17
47 Revista de Direito do Cesusc. N o 2. Jan/Jun 2007. Pogrebinschi. O Direito entre o Homem e o Cidadão. Marx e a Crítica dos Direitos Humanos Thamy Pogrebinschi A crítica da modernidade política empreendida por Marx faz da crítica do Estado e de suas instituições também uma crítica do direito. Há em Marx uma efetiva teoria crítica do direito moderno. Há mais, portanto, do que certa vulgata marxista soube explorar, fazendo do direito simplesmente uma acusação do direito burgu- ês, um mero reflexo da relação econômica capitalista, ou um sim- ples artefato manipulado pela classe dominante. Na recusa do di- reito moderno, refugia-se a recusa dos princípios do Iluminismo e na recusa destes, revela-se um anti-juridicismo latente desde os pri- meiros escritos de Marx. Como ponto de partida de sua atividade intelectual, afinal, ele se debruçaria sobre [...] a filosofia especulativa do direito, esse pensamento abstrato e extravagante sobre o Estado moderno 1 . Tem-se aqui uma primeira definição: a filosofia do direito pos- sui uma forma especulativa e, enquanto tal, apresenta-se como um pensamento abstrato sobre o Estado moderno (esta crítica eviden- temente personifica-se em Hegel). Em outras palavras, a filosofia do direito é a ciência especulativa do Estado moderno, é o pensa- mento que sobre ele se assenta. Indissociáveis, portanto, o direito e o Estado moderno. É isso, afinal de contas, que Marx mostra na Ideologia Alemã. Não deve esquecer-se: o direito não tem uma história própria, assim como a religião 2 . A história do direito, por conseguinte, é a histó- ria do Estado moderno, que por sua vez também é a história do modo de produção capitalista. 1 (Marx, 1844a, p. 250). 2 (Marx, 1846, p. 170).

Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

  • Upload
    ebvp

  • View
    20

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos

Citation preview

Page 1: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

47Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

O Direito entreo Homem e o Cidadão.Marx e a Críticados Direitos Humanos

Thamy Pogrebinschi

A crítica da modernidade política empreendida por Marx fazda crítica do Estado e de suas instituições também uma crítica dodireito. Há em Marx uma efetiva teoria crítica do direito moderno.Há mais, portanto, do que certa vulgata marxista soube explorar,fazendo do direito simplesmente uma acusação do direito burgu-ês, um mero reflexo da relação econômica capitalista, ou um sim-ples artefato manipulado pela classe dominante. Na recusa do di-reito moderno, refugia-se a recusa dos princípios do Iluminismo ena recusa destes, revela-se um anti-juridicismo latente desde os pri-meiros escritos de Marx. Como ponto de partida de sua atividadeintelectual, afinal, ele se debruçaria sobre [...] a filosofia especulativa dodireito, esse pensamento abstrato e extravagante sobre o Estado moderno1.

Tem-se aqui uma primeira definição: a filosofia do direito pos-sui uma forma especulativa e, enquanto tal, apresenta-se como umpensamento abstrato sobre o Estado moderno (esta crítica eviden-temente personifica-se em Hegel). Em outras palavras, a filosofiado direito é a ciência especulativa do Estado moderno, é o pensa-mento que sobre ele se assenta. Indissociáveis, portanto, o direito eo Estado moderno. É isso, afinal de contas, que Marx mostra naIdeologia Alemã. Não deve esquecer-se: o direito não tem uma história própria,assim como a religião2. A história do direito, por conseguinte, é a histó-ria do Estado moderno, que por sua vez também é a história domodo de produção capitalista.

1 (Marx, 1844a, p. 250).

2 (Marx, 1846, p. 170).

Page 2: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

48Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

Do que se segue [...] o modo medieval da produção, cuja expressãopolítica é o privilégio; e o modo moderno de produção, cuja expressão é o direitotout court3. O Estado e o direito modernos se constituem em umúnico e mesmo movimento, o qual, por sua vez, identifica-se como movimento de constituição do capitalismo. Nesse movimentoúnico, é natural que o direito siga o Estado em sua separação dasociedade civil. É assim, afinal, que o direito moderno irá caracte-rizar-se pela separação entre direito público e direito privado. Estedualismo nada mais é do que uma decorrência da separação entreEstado e sociedade civil.

Conforme bem lembra Althusser, o tema da ‘separação’ doEstado (mesmo se entendemos estritamente aqui, como ele faz, oEstado como a superestrutura política que, sendo distinta da base,dela é separada) é indissociável da questão do direito. Afinal, ojusnaturalismo desde sempre teria repousado sob aquilo que Al-thusser qualifica como uma ‘impostura’: a impostura de ter resolvi-do em termos de direito privado as questões do direito público4.Todavia, se com a separação entre Estado e sociedade civil o direi-to se desdobra em público e privado, isso não implica logicamenteque o direito público seja o direito do Estado e o direito privadoaquele da sociedade civil. Nem tampouco implica que outra cisãoque se segue àquela, qual seja a cisão entre direito formal e direitomaterial, signifique que o direito formal seja o direito do Estado eo direito material seja o direito da sociedade civil. Muito emboraestes dualismos que envolvem o direito assim pareçam de fatoexpressar-se, e muito embora o divórcio entre Estado e sociedadecivil os explique, a principal separação que a modernidade políticaimpõe ao direito é aquela que faz com que, por meio dele, o ho-mem separe-se do cidadão.

A separação entre homem e cidadão consiste em uma das conse-qüências nefastas do pensamento político moderno, e um dos engo-dos mais bem articulados do discurso jurídico pós Revolução France-sa. Este é, com efeito, um dos principais temas de A Questão Judaica,certamente um dos mais belos e mal compreendidos textos de Marx.Quando um documento legal, como a constituição, passa a chamar ohomem de cidadão e, supostamente, passa a declarar-lhe direitos, cor-rompe-se a lógica da modernidade: o homem passa a ser criado pelodireito, que lhe provê uma existência jurídica, quando, na verdade, ésempre o homem que deve criar o direito e não depender de suagarantia a fim de afirmar a sua existência. Com o objetivo de demons-trar esse ponto, este artigo retomará a crítica de Marx aos direitoshumanos a partir de uma análise de A Questão Judaica.

3 (Idem, p. 231).

4 (Althusser, 1994, p. 28).

Page 3: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

49Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

O Direito entre o Homem e o Cidadão

Os direitos humanos, em sua forma autêntica, escreve Marx,são os direitos humanos tal como declarados por [...] seus descobrido-res norte-americanos e franceses5. De acordo com Marx, esses direitossão em parte direitos políticos, isto é, [...] direitos que só podem serexercidos em comunidade com outros homens cujo conteúdo é a participa-ção no Estado. Esses direitos políticos inserem-se [...] na categoria deliberdade política, na categoria dos direitos civis. Marx, assim, dá a entenderque esta é apenas uma parte dos chamados direitos humanos (droitsde l’homme), que por sua vez são distintos dos chamados direitos docidadão (droits du citoyen). Além dos direitos humanos contidos nacategoria ‘direitos ou liberdades políticas’, encontram-se aquelescomo a liberdade de culto e de expressão, vale dizer, direitos quenão requerem a comunidade política para sua realização: trata-seafinal dos clássicos direitos individuais, os ‘direitos humanos em ge-ral’6.

Com efeito, Marx identifica nos direitos consagrados pela Re-volução Francesa a separação entre o cidadão e o homem e, dentrodeste último, uma cisão entre o seu aspecto civil e o político. ADeclaração de direitos do Homem e do Cidadão de 1789 nãoconsidera como autêntico e verdadeiro o homem senão enquantocidadão, e este senão enquanto um cidadão burguês: o homem real sóé reconhecido sob a forma do indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somentesob a forma do citoyen abstrato7. De modo que, por isso, [...] os direitoshumanos, ao contrário dos direitos do cidadão, são apenas direitos do membroda sociedade burguesa, do homem egoísta, do homem separado do homem e dacomunidade8.

A crítica que faz Marx do caráter abstrato dos direitos cataloga-dos na Declaração de 1789 não é nova, tendo partido de De Mais-tre, passado por Taine e chegado até Hegel. De certo modo – e háaqueles, como Mirabeau, que defendem essa posição –cada umdos direitos e liberdades esculpidos na Declaração pode ser lidocomo a representação de uma espécie de antítese de tudo aquiloque os revolucionários desejavam combater em seu contexto histó-rico. Com efeito, o ímpeto revolucionário transcendia não apenas asua época, mas também o seu território. O que estava em jogo naFrança de 1789 transcendia o tempo e o espaço. A crítica de Marxà abstração dos direitos humanos se destaca por sublinhar, poroutro lado, o excessivo grau de contingência da Declaração de 1789.Esta era, afinal, tão historicamente determinada que impossibilitavaqualquer defesa do homem genérico. O homem que se fez sujeito e

5 (Marx, 1844, p. 32).

6 (Idem, p. 32-33).

7 (Idem, p. 42).

8 (Idem, p. 34).

Page 4: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

50Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

objeto da Declaração era, segundo Marx, um homem contingente:o burguês. Esse homem, colocado no centro da Declaração dedireitos, preocupava-se apenas com a sua própria emancipação, oumelhor, com a emancipação de sua classe, a burguesia, contra aaristocracia. Os direitos esculpidos na Declaração de 1789 definiti-vamente não eram os direitos do quarto estado, tampouco os di-reitos da humanidade genérica, mas sim os direitos do homemburguês, do homem egoísta e isolado dos outros homens e dacomunidade, do homem-mônada, do homem fechado em si mes-mo.

Os droits de l’homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dosdroits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homme que aqui se distingue docitoyen? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se cha-ma membro da sociedade burguesa de ‘homem’, homem por antonomásia,e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato?Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essênciada emancipação política9.

A Revolução Francesa levou a separação entre o Estado e asociedade civil às suas últimas conseqüências, tornando seu divór-cio inexorável. Distinguidos os direitos do homem dos direitos docidadão, separam-se definitivamente homem e cidadão. Confor-me acrescenta Balibar, [...] os direitos humanos, isolados dos direitos docidadão, aparecem então como a expressão especulativa da cisão da essênciahumana, entre a realidade das desigualdades e a ficção da comunidade10. Estetalvez tenha sido, na perspectiva de Marx, um dos principais errosdos revolucionários franceses: ver no homem apenas o cidadão eneste apenas o burguês. A partir do momento em que o cidadão édeclarado servo do homem egoísta, degrada-se a esfera públicaem favor da esfera privada: os direitos humanos, tal como criadose declarados pelos franceses, remetem ao plano dos interesses enão ao plano da cidadania real. O homem possuidor de direitos daDeclaração, aos olhos de Marx, era apenas e nada mais do que ohomem-cidadão, ou o cidadão-burguês.

O conflito entre o homem, como crente de uma religião especial e suacidadania, e os demais homens enquanto membros da comunidade, reduz-se ao divórcio secular entre o Estado político e a sociedade civil. (...) Adiferença entre o homem religioso e o cidadão é a diferença entre o comer-ciante e o cidadão, entre o trabalhador e o cidadão, entre o latifundiário eo cidadão, entre o indivíduo que vive e o cidadão11.

Marx concorda com Benjamin Constant, a quem teria lido comveemência, na afirmação de que o indivíduo privado é uma inven-ção típica da civilização moderna. O Estado moderno nascido da

9 (Id. Ibidem, p. 34).

10 (Balibar, 1993, p. 90).

11 (Marx, 1844, p. 23-24).

Page 5: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

51Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

Revolução Francesa declara o individualismo como essência damodernidade e afirma o homem moderno como centro de umarede de interesses privados que fazem dele um ser auto-suficiente eisolado dos demais homens. A crítica do individualismo da Decla-ração de direitos do Homem e do Cidadão de 1789, de De Mais-tre a Burke, em alguma medida parece indicar que a justificação dademocracia como uma boa forma de governo depende de umaconcepção individualista de sociedade. Para Marx a essência doEstado democrático moderno constituía, na verdade, a essência daRevolução. A cidadania moderna conferida pelos direitos positiva-dos na Declaração de 1789 transforma a noção de representação,vinculando-a irremediavelmente à propriedade privada. Os direi-tos humanos passam a ser o discurso por meio do qual, por umlado, se mascara a exploração e a dominação e, por outro, se expri-me a luta de classes e a resistência daqueles que são explorados edominados. Tanto quanto rejeitar o caráter individualista dos direi-tos humanos, Marx preocupava-se em rejeitar o seu fundamento, apropriedade privada.

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmodo homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, doindivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em suaarbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber ohomem como um ser genérico, estes direitos, pelo contrário, fazem da pró-pria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, umalimitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém emcoesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conserva-ção de suas propriedades e de suas individualidades egoístas12.

Marx via o evento Revolução Francesa como uma dialética en-tre o Estado e a sociedade civil, na medida em que a emancipaçãopolítica supostamente levada a cabo pela burguesia revolucionáriafrancesa consistiu simplesmente na emancipação da sociedade civilem relação à política. O erro irrecuperável dos revolucionários foiter declarado a vida política como um simples meio, cujo fim seriaa vida da sociedade burguesa moderna. Os privilégios feudais sãoassim substituídos pelo direito – é este que passa então a mediar arelação entre os homens, exacerbando sua separação em relação asi próprios e em relação à sociedade em que vivem. O homemegoísta, membro típico da sociedade moderna, passa a ser a base, apremissa do Estado político e, como tal, é reconhecido nos direi-tos humanos.

É evidente que a prática revolucionária está em contradição flagrante coma teoria (...) mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verifica-

12 (Idem, p. 37).

Page 6: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

52Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

mos que os emancipadores políticos rebaixam até mesmo a cidadania, acomunidade política, ao papel de simples meio para a conservação doschamados direitos humanos13.

Os revolucionários franceses, portanto, confundem o fim como meio e o meio com o fim, confundem a teoria com a prática e agarantia dos direitos humanos com a sua finalidade. Será então quea Revolução Francesa pode realmente ser tomada como exemploacabado de um processo de emancipação política? Ou tratou-seapenas de uma tentativa – tentativa esta que se tornou mal-sucedi-da ao positivar, literalmente, no direito, limites reais à emancipaçãohumana, da qual a emancipação política é apenas uma parte? Háum trecho de A Questão Judaica que parece conter a resposta:

O homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, liberdade religiosa.Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Nãose libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial14.

Ora, sabe-se que, para Marx, liberdade e emancipação são con-ceitos bem distintos, assim como são irreconciliáveis suas idéias delei e liberdade. Os revolucionários franceses evidentemente nãoobtiveram a emancipação desejada por Marx; o que eles fizeramfoi apenas conter na forma da lei o conceito burguês (ou melhor,liberal) de liberdade. Trata-se esta liberdade, antes de mais nada, deuma liberdade puramente individual. A Declaração de 1789, comoé sabido, define a liberdade da seguinte forma:

Art. 4: A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique osoutros: assim, o exercício dos direitos naturais de qualquer homem nãotem limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedadeo gozo desses mesmos direitos. Estes limites não podem ser determinadossenão pela lei.

Tal definição de liberdade estabelece como limite para a açãohumana a alteridade, isto é, o outro, e não apenas a lei – tida desdeMontesquieu como parâmetro clássico da liberdade. Assim, os re-volucionários franceses definiram a liberdade como um direito, odireito de ‘poder de fazer tudo o que não prejudique os outros’,mas, por outro lado, limitaram esse direito justamente com a lei, demodo que o resultado disso é que esse conceito de liberdade acabapor ter o mesmo significado daquele proposto por Montesquieu.Em outras palavras, a concepção de liberdade aqui em jogo éeminentemente negativa, isto é, permite-se aos indivíduos tudo aquiloque o Estado, através das leis, não proíba. Vale dizer, a isenção doEstado define a esfera de ação livre dos homens, mas, ressalte-se, oEstado não deixa aqui de ser uma espécie de mediador entre oshomens e a sua própria liberdade: é o Estado que concede a liber-

13 (Idem, p. 38).

14 (Idem, p. 41).

Page 7: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

53Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

dade aos homens ao se eximir de promulgar leis que a restrinjam.Trata-se de um conceito de liberdade que pressupõe o Estado, emais: que dele depende.

A crítica de Marx ao conceito de liberdade tal como definidona Declaração de 1789 recai sobre a existência de um limite à açãohumana e, principalmente, sobre o fato desse limite ser a lei. Valen-do-se de uma analogia entre as definições revolucionárias de liber-dade e de propriedade, Marx diz: o limite dentro do qual todo homempode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assimcomo as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras15. A leié, portanto, uma estaca que delimita a esfera de ação – a liberdade– dos homens e entre os homens. Essa é, portanto, a liberdademoderna, a liberdade tal como definida na Declaração francesa: aliberdade do homem isolado, do homem-mônada, do homemque se dobra sobre si mesmo.

O conceito de liberdade tal como cunhado pelos chamadosfundadores dos direitos humanos implica, por conseguinte, na de-sunião dos homens, na separação deles em relação aos seus seme-lhantes. Conforme nos mostra Marx, a liberdade é, afinal, o direitoa essa dissociação, [...] o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mes-mo16. Convergente com essa idéia se encontra a definição de pro-priedade contida também na Declaração dos Direitos do Homeme do Cidadão. O direito à propriedade privada consistiria, de acor-do com Marx, em nada mais do que a aplicação prática do direitode liberdade, deste direito moderno de liberdade consagrado pelaRevolução Francesa. A propriedade privada seria, assim, o direito dointeresse pessoal, o direito de desfrutar e dispor arbitrariamente dopatrimônio sem atender aos demais homens, isto é, de forma in-dependente da sociedade e da coletividade que nela habita.

São justamente esses conceitos de liberdade e de propriedadeprivada, tal como esculpidos na Declaração de 1789, que constitu-em, de acordo com Marx, o fundamento da sociedade moderna.A Revolução Francesa, portanto, viria a consolidar a emancipaçãopolítica da burguesia, engendrando em si a irrupção dessa classesocial sob a forma de que ela se revestirá no mundo moderno. Osdireitos humanos, em cujo vértice se encontram a liberdade e apropriedade privada, consistem na garantia que a burguesia buscaconsolidar para tornar e manter estável a sua própria afirmação. Oímpeto de universalização contido na Declaração de direitos fran-cesa se identifica com a ambição, ao mesmo tempo universalista euniversalizante da burguesia, de seu modo de vida, de sua hegemo-nia, de sua necessidade de se manter estável, de sua própria garantia

15 (Idem, p. 35).

16 (Idem).

Page 8: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

54Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

como classe e enquanto a classe que detém o poder e a produçãoestatal de direitos.

Marx, por conseguinte, jamais vira de bom grado a pretensãode universalidade contida nos direitos humanos. Sobretudo dessesdireitos declarados pelos revolucionários franceses. Os direitos daDeclaração de 1789 não constituem, afinal, a expressão de princí-pios universais, mas apenas dos interesses de determinada classe: aburguesia. A humanidade que é universalizada pela Declaração re-sume-se meramente a um indivíduo – um indivíduo egoísta e bur-guês. A Declaração de 1789 foi afinal inspirada em uma concepçãoindividualista de sociedade, uma sociedade fundada unicamente nosinteresses particulares. O Estado moderno que emerge da Revolu-ção Francesa se afirma na forma de um Estado supostamente de-mocrático e representativo, que reflete em sua natureza representa-tiva a separação entre sociedade civil e Estado, e em sua naturezademocrática a abstração dos direitos iguais.

A crítica de Marx ao individualismo inerente às definições deliberdade e propriedade se estende aos outros direitos positivadosna Declaração de 1789. Assim, ele dirá sobre o conceito de igual-dade que, afastado de seu sentido político, [...] nada mais é senão aliberdade da liberté, a saber : que todo homem se considere igual, como mônadapresa a si mesma. Do mesmo modo, a segurança, apresentada como[...] o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segun-do o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seusmembros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade17. Asegurança implica, portanto, a preservação do egoísmo burguês, ejamais a sua superação. Ela é a garantia do livre exercício do egoís-mo e do interesse pessoal sob a forma de garantia dos direitoshumanos. Em outras palavras, o direito à segurança consistiria na‘garantia da garantia’ da burguesia.

É um pouco estranho que um povo que começa precisamente a libertar-se,que começa a derrubar as barreiras entre os distintos membros que ocompõe, a criar uma consciência política, que este povo proclame solene-mente a legitimidade do homem egoísta, dissociado de seus semelhantes e dacomunidade18.

A Liberdade Humana como Resistência ao Estado

É interessante notar que esse escrutínio crítico, ao qual Marxsubmete a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de1789, se estende também à Declaração promulgada em 1795, masque, no entanto, não entrou para a história. Afirma Marx, na se-

17 (Id.Ibidem).

18 (Ibidem).

Page 9: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

55Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

qüência do trecho acima: [...] e, ainda mais estranho, que repita esta mesmaproclamação no momento em que só a mais heróica abnegação poderia salvar opaís19. Chama atenção aqui o fato de que Marx isentou dessa críticaa Declaração jacobina de 1793. Isso conduz a uma questão quemerece ser objeto de reflexão: será que a crítica de Marx aos direi-tos humanos não seria diferente se a Declaração definitivamenteadotada pela Revolução Francesa e pela história fosse a de 1793 enão a de 1789?

Com efeito, com o jacobinismo, afirma-se um conceito de li-berdade bastante distinto daquele positivado em 1789. Em seu dis-curso sobre a nova declaração de direitos que viria a ser adotadaem 1793, Robespierre propõe a seguinte definição de liberdade:

A liberdade é o poder que o homem tem de exercer como quiser todas assuas faculdades. Tem como regra a justiça, e, como limites os direitos deoutrem; tem por princípio a natureza, e por salvaguarda a lei20.

Por sua vez, a Declaração de 1793 assim reflete essa fórmulaelaborada pelo líder dos jacobinos:

Art.6: A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo o quenão prejudique os direitos de outrem: ela tem por princípio a natureza; porregra a justiça; por salvaguarda a lei; seu limite moral está nessa máxi-ma: não faças ao outro o que não quer que te seja feito.

Tem-se aqui, portanto, duas diferenças importantes em relaçãoà Declaração de 1789. Em primeiro lugar, a liberdade deixa de serdefinida como um direito e passa a ser definida como um poderdo homem, um poder humano. Isso implica que a liberdade deixede ser pensada como uma faculdade e, mais, deixe de ser pensadacomo uma faculdade concedida pelo Estado aos homens. Em se-gundo lugar, e talvez mais importante, a lei deixa de ser um limite àliberdade, passando a ser apenas um instrumento para a sua salva-guarda. Contudo, apesar de a definição de liberdade jacobina serbem mais próxima de Marx do que aquela consolidada pelos cons-tituintes de 1789, será o conceito jacobino de resistência à opressãoque encantará o pensador alemão.

O direito de resistência à opressão foi afirmado pela Declara-ção de 1789, no artigo 2°, ao lado dos outros ‘direitos naturais eimprescritíveis do homem’. É curioso constatar, contudo, que essaprevisão se deu em conjunção com o artigo 7°, o qual, se por umlado proíbe e pune o exercício arbitrário do poder, por outro res-tringe o direito de resistência definido no artigo 2°, uma vez quetorna culpável o cidadão que resistir à convocação ou detençãodeterminada em virtude da lei21. O artigo 7°, portanto, anula o va-lor da previsão da resistência à opressão entre os principais direitos

19 (Ibidem).

20 (Robespierre, 1793, p. 91).

21 A Declaração dos Direitosdo Homem e do Cidadão de1789 prescreve em seu artigo2º: O fim de toda associaçãopolítica é a conservação dos di-reitos naturais e imprescritíveisdo homem. Estes direitos são aliberdade, a propriedade, a se-gurança e a resistência à opres-são; E em seu artigo 7º: Ne-nhum homem pode ser acusado,preso ou detido sena nos casosdeterminados pela lei e segundoas formas por ela prescritas.Aqueles que solicitam, expe-dem, executam ou fazem execu-tar ordens arbitrárias devem serpunidos; mas todo cidadão con-vocado ou detido em virtude dalei deve obedecer imediatamen-te: ele se torna culpado pela re-sistência.

Page 10: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

56Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

mencionados no artigo 2°, ao situar a lei como um limite dessedireito. A previsão da lei como limite ao exercício da resistência éum fato muito curioso, uma vez que nem o governo e nem mesmoa lei podem garantir o direito de resistência, esta ainda menos doque aquele. A resistência é um corolário da obrigação política, con-tudo, a coexistência simultânea desses dois conceitos é rigorosa-mente impossível. A resistência opõe-se frontal e diametralmente àobrigação. É justamente a ausência ou o esgotamento do reconhe-cimento da autoridade política e da lei que desencadeia o direito deresistência. O direito de resistência tutela os demais direitos daDeclaração, mas nenhum outro direito ou garantia tem o condãode tutelá-lo. Há uma impossibilidade prática, efetivamente, de odireito positivo promover essa tutela, mas a presença do direitonatural era tamanha entre os revolucionários franceses que, se ofundamento da resistência nele se encontra, sua legitimidade trans-cende a legalidade, de modo que na Declaração de 1789 a lei acabapor funcionar ao mesmo tempo como parâmetro e limite da resis-tência. Ou seja, se, por um lado, a violação da lei legitima a resistên-cia, por outro, é essa mesma lei que estabelece os limites do exercí-cio legítimo desse direito. Em outras palavras, a resistência deve sedar no âmbito da lei, como se isso não fosse uma contradição emtermos.

Já a Declaração jacobina de 1793, que incorporou largamente oprojeto de Robespierre, flexibiliza amplamente o entendimento deque a lei consiste em um limite ao direito de resistência22. Comefeito, a Declaração jacobina parece desconhecer os mesmos limi-tes que aquela que a precedeu, no que tange ao exercício da resis-tência. Mesmo a insurreição, a qual pode ser encarada como mo-dalidade coletiva de resistência, é legitimada pela Declaração deDiretos dos jacobinos (artigo 35)23. Robespierre, em seu anteproje-to, tentou ir ainda mais longe e inverter efetivamente a fórmula de1789: além de não prever quaisquer limites à resistência, ele chegamesmo a afirmar que sujeitá-la a formas legais constitui tirania (ar-tigo 31 do projeto de Declaração de Robespierre)24. Essa previsão,contudo, não foi incorporada no texto final da Declaração de 1793que, apesar de ter positivado vários artigos ampliadores do direitode resistência, manteve em seu artigo 10 a possibilidade de consi-derar culpados aqueles que exercem o seu direito de resistência emdesconformidade com a ‘autoridade da lei’25. Robespierre, portan-to, havia ido consideravelmente além daquilo que logrou positivarna Declaração jacobina. Para ele, a lei jamais poderia servir de pa-râmetro ou limite para a resistência e, além disso, a sujeição desse

22 Na Declaração jacobina de1793 encontram-se as seguintesprevisões relativas ao direito deresistência à opressão: Art. 9:A lei deve proteger a liberdadepública e individual contra aopressão dos que governam.; Art.33: A resistência à opressão éconseqüência dos outros direitosdo homem e do cidadão; Art. 34:Há opressão contra o corpo soci-al quando um único de seus mem-bros é oprimido. Há opressãocontra cada membro do corposocial quando o corpo social éoprimido.23 Art. 35: Quando o governo vi-ola os direitos do povo, a insur-reição é, para o povo e para cadaporção do povo, o mais sagradodos direitos e o mais indispensá-vel dos deveres.24 Art. 31: Em um e outro caso,sujeitar à formas legais a resis-tência à opressão é o extremo re-finamento da tirania.25 Art. 10: Ninguém deve seracusado, preso ou detido senãonos casos determinados pela lei esegundo as formas que ela pres-creveu. Todo cidadão convocadoou detido pela autoridade da lei,deve obedecer imediatamente: elese torna culpado pela resistên-cia.

Page 11: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

57Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

direito à forma da lei seria por si só uma causa legitimadora daresistência26.

Não é por acaso que François Furet afirma que, com a mortede Robespierre, a Revolução morre com ele27. Com efeito, pormais que se possa reivindicar a continuidade da Revolução France-sa, até pelo menos 1848, o verdadeiro espírito revolucionário, aquelaradicalidade imanente ao ato e ao sujeito revolucionário, certamen-te desfalecem com Robespierre e o jacobinismo. Um exemplo dis-so é a variação significativa, no que tange ao direito de resistência,que existe entre as Declarações de 1793 e de 1795. Essa últimasubverte a fórmula robespierrista, que retirava da esfera da lei todoe qualquer desdobramento do direito de resistência, e aniquila atémesmo as previsões que as Declarações de 1789 e 1793 continhamsobre aquele direito. Em perspectiva oposta, a Declaração de 1795parece refletir com exclusividade uma preocupação básica do con-tratualismo do século XVII, qual seja a de fundamentar a obrigaçãopolítica. Sai de cena, no texto da Declaração, a resistência (ou deso-brigação), e entra em cena a obrigação. Se hoje em dia podemoslamentar o fato de a Declaração jacobina não ter sido a definitiva,por outro lado podemos também abençoar o fato de não ter per-manecido a Declaração thermidorana.

O direito de resistência à opressão, sobretudo em seu entendi-mento jacobino, conecta-se fortemente com o entendimento deMarx sobre o que deve ser o direito e qual deve ser o papel da leiem uma sociedade que dela dependa para se regular. O direito deresistência à opressão seria o único a se coadunar com a idéia deemancipação de Marx. De todos os direitos humanos que apenasservem a Marx para, por meio de sua crítica, protestar contra ocaráter liberal e individualista do direito moderno, o direito de re-sistência se sobressai como o único que possui um caráter efetiva-mente emancipatório. Esse direito denota o único significado que,com Marx, acredito que possa ser atribuído aos direitos humanos:o de um direito contra o Estado.

Os direitos humanos só fazem sentido enquanto direitos pro-priamente humanos, isto é, como direitos da humanidade genérica,quando eles são concebidos contra a opressão, quando se articulamcomo resistência legítima em face de um Estado que detém omonopólio da violência. O Marx jacobino que se nutre das liçõesdos heróis da Revolução Francesa para conceber o seu conceito dedemocracia irá deles reter esse entendimento da necessidade de seconceber a resistência à opressão como um direito. Mas Marx irásobretudo reter a idéia de que o direito difere da lei, assim como a

26 Art. 25: Todo ato contra (…)exercido por quem quer que seja,mesmo em nome da lei, fora doscasos determinados por ela e dasformas que ela prescreve, é arbi-trário e nulo; o próprio respeito àlei proíbe de se submeter a esseato, e se o quiserem executar pelaviolência é permitido repeli-lopela força.27 (Furet, 1978, p. 96).

Page 12: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

58Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

resistência difere da opressão. O que faz de um direito humano, porconseguinte, é a proteção da humanidade genérica contra a opres-são, é a garantia da resistência contra o Estado. Tal entendimento seaproxima do ideal de emancipação política e da idéia marxiana deliberdade.

A lei, portanto, apenas serve como tal se para proteger a liber-dade pública – e não apenas a liberdade individual – contra a opres-são dos que governam. Quando o governo viola os direitos dopovo, a insurreição é, para o povo e para cada porção do povo, omais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres. Es-sas palavras da Declaração jacobina ecoam nas palavras revolucio-nárias de Marx. A insurreição, modalidade coletiva de resistência, émais do que um direito, é um dever. Esse republicanismo cívicodos jacobinos agradaria a Marx, embora o ideal de república en-quanto forma de Estado não lhe aprouvesse. Marx estaria tam-bém de pleno acordo com os jacobinos ao declararem que sujeitara formas legais a resistência à opressão é o extremo refinamentoda tirania. Isso implicaria subtrair o direito na lei e fazer dele umaformalidade abstrata incapaz de garantir a verdadeira liberdadedos homens. Ainda, quando os jacobinos afirmam que há opres-são contra o corpo social quando um único de seus membros éoprimido, e que há opressão contra cada membro do corpo socialquando o corpo social é oprimido, eles traduzem a essência doconceito marxiano de comunidade (‘Gemeinwesen’), o qual se ex-pressa tanto como um ser individual quanto como um ser político,ou uma comunidade como um múltiplo uno.

Vale notar aqui que autores como Claude Lefort, por exemplo,compreendem mal não apenas a leitura que Marx faz dos direitoshumanos, mas também a relação que estes devem ter com a de-mocracia. Como se sabe, Lefort defende que a dialética dos direi-tos humanos, sua passagem de direitos individuais para direitossociais, tem o mérito de criar uma esfera de autonomia em face dopoder, de modo a constituir uma especificidade das sociedadesdemocráticas modernas. Com efeito, Lefort concebe os direitoshumanos como o meio através do qual o social pode se instituirem face do poder através da criação dessa autonomia, vale dizer,da delimitação de um espaço propriamente social. Ora, será queLefort jamais percebeu que o próprio texto da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão de 1789 testemunha contra asua abordagem? Os direitos humanos jamais são invocados a fimde instituir uma autonomia do social em face do poder do Estado,mas, ao contrário, eles são pressupostos como o próprio funda-

Page 13: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

59Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

mento do Estado enquanto instituição política do social – e não,portanto, como instituição social da política, conforme Lefort hátanto tempo vem reivindicando.

O jacobinismo abre caminho para que Marx pense uma revolu-ção que não seja burguesa, uma emancipação que não seja mera-mente política, e um direito que não se reduza à lei. É nesse contex-to, opondo 1793 a 1789 e os jacobinos à burguesia revolucionária,que Marx irá contrapor ao entendimento moderno da liberdade eda igualdade esculpidos na famosa Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão e através dela universalizados, à defesa daresistência à opressão. Apenas entendido como tal, como resistên-cia à supressão da liberdade da humanidade genérica e não do indi-víduo isolado, é que o direito pode ser entendido propriamentecomo um direito. À crítica da abstração metafísica dos direitos hu-manos compreendidos como eternos e universais e à crítica docaráter burguês do homem universal, Marx acrescenta a defesa daresistência à opressão como uma resistência do direito à lei.

Para além dos Direitos Humanos:Emancipação e Democracia

Marx jamais abandonará a crítica dos direitos humanos tal comoforam concebidos pela famosa Declaração de Direitos do Ho-mem e do Cidadão de 1789. Nos Grundrisse, Marx já identifica aequação moderna da liberdade-igualdade com uma representaçãoidealizada da circulação das mercadorias e do dinheiro e, em segui-da, no Capital, a crítica da liberdade e da igualdade enquanto pres-supostos e produtos do processo de circulação das mercadorias edos indivíduos se fará preservada e se somará à crítica da universa-lização da propriedade enquanto expressão da essência do homemtal como promovida pela política liberal moderna.

A esfera da circulação ou troca de mercadoria, na qual a compra e vendada força de trabalho se realiza, é de fato o próprio Éden dos direitoshumanos. É o reino exclusivo da Liberdade, Igualdade, Propriedade eBentham. Liberdade, porque tanto o comprador quanto o vendedor deuma mercadoria, digamos da força de trabalho, são determinados apenaspor sua própria livre vontade. Eles contratam como pessoas livres, que sãoiguais perante a lei. Seu contrato é o resultado final no qual sua vontadeconjunta irá encontrar uma expressão jurídica comum. Igualdade, porquecada um deles entra em uma relação com o outro, como com um simplesproprietário de mercadorias, e eles trocam equivalente por equivalente.Propriedade, porque cada um dispõe apenas do que é seu. E Bentham,porque cada um busca apenas para a sua própria vantagem. A única

Page 14: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

60Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

força que os une e os coloca em relação um com o outro é o egoísmo, o ganhoe o interesse privado de cada um. Cada um deles olha apenas para simesmo, e nenhum deles se preocupa com os outros. E precisamente por estarazão, de acordo com uma harmonia das coisas pré-estabelecida, ou sob osauspício de uma providência onisciente, todos eles trabalham juntos parasua vantagem mútua, para o bem estar comum, e em seu interesse co-mum28.

Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham: eis a fórmulajurídica da modernidade. A tríade das abstrações somada ao indi-vidualismo e ao utilitarismo característicos do direito moderno. Aironia em relação ao ‘Éden dos direitos humanos’ que se perpetuana obra de Marx, fazendo refletir as palavras da Questão Judaica naspáginas do Capital, e denuncia uma crítica que jamais se esgotará: aocaráter dos direitos humanos corresponde diretamente o caráterda emancipação e da democracia que por meio deles pode-se ounão lograr realizar.

Em A Questão Judaica, como se sabe, Marx discute os direitoshumanos justamente a fim de abordar o problema da emancipa-ção. Indo muito além do ponto de partida teológico que marcavasua discussão com Bruno Bauer, ele mostra, por exemplo, que [...]a contradição em que se encontra o crente de uma determinadareligião com sua cidadania nada mais é do que uma parte da contradi-ção secular geral entre o Estado político e a sociedade burguesa29. Surge aquiuma importante distinção entre a emancipação humana e a eman-cipação política, que corresponde à cisão entre o homem e o cida-dão: ao emancipar-se politicamente, o homem o faz por meio deum subterfúgio, através de um meio, mesmo que seja um meionecessário. O Estado é esse meio. Na emancipação política, o Es-tado funciona como mediador entre o homem e a sua liberdade.Como serve de retrato à Revolução Francesa, o homem buscaemancipar-se politicamente por meio do Estado. Mas ele liberta-sepoliticamente de uma barreira ao se colocar em contradição consi-go mesmo, ao superar esta barreira de modo abstrato e limitado,ou seja, de um modo parcial.

A emancipação política é uma forma limitada de emancipação.Essa limitação, ou parcialidade, explica-se na medida em que aemancipação política é apenas um ‘modo’, uma ‘parte’ da emanci-pação humana e, mais do que isso, não é nem um modo radicalnem um modo isento de contradições da emancipação humana30.Em outras palavras, a emancipação política não deve jamais sertomada como uma etapa última da emancipação humana, confor-me ela parece revelar-se para alguns após a Revolução Francesa; a

28 (Marx, 1867, p. 280).

29 (Marx,1844, p. 31).

30 (Idem, p. 21).

Page 15: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

61Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

emancipação política consiste apenas na última etapa da emancipa-ção humana dentro do contexto da modernidade política que unea Revolução Francesa aos dias de hoje. Daí a emancipação ser fre-quentemente associada à declaração e garantia de direitos e, portan-to, possuir um sentido jurídico.

A emancipação política converte o direito público em direitoprivado. Segundo afirma Marx: a cisão do homem na vida pública e navida privada, o deslocamento da religião em relação ao Estado, para transferi-la à sociedade burguesa, não constitui uma fase, mas a consagração da emanci-pação política31. A separação do homem em indivíduo e cidadão apre-senta-se, assim, como a imagem da emancipação política, ou domodo político de emancipação. Conforme lembra Furet, [...] a eman-cipação política não significa a reunificação do homem, sua reconciliação com asua espécie, sua natureza, mas, ao contrário, sua divisão entre homem público ehomem privado, na esfera do Estado e naquela da sociedade civil32. Nessesentido, afirma também Avineri: a maior conquista do Estado moderno émostrada [por Marx] como sendo a sua principal limitação33.

A emancipação humana almejada por Marx implica no retornodo homem sobre si mesmo como ser social e, por isso, humano.Para que ela possa ser alcançada é necessário, antes, realizar a demo-cracia. De acordo com Marx, a verdadeira democracia (wahre De-mokratie) consiste justamente no momento da união entre o univer-sal e o particular; no momento da fusão entre as esferas política esocial; no momento do reencontro entre o indivíduo egoísta dasociedade civil e o cidadão abstrato do Estado.

Isso significa que a democracia deve criar-se e recriar-se, fun-dar-se e refundar-se, permanentemente, por meio da atividade hu-mana, e ação cotidiana dos homens. Os homens tornam-se sujeitospolíticos através dessa prática que, ao passo que constitui suas iden-tidades individuais, constitui também a própria democracia e o es-paço social no qual ela se realiza. Essa é a lógica que deve substituira lógica moderna, para a qual ser apenas homem não é suficientepara ser cidadão.

A democracia prescrita por Marx em suas obras de juventude,como é o caso da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, requer apenasque se seja um homem na sociedade para ser um bom cidadão.Afinal, quando não há mais separação entre o homem e o cidadão,todas as questões sociais tornam-se também questões políticas, evice-versa. Recuperada a essência do homem, portanto, recupera-se a unidade do indivíduo com o cidadão. Uma vez que o homemapenas pode individuar-se na sociedade, realizar a democracia sig-nifica reencontrar o sentido da comunidade, concebendo os ho-

31 (Idem, p. 25).

32 (Furet, 1988 p. 16).

33 (Avineri, 1968, p. 46).

Page 16: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

62Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

mens politicamente como seres comunais e não como indivíduosisolados, fazendo da essência da individualidade a essência políti-ca34.

Essa deve ser, por conseguinte, a relação entre as esferas indivi-dual e social, que levou Marx a querer romper com [...] a idademoderna [...] que isola a essência objetiva do homem, tratando-a como algopuramente externo e abstrato. Ela não trata o conteúdo do homem como suaverdade real35. O ‘cidadão’, afinal, não pode ser muito mais que oproduto do processo de abstração por meio do qual a sociedadecivil busca expressar-se politicamente, realizando o único vínculoque lhe é possível ter com o Estado por meio do sufrágio e darepresentação. Para Marx, o homem deve superar essa abstração e,em uma verdadeira democracia, por meio de uma sociabilidadenão mediada do gênero humano, deve se re-apropriar de sua es-sência humana.

É neste sentido que devem ser compreendidas as palavras finaisde Marx em A Questão Judaica:

Toda emancipação conduz o mundo humano e suas relações de volta aopróprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de umlado, ao membro da sociedade civil, o indivíduo independente, o egoísta, ede outro lado, ao cidadão, a pessoa moral. Apenas quando o homemindividual real reabsorver nele mesmo o cidadão abstrato, e enquantohomem individual se tornar um ser genérico em sua vida empírica, em seutrabalho particular, e em suas relações particulares, apenas quando ohomem tiver reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ como forçassociais, de modo que a força social não esteja mais separada dele sob aforma de uma força política, apenas então a emancipação humana serácompleta36.

O encontro entre o homem e o cidadão, cindidos pela formapolítica da emancipação levada a cabo pela Revolução Francesa eafirmados na forma dos direitos humanos, apenas pode dar-sequando o homem se voltar sobre si mesmo, realizando, em umademocracia verdadeira, a fusão de suas forças próprias com asforças sociais. O momento da emancipação humana identifica-se,assim, com a recuperação da essência do gênero humano perdida,não apenas no processo de alienação e estranhamento, mas tam-bém na forma moderna do direito e nos limites que essa emanci-pação impôs à expressão do homem enquanto um ser genérico –isto é, como uma parte constitutiva do gênero e não um membroisolado da espécie. O ser humano genérico afirma-se como a fu-são do indivíduo egoísta da sociedade civil com o cidadão abstra-to do Estado, de modo que a emancipação humana, portanto,

34 Sobre a relação entre democra-cia, comunidade e emancipaçãoem Marx, e a relação destas coma afirmação do homem como umsujeito político genérico, ver Po-grebinschi, 2007.

35 (Marx,1843, p. 148).

36 (Marx, 1844, p. 234).

Page 17: Pogrebinschi, Thamy - O Direito do Homem e do Cidadão.Marx e a Crítica dos Direitos Humanos

63Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Pogrebinschi.

apenas pode surgir quando o Estado e a sociedade civil já nãoestiverem mais separados, e os direitos humanos forem afirmados,tendo em vista a existência propriamente humana dos homens enão apenas a sua existência jurídica.

Bibliografia

AVINERI, Shlomo. (1968). The Social and Political Thought of Karl Marx.Cambridge: Cambridge University Press.

ALTHUSSER, Louis. (1994). Écrits philosophiques et politiques. Tome I.Paris : Éditions Stock/Imec.

BALIBAR, Étienne. (1993). A Filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor.

FURET, François. (1978). Penser la Révolution française. Paris, Gallimard.

______________. (1988). The Young Marx and the French Revolution. In:Furet, François e CALVIÉ, Lucien. Marx and the French Revolution.Chicago, University of Chicago Press.

MARX, Karl. (1843) [1992]. Critique of Hegel’s Doctrine of the State. In:Karl Marx: Early Writings. London: Penguin Books.

__________. (1844) [2000]. A Questão Judaica. São Paulo, Centauro Editora.

__________. (1844a). A Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophyof Right. In: Karl Marx: Early Writings. London: Penguin Books.

__________. L’Idéologie Allemande. (1846) [1982]. In: Oeuvres, Bibliothèquede la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, vol III: Philosophie.

__________. Capital. (1867) [1976]. Volume 1. London: Penguin Books.

POGREBINSCHI, Thamy. (2007). O Enigma do Político. Marx contra apolítica moderna. Tese de Doutorado, IUPERJ.