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7/29/2019 Planolandia - Um Romance De Muitas Dimensoes
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PLANOLNDIAUM ROMANCE DE MUITAS DIMENSES
EDWIN A. ABBOTT
http://groups.google.com/group/digitalsource
7/29/2019 Planolandia - Um Romance De Muitas Dimensoes
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SUMRIOPrefcio edio brasileira, por Alessandro Greco...
Prefcio segunda edio revista, 1884, pelo editor.
PARTE I: ESTE MUNDO
1. Da natureza de Planolndia
2. Do clima e das casas em Planolndia
3. Sobre os habitantes de Planolndia
4. Sobre as mulheres
5. De nossos mtodos para reconhecermos uns aos outros
6. Do reconhecimento pela viso
7. Sobre figuras irregulares
8. Da antiga prtica da pintura
9. Da Lei Universal da Cor
10. Da supresso da Rebelio Cromtica
11. Sobre nossos sacerdotes
12. Da doutrina de nossos sacerdotes
PARTE II: OUTROS MUNDOS
13. Como eu tive uma viso de Linhalndia
14. Como em vo tentei explicar a natureza de Planolndia15. Sobre um forasteiro de Espaolndia
16. Como o forasteiro em vo tentou me revelar em palavras os mistrios de
Espaolndia
17. Como a Esfera, tendo em vo tentado com palavras, recorreu s aes
18. Como fui parar em Espaolndia, e o que vi por
19. Como, embora a Esfera me mostrasse outros mistrios de Espaolndia,
eu ainda ansiava por mais,e em que isso resultou
20. Como a Esfera me encorajou em uma viso21. Como tentei ensinar a Teoria das Trs Dimenses a meu neto, e com que
resultado
22. Como ento tentei difundir a Teoria das Trs Dimenses por outros meios,
e com que resultado
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PREFCIO EDIO BRASILEIRAOS MUITOS LADOS DO PRECONCEITO
Finalmente. H mais de um sculo Planolndiadeveria estar na prateleira dos leitores
brasileiros, mas por distrao (ou desleixo) dos editores brasileiros no havia nenhuma edio
disponvel no mercado nacional. O atraso, resolvido com esta edio, s no comprometeu a
atualidade do texto, escrito pelo clrigo ingls Edwin Abbott em 1884.
Protegido da crtica, em sua primeira edio, pelo pseudnimo de "A. Square 1, Abbott
satiriza os preconceitos da sociedade inglesa vitoriana criando um mundo de duas dimenses.
Na obra, seu alter ego e narrador, "O Quadrado", mostra um mundo em que as pessoas so
figuras geomtricas (tringulos, quadrados, pentgonos, hexgonos etc.) e a classe social qual
pertencem proporcional ao nmero de lados que elas tm e perfeio de suas formas.
Qualquer irregularidade (deficincia fsica) uma desgraa punida com a morte ou com a
internao em um hospital que tentar consertar o desvio. Qualquer casamento entre figuras
geomtricas (classes sociais) diferentes visto com desconfiana, seno com tristeza, por parte
das figuras (classes) com maior nmero de lados. As mulheres no tm nenhum lado, so
somente uma linha eso obrigadas a entoar um canto de paz quando se deslocam pelo mundo.
Uma regra que, se desobedecida, leva execuo sumria. Afinal, na perspectiva de um mundo
plano, a nica coisa que se v so os lados dos tringulos, quadrados etc. Mulheres, que no
tm lados, so somente um ponto e ficam quase invisveis em Planolndia. O contato fsico de
uma delas com o lado de um ser mais elevado pode fur-lo, matando-o.
Mas "O Quadrado" teve a oportunidade de ir alm do preconceito contra mulheres e
portadores de deficincia fsica e foi apresentado ao mundo das trs dimenses. Ficou to
fascinado que aventou a possibilidade da existncia de uma quarta, quinta, sexta dimenses.
Nada e tudo a ver com a Teoria da Relatividade Especial de Albert Einstein. Nada porque Abbott
escreveu seu romance quando Einstein ainda usava calas curtas e no pensava em frmulas.
Tudo porque Einstein descobriu a quarta dimenso e chamou-a de tempo. Hoje os fsicos
acreditam que o mundo tem algo em torno de dez dimenses de espao e uma de tempo, mas
que s vemos trs delas (altura, comprimento e profundidade). As outras dimenses espaciais
so invisveis de to pequenas. A existncia dessas onze dimenses faz parte da chamada teoria
das supercordas, que diz, entre outras coisas, que o mundo no feito de partculas puntuais,mas de pequenssimas cordas que, conforme vibram de diferentes formas no espao, criam
eltrons, quarks, ftons e todas as outras partculas que conhecemos.
Abbott mirou em um elefante e acertou, sem querer, na mosca quanto analogia e
stira. O reconhecimento de seu talento literrio foi imediato. Planolndia foi um sucesso
instantneo na Inglaterra, teve uma segunda edio no mesmo ano (1884) de seu lanamento e
um prefcio escrito por Abbott em nome de "A. Square". Nele, j cansado de seu triste destino
1O autor criou um trocadilho utilizando o "A" de Abbott no lugar do artigo indefinido ingls e
"Square" (quadrado) como se fosse o seu sobrenome, para compor o nome "Um Quadrado", que
serviu tanto para o autor como para seu personagem. (N.E.)
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(deixo para os leitores o prazer de descobrir qual), "A. Square" deixa Abbott se expressar. O
resultado : "Ai de ns, a cegueira e o preconceito so traos comuns humanidade em todas
as dimenses". Completo: e para todos os tempos.
No sculo XX, Einstein construiu a sua teoria, Francis Crick e James Watson
descobriram a estrutura do DNA dos seres vivos, mas ns continuamos presos aos nossos
pequenos preconceitos. Infelizmente.
Alessandro Ci'ecoEngenheiro,
jornalista eautor do livro Homens de Cincia(Conrad Livros)
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Aos
Habitantes do ESPAO EM GERAL
E a H. C. em PARTICULAR
Esta Obra Dedicada
Por um Humilde Nativo de Planolndia
Na Esperana de que
Da mesma forma que ele foi Iniciado nos Mistrios
Das TRS Dimenses
Tendo sido anteriormente versado
Em APENAS DUASOs Cidados daquela Regio Celeste
Possam aspirar cada vez mais
Aos segredos das QUATRO,CINCO OU AT MESMO SEIS Dimenses
Dessa forma contribuindo
para o Engrandecimento DA IMAGINAO
E o possvel Desenvolvimento
Do rarssimo e excelente Dom da MODSTIA
Entre as Raas Superiores
Da HUMANIDADETRIDIMENSIONAL
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PREFCIO SEGUNDA EDIO REVISTA,
1884, PELO EDITOR
Se meu pobre amigo de Planolndiativesse mantido o vigor mental de quando
comeou a escrever estas Memrias, eu no precisaria agora represent-lo neste
prefcio, no qual ele deseja, primeiramente, agradecer a seus leitores e crticos de
Espaolndia pelo apreo que, com inesperada presteza, exigiu uma segunda edio
desta obra. Em segundo lugar, ele deseja se desculpar por certos erros e problemas de
impresso (pelos quais ele no , no entanto, totalmente responsvel) e, em terceiro
lugar, esclarecer um ou dois equvocos. Mas ele no o mesmo Quadrado de outrora.
Anos de encarceramento e o peso ainda maior do descrdito e da zombaria combinou-se com a deteriorao natural da velhice e suprimiu de sua mente muitos dos
pensamentos e das noes, e tambm grande parte da terminologia, que ele havia
adquirido durante sua curta permanncia em Espaolndia. Portanto, ele me pediu
que respondesse por ele a duas objees em especial, uma de natureza intelectual e
outra de natureza moral.
A primeira objeo a de que um planolands, ao olhar para uma linha, v
algo que deve parecer ser espessoassim como extenso(de outra feita, se no tivesse
espessura, no seria visvel). Conseqentemente ele deveria (assim se argumenta)
reconhecer que seus compatriotas so no apenas extensos e largos como tambm
(embora sem dvida em um grau muito pequeno) espessosou altos. Essa objeo
plausvel e, para os espaolandeses, quase irresistvel, tal que, confesso, ao ouvi-la
Pela primeira vez, no soube como responder. Mas a resposta de meu velho amigo
parece elucid-la por completo."Admito" - disse ele, quando mencionei essa objeo - "a verdade dos fatos
apresentados pelos crticos, mas nego suas concluses. verdade que de fato temos em
Planolndiauma terceira dimenso no percebida, denominada 'altura', da mesma forma vocs
tm em Espaolndia uma quarta dimenso no percebida, que no momento ainda no tem
nome, mas que eu vou chamar de 'altura extra'. Assim como no conseguimos tomar
conhecimento de nossa 'altura', vocs no conseguem tomar conhecimento de sua 'altura extra'.
Mesmo eu - que estive na Espaolndia e tive o privilgio de compreender por 24 horas o
significado de 'altura' - hoje no consigo compreend-la, nem perceb-la por meio da viso ou
por qualquer processo racional. Posso apreend-la to-somente por meio da f."A razo bvia. Dimenso implica direo, medida, o mais e o menos. Ora, todas as
nossas linhas so igual e infinitesimalmente espessas (ou altas, como quiser);
conseqentemente, no h nada nelas que sugira a nossas mentes o conceito daquela
dimenso. Nenhum 'micrmetro de preciso' - como foi sugerido por um aodado crtico de
Espaolndia- seria de qualquer utilidade para ns, porque no saberamos o que medir, nem
em. qual direo. Quando vemos uma linha, vemos algo que extenso e brilhante; o brilho, assim
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como a extenso, necessrio a existncia de uma linha. Se o brilho desaparece, a linha se
extingue. Por isso, todos os meus amigos de Planolndia-com os quais eu falo sobre a dimenso
no percebida que de alguma forma visvel em uma linha - dizem: 'Ah, voc quer dizer brilho'.
E quando eu respondo: 'No, estou falando de uma dimenso de fato', eles imediatamente
retrucam: 'Ento a mensure, ou nos diga em que direo ela se estende'. E isso me silencia,
porque no posso fazer nenhuma das duas coisas. Ontem mesmo, quando o Crculo Cardeal
(em outras palavras, nosso Sumo Sacerdote) foi inspecionar a Priso Estatal e me fez a stima
visita anual, e, pela stima vez, me perguntou se eu estava melhor, tentei provar para ele que
ele era 'alto', assim como extenso e largo, embora no soubesse. Mas qual foi a resposta dele?
'Voc diz que eu sou alto? ento mea minha altura e eu vou acreditar em voc'. Que
podia eu fazer? Como responder a esse desafio? Fiquei arrasado, e ele saiu triunfante
da sala.
"Isso ainda lhe parece estranho? Ento se coloque em uma situao
semelhante. Suponha que uma pessoa da quarta dimenso, decidida a visit-lo,
dissesse: 'Todas as vezes que voc abre os olhos, voc v um plano (que tem duas
dimenses) e infere um slido (que tem trs), mas na realidade voc tambm v
(embora no perceba) uma quarta dimenso, que no cor, brilho nem qualquer coisa
do tipo, e, sim, uma dimenso de verdade, embora eu no possa lhe mostrar sua
direo, nem voc possa mensur-la'. O que voc diria a tal visitante? Voc mandaria
prend-lo? Bem, essa a minha sina: e to natural para ns, planolandeses, prender
um quadrado por preconizar a terceira dimenso quanto natural para vocs,
espaolandeses, prender um cubo por preconizar a quarta dimenso. Ai de ns, a
cegueira e o preconceito so traos comuns humanidade em todas as dimenses!
Pontos, linhas, quadrados, cubos, cubos extras - somos todos passveis dos mesmos
erros, todos igualmente escravos de nossos respectivos preconceitos dimensionais,
como um dos poetas da Espaolndia disse:
'Um toque da Natureza torna todos os mundos afins. "2
Sob esse aspecto, a defesa do Quadrado me parece ser inexpugnvel. Gostaria
de poder dizer que sua resposta segunda objeo (moral) foi igualmente clara e
irrefutvel. Foi objetado que ele odeia as mulheres, e como essa objeo foi
veementemente instigada por aqueles cujos ditames da Natureza constituem a metadeum tanto maior dos nativos de Espaolndia, eu gostaria de remov-la, na medida em
que eu possa honestamente faz-lo. Mas Quadrado est to desacostumado ao uso da
terminologia moral de Espaolndia que seria injusto reproduzir literalmente sua
defesa. Atuando, ento, como intrprete e resumindo suas palavras, deduzo que,
durante o perodo de sete anos em que esteve preso, ele modificou seus pontos de
vista, tanto em relao s mulheres quanto em relao s classes mais baixas, ou
issceles. Pessoalmente, ele agora tende, como as esferas, opinio de que as linhas
2* O autor deseja que eu acrescente que a m compreenso de alguns de seus crticos sobre essa questo olevou a inserir no dilogo com a esfera certas observaes pertinentes ao assunto, e que ele haviaanteriormente omitido por serem enfadonhas e desnecessrias.
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retas so em muitos - e importantes - aspectos superiores aos crculos. Mas, como
historiador, ele se identificou (talvez demais) com as opinies adotadas em geral pelos
historiadores de Planolndia e (como foi informado) de Espaolndia, em cujos textos
(at muito recentemente) os destinos das mulheres e das massas raramente eram
considerados merecedores de meno, e nunca de cuidadoso exame.Em uma passagem ainda mais obscura, ele agora deseja desautorizar as
tendncias circulares ou aristocrticas que alguns crticos naturalmente creditaram a
ele. Ao mesmo tempo em que faz justia ao poder intelectual com o qual alguns
Crculos por muitas geraes mantiveram sua supremacia sobre imensas multides de
compatriotas, ele acredita que os fatos de Planolndia, por si mesmos, sem
comentrios seus, mostram que as revolues no podem ser sempre suprimidas com
massacres, e que a Natureza, condenando os Crculos infertilidade, condenou-os ao
fracasso mximo - "e nisso", diz ele, "eu vejo o cumprimento da Lei mxima de todos
os mundos, a de que enquanto a sabedoria do homem pensa que est realizando uma
coisa, a sabedoria da Natureza o coage a realizar outra, bastante diferente e muito
melhor". Quanto ao resto, ele implora que seus leitores no suponham que cada
detalhe diminuto da vida quotidiana de Planolndia deva corresponder a algum outro
detalhe em Espaolndia. E, no entanto, ele espera que, tomada como um todo, sua
obra seja sugestiva alm de divertida para aqueles espaolandeses de mentes
moderadas e modestas que - falando daquilo que da maior importncia, mas que
est fora do alcance da experincia - se recusam a dizer, por um lado, "Isto
impossvel", e, por outro, " necessariamente assim, e estamos a par de tudo".
PARTE I
ESTE MUNDOSeja paciente, porque o mundo largo e vasto.
1. DA NATUREZA DA PLANOLNDIA
Chamo nosso mundo de Planolndia no por ser assim que o chamamos, mas para
deixar sua natureza mais clara a vocs, meus ditosos leitores, que tm o privilgio de viver no
espao.
Imagine uma grande folha de papel sobre a qual linhas retas, tringulos, quadrados,pentgonos, hexgonos e outras figuras, em vez de ficarem fixos em seus lugares, movem-se
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livremente em uma superfcie, mas sem o poder de se elevarem sobre ela ou de mergulharem
abaixo dela, assim como as sombras - s que com bordas firmes e luminosas. Assim voc ter
uma noo bem correta de meu pas e de meus compatriotas. Ai de mim, h alguns anos, eu
teria dito "meu universo", mas agora minha mente se abriu para perspectivas mais amplas das
coisas.
Em tal pas, logo se perceber, impossvel a existncia daquilo que voc chama de
"slido", mas ouso dizer que voc vai supor que, ao menos, poderamos distinguir visualmente
os tringulos, quadrados e outras figuras se movendo como eu descrevi. Mas no podamos ver
nada disso, pelo menos no no sentido de distinguir uma figura da outra. Nada era visvel, nem
poderia ser, para ns, exceto as linhas retas, e vou prontamente demonstrar porque era
necessariamente assim.
Coloque uma moeda sobre o centro de uma de suas mesas no espao. Inclinando-se
sobre ela, olhe para baixo, para ela. Ela vai parecer ser um crculo.
Agora, ficando ereto novamente, gradualmente v se abaixando (ficando, assim, cada
vez mais prximo da condio doshabitantes de Planolndia), e voc ir descobrir que a
moeda parece ficar cada vez mais oval. E, finalmente, quando seus olhos estiverem
exatamente na borda da mesa (e voc se sentir, por assim dizer, de fato, um
planolands) a moeda no parecer mais oval e ter se tornado, a seus olhos, uma
linha reta. A mesma coisa aconteceria se voc tratasse da mesma forma um tringulo,
um quadrado ou qualquer outra figura de cartolina. Assim que voc olhar para ela
com os olhos na altura da borda da mesa, vai descobrir que ela, para voc, deixa de
parecer uma figura, e que ganha aparncia de uma linha reta. Veja, por exemplo,
um tringulo eqiltero - que representa entre ns um comerciante da classe mdia. Afigura 1 representa o comerciante como voc o veria quando estivesse inclinado sobre
ele; as figuras 2 e 3 representam o comerciante como voc o veria com os olhos mais
prximos do nvel da mesa, ou quase ao nvel dela; e, se seus olhos estivessem no
nvel da mesa (e dessa forma que o vemos em Planolndia), tudo o que voc veria
seria uma linha reta.
Quando eu estava em Espaolndia, ouvi dizer que seus marinheiros tm
experincias semelhantes quando cruzam os mares e discernem alguma ilha ou costa
distante no horizonte. A terra distante pode ter baas, cabos, reentrncias e
protuberncias de todos os tamanhos; no entanto, distncia, voc no v nada disso
(a menos que o sol esteja brilhando bem sobre eles, revelando suas protuberncias e
reentrncias por meio de luz e sombra), mas apenas uma ininterrupta linha cinzenta
sobre a gua.
Bem, isso exatamente o que vemos quando um de nossos conhecidos
triangulares ou outros se aproximam de ns em Planolndia. Como no temos sol,
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nem qualquer outra luz desse tipo que faa sombra, no temos os amparos viso
que vocs tm na Espaolndia. Se nosso amigo se aproxima de ns, vemos sua linha
ficar maior. Se ele se afasta, fica menor, mas ainda assim ele se parece com uma linha
reta. Seja eletringulo, quadrado, pentgono, hexgono, crculo. O que seja, ele
parece ser uma linha reta e nada alm disso.
Voc talvez se pergunte como, nessas circunstncias desvantajosas,
conseguimos distinguir nossos amigos uns dos outros, mas a resposta a essa
pergunta muito natural ser dada com mais propriedade e facilidade quando eu
descrever os habitantes de Planolndia. Por enquanto, deixem-me adiar esse assunto,
e dizer umas palavras sobre o clima e as casas do nosso pas.
2.DO CLIMA E DAS CASAS EM PLANOLNDIA
Como no seu caso, tambm temos quatro pontos cardeais: norte, sul, leste,
oeste.
Como no h um sol nem outros corpos celestes, impossvel determinarmos
o norte da maneira costumeira, mas temos um mtodo prprio. Segundo uma Lei da
nossa Natureza, h uma atrao constante para o sul, e, embora nos climas
temperados ela seja muito fraca - tanto que at uma mulher razoavelmente saudvel
pode percorrer vrias centenas de metros na direo norte sem muita dificuldade -, o
efeito restritivo dessa atrao suficiente para servir de bssola na maioria dos
lugares da nossa terra. Alm disso, a chuva (que cai a intervalos fixos), que sempre
vem do norte, uma ajuda adicional, e nas cidades temos a orientao das casas, que
obviamente tm as paredes laterais em sua maior parte na direo norte-sul, de modo
que os telhados as protejam da chuva que vem do norte. No campo, onde no h
casas, os troncos das rvores servem tambm como guia. De modo geral, no temos
tanta dificuldade como seria de se esperar para determinar nossa localizao.
No entanto, em nossas regies mais temperadas, nas quais a atrao mal
sentida, caminhando algumas vezes por uma plancie erma onde no h casas nemrvores para me guiar, fui ocasionalmente compelido a ficar parado por horas a fio,
esperando que a chuva chegasse antes de continuar minha jornada. Sobre os fracos e
idosos, e especialmente sobre asdelicadas fmeas, a fora de atrao se faz sentir
muito mais pesadamente do que sobre os membros robustos do sexo masculino, ento
uma questo de boa educao sempre dar passagem a uma senhora pelo lado norte
do caminho - uma coisa nada fcil de se fazer de uma hora para a outra, quando voc
est em perfeita sade e em um clima no qual difcil discernir o norte do sul.
No h janelas em nossas casas, j que a luz nos atinge igualmente dentro oufora delas, de dia e de noite, igualmente a toda hora e em todos os lugares, vinda no
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sabemos de onde. Antigamente, uma questo interessante e muito investigada por
nossos eruditos era: "Qual a origem da luz?", e a resposta foi repetidamente
buscada, tendo como nico resultado a lotao de nossos manicmios com os
candidatos a descobridores. Em conseqncia, depois de tentativas infrutferas de
reprimir tais investigaes indiretamente, tornando-as sujeitas a pesado imposto, oLegislativo, em uma poca comparativamente recente, proibiu-as totalmente. Eu - ai
de mim, somente eu em Planolndia - sei hoje muitssimo bem a verdadeira soluo
desse misterioso problema, mas meu conhecimento no pode ser tornado inteligvel
para nenhum de meus compatriotas. Zombam de mim - eu, o nico detentor das
verdades do espao e da teoria da introduo da luz vinda do mundo de trs
dimenses - como se eu fosse o mais louco dos loucos! Mas permitam uma trgua
dessas divagaes dolorosas: deixe-me voltar para nossas casas.
A forma mais comum de construo de casas a de cinco lados ou
pentagonal, como na figura abaixo. Os dois lados voltados para o norte, RO e OF,
formam o telhado, que em sua maioria no tem portas. No lado leste h uma pequena
porta para as mulheres; no lado oeste, uma porta bem maior para os homens; o lado
sul ou cho em geral no tem porta.
No so permitidas casas quadradas e triangulares pelo seguinte motivo:
como os ngulos de um quadrado (e ainda mais os ngulos de um tringulo
eqiltero) so muito mais pontudos do que os de um pentgono, e como as linhas
dos objetos inanimados (tais como casas) so mais indistintas do que as linhas dos
homens e das mulheres, segue-se que o perigo de que as pontas de uma casa
quadrada ou triangular possam ferir seriamente um viajante desatencioso ou talvez
distrado que v de encontro a elas no pequeno. E, j no sculo onze de nossa era,
casas triangulares eram universalmente proibidas por lei, sendo as nicas excees
fortificaes, paiis de plvora, quartis e outros prdios pblicos, dos quais a
populao em geral no deve se aproximar sem circunspeo.
Nessa poca, casas quadradas ainda eram permitidas, embora
desencorajadas por um imposto especfico. Mas, uns trs sculos depois, a justia
decidiu que em todas as cidades com populao superior a 10 mil, o ngulo do
pentgono seria o menor ngulo permitido nas casas consistentemente com a
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segurana pblica. O bom senso da comunidade apoiou os esforos do Legislativo, e
hoje, mesmo no campo, a construo pentagonal suplantou todas as outras.
Atualmente, s em algum distrito agrcola distante e atrasado que um antiqurio
poder ainda descobrir uma casa quadrada.
3. SOBRE OS HABITANTES DE PLANOLNDIA
A maior extenso ou largura de um habitante adulto de Planolndia pode ser
estimada em cerca de 28 dos seus centmetros. Trinta centmetros e meio pode ser
considerada a extenso mxima.Nossas mulheres so linhas retas.
Nossos soldados e as classes mais baixas de trabalhadores so tringulos
com dois lados iguais, de uns 28 centmetros de extenso, e uma base ou terceiro lado
to curto (freqentemente no excede um centmetro e meio) que eles formam nos
vrtices um ngulo muito agudo e perigoso. Na verdade, quando suas bases so do
tipo mais degradado (no passando de alguns milmetros de tamanho), eles mal
podem ser distinguidos das linhas retas, ou mulheres, de to pontudos que so seus
vrtices. Entre ns, como entre vocs, esses tringulos so diferenciados dos outros
por serem chamados de issceles, e por esse nome eu irei me referir a eles daqui para
a frente.
Nossa classe mdia consiste de tringulos eqilteros, ou de lados iguais.
Nossos profissionais e cavalheiros so quadrados (a cuja classe eu perteno) e
figuras de cinco lados, ou pentgonos.
Acima deles, temos a nobreza, que possui vrios graus, comeando com as
figuras de seis lados, ou hexgonos, e da em diante aumentando o nmero de lados
at que recebem o ttulo honorfico de polgono, ou figuras de muitos lados. Finalmente,
quando o nmero de lados fica to grande, e os prprios lados to pequenos, que a figura nopode ser distinguida de um crculo, ela includa na ordem circular, ou sacerdotal, e essa
classe mais alta de todas.
Em nosso mundo h uma lei da natureza que determina que uma criana do sexo
masculino ter um lado a mais do que seu pai, de modo que cada gerao se eleva (por via de
regra) um degrau na escala de desenvolvimento e nobreza. Assim, o filho de um quadrado um
pentgono; o filho de um pentgono, um hexgono, e assim por diante.
Mas essa regra no se aplica sempre aos comerciantes, e ainda menos freqentemente
aos soldados e aos trabalhadores, que na verdade mal merecem ser chamados de figuras
humanas, j que no tm todos os lados iguais. Entre eles, portanto, a lei da natureza no se
aplica, e o filho de um isscele (ou seja, um tringulo com dois lados iguais) permanece isscele.
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No entanto, ainda h esperana, mesmo para os issceles, de que sua posteridade possa no fim
elevar-se acima de sua posio social inferior. E isso porque, depois de obter uma longa srie de
sucessos militares, ou de trabalhar com perseverana e arte, descobre-se que em geral os mais
inteligentes das classes dos artesos e dos soldados manifestam um ligeiro aumento no terceiro
lado ou base, e uma ligeira diminuio nos outros dois lados. Casamentos mistos (arranjados
pelos sacerdotes) de filhos e filhas desses membros mais intelectuais das classes mais baixas
geralmente produzem filhos que se aproximam ainda mais do tipo do tringulo de lados iguais.
Raramente - em comparao ao imenso nmero de nascimentos de issceles - pais
issceles geram um genuno tringulo de lados iguais que possa receber o certificado de
eqiltero.3 Para tal nascimento, necessrio, previamente, no apenas uma srie de
casamentos mistos cuidadosamente arranjados, como tambm um longo e continuado
exerccio de frugalidade e autocontrole por parte dos candidatos a ancestrais do beb
eqiltero, e um paciente, sistemtico e contnuo desenvolvimento do intelecto isscele
por muitas geraes.
O nascimento de um verdadeiro tringulo eqiltero de pais issceles
motivo de jbilo em nosso pas. Depois de um exame minucioso feito pelo Conselho
Sanitrio e Social, a criana, caso receba o certificado de regular, admitida em
cerimnia solene classe de eqilteros. ento imediatamente tirada de seus
orgulhosos embora tristes pais e adotada por algum eqiltero sem filhos, que jura
perante a lei nunca mais permitir que a criana entre em seu lar anterior ou que
sequer aviste seus parentes novamente, para evitar que o organismo recm
desenvolvido possa, por fora de imitao inconsciente, retroceder para seu nvel
hereditrio.
O surgimento ocasional de um eqiltero das fileiras de seus ancestrais
nascidos servos bem recebido no apenas pelos prprios servos pobres, como um
raio de luz e esperana sobre a montona esqualidez de suas existncias, como
tambm pelos aristocratas em geral, j que todas as classes mais altas sabem muito
bem que esse raro fenmeno, ao mesmo tempo em que faz pouco ou nada para
popularizar seus prprios privilgios, serve como barreira extremamente til contra
revoltas das classes mais baixas.Se a turba de ngulos agudos fosse totalmente, sem exceo, desprovida de
esperana e ambio, eles poderiam ter encontrado lderes em algumas de suas
muitas insurreies rebeldes que fossem capazes de tornar sua fora e maior nmero
demasiados at para a sapincia dos crculos. Mas um sbio ditame da natureza
estabeleceu que quando a inteligncia, o conhecimento e todas as virtudes aumentam
3"Por que um certificado necessrio?", pode perguntar um crtico espaolands. "O ato de gerar um filhoquadrado no um certificado dado pela prpria natureza, provando que o pai tinha lados iguais?" Eurespondo que nenhuma senhora de boa condio social se casaria com um tringulo que no tenha recebido
o certificado. Algumas vezes nasceram filhos quadrados de tringulos ligeiramente irregulares, mas emquase todos os casos desse tipo a irregularidade da primeira gerao aparece na terceira, que ou no
consegue alcanar a posio social pentagonal, ou recai para a triangular.
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nas classes trabalhadoras, na mesma proporo aumentar tambm seu ngulo
agudo (que os torna fisicamente terrveis), aproximando-se do ngulo
comparativamente inofensivo do tringulo eqiltero. Dessa forma, na mais brutal e
perigosa classe dos soldados - criaturas quase do mesmo nvel das mulheres, no que
diz respeito sua falta de inteligncia - verifica-se que, quando a capacidade mentalnecessria para tirar vantagem de seu poder de penetrao aumenta, diminui o poder
de penetrao em si.
Como admirvel essa lei de compensao! Assim como a prova cabal da
natural adequao e, eu poderia at dizer, da origem divina da constituio
aristocrtica dos Estados em Planolndia! Por meio do uso sensato dessa lei da
natureza, os polgonos e crculos conseguem quase sempre refrear rebelies no
nascedouro, tirando vantagem da irreprimvel e ilimitada confiana da mente humana.
As artes tambm vm em auxlio da lei e da ordem. Em geral possvel - por meio de
uma pequena compresso ou expanso artificial exercida pelos mdicos do estado -
tornar perfeitamente regulares alguns dos lderes mais inteligentes de uma rebelio, e
admiti-los imediatamente nas classes privilegiadas. Habitantes em nmero muito
maior, que esto, todavia, abaixo do padro, seduzidos pela expectativa de serem ao
final dignificados, so induzidos a se internar em hospitais do estado, onde so
mantidos respeitavelmente confinados pelo resto da vida. Apenas um ou dois dos mais
obstinados, tolos e irremediavelmente irregulares so executados.
Ento a infeliz turba de issceles, sem plano e sem lderes, trespassada sem
resistncia pelo pequeno grupo de seus irmos a quem o Crculo Cardeal paga, parater a quem recorrer em emergncias desse tipo. Ou ento, mais freqentemente, por
ter a faco circular fomentado habilmente entre eles a inveja e a discrdia, so
incitados a lutarem entre si, e so mortos pelos ngulos uns dos outros. H no
menos do que 120 rebelies registradas em nossos anais, alm de 235 revoltas
menores, e todas terminaram da mesma forma.
4
4 Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno defacilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos Deficientes Visuaisa oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazerreceb-lo em nosso grupo.
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4. SOBRE AS MULHERES
Se nossos tringulos muito pontudos da classe dos soldados so perigosos,
pode-se inferir facilmente que muito mais perigosas so nossas mulheres. Pois, se umsoldado uma cunha, uma mulher uma agulha, sendo, por assim dizer, s pontas,
ao menos nas duas extremidades. Acrescente-se a isso o poder de ficar praticamente
invisvel a qualquer hora, e pode-se ver que uma fmea, em Planolndia, uma
criatura que no se deve de forma alguma menosprezar.
Mas aqui, talvez, meus leitores mais jovens perguntem como uma mulher
pode ficar invisvel em Planolndia. Isso deveria, creio, estar bvio sem qualquer
explicao. No entanto, algumas palavras podem esclarecer os menos reflexivos.
Coloque uma agulha sobre uma mesa. Ento, com seus olhos no nvel da
mesa, olhe para a agulha de lado, e voc poder ver toda a sua extenso. Mas, se olhar
para ela a prumo, voc s ver um ponto; ela ficar praticamente invisvel. E o mesmo
se d com nossas mulheres. Quando uma delas est de lado para ns, vemos uma
linha reta. Quando a ponta que contm seu olho ou boca - pois entre ns esses dois
rgos so idnticos - a parte que est voltada para nossos olhos, a s vemos um
ponto muito brilhante. Mas quando o dorso que est voltado para ns, a - por ser
apenas um pouco brilhante e, na verdade, quase to esmaecida quanto um objeto
inanimado - sua extremidade traseira desempenha o papel de algo como um manto de
invisibilidade.Os perigos a que nossas mulheres nos expem devem estar agora claros para
as pessoas mais obtusas de Espaolndia. Se at o ngulo de um respeitvel tringulo
da classe mdia representa algum perigo, ento se chocar com um trabalhador
acarreta um corte. Se colidir com um oficial da classe militar inevitavelmente provoca
uma ferida sria e se o mero toque do vrtice de um soldado raso significa perigo de
morte, o que mais poderia causar o choque com uma mulher se no a destruio
absoluta e imediata? E quando uma mulher est invisvel, ou visvel apenas como um
ponto pouco brilhante, como deve ser difcil, mesmo para os mais cautelosos, evitar a
coliso!
Muitas foram as leis promulgadas em diferentes pocas e em diferentes
estados de Planolndia com o objetivo de minimizar esse perigo. E nas regies mais ao
sul, de climas menos temperados onde a fora da gravitao maior e os seres
humanos so mais propensos a movimentos irregulares e involuntrios, as leis que
afetam as mulheres so naturalmente muito mais severas. Mas uma viso geral do
cdigo de leis pode ser obtida do resumo a seguir:
1. Toda casa ter uma entrada no lado leste para uso
exclusivo das mulheres, pela qual todas as fmeas entraro de um
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"modo decoroso e respeitoso"5 e no pela porta dos homens ou
porta ocidental.
2. Nenhuma mulher andar por qualquer local pblico sem
repetir continuamente seu brado de paz, sob pena de morte.
3. Qualquer fmea que comprovadamente sofra de dana-
de-so-vito, convulses, resfriado crnico acompanhado de
espirros violentos, ou de qualquer molstia que provoque
movimentos involuntrios, ser instantaneamente exterminada.
Em alguns dos estados h uma lei adicional que probe as mulheres, sob
pena de morte, de caminhar ou permanecer em qualquer local pblico sem ficar
movendo suas costas constantemente da direita para a esquerda para indicar sua
presena queles que esto atrs delas. Outras obrigam a mulher, quando em viagem, a ser
seguida por um de seus filhos ou criados, ou por seu marido. Outras confinam a mulher
permanentemente em casa, exceto durante as festas religiosas. Mas os mais sbios de nossos
crculos ou estadistas descobriram que a multiplicao de restries s fmeas tende no
apenas debilitao e diminuio da raa como tambm ao aumento dos assassinatos
domsticos, a tal ponto que um estado perde mais do que ganha com um cdigo excessivamente
proibitivo.
Isso porque, sempre que o temperamento da mulher assim exasperado por
confinamento em casa ou por regras restritivas fora de casa, elas tendem a despejar sua
irritao sobre seus maridos e filhos, e, nos climas menos temperados, j aconteceu algumasvezes de toda a populao de uma aldeia ser destruda em uma ou duas horas de exploso
feminina. Da que as trs leis mencionadas acima bastam para os estados mais bem
governados, e podem ser aceitas como uma sucinta exemplificao de nosso Cdigo Feminino.
Afinal, nossa principal garantia encontra-se no no Legislativo, mas nos interesses
das prprias mulheres. Pois, embora elas possam infligir morte instantnea por um movimento
retrgrado, seus corpos frgeis so propensos a serem estilhaados, a menos que possam soltar
sua extremidade perfurante do corpo estrebuchante de sua vtima.
O poder da moda tambm est a nosso favor. Eu salientei que em alguns estados
menos civilizados no se permite que qualquer mulher fique em qualquer local pblico sem
balanar suas costas da direita para a esquerda. Esse costume tem se generalizado entre
senhoras com pretenses a civilidade em todos os estados bem governados, no decorrer de toda
a histria documentada. considerada uma desgraa para qualquer estado que a legislao
tenha de fazer valer o que deveria ser, e em toda fmea respeitvel, um instinto natural. O
movimento rtmico e, se posso assim dizer, bem modulado das costas de nossas senhoras da
classe circular invejado e imitado pela esposa de um eqiltero comum, que no consegue
mais do que um montono vaivm, como o tique-taque de um pndulo. E o tique-taque regular
do eqiltero no menosadmirado e copiado pela esposa do progressista isscele que
5 Quando estive em Espaolndia, percebi que alguns de seus crculos sacerdotais tm de maneirasemelhante uma entrada separada para aldees, fazendeiros e professores de internatos {Spectators,setembro de 1884, pg. 1.255) para que eles possam "se aproximar de uma maneira decorosa e respeitosa".
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aspira ascender socialmente, fmeas em cujas famlias nenhum "movimento das
costas" de qualquer espcie se tornou ainda uma necessidade da vida. Portanto, em
toda famlia de posio e respeito, o "movimento das costas" to predominante
quanto o tempo, e os maridos e filhos nesses lares gozam de imunidade, ao menos, a
ataques invisveis.No que se deva por um instante sequer supor que nossas mulheres so
desprovidas de afeio. Mas, infelizmente, a paixo do momento predomina, no sexo
frgil, sobre qualquer outra considerao. Isso, obviamente, uma necessidade que
surge de sua infeliz conformao. Pois no tendo qualquer pretenso a um ngulo, por
serem inferiores, nesse aspecto, ao mais baixo dos issceles, so por conseqncia
totalmente desprovidas de capacidade mental, e no tm ponderao, discernimento
nem premeditao e quase nenhuma memria. Da que, em seus ataques de fria, no
se lembram de quaisquer direitos e no reconhecem distines. De fato, sei de um
caso no qual a mulher matou todos na casa e, meia hora mais tarde, quando sua ira
havia acabado e os fragmentos, varridos para longe, perguntou o que tinha acontecido
ao marido e s crianas.
Obviamente, portanto, no se deve irritar uma mulher quando ela est em
uma posio na qual ela pode girar. Quando elas esto em seus aposentos - que so
construdos com o objetivo de negar-lhes esse poder - voc pode dizer e fazer o que
quiser, pois neste caso elas esto totalmente impossibilitadas de causar danos, e no
vo nem se lembrar do incidente ocorrido minutos antes, com base no qual poderiam
amea-lo de morte, nem das promessas que voc pode ter achado necessrio fazer afim de aplacar sua fria.
Em geral, ns nos damos bastante bem nas relaes domsticas, exceto nos
extratos mais baixos das classes militares. Nelas, a falta de tato e discrio dos
maridos causa s vezes desastres indescritveis. Contando demais com as armas
ofensivas que so seus ngulos agudos, e no com os rgos defensivos, que so o
bom senso e a dissimulao oportuna, essas criaturas inconseqentes freqentemente
deixam de construir os aposentos das mulheres como o recomendado, ou irritam suas
esposas usando expresses imprudentes na rua, recusando-se a se retratar de
imediato. Alm disso, uma estima cega e obstinada pela verdade literal impede-os de
fazer aquelas promessas prdigas por meio das quais o crculo mais sensato consegue
logo acalmar sua consorte. O resultado o massacre; porm no sem suas vantagens,
j que elimina os issceles mais brutais e encrenqueiros. Muitos de nossos crculos
vem a destrutibilidade do sexo mais delgado como um dos muitos arranjos
providenciais para a supresso da populao suprflua e para cortar pela raiz a
revoluo.
No entanto, mesmo em nossas famlias mais bem ajustadas e mais prximas
da circularidade, no posso dizer que o ideal de vida familiar seja to elevado como o
de vocs da Espaolndia. H paz, na medida em que a ausncia de carnificina pode
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ser assim chamada, mas h necessariamente pouca harmonia de gostos ou atividades,
e a cautelosa sabedoria dos crculos tem garantido a segurana s custas do conforto
domstico. Desde tempos imemoriais, em todo lar circular ou poligonal, tem sido um
hbito - e agora se tornou uma espcie de instinto entre as mulheres de nossas
classes mais altas -as mes e filhas manterem constantemente seus olhos e bocasvoltados para o marido e os amigos homens. E uma senhora de famlia distinta voltar
as costas ao marido seria visto como uma espcie de pressgio que tem a ver com
perda de status. Mas, como logo mostrarei, esse costume, embora traga a vantagem
da segurana, tem l suas desvantagens.
Na casa do trabalhador ou do respeitvel comerciante - onde permitido que
a esposa volte as costas ao marido enquanto faz as tarefas domsticas - h pelo menos
intervalos de tranqilidade quando a esposa no vista nem se pode ouvi-la, a no ser
pelo zumbido dos constantes Brados de Paz. Mas nas casas das classes mais altas
raramente h paz. L, a boca loquaz e o olhar penetrante esto sempre dirigidos ao
senhor da casa, e a prpria luz no mais persistente do que a torrente do palavrrio
feminino. O tato e a habilidade necessrios para desviar o ferro de uma mulher no
esto altura da tarefa de calar a boca feminina, e como a esposa no tem
absolutamente nada a dizer e absolutamente nenhuma inteligncia, senso ou
conscincia que a impeam de falar, no poucos cnicos asseguraram preferir o perigo
do ferro mortfero, mas inaudvel, sonoridade do outro extremo da mulher.
A meus leitores de Espaolndia, a condio de nossas mulheres pode
parecer verdadeiramente deplorvel, e de fato o . Um macho do tipo mais baixo deisscele pode ter a expectativa de alguma melhoria em seu ngulo, e, no final, a
ascenso de toda a sua aviltada casta, mas nenhuma mulher pode alimentar tais
esperanas para seu sexo. "Uma vez mulher, sempre mulher", uma lei da natureza, e
as prprias leis da evoluo parecem suspensas em seu detrimento. No entanto, ao
menos podemos admirar o sbio arranjo prvio que estabeleceu que, como no tm
esperanas, as mulheres tambm no tero memria para relembrar, e nenhuma
capacidade para prever as angstias e humilhaes, que so ao mesmo tempo uma
necessidade de sua existncia e a base da constituio de Planolndia.
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5. DE NOSSOS MTODOS
PARARECONHECERMOS UNSAOS OUTROS
Voc, que abenoado pela sombra, assim como pela luz; voc, agraciado
com dois olhos, dotado do conhecimento de perspectiva, e deliciado com a maravilha
das cores; voc, que pode realmente ver um ngulo, e contemplar a circunferncia
completa de um crculo na feliz regio das trs dimenses - como irei eu explicar para
voc a extrema dificuldade que ns, de Planolndia, temos de reconhecer a
configurao uns dos outros?
Recorde o que contei anteriormente. Todos os seres de Planolndia, animados
ou inanimados, quaisquer que sejam suas formas, apresentam aos nossos olhos a
mesma ou quase a mesma aparncia, ou seja, a de uma linha reta. Como pode um
ento ser distinguido do outro, quando todos parecem ser o mesmo?
A resposta trplice. O primeiro meio de reconhecimento o sentido da
audio, que entre ns muito mais desenvolvido do que entre vocs, e que nos
permite no apenas distinguir pela voz nossos amigos, como at discriminar as
diferentes classes, pelo menos no que diz respeito s trs classes sociais mais baixas,
os eqilteros, os quadrados e os pentgonos - pois deixo de lado os issceles. Mas,
medida em que subimos na escala social, o processo de discriminar e ser discriminado
pela audio fica mais difcil, em parte porque as vozes so assimiladas, em parteporque a faculdade de discriminao auditiva c uma virtude plebia no muito
desenvolvida entre a aristocracia. E toda vez que h perigo de impostura no podemos
confiar nesse mtodo. Entre nossas classes mais baixas, os rgos vocais so to desenvolvidos
quanto os da audio, tanto que um isscele pode facilmente imitar a voz de um polgono e, com
algum treino, at a de um crculo. Portanto, comumente se recorre a um segundo mtodo.
Tocar , entre as nossas mulheres e nas classes mais baixas - sobre nossas classes
superiores falarei em breve - o principal critrio de reconhecimento - ao menos entre estranhos,
e quando o problema relativo a classe, e no ao indivduo. Portanto, enquanto as classes mais
altas em Espaolndia se apresentam, em Planolndia nos tocamos. "Permita-me pedir que voctoque e seja tocado por meu amigo, o senhor Fulano de Tal" - ainda , entre os mais antiquados
de nossos senhores rurais nas regies distantes das cidades, a frmula para apresentaes em
Planolndia. Mas, nas cidades e entre homens de negcios, a expresso "ser tocado por"
omitida e a frase abreviada para "Permita-me pedir que voc toque no senhor Fulano de Tai",
embora esteja implcito, obviamente, que o "tocar" deve ser recproco. Entre nossos jovens mais
modernos e arrojados - que so extremamente avessos a esforos suprfluos e bastante
indiferentes pureza de sua lngua nativa - a frmula ainda mais reduzida pelo uso de "tocar"
em um sentido tcnico, significando "recomendar com propsitos de tocar e ser tocado". Hoje, a
gria das rodas educadas ou avanadas das classes superiores aprova barbarismos como
"Senhor Mendona, permita-me tocar no senhor Alves".
Que o meu leitor, no entanto, no presuma que "tocar" seja para ns o processo
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enfadonho que seria entre vocs, ou que achemos necessrio tocar em todos os lados de todos
os indivduos para determinarmos a classe a que ele pertence. Muita prtica e treinamento,
iniciados nas escolas e continuados na vivncia diria, permitem que discriminemos
imediatamente, pelo sentido do tato, os ngulos de um tringulo eqiltero, de um quadrado e
de um pentgono. E no preciso dizer que o vrtice acfalo de um isscele de ngulo agudo
bvio ao toque mais aptico. Portanto no necessrio, como regra geral, tocar em mais de um
nico ngulo de um indivduo, e isso revela a classe da pessoa com quem estamos falando, a
menos que de fato ela pertena s partes mais altas da nobreza. L a dificuldade muito
maior. Sabe-se que at um mestre de nossa Universidade de Wentbridge confundiu um polgono
de dez lados com um de doze lados, e no h doutor em cincias daquela famosa universidade
ou de qualquer outra que possa se atrever a reconhecer de imediato e sem hesitao um
membro da aristocracia de vinte lados e um de 24 lados.
Os meus leitores que se lembram dos trechos do cdigo de leis relativo s mulheres,
citados anteriormente, logo vo perceber que o processo de apresentao por contato requer
algum cuidado e discrio. De outra forma, os ngulos poderiam infligir dano irreparvel ao
descuidado apalpador. Para a segurana do que toca, essencial que o tocado fique
completamente imvel. J aconteceu antes de um movimento brusco, um espasmo nervoso ou
at um espirro violento se mostrarem fatais ao incauto, e cortarem pela raiz muitas amizades
promissoras. Isso especialmente verdade entre as classes mais baixas de tringulos. Entre eles
o olho se situa to longe do vrtice que dificilmente podem tomar conhecimento do que acontece
naquela extremidade de seu corpo. Eles so, alm disso, de natureza grosseira e vulgar,
insensveis ao toque delicado do altamente organizado polgono. No de admirar ento que
uma sacudida involuntria de cabea j tenha privado o estado de uma valiosa vida.
Ouvi dizer que meu eminente av - um dos menos irregulares de sua infeliz classe deissceles, que deveras recebeu, pouco antes de seu falecimento, quatro dos sete votos do
Conselho Sanitrio e Social para ser transferido para a classe dos eqilteros - muitas vezes
lastimou, com uma lgrima em seu venervel olho, um acidente desse tipo, ocorrido com seu
tatarav, um respeitvel trabalhador com ngulo ou crebro de 59 graus e 30 minutos. De
acordo com seu relato, meu infeliz ancestral - que sofria de reumatismo -, no instante em que
estava sendo tocado por um polgono, em um repentino movimento brusco, acidentalmente
trespassou o grande homem na diagonal. Desse modo, parcialmente em conseqncia do longo
perodo em que ficou encarcerado e da prolongada degradao, c parcialmente por causa do
choque moral que afetou todos os parentes, meu tatarav lanou a famlia um grau e meio
de volta em sua ascenso rumo a coisas melhores. O resultado foi que na gerao seguinte o
crebro da famlia foi registrado como apenas de 58 graus, e s depois do lapso de cinco
geraes que o terreno perdido foi recuperado, os 60 graus atingidos, e a ascenso da classe
dos issceles finalmente conseguida. E toda essa srie de calamidades surgiu a partir de um
pequeno acidente durante o processo de tocar.
Neste ponto creio ouvir alguns de meus leitores mais cultos exclamar: "Como
poderiam vocs de Planolndia saber qualquer coisa sobre ngulos e graus ou minutos? Ns
podemos ver um ngulo porque ns, na regio do espao, podemos ver duas linhas retas
inclinadas uma em relao outra. Mas vocs, que podem ver apenas uma linha reta de cada
vez, ou somente uma certa quantidade de pedaos de linhas retas formando uma linha reta -
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como podem vocs discernir ngulos, e, mais ainda, registrar ngulos de tamanhos diferentes?
Eu respondo que, embora no possamos verngulos, podemos inferi-los, e com muita
preciso. Nosso tato, estimulado pela necessidade e desenvolvido durante um longo
treinamento, permite-nos distinguir ngulos com preciso muito maior do que sua viso sem a
ajuda de rgua ou do transferidor. Esclareo tambm que temos grandes ajudas naturais. H
em nosso mundo uma lei da natureza segundo a qual o crebro da classe dos issceles se inicia
com meio grau, ou 30 minutos, e cresce (quando cresce) de meio grau a cada gerao at que o
objetivo de 60 graus seja alcanado, quando ento a condio de servido cessa e o homem livre
ingressa na classe dos regulares.
Conseqentemente, a prpria natureza nos fornece uma escala ascendente ou alfabeto
de ngulos que vai de meio grau at 60 graus, cujos exemplares so colocados nas escolas de
primeiro grau de todo o pas. Devido a retrocessos ocasionais, estagnao moral e intelectual -
ainda mais freqentes - e extraordinria fecundidade das classes criminosas e vadias, sempre
h um grande excesso de indivduos da classe de meio grau e de um grau, e uma boa fartura de
espcimes de at dez graus. Estes so totalmente desprovidos de direitos civis, e muitos deles,no tendo inteligncia suficiente sequer para os propsitos das lutas armadas, so destinados
pelos estados educao. Imobilizados de modo que fique eliminada toda possibilidade
de perigo, so colocados nas salas de aula de nossos jardins de infncia, e l so
usados pelos Conselhos de Educao para dar s crianas da classe mdia o tato e a
inteligncia de que essas desventuradas criaturas so totalmente desprovidas.
Em alguns Estados os espcimes so ocasionalmente alimentados e permite-
se que vivam por muitos anos, mas, nas regies mais temperadas e mais bem
governadas, verifica-se que a longo prazo mais vantajoso para os interesses
educacionais dos jovens dispensar a alimentao e renovar os espcimes todo ms -
tempo aproximado de sobrevivncia sem alimento da classe criminosa. Nas escolas
mais baratas, o que se ganha com a vida prolongada do espcime se perde
parcialmente em gastos com a alimentao, e parcialmente com a diminuio da
exatido dos ngulos, que ficam danificados aps umas poucas semanas de "toques"
constantes. E tambm no devemos nos esquecer de acrescentar, ao enumerar as
vantagens do sistema mais caro, que ele tende - pouco, mas perceptivelmente -
diminuio da populao suprflua de issceles - um objetivo que todo estadista de
Planolndia mantm constantemente em vista. No todo, portanto - embora eu saiba
que em muitos Conselhos de Educao eleitos pelo povo haja uma reao a favor do
"sistema barato", como conhecido -, eu mesmo estou disposto a pensar que esse
um dos muitos casos no qual gastar a maior economia que pode ser feita.
Mas no devo permitir que questes polticas do Conselho de Educao me
afastem de meu assunto. J foi dito o suficiente, acredito, para mostrar que o
reconhecimento por meio do tato no um processo to montono ou vago quanto se
poderia supor, e obviamente mais confivel do que o reconhecimento por meio da
audio. Mas ainda h, como foi mencionado acima, a objeo de que esse mtodotem seus perigos. Por esta razo, muitos das classes mdia e baixa, e todos sem
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exceo das classes poligonal e circular preferem um terceiro mtodo, descrito no
captulo seguinte.
6. DO RECONHECIMENTO PELA VISO
Estou prestes a parecer muito inconsistente: nos captulos anteriores eu disse
que todas as figuras em Planolndia tm a aparncia de uma linha reta. E foi
acrescentado ou indicado que conseqentemente impossvel distinguir por meio do
sentido da viso indivduos de classes diferentes. No entanto, agora estou prestes a
explicar a meus crticos de Espaolndia como conseguimos reconhecer uns aos
outros por meio da viso.
Se, no entanto, o leitor se reportar passagem que diz que o reconhecimento
por meio do tato universal, ele vai encontrar esta restrio: "entre as classes mais
baixas". apenas entre as classes mais altas e em nossos climas temperados que o
reconhecimento pela viso praticado.
Essa capacidade existe em qualquer regio e para qualquer classe devido
neblina que prevalece durante a maior parte do ano em toda parte, exceto nas zonas
trridas. Ela, que entre vocs de Espaolndia claramente um mal, eclipsando a
paisagem, deprimindo os espritos e debilitando a sade, por ns reconhecida como
uma bno, certamente em nada inferior ao prprio ar, e parteira das artes e me dascincias. Mas deixe-me explicar o que quero dizer sem mais apologias a esse benfico
elemento.
Se a neblina no existisse, todas as linhas pareceriam iguais e
indistintamente claras. E isso de fato o que acontece naqueles infelizes pases nos
quais a atmosfera perfeitamente seca e transparente. Mas, sempre que h um rico
suprimento de neblina, os objetos que esto distncia - digamos a 90 centmetros - so
apreciavelmente mais indistintos do que aqueles que esto a uma distncia de 1 metro e 20
centmetros. E o resultado que por meio de cuidadosas e constantes observaes
experimentais da comparativa indistino e clareza, conseguimos inferir com grande exatido aconfigurao do objeto observado.
Um exemplo vai ajudar mais do que um livro de generalidades para tornar claro o que
quero dizer:
Suponha que eu veja dois indivduos se aproximando, cujas classes eu queira
determinar. So, vamos supor, um mercador e um mdico, ou, em outras palavras, um
tringulo eqiltero e um pentgono. Como vou distingui-los?
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Seria bvio para qualquer criana de Espaolndia que tenha aprendido um pouco de
geometria que, se eu puder colocar meu olho de modo que a direo do meu olhar divida ao
meio o ngulo (A) do estranho que se aproxima, meu ngulo de viso vai estar por assim dizer
exatamente entre seus dois lados mais prximos de mim (isto , CA e AB), tal que eu possa
contempl-los imparcialmente e os dois paream ser do mesmo tamanho.
Agora, no caso (1) do mercador, o que verei? Verei uma linha reta DAE, na
qual o ponto mdio (A) estar muito brilhante porque mais prximo de mim. Mas nos
dois lados a linha ir perder o brilho com rapidez, ficando indistinta, porque os lados
AC e AB recuam rapidamente para dentro da neblina, e o que me parecem ser as
extremidades do mercador, isto , D e E, estaro de fato muito indistintas.Por outro lado, no caso (2) do mdico, embora eu tambm v ver uma linha
(D'A'E') com um centro brilhante (A), ela vai perder o brilho menos rapidamente
porque os lados (AC e A'B') recuam menos rapidamente para dentro da neblina. E o que
me parecem ser as extremidades do mdico, isto , D' e E', no vo estar to
indistintasquanto as extremidades do mercador.
O leitor provavelmente vai compreender com esses exemplos como - depois de
um longo treinamento suplementado por experincias constantes - possvel que as
classes cultas entre ns discriminem com considervel preciso entre a classe mdia e
as mais baixas por meio do sentido da viso. Se meus patronos de Espaolndia
apreenderam este conceito geral - pelo menos quanto a conceb-lo como possvel e no
rejeitar meu relato como totalmente inacreditvel -~, terei conseguido tudo que posso
razoavelmente esperar. Se tentasse dar mais detalhes, eu s iria confundir. No
entanto, em considerao aos jovens e inexperientes, que podem talvez inferir a partir
dos dois exemplos simples que eu dei acima, maneira pela qual eu reconheceria meu
pai e meus filhos - que o reconhecimento por meio da viso uma coisa fcil, pode ser
preciso observar que na vida real a maioria dos problemas do reconhecimento pela
viso so muito mais sutis e complexos.
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Por exemplo, se meu pai, o tringulo, se aproximar de mim por acaso apresentando-
me seu lado ao invs de seu ngulo, ento, at que eu pea a ele que gire, ou at que eu tenha
percorrido com os olhos seu outro lado, ficarei em dvida quanto a ele ser uma linha reta, ou,
em outras palavras, uma mulher. Alm disso, quando estou na companhia de um de meus dois
netos hexagonais e olho para um de seus lados (AB) de frente, evidente, como vemos no
diagrama acima, que eu vejo uma linha (AB) relativamente brilhante (que quase no perde o
brilho nas extremidades) e duas linhas menores (CA e BD) mais indistintas e que vo perdendo
ainda mais a nitidez na direo das extremidades C e D.
Mas no devo ceder tentao de discorrer longamente sobre esses assuntos. O
matemtico mais medocre de Espaolndia vai prontamente crer em mim quando eu afirmar
que os problemas da vida que se apresentam para os cultos - quando esto em movimento,
girando, avanando ou retrocedendo, e ao mesmo tempo tentando discriminar por meio da viso
entre vrios polgonos de alta posio social que se movem em direes diferentes, como, por
exemplo, em um salo de baile ou em uma reunio social - devem exigir demais da angularidade
dos mais intelectuais e justificam amplamente as gordas doaes dos Doutos Professores de
Geometria, tanto Esttica quanto Cintica, ilustre Universidade de Wentbridge, onde a Cincia
e a Arte do Reconhecimento Visual so ministradas regularmente a grandes turmas formadas
pela elite dos estados.
So apenas uns poucos rebentos de nossas famlias mais nobres e ricas capazes de
dedicar o tempo e os recursos necessrios prtica dessa nobre e valiosa arte. Mesmo para
mim, um matemtico de posio nada medocre, e av de dois hexgonos auspiciosos e
perfeitamente regulares, descobrir-me em meio a um grupo de polgonos de classe alta girando
s vezes muito desconcertante. E obviamente para um comerciante comum, ou servo, uma viso
dessas quase to ininteligvel quanto seria para voc, leitor, se fosse repentinamente
transportado para nosso pas.
Em meio a tal grupo voc s conseguiria ver ao seu redor uma linha, aparentemente
reta, mas cujas partes variariamirregular e constantemente em brilho ou esmaecimento.
Mesmo que voc tivesse terminado o terceiro ano dos cursos pentagonais e hexagonais naUniversidade, e fosse perfeito seu conhecimento terico sobre o assunto, ainda assim voc
acharia necessrios muitos anos de experincia antes que pudesse se mover em meio a um
grupo elegante sem dar encontres em seus superiores, aos quais contra a etiqueta pedir para
"tocar", e que, por sua cultura superior e civilidade, sabem tudo de seus movimentos enquanto
voc sabe muito pouco ou nada sobre os deles. Resumindo, para se comportar com perfeito
decoro na sociedade poligonal necessrio ser um polgono. Pelo menos esse o doloroso
ensinamento de minha experincia.
surpreendente o quanto a arte do reconhecimento visual - poderia at mesmo
cham-la de instinto - desenvolve-se por meio da prtica habitual e pela absteno do costume
de "tocar". Da mesma forma como, entre vocs, ao surdo e mudo permitido gesticular e usar o
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alfabeto manual, sendo que ele nunca vai aprender a arte mais difcil, mas muito mais valiosa,
da fala muda e da leitura labial, entre ns o mesmo vale quanto a "ver" e "tocar". Quem no incio
da vida recorre a "tocar" nunca vai aprender a "ver" com perfeio.
Por essa razo, entre nossas classes superiores, o ato de "tocar" desencorajado ou
totalmente proibido. Desde o bero, as crianas, ao invs de irem para as escolas pblicas de
primeiro grau (onde a arte do "tocar" ensinada), so mandadas a estabelecimentos de ensino
superior de carter exclusivo. E na nossa ilustre universidade, "tocar" encarado como falha
muito sria, implicando suspenso na primeira vez e expulso na segunda.
Mas entre as classes mais baixas, a arte do reconhecimento visual encarada como
um luxo inatingvel. Um comerciante comum no pode arcar com as despesas de manter seu
filho durante um tero de sua vida em estudos abstratos. Permite-se, portanto, que os filhos dos
pobres "toquem" desde a primeira infncia, e eles dessa forma adquirem uma precocidade e
uma vivacidade inicial que contrastam a princpio favoravelmente com o comportamento inerte,
atrasado e aptico dos jovens parcialmente instrudos da classe poligonal. Mas quando esses
ltimos finalmente terminam o curso universitrio e esto preparados para colocar em
prtica a (co. ria, a mudana que se opera neles quase pode ser descri (a como um
novo nascimento, e em todas as artes, cincias c atividades sociais eles rapidamente
alcanam seus competidores triangulares e se distanciam deles.
Apenas alguns poucos da classe poligonal no conseguem passar no teste
final, ou Exame de Concluso da Universidade. A condio da minoria que fracassa
verdadeiramente lamentvel. Rejeitados pela classe mais alta, so desprezados
tambm pela mais baixa. No tm a capacidade madura e sistematicamente testada
dos bacharis e mestres poligonais, nem a precocidade natural e a versatilidademercurial dos joviais comerciantes. As profisses, os servios pblicos, esto fechados
para eles. E, embora na maioria dos estados no sejam proibidos de se casar, tm a
maior dificuldade em formar alianas adequadas, j que a experincia mostra que a
prole de pais assim to desventurados e mal dotados geralmente desventurada,
quando no positivamente irregular.
desses espcimes do refugo de nossa nobreza que os grandes tumultos e
rebelies do passado em geral tiraram seus lderes, e to grande o dano que surge
da que uma crescente parcela de nossos estadistas mais progressistas da opinio de
que a verdadeira misericrdia prescreveria a supresso de todos eles, determinando
que aqueles que no conseguirem passar no exame final da universidade deveriam ser
aprisionados pelo resto da vida ou exterminados por meio de uma morte indolor.
Mas eu estou me desviando para o assunto irregularidades, uma questo de
interesse to vital que exige um captulo separado.
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7. SOBRE FIGURAS IRREGULARES
Nas pginas anteriores eu pressupus - o que talvez devesse ter sido colocado
no incio como proposio clara e fundamental - que todo ser humano de Planolndia uma figura regular, ou seja, tem estrutura regular. Com isso, quero dizer que uma
mulher necessariamente no apenas uma linha como tambm uma linha reta, que
um arteso ou um soldado tem necessariamente dois de seus lados iguais, que os
comerciantes tm trs lados iguais, os advogados (de cuja classe eu sou um humilde
membro), quatro lados iguais e, em geral, todo polgono tem necessariamente todos os
lados iguais.
O tamanho dos lados obviamente depende da idade do indivduo. Uma fmea
ao nascer tem cerca de dois centmetros e meio de extenso enquanto uma mulher
adulta alta pode chegar a 30 centmetros e meio. Quanto aos machos de todas as
classes, pode-se grosso modo dizer que a extenso dos lados de um adulto, quando
somadas, chega a 60 centmetros ou um pouco mais. Mas o tamanho de nossos lados
no est em pauta. Estou falando da igualdadedos lados, e no necessrio refletir
muito para ver que em Planolndia a vida social como um todo gira em torno do fato
fundamental de que a natureza determina que todas as figuras tenham seus lados
iguais.
Se nossos lados fossem desiguais, nossos ngulos seriam desiguais. Ao invs
de ser suficiente tocar ou estimar visualmente um nico ngulo para determinar aforma de um indivduo, seria necessrio determinar cada ngulo por meio do
experimento de tocar. Mas a vida seria curta demais para todo esse maante apalpar.
A cincia e a arte do reconhecimento visual iriam imediatamente desaparecer. Tocar,
na medida em que uma arte, no permaneceria por muito tempo, as relaes
ficariam perigosas ou impossveis, seria o fim de toda a sensao de confiana, de toda
capacidade de prever, ningum se sentiria seguro para planejar nenhum evento social,
por mais simples que fosse. Resumindo, a civilizao recairia na barbrie.
Estou indo rpido demais para que meus leitores me acompanhem at essas
concluses bvias? Certamente que um instante de reflexo e um nico exemplo da
vida diria devem convencer a todos que todo o nosso sistema social se baseia na
regularidade, ou igualdade dos ngulos. Voc encontra, por exemplo, dois ou trs
comerciantes na rua, imediatamente reconhecidos como comerciantes com uma
olhada em seus ngulos e lados, que rapidamente ficam indistintos, e os convida a
almoar em sua casa. Isso voc faz hoje com total segurana porque todo mundo sabe,
com uma pequena margem de erro, a rea ocupada por um tringulo adulto. Mas
imagine o comerciante arrastando na diagonal atrs de seu vrtice regular e
respeitvel um paralelogramo de uns 30 centmetros. O que voc vai fazer com tal
monstro entalado na porta da sua casa?
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Mas eu estou insultando a inteligncia dos meus leitores atendo-me a
detalhes que devem estar claros para todos que gozam das vantagens de residirem na
Espaolndia. Obviamente as dimenses de um nico ngulo no seriam mais
suficientes nessas circunstncias to portentosas. Levar-se-ia a vida toda tocando ou
inspecionando o permetro dos conhecidos. As dificuldades de se evitar a coliso nomeio de um grupo j so suficientes para pr prova a sagacidade at de um bem-
educado quadrado. Mas se ningum pudesse estimar a regularidade de uma nica
figura no grupo, seria o caos total, e o menor sinal de pnico causaria danos srios, ou
- se houvesse mulheres ou soldados presentes - talvez considerveis perdas de vidas.
A convenincia, portanto, concorda com a natureza no que tange
regularidade da configurao, e a lei tambm notardou a endoss-la. "Irregularidade
de forma" para ns significa o mesmo que uma combinao de conduta imoral e
criminalidade para vocs, ou mais, e da mesma forma tratada. verdade que nofalta quem defenda paradoxos segundo os quais no h uma conexo necessria entre
irregularidades geomtrica e moral. "O irregular", dizem eles, "desde o nascimento
vigiado por seus prprios pais, ridicularizado por seus irmos e irms, negligenciado
pelos empregados domsticos, tratado com escrnio e suspeita pela sociedade e
excludo de todas as posies de responsabilidade, confiana e utilidade. Cada
movimento seu cuidadosamente vigiado pela pela polcia at chegar maioridade e
se apresentar para ser i inspecionado. Ento ou destrudo, caso exceda a margem
estabelecida de desvio, ou ento enclausurado em uma repartio pblica como
escriturrio de stima categoria. Impedido de se casar; forado a mourejar em
emprego desinteressante por um salrio miservel, obrigado a morar e fazer suas
refeies no escritrio e at a ter frias supervisionadas, no de se admirar que tal
meio ambiente torne ressentida e pervertida a natureza humana, mesmo dos melhores
e mais puros.
Toda essa argumentao muito plausvel no me convence, como no
convenceu os mais sbios de nossos estadistas, de que nossos ancestrais erraram ao
dispor como axioma poltico que tolerar a irregularidade incompatvel com a
segurana do estado. Sem dvida, a vida de um irregular dura, mas os interesses damaioria requerem que o seja. Se fosse permitida a existncia de um homem com uma
frente triangular e costas poligonais, e que ele propagasse uma descendncia ainda
mais irregular, o que seria das artes da vida? Devem todas as casas, portas e igrejas
de Planolndia ser alteradas para acomodar tais monstros? Devem nossos bilheteiros
medir o permetro de cada homem antes de permitir que entre no teatro, ou se
acomode em uma sala de conferncia? Os irregulares devem ser dispensados da
milcia? E se no, como se pode impedir que eles levem a devastao s fileiras de
seus camaradas? Alm disso, que tentaes irresistveis de cometer embustes
fraudulentos devem forosamente atacar tal criatura! Como seria fcil para ele entrar
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em uma loja com sua frente poligonal e encomendar mercadorias a um
comerciante crdulo! Por mais que os defensores de uma falsa filantropia pleiteiem a
revogao das leis penais para os irregulares, eu nunca conheci um irregular que no
fosse tambm o que a natureza evidentemente tinha a inteno de que fosse - um
hipcrita, misantropo e, nos limites de suas capacidades, um praticante de todo tipo
de maldade.
No que eu estivesse inclinado a recomendar (hoje) as medidas extremas
adotadas em alguns estados, onde uma criana cujo ngulo se desvia de meio grau do
ngulo correto sumariamente aniquilada ao nascer. Alguns de nossos homens mais
importantes e mais capazes, homens de verdadeiro talento, padeceram na juventude
por causa de desvios de 45 minutos de arco, ou mesmo maiores que isso, e a perda de
suas preciosas vidas teria causado um dano irreparvel ao estado. A arte da cura
tambm conseguiu alguns de seus mais gloriosos triunfos na reduo, noalongamento, trepanao, unio e outras operaes cirrgicas ou dietticas por meio
das quais a irregularidade tem sido curada parcial ou totalmente. Advogando,
portanto, um Caminho do Meio, eu no formularia qualquer linha de demarcao fixa
ou absoluta, mas no perodo em que a estrutura est apenas comeando a se
solidificar, e quando a Junta Mdica declara que a recuperao improvvel, eu
sugeriria que a prole irregular seja indolor e misericordiosamente destruda.
8. DA ANTIGA PRTICA DA PINTURASe meus leitores tm me acompanhado com ateno at aqui, no vo ficar surpresos
em saber que a vida um tanto montona em Planolndia. No quero, obviamente, dizer que
no h batalhas, conspiraes, tumultos, faces e todos aqueles outros fenmenos que
supostamente tornam a Histria interessante. Nem nego que a estranha mistura de problemas
da vida e da Matemtica - continuamente provocando conjecturas e dando oportunidade de
verificao imediata - confiram nossa existncia um sabor que voc, de Espaolndia, no
pode compreender. Falo agora do ponto de vista esttico e artstico quando digo que a vida entre
ns enfadonha; de fato, esttica e artisticamente muito enfadonha.
Como poderia ser diferente quando todas as cenas, todas as paisagens, quadros
histricos, retratos, flores, naturezas-mortas no passam de uma nica linha em que as nicas
diferenas so os graus de brilho e opacidade?
No foi sempre assim. A cor, de acordo com a tradio, pelo perodo de uns seis
sculos, lanou um efmero esplendor nas vidas de nossos ancestrais nas eras mais remotas.
Dizem que um indivduo - um pentgono cujo nome no se sabe ao certo -, tendo descoberto
casualmente os componentes das cores mais simples e um mtodo rudimentar de pintura,
comeou a ornamentar primeiro sua casa e depois seus escravos, seu pai, seus filhos, netos e
finalmente a si mesmo. A convenincia e tambm a beleza dos resultados recomendavam a simesmas. Para onde quer que Cromatista - pois por este nome que as autoridades mais
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fidedignas concordam em cham-lo - voltasse seu corpo matizado, imediatamente
chamava a ateno e conquistava respeito. Ningum precisava ento "toc-lo",
ningum confundia sua frente com suas costas, todos os seus movimentos eram
prontamente determinados por seus vizinhos sem a menor necessidade de clculos,
ningum esbarrava nele nem deixava de abrir caminho para ele. Sua voz foi poupadade ter de dar aquele exaustivo brado por meio do qual ns, quadrados e pentgonos
incolores, freqentemente somos forados a anunciar nossa individualidade quando
nos movemos em meio a um grupo de ignorantes issceles.
A moda pegou como fogo no mato. Em menos de uma semana todos os
quadrados e tringulos da comarca haviam seguido o exemplo de Cromatista e apenas
uns poucos pentgonos mais conservadores ainda resistiam. Em um ms ou dois, at
os dodecgonos tinham sido contagiados pela inovao. Em menos de um ano, o
hbito havia se espalhado entre todos, com exceo da nata da nobreza. Nem
necessrio dizer que o costume logo se espalhou da comarca de Cromatista para as
regies vizinhas, e em duas geraes ningum em Planolndia estava incolor, com
exceo das mulheres e dos sacerdotes.
Neste ponto parecia que a prpria natureza erguera uma barreira e protestava
contra a extenso da inovao a essas duas classes. A existncia de muitos lados era
quase essencial como pretexto para os inovadores. "A inteno da natureza que lado
distinto implique cores distintas" - esse era o sofisma que naquela poca passava de
boca em boca, convertendo cidades inteiras nova cultura. Mas, evidentemente, esse
adgio no se aplicava a nossos sacerdotes e mulheres. Estas ltimas tinham apenasum lado, e, portanto - falando coletiva e pedantemente -, nenhum lado. Os primeiros -
se ao menos reivindicassem a condio de serem real e verdadeiramente crculos, e
no meros polgonos da classe alta com uni nmero infinitamente grande de lados
infinitesimalmente pequenos - tinham o hbito de se gabar (o que as mulheres
reconheciam e deploravam) de tambm no terem lados, sendo abenoados com um
permetro de uma linha, ou, em outras palavras, uma circunferncia. Da aconteceu que
essas duas classes no podiam ver qualquer valor no dito axioma sobre a "distino de lados
implicar distino de cores". E, quando todos os outros haviam sucumbido ao fascnio pela
ornamentao corporal, apenas os sacerdotes e as mulheres ainda continuavam livres da
profanao pela tinta.
Imoral, libertina, anrquica, no cientfica - chame como quiser - mas, de um ponto de
vista esttico, a poca da Revolta das Cores foi a gloriosa infncia da arte em Planolndia - uma
infncia, diga-se de passagem, que nunca alcanou a maturidade, nem sequer chegou ao
desabrochar da juventude. Viver era ento em si um prazer porque viver implicava ver. Mesmo
em pequenos grupos, era um prazer contemplar a companhia. Dizem que as nuanas ricamente
variadas da congregao na igreja, ou no teatro, mais de uma vez foram perturbadoras demais
para nossos melhores professores e atores, mas que o mais arrebatador de tudo era a indizvel
magnificncia de uma revista das tropas militares.A viso de uma linha de combate de 20 mil issceles repentinamente dando meia-volta
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e trocando o sombrio preto de suas bases pelo laranja e o prpura dos dois lados que formam o
ngulo agudo; a milcia de tringulos eqilteros em vermelho, branco e azul; a cor de malva, o
azul-marinho, o amarelo vivo e ferrugem dos quadrados da artilharia girando rapidamente perto
de seus canhes escarlates; o caleidoscpio de pentgonos e hexgonos de cinco e seis cores
disparando pelo campo em suas funes de cirurgies, gemetras e ajudantes de ordens - tudo
isso pde muito bem ter sido suficiente para dar credibilidade famosa histria de como um
famoso crculo, sobrepujado pela beleza artstica das foras a seu comando, arremessou de lado
seu basto de marechal e sua coroa real exclamando que da em diante ele os estava trocando
pelo lpis do artista. A grandiosidade e a glria do desenvolvimento sensorial daquela poca so
indicadas em parte pela linguagem e pelo vocabulrio do perodo. As expresses mais comuns
usadas pelos cidados mais comuns da poca da Revolta das Cores parecem ter sido tingidas
com um matiz mais rico de palavras ou pensamentos, e at hoje devemos quela poca nossa
melhor poesia e o ritmo que ainda perdura na fala mais cientfica destes dias modernos.
9. DA LEI UNIVERSAL DA COR
Mas, enquanto isso, as artes intelectuais estavam se deteriorando
rapidamente.
A arte do reconhecimento pela viso, no sendo mais necessria, no era
mais praticada, e os estudos de geometria, estatstica, cintica e outros assuntos afins
logo vieram a ser considerados suprfluos e foram menosprezados e esquecidos at em
nossa universidade. A inferior arte do tato rapidamente teve o mesmo destino em
nossas escolas de primeiro grau. Ento, as classes de issceles, afirmando que os
espcimes no eram mais usados nem necessrios, e recusando-se a pagar o tributo
habitual das classes criminais para com a educao, foram ficando a cada dia mais
numerosas e insolentes por estarem livres do antigo fardo que havia tido o salutar
efeito de, ao mesmo tempo, domar sua natureza brutal e reduzir sua quantidade
excessiva.
Ano a ano os soldados e os artesos comearam a afirmar maisveementemente - e com cada vez mais razo - que no havia muita diferena entre eles
e as classes mais altas de polgonos, agora que eles haviam sido elevados igualdade
com estes ltimos, e capacitados a lidar com todas as dificuldades e a resolver todos
os problemas da vida, fossem eles estticos ou cinticos, pelo simples processo de
reconhecimento pela cor. No se contentando com o descaso natural que o
reconhecimento pela viso estava tendo, comearam ousadamente a exigir a proibio
legal de todas as "artes aristocrticas e dominantes" e a conseqente abolio de todas
as dotaes para os estudos de reconhecimento pela viso, matemtica e tato. Logo comearam
a insistir que, na medida em que a cor, que era uma segunda natureza, havia acabado com a
necessidade de distines aristocrticas, a lei deveria seguir o mesmo caminho, e que dali em
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diante todos os indivduos e todas as classes deveriam ser reconhecidas como absolutamente
iguais e merecedoras dos mesmos direitos.
Percebendo as ordens superiores vacilantes e indecisas, os lderes da revoluo foram
ainda mais longe em suas reivindicaes e finalmente exigiram que todas as classes sem
exceo, os sacerdotes e as mulheres inclusive deveriam homenagear as cores se sujeitando a
serem pintados. Quando se objetou que os sacerdotes e as mulheres no tinham lados, eles
retrucaram que a natureza e a convenincia juntas determinavam que a metade da frente de
todos os seres humanos (ou seja, a metade que contm o olho e a boca) deveria ser distinguvel
da metade de trs. Eles, portanto, apresentaram a uma assemblia geral extraordinria de todos
os Estados de Planolndia um projeto de lei propondo que em cada mulher a metade que
contm o olho e a boca deveria ser pintada de vermelho e a outra metade, de verde. Os
sacerdotes deveriam tambm ser pintados, usando-se o vermelho no semicrculo em que o olho
e a boca formavam o ponto mdio, enquanto o outro semicrculo, o de trs, deveria ser colorido
de verde.
Esta foi uma proposta bastante astuta, e na verdade no foi feita por um isscele - jque um ser to degradado no teria angularidade suficiente para apreciar, e muito menos
arquitetar, uma poltica desse tipo - e, sim, por um crculo irregular que, em vez de ser
destrudo na infncia, foi poupado por uma tola indulgncia que levou seu pas runa e
causou a destruio de uma infinidade de seus seguidores.
Por um lado, essa proposta tinha por objetivo converter as mulheres de todas as
classes inovao Cromtica. Pois ao designar s mulheres as mesmas duas cores que eram
designadas aos sacerdotes, os revolucionrios asseguravam que, em certas posies, toda
mulher se pareceria comum sacerdote e seria tratada com o respeito e a deferncia equivalentes
- proposta que no poderia deixar de atrair o sexo feminino em massa.
Mas para alguns de meus leitores, a possibilidade de que sacerdotes e
mulheres tenham aparncia idntica, devido nova legislao, pode no estar clara.
Se esse o caso, umas poucas palavrinhas vo esclarecer tudo.
Imagine uma mulher devidamente ornamentada de acordo com o novo cdigo,
com a metade da frente (isto , a metade que contm o olho e a boca) vermelha e a
metade de trs verde. Olhe para ela de um dos lados. Obviamente voc vai v-la como
uma linha reta metade vermelhae metade verde.
Agora imagine um sacerdote cuja boca esteja em M e cujo semicrculo da
frente (AMB) esteja por isso colorido de vermelho, enquanto que seu semicrculo de
trs esteja verde, tal que o dimetro AB separe o verde do vermelho. Se voc olhar
para o grande homem de modo que seu olho esteja na mesma linha reta que o
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dimetro que separa as cores (AB), o que voc vai ver uma linha reta (CBD) da qual
uma metade (CB) ser vermelhae a outra (BD), verde. A linha toda (CD) ser talvez
ligeiramente mais curta do que a de uma mulher adulta e ir se atenuando mais
rapidamente na direo de suas extremidades, mas o fato de as cores serem idnticas
lhe daria a impresso instantnea de identidade de classe, fazendo com que vocficasse desatento a outros detalhes. Tenha em mente o declnio do reconhecimento
pela viso que ameaava a sociedade na poca da Revolta das Cores; acrescente a
certeza de que as mulheres rapidamente aprenderiam a atenuar suas extremidades
para imitar os crculos, e ento vai ficar certamente bvio para voc, meu caro leitor,
que a Lei da Cor nos colocou em grande perigo de confundir um sacerdote com uma
jovem quanto essa possibilidade deve ter sido sedutora para o sexo frgil pode
prontamente ser imaginado. Elas anteviam encantadas a confuso que se seguiria.
Em casa, poderiam ouvir segredos polticos e eclesisticos dirigidos no a elas, mas,
sim, a seus maridos e irmos, e poderiam at dar ordens em nome do crculo
sacerdotal. Fora de casa, a notvel combinao de vermelho e verde sem o acrscimo
de qualquer outra cor certamente induziria as pessoas comuns a enganos
interminveis e os passantes entregariam s mulheres o que os crculos tivessem
perdido pelo caminho. Quanto ao escndalo que cercaria a classe circular se a
conduta frvola e inconveniente das mulheres fosse imputada a eles, e quanto
subseqente subverso da Constituio, no se poderia esperar que o sexo feminino
se preocupasse com essas consideraes. Mesmos nos lares dos crculos, as mulheres
eram totalmente a favor da Lei Universal da Cor.O segundo objetivo da Lei era a gradual desmoralizao dos prprios crculos.
Na decadncia intelectual generalizada, eles ainda preservaram sua antiga clareza e
poder intelectual. Desde a mais tenra infncia, familiarizados em seus lares circulares
com a total ausncia de cor, apenas os nobres preservaram a sacrossanta arte do
reconhecimento pela viso, com todas as vantagens resultantes daquele admirvel
treinamento do intelecto. Por isso, at a data da introduo da Lei Universal da Cor, os
crculos haviam no apenas se mantido firmes como tambm aumentado sua
liderana sobre as outras classes, abstendo-se de seguir a moda.
Ento o ardiloso irregular, a quem eu descrevi anteriormente como o
verdadeiro autor dessa diablica lei, resolveu de um s golpe rebaixar o status da
Hierarquia, forando-os a se submeterem profanao pela cor, e, ao mesmo tempo, a
destrurem suas oportunidades domsticas de se exercitarem na arte do
reconhecimento pela viso, para assim enfraquecer seus intelectos, privando-os de
seus lares puros e incolores. Uma vez sujeitos depravao Cromtica, os pais e as
crianas da classe dos crculos desmoralizariam uns aos outros. O nico modo de a
criana circular exercitar seu intelecto era na soluo do problema de como distinguir
o pai da me - problema passvel demais de ser deturpado por imposturas maternais
que abalavam a f da criana em todas as concluses lgicas. Assim, aos poucos, o
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brilho intelectual da classe sacerdotal declinaria e o caminho estaria ento aberto para
a total destruio de todo o legislativo aristocrtico e para a subverso de no