

apontou para o murinho do jardim, ao lado da sala 7, onde nos reuníamos nas manhãs

de sábado. Era o sinal que os orientava e reenviava outros gestos e ações com vida e

energia. A partir dessa e de outras experiências, observervando esses jovens pelos

espaços da escola, testemunhei suas dúvidas e soluções inusitadas, surpreso com os

caminhos que trilhavam. Ou seja, era o reconhecimento da cultura como a ‘‘ação pela

qual cada um marca aquilo que outros lhe dão para viver e pensar’’ (CERTEAU, 2008, p.

143) passando de um para outro e produzindo novos sentidos.

Comprovei como, em torno do lambe-lambe, os jovens se socializavam e

atribuíam sentidos ao que vivenciavam. E partindo dessa mídia, outras como fotografia

digital, vídeo e Internet foram mobilizados pelo grupo. A observação desses jovens e a

atuação junto deles fez com que repensássemos nossas práticas em sala de aula e

como educadores, independentemente de escola ou de outros espaços onde também

se aprende.

“Não se pode ser sério aos dezessete anos”

6 Os termos sentido e significação são aqui empregados segundo a distinção feita por Roberto Cardoso

de Oliveira (2006) quando nos ensina que, o primeiro, é da ordem dos nativos em suas trocas simbólicas; já o segundo é da ordem do antropólogo em seu trabalho de interpretação da cultura do nativo.

6

Esse verso do poeta francês, Arthur Rimbaud (1995) – para mim um símbolo da

rebeldia juvenil –, chama a atenção para o fato de que o tema da juventude guarde um

significado de irreverência e rebeldia, como bem comprovaram a atribulada vida do

citado poeta. E com essa constatação, não perderemos de vista, simultaneamente a

toda a teoria que requer o tema para ser exposto em um artigo, que os jovens são e

sempre serão esses pontos de contestação das regras, sejam elas morais, sexuais ou

artísticas.

Exemplo dessa contestação foi por mim presenciada em uma edição do Leilão

Piolho Nababo, no qual as obras que não alcançassem o lance mínimo eram

destruídas. Pude participar com um trabalho artístico que foi incinerado para deleite

da plateia que o rejeitara. Assim, nossa imersão também se deu enquanto

pesquisadores e artista.

Também fui profundamente marcado pela pesquisa, uma vez que levei para a

sala de aula saberes que o campo possibilitou: por exemplo, com o apoio de outros

docentes, foi possível promover uma versão do Leilão de Arte. Os alunos fabricavam o

dinheiro e o usavam nos lances para adquirir fotografias, desenhos, popcards (postais

publicitários), gravuras e objetos tridimensionais. Foi uma grande festa, na perspectiva

proposta por Michel de Certeau (2008), que mobilizou os estudantes na escola na

fabricação do dinheiro e favoreceu as sociabilidades em sala de aula. Ainda

produzimos fanzines, colando lambes com desenhos produzidos pelos alunos, sendo

que uma série de objetos tridimensionais foram arquitetados e expostos no Piolho

Nababo, durante uma exposição aberta no Edifício Maletta. Um desses objetos passou

a fazer parte do acervo da galeria. Outros foram expostos na rua para que os acasos

sobre eles agissem, à exemplo das práticas que observei nos meus pesquisados, em

suas intervenções artísticas. Em nossa escola, criei um grupo de estudo que se

debruçou sobre a temática da juventude, em encontros que ocorriam duas vezes por

mês, durante o ano letivo de 2012. Todos esses procedimentos atestam como foi forte

a pesquisa e, com isto, também, mobilizei alunos e colegas professores em torno das

culturas dos jovens.

7

Figura 1 – Arte Liberada

A prática etnográfica possibilitou esses trânsitos entre a rua e a escola,

sobretudo, permitiu questionamentos sobre quem são os jovens, o que fazem, e como

poderia dialogar melhor com eles. Como dialogar com o espírito contestador dos

jovens, tanto aqueles que conhecemos no Piolho Nababo, como também os jovens

alunos que frequentavam minhas aulas? Sem a pretensão de aqui esgotar essa

questão, o que argumentei diante do que foi exposto ao longo deste curto relato, é

que para dialogar com a transgressão não há outro caminho senão dela se aproximar,

no ato de revisão das próprias certezas, alargando nossas possibilidades de olhar e

ouvir (OLIVEIRA, 2006). Ou seja, reafirmamos com Rocha e Tosta (2013) o quão valiosa

é, para os professores e professoras, a experiência de assumir um lugar de

8

antropólogo na interface com a educação. Postura sem a qual não mais concebo

nenhuma prática docente capaz de mediar as interações com os jovens alunos.

Olhares e contrapontos: vivendo alguns dilemas dentro e fora da instituição escolar

Em 2013, retornei ao campo no contexto de outra pesquisa, financiada pelo

CNPq, na qual temos como objeto de estudo grupos de jovens e suas ações na região

compreendida dentro dos limites da Avenida do Contorno. Esse recorte espacial se

identifica com o traçado original da capital mineira planejada pelo urbanismo

positivista do final do século XIX. Por outro lado, tal recorte redireciona a observação

para pontos de convergências de grupos de jovens que se reúnem em espaços

variados, muitos dos quais boêmios, mas não necessariamente de jovens que vivem

dentro desse recorte espacial. Eles usam esses espaços, dentro deles se mobilizam e

deslocam aquela centralidade ao expandirem outros signos, trazidos de fora do centro,

das periferias da cidade, como em alguns exemplos que tentarei expor aqui.

O movimento proposto é mesmo o de deslocamentos: do centro para a

periferia, da periferia até o centro; da escola para a rua ou da rua para a escola. Nessas

idas e vindas, muitos olhares foram cruzados, muitos espaços se sobrepuseram, até

um dado momento em que já não era mais possível saber quem estava dentro, quem

estava fora: éramos todos nativos, ou, como prefere dizer o antropólogo Eduardo

Viveiros de Castro: “Éramos todos antropólogos.” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

Podemos desenhar esses quadros pois na prática etnográfica nos envolvemos

de maneira sui generis com nossos objetos de estudo. Ao retornar ao campo de

pesquisa, reencontramos amigos que ali conhecemos e que vieram até nós com seus

pontos de vista, suas formas de usar a linguagem, seja ela verbal, seja o modo de se

vestir, sejam as formas de expressar ou silenciar a experiência de viver na cultura. E

nesses reencontros, nós, pesquisadores, também podemos rever nossos pontos de

vista. Reaprendi com meus amigos “nativos”, e outras miradas lancei sobre o que

aprendemos uma primeira vez. Um processo de aprendizagem dinâmico, sempre a

aberto a descobertas.

Exemplo dessas reaprendizagens, das quais a prática etnográfica se revela

plena de saberes compartilhados e transformados pelo diálogo, pude apresentar

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quando, ao observar um grupo de editores de fanzines em suas itinerâncias pelos

espaços “centrais” da capital mineira (como feiras de livros, eventos culturais variados

ou no Festival Internacional de Quadrinhos, edição 2013), reencontrei meus amigos.

Aqui, um casal identificado tão somente pelas letras “D” e “M”. No final de uma tarde

ensolarada na Praça da Liberdade, pude observar meus amigos editores vendendo

suas publicações em meio a outras ações culturais ali engendradas. O citado casal

chegou por volta das 18 horas e então pudemos “trocar ideia” por um breve período

de tempo, mas que provocou contaminações em meu trabalho de pesquisador.

Acredito que neste contexto seria proveitoso reproduzir alguns trechos do meu diário

de campo, anotação do dia 25 de janeiro de 2014:

A conversa com o casal foi sobre os rolezinhos. No meio do bate-papo,

falei algo sobre a ... e o funk consciente. Para a D, isso é motivo de crítica,

pois ela vê nesse funk consciente algo como uma diluição da força, da

potência que ele tem. O M também falou disso, de domesticação do funk, e

comparou com o pixo cooptado através do grafite.

Confessei a eles que não tinha pensado nesses pontos de vista.

Concordei com eles que os patrocinadores que colocam seu nome nessas

produções, teriam reservas contra o “proibidão”, isto é, institucionalmente

há certas abordagens que não ficariam interessantes para a imagem dessas

empresas.

Concordo em parte com eles. O processo não seria de domesticação, é

uma palavra muito injusta, como se os jovens do funk “consciente” também

não pudessem reagir, ainda que em um espaço restrito. Falar de

domesticação coloca a relação muito desumana, ou melhor, tira do mais

“fraco” a possibilidade de reinventar as regras do jogo. Michel de Certeau

aqui seria muito bem vindo para falar das táticas e das astúcias. De certo,

domesticação não é a melhor palavra, mas, por outro lado, entendo o que

eles querem dizer, e concordo que a tensão do funk se perderia no meio do

jogo institucional. Mas não perderia tudo, pois não se deve tratar os outros

como sem poderes de resistência.

Mas foi muito boa a conversa, e me esclareceu algo que há nessas

interações entre uma ONG, interesses corporativos, crianças e adolescentes.

Não dá para se ter uma visão ingênua dessas relações como horizontais, isso

é evidente.

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Gostaria de destacar dois pontos quanto ao trecho acima: primeiro, não creio

que meus amigos do campo de pesquisa, D e M, tenham usado a palavra

“domesticação” exatamente com os contornos restritos como interpretei no primeiro

momento. Pelo o que conheço deles, sempre demonstraram uma capacidade de

praticar a alteridade, qualidade que muito favoreceu nossas interações, mesmo

quando não concordamos uns com os outros em determinados assuntos. Creio que a

sensibilidade deles se voltou para certas formas de diminuir a força de expressões

culturais de jovens, de modo a favorecer a circulação dessas informações, ainda que

nesse processo ocorra uma diluição da força das mensagens criadas por esses jovens.

Fica fácil de perceber isso, no exemplo do pixador que, por meio de oficinas ou outras

formas de persuasão, abandona a pixação para ser “aceito” como grafiteiro. Nesse

quadro, a força do pixo como expressão que “tensiona as leis da sociedade burguesa”7,

se dilui em favor de uma visibilidade maior em um contexto de aceitação social, isto é,

sem “causar” e sem “incomodar” as regras dessa sociedade. Vale afirmar que uma das

regras que o pixo tensiona é a da propriedade privada, ao se apropriar de espaços

como muros, janelas, fachadas de edifícios, etc.

Segundo ponto: esse breve recorte do diário de campo serve para

problematizar uma reflexão posterior à pesquisa do mestrado. Ocorre que me dei

conta de como a tensão de um dado contexto cultural perde sua força quando se

enquadra ao que uma instituição – seja organização não-governamental ou escola –

formata, configura, permite, ou em última instância, proíbe. Assim como o funk perde

sua dimensão do corpo e do incômodo que isso pode gerar. “Incomodar” é aqui muito

mais do que um gesto, é toda uma construção arquitetada para deslocar os valores

sociais “burgueses”, especialmente falando do corpo de modo libertário, exatamente

como canta o funk “proibidão”. Da nossa experiência, pudemos refletir à propósito de

como dentro da escola certas tensões são diluídas ou mesmo negadas.

Quando levei para dentro da escola o lambe-lambe ficou nítido, agora depois

do diálogo com D e M, que seu poder de incomodar diluiu-se. Isso porque um lambe

como o “Masturbe seu Urso”, por exemplo, não poderia passar para dentro dos muros 7 Essa frase pude escutar do idealizador do espaço Ystilingue, à propósito da força que a

pixação possui como forma de subverter os valores e as imagens convencionais, em favor de espaços abertos para todas as formas de expressão, sem discriminações.

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da escola sem “causar” e muito provavelmente, colocar o professor em sérios apuros.

A saída para tal impasse institucional parece ser não o da domesticação, mas da perda

da tensão que tais imagens e textos poderiam provocar em sua configuração original.

Fica então o dilema: como se movimentar dentro das instituições e com elas

dialogar (até que ponto é possível dialogar com as instituições?) sem fazer tamanhas

concessões que por fim minimizem de tal forma as criações culturais? Como não cair

nessa armadilha? Ao mesmo tempo, como, também, não colocar o próprio pescoço à

prêmio diante de um gesto irresponsável para com a profissão docente?

Acredito que neste ponto controverso deste artigo, preciso trazer de volta à

cena o que nos ensina Paulo Freire. A instituição escolar pode e deve se abrir para que

os “oprimidos” resistam e venham construir possibilidades de pensar e agir dentro da

escola. Enquanto ela se encontra fechada, enquanto ela não dialoga, ela não consegue

investir em projetos que sejam significativos para as vidas de seus alunos, pois não

foram projetos construídos com eles. Somente com uma proposta pedagógica

libertária, isto é, fundada no diálogo entre todos que fazem a escola e a comunidade,

seria possível propor projetos pedagógicos que discutissem o “proibidão”, assim como

se discute qualquer temática, usando-se para isso as devidas ferramentas na produção

de saberes. Por que não o “proibidão”? Por que não o Masturbe Seu Urso? Desde que

seja desejo daqueles que fazem a escola, qualquer tema poderia ser trabalhado

pedagogicamente. Talvez sem a mesma intensidade de quando vivido em seus

contextos originais, mas muitos outros diálogos poderiam ser provocados em

interações verdadeiras entre pais, alunos, professores, funcionários. Parece que a

equação seria a seguinte: quanto maior for a prática pedagógica dialógica, maior será a

intensidade dos debates dentro e fora da sala de aula.

Outra questão que pude comentar com o casal ainda na Praça da Liberdade, foi

que os jovens são, de certo modo, “usados” pelas instituições, mesmo por aquelas que

inclusive professam garantir os direitos de crianças e adolescentes. “Usados” no

contexto de terem suas culturas diluídas em processos de assimilação, como fica

óbvio, por exemplo, na dicotomia entre pixação e grafite. A pixação ainda mantém sua

capacidade de incomodar e provocar críticas quanto ao seu aspecto de sujeira para a

cidade, na visão de quem está fora do circuito do pixo. Já o grafite é tolerado e usado

contra a pixação, como forma até de tentativa de cooptação dos pixadores para

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transformá-los em grafiteiros. Processo semelhante poderia ocorrer com o funk

consciente em comparação com o funk “proibidão”.

Entretanto, do lado dos jovens, eles também podem usar as instituições, não

sendo exatamente subalternos a elas. Isso fica muito claro para mim quando, por

exemplo, estou em sala de aula e observo como os jovens alunos “causam” (PEREIRA,

2010) e “incomodam”, mesmo com todas as formas de controle de seus atos por parte

dos professores, coordenadores e direção escolar. A todo o momento a instituição

busca revigorar seus aparelhos de controle sobre seus alunos, seja na “mediação”

junto aos pais dos alunos que “causam”, seja por meio do conselho tutelar, ou ainda

acionado os gerentes regionais da Secretaria de Educação do município. Em último

caso (infelizmente, nem sempre em último caso), a polícia também é chamada a

intervir. Todos esses procedimentos de articulação contrários ao “causar” dos alunos

exemplificam como os “mais fracos” inventam suas armas para criar seus espaços de

resistência. E como muitas das vezes, conseguem driblar todas as formas de controle

de seus corpos.

Por outro lado, a escola não poderia ser descrita tão somente como um espaço

de controle. E justamente ela não é esse espaço porque os jovens alunos criam suas

formas de resistência, acionando sociabilidades em torno de suas culturas ou mesmo

produzindo novos sentidos para suas interações. Acredito que a escola é um espaço

rico, um espaço de invenção cotidiana como acreditou Michel de Certeau à propósito

da vida nas cidades. A escola é uma pequena cidade, e é preciso andar por ela, olhar

nos olhos de quem lá é aluno, professor, funcionário, comunidade, coordenação e

direção, para então saber como são seus passos perdidos dentro do jogo da vida

reinventada.

“Minha casa, minha luta”: Piolho Nababo no Assentamento X

Nossas pesquisas de campo também incluíram a retomada dos “passos

perdidos” dos jovens artistas que conheci no Piolho Nababo. Essa anti-galeria de arte

enfrentou um período de inatividade, motivada, também, pelos novos projetos que

seus dois coordenadores e idealizadores assumiram durante o ano de 2013. Ainda em

13

2012, o Piolho Nababo se tornou itinerante e seu acervo foi exposto em algumas

edições no mesmo Edifício Maletta, em uma parceria com o proprietário do tradicional

bar Lua Nova. Algumas edições do Leilão do Piolho Nababo também aconteceram em

diferentes locais, como na galeria Quina, no Maletta, e no teatro Espanca!, na mancha

da Praça da Estação, local onde diversos movimentos se reúnem como o Praia da

Estação e o Duelo de MC’s. Nessa mancha de lazer merece destaque também as

experimentações gastronômicas e artísticas do boêmio bar-restaurante-carabé Nelson

Bordello. Para o ano de 2014 está agendada uma edição do Leilão no Palácio das Artes,

espaço consagrado das artes na capital mineira, ainda sem data confirmada.

Em janeiro de 2014, um dos idealizadores do Piolho Nababo, o artista ZB,

articulou junto a dois amigos, G e J, instalar uma galeria de arte no Assentamento X.

Em parte, essa proposta pode ser explicada pela própria ausência de um local para que

a galeria voltasse a atividade. Ao mesmo tempo, esse gesto que não é gratuito e, claro,

exigiu de seus promovedores diferentes articulações com as lideranças do

assentamento, bem como na abertura de diálogo com vizinhos da galeria, pais,

crianças, enfim, com uma boa parcela das pessoas que, a partir de então, passaram a

conhecer essa proposta de galeria, ou pelo menos passaram a se relacionar com essas

obras e a presença de jovens artistas.

Dizer que se trata da mesma anti-galeria acolhida no Ystilingue, não seria

verdadeiro. A precariedade do espaço no assentamento, que claro não conta com

água, nem luz, nem rede de esgoto, sendo uma construção extremamente precária

como muitas das que se veem no assentamento, todos esses aspectos mostram que o

Piolho Nababo se tornou uma outra galeria, cuja permanência nesse assentamento

seria também provisória. E nessa nova galeria, as crianças assumiram papéis de

criadores, de pintores, de protagonistas de brincadeiras e algazarras. Esse novo

aspecto é um dado completamente inesperado, uma vez que os idealizadores, ZB, G e

J, não imaginavam que seu público seria essas crianças. A galeria de arte Piolho

Nababo virou também espaço para oficinas de pinturas, oficina improvisada, as quais

revigoraram seu acervo. Sobretudo, pode nos oferecer muitas possibilidades para

pensar a educação a partir do que Paulo Freire propunha ao nos apontar uma

pedagogia que se abra para as comunidades, uma pedagogia dialógica, inserida dentro

da vida de pais, alunos e trabalhadores.

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A galeria fica aberta durante a semana com as obras produzidas pelas crianças.

Claro que isso só foi possível na articulação com a coordenação do assentamento.

Acreditamos que mais uma vez o diário de campo possa ser útil para fornecer

contornos mais nítidos para o que representa tal experiência. Usaremos, no entanto,

trechos mais extensos para situar o leitor “dentro” dos acontecimentos observados

por nós.

Cheguei ao assentamento por volta de 16h00, mas não conseguia

achar o local da galeria. O assentamento é muito grande, fica em um terreno

da ..., ao longo de uma avenida, em uma grande área, parte dela cheia de

construções precárias, feitas com madeira, lonas de plástico e outros

materiais descartados. Eu me sentia inseguro, sem coragem de entrar nos

becos e olhar do lado de dentro. Fui pela calçada, olhando para o lado,

tentando enxergar o local. Mas era quase impossível. Não tive coragem de

entrar e perguntar, de fato me sentia ameaçado por estar ali, caminhando

em local deserto pela calçada. E quando aparecia alguém, a sensação de

insegurança aumentava.

Caminhei até o fim do quarteirão sem achar o lugar. Parecia mesmo

que a viagem fora em vão, eu não conseguiria achá-los. Para piorar a

situação, estava sem celular, então era impossível uma comunicação com o

ZB.

Fui pela calçada, olhando mas ao mesmo tempo, sem fixar o olhar,

com medo de me parecer com alguém bisbilhotando. Parei no final do

quarteirão e me senti frustrado. Foi grande o estranhamento, a insegurança,

o medo. Me sentia como Foote-Whyte em sua tentativa infrutífera de entrar

no campo sem ser devidamente orientado. Eu sabia que entrar ali sem

cuidados seria perigoso, pelo menos eu imaginava que algo ruim

aconteceria.

Estava muito quente, parecia inútil tentar achar algo, no meio de

tantas casas precárias, era mesmo muito difícil.

Creio que no meio da caminhada, reparei em um barraco com

pintura branca. Pensei: deve ser aí. Olhei na direção e vi um caminho por

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entre os barracos vizinhos. Fui com fé, chegando na rua interna, virei à

esquerda: o barraco estava todo fechado, na verdade parecia um boteco.

Entretanto, alguns passos à frente vi algo familiar. Na sorte, dei de cara com

o Piolho Nababo, lá dentro estavam o ZB, o G, o J. Junto deles, ao redor de

uma mesa, umas oito crianças entre 3 e 11 anos se debruçavam sobre cores,

telas e pinturas. A galeria estava repleta de pinturas, muitas delas feitas

pelas crianças ali da comunidade. Foi mesmo uma grande sorte encontrá-los

no meio daquela vasta paisagem.

No momento em que cheguei era hora do lanche, “vegano”. Todos

sentados no chão, na terra, dividindo um pastel e bebendo refri. Me

oferecem a bebida e aceitei, afinal precisava me hidratar da longa

caminhada debaixo do sol quente.

Depois de me reunir com eles, a sensação de insegurança

desapareceu. Ainda assim, não fiquei à vontade, demorou um pouco até que

eu conseguisse entender o que estava acontecendo, talvez ainda algum

resquício dos receios que me atormentaram do lado de fora. Mas o que

posso dizer é exatamente isto: estava satisfeito em tê-los encontrado

quando parecia impossível conseguir.

Algumas crianças lanchavam, outras continuavam pintando.

Pintavam casas e assinavam suas pinturas, também escreviam frases. Elas

pareciam muito à vontade.

Creio que observei nesse dia aquilo que descrevi em minha

dissertação, quanto ao professor ZB e suas interações com os alunos nas

encenações de manifestações. A diferença é uma: a oficina no

Assentamento X é apenas uma oficina de outras que podem acontecer

futuramente ou não.

O improviso: na verdade, as crianças vieram espontaneamente fazer

arte, elas ocuparam o lugar com seus sorrisos. E suas espertezas. Elas

pintaram muito. ZB, G e J montavam as telas com ripas de madeira,

enquanto as crianças misturavam cores e trabalhavam com o pincel de

modo livre. No momento da minha chegada e durante um bom tempo, elas

se concentraram no desenho e nas cores.

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ZB dava algumas dicas para as pinturas das crianças, de certo modo

estimulava, elogiava a criação delas.

Essa experiência junto com as crianças do assentamento me parece

boa para pensar sobre a educação e o papel mobilizador ou desmobilizador

da vida na comunidade. Seria uma forma de pedagogia libertária? De certo

modo, é libertário quando se insere na comunidade e dentro dela se abre

para as crianças. Por outro lado, uma tal experiência precisaria passar por

mais oficinas, para então gerar outras reflexões. Pensando em Paulo Freire,

creio que a experiência no assentamento tem uma potência. Resta saber

como ela será usada e experimentada por todos.

ZB tirou foto das artistas com suas obras. Também tirei foto delas. O

que parecia ameaçador se tornou algo especial, ao ver aquelas crianças

brincando e correndo pelas ruas do assentamento. Nas pinturas algumas

frases: “Minha casa, minha luta”, “Paz e amor no Assentamento X”.

Havia basicamente meninas, me lembro de apenas dois ou três

meninos. Elas conversavam entre si e com os professores. A conversa que

interessou mais foi sobre vegetarianismo. Quando ZB ofereceu um pastel de

abóbora, as meninas acharam estranho. Experimentaram e não quiseram

comer tudo, mesmo um pedaço pequeno. Perguntaram porque os três eram

vegetarianos. Isso as deixou curiosas, pareceu-lhes muito estranho a pessoa

que escolhe ser vegetariana.

Andando pela comunidade até a coordenação, trocando ideia com o

coordenador sobre as próximas reuniões na comunidade. A coordenação

fica diante de um campo de futebol, de onde se avista uma grande área

onde o mato cresce livremente. Vê-se o bairro, as casas do outro lado, por

onde uma rua corta o terreno. O coordenador nos recebeu no salão, na

verdade, um barraco em melhores condições que os demais, com uma

aparência melhor e mais ventilado, devido ao pé-direito. Ficamos ali uns dez

minutos, o coordenador mostrou latas de tinta para as crianças usarem:

“Enquanto tiver espaço e tinta, vocês podem usar”, disse ele, demonstrando

satisfação com a nossa presença na ocupação.

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Na hora de ir, as pessoas nos paravam e perguntavam sobre nós,

ofereciam bebida, chamavam para ficar mais um tempo, todos muito

interessados em nós. Fomos muito bem recebidos e parece que a

comunidade curtiu.

Então foi isso: acompanhei o ZB e seus amigos nessa proposta de

galeria na ocupação. Foi uma tarde muito diferente. Eu nunca havia entrado

em um assentamento, confesso que é um experiência valiosa, ainda mais

diante do que nos ensina Paulo Freire à respeito de como dialogar com as

comunidades, com os “oprimidos”.

Mas creio que isso tudo ainda vai dar muito que pensar.

Essas anotações em meu diário de campo retomam o ponto do início da seção

anterior quando falei à respeito de alguns exemplos de ações que deslocam os signos.

Uma galeria de arte em um assentamento é, por si só, um gesto de deslocamento,

espacial e simbólico. Quando retornávamos do Assentamento X e passamos em frente

ao Piolho Nababo, o G comentou esse estranhamento de, no meio da ocupação, “dar

de cara” com uma galeria com pinturas. É mesmo um deslocamento, mais que um

deslocamento é a subversão de um centro hipotético: centro econômico, cultural e de

lazer. Uma galeria de arte, presume-se, não causaria estranhamento nenhum em

alguns bairros de classe média alta. Porém, em um assentamento, uma galeria de arte

parece não fazer sentido, foi o que percebemos nessa tarde de domingo.

Desloco esses contextos para a sala de aula: em que medida a arte ensinada

nesse espaço consegue provocar o deslocamento que a galeria do Piolho Nababo

produziu no assentamento? Nesse ponto da reflexão, precisamos retomar aquela

discussão à respeito da diluição que sofre a força de certas produções culturais quando

se enquadram na instituição. Na escola, parece um grande desafio conseguir produzir

tais deslocamentos, talvez, por que falte mais diálogo. Porque faltam as lideranças

comunitárias, falta olhar nos olhos de cada um e compreender o que cada um é, no

desafio da diversidade cultural. Caberia, então, perguntar: mas porque isto ocorre na

escola?

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Figura 2 – Piolho Nababo no assentamento X

Outra pergunta que me parece promissora: ao entrar na ocupação X, o Piolho

Nababo perdeu sua força, se diluiu? Em se tratando de uma proposta de se inserir em

um espaço comunitário, o Piolho teve que se adaptar, inclusive com a presença de

crianças, como também a circulação de pessoas as mais diversas – jovens, adultos,

idosos, de religiões diferentes, etc. – o que delimita que essa experiência teve que

assimilar o que lhe acolhia como espaço para sua instalação. Ao mesmo tempo, as

crianças gozaram de uma liberdade dentro da galeria como se estivessem em casa, e

de fato estavam. A própria galeria não é exatamente um espaço fechado. Sua

construção se abre para a rua e para o espaço entorno. Ela é visível, está praticamente

em um ponto indeterminado entre o público e o privado. A galeria é um espaço

aberto, nesse ponto encontra paralelo com o sentido original do que foi o espaço

Ystilingue no Maletta, quando da minha pesquisa de campo: espaço que deveria

permanecer sempre aberto, sem uso privativo da parte de ninguém.

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Considerações Finais

Por tudo o que foi exposto neste texto, poço afirmar que os temas da

juventude e dos saberes da rua contextualizam e evidenciam suas articulações. São

vários os pontos de contato entre essas temáticas, ainda que possam parecer, em uma

primeira mirada, divergentes – como a rua e a escola. Tentamos demonstrar como

esses universos citados poderiam se aproximar e promover um pensar sobre os

processos educacionais e escolares.

Para minha formação, a experiência foi fundamental, pois o trabalho como

pesquisador pode tornar um professor mais sensível para ouvir os alunos e a interagir

com a diversidade cultural. Tenho a convicção que me tornei um professor melhor

depois desta pesquisa, mais capacitado a enfrentar os desafios da prática docente.

No trabalho docente com jovens alunos constatei como é fundamental rever as

certezas quanto ao que eles são ou podem ser. Estar aberto ao diálogo com eles não é

algo simples, uma vez que as generalizações apressadas muitas vezes são também

reproduzidas dentro da escola. Nós, professores, temos a difícil e recompensadora

tarefa de estranhar aquelas certezas e generalizações, para, somente assim, interagir

com os jovens alunos.

As experiências de observação dos editores de fanzines e as conversas ali

engendradas com D e M, além das articulações e interações do Piolho Nababo no

Assentamento X, me parecem casos relevantes para refletir sobre os limites e

possibilidades para a ação pedagógica sensível ao diálogo, aberta aos movimentos

sociais. A diluição do funk em sua versão consciente quando comparada com a

intensidade que escutamos no “proibidão”; as concessões que o Piolho Nababo fez

para se instalar no Assentamento X, ambos os casos revelam o quanto a escola precisa

se abrir para conseguir, de fato, inventar práticas dialógicas, sensíveis àqueles que

deveriam assumir o protagonismo na invenção de cada dia.

Finalizando, retorno a pergunta sobre o que de fato seria a juventude e, ao não

encontrar uma resposta totalizadora, devido a multiplicidade de sentidos, me libertei

para viver com eles as experiências cotidianas. Afinal: não se pode ser sério aos 37

anos!

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Referências

BARBOSA, Alexandre Pereira. "A maior zoeira": experiências juvenis na periferia de São Paulo. Tese (Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2010. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP, Papirus. 2008. FEIXA, Carles. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel, 2006. 3 ed. FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 5. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp; Paralelo 15, 2006. PIOLHO NABABO. Disponível: http://goo.gl/4yurR9. Acesso: 30/05/2014. PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe: revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, fev. 2008, Ano 2, Versão 2.0. Disponível em: < http://n-a-u.org/pontourbe02/Peirano.html>. Acesso em: 6 jan. 2013. RIMBAUD, Arthur. Poesias completas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995 ROCHA, Gilmar. TOSTA, Sandra Pereira. Antropologia & Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2013. ROSENO, Célio. O movimento punk. Direção de: Kevin Alexander. You Tube, 27 de abril de 2012. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=PFjsIf4GVY8&list=UUPiKH550RoL6bhToo-XTjxw>. Acesso em: 1 fev. 2013. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, vol. 8, no 1. Rio de Janeiro. Abril, 2002.