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Ao tratarmos da construção de uma Política de Recur- sos Humanos, na perspectiva do gestor do sistema de saú- de tomamos a noção da política de governo, como pro- cesso de escolhas públicas, direcionado à razão pública e ao interesse público, em especial, a política nacional de recursos humanos e sua relação com o processo de cons- trução do Sistema Único de Saúde. A idéia de que as políticas são escolhas públicas realiza- das por atores legitimados (ou reconhecidos) na arena pú- blica, implica escolha de critérios específicos para a sua proposição e, por conseqüência, para sua avaliação. Assim, elas serão: (i) tanto mais democráticas, quanto maior for a participação de atores legitimamente constituídos envolvi- dos no processo de deliberação sobre essas políticas; (ii) tanto mais inclusionistas e, portanto, “justas” (eqüitativas), quanto maior o número de setores em desvantagem (in- clusive as chamadas minorias profissionais) envolvidos; (iii) tanto mais efetivas quanto maior o número de setores go- vernamentais envolvidos e comprometidos com essa polí- tica, em cada esfera de governo e inter-esferas. Portanto, as políticas de recursos humanos repre- sentam escolhas sobre cursos de ação e procedimentos que interessam à razão pública e a determinadas noções de bem estar público - social e econômico - e de boa con- vivência, os quais se relacionam com a regulação da dis- tribuição dos seguintes bens: do conjunto e do perfil de RH oferecido pelos presta- dores aos usuários dos serviços, que definem, em gran- de parte, a qualidade, a efetividade, a sua oportunida- de, assim como o acesso real da população aos servi- ços de saúde; dos empregos (oportunidades de trabalho), salários e remunerações, incentivos, oportunidades de carreira e formação avançada oferecidos pelos empregadores aos trabalhadores; das oportunidades educacionais e de acesso ao sistema das profissões, tanto no sentido individual quanto no coletivo, oferecidos pelas instituições formadoras aos futuros profissionais; dos títulos de direito exclusivo e dos títulos e certifica- dos reservados que conferem direitos legais de propri- edade sobre campos de trabalho e reservas de merca- do, entre outros, oferecidos pelas instâncias certifica- doras aos profissionais. No caso brasileiro, as bases legais que legitimam a ação do Ministério da Saúde na construção dessa Política estão expressas no artigo 200, inciso III da Constituição Federal que estabelece, como uma das atribuições do SUS, a or- denação da formação de recursos humanos para o Siste- ma. Na seqüência, a Lei N° 8.080/90 explicita a necessida- de de articulação entre as esferas de governo para a for- malização e execução da política de recursos humanos. Outras referências, ainda, regulam esse ordenamento: (I) Emenda Constitucional n.º 19, artigo 39, que prevê a ins- tituição de um Comitê, no âmbito dos três níveis de go- verno, para dispor sobre critérios para fixação de padrões de vencimento e obrigatoriedade dos entes federados em manter escolas para formação e aperfeiçoamento do ser- vidor público; (II) a Lei n° 8.142/90 que institui a exigência de comissão de elaboração de planos de cargos e carrei- ras como critério para repasse de recursos financeiros do governo federal para estados e municípios. Esses dispositivos legais se, por um lado, apontam res- ponsabilidades e competências, por outro, requerem discus- são e pactuação para melhor regulamentação, no sentido de garantir adequada formação profissional, direitos trabalhis- tas e, ao mesmo tempo, instrumentos flexíveis de gestão do trabalho, que possibilitem, aos gestores, agilidade e rapidez nas decisões. Mesmo incompletas, estas referências permi- tem identificar a função diferenciada do Gestor Federal do Sistema no processo regulatório da oferta e demanda de re- cursos humanos, por meio da articulação entre setores e órgãos das três esferas de governo, de modo a propiciar maior direcionalidade ao conjunto das ações na área de re- cursos humanos, bem como da ampla mobilização de repre- sentações de trabalhadores e prestadores de serviço em tor- no da formulação de acordos ou compromissos que apon- tem para a valorização e a qualificação do trabalho. POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Paulo Henrique D’Ângelo Seixas * Publicado em novembro-dezembro / 2002

POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS NO SISTEMA ÚNICO … · Publicado em novembro-dezembro / 2002 Paulo Henrique D’Ângelo Seixas * A construção das Políticas se faz, entretanto,

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Ao tratarmos da construção de uma Política de Recur-sos Humanos, na perspectiva do gestor do sistema de saú-de tomamos a noção da política de governo, como pro-cesso de escolhas públicas, direcionado à razão pública eao interesse público, em especial, a política nacional derecursos humanos e sua relação com o processo de cons-trução do Sistema Único de Saúde.

A idéia de que as políticas são escolhas públicas realiza-das por atores legitimados (ou reconhecidos) na arena pú-blica, implica escolha de critérios específicos para a suaproposição e, por conseqüência, para sua avaliação. Assim,elas serão: (i) tanto mais democráticas, quanto maior for aparticipação de atores legitimamente constituídos envolvi-dos no processo de deliberação sobre essas políticas; (ii)tanto mais inclusionistas e, portanto, “justas” (eqüitativas),quanto maior o número de setores em desvantagem (in-clusive as chamadas minorias profissionais) envolvidos; (iii)tanto mais efetivas quanto maior o número de setores go-vernamentais envolvidos e comprometidos com essa polí-tica, em cada esfera de governo e inter-esferas.

Portanto, as políticas de recursos humanos repre-sentam escolhas sobre cursos de ação e procedimentosque interessam à razão pública e a determinadas noçõesde bem estar público - social e econômico - e de boa con-vivência, os quais se relacionam com a regulação da dis-tribuição dos seguintes bens:• do conjunto e do perfil de RH oferecido pelos presta-

dores aos usuários dos serviços, que definem, em gran-de parte, a qualidade, a efetividade, a sua oportunida-de, assim como o acesso real da população aos servi-ços de saúde;

• dos empregos (oportunidades de trabalho), salários eremunerações, incentivos, oportunidades de carreirae formação avançada oferecidos pelos empregadoresaos trabalhadores;

• das oportunidades educacionais e de acesso ao sistemadas profissões, tanto no sentido individual quanto nocoletivo, oferecidos pelas instituições formadoras aosfuturos profissionais;

• dos títulos de direito exclusivo e dos títulos e certifica-dos reservados que conferem direitos legais de propri-edade sobre campos de trabalho e reservas de merca-do, entre outros, oferecidos pelas instâncias certifica-doras aos profissionais.No caso brasileiro, as bases legais que legitimam a ação

do Ministério da Saúde na construção dessa Política estãoexpressas no artigo 200, inciso III da Constituição Federalque estabelece, como uma das atribuições do SUS, a or-denação da formação de recursos humanos para o Siste-ma. Na seqüência, a Lei N° 8.080/90 explicita a necessida-de de articulação entre as esferas de governo para a for-malização e execução da política de recursos humanos.Outras referências, ainda, regulam esse ordenamento: (I)Emenda Constitucional n.º 19, artigo 39, que prevê a ins-tituição de um Comitê, no âmbito dos três níveis de go-verno, para dispor sobre critérios para fixação de padrõesde vencimento e obrigatoriedade dos entes federados emmanter escolas para formação e aperfeiçoamento do ser-vidor público; (II) a Lei n° 8.142/90 que institui a exigênciade comissão de elaboração de planos de cargos e carrei-ras como critério para repasse de recursos financeiros dogoverno federal para estados e municípios.

Esses dispositivos legais se, por um lado, apontam res-ponsabilidades e competências, por outro, requerem discus-são e pactuação para melhor regulamentação, no sentido degarantir adequada formação profissional, direitos trabalhis-tas e, ao mesmo tempo, instrumentos flexíveis de gestão dotrabalho, que possibilitem, aos gestores, agilidade e rapideznas decisões. Mesmo incompletas, estas referências permi-tem identificar a função diferenciada do Gestor Federal doSistema no processo regulatório da oferta e demanda de re-cursos humanos, por meio da articulação entre setores eórgãos das três esferas de governo, de modo a propiciarmaior direcionalidade ao conjunto das ações na área de re-cursos humanos, bem como da ampla mobilização de repre-sentações de trabalhadores e prestadores de serviço em tor-no da formulação de acordos ou compromissos que apon-tem para a valorização e a qualificação do trabalho.

POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOSNO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Paulo Henrique D’Ângelo Seixas *Publicado em novembro-dezembro / 2002

A construção das Políticas se faz, entretanto, no con-texto de realidades e demandas sociais distintas que setransformam ao longo do tempo. Nessa perspectiva, de-vemos destacar os cenários e tendências atuais para aspolíticas de recursos humanos frente à reforma setorialem curso, no país.

As Perspectivas da Política de Recursos Humanos

De uma situação onde se percebia um enorme de-ver fazer, associado a uma ausência de ações represen-tativas, e uma valorização do problema reduzido a al-guns poucos iniciados, passa-se hoje a contar com umadiversidade de iniciativas sustentáveis e de alto impac-to, com um volume de recursos agregado bastante sig-nificativo, e orientado para problemas chave de recur-sos humanos, assim como, em função das novas ques-tões surgidas decorrentes da sua reorientação, a ela-boração da Política de Recursos Humanos passa a sercrescentemente discutida nos níveis estratégicos de ges-tão do sistema.

No campo da preparação aquele conjunto de ações,desenvolvida em parceria com uma infinidade de insti-tuições formadoras, secretarias municipais e secretariasestaduais de saúde constitui uma importante base para aorganização de uma rede de educação continuada/ per-manente para o sistema, com dimensões nunca atingidasanteriormente. A constituição do Grupo de Trabalho Per-manente de Recursos Humanos permite por sua vez ini-ciar articulação entre os diferentes setores do Ministé-rio da Saúde, em conjunto com Conass e Conasems nosentido de se estabelecer um processo de oferta siste-mático, regular e continuado de iniciativas de qualifica-ção profissional, baseado em prioridades consensuadaspara o sistema e adaptado ás realidades e demandas loco-regionais. Este processo de articulação federal poderápermitir, por sua vez, a indução a processos ordenado-res semelhantes no âmbito estadual e nos grandes muni-cípios, reduzindo a fragmentação de ações hoje existen-te. A constituição de uma instância de coordenaçãoestadual, com agilidade administrativa para geren-ciamento de recursos – por exemplo a través de umaOrganização Social, de uma OSCIP, ou mesmo de umaFundação, associada à obrigatoriedade de adoção de umsistema de informação e acompanhamento especí-fico, poderiam ser componentes importantes para a es-truturação de um Sistema Nacional de Qualificaçãode Pessoal, com possibilidade de repasse fundo a fun-do, que superariam as tradicionais formas de financia-

mento baseadas em convênios por programas, assimcomo criariam a possibilidade de participação comple-mentar de estados e municípios.

O problema tradicional refere-se ao distanciamentoentre os centros formadores e a necessidade dos servi-ços. Tal distanciamento revela-se em duas dimensões:• na inadequação dos profissionais formados, em termos

de competências requeridas – traduzidas, por exem-plo, na dificuldade referida principalmente pelos médi-cos para exercer competências gerais no cuidado indi-vidual, bem como para as atividades de planejamentoem saúde, relacionamento com a comunidade e abor-dagem psico-afetiva no PSF, e reafirmadas pelas avalia-ções provenientes do provão e do Cinaem, que dãoconta de um domínio de cerca de 50% das habilidadesrequeridas aos médicos no final do 6 º ano;

• no desenvolvimento de estratégias insuficientes paraa dimensão da atividade de preparação exigida pelaimplantação do sistema, que não pode ser feita ape-nas através de metodologias presenciais, em cursosque afastam os profissionais das atividades e se basei-am em pré-supostos estabelecidos apenas pelos cen-tros formadores e não nas demandas concretas apre-sentadas pela organização dos serviços onde os pro-fissionais atuam.Por outro lado a Lei de Diretrizes e Bases, ao estabe-

lecer um ensino baseado no desenvolvimento de com-petências, ao dar ênfase na formação a partir do traba-lho e ao permitir a flexibilização dos currículos, substitu-indo o currículo mínimo pelas diretrizes curriculares –que no caso da saúde estabelecem um conjunto de com-petências comuns para todos os profissionais reconhe-cidos neste campo, voltados para as necessidades dosserviços, abriu espaços para significativas inovações eoportunidades para esta aproximação, tanto no nívelsuperior como no nível médio.

A disponibilidade de recursos financeiros provenientesde empréstimos internacionais – Reforsus, Profae, PSF,AIDS; a existências de experiências descentralizadas bemsucedidas, bem como de metodologias de metodologiasde educação em serviço testadas em projetos anteriores(projeto Larga Escala) e a distribuição nacional de centrosformadores, permitiram a implementação de ações es-tratégicas intensas e significativas, que respondendo asdemandas de implantação do sistema – desenvolvimentogerencial, descentralização e regionalização, qualificaçãopara a atenção básica, começam a reverter aquele afasta-mento referido.

Política de Recursos Humanos no Sistema Único de Saúde Paulo Henrique D’Ângelo Seixas

São exemplos destes projetos estratégicos:1- as iniciativas de capacitação gerencial, que se distribu-

em desde a capacitação de para o trabalho em equipes,gerência de unidades básicas de saúde (GERUS), capa-citação para gestores municipais; especialização em ges-tão de serviços para equipes municipais e estaduais;Mestrados Profissionalizantes; especialização para ges-tores de Recursos Humanos (CADRHU);

2- os Pólos de Capacitação em Saúde da Família, que pos-sibilitaram a articulação ensino-serviço (envolvendo es-tados, municípios e mais de 100 centros formadoresno país, em 30 Pólos instalados) no desenvolvimentode estratégias de curto e médio prazo para a prepara-ção de pessoal de saúde da família;

3- o Profae, voltado para a formação de 250.000 auxilia-res de enfermagem, permitindo também o desenvolvi-mento de metodologias para formação e certificaçãobaseada em competências, preparação descentralizadade agentes formadores à distância, desenvolvimento ins-titucional das escolas técnicas para outras iniciativas deformação de nível médio;

4- Programa de Incentivos a Mudanças Curriculares emCursos de Medicina (PROMED), iniciativa inédita de ar-ticulação entre Ministério da Saúde, MEC e Organiza-ção Panamericana de Saúde, para induzir a introduçãodos princípios definidos pelas novas diretrizes curricu-lares nas escolas médicas, devendo estender-se tam-bém para as escolas de enfermagem;

5- O Proformar , desenvolvido pela Funasa, em parceriacom a Fiocruz, destinado a formação de guardas sani-tários descentralizados;O Curso de Especialização em Saúde da Família, em

serviço, desenvolvidos em parceria com municípios, esta-dos e Pólos de Capacitação em Saúde da Família, com arespectiva bolsa, oferecidos pelo Programa de Interiori-zação do Trabalho em Saúde, destinado a aproximadamen-te 600 médicos e enfermeiros que vão realizar o cursoconstituindo as equipes de saúde da família de cerca de300 municípios carentes e destituídos de assistência bási-ca nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Nortede Minas Gerais.

Finalmente, no campo da regulação profissional, pa-rece ser de fundamental importância publicizar a discus-são relativa à propriedade dos campos profissionais. Paratanto, um formato de regulação profissional e ocupacio-nal a ser estimulado, baseado no princípio geral da utili-

dade pública da regulação, deverá contemplar, na práti-ca, o balanço criterioso entre objetivos pragmáticos dapolítica do governo para o setor e do fortalecimento dasinstituições básicas de uma sociedade justa, dentre osquais, vale citar:• proteção do público contra a ação de provedores

desqualificados, inescrupulosos e profissionais in-competentes;

• promoção da eficiência na provisão dos serviços desaúde;

• garantia da acessibilidade aos serviços de saúde;• garantia da eqüidade na distribuição dos serviços de

saúde;• garantia da igualdade de tratamento sobre os pleitos

das diversas profissões e ocupações;• promoção de capacidade de Estado para a coordena-

ção da política para as profissões.• Um grupo tarefa específico, inter- ministerial, coorde-

nado pelo Ministério da Saúde, deverá assumir essa res-ponsabilidade, com as seguintes atribuições:

• ampliação das discussões sobre a reforma da regula-ção profissional por intermédio do envolvimento am-plo dos atores competentes;

• levantamento e análise das diversas demandas relaci-onadas ao campo da regulação profissional tramitan-do no âmbito do Ministério da Saúde e do parlamentonacional;

• diagnóstico da situação da regulação profissional e ocu-pacional da saúde no âmbito internacional;

• a proposição de protocolos de procedimentos unifor-mizados com vistas ao recebimento, análise e encami-nhamento das demandas existentes.

Considerações Finais

Por tudo o que foi feito e pelo que falta fazer, a Políticade Recursos Humanos ganhou espaço institucional e rele-vância estratégica dentro do sistema. Avançar nesta polí-tica, entretanto pressupõe muito mais que o fortalecimen-to de um determinado locus institucional específico, umaenorme capacidade de negociação e de articulação intra einterinstitucional, bem como a capacidade de aprender aconstruir com as diferenças e com a diversidade.

* Ex- Diretor Técnico da Coordenação geral de Política deRecursos Humanos do Ministério da Saúde, Médico Sanitarista.

Política de Recursos Humanos no Sistema Único de Saúde Paulo Henrique D’Ângelo Seixas

As recentes mudanças que vêm ocorrendo na educa-ção médica são relativas à reestruturação dos serviços desaúde. Hospitais universitários tradicionais vêm se tornan-do cada vez mais especializados e menos adequados paraviabilizar as competências necessárias ao final da gradua-ção. Isto ajudou a descentralizar a educação médica emambientes de ensino mais adequados. Estas e outras mu-danças geralmente foram desencadeadas por pressão dosistema de saúde em lugar de serem instigadas pelas es-colas médicas por razões educacionais. As funções da es-cola médica e do hospital universitário são entrelaçadas, efreqüentemente apresentam relações muito complexasque se refletem em proporções diferentes de importân-cia para o ensino, assistência e pesquisa. A ordem do diapara desenvolvimento das relações é uma aproximaçãocrescente da universidade com os serviços agregando aeste processo os organismos de governos responsáveispela saúde da população e os usuários do sistema.

Novas relações podem trazer novas oportunidades. En-tre os aspectos educacionais que têm evoluído na área deconcordância das escolas médicas com os serviços de saú-de estão a educação multiprofissional, educação perma-nente e a educação em saúde.

As recentes mudanças em educação médica dão paraescolas médicas novas oportunidades de se envolveremmais ativamente no desenvolvimento e provisão dos ser-viços de saúde, especialmente em projetos de atençãoprimária e secundária e em saúde pública.

O atual momento de transformação do palco de apren-dizagem da escola médica pode servir para definir o novoequilíbrio de responsabilidades na relação funcional dasescolas médicas e serviços de saúde que pode e devemudar.

Vamos abordar alguns aspectos teóricos dessa relaçãomas principalmente a nossa experiência vivenciada. Comoalguém já disse, o movimento das escolas precisa sair do“domínio cognitivo” e exercitar o “domínio psicomotor”.

Hoje não é mais possível falar em articulação da esco-la médica com o hospital universitário sem vislumbraresse novo palco de aprendizagem onde se desenvolveráo ensino médico.

Normalmente as políticas fixadas pela escola médicae pelo hospital possuem um grau de independência ina-ceitável em termos de duas organizações que devem ca-minhar juntas. Essa situação favorece a baixacompetitividade que a maioria dos centros médicos uni-versitários possuem.

Assim, como não é mais aceitável um hospital universi-tário sem uma interação efetiva com a escola médica, nãoé possível dissociar esses dois atores, de uma interaçãocom um espaço maior, que se chama distrito docente as-sistencial. Essa nova realidade estabelece a necessidadede integração da escola com o distrito e dos elementosque compõem o distrito entre si, ou seja viabilizar a refe-rência e contra referência, não somente dentro de umaótica assistencialista, mas sua intermediação vinculada aoprocesso de ensino aprendizagem.

Ou seja o atual palco da escola médica deve conter deforma estruturada os três níveis de atenção à saúde ne-cessários à formação do médico.

A palavra chave para interação é planejamento. Algu-mas vezes até há planejamento mas escola e hospital cadaum tem o seu. Tem que haver planejamento integrado.Atualmente, diríamos mais, esse planejamento integradonão é só da escola e do hospital universitário mas comovimos do distrito docente assistencial como um todo. Eledeve envolver todos os setores envolvidos com a forma-ção médica, principalmente em nosso caso, a PrefeituraMunicipal de Florianópolis (PMF) representando o setorprimário. Com o aumento da multiplicidade de parceiroscabe à escola o papel integrador, por ser ela o elementomais estável desta relação.

Com culturas diferentes a academia médica e os servi-ços de saúde muitas vezes divergem de metas, principal-mente, no que se refere às atividades de extensão. A mai-oria polarizou posição na qual academia não teria funçãoda prover cuidado médico, e por outro lado os serviçosde saúde, não estariam comprometidos em disponibilizarrecursos financeiros e humanos para a academia.

Enquanto a academia tem como modelo o doutor/pes-quisador, o serviço tem como modelo o especialista/as-sistencial. Esta simplificação é enganadora e não reconhe

INTERAÇÃO ESCOLA MÉDICA - SERVIÇOSCarlos Alberto Justo da Silva *Publicado em setembro-outubro / 2002

ce que tanto o trabalho de professores médicos comoo de pesquisadores não pode acontecer sem atividade clí-nica. E os administradores dos serviços de saúde parecemestar reconhecendo que os padrões de cuidado não avan-çam sem a pesquisa acadêmica e a experimentação queacontecem nas escolas médicas.

Já foi dito que o principal objetivo do hospital de ensinoé a sua participação na formação de recursos humanospara a área da saúde. Especificamente, os hospitais deensino surgiram como uma necessidade da escola médi-ca. Com os avanços tecnológicos principalmente a partirda metade do século passado, tornou-se cada vez maisimportante o hospital universitário como identificador queas escolas detinham tecnologia e dispunham do estadogeral da arte. Quando de sua criação, por sua complexi-dade e volume de recursos que movimentam, os hospi-tais, na maioria das universidades ficaram subordinado di-retamente à reitoria e não à escola médica. Durante operíodo de altas taxas de inflação, o resultado da aplica-ção destes recursos era utilizado pelas reitorias no finan-ciamento da universidade como um todo.

Este foi sem dúvida, um dos fatores da relação de in-dependência hospital/escola observado na maioria dasuniversidades.

Assim os papéis estratificados de independência entreas duas instituições procuram conciliar muito mais inte-resses internos do que as expectativas externas ou seja osdesejo do corpo discente e da população em relação aofuncionamento da escola e do sistema de saúde.

Como aspecto adicional na dificuldade de relação en-tre escola-hospital; hospital-serviços; escola-serviços estáa falta de parâmetros similares para o restante da univer-sidade que tem grande dificuldades de entender a agilida-de que esse processo necessita e o grau de autonomiaque deve ter. A necessidade de integração básico profis-sionalizante e interdepartamental com o ensino centradono aluno e o novo papel do docente na relação ensino-aprendizagem, vem ocorrendo com muito mais intensi-dade na escola médica do que no restante da universida-de. Este fator representa uma das dificuldades, por quepassa a escola médica, no intuito de instrumentalizar oseu projeto de mudança por sua incompatibilidade, comas atuais formas de organização principalmente das uni-versidades públicas. A este respeito, a escola médica pa-rece estar funcionando como agente de mudança para orestante da universidade.

Diríamos então, que o compromisso da escola e dohospital não é apenas como formadores de recursos hu-

manos para a saúde, é também e fundamentalmente comoagentes de mudança, pelo menos das condições dos ser-viços de saúde oferecidos à população. Por isto o hospitaluniversitário deste estar totalmente vinculado à rede deserviços. Mas neste campo também enfrentamos dificul-dades, pois, na maioria dos casos, o hospital universitárioé um hospital de referência estadual, que tem que coexis-tir com a prioridade de ser referência para o Distrito do-cente assistencial, ou seja, para a comunidade que o cir-cunda que no nosso caso, representa toda a região lesteda ilha com uma população estimada de 80.000 pessoas.Isto implica na aceitação de que este compromisso vai dejaneiro a janeiro e não está vinculado a calendários acadê-micos. Ao se preparar para este desafio, o hospital quepossuía duas portas de acesso, sua emergência e sua redede ambulatórios, evoluiu de uma central própria de mar-cação de consultas e exames, para uma agenda totalmen-te voltada ao SUS, através da central estadual de marca-ção de consultas, vinculada à secretaria estadual de saúde.Esta maior inserção social do hospital acarretou algunsônus, como a perda de receita, tendo em vista que au-mentou a ociosidade do sistema já que muitos pacientesagendados pela central, não comparecem às consultas ouexames por motivos os mais diversos, mas principalmen-te pela dificuldade de locomoção dos usuários provenien-tes das várias regiões do estado. Podemos observar as-sim, que quando se fala em interação, fala-se em soluçõesmas também no desafio de estar preparado, para enfren-tar novos problemas. Com o estabelecimento há três anosdo distrito docente assistencial, iniciamos um levantamentoepidemiológico das necessidades de referência do setorprimário para o setor secundário e terciário que estãosendo quantificado e especificado. A partir daí, definire-mos a necessidade de uma terceira porta de entrada atra-vés da referência do distrito, alocando ao mesmo um per-centual de consultas, diferenciado conforme os serviços eque precisa ser definido com precisão já que o estabeleci-mento de cotas percentuais sem indicadores precisos acar-retará também ociosidade, desperdício, falta de eficiên-cia. Este levantamento de dados estabelecerá a curva detendências de demanda, e já vem nos ajudando na defini-ção da unidade secundária, pois constatamos por exem-plo que além das especialidades clássicas de internistas,ginecologia, obstetrícia e pediatria geral, há necessidadede incorporar cardiologistas e oftalmologistas na equipeda unidade secundária.

O Distrito não conta ainda com uma unidade secun-dária devidamente estruturada, questão que estamos dis

Interação Escola Médica - Serviços Carlos Alberto Justo da Silva

cutindo com a prefeitura e levantando recursos parasua formalização. Atualmente estes serviços funcionamde maneira inadequada junto aos ambulatórios doHospital Universitário.

Pela complexidade que apresenta a única relação pos-sível para viabilizar a integração Escola-Hospital, Escola-Distrito, Hospital-Setor Primário e Secundário, é a de co-gestão. Esta implica na aceitação da escola do desafio deassumir na sua plenitude a assistência e o parceiro aceita ocompromisso do ensino e da pesquisa de forma nãodissociada da sua atividade de assistência.

A relação baseada em convênio para estágio, vislumbrana maioria das vezes, uma relação não sedimentada no com-promisso, mas na tolerância, adquirida pelo vislumbre dohospital ou instituição pública ou privada usufruir o prestí-gio junto à opinião pública de usar o termo escola médica, ede poderem a partir daí alavancar novas fontes de recursose principalmente de receberem FIDEPES. E neste aspecto,nem na destinação do FIDEPES a escola médica é chamadaa participar, na maioria dos casos o FIDEPES é utilizado uni-camente como complementação de custeio. São estes osfatores que na maioria das vezes norteiam o interesse peloestabelecimento destes convênios e não o compromissocom o ensino, o compromisso com a pesquisa e o com-promisso com um prática assistencial diferenciada ondepossa se assentar uma verdadeiro processo de ensino-aprendizagem. Assim uma verdadeira escola médica podeaté não ter seu hospital próprio mas no local onde ela seinsere ela se insere com um contrato de co-gestão. E isto éverdadeiro tanto para o hospital universitário como paraos demais níveis de assistência setor primário e secundário.Este modelo já estava concretizado desde do início das ati-vidades do HU/UFSC, cujos Serviços são dirigidos por pro-fessores dos diversos departamentos da escola, e a orien-tação diagnóstica e terapêutica é de responsabilidade dosdocentes. Além disso, o Conselho Diretor do HU/UFSC aquem cabe estabelecer diretrizes e objetivos a serem obe-decidos e atingidos pelo hospital, é formado por membrosda direção executiva do HU, pelo diretor do Centro deCiências da Saúde, representantes dos cursos com atuaçãono hospital alem de representantes dos corpos discente etécnico administrativo.

Os processos de Integração Docente Assistencialensejam os mecanismos mais eficientes, para que a Uni-versidade cumpra o seu papel pedagógico e na implanta-ção e desenvolvimento do SUS.

Também em relação ao setor primário, esta foi nossaopção, há 15 anos havia sido criado um serviço de aten-

ção primária ligado ao hospital universitário visando teruma rede primária própria. Para nos adequarmos aos prin-cípios do SUS e evitar a manutenção de uma rede paralelaidealizada e não integrada, a nossa decisão foi desativá-la,para iniciarmos com a prefeitura, o processo de co-ges-tão. O caminho escolhido é mais difícil de operacionalizar,necessita um maior dispêndio de tempo para discussão eprocessos de pactuação mas ele é pedagogicamente maisválido, verdadeiro e sustentável ao longo do tempo.

Os princípios de co-gestão se baseiam num núcleo ges-tor com igualdade de membros da academia e dos servi-ços (Hospital e PMF), com o mesmo perfil nas várias ins-tâncias de decisão. No centro do processo de discussão edecisão está a definição do grau de autonomia acadêmica,administrativa e financeira necessários para sedimentar odistrito. Entre as prioridades estão a definição de matrizde financiamento, busca de recursos financeiros, melho-ria da infra-estrutura e início da discussão para definiçãode um plano de carreira articulado.

O atual processo de co-gestão UFSC/PMF do Distrito Do-cente Assistencial se apóia nos seguintes princípios facilitado-res: firmado contrato de co-gestão Prefeitura / Universida-de com controle de gestão igualitária Escola-HU-PMF; con-juntura de apoio dos gestores favoráveis para desenvolvi-mento da articulação; configuração e legitimação do distrito-escola pela rede de serviços; profissionais com duplo-víncu-lo UFSC/PMF; política de complementação salarial; avaliaçãopositiva da população e aumento da resolutibilidade.

Apesar da concordância dos diversos segmentos da im-portância da proposta algumas dificuldades persistemcomo: tradição de autonomia das instituições de ensino ede serviços dando pouca flexibilidade a proposta de tra-balho integrado; disputas de espaços; disfunção do siste-ma de referência e contra-referência; dificuldade de con-tratação de recursos humanos para o programa; algunsprofissionais da equipe com perfil inadequado ao traba-lho; ausência de financiamento específico e ausência decarreira para os profissionais do programa. O próximopasso é levar a legitimação do distrito aos demais atoressociais a saber: Câmara de Vereadores; Conselho Munici-pal e Locais de Saúde; Ministério da Educação e da Saúdee demais entidades ligadas à área de saúde.

Nenhuma estratégia é superior a outra, tudo deve estaraberto a modificações, adaptações e circunstâncias locais.

* Diretor do Centro de Ciências da Saúde da UniversidadeFederal de Santa Catarina.

Interação Escola Médica - Serviços Carlos Alberto Justo da Silva

Introdução

Durante grande parte do século recém terminado luta-ram os orientadores de política no campo da educação mé-dica na busca de uma possível mudança do padrão tradicio-nal do currículo, visto como dependente do que chamavamde paradigma flexneriano, responsável, por sua vez, de umaformação centrada na medicina curativa-individual, realizadaem ambiente hospitalar, com incorporação indiscriminada detecnologias e forte tendência à especialização. Tudo isto con-tribuindo para certo desvio das necessidades de saúde maisprementes e para o encarecimento da atenção médica a umnível muito por cima do que pode absorver a sociedade e opróprio Estado, em contextos em que se atribuí a este últi-mo a obrigação de cuidar da saúde da população.

A toda esta luta opunha-se uma grande resistência àsmudanças que indicavam que quanto mais se tratava dereorientar o currículo médico mais ele continuava o mes-mo, chegando-se a observações como a de Durocher (umProfessor da Universidade de Pittsburg) que afirmava “sermais difícil mudar um currículo do que transladar um ce-mitério”. Estudos realizados em Argentina e México, co-brindo um período de mais de 50 anos demonstravam,igualmente, que apesar de repetidas tentativas de mudan-ça os planos de estudos permaneciam inalterados.

Em meio a essa situação pouco estimulante, participamospor três décadas desse esforço de mudança, enfrentando anatural frustração resultante dos parcos resultados obtidose podemos confessar que praticamente nos dávamos porvencidos, admitindo a impossibilidade de nosso cometimento.

Hoje, podemos dizer, com grande satisfação, que tudoparece indicar que o Programa de Incentivo a MudançasCurriculares nos Cursos de Medicina – PROMED veio pos-sibilitar uma superação daquela aparente impossibilidade,representando um passo significativo para poder-se im-plementar uma formação melhor orientada às necessida-des de nossa sociedade. Dos antecedentes que permiti-ram chegar a esta iniciativa há que ressaltar um elementofundamental que foi a inclusão na Constituição de 1988,não só da cláusula que estabelece que “a saúde é direitode todos e dever do Estado… visando o acesso universale igualitário… e serviços para sua promoção, proteção erecuperação”, como, especialmente a que declara que “aosistema único de saúde compete,… ordenar a formação

de recursos humanos na área da saúde”, o que permitiuque o Setor Saúde coordenasse com o Setor de Educaçãoa iniciativa de reorientação da formação médica.

Antecedentes

Para nós, o potencial do PROMED tem um significadomuito especial por relacionar-se com uma linha de trabalhoque desenvolvemos há pouco mais de uma década, aindaem Washington, que foi aplicada em vários países da Amé-rica Latina, mais com fins diagnósticos e de avaliação que deindutor de mudanças, utilizando um método que ficou co-nhecido como Análise Prospectiva da Educação Médica. Nãochegamos a aplicar este procedimento no Brasil porquenaquela ocasião acabava de realizar-se um levantamento dasituação de suas Escolas, parecendo não ser convenienteduplicar o questionamento de qualidade das instituições.

O método, utilizando indicadores relativamente pontuais,procurava ser exaustivo na análise dos fatores que influenci-avam a educação médica e, é possível que essa exaustividadetenha sido a responsável pela sua pouca utilização. Trabalha-va-se com 43 indicadores distribuídos em quatro camposque incluíam contexto, estrutura, função e integralidade.

Na formulação do PROMED, o método descrito foilembrado e no seu resgate utilizou-se apenas os indicado-res de “função”, que incluíam o conteúdo programático,a articulação com o serviço e a orientação da aprendiza-gem, admitindo-se que para o objetivo que se perseguia,de moldar um novo padrão da formação, estes eram osparâmetros mais importantes. O primeiro destes indica-dores é medido pela produção de conhecimento (esforçode investigação), orientação da pós-graduação e da edu-cação permanente; o segundo pela diversificação dos ce-nários de práticas e a relação com as necessidades do SUS;e o terceiro pela integração básico-clínica e pela aborda-gem didático-pedagógica.

Entretanto, queremos deixar claro que a estratégia quese persegue deve, de uma vez por todas, romper com oestiramento de posições dialéticas que opunham o indivi-dual ao coletivo, o curativo ao preventivo, o institucionalao comunitário e o tecnicismo ao humanismo. A nova abor-dagem terá que conviver com todos estes elementos nadevida proporção, buscando o equilíbrio que impõe a plu-ralidade de situações para a qual o futuro médico deva

José Roberto Ferreira *

PROMED - DA UTOPIA À REALIDADEPublicado em novembro-dezembro / 2002

estar preparado, valorizando os determinantes da saúdeno mesmo grau que as causas da enfermidade. Quere-mos, isso sim, alcançar o desenvolvimento científico e tec-nológico num contexto humano e ético, na busca de eqüi-dade e efetividade de uma prática marcada por excelênciatécnica e relevância social. E, para isto, advoga-se umaabordagem interdisciplinar com ampla articulação entreas ações promocionais, preventivas e curativas, usandoem forma balanceada a comunidade, o ambulatório e ohospital. Por último, admite-se que melhor se poderá al-cançar estes objetivos adotando um processo de ensino eaprendizagem centrado no aluno, com amplo acesso àsfontes de informação e adequada orientação tutorial e compossibilidade de exercitar-se na solução de problemas ena abordagem prática da atenção à saúde.

Todo o anterior, analisado agora à luz da experiênciaem curso de implantação do PROMED indica que a pre-missa era válida. Embora ainda tenhamos que basear nos-sa avaliação em propostas e não em resultados concre-tos, é possível admitir pelo grau de avanço observado nosdocumentos das Escolas que concorreram, que nos acer-camos a uma real transformação no modo de orientar aformação dos futuros médicos.

Foi tal o impacto resultante que chegamos a proporaos responsáveis pelo Programa, a possibilidade de reali-zar-se posteriormente uma revisão detalhada dos melho-res projetos, com vista a reunir um material precioso paraa orientação futura da educação médica no nosso meio, oque poderia servir para as outras Escolas que venham aapresentar projetos nas próximas oportunidades. Espe-ramos poder realizar esta revisão.

As propostas

Como a seleção estava diretamente relacionada à distri-buição de recursos para financiamento da implantação damudança, tivemos que respeitar a limitação de escolher os20 melhores projetos que se apresentaram com muito boaorientação e que, muito provavelmente vão alcançar seusobjetivos de permitir uma formação geral mais ajustada àsnecessidades do país, sem prejuízo de poderem assegurarum nível técnico científico adequado, favorável ao desen-volvimento futuro dos médicos egressos.

A partir destas considerações, em que realçamos o va-lor da iniciativa, é necessário, ainda que em termos muitoperfunctórios, comentar alguns aspectos técnicos de mai-or importância. Em primeiro lugar há que ressaltar que amudança que se pretende impõe de imediato uma certahierarquia entre os seus três eixos de articulação, ficandoclaro que o primeiro e mais importante componente serásempre o conteúdo programático, que representa a estru-

tura do conhecimento e, portanto o nível de maior profun-didade de análise; um segundo nível de influência pode seratribuído ao cenário de prática, que constitui o campo emque se estabelecem as relações sociais da prática profissio-nal; e finalmente, sem querer reduzir sua importância, inci-de a orientação pedagógica, que atua como facilitadora doaprendizado, mas que tanto pode facilitar uma abordagempreventivo-promocional como uma essencialmente curati-va, dependendo sempre do contexto aonde é aplicada.

Fazemos estas considerações para chamar a atençãodo fato de que, à parte de que um bom número de proje-tos deu a devida importância a essa hierarquia, ainda, en-contramos casos em que predominou o interesse pelaabordagem pedagógica, aparentemente, em grande me-dida, pela influência da introdução da modalidade de“aprendizado baseado em problemas” (PBL em seu acrô-nimo original em inglês), a qual pode ser um ingredientede grande potencial no processo de mudança, mas nãodeve, de maneira alguma, suplantar, na concepção doseducadores responsáveis, a força da reorientação teóri-ca, do tipo de pesquisa que se promova, das linhas depós-graduação e da diversificação dos cenários de práticana indução do novo currículo.

A falta de experiência com o modelo que se quer im-plantar assim como as características do corpo docenteatualmente disponível, ainda de tendência mais especializa-da, podem explicar a insipiência, em certos casos, do en-foque teórico, sobretudo, no que diz respeito às propos-tas de desenvolvimento de pesquisa, que mais tradicio-nalmente ocorreram nas áreas de especialidades. Por ou-tro lado, a abordagem de um conteúdo interdisciplinarnecessariamente apresenta maior dificuldade, tanto emtermos da seleção dos temas como na conformação dasequipes docentes integradas. Assim mesmo, foi possívelobservar esforços louváveis na formulação dos novos cur-rículos, apesar de que este eixo é o que conta com menosexperiências que pudessem ser tomadas como exemplo.

Em relação aos cenários de prática há que diferenciar osimples uso de serviços do SUS da participação efetiva nofuncionamento dos mesmos. Um bom número de Esco-las, que utilizam hospitais vinculados ao SUS, entende queestão desenvolvendo uma real integração docente-assis-tencial, às vezes sem tomar em conta que não participamda atenção ambulatorial ou comunitária, ou não expõemos alunos a uma diversidade adequada de situações assis-tenciais e tão pouco vivenciam os processos de referênciae contra-referência de pacientes. No PROMED o que seesta buscando é, justamente, a possibilidade de que a Es-cola possa estabelecer uma parceria com o SUS,interatuando na programação de atividades, na marcação

PROMED - da Utopia à Realidade José Roberto Ferreira

de consultas e, em todas as etapas do processo assis-tencial. A maior dificuldade nesse eixo parece dever-se aofato de que a relação com o serviço sempre esta presentee a sutil diferença na forma de orientar esta relação nemsempre é de fácil percepção.

Outra observação interessante, entre as propostas quemais se destacaram, foi a tendência pregressa de buscaruma orientação mais comunitária, através do desenvolvi-mento de projetos pilotos em centros de saúde periféri-cos, hospitais gerais em zonas carentes e, até mesmo, es-tágios em zonas rurais, incluindo atividades preventivas ede promoção da saúde, com programas de orientação pré-natal, aleitamento materno, imunização, prevenção dedoenças de transmissão sexual, câncer, diabetes e/ou hi-pertensão, educação para a saúde e muitos outros, de-senvolvidos com recursos das próprias escolas ou comsubvenções específicas e apoio de entidades filantrópicas.Claramente a dedicação a atividades extracurricularesdesse tipo parecem constituir uma predisposição para aadoção de mudanças de maior amplitude de toda a Esco-la, especialmente no tocante aos cenários de prática.

Com o eixo da abordagem pedagógica observa-se umareação diferente, destacando-se com muito maior nitideza separação entre o enfoque disciplinar clássico e a orien-tação mais pontual de focalizar problemas específicos, comfreqüência demandando a utilização de conhecimentos devárias disciplinas, integrando aportes das ciências básicase das especialidades clínicas. Soma-se a isto a disponibili-dade de modelos desenvolvidos em outros contextos, quejá passaram por uma etapa de experimentação, e aos quaisse lhes hão dado ampla publicidade, facilitando possíveistransferências e reproduções.

O que vimos nas propostas selecionadas foi um esforçolouvável de poder estabelecer uma nova abordagem, enfren-tando todas as dificuldades e superando as fraquezas ineren-tes à resistência à mudança, num processo de motivação ereorientação do corpo docente através de debates, assesso-ria técnica e reconsideração das práticas convencionais, comvistas a uma ampla reprogramação dos currículos – abor-dando de forma equilibrada a saúde e a enfermidade – umaimportante revisão do grau e extensão de utilização dos ser-viços de saúde - para o qual às vezes se necessita o reapare-lhamento dos mesmos e, certamente um relacionamentomais harmônico entre os responsáveis pelas duas vertentes,a educacional e a assistencial - e por último, um verdadeirotreinamento em práticas didático-pedagógicas - com mobili-zação de recursos que facilitam o auto-aprendizado, intro-dução do sistema de tutorias e avaliação formativa e, ainda,em muitos casos, exige a preparação de materiais mais ade-quados para um aprendizado ativo.

Este conjunto de medidas envolve uma grande complexi-dade e pode demandar inversões significativas, para as quaisa contribuição do PROMED não pode ser mais que uma se-mente incentivadora, dependendo de cada uma das Escolasum esforço adicional para captar outros financiamentos epoder assegurar a sustentabilidade e efetividade do proces-so de mudança, fato que já pode ser observado nos projetosselecionados. Por outro lado, o prazo de três anos estabele-cido para o desenvolvimento dos projetos deve ser vistocomo a etapa de introdução e ajuste da proposta, sendo pas-sível de revisões periódicas para corrigir eventuais desvios eassegurar uma adequada adaptação do processo às necessi-dades da prática assistencial, do ensino e aprendizagem e dopróprio desenvolvimento científico e tecnológico, que teráque seguir, no contexto da mudança. A real avaliação do pro-grama só poderá ser realizada ao final de pelo menos umadécada, quando os primeiros grupos de egressos já estejamincorporados ao serviço e seja possível analisar em sua tota-lidade as conseqüências diretas e indiretas desse realinha-mento da integração docente assistencial.

A importância destas considerações deve-se ao fato deque, no momento estamos iniciando uma experiência coleti-va, altamente significativa, na qual será necessário exercitarcontinuamente a abordagem de “ensaio e erro”, num pro-cesso de aprender fazendo, aplicando o que nos ensinouMachado (o escritor cubano): “caminhante, quando não hácaminho, faz-se o caminho ao andar”, assegurando a possi-bilidade de reorientar a educação médica para que deixe deser vista como uma utopia e possa tornar-se realidade.

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* Ex-Diretor do Departamento de Desenvolvimento de RecursosHumanos da Organização Pan Americana da Saúde, Washington,D.C.- USA (1974/1995) - Membro da Comissão de Seleção doPROMED, Brasilia, D.F. (2002)

PROMED - da Utopia à Realidade José Roberto Ferreira

Roseni Pinheiro *

Descentralização, Universalidade e Integralidade da aten-ção constituem uma tríade de princípios que expressam emgrande medida o processo de consolidação de conquistas dodireito à saúde como uma questão de cidadania.

Este processo foi marcado por mudanças jurídicas, legais einstitucionais nunca antes observadas na história das políticasde saúde no país. Com a descentralização, novos atores incor-poraram-se ao cenário nacional e esse fato, juntamente com auniversalidade do acesso aos serviços de saúde, possibilitou oaparecimento de ricas e diferentes experiências locais centradasna integralidade da atenção. Tal integralidade entendida é aquino sentido mais ampliado de sua definição legal2 , ou seja, comouma ação social que resulta da interação democrática entre osatores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado desaúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema.

São milhares de gestores, profissionais e usuários do SUSque, na busca pela melhoria de atenção à saúde, vêm apresen-tando evidências práticas do inconformismo e da necessidadede revisão das idéias e concepções sobre saúde, em particulardos modelos tecnoassistenciais. Não se quer negar, com essaafirmação, a existência de tensões e conflitos que permearama luta pela implantação de políticas públicas mais justas nospaís, mas sim destacar a ação criativa desses novos atores, ver-dadeiros sujeitos em ação que, na luta pela construção de umsistema de saúde universal, democrático, acessível e de quali-dade, vêm possibilitando o surgimento de inúmeras inovaçõesinstitucionais, seja na organização dos serviços de saúde, sejana incorporação e/ou desenvolvimento de novas tecnologiasassistenciais de atenção aos usuários do SUS.

Com efeito, reconhecer essas experiências de iniciativasmunicipais e estaduais tem implicado no repensar dos as-pectos mais importantes do processo de trabalho, da ges-tão, do planejamento e, sobretudo, da construção de novossaberes e práticas em saúde. Em que pese a diversidade e apluralidade dos temas abordados, é possível perceber os di-ferentes desafios enfrentados pelos gestores, profissionais etécnicos para encontrar soluções para os problemas de saú-de prioritários da população. Em relação às novas tecnolo-gias assistenciais, mais especificamente, verificam-se que prá-ticas em saúde desenvolvidas nessas experiências vêm resul-tando em transformações no cotidiano das pessoas que bus-

INTEGRALIDADE E PRÁTICAS DE SAÚDE:TRANSFORMAÇÃO E INOVAÇÃO NA INCORPORAÇÃOE DESENVOLVIMENTO DE NOVAS TECNOLOGIASASSISTENCIAIS DE ATENÇÃO AOS USUÁRIOS NO SUS

cam e oferecem cuidados de saúde.Vejamos algumas delas. As propostas de promoção da saú-

de, por exemplo, que na maioria das vezes eram compreen-didas como um conjunto de ‘tecnologias simplificadas’, sur-gem nesse contexto como uma prática caracterizada por umaelevada densidade tecnológica, na qual a interdisciplinarie-dade dos conhecimentos envolvidos evidencia a alta com-plexidade de suas ações. Essa compreensão da promoção dasaúde vem reforçar a importância da atenção básica na ofer-ta de serviços públicos, como um dos locus mais importan-tes para consolidação dos princípios do SUS, no qual inte-gralidade da atenção é o amálgama dos demais princípios efundamenta o cuidado como uma tecnologia de saúde. Nes-se sentido o ’cuidado na atenção à saúde‘ é tomado comouma tecnologia assistencial complexa, presente em todos osníveis de atenção do sistema, pois, ao praticá-lo, buscaria-seestabelecer relações de saúde e relações sociais. Ou seja, aogarantir as relações entre a epidemiologia, as ciências huma-nas e as ciências biomédicas, contribui para a construção deconceitos e estratégias assistenciais mais ricas e eficazes.

É importante ressaltar esses sobre a promoção da saúde,pois configuram um processo rico de transformações cotidi-anas de noções e conceitos, permitindo o exercício do prin-cipio da integralidade em saúde, além de um importante cam-po de formação de recursos humanos em saúde. Alias, é noSistema Único de Saúde que os profissionais de saúde esta-rão desempenhando majoritariamente suas funções, assimcomo exercerão seu papel de lideranças técnico-científicas egestoras do setor saúde.

Analisando um conjunto de experiências no campo dasnovas tecnologias assistenciais2 foi possível destacar duasgrandes áreas de trabalho, que versam sobre temas distin-tos mas complementares entre si: as novas tecnologias de ges-tão do cuidado na atenção básica às populações especificas e deriscos (deficientes físicos, saúde do idoso, saúde reprodutiva esaúde mental) e a desospitalização de pacientes crônicos delonga permanência – Alternativas em tecnologias do cuidado naassistência hospitalar, que serão comentadas a seguir.

Sobre as novas tecnologias de gestão do cuidado na aten-ção básica às populações especificas e de riscos (deficientesfísicos, saúde do idoso, saúde reprodutiva e saúde mental)

Publicado em janeiro-fevereiro-março-abril /2003

Nessa primeira grande área encontra-se um conjunto deexperiências voltadas para o desenvolvimento de tecnologiasde gestão do cuidado e aprimoramento das ações na atençãobásica em saúde. A democratização do processo de trabalhona organização dos serviços, a renovação das práticas de saú-de – numa perspectiva de integralidade da atenção – e a valo-rização do cuidado como uma tecnologia complexa em saúde.Complexidade essa que não se define pelo custo do equipa-mento utilizado na prestação do cuidado, mas pelo reconhe-cimento da existência de diferentes dimensões que envolvemos sujeitos, ou seja sociais, econômicas, políticas e culturais.

Estas experiências caracterizam-se por uma forte associaçãoentre recursos humanos, informacionais, materiais e financei-ros, que têm na raiz de suas concepções a idéia-força de consi-derar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado emsuas necessidades, buscando garantir autonomia no cuidado desua saúde. A partir de uma lógica sistêmica, inerente à gênesedo SUS, as propostas que destacamos aqui apresentam estraté-gias de melhoria do acesso a serviços e medicamentos, assimcomo o desenvolvimento de práticas integrais do cuidado àspopulações consideradas especiais e de riscos de saúde. Obser-vamos propostas que tratam de capacitações voltadas para ahumanização do atendimento e para a promoção da solidarie-dade social, até a realização de estudos operativos destinados àavaliação e registro de projetos ou segmentos específicos dagestão ou mesmo do cuidado em saúde.

Algumas dessas propostas estão associadas à incorpora-ção de tecnologias computacionais (criação de softwares esistemas informacionais), destinadas à modernização da re-lação entre profissionais e serviços, e entre estes e os usuá-rios. Mas todas elas estão relacionadas com a promoção e agestão do cuidado em saúde, mediante a valorização do pro-fissional e do usuário, garantindo sua autonomia, de modo aestabelecer uma relação democrática entre demanda e ofer-ta, com ações integrais na atenção.

Um outro aspecto interessante dessas experiências diz res-peito à pluralidade dos temas abordados, que refletem a especi-ficidade e a complexidade dos contextos em que estão inseridos.Muitas delas traduzem a historicidade de movimentos sociais que,ao longo do tempo, vêm buscando o atendimento de suas reivin-dicações e demandas. Entre eles, destacamos aqui os movimen-tos das áreas de saúde reprodutiva e saúde mental. Estas duasáreas relacionam-se com antigas lutas sociais, com uma identida-de própria e ancorada em demandas de movimentos coletivosespecíficos, como os movimentos de mulheres e da reforma psi-quiátrica, para os quais as reformas das instituições de saúde são,até os dias de hoje, questão central de suas reivindicações.

Embora a origem desses movimentos preceda a própriaimplantação do SUS, a incorporação de tecnologias em saú-de nessas duas áreas legitima a capacidade deste sistema desaúde em de promover transformações sociais, sobretudoquando suas ações são potencializadas.

É nesse sentido que o projeto Potencializando a Gestão paraOrganizar a Rede Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Caxiasdo Sul – Rio Grande do Sul, busca consolidar os princípios doSUS. Este projeto constitui-se um verdadeiro laboratório depráticas e tecnologias de gestão do cuidado em saúde, que, an-corado na idéia de fortalecimento e qualificação do setor, am-pliou a oferta de serviços e de tecnologias na área biomédica.Mas o principal objetivo desse projeto, e que o justifica comoinovação, é seu movimento instituinte de buscar organizar osistema de saúde voltado para o desenvolvimento de novos edemocráticos processos de trabalho, em que estão incluídosmecanismos participativos de organização dos serviços de saú-de, entre os quais destaca-se a criação do colegiado gestor. Esseobjetivo foi atingido mediante a implantação de uma propostasistêmica de revisão das práticas de saúde e de organização daprodução de serviços, mediante a adoção de três estratégias:A) Elaboração de Protocolo das Ações Básicas de Saúde – consti-tuiu-se na elaboração de um livro que explicita a proposta tec-noassistencial municipal, servindo de subsídio técnico para todaequipe e gestor de saúde, pautado numa nova concepção decuidado: a de conceber a saúde como um direito de cidadania enovas formas de organizar e operar as práticas de saúde. O cuida-do é compreendido como uma ação em defesa da vida, basea-do numa concepção de saúde que contextualiza o indivíduo nosseus aspectos sociais e coletivos, ao mesmo tempo em que con-sidera sua singularidade como um sujeito com história e auto-nomia. Acesso, acolhimento, vínculo e responsabilização são osdispositivos institucionais amplamente desenvolvidos para ga-rantir acesso imediato aos serviços e recursos tecnológicos. Aqualificação da escuta clínica, solidária – mediante a responsabi-lização sanitária do profissional e gestor com as vidas das pesso-as – é o principal mote para o estabelecimento de uma relaçãohumanizada entre profissional/usuários/serviços com integrali-dade das ações. B) Sensibilização das equipes de saúde para orga-nizar o cuidado segundo ciclos vitais – mediante a realização doFórum Interdisciplinar sobre Ações Básicas, estruturado em trêsgrandes módulos nos seguintes ciclos e processos de saúde:gravidez e puerpério; criança; adolescente; adulto e idoso. Essaatividade contou com 350 trabalhadores em cada módulo, sen-do aplicado um instrumento de avaliação. C) Capacitação geren-cial – capacitação de gerentes e equipes de unidades municipaisde saúde, envolvendo uma metodologia subdividida na seguin-te forma: atualização de ferramentas gerenciais, por meio darealização de módulos e oficinas de desenvolvimento gerencial,com vistas à qualificação de planos locais.

Um outro projeto destinado à potencialização das ações daAtenção Básica é a proposta apresentada pela Secretaria Mu-nicipal de Saúde de Jundiaí (SP), intitulado Fortalecimento deAções de Reabilitação Baseada na Comunidade. Este projeto temcomo objetivo fortalecer as ações de reabilitação de deficien-tes físicos no município, baseadas na comunidade. As princi-pais estratégias para sua execução consistem na realização de

Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

atividades de grupo (grupos terapêuticos alternativos, acon-selhamento de pares e seminário para cuidador) e de capacita-ções voltadas para as pessoas com deficiência, cuidadores fa-miliares e profissionais de saúde. A integralidade da atençãoao portador de deficiência física é a principal diretriz das ativi-dades do projeto que, mediante a articulação das ações assis-tenciais (clínica, hospitalar domiciliária e ambulatorial e insti-tucional), com os movimentos populares, buscou reinserir apessoa deficiente no convívio social, estimulando sua partici-pação política em conselhos em defesa de suas causas.

Ainda no que concerne à prática do cuidado em saúde,chama a atenção uma outra proposta, denominada Treinamentode Cuidadores de Idosos da Secretaria Municipal de Saúde do Riode Janeiro. Este projeto aborda a estratégia de treinamento decuidadores de idosos, envolvendo multiplicadores e cuidado-res para orientação das famílias e exercício do autocuidado.Foram capacitados 40 multiplicadores (4 de cada AP do muni-cípio) e oferecido curso para 400 cuidadores (um em cada AP,envolvendo 40 cuidadores em cada), servindo como mais umamodalidade de atendimento, no qual são reforçados os víncu-los familiares e comunitários, de modo a evitar sua institucio-nalização, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.

No que concerne à saúde reprodutiva, verificamos expe-riências que relacionam-se a tecnologias de gestão do cuidadocom a humanização da atenção. São projetos que propõeminovações de caráter sistêmicos, direcionadas às práticas eorganização das ações cotidianas na atenção básica voltadaspara a reprodução humana. São eles: o Projeto Vida Nova daSecretaria Municipal de Saúde de Jundiaí (SP); o Curso de Hu-manização da Assistência à Gestante, do município de Pedrasde Fogo (PB); e o projeto Vasectomias Ambulatoriais Realiza-das em Unidades de Saúde no Município de Curitiba (PR).

Criado em 1998, o Projeto Vida Nova tem como objetivo aredução da mortalidade infantil no município, principalmentedo componente neonatal, e propõe ações coerentes para ocombate desses problemas, principalmente mediante a capa-citação de equipe de enfermagem e agentes comunitários e arealização de pesquisa de satisfação junto às usuárias. Umadas estratégias adotadas foi a sensibilização para captação pre-coce das gestantes e recém-natos, envolvendo equipes doPrograma Saúde da Família e Unidades Básicas de Saúde, alémde líderes comunitários da pastoral da criança e Agentes Jo-vens de projeto em áreas afins. A eficácia dessas atividadestrouxe resultados considerados positivos, tais como o aumentode 100% dos atendimentos de recém-natos usuários do SUSnos primeiros 15 dias de vida e crianças de baixo peso, alémde construção de protocolos de referência pré-natal e criaçãodo comitê de mortalidade materno-infantil na localidade.

Norteada por uma visão holística e integradora da atenção,Pedras de Fogo, município localizado na região do sertão doestado da Paraíba, inova a abordagem de qualificação profissi-onal com o projeto Capacitação para a Humanização da Assis-

tência à Gestante. Seu principal objetivo é combater a violên-cia no parto, mediante a capacitação de todas as equipes desaúde da família que compõem a porta de entrada do sistemamunicipal de saúde. O referencial teórico-metodológico utili-zado nessa capacitação é a Biossíntese, uma abordagem depsicoterapia corporal que tem o objetivo específico de sensi-bilizar e capacitar por meio de oficinas-vivenciais todos os pro-fissionais de saúde que atendam a mulher no seu períodogravídico-puerperal, no sentido de prestar uma atenção foca-lizada no contexto bio-psicossocial da mulher e da família. Osresultados da avaliação dos participantes ao final dos traba-lhos são surpreendentes, tendo em vista o contexto social,econômico e cultural em que vive essa população. Vínculo,humanização e existência humana são os componentes assis-tenciais e de cuidado considerados nesse trabalho como sen-do essenciais à garantia da vida dos pais e do filho.

Já em Curitiba, o projeto Vasectomia em Ambulatório em Uni-dades Básicas de Saúde iniciado pela Secretaria Municipal de Saú-de em 2000, relata o processo de implantação de ações de pla-nejamento familiar destinado ao publico masculino. Esse traba-lho evidencia a ousadia da ação local em enfrentar os problemascom criatividade, dando respostas coerentes com as demandasapresentadas. A partir de uma perspectiva de integralidade, aproposta do Programa de Planejamento Familiar da SMS –Curitiba, do qual esse projeto é parte integrante, busca reo-rientar o modelo assistencial mediante a implantação do Siste-ma Integrado de Serviços de Saúde. Com esse sistema, tornou-se possível a realização da vasectomia de maneira descentrali-zada e em ambientes extra-hospitalares, além de proceder umaavaliação periódica sobre a satisfação dos usuários .

Mas é na área da saúde mental que encontramos um nú-mero expressivo de experiências, abordando diferentes eta-pas do processo de reforma psiquiátrica no país, com o de-senvolvimento de tecnologias assistenciais em diferentes ní-veis de atenção. Iniciado numa perspectiva de desospitaliza-ção, o movimento de reforma psiquiátrica no país tem cadavez mais obtido conquistas no campo das políticas e da orga-nização dos serviços de saúde. Em consonância com as dire-trizes da Política de Atenção Integral em Saúde Mental, asexperiências locais e estaduais têm utilizado estratégias vol-tadas para a desinstitucionalização do paciente portador dedoenças mentais, baseadas na idéia da redução das interna-ções hospitalares e adotando os princípios da atenção psi-cossocial integrada, da interdisciplinariedade das práticas, dosistema extra-hospitalar de cuidados e da polêmica defesada cidadania do psicótico.

A síntese desses processos pode ser observada em doisprojetos apresentados pela Secretaria Estadual de Saúde doRio Grande do Sul (SES-RS), o projeto Seguimento e Avalia-ção do Processo de Reforma Psiquiátrica no Hospital PsiquiátricoSão Pedro e o Projeto Morar São Pedro Implantação dos ServiçosResidenciais Terapêuticos (São Pedro Cidadão). O primeiro pro

Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

jeto apresenta uma pesquisa que procura analisar os efeitosdo processo de transformação e desinstitucionalização doHospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), denominado ‘SãoPedro Cidadão’, uma das estratégias da reforma psiquiátricapromovida pela SES-RS, iniciada em 1999. Vários questioná-rios foram aplicados, destinados a avaliar a qualidade de vida,o comportamento social, a autonomia e a sintomatologia psi-quiátrica dos pacientes. Após tabulados os dados, será tra-çado um perfil da população do São Pedro e, mais tarde,estas informações resultarão em um Plano Terapêutico indi-vidualizado a ser implementado no hospital. Dois anos de-pois, os mesmos questionários serão novamente aplicadospara avaliar a evolução dos pacientes. A proposta está inseri-da no projeto São Pedro Cidadão, que busca a inclusão dospacientes da casa psiquiátrica na comunidade.

Já o segundo projeto, intitulado Morar São Pedro Cidadão,aborda uma das estratégias de caráter intersetorial da refor-ma psiquiátrica promovida pela SES-RS, particularmente noâmbito da reestruturação do Hospital Estadual São Pedro.O projeto prevê a constituição de 36 Serviços ResidenciaisTerapêuticos, com o objetivo de desospitalizar parte dos pa-cientes atualmente internados no hospital. Todos os pacien-tes integram as ‘coletivas de trabalho’ organizadas no pró-prio hospital, e é daí que tiram seu próprio sustento. Ospacientes terão como vizinhos moradores de um vila locali-zada junto ao HPSP. A integração entre pacientes e morado-res da vila começa nas frentes de trabalho, como na usina dereciclagem e no salão de beleza. Nos sobrados, os pacientesserão monitorados por profissionais.

Em Belém do Pará, verificamos que esse processo é de-senvolvido de uma forma bastante interessante. O projetoAssistência à Saúde Mental em Belém adota a estratégia deincorporação de ações de saúde mental nas unidades básicasde saúde do município, envolvendo pelo menos três gruposde atividades: capacitação de trabalhadores e gerentes deunidades com conteúdos da área da saúde mental; elabora-ção de normas e fluxos de ações de saúde mental nas unida-des; e supervisão em saúde mental, junto às equipes profis-sionais. Nos municípios de Ponta Grossa (PR) e Aracaju (SE),os projetos Desospitalização de pacientes crônicos de longapermanência em Saúde Mental e Implantação da rede munici-pal de Saúde Mental, apresentados pelas respectivas secreta-rias municipais de saúde, também se utilizam das capacita-ções como recursos para qualificação técnica, principalmen-te para promover o engajamento na mudança no modelo deatenção à saúde mental nestas localidades, mediante a im-plantação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Ainda na esteira da qualificação técnica para prestação docuidado ao portador de transtornos mentais e melhoria doacesso, encontram-se os projetos das secretarias municipaisdo Rio de Janeiro (RJ) e de Curitiba (PR). No primeiro, intitu-lado Enfermagem em Saúde Mental: novas soluções para antigos

problemas. Programa de Formação, Integração e Acompanhamentopara Profissionais em Enfermagem do Instituto Philipe Pinel, inici-ado em 1997, o objeto central de suas atividades é capacita-ção e integração da enfermagem no Instituto Philipe Pinel,compreendendo pelo menos 2 horas de atividades semanais(seminários e curso), dedicadas às áreas identificadas pela equi-pe como prioritárias. Mais do que um projeto de capacitação,a proposta é inovadora por voltar-se para a valorização, in-centivo e integração dos profissionais de enfermagem que atu-am em saúde mental, reconhecendo seu papel e identificandoas grandes dificuldades enfrentadas por esses profissionais.

No segundo projeto, sob o título Programa de Saúde Men-tal em Curitiba, propõe-se a reestruturação da atenção à saúdemental no município, envolvendo mudança de concepção,de modelo de atenção e de organização/integração da rede,com estratégias de desospitalização e processos de informa-tização. Nota-se a preocupação de se buscar a integralidadesistêmica, pela sua vinculação ao Sistema Integrado de Servi-ços de Saúde, que reúne um conjunto de tecnologias de in-tegração fortemente marcadas pelo uso de protocolos e de-senvolvimento de sistemas informatizados para monitora-mento informatizado da atenção à clientela da rede própriae dos serviços credenciados no SUS.

Sobre as experiências de Desospitalização de pacientescrônicos de longa permanência - Alternativas em Tecnolo-gias do cuidado na assistência hospitalar

Um dos efeitos da transição demográfica é o aumento donúmero de idosos e de doenças crônicas nas diferentes po-pulações do mundo. Por essa razão, a incorporação da aten-ção domiciliar vem se consolidando como mais uma tecnolo-gia do cuidado na atenção à saúde.

Neste bloco temático, encontramos dois projetos distintosvoltados para a incorporação e organização da atenção domi-ciliar para tratamentos de pacientes crônicos. O primeiro de-nominado Implantação de Serviço de Oxigenoterapia Domiciliarnos Municípios-sede e Regionais de Saúde, implantado em 1997pela Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina, tem comoobjetivo incrementar a qualidade de vida dos pacientes porta-dores de doença pulmonar obstrutiva/restritiva, mediante oestabelecimento de uma rotina de atenção ao tratamento do-miciliar com participação de familiares e equipe do PSF. Paraalcançar esse objetivo, foram adotadas as seguintes estratégi-as: a) desenvolvimento de um software destinado ao controleadministrativo e fiscal do consumo e fornecimento de oxigê-nio aos pacientes; b) elaboração de protocolos e rotinas; e c)elaboração de um manual de orientações sobre a política deoxigenoterapia domiciliar nos municípios do estado e treina-mento de recursos. É útil ressaltar que esta iniciativa estadualé única no país nesta área, envolvendo todos municípios-sedee regionais de saúde do estado de Santa Catarina.

O segundo projeto, intitulado Programa de Internação Do-miciliar do Hospital São João Batista, implantado em 1994 pela

Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

Secretaria Municipal de Saúde de Volta Redonda (RJ), foidesenvolvido a partir de uma proposta de gestão descentra-lizada e participativa, por meio de um Colegiado de Gerên-cia. O hospital municipal São João Batista, referência no mu-nicípio e regiões adjacentes, tem como objetivo capacitar edifundir as práticas desenvolvidas na atenção domiciliar ba-seadas no binômio família e cuidador. A capacitação de equi-pes de multiplicadores e cuidadores do paciente e aelaboração de material instrucional foram as principais ativi-dades realizadas para se atingir os objetivos propostos. En-tre os resultados obtidos estão a melhoria do acesso e daqualidade da assistência prestada, assim como a redução doscustos.

Por último vale ressaltar que a utilização do domicílio comoespaço de atenção tem se tornado uma estratégia importan-te que visa à união da humanização do atendimento ao usoracional dos recursos sociais. Criatividade, ousadia, respeitoe solidariedade são os procedimentos que devem constar naoferta da atenção ao paciente hospitalizado quando cessamos benefícios da internação a que foi submetido. Em todo omundo acumulou-se evidências práticas de que a atençãodomiciliar é eficaz e eficiente, e que sua qualidade humanizaa atenção. Mais uma vez, o cuidado representa a unidademolecular da integralidade da atenção na melhoria do acessoaos leitos hospitalares e a eleição da família como agentemultiplicador dessa ação.

Algumas considerações finais sobre a integralidade comoeixo norteador de transformações e inovações em saúde

Diversidade, pluralidade e inovação são as palavras que melhorresumem essas experiências aqui comentadas, sobre as quaisdestacamos dois aspectos específicos para reflexão dos atoresenvolvidos na consolidação do Sistema Único de Saúde.

O primeiro aspecto refere-se às possibilidades dessas ex-periências tornarem-se campo de formação de recursos hu-manos. Um exemplo concreto é o projeto VER/SUS/RS, de-senvolvido pela Escola Técnica de Saúde Publica do Rio Gran-de do Sul , na gestão do prof. Ricardo Burg Ceccim, quebuscou difundir uma oferta sistemática de vivência-estágioaos estudantes dos diferentes cursos de graduação do setorsaúde. Apostamos que projetos como esse conhecimentosde diferentes realidades, necessidades, oportunidades, de-mandas, urgências, potencialidades, dificuldades, possibilida-des, desafios, enfim alegrias e tristezas do sistema de saúdebrasileiro possam representar o verdadeiro fluxo de forçana direção de uma significativa qualificação profissional.

O segundo aspecto diz respeito ao desenvolvimento denovas práticas de atenção à saúde e ao aprendizado instituci-onal que essas experiências podem suscitar na relação entreos três níveis de gestão do SUS. Destaca-se nessas experiên-cias a predominância de iniciativas municipais, que emboratenhamos percebido a coerência entre as diretrizes munici-pais/estaduais com as diretrizes nacionais, no que concerne

às políticas de saúde, fica evidente a importância do espaçolocal como locus privilegiado e eficaz de materialização deuma política de saúde. Analisando essas experiências, foipossível perceber que conceitos, definições e noções vêmsendo repensados, reconstruídos e renovados à luz da inte-gralidade da atenção, formando um verdadeiro amálgama dosdemais princípios norteadores do SUS. Pensar o cuidado emsaúde como uma tecnologia, por exemplo, e não somentecomo objeto de práticas de saúde realizadas na atenção bá-sica – e sim nos demais níveis de atenção especializada, nosquais a complexidade não seja dada pelo grau de hierarqui-zação dos espaços e procedimentos por ela definidos, maspelos recursos cognitivos, materiais e financeiros que reú-nem – é sem sombras de dúvida um repensar inovador.

Encerramos esse texto dizendo que tomar ciência dos re-latos das experiências inovadoras apresentadas neste volu-me é, no mínimo provocador, pois nos desafia a pensar quea consolidação dos princípios do SUS, sobretudo a integrali-dade de suas ações, deve ser compreendida como uma es-tratégia concreta de um fazer coletivo e realizado por indiví-duos em defesa da vida. Acreditamos que essas experiênciasnos ajudem a conceber a idéia de que o SUS dá certo, é legal,é conquista e que, na verdade, são vitórias cotidianas acumu-ladas por todos aqueles que lutam por políticas sociais maisjustas. Tenhamos cuidado com o SUS, pois cuidar de si, denós ou dos outros na saúde depende de uma combinaçãonecessária entre ação, compromisso e solidariedade socialcom uma população que carece muito de atenção. Comodizia o amigo David Capistrano, “temos uma dívida muito gran-de para com os desassistidos, e eles têm pressa...”

Notas:1 A definição legal e institucional de integralidade é de um

conjunto articulado de ações e serviços de saúde, preventivose curativos, individuais e coletivos, em cada caso, nos níveisde complexidade do sistema.

2 Esta análise relaciona-se a participação da autora nacoordenação do Projeto Experiências Inovadoras no SUS. Esteprojeto foi realizado no período de 2000-2002, com objetivo defomentar, analisar, avaliar e disseminar experiências inovadorasno SUS, em campos temáticos específicos quais sejam: a gestãodos serviços de saúde e novas tecnologias assistenciais. Foraminscritos mais de 100 projetos de iniciativas municipais eestaduais, sendo quarenta dois aprovados, os quais apresentaramcomo produto final o relato de suas experiências. Esses relatosconstituíram-se em duas publicações financiadas pelo ProjetoREFORSUS, Ministério da Saúde, Banco Mundial e Bird.

* Doutora em Saúde Coletiva e pesquisadora do ProjetoIntegralidade, Saberes e Práticas no Cotidiano dasInstituições de Saúde, no Instituto de Medicina Social da UERJ,que conta com apoio da FAPERJ, CNPq e Ministério da Saúde.

Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

Carmen Fontes Teixeira *

ENSINO DA SAÚDE COLETIVANA GRADUAÇÃO

A formação de profissionais de saúde é hoje um dostemas centrais na agenda política governamental. O deba-te sobre as mudanças no processo de formação e a for-mulação e implementação de políticas e estratégias nessaárea envolvem as instituições de nível superior, convoca-das a reformar os desenhos curriculares dos diversos cur-sos, e se desdobram na implantação de programas e pro-jetos estratégicos de formação e capacitação de pessoalem áreas críticas, como nos casos da “Saúde da Família” eda “Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde”, e em inicia-tivas implementadas no âmbito do ensino médio e na ca-pacitação e educação continuada de pessoal em serviço.

POLÍTICA DE SAÚDE, MODELOS DE ATENÇÃO EDESAFIOS DA FORMAÇÃO DE PESSOAL

O sistema de serviços de saúde brasileiro configura-sehoje, como um mix que envolve o subsistema público, oSUS, que atende a grande maioria da população, cerca de120 milhões de usuários, e o SAMS – Sistema de Assistên-cia Médica Supletiva, cuja cobertura alcança cerca de 42milhões de pessoas. Apesar das diferenças em termos dofinanciamento e gestão, estes dois subsistemas apresen-tam semelhanças no que diz respeito ao modelo de pres-tação de serviços, reproduzindo, fundamentalmente, ochamado modelo “médico-assistencial-hegemônico”, hos-pitalocêntrico e privatista.

No âmbito do SUS, entretanto, vários esforços têm sidodesencadeados para a “reversão” desse modelo, de altocusto e baixa eficácia diante dos problemas de saúde dapopulação. Nesse sentido é que vem se enfatizando a ex-pansão e qualificação da “atenção básica à saúde”, comoforma de produzir uma “viragem ambulatorial” no siste-ma, ao tempo em que se criam as condições para o forta-lecimento das ações de vigilância epidemiológica, sanitáriae ambiental, necessárias ao controle de epidemias e en-demias, ao tempo em que se preconiza a incorporação deações de promoção da saúde em todos os níveis. Comisso, busca-se, de um lado, racionalizar custos e, de ou-tro, adequar as ações e serviços ao perfil de necessidades

e demandas da população, buscando-se incorporar e con-solidar práticas que levem em conta as tendências demo-gráficas e epidemiológicas – envelhecimento, predominân-cia de doenças crônico-degenerativas e causas externas,ao lado da emergência e permanência de doenças infecto-parasitárias – em um contexto marcado por profundasdesigualdades em termos de condições e modos de vidados vários grupos da população.

Dentre as várias estratégias adotadas para o desenvolvi-mento desse processo, destaca-se o esforço de descentra-lização da gestão do SUS, com a municipalização das açõese serviços, induzindo-se, através de incentivos financeiros,a mudança no perfil de oferta dos serviços no nível local,bem como a implantação dos programas de Saúde da Fa-mília – PACS/PSF, que hoje alcançam 50 milhões de pesso-as. Esse processo, que mobiliza milhares de dirigentes, pro-fissionais, trabalhadores e representantes dos usuários emtodo o país, tem contribuído para recolocar em questão oprincípio da integralidade do cuidado à saúde e a necessida-de de formação de profissionais que venham a fazer partede equipes de saúde que trabalhem numa perspectiva “po-lítica, social e epidemiologicamente orientada”, tendo comoponto de partida a compreensão dos determinantes dosproblemas de saúde e das alternativas de mudança das po-líticas e de práticas de saúde, visando a seu enfrentamentoe superação. Isto significa desencadear um processo de mu-dança na formação de profissionais de modo que os egres-sos dos diversos cursos aliem as competências técnicas exi-gidas pelo atual “estado da arte” na área de saúde a valorespolíticos e sociais que ultrapassem a mera adaptação às ten-dências da organização dos serviços e possam contribuirpara a construção de futuros desejáveis em termos de po-líticas e práticas de saúde que dêem respostas efetivas aosproblemas e necessidades de saúde dos diversos grupos dapopulação brasileira.

Nessa perspectiva é que se pode entender o enormeesforço desencadeado em torno da elaboração e imple-mentação das Novas Diretrizes Curriculares para os cur-sos da área de saúde, resultado de uma ampla mobiliza

Publicado em maio-junho / 2003

ção de docentes e gestores de instituições de ensinosuperior na área. O movimento em torno da implantaçãodas Novas Diretrizes Curriculares constitui, hoje, semdúvida, o eixo central do processo de mudança do ensinosuperior em saúde na grande maioria das escolas, sendopotencializado, especialmente na área médica e de enfer-magem, pela implantação de programas especiais, comonos casos do Promed e do Proenf.

Na medida em que a mudança na formação profissionalna área deve ser permanentemente renovada, em funçãoda necessidade de adequação às necessidades e demandasde um sistema de saúde em constante mutação, a consoli-dação desse processo passa, ao nosso ver, pelo enfrenta-mento de alguns desafios que vão além da implantação dasNovas Diretrizes Curriculares: a) a formação e educaçãocontinuada de docentes; b) a introdução de inovações pe-dagógicas no processo ensino-aprendizagem; c) a inserçãodos docentes e alunos nas práticas do sistema de serviçosde saúde. Com isso é possível pensar na criação de condi-ções político-institucionais e pedagógicas que impliquem aformação de profissionais críticos e criativos, capazes deassimilar o ideal de “aprender a aprender” sempre, nummundo globalizado, no qual a perplexidade e a incerteza setornam o traço dominante, exigindo o desenvolvimento,em cada sujeito, dos mecanismos que contribuam para areconstrução permanente da sua identidade profissional.

SAÚDE COLETIVA: CAMPO CIENTÍFICO ECONJUNTO DE PRÁTICAS SOCIAIS

A Saúde Coletiva tem sido definida como um campode saber e de práticas que toma como pressuposto a com-preensão da saúde como um fenômeno eminentementesocial, coletivo, determinado historicamente pelas condi-ções e modos de vida dos distintos grupos da população.Esta compreensão da saúde enquanto fenômeno coletivobusca superar as concepções vigentes no âmbito das ci-ências da saúde tradicionais, que, embora se intitulem da“saúde”, de fato tratam da doença e de suas condições deocorrência e distribuição, geralmente descritas e analisa-das em sua expressão individual.

O debate teórico e epistemológico que existe hoje nocampo da Saúde Coletiva contempla uma conceituação maisavançada da saúde, enquanto objeto de conhecimento e deintervenção, entendida como parte do “complexo saúde-doença-cuidado”, que incorpora a historicidade das rela-ções que a determinam, inclusive a relação dos indivíduos,grupos sociais e populações com o sistema de serviços desaúde. Ancorada nesta reflexão abrangente sobre a saúde,

a Saúde Coletiva vem se configurando, especialmente noBrasil, como um “campo científico”1, de produção de co-nhecimentos e tecnologias, e como um “âmbito de práticassociais”2, que envolve desde as práticas de saúde propria-mente ditas, realizadas no âmbito do sistema de saúde efora dele, até as práticas político-ideológicas realizadas pordistintos sujeitos sociais, visando à democratização de sa-beres e formulação de propostas políticas, organizativas eoperacionais voltadas à criação de condições e modos “sau-dáveis” de vida nos diversos espaços de sociabilidade e con-vivência. Nesse sentido, a Saúde Coletiva se articula comum conjunto heterogêneo de movimentos ideológicos dereforma do ensino e da organização das práticas de saúde,redefinindo conceitual e politicamente algumas propostase incorporando outras, a exemplo do que ocorreu com aMedicina Preventiva e Comunitária, nos primórdios da re-flexão crítica na área, nos anos 70-80, até, mais recente-mente, o diálogo com a Saúde da Família e o debate sobreas propostas e políticas de Promoção da Saúde.

ENSINAR SAÚDE COLETIVA: EIXOSDISCIPLINARES, CENÁRIOS DE PRÁTICA E

ABORDAGENS PEDAGÓGICAS

O espaço privilegiado de formação de pessoal em Saú-de Coletiva tem sido a pós-graduação, em suas diversasmodalidades, da PG lato sensu, mestrado e doutorado, àPG stricto sensu, através de cursos de atualização e espe-cialização, inclusive sob a forma de residência. Em quepesem suas várias denominações – Saúde Pública, SaúdeComunitária, Medicina Social ou Saúde da Família –, o fatoé que a maior parte dos cursos de PG nesta área trabalhacom conteúdos e práticas fundamentados nos eixos disci-plinares que compõem o campo da Saúde Coletiva, quaissejam, a Epidemiologia, o Planejamento & Gestão em Saú-de e as Ciências Sociais em Saúde. A partir de cada umdesses eixos se abre uma ampla perspectiva de diálogointer e transdisciplinar, que acaba por se expressar na ên-fase atribuída a cada um desses eixos nos diversos pro-gramas de PG existentes hoje no Brasil, em função dascaracterísticas do seu corpo docente e da sua trajetóriainstitucional. Existe, entretanto, um razoável consenso emtorno desses eixos estruturantes, que constituem “áreasde concentração” na PG e conformaram, historicamente,a organização da entidade que representa politicamente ocampo – a Abrasco3.

O ensino de Saúde Coletiva nos cursos de graduaçãoda área de Saúde tende, de certo modo, a reproduzir oseixos disciplinares assinalados, apareçam eles quer como

Ensino da Saúde Coletiva na Graduação Carmen Fontes Teixeira

“disciplinas” específicas, quer como conteúdos embu-tidos em disciplinas mais gerais. Especificamente quantoao ensino desses conteúdos na Educação Médica, as NovasDiretrizes Curriculares enfatizam a necessidade de incor-poração do enfoque epidemiológico, populacional, na com-preensão dos “determinantes sociais, culturais, compor-tamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais”4 doprocesso saúde-doença, estabelecendo que a estrutura docurso de graduação tenha como um dos eixos do desen-volvimento curricular “as necessidades de saúde dos indi-víduos e das populações”. Do mesmo modo, incorporama perspectiva da integralidade do cuidado à saúde, pro-pondo uma superação na ênfase no paradigma clínico, aosugerirem que o profissional se qualifique a “atuar na pro-teção e na promoção da saúde e na prevenção de doen-ças, bem como no tratamento e reabilitação dos proble-mas de saúde e acompanhamento do processo de mor-te”. Além disso, admitem que o profissional médico deve“lidar criticamente com a dinâmica do mercado de traba-lho e com as políticas de saúde”, “ter disposição para atu-ar em atividades de política e planejamento em saúde”,“manter-se atualizado com a legislação pertinente à saú-de” e outros itens que revelam a incorporação de con-teúdos geralmente enfocados nas disciplinas da área deSaúde Coletiva, especificamente Política, Planejamento eGestão em Saúde.

A maior evidência da importância atribuída à Saúde Co-letiva como parte do processo de formação médica nocontexto atual, porém, é o fato de as NDC estabelece-rem esta área como parte do estágio curricular obrigató-rio de treinamento em serviço, atividade que implica ainserção do estudante em práticas de epidemiologia nosserviços de saúde, bem como em práticas de formulaçãoe avaliação de políticas, planejamento e gestão de servi-ços de saúde e, ainda, em atividades de educação e comu-nicação social em saúde, diretamente vinculadas a organi-zações comunitárias ou entidades sociais diversas, de acor-do com a definição dos cenários de prática estabelecidospelas diversas escolas. Ao incorporar o trabalho como“princípio educativo” e indicar a inserção dos estudantesem múltiplos cenários de prática, as NDC ampliam consi-deravelmente as possibilidades de problematização da re-alidade de saúde onde os estudantes irão atuar, do pontode vista da identificação tanto dos problemas de saúde edas condições de vida da população, quanto dos proble-mas dos serviços de saúde e os limites e possibilidadesdos processos de mudança em curso.

Cabe destacar, entretanto, que a simples incorporaçãode conteúdos das disciplinas da Saúde Coletiva ou mesmoa organização de estágios em atividades práticas da área

podem não implicar uma mudança significativa no perfildo egresso do curso médico, tal como pretendido pelasNDC, ao assumirem que o profissional deve ter uma “for-mação generalista, humanista, crítica e reflexiva”. Para isso,é fundamental investir na introdução de novas aborda-gens pedagógicas no processo de ensino-aprendizagem,como, por exemplo, a Aprendizagem Baseada em Pro-blemas (PBL) e a metodologia da problematização, méto-dos ativos de ensino-aprendizagem, que induzem a reor-ganização do processo pedagógico a partir da reflexãosobre o significado que adquire, para cada aluno, estudarMedicina, preparar-se para ser médico num contexto es-pecífico, em termos da organização social das práticas desaúde e das características gerais de uma sociedade comoa brasileira, marcada por enormes desigualdades nas con-dições de vida e saúde e no acesso aos cuidados de saúdepor parte dos diversos grupos da população.

Nesse particular, o ensino da Saúde Coletiva pode cons-tituir um espaço de reflexão crítica e de elaboração de pro-postas de ação política fundadas em valores como justiçasocial, participação democrática, respeito às diferenças epromoção da paz. Além disso, pode contribuir para forta-lecer um processo de experimentação de práticas de pro-moção da saúde e da melhoria da qualidade de vida dosdiversos grupos sociais, bem como possibilitar a incorpo-ração de conteúdos relevantes para a formação médica,como, por exemplo, a problemática da violência, o contro-le do tabagismo, as tendências do mercado de trabalhomédico, a política de medicamentos e a assistência farma-cêutica. Sobretudo, o ensino da Saúde Coletiva pode cola-borar para a reorientação das práticas dos estudantes deMedicina e dos docentes comprometidos com a “humani-zação” não só das relações médico-paciente, ou das rela-ções entre o médico e os demais profissionais da equipe desaúde, mas sobretudo do médico enquanto sujeito, paraquem “nada do que é humano lhe é estranho”.

1. Ribeiro PT. A instituição do campo científico da Saúde Coletivano Brasil. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de SaúdePública, Fundação Oswaldo Cruz; 1991.

2. Paim JS, Almeida Filho N. A crise da Saúde Pública e a utopia daSaúde Coletiva. Salvador (BA): Casa da Qualidade; 2000.

3. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva.

4. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação,Parecer 1.133/01. Diário Oficial da União de 3/10/2001, Seção1E, p. 131 (institui Diretrizes Curriculares do curso de graduaçãoem Medicina).

* Professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federalda Bahia.

Ensino da Saúde Coletiva na Graduação Carmen Fontes Teixeira

Jadete Barbosa Lampert *

O paradigma da educação médica (da formação em saú-de) tem sido caracterizado pelo modelo que resultou doRelatório Flexner (1910), impulsionando o estudo e a pes-quisa nas ciências básicas e especializadas com desenvolvi-mento do conhecimento de uma forma fantástica e semprecedentes, mas fragmentado, disjunto. A fragmentaçãodo conhecimento nas diversas especializações ampliou eaprofundou o conhecimento, mas limitou a visão e distan-ciou-se do ser humano como um todo no seu contexto.

O advento da medicina preventiva nas décadas de 60/70(Viña del Mar, 1955; Tehuacan, 1956) tentou recuperar estedistanciamento, mas ficou restrita a um destes fragmentos,na forma de uma disciplina ou departamento agregado aoscurrículos que já existiam sem alterar sua estrutura. Mas afalta de uma integração dos conhecimentos na abordagemda saúde incentivou a crescente busca de soluções. Hoje seidentifica bem uma disjunção entre a realidade e os modelosexistentes e que as explicações para os fenômenos não satis-fazem, criando assim, as condições para a substituição deparadigma. Dando sinais de exaustão, o chamado paradigmaflexneriano abre espaço para um modelo que preencha fa-lhas e equilibre as oscilações entre tecnologia e humanismo,orientando para o atendimento de necessidades sociais, semreduzir o ritmo do desenvolvimento científico – a busca daexcelência técnica com o da relevância social.

A partir do Informe Lalonde (1974) houve o entendimen-to de que só tratar das doenças (reabilitação da saúde) não ésolução para se ter saúde, o que mobilizou estudos e discus-sões. A discussão sobre o processo saúde-doença tomouforça, desde então, e vem apontando e identificando fatoresque determinam a saúde e as doenças, onde se deve focali-zar os investimentos para uma vida melhor para todos.

Duas conferências mundiais de educação médica (Edim-burgo, 1988 e 1993) e cinco conferências internacionaissobre promoção da saúde (Ottawa, 1986; Adelaide, 1988;Sundsvall, 1991; Jacarta, 1997; México, 2000) são marcosde âmbito mundial que dão embasamento, com tantosoutros estudos, para a construção do novo paradigma. O

NA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICADA EDUCAÇÃO MÉDICA:O QUE O PARADIGMA DA INTEGRALIDADE ATENDEQUE O PARADIGMA FLEXNERIANO DEIXOU DE LADO

novo paradigma vem assim se delineando, no Brasil, emvários movimentos e projetos na construção de um novomodelo para formar os profissionaIs de saúde.

No Brasil a VIII Conferência Nacional de Saúde (1987), omovimento da Reforma Sanitária, a Constituição Brasileira(1988), e mais recentemente, a homologação das Diretri-zes Curriculares (ME/CNE, 2001) dão uma seqüência daconsolidação, em leis e decretos, do encaminhamento paraas mudanças nas ações de saúde e na formação de recur-sos humanos com preparação adequada para prestar umaassistência de qualidade em saúde, com abordagem inte-gral, interdisciplinar, multiprofissional e eqüitativa.

Não deixando de considerar que o mercado está di-versificado na oferta de serviços de saúde, com implica-ções variadas para o alcance da equidade no consumo,uma vez que o sistema de saúde brasileiro está constituí-do por uma rede complexa de prestadores e comprado-res de serviços, simultaneamente inter-relacionados, com-plementares e competitivos em um complicado mix pú-blico e privado, no qual o financiamento majoritário é dadocom recursos públicos (Travassos e al., 2000). Além denão deixar de observar, também, que o sistema ainda estámuito centrado na assistência médica e no atendimentohospitalar, reproduzindo de forma acentuada o paradigmaflexneriano e mostrando que o paradigma da integralida-de ainda carece de socialização, de delinear-se com clare-za e permear as mentes para, então, produzir as mudan-ças esperadas traduzidas em ações predominantes.

No quadro a seguir se colocam os dois enfoques pre-dominantes que apontam para um e outro paradigma. Aguisa da possibilidade de uma observação mais analíticado que se vivencia e se constroem no dia-a-dia institucio-nal das escolas e dos serviços.

Características que devem predominar no currículo degraduação da escola de medicina no paradigma da inte-gralidade (inovador/avançado) que ao contraporcomplementa o paradigma flexneriano (tradicional) emcinco eixos de relevância em educação médica

Publicado em julho-agosto-setembro-outubro / 2003

Abordagem PedagógicaINOVADOR / AVANÇADO TRADICIONAL

• voltado para causas biomédicas, sociais e ambientais nadeterminação da saúde, abordando o conhecimento deforma integrada com metodologia interativa, enfatiza apromoção, a preservação e a recuperação da saúde, ten-do a doença como um desvio, uma intercorrência nasaúde que deve ser evitada e, quando diagnosticada, sertratada em qualquer estágio evolutivo que se encontre;

• explicita a tecnologia complexa e de alto custo quandousada, com análise crítica da repercussão na assistência(custo/benefício);

• produz conhecimentos nas áreas biomédicas, de condi-ções de saúde, dos aspectos sócio-econômicos, do campode atenção básica e de gestão do Sistema de Saúde visandoinformações para a melhoria da prática em saúde;

• contempla os cursos de pós-graduação em campos gerais eespecializados na seqüência da graduação relacionados comas necessidades de atendimento a saúde da população e pro-porciona educação permanente relacionada a doenças pre-valentes em interação com os profissionais dos serviços.

• estrutura curricular com atividades integradas em disci-plinas ou em módulos;

• o processo ensino-aprendizagem centrado no aluno compapel ativo na construção do próprio conhecimento, ten-do o professor papel de facilitador em atividades maisinterativas com pequenos grupos de alunos;

• avalia desempenho na prática clínica e social de conhe-cimentos, habilidades atitudes.

• voltado para causas biomédica na determinação da do-ença, tratando do diagnóstico e tratamento, enfocandoa doença apresente o conhecimento fragmentado emdisciplinas / especialidades;

• enfatiza a alta tecnologia na área clínica e cirúrgica quan-do indicada sem análise crítica do custo/benefício;

• produz conhecimentos na área demográfica e epidemio-lógica com ênfase nas ações biomédicas diagnósticas ecurativas;

• contempla cursos de pós-graduação em campos espe-cializados com total autonomia sem compromisso coma educação permanente.

• estrutura curricular fracionada em ciclo básico e profis-sionalizante e disciplinas fragmentadas:

• o processo de ensino-aprendizagem centrado no pro-fessor em aulas expositivas e demonstrativas com gran-de grupo de alunos;

• avalia memorização e raciocínio clínico em prova escri-ta e habilidades selecionadas.

Enfoque TeóricoINOVADOR / AVANÇADO TRADICIONAL

• prática na rede do sistema de saúde em graus crescen-tes de complexidade voltada para as necessidades desaúde prevalentes dentro de uma visão intersetorial comenfoque na saúde;

• aluno com oportunidade de prática ampla de complexi-dade crescente e supervisionada por docente;

• atividades práticas cobrindo vários programas e servi-ços de forma integral (adulto, materno-infantil, medici-na do trabalho, urgências, etc.).

• prática no hospital secundário e terciário com enfoquefortemente voltado para as doenças graves;

• aluno observador da prática com oportunidade a ativi-dades selecionadas;

• atividades práticas quando oportunizadas ao aluno serestringe ao âmbito das especialidades – visão segmen-tada do paciente.

Cenário da PráticaINOVADOR / AVANÇADO TRADICIONAL

Na Transição Paradigmática da Educação Médica Jadete Barbosa Lampert

• formação pedagógica é exigida com acompanhamen-to e avaliação dispondo de núcleo de apoio didático-pedagógico;

• exige atualização e aprimoramento técnico-científicocom incorporação crítica de novos conhecimentos etecnologia

• docentes comprometidos com o sistema público de saú-de, analisando criticamente os modelos de prática e de-senvolvendo processo formativo ligado as necessidadesregional e local em saúde, participando da formulação eavaliação das políticas e planejamento dos serviços e fun-cionamento do sistema.

• mostra aspectos da dinâmica do mercado de trabalhomédico orientado pela reflexão e discussão crítica dosaspectos econômicos e humanísticos na prestação deserviços de saúde e suas implicações éticas;

• para elaborar a programação didática considera primor-dialmente a carência de profissionais médicos relacio-nada ao atendimento das reais necessidades de saúde eas oportunidades de emprego;

• aborda a relação institucional mediadora, seguros de saú-de e similares, entre prestadores e usuários dos servi-ços de saúde com análise crítica e orientação de aspec-tos éticos e humanísticos.

• a capacitação didático-pedagógica não é exigida, consi-dera estar implícita no concurso de admissão à docên-cia e na titulação de mestrado;

• a atualização técnico-científica e a incorporação de no-vos conhecimentos e tecnologias são a principal exigên-cia sem análise crítica;

• docentes não participam e não se envolvem com a redede serviços e a assistência em saúde, seja na avaliação eformulação das políticas, seja no planejamento e presta-ção dos serviços para atender as necessidades de saúdeda população.

• o mercado de trabalho é referido apenas pelo tradicio-nal consultório, onde o médico domina os instrumen-tos diagnósticos e os encaminhamentos, e cobra seushonorários sem intervenção de terceiros;

• para a programação didática não considera as oportuni-dades de emprego nem a carência de profissionais paraatender as necessidades de saúde;

• não aborda aspectos do mercado de trabalho médicorelacionado à compra e venda de serviços intermediadapor seguros de saúde e similar.

BIBLIOGRAFIA

1. Almeida MJ. A Educação Médica e as atuais propostas de mudança:alguns antecedentes históricos. Rev Bras Educ Méd 2001 25(2):42-52.

2. Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência &Saúde Coletiva 2000 5(1):163-77.

3. CINAEM. Relatório final da II fase do projeto de avaliação daeducação médica no Brasil. Rio de Janeiro: Cinaem; 1997.

4. Feuerwerker LCM. Além do discurso de mudança na educaçãomédica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec; 2002.

5. Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica noBrasil: tipologia das escolas. São Paulo: Hucitec; 2002.

Capacitação DocenteINOVADOR / AVANÇADO TRADICIONAL

Mercado de Trabalho e Serviços de SaúdeINOVADOR / AVANÇADO TRADICIONAL

6. Travassos C, Viacava F, Fernandes C, Almeida CM. Desigualdadesgeográficas e sociais na utilização de serviços de saúde no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva 2000 5(1):133-49.

7. World Federation for Medical Education. World summit onmedical education: the changing medical profession.Recommendations. Edinburgh: WFME; 1993. p.142-9.

8. World Health Organization. Division of Development of HumanResources for Health. Defining and measuring the socialaccountability of medical schools. Geneva: World HealthOrganization; 1995. 32p.

Na Transição Paradigmática da Educação Médica Jadete Barbosa Lampert

* Médica; Professora Adjunto da UFSM; Mestre em Administração Pública (Ebap/FGV); Doutora em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

ARTIGO

Tânia Celeste *

EDUCAÇÃO PERMANENTE: UMNOVO OLHAR SOBRE AAPRENDIZAGEM NO TRABALHO

Em recente publicação do Ministério da Saúde em articula-ção com o IMIP – Instituto Materno Infantil de Pernambuco –sobre “A educação profissional em saúde e a realidade soci-al”, é notória a importância conferida a essa temática por umconjunto de autores que refletem sobre a formação do mé-dico no século XXI, dando contorno a um debate que consi-deramos importante resgatar.

Destacando a incorporação da atenção básica como eixo dereorganização do sistema de saúde, Arruda refere-se ao pen-samento de Piancastelli sobre o “novo perfil de profissional desaúde, que requer novos processos de formação e educaçãopermanente, ressaltando a estratégia de saúde da família”como pertinente para a transformação do ensino e das práticasdos futuros profissionais (Arruda, 2001:20). Cordeiro acentuaque “a preparação técnico-científica dos médicos deverá in-corporar os conceitos e instrumentos para participar dessesavanços e desenvolver a capacidade de utilização eficaz e éticadas novas tecnologias”, destacando que esse profissional de-verá ser capaz de exercer a educação permanente, tanto naformação do aluno como na prática profissional, mantendo-seatualizado sobre as fontes de acesso à informação e com capa-cidade crítica para selecionar dados e evidências relevantes paraa prática profissional” (Cordeiro, 2001:111).

Convidando à realização de um verdadeiro “chamamento aosetor”, Piancastelli levanta a “necessidade de efetuar o des-locamento da formação e educação permanente como pro-cessos individualizados, frutos de investimentos pessoais oude escolas isoladas” (Piancastelli, 2001:179), o que nos re-porta à necessidade de adotar mecanismos mais coletivoscomo base da organização articulada das práticas de serviçoe de ensino na saúde.

Educar permanentemente é uma diretriz qualificadora da gestão de equipes e de serviços, emqualquer espaço onde o trabalho em saúde se realize. A consciência da importância dessa ação orientou planose programas nos sistemas de saúde das Américas e do Brasil, tomando como referência o formato da educaçãocontinuada dos profissionais, e foi incorporada ao discurso de técnicos, dirigentes e docentes dedicados ao tema

da educação de profissionais da saúde.

Ferreira ressalta a importância da formação básica na atençãoprimária, reconhece que já ocorrem mudanças substanciais nadireção do fortalecimento do trabalho coletivo e recomenda “aextensão do modelo pedagógico ao longo de toda a vida, carac-terizando a educação permanente e permitindo concentrar aformação básica na atenção primária” (Ferreira, 2001:44).

Mas é no debate estabelecido por Pierantoni e Ribeiro quese expressam de forma mais clara, nessa coletânea, os limi-tes dos projetos de educação continuada, adotando umaanálise coerente com a abertura para projetos de educaçãopermanente. Nessa perspectiva, as autoras analisam que “aeducação continuada esteve sempre regida pelo princípio deque a atualização de conhecimentos é condição para trans-formação das práticas, modelo esse que se sustenta na mes-ma lógica que orienta a formação profissional” e ainda que“ao entender a prática da complexidade que o conforma, oreduz à dimensão técnica, e, mais ainda, dele exclui outrasfaces que lhe dão identidade social” (Pierantoni & Ribeiro,2001:184 e 186). Sugerem ainda que “outras dimensões des-te trabalho podem ser objeto mais efetivo de intervenção, ecabe aos profissionais identificá-las. Prepará-los para desen-volver práticas de educação permanente, identificando pro-blemas do trabalho para assegurar o compromisso de quali-dade do cuidado às pessoas, implica colocá-los diante dessequase desconhecido objeto de análise: o mundo do trabalho”(Pierantoni & Ribeiro, 2001:185).

O resgate desse debate permite considerar o caráter de atu-alidade que adquire a recente proposta apresentada peloMinistério da Saúde e aprovada na Comissão IntergestoraTripartite, em que são estabelecidas as bases para a adoçãoda educação permanente como modelo institucionali

e de combate à fome (R$ 3 bilhões) antes não afeitas aoMinistério da Saúde. No entanto, seria tapar o sol com apeneira crer que, de algum modo, haverá irradiação auto-mática dos efeitos dessas medidas na proteção do direitode atendimento em situações de agravo à saúde. Quantomais inclusão social houver, quanto mais crianças sobrevi-verem, quanto mais cidadãos ultrapassarem a marca de 65anos, mais demandas haverá. Não se tem notícia de paísque tenha evoluído em sua condição social, no mundo, ater obtido suas conquistas comprometendo os setoresmais qualificados de seu patrimônio cultural e educacional.

O desafio é grande, e certamente as limitações deste orça-mento não são fruto de preconceitos ou insensibilidade,visto que não há recursos para todas as necessidades. Masretroceder naquilo que já conquistamos, e que atende àpopulação, não fará de novos investimentos algo verdadeira-mente proveitoso. Ao Congresso Nacional, e às liderançasdo governo ali estabelecidas, caberá encontrar a justasolução.

* Professor da Faculdade de Medicina da UFRJ, presidente daAssociação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino(ABRAHUE) e diretor do Hospital Universitário Clementino Fraga Filhoda UFRJ (email: [email protected])

REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DEFORMAÇÃO ÉTICA DOS MÉDICOS

O início das discussões sobre a Bioética no Brasil, quepoderíamos imprecisamente situar no período de rede-mocratização do país, trouxe um elemento a mais paraas discussões sobre a relação médico-paciente, até en-tão formalmente restritas ao psiquismo e ao cumprimen-to das determinações que figuravam no código de éticamédica. A perspectiva de introdução de um novo temagerou discussões e questionamentos de diferentes tipose naturezas:

• Deverá a Bioética ser considerada uma nova disciplinamesmo?

• Deverá a Bioética substituir a disciplina de ética médica?

• Que departamento deveria ser o responsável pela novadisciplina?

• É possível implementar o ensino transversal da Bioética?

• Já é possível prescindir da criação de disciplinas formais?

Aqueles familiarizados com as disputas de poder no in-terior de estruturas acadêmicas sabem que a conforma-ção dos currículos expressa não apenas certo consensoproduzido mediante a aplicação das leis relativas ao tema,como a compreensão dos problemas e as estratégias paraa formação do estudante. Além disso, e sua importâncianão pode ser subestimada, evidencia a distribuição depoder dos diferentes departamentos das faculdades.

Como uma federação departamental em tempos de re-cursos escassos, as escolas de Medicina vivem uma situa-ção de disputa permanente, por prestígio e pelos recur-sos dele resultantes. Se em um passado não muito distan-te os departamentos das especialidades básicas eram quaseconsensualmente considerados os mais importantes den-tro da logística do processo de formação, nos dias de hojeaqueles que estejam envolvidos com pesquisas que pro-porcionam maiores captações de recursos asseguram po-sições de destaque, e de poder, não compatíveis com suacontribuição no currículo e no processo de formação. De-partamentos com pequena possibilidade de competir porrecursos apegam-se à competição pelo que poderíamos

chamar de sinais indiretos de prestígio e de poder – a quan-tidade de tempo que ocupam na grade curricular e os te-mas que aparentemente possam lhes conferir uma aurade modernidade.

Assim, a lógica da discussão sobre a Bioética deixa deser técnica e passa a ser político-administrativa – passa aser tão-somente uma disputa por poder entre departa-mentos pouco significativos na estrutura da faculdade, sejapor sua condição não central no processo de formação,seja por sua incapacidade de captar recursos expressivospara a faculdade com seus projetos, que possuem, entreoutras, a característica de utilizar tradicionalmente tecno-logias mais simples – os departamentos de Medicina Pre-ventiva e de Medicina Legal e, eventualmente, o de Psico-logia Médica (quando existentes).

Daí a importância adicional que deve ser conferida aosdocumentos que expressam algum tipo de consenso nocampo educacional. No campo da Educação Médica, sãodois os documentos mais recentes e de relevância: as Di-retrizes Curriculares para os Cursos de Medicina e o do-cumento de base para o Programa de Incentivo às Refor-mas Curriculares (Promed). Ambos preconizam formarprofissionais com “postura ética, visão humanística, sensode responsabilidade social e compromisso com a cidada-nia”. Tais documentos entram em detalhes sobre comodeve ser a formação técnica – o documento do Promedchega a focalizar como eixos orientadores da mudançacurricular: a orientação teórica, a abordagem pedagógicae os cenários de prática. Portanto, era de se esperar queo mesmo cuidado explicativo fosse observado no campoda formação moral, mas não é o que pode ser observadoao lermos os artigos 4º, 5º e 10º das Diretrizes Curricula-res. Estes artigos representam o conteúdo fundamentalsobre educação moral apresentado pelas Diretrizes Cur-riculares. Esperávamos que estas fossem menos contra-ditórias (por exemplo, a expectativa de fundamentaçãode decisões baseadas em critérios utilitaristas e principia-listas no mesmo documento) e mais consistentes na apre-sentação desses fundamentos.

Sergio Rego *Publicado em maio-junho / 2003

Reflexão sobre o Processo de Formação Ética dos Médicos Sergio Rego

A característica de “generalidades” apresentada pelasDiretrizes na abordagem da questão da educação moralsó pode ser entendida como reflexo da falta de clarezaque os docentes médicos e, em última instância, a própriaescola médica têm sobre como atuar neste campo. Já odocumento básico do Promed e o que explicitava os cri-térios de seleção dos projetos que concorreram a estefinanciamento são igualmente vagos na definição de comoesperam que esses objetivos devam ser alcançados, dei-xando aqueles que o lêem perigosamente livres para su-por que a multiplicação de cenários de ensino-aprendiza-gem, a ênfase na promoção da saúde ou o incentivo a pes-quisas aplicadas aos programas de saúde da família sejamsuficientes para reverter o quadro de desumanização re-conhecido nos processos de formação na área da saúde.

Mas não entendo essas omissões como uma opção po-lítica ou teórica contrária à humanização da formação, mastão-somente como o reflexo da compreensão de que ospróprios mecanismos de socialização (imitação do exem-plo) seriam bastantes e suficientes para alcançar tais obje-tivos. Infelizmente não são. Como afirmou Piaget, nenhu-ma realidade moral é completamente inata e “o que é dadopela constituição psicobiológica do indivíduo como tal sãoas disposições, as tendências afetivas e ativas: a simpatia eo medo – componentes do ‘respeito’ –, as raízes instinti-vas da sociabilidade, da subordinação, da imitação etc., e,sobretudo, certa capacidade indefinida de afeição, quepermitirá à criança amar um ideal como amar a seus pais etender ao bem como à sociedade de seus semelhantes.Mas, deixadas livres, essas forças puramente inatas per-maneceriam anárquicas” (Piaget, 1996: 2-3). O ser huma-no não é uma tabula rasa, onde se inscrevem os valoressociais e morais desejados pelos adultos, pelos professo-res ou autoridades. Ele precisa aproveitar as oportunida-des que as inter-relações estabelecidas por ele durantesua vida, particularmente nos espaços de ensino-aprendi-zagem, lhe oferecem para desenvolver sua capacidade derefletir sobre elas próprias. Assim, para Piaget, a relação

com a sociedade promove o desenvolvimento moral nãoporque ela impõe, pura e simplesmente, suas regras mo-rais aos indivíduos, mas porque possibilita, das inter-rela-ções que se estabelecem, que os sujeitos reflitam sobreas regras, produzam um consenso sobre elas, levando-os, progressivamente, a um comportamento autônomo.É preciso que o aparelho formador assuma sua responsa-bilidade nestes processos, deixando de considerá-los pro-cessos naturais e determinados tão-somente pelo ambi-ente externo.

Tenho defendido que a ética seja um tema transversalnos currículos em geral, mas infelizmente isso não é pos-sível de imediato como regra para a maior parte das esco-las. Em algumas poucas escolas médicas e em outras tan-tas de outras profissões, talvez isso seja possível, mas se-guramente estamos longe de possuir profissionais com-petentes – seja por dominarem a caixa de ferramentasbásica da Bioética, seja por compreenderem seu papel noprocesso de desenvolvimento moral de seus alunos – quejustifiquem a opção pela abordagem estratégica mais avan-çada em relação à implantação de mudanças neste cam-po. É preciso um investimento na preparação de nossosdocentes nesta área, abandonando de vez a idéia de que omédico, por utilizar uma técnica aprimorada ou cientifica-mente adequada, seja, por “natureza” ético. Não é. Asconseqüências do ato médico e das decisões que toma-mos podem mesmo provocar danos em nossos pacien-tes, apesar de nossas habituais boas intenções. Precisa-mos ainda do modelo tradicional de disciplina, ao lado damodernização dos métodos de ensino e da atualização dosconteúdos.

* Médico e doutor em saúde coletiva. Pesquisador adjunto noNúcleo de Pesquisas em Bioética e Ética Aplicada na ENSP/Fiocruz, editor da RBEM e diretor da Sociedade de Bioética doEstado do Rio de Janeiro – regional da SBB.

RESIDÊNCIA MÉDICA NO BRASIL –SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS

Em 1848, a associação médica americana manifestou-se a favor de um sistema de instrução baseado na utiliza-ção da rede hospitalar para o ensino, dando início a umanova modalidade de formação de recursos humanos naárea médica, privilegiando o ensino da prática clínica hos-pitalar e o adestramento profissional em serviço – a Resi-dência Médica (RM). O termo “residência” resulta do fatode, na época, ser requisito necessário morar na institui-ção onde se desenvolvesse o programa, com o objetivode se estar à disposição do hospital em tempo integral.

No Brasil, deu-se início aos programas de RM na déca-da de 1940, mais precisamente em 1944, quando foramimplementados, no Hospital das Clínicas da Faculdade deMedicina da USP, os primeiros programas, nas áreas deCirurgia, Clínica Médica e no Serviço de Físico-BiológicaAplicada. Em 1948, no Rio de Janeiro, no Hospital dosServidores do Estado do Rio de Janeiro, iniciou-se um pro-grama de RM. Uma revisão do assunto mostra que até adécada de 60 os programas de RM se concentravam noshospitais públicos tradicionais, nos hospitais universitári-os públicos.

Em 5 de setembro de 1997, o decreto presidencial 80.281criou a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM),com o objetivo de regulamentar essa modalidade de ensi-no no país. O decreto 91.364, de 21 de junho de 1985,redefine a composição e o modo de funcionamento daCNRM, que é uma comissão assessora da Secretaria deEnsino Superior (SeSu) do Ministério da Educação.

Em 7 de julho de 1981, a lei 6.932 define a ResidênciaMédica como modalidade de ensino de pós-graduação, des-tinada a médicos, sob a forma de cursos de especializaçãocaracterizada por treinamento em serviço, funcionando soba responsabilidade de instituições de saúde, universitáriasou não, sob a orientação de profissionais de elevada qua-lificação ética e profissional. Esta lei, em seu artigo 1°, es-tabelece que “o uso da expressão ‘Residência Médica’ érestrito aos programas delineados para graduados emmedicina”; e, no artigo 6º, que a conclusão de um progra-ma credenciado garante o título de especialista na área.

Os programas de Residência Médica, desde então, de-vem ser credenciados pela CNRM, após atender aos pré-requisitos vigentes (resolução 05/2002) e outorgar bolsade estudo com valor mínimo estabelecido por lei.

Em 1987, a CNRM criou as Comissões Estaduais deRM com o atributo de dividir responsabilidades, até entãoconcentradas na CNRM. Nos locais de funcionamento dosprogramas, devem-se constituir as Comissões de Residên-cia Médica (COREME), formadas por médicos residentes,supervisores dos programas e direção da instituição, comregimento próprio, porém desenhadas e com funciona-mento de acordo com as determinações da CNRM.

Nos últimos seis anos, a CNRM, em conjunto com oConselho Federal de Medicina e a Associação Médica Bra-sileira, definiu as 52 especialidades médicas no país e suasrespectivas áreas de atuação, significando para os Progra-mas de Residência Médica (PRM) que são ou poderão serprogramas todas as especialidades médicas reconhecidascomo tal e as áreas de atuação como anos opcionais.

A Residência Médica existe há quase 60 anos no país eé regulamentada há 20 anos. Nesse período, foi objetode interesse principal dos médicos residentes por meioda Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR)e de docentes e médicos envolvidos com os programas,além, obviamente, das comissões já referidas e das enti-dades médicas.

A RM está consagrada como a melhor forma de inser-ção de profissionais médicos na vida profissional, sob su-pervisão, e de capacitação em uma especialidade. Entre-tanto, apresenta uma série de particularidades que porvezes complicam o fluxo e a evolução dessa modalidadede pós-graduação lato sensu. No momento, observa-seque os principais problemas podem ser resumidos emquatro aspectos: avaliação, necessidade, acesso e financi-amento.

A RM concentra sua organização pedagógica no Minis-tério da Educação (ME), de forma legítima, já que se tratade modalidade de pós-graduação. Assim é que os aspec-tos pedagógicos dos PRM são da responsabilidade do ME

Maria do Patrocínio Tenório Nunes *Publicado em novembro-dezembro / 2003

por meio da CNRM. No entanto, o financiamento dasbolsas é de responsabilidade de outros órgãos, sendo osdois principais o próprio ME e o Governo do Estado deSão Paulo. Essa dissociação possibilita o credenciamentode vagas com base no mérito do programa proposto, mas,por outro lado, com a crise econômica, tem gerado umdescompasso entre o número de vagas credenciadas e onúmero de bolsas ofertadas. Mais ainda, em alguns mo-mentos ocorrem tensões, quando a CNRM estabelece pisonacional sem uma discussão prévia com os demais gesto-res. Nos últimos dois anos, a questão econômica pioroucom a posição assumida pelo Ministério da Previdência decobrar integralmente o INSS devido, tanto dos médicosresidentes, como das instituições que oferecem os pro-gramas. Desde então, a CNRM e a ANMR têm buscadodemonstrar que bolsa de estudo deve ter um tratamentodiferenciado, não podendo ser tratada como salário, sobpena de restringir ainda mais o já escasso financiamentopara um setor fundamental, já que não se pode imaginarum atendimento correto sem se passar por um programaadequado de RM.

Discute-se a necessidade da participação de outros seg-mentos na elaboração do projeto da RM no país, comogestores, usuários e estudantes.

Um segundo ponto importante decorre da frase ante-rior. No momento, estão disponíveis 8.754 vagas para oprimeiro ano de residência, em 2.550 programas, distri-buídos em 415 instituições no país. Ora, é crescente onúmero de escolas médicas, processo ocorrido em duasetapas, sendo a mais recente a partir de 1996. Portanto,pensa-se em oferecer residência médica a todos os egres-sos da graduação, mas se verifica um número crescentede formandos, não acompanhado de recursos financei-ros. Somem-se a isso as mudanças ocorridas na práticamédica e a necessidade de cumprir os princípios do Siste-ma Único de Saúde, que, colocado em prática, atenderiade forma ideal a população brasileira na sua totalidade.Assim, os gestores de saúde vêm discutindo a necessida-de de direcionar bolsas para programas novos, como deSaúde da Família e da Comunidade, Mastologia, e outros,como Medicina do Trauma e Medicina Intensiva. Ocorreque restrições econômicas obrigam a direcionar os re-cursos, que não aumentaram de forma proporcional, ha-vendo possibilidade de mais restrição.

O problema econômico gera uma falsa questão, que éa irreal disputa entre as assim chamadas áreas básicas e deespecialidade e subespecialidades. Corrigido o problemaeconômico, o direcionamento de bolsas para a formação

de especialistas e médicos gerais deve se pautar em evi-dências reais de demanda de saúde da população. Nãoexistem dados nacionais a esse respeito, mas estão sendoconstruídos por um consórcio estabelecido entre a ABEM,AMB, CFM e Ministério da Saúde. Há também estudosestaduais em andamento na Bahia e em São Paulo. Alémde sua principal missão, esse projeto cumpre também opapel de iniciar uma aproximação entre os interessadospela formação médica pós-graduada, no sentido lato.

A existência de 2.550 programas não implica necessa-riamente garantia de qualidade. É urgente avaliar os pro-gramas em curso, envolvendo todos os interessados,como as sociedades de especialistas, os conselhos demedicina e as escolas médicas, num esforço concentradopara estabelecer critérios técnicos, éticos e de demandapara distribuição de bolsas, a fim de garantir a qualidadeda formação. O Estado de São Paulo iniciou recentemen-te um projeto nesse sentido.

Outra questão importante decorre da concentração deescolas e dos demais indicadores de saúde na Região Su-deste do país, gerando um desequilíbrio entre essa regiãoe outras, como a Região Norte. A solução de uma ques-tão com essa magnitude exige, no nível da formação, dis-ponibilidade, conhecimento técnico e a criação urgentede um programa de cargos e salários para o médico, comojá ocorre em outras profissões.

O acesso, da maneira como está regulamentado, temsofrido muitas críticas. A resolução 01/2001 estabeleceque os candidatos à admissão em Programas de Residên-cia Médica deverão se submeter a processo de seleçãopública. A seleção de candidatos aos Programas de Resi-dência Médica consistirá, obrigatoriamente, em prova es-crita objetiva sobre conhecimentos de Medicina, com igualnúmero de questões nas áreas básicas de Clínica Médica,Cirurgia Geral, Pediatria, Obstetrícia e Ginecologia, eMedicina Preventiva e Social, podendo ser realizada emuma ou mais fases, com ponderações distintas, a critérioda instituição, totalizando o peso mínimo de 90%; a crité-rio da instituição, de prova oral, entrevista ou avaliaçãocurricular com peso máximo de 10%.

Esta resolução, que se originou de denúncias e preten-deu garantir o princípio de justiça e direito iguais a todos osbrasileiros, confronta-se em alguns aspectos com as Dire-trizes do Ensino de Medicina no país e tem gerado conse-qüências nefastas, como o afastamento dos alunos dos es-tágios práticos para a preparação para os processos seleti-vos, pautados em conhecimento, em detrimento de habili-dades e atitudes. Das discussões relacionadas a esse tema,

Maria do Patrocínio Tenório NunesResidência Médica no Brasil - Situação atual e Perspectivas

concluo que a melhor estratégia talvez não seja modificaros critérios, mas o conteúdo das provas, ficando como umdesafio para as escolas médicas, particularmente para asuniversidades, elaborar novas formas de seleção que per-mitam a inclusão e análise dos outros dois aspectos da for-mação. É necessário também, durante a graduação, deba-ter com os alunos o tipo de médico que se pretende ser eos possíveis locais de habilitação, rompendo com a situa-ção atual de buscar os centros consagrados, independente-mente do projeto pedagógico proposto.

No último Congresso da Associação Brasileira de Edu-cação Médica, a plenária aprovou os seguintes pontos emrelação aos aspectos políticos e pedagógicos:A) Aspectos políticos• Reconhecimento da ABEM como representante legítima

do processo pedagógico de Educação Médica em to-dos os seus níveis;

• Adequação da Residência Médica ao sistema de saúdevigente, priorizando o controle social;

• Redefinição e fortalecimento das CERMs;• Cobrança de definição de uma política clara de saúde

nacional a longo prazo;• Rediscussão do papel e da composição da CNRM, con-

siderando a inserção de gestores municipais e estadu-ais, usuários e estudantes;

• Oferta de PRMs como um dos critérios para a abertu-ra e funcionamento de escolas médicas.

B) Aspectos pedagógicos• Equilíbrio entre cognição, habilidades e atitudes;• Reavaliação dos critérios atuais de seleção, incluindo a

distribuição entre avaliação de conhecimentos, entre-vista e currículo (90/10);

• Fóruns regionais e nacionais;• Criação de um núcleo dentro da ABEM, com represen-

tação regional e dos diferentes segmentos envolvidos,para deliberar sobre as questões previamente aborda-das e gerar conhecimento.Concluo que a RM passa por uma crise no país. De

acordo com o dicionário, crise significa crescimento,portanto, evolução. Para ser positivo, esse crescimen-to necessita de cuidados adequados, que virão da capa-cidade dos diferentes segmentos envolvidos para se de-sarmar e discutir com maturidade as possibilidades desolução. Esse processo precisa ser acelerado, conside-rando a demanda em curso. As entidades médicas, osalunos, as escolas médicas, os ministérios da Educaçãoe da Saúde precisam urgentemente iniciar a discussãoem busca de resolução para as inúmeras questões quepermeiam a RM.

* Professora da Universidade de São Paulo e representante daABEM na Comissão Nacional de Residência Médica.

Maria do Patrocínio Tenório NunesResidência Médica no Brasil - Situação atual e Perspectivas

Adriana Cavalcanti de Aguiar *

METODOLOGIAS DE ANÁLISE CRÍTICA EREGISTRO DE EXPERIÊNCIASINOVADORAS EM EDUCAÇÃO MÉDICA

No contexto atual, verifica-se grande pressão sobre asescolas médicas por mudanças, a partir dos processos deavaliação governamental e do diagnóstico elaborado pelaCINAEM, traduzindo-se na necessidade de implantar mu-danças na cultura institucional, currículos, processo ensi-no-aprendizagem e avaliação.

As Novas Diretrizes Curriculares homologadas em2001 apontam caminhos, porém suas premissas e pro-postas vêm sendo absorvidas com graus variáveis de cla-reza pelas escolas. O envolvimento de docentes e alunosno processo de transformação encontra-se aquém do de-sejável.

Com o advento do PROMED, 20 escolas médicas foramcontempladas com recursos adicionais do Ministério daSaúde, para implementar plano de mudanças coerente comas diretrizes. Criou-se uma expectativa de intercâmbiocom as demais escolas, além da perspectiva de incorpora-ção de novas escolas com envolvimento multiprofissio-nal.

A ABEM desenvolveu a RAEM, uma rede virtual que incluiuma base de dados bibliográficos sobre a produção brasi-leira na área da formação profissional em saúde. A RAEM

coloca-se no contexto atual como ferramenta estratégicapara disponibilizar a produção das escolas em publicaçõesvirtuais (que são válidas para o Currículo Lattes). Existeum interesse da RAEM em relatos de experiências que nãoviriam necessariamente a ser publicadas em periódicos.Mas é preciso explicitar critérios para a publicação virtual.

Nos fóruns regionais e estaduais sobre Educação Mé-dica, observa-se grande produção de pôsteres e apresen-tações orais sobre iniciativas inovadoras, porém, com fre-qüência, estas carecem de base conceitual e metodológi-ca apropriada, demonstrando por vezes restrita capaci-dade auto-reflexiva, fundamental no sentido de se consti-tuírem como ferramentas para o aperfeiçoamento a par-tir da identificação concreta de limites e possibilidades dasintervenções.

Nesse contexto, a Diretoria Executiva da ABEM e umgrupo integrante da RAEM, em reunião na sede do Rio deJaneiro, elaboraram uma proposta de desenvolvimento deuma Oficina, agendada para o dia 31/10/2003 nas depen-dências do Curso de Medicina da Universidade Estácio deSá, com o objetivo de implementar a BVS – Saúde.

A Oficina de Trabalho proposta irá congregar especia-listas em Educação Médica para detalhar aspectos impor-tantes para a elaboração de trabalhos a serem disponibili-zados na referida biblioteca virtual.

A Oficina delineia-se a partir da expectativa da RAEM defomentar a capacidade crítica e reflexiva de gestores, do-centes e alunos tanto para a elaboração dos relatos quan-to para a avaliação e apreensão das próprias experiências.Justifica-se pela importância de criar um clima de coope-ração entre as escolas na produção do conhecimento quepossa servir, entre outros aspectos, para fundamentarprojetos de capacitação docente com base em reflexõescontextualizadas, que podem ser úteis para a discussão naprópria escola (pesquisa-ação) e para outras que tenhamcontextos análogos.

A pauta de trabalho envolveu as seguintes questões:• Construção de uma metodologia para análise e regis-

tro dos estudos de caso referentes às inovações emEducação Médica no Brasil;

• Formação e definição de Descritores da BVS-Educ;• Construção de um perfil do Corpo Editorial da BVS-

Educ;• Estratégias de formação dos Grupos Focais para a BVS-

Educ.

* Médica, mestre em Saúde Pública, mestre e doutora emEducação, Coordenadora de Desenvolvimento Educacional doCurso de Medicina da Universidade Estácio de Sá,Pesquisadora do Instituto de Medicina Social da UERJ, Membrodo Grupo Coordenador da RAEM.

Publicado em julho-agosto-setembro-outubro / 2003

ANATOMIA ARTE IMAGEMMaryelena Seleme Dora *

Diante do equilíbrio dinâmico das áreas do conheci-mento que formam a ciência médica, é evidente que oestudante de medicina necessita, em seu aprendizado, umensino dinâmico, que sofra reajustes e reformulações.

No período em que ministrei aulas na cadeira de Ana-tomia Humana no Curso de Medicina da Fundação Uni-versidade Federal do Rio Grande, várias vezes constateino semblante do aluno que ingressava no curso uma ex-pressão de desagrado e até de rejeição frente ao materialexposto nas aulas de dissecação, uma vez que as peçaspara estudo não se encontravam nas condições espera-das, pois já tinham sido dissecadas e manuseadas por vári-as turmas em anos anteriores. A falta de material – o ca-dáver – tornou-se uma das grandes preocupações da dis-ciplina. Essa preocupação, historicamente, acompanhouo ensino de anatomia nas escolas médicas até o séculoXIX, quando passou a ser permitida a utilização de cadá-veres não reclamados.

Além da falta de material, a frieza que envolve as liçõesde anatomia atuais contrasta com as descritas na históriada medicina. As dissecações anatômicas – as lições de ana-tomia1 – eram eventos públicos aos quais compareciamtanto profissionais da classe médica como leigos, e artis-tas eram convocados para documentar tais eventos. A dis-secação retratada por esses artistas constituiu um marcoimportante da presença da imagem na prática da medici-na, pois nos traços do artista se humanizava a dissecaçãoanatômica. A tela Lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp,de Rembrandt Harmenszoon van Rijn, além de mostraruma das mãos indicando os músculos do braço disseca-do, tem uma mensagem adicional, segundo FrédériqueWesterhoff-König: conscientiza o observador da importân-cia da prática da dissecação e da habilidade da mão humanae, mais ainda, ressalta a mortalidade do ser humano e a imor-talidade do conhecimento científico.

A dissecação antes humanizada pela mão do artista tor-nou-se hoje fria e desumanizada. Essa nova perspectivaparece refletir-se na atitude futura do médico. LianaAlbernaz de Melo Bastos e Munira A. Proença conside-ram que o estímulo à postura desumanizadora do médicoé primordialmente estabelecido na prática pedagógica dadissecação de cadáveres – a relação estudante-cadáver pre-

cederia e organizaria, como modelo, a relação médico-paci-ente. O aluno veria no cadáver apenas um objeto de estu-do inerte, que não lhe opõe resistência ao ser estudado emanuseado conforme seu interesse, e não conseguiria es-tabelecer a relação entre o cadáver e o ser humano queesse cadáver foi. O cadáver apareceria como paciente ideal,e seu anonimato seria entendido como não humanidade.Nessa medida, o exemplo citado por Bastos e Proença deum cadáver de mulher com as unhas pintadas promove umadesestabilização do aluno ao identificar o vivo no mortoe, como contrapartida, o morto no vivo.

Para que o aluno passe a vincular o ensino da anatomiaa uma situação concreta mais próxima da relação médico-paciente humanizada, proponho associar ao estudo da ana-tomia a técnica de imagem oferecida pela ultra-sonografia2.Essa técnica permite explorar o corpo humano semdanificá-lo, possibilita visualizar um órgão em cortes, di-namicamente, o que permite observá-lo quanto a sua for-ma, tamanho e relação com as demais estruturas do cor-po humano, ao vivo. Alicerçada na definição de anatomiade Henry Gray como a ciência das formas e das estruturasdo corpo humano, por que não utilizar a ultra-sonografiapara humanizar o estudo da dissecação anatômica?

A finalidade da indicação desta técnica de imagem noestudo da anatomia humana é possibilitar ao acadêmicode medicina familiarizar-se com a anatomia dinâmica aoestudar ao vivo e em tempo real alguns conteúdos da ana-tomia do corpo humano, facilitando a compreensão pos-terior da representação morfológica do paciente. Parale-lamente a essa compreensão da morfologia, o estudo ultra-sonográfico coloca o acadêmico em contato com o paci-ente, com o ser humano que pode expressar seus senti-mentos, fazendo com que o aluno passe a ver e a respei-tar seu objeto de estudo como um paciente e, mais tarde,como médico, passe a ver e a respeitar seu paciente comoum ser humano.

Nessa medida, através do método ultra-sonográfico,poderíamos humanizar o ensino da anatomia, fortalecen-do a articulação da teoria com a prática, bem como pro-porcionando ao acadêmico de medicina, na cadeira deAnatomia Humana, a possibilidade de rever ou ver algunsconteúdos da anatomia interna do corpo humano por meio

Publicado em janeiro-fevereiro-março-abril / 2003

de uma forma de abordagem que o leva a ter contatocom o paciente, fazendo a integração aluno-paciente.

O emprego da ultra-sonografia no ensino da anatomiapoderia, também, representar um meio de minimizar oproblema da falta de material, bem como reduzir o em-prego de peças anatômicas em condições não ideais paraesse estudo.

Com esta proposta de utilizar a ultra-sonografia no es-tudo da anatomia não pretendo negar a importância dadissecação de cadáveres – a dissecação permite o estudoanatômico de partes do corpo humano não acessíveis atra-vés desta técnica de imagem –, mas sim ressaltar a impor-tância da ultra-sonografia como uma ferramenta comple-mentar no ensino da anatomia.

O emprego da ultra-sonografia no estudo da anatomianão significa transformar o estudante em um ecógrafo,uma vez que o objetivo da inclusão dessa técnica na disci-plina de anatomia não é o parecer do aluno sobre o órgãoestudado.

O estudo da anatomia através dos tempos, ou seja, daanatomia e da arte, indica o equilíbrio dinâmico das áreasdo conhecimento que formam a ciência médica e mostraque o ensino deverá ser dinâmico, sofrendo reajustes ereformulações. O preparo do médico, por mais comple-to que seja, em ciências naturais e em tecnologia é incom-pleto sem a formação humanística. Não existe ato médi-co sem fundamento científico, mas sem fundamentohumanístico ele também não existe.

NOTAS

1 A anatomia no passado era valorizada: 1. como um ramoimportante do estudo da medicina – Vesalius / Galeno Soranode Éfeso; 2. como tema de pintura – Bibliothéque Nationale deParis; e 3. ocuparam-se dela importantes nomes, como Leonardoda Vinci (artists encouraged the study of anatomy, for theywanted accurate representations of the body. Dissectionswere performed by Leonardo da Vinci, Michelangelo andRafael. Leonardo began with surface measurements,proportions and anatomy of muscles, but it was not as anartist... ).

O tratamento dado às lições de anatomia / a anatomia – pelalinguagem da pintura – humaniza a dissecação/anatomia.

2 Usarei o termo ultra-sonografia em vez de ecografia, pois osdois se referem à mesma técnica de imagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. König FW. Lição de Anatomia como Retrato de Grupo, Orgyn1998; 9: 52-56.

2. Bastos LAM, Proença MA. A prática anatômica e a formaçãomédica, Rev Panam Salud. Publica/Pan. Am J Public Health 2000;7(6): 395-402.

3. Gray H. Anatomia. Rio de Janeiro: [s.n.]; 1988.

* Médica, Professora de Anatomia do Departamento de CiênciasMorfobiológicas da Fundação Universidade Federal do RioGrande (Furg).

Maryelena Seleme DoraAnatomia Arte Imagem

Geraldo Cunha Cury *

Em decorrência do novo currículo médico implantado naFaculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Ge-rais (UFMG), os Serviços de Saúde, particularmente os públi-cos, passaram a ser reconhecidos como parceiros da Universi-dade na educação médica. Após a implantação do Internato Ruralem 1978, uma das mais antigas experiências de integração do-cente-assistencial existente no país, o Sistema de Saúde tornou-se um local privilegiado de trabalho.

O Internato Rural, uma disciplina obrigatória, hoje deno-minada Internato em Saúde Coletiva, desenvolve-se em rodí-zios trimestrais sucessivos, com alunos do 11o período do Cur-so de Graduação em Medicina da UFMG. A carga horária é de330 horas, sendo atendidos 80 alunos por trimestre. Alunosem situações particulares – casados, com filhos, arrimos defamília ou com casos de doença grave na família – fazem está-gios na Região Metropolitana de Belo Horizonte, capital doestado de Minas Gerais. Os demais alunos se organizam emduplas, que são designadas para as cidades do interior do es-tado. Cada localidade recebe dois ou quatro alunos a cadatrimestre. O atendimento ambulatorial é uma parte das ativi-dades desenvolvidas pelo Internato Rural, que também é com-posto por outras atividades médico-assistenciais, como pales-tras e formação de grupos de hipertensos, diabéticos e ges-tantes; trabalhos em creches; atividades relacionadas ao meioambiente e à organização do Sistema de Saúde.

Para a implantação e pleno funcionamento do estágio cur-ricular, firmaram-se convênios tripartites – envolvendo a Se-cretaria de Estado da Saúde (SES), a UFMG e as prefeiturasmunicipais. Com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS)e o processo de municipalização em curso, os convênios pas-saram a ser bipartites, realizados entre a UFMG e as prefeitu-ras. Além deste convênio bipartite, foi mantido o convênioUFMG/SES, por meio do qual o município fornece casa mon-tada aos estagiários, além de pagar um funcionário que realizatodas as tarefas domésticas. Taxas de água, luz, gás e impos-tos em geral são também cobertos pelas prefeituras conve-niadas. O transporte para os postos na zona rural é feito emveículos das prefeituras.

As prefeituras interessadas no convênio enviam carta aodiretor da Faculdade de Medicina da UFMG, que a encaminhaà Coordenação do Internato Rural. Nas reuniões mensais re-alizadas pela supervisão, os pedidos são avaliados e então sedecide celebrar ou não o convênio em função da localizaçãodo município, estrutura do Sistema Local de Saúde e interesseem trabalhos na área da Saúde Coletiva.

Convém lembrar que, como se trata de um convênio como município, há mudanças periódicas em função das trocas

INTERNATO RURAL DA FACULDADE DEMEDICINA DA UFMG: 25 ANOS DE EXISTÊNCIA

de prefeitos a cada quatro anos: nesse momento, os convê-nios são reavaliados frente ao novo quadro.

Trimestralmente, todos os alunos do Internato Rural sãoreunidos em um encontro geral para avaliação da disciplina,com a presença de todos os supervisores, sendo regularmen-te convidados o diretor e o vice-diretor da Faculdade de Me-dicina, o chefe do Colegiado de Curso Médico e os chefes deDepartamentos da Faculdade de Medicina. Em várias oportu-nidades, já participaram dessa reunião representantes dos Ser-viços Municipais e Estaduais de Saúde, das comunidades en-volvidas nos trabalhos, bem como diretores e docentes deoutras unidades da UFMG.

Além dessas reuniões gerais, todas as duplas apresentamum relatório ao final do treinamento, no qual avaliam seuestágio, as condições de trabalho, as atividades desenvolvi-das e a supervisão recebida em termos de periodicidade,qualidade e eficiência.

Este ano, o Internato Rural completa 25 anos de existên-cia e, apesar das várias dificuldades enfrentadas, representao maior e o mais duradouro e sólido programa de ensino eextensão da universidade brasileira.

No recente Congresso da ABEM realizado em Florianópolis,coordenei a Oficina de número 9, denominada “Mudanças cur-riculares: prática médica e formação médica”. Ela evidenciou aimportância do PROMED como impulsionador da discussão damudança e adequação do Ensino Médico às Diretrizes Curricu-lares. Ficou clara a importância que experiências como a doInternato Rural da Faculdade de Medicina da UFMG represen-tam para a construção de mudanças curriculares. Foi levantadaa preocupação, compartilhada pela maioria dos presentes àOficina, quanto ao risco de o PROMED se transformar num “bal-cão de PBL”, em virtude da confusão existente quando se con-sidera um método de ensino como um processo de mudança equando escolas mudam o método de ensino julgando que assimestarão transformando o currículo. Na Oficina, foi exemplifica-do que se pode manter o mesmo currículo, trabalhando comprincípios do PBL, sem alterar a essência do currículo. Sugeriu-se que o próximo Congresso da ABEM dedique a este tema umespaço importante nas discussões.

Coloco-me à disposição dos interessados em discutir ouobter informações sobre o tema, pelo telefone 31-9970-1812ou pelo e-mail: [email protected]

* Professor do Departamento de Medicina Preventiva daFaculdade de Medicina da UFMG; Doutor em Medicina;Coordenador do Internato Rural da UFMG

Publicado em novembro-dezembro / 2003

Laura C. M Feuerwerker *

CERTIFICAÇÃO DOS HOSPITAIS DE ENSINO

Desde o início de 2002, por iniciativa dos Ministériosda Educação e da Saúde, foi instituída uma Comissão In-terinstitucional para tratar do tema dos Hospitais Uni-versitários. A Comissão conta com representação am-pla desses dois Ministérios, mas também com a partici-pação de representantes dos Ministérios de Ciência eTecnologia e do Planejamento, da Associação Brasileirade Hospitais Universitários e de Ensino (Abrahue), daAssociação Nacional de Dirigentes das Instituições Fe-derais de Ensino Superior (Andifes), da Associação Bra-sileira de Universidades Estaduais e Municipais (Abruem),da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM),da Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), da Exe-cutiva Nacional de Estudantes de Enfermagem, da Dire-ção Executiva Nacional de Estudantes de Medicina, doConselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional deSecretários Estaduais de Saúde (Conass), do ConselhoNacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems)e da Comissão de Educação e da Comissão de Saúde daCâmara dos Deputados.

Dentre outras linhas de trabalho, constitui-se grupo paraanalisar a situação do Fator de Incentivo ao Desenvolvi-mento do Ensino e da Pesquisa em Saúde (Fideps) e pro-por alternativas para a certificação dos hospitais universi-tários e de ensino.

O balanço geral da análise foi o seguinte:

a) o Fideps não serviu para estimular ou fortalecer as ati-vidades de ensino e pesquisa nos hospitais (os recursosadvindos desse incentivo nunca foram utilizados comessa finalidade);

b) o Fideps terminou sendo utilizado de maneira indiscri-minada para favorecer ou privilegiar hospitais por algu-ma razão eram considerados merecedores de tratamen-to especial (por razões políticas, de organização do sis-tema etc.), o que levou a que hospitais que não são deensino fossem incluídos no programa de incentivos;

c) há vários hospitais efetivamente de ensino que não es-tão incluídos no programa;

d) o Fideps não contribuiu de maneira significativa parapromover uma efetiva integração dos hospitais de en-sino à rede de serviços do SUS, já que perpetuou alógica da prestação de serviços;

e) ao longo do tempo, como os hospitais enfrentam pro-blemas de financiamento (de natureza variada), os re-

cursos do Fideps terminaram sendo incorporados aocusteio dos hospitais.Em conseqüência, a conclusão do grupo foi de que se de-

veria propor a extinção do Fideps e sua substituição por umaoutra modalidade de vinculação dos hospitais de ensino aoSUS, que contribuísse para seu fortalecimento gerencial epara desenvolvimento das atividades de assistência, ensino epesquisa de maneira articulada com o sistema de saúde.

Em função do fato de haver atualmente improprieda-des de inclusão e exclusão de hospitais nas categorias deuniversitários e de ensino, propôs-se a instituição de umprocesso de certificação, a partir do qual os hospitais efe-tivamente enquadrados como de ensino fariam jus a umanova modalidade de contratação pelo SUS. A nova moda-lidade – em processo de elaboração – envolve a institui-ção de contratos, que possibilitem a remuneração globalcom base em metas estabelecidas e pactuadas em relaçãoà prestação de serviços, à educação e à pesquisa.

O passo seguinte, então, foi a construção dos critériospara a certificação, que será feita de maneira conjunta pelosMinistérios da Educação e da Saúde. Foram longos mesesde debate, com efetiva participação de todos os atoresrelevantes envolvidos no tema. O produto final está con-cretizado numa Portaria Interministerial com publicaçãoprevista para o final do mês de março.

São os seguintes os critérios para a certificação comohospital de ensino (categoria que substitui as antigas dehospital universitário, de ensino e auxiliar de ensino):I- abrigar formalmente as atividades curriculares de in-

ternato da totalidade dos estudantes de pelo menosum curso de medicina e atividades curriculares de umoutro curso de graduação superior na área da saúde.Excetuam-se as instituições hospitalares universitáriasespecializadas, que disponham de curso de pós-gradu-ação stricto sensu devidamente reconhecido pela Co-ordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NívelSuperior (CAPES) e qualificado com o grau mínimoexigido para a concessão de bolsas.

II- abrigar programas de Residência Médicos, regularmentecredenciados pela Comissão Nacional de ResidênciaMédica (CNRM), contemplando, no mínimo, 10 vagasde R1 entre as áreas de atenção básica, excetuando-seos hospitais especializados que disporão de programaespecífico e credenciado de Residência, com no míni-mo 10 vagas de ingresso anual;

Publicado em janeiro-fevereiro-março-abril / 2004

III- garantir, por iniciativa própria ou da IES, acompanha-mento docente para os estudantes de graduação epreceptoria para os residentes, de acordo com oscritérios vigentes para a avaliação das condições deensino e da Residência Médica;

IV- abrigar atividades regulares de pesquisa no hospitalde ensino, realizadas por iniciativa própria e/ ou pormeio de convênio firmado com IES, ou ainda, apre-sentar projeto institucional para o desenvolvimentode atividades regulares de pesquisa;

V- possuir instalações adequadas ao ensino, com salasde aula e recursos audiovisuais, de acordo com oscritérios vigentes para a avaliação das condições deensino e da Residência Médica;

VI- possuir ou ter acesso a biblioteca atualizada e especi-alizada na área da saúde, com número de títulos eperiódicos compatível com alunado e atividades deEnsino e Pesquisa Universitária; com instalações ade-quadas para estudo individual e em grupo, interligadaà Bireme e às Bibliotecas Virtuais em Saúde, de acor-do com os critérios vigentes para a avaliação das con-dições de ensino e da Residência Médica;

VII- ter constituídas, em permanente funcionamento, ascomissões de Ética em Pesquisa, de DocumentaçãoMédica e Estatística e de Óbitos, além de desenvolveratividades de vigilância epidemiológica, hemovigilância,farmacovigilância e tecnovigilância em saúde;

VIII- ser participante ativo do Pólo de Educação Permanenteem Saúde quando existente em sua área de abrangência;

IX- dispor de programa institucional de desenvolvimen-to de docentes, preceptores, profissionais técnico-assistenciais, gerentes e profissionais de nível técni-co, por iniciativa própria ou por meio de convêniocom instituição de ensino superior;

X- participar das políticas prioritárias do Sistema Únicode Saúde e colaborar ativamente na constituição deuma rede de cuidados progressivos à saúde, estabe-lecendo relações de cooperação técnica no campoda atenção e da docência com a rede básica, de acor-do com as realidades locorregionais;

XI- dedicar um mínimo de 70% da totalidade dos leitosativos e do total dos procedimentos praticados aoSistema Único de Saúde. Os hospitais públicos de-vem assumir o compromisso de ampliar gradualmenteessa porcentagem, até atingir 100% num prazo de 4anos. Todos os benefícios decorrentes das novas mo-dalidades contratuais entre os hospitais de ensino e oSUS serão proporcionais ao número de leitos e pro-cedimentos destinados ao SUS.

XII- regularizar e manter sob a regulação do gestor localdo SUS a totalidade dos serviços contratados, de acor-do com as normas operacionais vigentes no SUS;

XIII- dispor de serviço de Unidade de Atendimento àsUrgências e Emergência, funcionando 24 horas pordia, ou ser formalmente desobrigado pelo gestordo SUS por meio de resolução da Comissão Inter-gestores Bipartite;

XIV- estar formalmente inserido no Sistema de Urgênciae Emergência locorregional, com definição de seupapel no Plano Estadual de Assistência a Urgência,conforme previsto na portaria 2048 do Gabinete doMinistro da Saúde de 5/11/2002;

XV- aderir à Política Nacional de Humanização do Siste-ma Único de Saúde;

XVI- no caso de hospitais públicos, dispor de ConselhoGestor, que inclua a participação da comunidade aca-dêmica (docentes e estudantes), de usuários e re-presentantes dos trabalhadores, em consonânciacom a legislação do SUS;no caso de hospitais privados, dispor, no âmbito doConselho Municipal ou Estadual de Saúde, confor-me a esfera de gestão pertinente, uma ComissãoPermanente de Acompanhamento dos contratos fir-mados com o SUS;

XVII- dispor de estrutura mínima de gestão hospitalar, queinclua rotinas técnicas e operacionais, sistema de ava-liação de custos, sistema de informação e sistemade avaliação de satisfação do usuário.

A partir da publicação da Portaria, estará aberto o pro-cesso de apresentação dos hospitais para a certificação.Os Ministérios da Educação e da Saúde pretendem dar amáxima agilidade ao processo. Paralelamente, estão tra-balhando a todo vapor os demais grupos de trabalho daComissão Interinstitucional com o objetivo de construiras bases dos novos contratos que deverão reger as rela-ções entre hospitais de ensino e o SUS. Também se estátrabalhando em algumas linhas de apoio específicas parafavorecer o fortalecimento e a profissionalização da ges-tão dos hospitais e a superação de obstáculos administra-tivos particularmente dos hospitais federais (vagas parareposição de pessoal, pagamento de plantões etc.).

Esta é uma oportunidade imperdível para começarmosa enfrentar os históricos problemas vividos nesse campo.As escolas médicas e os estudantes podem cumprir umimportante papel na oportunidade da certificação, cola-borando para que esse seja um momento de efetivo de-bate e problematização da dinâmica dos hospitais e nãouma formalidade burocrática.

* Médica, Especialista em Clínica Médica e Administração deServiços de Saúde, Mestre e Doutora em Saúde Pública,Coordenadora Geral de Ações Estratégicas de Educação naSaúde do Ministério da Saúde

Certificaçãpo dos Hospitais de Ensino Laura C. M Feuerwerker

José Guido Corrêa de Araújo

O Prof. José Guido Corrêa de Araújo, eleito novoPresidente da ABEM no XL Congresso de Educação

Médica, em Fortaleza, fala de suas perspectivas e desafiospara os próximos dois anos de gestão. A entrevista com o

19º Presidente da ABEM e docente da Faculdade deCiências Médicas da Universidade de Pernambuco foi

realizada pelo Prof. João Campos, da UniversidadeEstadual de Londrina (PR).

Quais as suas perspectivas paraa continuidade do movimentode mudanças na educaçãomédica brasileira?

Acreditamos que são muito boas. Estacerteza nos é dada pelo acúmulo deconhecimentos e a sensibilização paraas mudanças desencadeadas pela par-ticipação coletiva voluntária das Esco-las Médicas no projeto CINAEM, des-de o início da década de 90, e a apro-vação pelo Conselho Nacional de Edu-cação das Diretrizes Curriculares paraos cursos de Graduação em Medicina,com base em proposta amplamentediscutida pela ABEM, CINAEM e RedeUnida, consolidada na Plenária final doXXXIX Congresso Brasileiro de Edu-cação Médica de Belém, em 2001.

Qual sua opinião sobre oPrograma de Incentivo aMudança Curriculares, nosCursos de Medicina –PROMED?

Entendemos como muito importantea iniciativa do Ministério da Saúde em

estimular a integração das Escolas Mé-dicas à Rede Pública de Saúde e a im-plementação de mudanças curricula-res que conduzam à formação de pro-fissionais que venham a atender às ne-cessidades de saúde da população e,portanto, do Sistema Único de Saúde.A grande limitação do PROMED é queapenas beneficia 20 escolas e o gran-de desafio será conseguir sua expan-são, de modo que todas as demaispossam ser beneficiadas, no mais bre-ve espaço de tempo possível.

Como a ABEM pretende atuarnesse novo cenário demudanças?

A ABEM pretende envidar esforços nosentido da continuação do movimen-to de transformação do ensino nasEscolas Médicas, reaglutinando as en-tidades parceiras e agregando novasentidades como as representativas dosusuários do Sistema Único de Saúde,em cumprimento às deliberações doXII Fórum Nacional de Avaliação doEnsino Médico, realizado em Fortale-za em setembro último, promovendo

* Ex-Diretor da Faculdade deCiências Médicas e Pró-Reitor deGraduação da Universidade de

Pernambuco - UPE.

as ações necessárias para que sejamcriadas as condições para a implemen-tação das mudanças no interior das Es-colas. Pretende também agendar reu-nião com o novo governo federal pararelato de todo o processo desenvolvi-do no sentido da avaliação/transforma-ção do ensino médico nos últimos 12anos e solicitar apoio para o movimen-to de transformação e abertura de de-bates sobre questões cruciais, como,por exemplo, a avaliação.

Qual o seu maior desafio paraos próximos dois anos degestão?

Sem dúvida, o grande desafio para ospróximos dois anos será manter aunião em torno do movimento detransformação, congregando as Esco-las Médicas e as entidades parceirasque tenham o interesse comum de verconcluído seus cursos de graduaçãoem Medicina, jovens com as compe-tências e o perfil definidos pelo coleti-vo das escolas e entidades médicas,consolidado nas novas Diretrizes Cur-riculares.

Publicado em setembro-outubro / 2002

Qual a sua formação e quaissão as suas atividadesprofissionais que temparticipado?

Conclui a minha graduação no ano de1972 na Faculdade de Medicina da Uni-versidade Federal Fluminense. Atueicomo residente em Pediatria e parti-cipei como docente nessa especialida-de no Departamento Materno Infantilda UFF no período de 1974 a 1990,quando me vinculei ao Instituto de Saú-de da Comunidade. Fui aluno de es-pecialização do V Curso Internacionalde Saúde e População em 1976, orga-nizado pela FEPAFEM e obtive o graude Mestre em Medicina Social, no anode 1983 na Universidade do Estado doRio de Janeiro. Tive a oportunidade deatuar formalmente na Secretaria Mu-nicipal de Saúde de Niterói em doismomentos: o primeiro no final da dé-cada de setenta, como Gerente de Saú-de, quando da construção da propos-ta de Implantação da Rede de Aten-

O novo Diretor Executivo da ABEM, Prof. João Marins é atualmenteCoordenador do Curso de Especialização em Gerência de Processode Capacitação Profissional e de Serviços de Saúde na Universidade

Federal Fluminense, onde se graduou em 1972. O Prof. Marins étambém do Curso de Graduação em Medicina e participa de proje-tos de Pesquisa e de Extensão na UFF, envolvendo o desenvolvimen-

to da aprendizagem e a sua relação com o Processo de Trabalho.

Nesta entrevista, ele fala de suas expectativas em relação a suaatuação na ABEM, para onde traz uma experiência profissional

vinculada à relação ensino-serviço. O professor reflete ainda sobreas mudanças, os incentivos e as articulações entre os diversos atores

envolvidos no processo de Educação Médica.

ção Básica de Saúde no Município e osegundo como Coordenador de Pla-nejamento, na metade dos anos oiten-ta, quando da implantação e consoli-dação das “Ações Integradas de Saú-de” no Município –Projeto Niterói.Tenho participado da equipe de coor-denação de alguns projetos de integra-ção ensino – serviço, envolvendo aUFF e integrei à equipe de elaboraçãodo novo currículo médico da UFF, im-plantado em 1994. Gostaria de expres-sar também a grande satisfação de terparticipado da criação e desenvolvi-mento da REDE IDA BRASIL, hojeREDE UNIDA.

A experiência profissionalvinculada à relação ensino -serviço, poderá influenciar asua atuação na DiretoriaExecutiva da ABEM?

Certamente. É evidente que a ABEMé uma instituição constituída por di-versas correntes de pensamentos econta, para cada período de manda-

to, com uma equipe dirigente eleitaem conformidade com as propostasapresentadas. Portanto, a execuçãodas ações é fruto de decisão da equi-pe gestora, seguindo princípios apro-vados previamente. Todavia, tem setornado cada vez mais evidente e fazparte da agenda da diretoria do ór-gão, o debate sobre a necessidadedo implemento de parcerias entre asinstituições de ensino e as de servi-ços, onde os profissionais desenvol-verão suas práticas. Essa articulaçãovisa a diversificação dos Cenários deAprendizagem, necessária a incorpo-ração de competência e de habilida-des, contidas no perfil do profissio-nal a ser formado segundo as novasDiretrizes Curriculares dos Cursosda área médica.

Nesse sentido, acreditamos que as ex-periências vivenciadas poderão subsi-diar a construção de propostas a res-peito dos mecanismos que favorece-rão essa integração ensino - serviço -sociedade.

João José Neves Marins

Professor do Departamento dePlanejamento em Saúde da

Universidade Federal Fluminense

Publicado em novembro-dezembro / 2002

Que mudanças estão sendo

propostas no Ensino Médico equais os incentivos que vêm

sendo oferecidos?

Tem sido intensificada, em período re-

cente, a avaliação da formação na área

médica, tendo participado desse pro-

cesso diversas instituições interessadasno bom desempenho das práticas dos

profissionais em saúde.

O resultado das avaliações tem apon-

tado para a deficiência de alguns eixos,

embora se deva ressaltar a existênciada diversidade de experiências e do

estágio de desenvolvimento das diver-

sas instituições de ensino no país.

Dentre as deficiências apontadas, des-

tacamos algumas: a concentração te-órica do ensino, operado através de

uma fragmentação dos conteúdos que

são abordados de forma pouco inte-

grada, sendo que as poucas atividades

práticas estão concentradas em labo-

ratórios ou em hospitais; os métodosde ensino privilegiam aulas expositivas

e a avaliação, muita das vezes, não está

dirigida a verificar o grau de compe-

tências e habilidades requeridas; a or-

ganização temática tem obedecido a

critérios tradicionais, atrelados a fun-damentações internas às respectivas

disciplinas ou especialidades, não sen-

do revistas periodicamente em função

do Perfil Demográfico e Epidemioló-

gico das diversas regiões do país; a

grande concentração no enfoque Bio-lógico relegando a um plano de me-

nor abrangência as questões da área

psico-social. Em síntese, o perfil pro-

fissional formado nem sempre atende

às necessidades e as adequações do

processo de trabalho.

O diagnóstico de situação tem funda-

mentado a construção de propostasalternativas ao modelo tradicional he-

gemônico. Após os debates entre as

diversas correntes de pensamento,

onde tiveram papel relevante algumas

instituições como a ABEM e a REDE

UNIDA, assim como outras, incluin-do-se alguns segmentos governamen-

tais, formalizou-se através das Diretri-

zes Curriculares dos Cursos de Medi-

cina, o referencial para as transforma-

ções que devem ser processadas nos

diversos níveis de formação na áreamédica.

De forma complementar a essas inici-

ativas o Ministério de Saúde e o da

Educação lançaram em conjunto o

PROMED, como forma de incentivo a

essas transformações curriculares.Essa medida vem sendo acompanha-

da por outras instituições, sendo per-

tinente a demanda de solicitação refe-

rente à criação dos programas de in-

centivo, organizados pelas Secretarias

Estaduais, a exemplo do recentemen-te criado pela Secretaria do Estado de

Paraná.

Tomando como referência os eixos

centrais das reformas curriculares, as

transformações devem privilegiar prin-cipalmente: o direcionamento da pro-

dução do saber, que deve contemplar

também a construção de tecnologias

na área da atenção integral a saúde; a

incorporação de metodologias peda-

gógicas inovadoras, adaptadas às com-petências e habilidades requeridas e a

diversificação dos cenários de apren-

dizagem, visando ampliar a abrangên-

cia do treinamento nos diversos cam-

pos de prática. Como estratégia para

o implemento dessas ações, torna-sede fundamental importância o envol-vimento dos diversos atores no pro-cesso decisório, a formalização da in-tegração das instituições de ensino e ade serviços e o desenvolvimento dacapacitação dos profissionais das ins-tituições envolvidas.

Como ocorre a articulação dosdiversos atores no processo deEducação Médica?

Ressalvando as particularidades e asinovações, desenvolvidas por algumasinstituições de ensino, a nossa percep-ção é a de que não exista com freqüên-cia espaços formais destinados a cons-trução coletiva, envolvendo os princi-pais atores do processo de EducaçãoMédica: docentes, discentes, pessoalde serviço e membros da sociedade.Tanto no plano gerencial das institui-ções, quanto nas atividades operacio-nais, os projetos costumam ser cons-truídos de forma individualizada e, emalgumas ocasiões, as representaçõessão constituídas para referendar as de-cisões, com limitado poder de decisão.

Essa constatação tem ampliado os ní-veis de conflito e competição intra einter institucional.

Considerando-se a necessidade atualda construção do saber e de tecnolo-gias envolvendo as diversas áreas doconhecimento (transdisciplinaridadeou intersetorialidade) e a formação ecapacitação profissional adequada auma nova lógica do processo de tra-balho, considere-se de grande relevân-cia a criação de canais de participação,onde os diversos atores possam cons-truir e avaliar, de forma conjunta e pac-tuada, as ações a serem desenvolvidas.

Como ativista do movimento estudantil, o Prof. Amâncio Paulino de Carvalhoparticipou do esforço para realizar o sonho da Faculdade de Medicina da UFRJ

de ter seu próprio hospital, acalentado desde o século XIX. Aos 45 anos deidade, Professor-assistente da área de Doenças Infecciosas e Parasitárias, ele éDiretor do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho há cinco anos, eleito

por docentes, alunos e funcionários duas vezes consecutivas. É tambémPresidente da Associação Brasileira de Hospitais Universitários de Ensino

(ABRAHUE), que reúne os diretores dos 154 hospitais que exercem algumnível de atividade de ensino médico. Nesta entrevista, ele divide conosco suaexperiência, reflexões e propostas para alinhar os Hospitais Universitários ao

esforço de transformação do ensino médico.

Como tem sido a sua vivênciana área de Hospitais de Ensino?

Na verdade, começou ainda muitocedo, ainda quando estudante de me-dicina. Este Hospital começou a serconstruído, em 1950, na época de Ge-túlio Vargas e as obras foram abando-nadas com a entrada de JuscelinoKubtscheck, que tinha como priorida-de a construção de Brasília. Os anos60 foram de retomadas e paradas daconstrução, até que na década de 70 acoisa realmente tomou pé, com a su-perintendência do Prof. ClementinoFraga Filho. Fizemos um movimentomuito intenso para fortalecer as posi-ções da administração da Faculdade naépoca, para conseguir abrir o Hospi-tal Universitário. A minha turma foiuma das que entrou na inauguração e,de imediato, pudemos perceber comoisso significou um avanço em relaçãoà situação anterior de dispersão empequenos hospitais. Acabavam nãoconcentrando recursos tecnológicos,não tinham um movimento significati-vo do conjunto de especialidades, en-fim, não tinham a integração que umgrande hospital universitário oferece.Isso fez parte da formação de muitagente da nossa geração, que teve umaformação política na luta contra a di-tadura e procurando fazer um vínculo

entre essas lutas específicas de cadasetor, como era o caso da abertura dohospital, e a necessidade de modificara situação política brasileira de então.Demorou, mas acabou dando certo.

E a experiência como diretor doHU e como presidente daABRAHUE?

É muito marcada pelo fato de que es-tes hospitais têm sempre algum aspec-to de crise de financiamento. É quasecrônica, com períodos melhores ou pi-ores, mas sempre com muita dificul-dade de dar conta do conjunto de suasatribuições de ensino, pesquisa e as-sistência. Esta crise assume diversosaspectos, no caso dos hospitais univer-sitários federais, ligados ao MEC - quehoje são 45, dos quais oito são da UFRJ- ela está relacionada principalmente àcarência de pessoal. Foi uma políticado Fernando Henrique Cardoso inter-romper a contratação de funcionáriospúblicos. Em parte, porque queria di-minuir as despesas do Estado, mastambém porque queria modificar o cri-tério de admissão à carreira pública,trazer de novo para a CLT, modificaro regime da previdência, não queriacontratar pessoas pelo Regime Jurídi-co Único. Houve um esvaziamentomuito significativo, estes hospitais ti-nham, no ano passado, 38 mil funcio-

nários do quadro, inclusive professo-res, e 22 mil terceirizados através dasfundações. Isso gerou para todos umdéficit financeiro muito significativo,porque se passou a utilizar o dinheirodo SUS - que já é insuficiente paramanter o hospital funcionando – parapagar o pessoal. Esta despesa compessoal chegou a quase 40% dos re-cursos do SUS, é uma fórmula que nãofecha, gera déficit, dívidas, problemasde abastecimento, dificuldades de se-gurança para os pacientes.

Mas existem outros problemas de ges-tão dos hospitais universitários. Um de-les é a dissociação entre planejamento,custeio e pessoal. Ou seja, os investimen-tos são feitos de maneira não articuladacom as necessidades locais de saúde dapopulação, com a disponibilidade de re-cursos locais e não estão integrados tam-bém com o processo de custeio neces-sário para que estes investimentos fun-cionem. Nós, por exemplo, abrimosneste ano um setor de radioterapia, comequipamentos no valor de US$ 2,5 mi-lhões financiados pelo Ministério da Saú-de, a obra nós fizemos com grande es-forço, conseguimos recursos do MEC,

Professor-assistente da UFRJ,Diretor do Hospital Universitário

Clementino Fraga Filho ePresidente da Associação

Brasileira de HospitaisUniversitários de Ensino

(ABRAHUE)

Amâncio Paulino de CarvalhoPublicado em janeiro-fevereiro-março-abril / 2003

custou mais cerca de R$ 2 milhões. Estátudo pronto, mas a dificuldade de ope-racionalizar agora existe, porque nãotemos o quadro de pessoal necessárioe não temos a garantia a garantia de umfinanciamento satisfatório, em funçãodos tetos do SUS, etc. Então, essa dis-sociação faz com que as coisas nunca ajei-tem completamente.

Uma outra dificuldade é exatamente aintegração ao SUS, às vezes por contade suas próprias características, outraspor conta do gestor. O SUS ainda estáem construção, em desenvolvimento.O ideal é que o hospital universitárioesteja completamente integrado aoSUS, que ele sirva de hospital de refe-rência para receber pacientes mais gra-ves, mais complexos. Dentro de um sis-tema integrado de atendimento, emque o paciente possa ser referido e con-trareferido, na medida em que ele re-solva o seu problema volta a ser acom-panhado numa unidade básica de saú-de. Como essa integração muitas ve-zes não existe, o hospital universitárioacaba fazendo todo tipo de atendimen-to e nem sempre está preparado paraisso. Temos casos de hospitais univer-sitários que têm grandes serviços deemergência, quando, na verdade, den-tro do conceito do SUS, esta é uma res-ponsabilidade municipal.

O financiamento dos hospitaisuniversitários é feito então peloMEC e pelo SUS, existem outrasfontes de financiamento?

Existem, mas são secundárias. O MECassegura o quadro de pessoal, este hos-pital, por exemplo, tem 2,65 mil funci-onários que são do quadro do MEC.Só que, como disse, este quadro nãotem sido suficiente para dar conta dasdificuldades ao longo dos anos. Então,você acaba tendo um outro quadro deterceirizados através da Fundação, deCooperativas, etc. No caso do quadrodo MEC, o governo paga isso direta-mente na folha de pagamento de cada

um, já o pessoal terceirizado não, nãohá previsão orçamentária para eles, usa-mos os recursos que recebemos doSUS pela assistência prestada. O MEC,desde o início dos anos 90, não dispõede orçamento de custeio para hospi-tais universitários, todo custeio depen-de de dinheiro do SUS. Na medida emque foi crescendo a parte deste mon-tante gasta com pessoal, houve uma fa-lência deste sistema de financiamento.

Então, o MEC e o Ministério da Saúdetiveram que criar um programa suple-mentar de orçamento, o Programa In-terministerial de Apoio aos HospitaisUniversitários, que vem transferindopor ano, desde 1999, em torno de R$60 milhões para estes 45 hospitais. Masveja, a despesa de pessoal terceirizadodestes hospitais, já chegou a R$ 200milhões no ano passado. Portanto, éum valor claramente insuficiente. Issogerou uma crise grave, fechou o pron-to socorro do Hospital São Paulo, queé um dos maiores do Brasil, fechou odo Hospital de Goiás, o Hospital deUberaba fechou por inteiro, nós aquitivemos que reduzir leitos... Isso acon-teceu em Minas, no Paraná e em vári-os lugares, caracterizando uma crisenacional.

De qualquer forma, a maiorparte dos recursos ainda vemdo MEC?

O financiamento hoje está baseado nosrecursos do MEC para pessoal, quesão insuficientes; nos do SUS, que se-riam suficientes para as despesas cor-rentes do hospital, se não houvesse anecessidade de cobrir o pessoal com-plementar; e, finalmente, deste pro-grama suplementar, que não são sufi-cientes para fechar a conta. O MECdá mais recursos, porque o peso depessoal é muito grande. Vou dar oexemplo do HUCFF, no ano passado,tivemos um gasto total de R$ 115 mi-lhões, deste montante R$ 70 milhõesforam da folha de pagamento do MEC.

Existe uma diferenciação entreo investimento do SUS noshospitais universitários e noshospitais públicos em geral?

Existe e é importante. É o chamadoFIDEPS, Fator de Incentivo ao Desen-volvimento de Ensino e Pesquisa em Saú-de. É quase um truísmo dizer que o hos-pital universitário custa mais caro, nomundo inteiro se sabe disso. Custa maiscaro, porque presença do aluno, do re-sidente, enfim, do profissional médicoem formação, faz com que os procedi-mentos sejam mais lentos, mais demo-rados, o tempo de internação, de umacirurgia e o número de exames comple-mentares sejam maiores, assim como astaxas de infecção hospitalar e de com-plicações, além de receberem doentesmais graves normalmente, que exigemmaior incorporação tecnológica, sãomais idosos, etc. Tudo isso faz com queo hospital universitário seja mais caro ea tabela do SUS, se já é insuficiente emgeral, mais insuficiente ainda seria paraos HU. Este fator adiciona recursos paraos HU, até 1999 ele se aplicava percen-tualmente sobre a fatura de internaçõesde cada hospital, dependendo do porteele tinha mais 25, 50 ou 75% sobre afatura. A partir daquele ano, isso mudou,o fator adicional passou a ter um valorfixo e pactuado com o gestor local doSUS, no caso da maioria dos HU o Se-cretário Municipal de Saúde da capital.Isso passou a depender da correlaçãode forças, da capacidade de pressão dohospital, das comunidades financeiras, daboa vontade das secretarias. De ummodo geral, os hospitais tiveram perdascom estas mudanças, a grande maioriapassou a receber menos.

Outra coisa é que o FIDEPS é tambémpara os chamados hospitais de ensino,que não são universitários, mas têmconvênios com faculdades de medicinapara receber alunos no período de in-ternato, que têm residência. Estes hos-pitais receberam, no ano passado,como fator adicional R$ 480 milhões.

Qual o papel do HospitalUniversitário nodesenvolvimento e na avaliaçãode tecnologias médicas? Comoesse processo deve serexecutado?

Essa questão é fundamental e acho queuma visão de futuro do caminho dosHU passa por aí. Por uma questão detradição, os HU concentraram aquelesprofissionais com um processo mais in-tenso de formação ou que tiveram suaformação no exterior e foram capazesde incorporar tecnologia mais avança-da e mais cara. De certa forma, se trans-formaram em grandes hospitais de clí-nica, com as principais especialidades esuperespecialidades funcionando ali,são candidatos naturais ao processo deincorporação de tecnologia de ponta.Só que este processo, a partir da crisede financiamento dos hospitais univer-sitários, que começa nos anos 70 e seagrava nos anos 80 e 90, eles passarama ser incorporadores secundários detecnologia. Um aparelho com uma novatecnologia qualquer, de um modo ge-ral, é um grande hospital privado do su-deste que vai ter antes do HU.

Acontece que os HU, neste processo deincorporação de tecnologia, não estabe-lecem uma avaliação científica da utilida-de dessa tecnologia. Hoje, quem defineo padrão da utilização da tecnologia é aprópria indústria, através de seus meca-nismos habituais de propaganda. Elestêm um exército de cientistas que fazpesquisa clínica, eles publicam estes tra-balhos, eles têm recursos muitovultuosos para financiar pesquisas, quena verdade são mais trabalhos de con-solidação, com professores e profissio-nais aqui no Brasil mesmo. Financiamviagens, participação em congressos,têm uma influência muito grande, 20 a30% do orçamento de uma grande in-dústria farmacêutica, por exemplo, épara marketing, isso acontece tambémcom a indústria de equipamentos. Isso

traz um viés, que é o de utilizar da ma-neira mais descontrolada possível, nãoimporta se realmente a relação custo/benefício é mais adequada para a socie-dade, o que importa é vender.

Outra coisa importante, é que isso trazuma conotação ideológica. A idéia, quefica para o profissional e para a popula-ção, de que é melhor o que é mais mo-derno, o que é novo, que traz um tipode apresentação mais fashion, digamosassim. Isso faz com que haja uma procu-ra muito grande por aparelhos que, àsvezes, são mais sofisticados apenas emdetalhes que não são fundamentais parao objetivo a que se propõem. Por exem-plo, a mulher quando vai fazer o con-trole de sua gravidez com o ultra-som,que foi um ganho fundamental para agravidez. Mas existe hoje o ultra-som deterceira dimensão, que não traz qualquerinformação nova para a qualidade doacompanhamento médico do feto. Noentanto, olhar a carinha, é bonitinho...Só que custa muito mais caro. Cada pe-quena incorporação tecnológica que sefaz em um determinado processo de tra-balho, muitas vezes, significa um aumen-to de benefício de 2 ou 3%, mas umaumento de custo de 100 ou 200%.

Este processo de hegemonia da indús-tria sobre a incorporação tecnológica éimpagável em qualquer sociedade domundo, nem os americanos agüentammais. Eles gastam, aproximadamente, 14a 15% do seu Produto Interno Brutocom saúde, é cerca US$ 1,5 por ano.Ninguém agüenta esse ritmo, é impos-sível. Então, alguns países na Europa e oCanadá, por exemplo, que têm sistemaspúblicos de saúde, criaram organizaçõesnacionais de avaliação tecnológica. Ouseja, nada entra no processo de traba-lho deles sem ter sido tecnicamente ava-liado. Pode ser pago pela sociedade? Avantagem que traz justifica o custo, doque teremos que abrir mão para ter isso?Porque quando não há recursos sufici-entes para tudo, tenho que comparar

se aquilo que vem compensa aquilo quevai sair ou que vai deixar de entrar.

É uma discussão extremamente com-plexa. Os HU têm que se propor aconstituir uma rede de avaliação tec-nológica que defina o padrão de utiliza-ção da tecnologia no Brasil e que façatrocas disso a nível internacional. Nãopara eliminar as inovações, que seriauma tolice sem fim, mas para estabele-cer um contraponto, que leve em con-sideração o interesse e as necessidadesda população e dos financiadores, queno fundo é a própria população mes-mo, nessa relação com a indústria. Issoé a melhor justificativa social para a exis-tência dos HU. Se não tivermos umajustificativa que tenha retorno para a so-ciedade, como iremos financiar esteshospitais tão caros no futuro?

Não existe nada semelhante aisso no Brasil?

Funcionando, não. Existe um setor deavaliação tecnológica dentro do Minis-tério da Saúde que não tem uma políti-ca nacional articulada. Não tinha no go-verno anterior e o atual tem a intençãode fazer isso de uma forma sistêmica,mas está numa fase inicial de montar asua estrutura para isso. Dentro da áreade gestão hospitalar e de programasassistenciais especializados, que estãocuidando dos HU no Ministério da Saú-de, existe essa perspectiva. Vamos ter,em julho deste ano, um Seminário Na-cional dos Hospitais Universitários, pro-movido pelos ministérios e pelas enti-dades ligadas a esta questão, exatamen-te para definir um plano de futuro. Eudiria que um dos grandes componen-tes desse futuro é criar estruturas tec-nológicas. Isso deve ser feito nos HUporque é onde há pesquisa clínica.

A indústria farmacêutica foi, ao longo dosanos, induzindo a criação de grupos depesquisas clínicas exatamente para de-senvolver trabalhos para a divulgação deseus produtos. Mais recentemente, sur

giu uma outra necessidade, porque ossetores que fazem pesquisa a nível in-ternacional e de ponta passaram a pre-cisar incorporar grupos populacionais deterceiro mundo. Por várias razões, pri-meiro por causa da saturação da pes-quisa clínica e da participação das pes-soas no primeiro mundo, segundo pelonível de exigência em termos éticos epadrões críticos cada vez maiores nes-ses locais, pela organização dos usuári-os, em terceiro lugar, também porque,de um modo geral, pelo processo de in-tegração global de culturas, de etnias, etc.É preciso ter amostras de vários grupospopulacionais, para saber, por exemplo,como um medicamento vai atuar emcada subtipo de vírus da aids, porque oque hoje predomina no Brasil, podeamanhã estar nos EUA. O Brasil temuma estrutura de pesquisa clínica relati-vamente extensa e bem estruturada, temum Conselho Nacional de Ética em Pes-quisa que faz o registro de todos os pro-tocolos, tem os Conselhos de Ética emPesquisa, que são mais de 400 no paísinteiro, ligados ao CONEP. Se conseguir-mos fazer com que esta estrutura, sob aliderança do Ministério da Saúde, come-ce a avaliar tecnologia, que isso seja ins-titucionalizado e regulamentado legal-mente, acho que em alguns anos pode-remos ter um papel mundial. Porquemundialmente não vai avaliar só quemtem a capacidade de produzir tecnolo-gia, talvez valha mais saber como usar atecnologia e, paradoxalmente, talvez te-nhamos melhores condições para issoque os próprios americanos. Porque osamericanos estão em uma lógica de con-sumo desenfreado, a correlação de for-ças entre eles não permite que os seto-res que se preocupam com avaliação tec-nológica e com a definição de custo/be-nefício tenham a força necessária paraexercer sua atividade.

Quais seriam os indicadores maisadequados para a avaliação dasações do Hospital Universitário?

Para que ele cumpra sua missão, um HUprecisa desenvolver atividades assisten-ciais de boa qualidade. Porque o ensinoé o processo de reprodução crítica deum determinado saber, de uma ativida-de no caso, e a pesquisa é o processode qualificação e melhoria deste proces-so de trabalho. Para reproduzir ou qua-lificar, a primeira coisa é que este pro-cesso precisa ser bem feito; então, épreciso ter os indicadores assistenciais.Precisamos saber qual é o tempo mé-dio de permanência do paciente no hos-pital, qual é sua taxa de infecção hospi-talar, se os recursos gastos com o paci-ente estão dentro daquilo que é razoá-vel, em termos de gasto de energia, deinsumos como alimentação, enfim, indi-cadores administrativos. Tem que se teruma noção de custo, é um instrumentopara saber se alguma coisa está sendobem administrada, por comparação, demodo que se possa gerenciar esse pro-cesso todo. Só abrir as informações etorná-las conhecidas por todos já ajudamuito. Um bom exemplo é o custo dooxigênio, há alguns anos, tínhamos oxi-gênio custando, por m³, desde R$ 0,90até R$ 20, dependendo do local no Bra-sil. Na medida em que se abriu umaplanilha com estes dados e se passou aconhecer esta realidade, foi possível es-tabelecer negociações que estreitarammuito esta faixa.

Os indicadores de ensino são quanti-tativos – o número de alunos que efe-tivamente são treinados, de residen-tes formados, mestrandos e pós-graduandos que têm a parte principalde seus projetos de pesquisa desen-volvidas no hospital, mas devem sesomar aos indicadores qualitativos, porexemplo, os resultados que os alunosobtém no Provão. E os indicadores re-lacionados à pesquisa, quais são as quese desenvolvem no ambiente do hos-pital, quantas pesquisas da área básicasão feitas em seus laboratórios, quan-tas delas estão associadas a atividades

clínicas, qual o número de projetos ca-dastrados nas comissões de ética empesquisa, quantos foram publicados.

Então, os indicadores que habitualmen-te são utilizados para pesquisa e paraensino têm que estar acoplados aos in-dicadores assistenciais e de natureza ad-ministrativa. Eu diria que, pelo menosnos hospitais federais, já avançamos nosentido de uma certa uniformidade deinformação quanto a estes indicadores,mas é preciso ampliar este banco dedados e torná-lo inteiramente acessí-vel, assim poderemos ter uma noçãomais clara do que está sendo feito, po-der comparar e estimular o processode aprimoramento.

Considerando-se as DiretrizesCurriculares do Curso Médico,como deve ser inserido oHospital Universitário como umdos Cenários deAprendizagem? Qual o seupeso relativo em relação aosoutros níveis de complexidadede assistência?

Existe um paradoxo no momento, a for-mação prática dos HU levou a que setornassem muito especializados e volta-dos a atender pacientes graves, muitoconcentrados na alta complexidade. Háindicadores que mostram isso, porexemplo, os 154 hospitais de ensino res-pondem por metade das cirurgias car-díacas e neurocirurgias do país, por 70%dos transplantes, por 65% das cirurgiascraniofaciais de maior porte. São hospi-tais que devem servir como centros dereferência para o sistema de saúde, quenão devem funcionar sob demanda es-pontânea dos pacientes. O paciente comuma dor de cabeça deve ir a um postode saúde, a um outro ambiente qualquerde atenção primária e se ele achar que émais grave e houver o diagnóstico queexige uma abordagem mais sofisticada,aí sim ele vai ser encaminhado ao hospi-tal, é uma maneira mais racional de utili-zar os recursos.

Essa diretriz já está definida pelo Minis-tério da Saúde, o Conselho Nacional deSaúde aprovou um documento que de-fine claramente isso. Estes hospitais nãodevem ter atendimento primário, sódevem ter atenção a nível secundárionecessária para complementar uma his-tória de caráter terciário e quaternário.Ora, as diretrizes do ensino médico vãono caminho oposto, com muita razão.A necessidade de formação geral domédico, voltado para a capacidade deatendimento à família, de trabalhar coma promoção de saúde e a prevenção.O médico que se articula com indivídu-os saudáveis e orienta a vida dessas pes-soas no sentido de manter a saúde eintervem quando é necessário fazer umdiagnóstico, um tratamento da formaadequada. Esta é a formação que pre-cisamos para a maioria de nossos mé-dicos. Mas em quase todas as faculda-des de medicina a formação se faz, prin-cipalmente, dentro do HU. Se o ensinoé feito em um local que faz atendimen-to especializado, que trabalha com in-versão tecnológica, com instrumentosde invasão do paciente, em que a dis-tância afetiva é maior e a capacidade deatuar no plano da promoção e da pre-venção é menor, como o estudante vaiter a formação adequada?

Isso quer dizer que tem que haver umagrande mudança. Tanto para a medici-na quanto para as outras profissões desaúde, o ensino tem que deixar de serhospitalocêntrico. Ele não pode deixarde existir no hospital, em certos pro-cessos e momentos da aprendizagema proteção do hospital é fundamental.Acho que quando o estudante começaa lidar com o paciente, manipular, me-xer, examinar, conversar, fazer uma his-tória e um exame físico é melhor fazerisso no hospital. Porque o paciente estálá por um tempo maior, o estudantepode visitá-lo várias vezes seguidas,pode discutir com o professor, voltar,coisas que ele não tem condição em um

ambulatório. Quando passa dessa fasede formação inicial, não tem muito sen-tido ficar o tempo todo no hospital, eletem que ir para o ambulatório, para oposto de saúde, participar dos progra-mas de prevenção, aprender a fazer oque vai ser fundamental na sua vida pro-fissional futura. A não ser que ele quei-ra ser um superespecialista, que é umcaminho que está mais à frente na suaformação, na residência, etc.

Essa é uma dificuldade, temos um con-flito. As faculdades de medicina fre-qüentemente reclamam, porque oshospitais não oferecem todas as opor-tunidades de aprendizado, não têmambulatórios gerais, porque seus paci-entes são muito graves ou porque nãotêm emergência funcionando. Por ou-tro lado, o hospital acaba lidando comsituações que ele não tem condições deabsorver. Se ele mistura atendimento eatenção ao nível primário e secundá-rio, na situação confusa que o nosso sis-tema de saúde se encontra, acaba sen-do inteiramente afogado por uma de-manda, que a sua concentração e a qua-lidade do que ele deveria fazer que é aatenção terciária e quaternária.

É típico o exemplo do HU com emer-gência aberta. Ele não consegue desen-volver seus programas de atenção de es-pecialidades, porque quando ele vai in-ternar um paciente que ele acompanhacom uma doença crônica, não tem vagapor conta do atendimento de emergên-cia. Este processo está muito confuso,precisamos fazer uma reforma de ma-neira que a escola médica se integre aosistema de saúde e tenha como lócus detreinamento e formação do profissionaltodos os da estrutura. Seja o posto desaúde, o Programa de Saúde da Família,o hospital de emergência ou o grandehospital especializado. Este, que chama-mos hoje de hospital universitário, temque ter um papel que, no fundo, vai sermenor, diante de tudo que aí está e quehoje é absolutamente hegemônico.

É complicado resolver isso, mas houveum avanço, na medida em que o Con-selho Nacional de Educação reformulouas diretrizes curriculares e deixou claroqual tipo de médico quer, as faculdadesvão ser avaliadas segundo um novo pa-drão. Por exemplo, a nossa faculdade demedicina tem a melhor avaliação possí-vel: muito bom em cada um dos itens,corpo docente, estrutura curricular eestrutura física. No entanto, se ela foravaliada do ponto de vista da formaçãodo estudante na rede, não vai conseguirmanter este nível, porque ela não ofe-rece o suficiente neste sentido.

De nossa parte, chegamos aofim da entrevista. Gostaria deacrescentar alguma coisa?

Só que acho fundamental a voz das es-colas médicas e da ABEM no processode reforma dos hospitais universitários,porque o que acaba acontecendo é queos diretores de hospitais... Gosto de fa-zer a comparação com um time de fu-tebol, cujo objetivo é ganhar o jogo; en-tão, não se pode exigir que o goleiro façagol, alguns até fazem batendo falta, masnão é sua função primordial, assim, se otime está perdendo muitos gols, não éproblema do goleiro, embora o desem-penho do time tenha que ser avaliadocomo um todo. Os dirigentes dos HUtêm uma responsabilidade imediata so-bre custo, fornecimento, qualidade dematerial, atendimento, respeito às nor-mas legais. Por mais que, quase sempre,sejam professores preocupados com avisão integrada, o cuidado principal de-les acaba sendo ligado a estas questõesde gestão administrativa e de assistên-cia. Por isso, é muito importante que aspessoas que têm uma atenção maiorpara o processo acadêmico tenham umainfluência real na reforma do sistema defuncionamento dos HU. É muito impor-tante o interesse da ABEM pelo assuntoe sua participação é decisiva neste pro-cesso de mudança.

Cadernos ABEM � Volume 1 � Maio 2004 51

O Prof. Paulo Marcondes é chefe da Disciplina de Informática emSaúde da Faculdade de Medicina de Marília e responsável pela área

de informática da ABEM. Nesta entrevista, ele fala da BibliotecaVirtual de Educação em Ciências da Saúde (BVS-Educ), projeto

que a ABEM desenvolve em parceria com a Bireme (Centro LatinoAmericano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde),

com a função de disponibilizar, através da internet, informaçõessobre educação em saúde, incluindo, além da carreira médica,

outras profissões da área da saúde. * Médico formado pela Universidadede Taubaté, mestre em Educação para

Profissionais de Saúde pelaUniversidade de Illinois (Chicago),mestre e doutor em Engenharia

Biomédica pela UNICAMP.

O que significa BVS-Educ?

É a sigla para Biblioteca Virtual de Edu-cação em Ciências da Saúde. Atual-mente a BVS-Educ é um produto daRede de Apoio à Educação Médica(RAEM) em parceria com a Bireme.Está disponível a partir do site: http://educ.bvs.br.

Qual sua finalidade?

A BVS-Educ tem como finalidade dis-ponibilizar toda a informação sobreeducação em Ciências da Saúde. Istoinclui não só a carreira de medicina,mas também as outras profissões daárea de saúde. Estamos reiniciando umprocesso de contato com estas outrasassociações, para retomada do proje-to em conjunto. O importante é que aABEM está neste momento tocandoo projeto com a preocupação de de-monstrar sua efetividade, mantendo asportas abertas para os interessados.

O que é exatamente umaBiblioteca Virtual em Saúde?

A BVS é um conjunto de programasde computador, instalados em umservidor da internet, produzidos pelaBireme. Sua função é disponibilizarinformação através da internet,

Paulo Marcondes Carvalho Júnior

portanto estes programas são usa-dos como ferramentas padronizadaspara a publicação eletrônica de infor-mações. Atualmente a Bireme estáincentivando a criação de BVS poráreas temáticas.

Isto quer dizer que existemoutras bibliotecas?

Sim. A primeira BVS foi a Adolec (http://www.adolec.br), que trata do tema�Adolescência�. Uma outra iniciativaimportante é a BVS de Saúde Pública(http://saudepublica.bvs.br). Todas elasestão disponíveis a partir da página daBireme (http://www.bireme.br).

Quais as vantagens nautilização da BVS-Educ?

A BVS permite a fácil recuperação edisseminação do conhecimento deuma determinada área. Outra vanta-gem é o acesso gratuito a um conjun-to diferente de referências bibliográfi-cas a partir de uma mesma interface.Isto permite uma eqüidade no acessoa informação científica frente às novastecnologias. Temos uma liberdade nacolocação de informações, podem sercolocadas não só informações de re-ferências normalmente aceitas, mas

qualquer uma que se deseje. Estas ou-tras informações são conhecidas como�gray literature�, eu estou propondoo nome LUNI, ou seja, literatura usu-almente não indexada.

Como funciona a BibliotecaVirtual em Saúde?

A BVS possui um modo de utilizaçãopadronizado e comum em todos ostemas e instituições onde ela é utiliza-da. Isto permite um acesso de formasemelhante à todas as bases de dados,às bases de especialistas, às instituiçõese principalmente às bases de textoscompletos. Uma importante imple-mentação é a ferramenta de meta-bus-ca, que permite a execução de buscasde informação em todas as bases daBVS, de forma simultânea, automati-camente. Também está sendo criadauma nova área de Temas dentro doconjunto de Descritores em Saúde(DeCS), abaixo do descritor �Educa-ção Médica�. Estes temas são agrupa-dos em uma estrutura no formato deuma árvore.

Publicado em maio-junho / 2003

Cadernos ABEM � Volume 1 � Maio 200452

Como é?

É uma forma de estruturar a informa-ção. Suponha que �Educação Médica�seja o tronco de uma árvore. Delepartem galhos, tipo �Avaliação de Es-tudantes� ou �Cenários de Aprendi-zagem�. De cada um destes galhospodem aparecer galhos menores,como �Avaliação Formativa�, �Avalia-ção de Desempenho�, �Avaliação Cog-nitiva� e assim por diante. Este é umtrabalho em construção, que necessi-ta da participação efetiva de toda a co-munidade e principalmente dos espe-cialistas em cada uma das áreas de Edu-cação Médica.

Como é a estrutura da BVS-Educ?

Atualmente existe um grupo coorde-nador da RAEM que trabalha em con-junto com as equipes da Bireme na ins-talação e adaptação das ferramentasàs nossas necessidades. Estão sendocriadas Equipes Locais em cada insti-tuição sócia da ABEM que adere aoprojeto. Provavelmente as outras fu-turas parceiras, como a AssociaçãoBrasileira de Enfermagem ou a Asso-ciação Brasileira de Educação emOdontologia irão criar sua própria es-trutura de alimentação das bases dedados. É um processo totalmente des-centralizado.

E como se dá o processo deimplantação das Equipes Locais?

Cada instituição deve assinar um Ter-mo de Adesão ao projeto. Em seguidadeve nomear uma equipe interna queserá a responsável pela coleta, catalo-gação e digitação das informações atra-vés das ferramentas disponíveis na BVS.

E como são compostas asEquipes Locais?

Sugerimos que a Equipe Local seja com-posta por pelo menos um docente ouespecialista em educação em saúde, umbibliotecário e um estudante ou estagi-ário. Existem manuais detalhados e mui-to bem escritos pela Luciana Danielli (bi-bliotecária da ABEM), disponíveis nosite da RAEM (http://www.abem-educmed.org.br/raem).

Há vantagens para a instituiçãoque aderir à RAEM?

Sim, várias! Procuramos realizar sem-pre projetos simbióticos, onde todosganham. As instituições que aderiremserão consideradas Centros Coope-rantes da BVS-Educ, inclusive perantea Bireme, tendo vantagens como pre-ços diferenciados, treinamentos, aces-so a tecnologia, entre outros.

Voltando à questão dasinformações, quais os tipos debases de dados estarãodisponíveis?

Inicialmente estarão disponíveis a baseEduca que congrega referências bibli-ográficas tradicionais, indexadas até omomento pela biblioteca da ABEM, asbases de instituições e de pesquisado-res. Esta é a principal base da BVS-Educ. As Equipes Locais irão alimen-tar a base Educ com a maior quanti-dade possível de referências sobreEducação em Saúde, não somente comreferências bibliográficas tradicionais.Outra base disponibilizada é a do acer-vo da Biblioteca da ABEM. Os acervosdas bibliotecas das outras instituiçõescooperantes também devem entrar nosistema. Estamos procurando criar umcorpo editorial e uma metodologia deanálise de trabalhos para facilitar a di-vulgação dos projetos e experiênciasdesenvolvidas na área. Vamos incenti-var a publicação de ensaios prelimina-

res destas experiências. Imaginamosque esta ferramenta será fundamentalpara a troca de experiências decorren-tes dos processos de mudanças na for-mação e capacitação profissional.

Como os interessados nodesenvolvimento da BVS-Educpodem colaborar?

Os interessados devem se informar nosite da RAEM se sua instituição já aderiuao projeto e quem são os componentesda sua Equipe Local. Caso sua institui-ção não tenha aderido ainda, podem in-centivar os dirigentes a aderir ao pro-cesso. No último Congresso Brasileirode Educação Médica, em Fortaleza-CE,foram distribuídos selos eletrônicos paraserem colocados nos sites das bibliote-cas que possuem Equipe Local. Verifi-que o site de sua instituição!

Existe algum custo financeiroenvolvido?

Não. Somente o deslocamento daspessoas para os locais de treinamentodas Equipes Locais.

Quais são as próximas ações?

Estamos planejando uma série deeventos a serem realizados no próxi-mo congresso em Florianópolis-SC,incluindo um seminário para os bibli-otecários e oficinas de capacitação. Emrelação à Bireme, existem um planode ações estabelecido, com sete con-juntos de ações. Estaremos publican-do no site da BVS-Educ toda a infor-mação disponível. Não deixe de aces-sar: http://educ.bvs.br!

Alguma outra consideração?

Somente agradecer pela oportunida-de de divulgar esta importante inicia-tiva para a Educação Médica Brasileirae dizer que é um trabalho realizado emequipe, que está aberta a todos os in-teressados.

Violência nos Ambientes de Trabalho emSaúde: “Somos vítimas e também algozes”A Profª Marisa Palácios atua na área de saúde e trabalho da Faculdade de

Medicina da UFRJ , é coordenadora da Pós-Graduação em Saúde Coletiva noNúcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC), e é responsável pelas

disciplinas de Bioética, Saúde Mental e Trabalho e Ergonomia e Saúde nocurso de mestrado. Há muitos anos se dedica ao estudo das repercussões

sobre a saúde mental das atividades de trabalho, dos profissionais de saúde,particularmente, objeto de sua dissertação de mestrado e de trabalhos que

orientou. Esta entrevista aborda resultados de uma pesquisa realizada aconvite da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Internacional de

Serviços Públicos, do Conselho Internacional de Enfermagem e da OMS, paraintegrar um grupo de pesquisa de um projeto multicêntrico internacional para

estudar a violência nos ambientes de trabalho no setor saúde.

Professora Adjunto da Faculdadede Medicina da UFRJ,

coordenadora da Pós-graduação doNESC/UFRJ, médica especialistaem Pediatria, mestre em SaúdeColetiva e doutora em Ciência

Marisa Palácios

Qual foi a motivação dessapesquisa?

Nosso grupo no NESC vem estudan-do saúde mental e trabalho há muitosanos. Vínhamos discutindo as questõesdo assédio moral e outras violênciasno trabalho quando fomos convidadospara participar da pesquisa. A propostadas organizações internacionais eraque a pesquisa pudesse oferecer sub-sídios para a formulação de um guiainternacional que pudesse contribuirpara o desenvolvimento de medidasde controle da violência no setor saú-de. Foram convidados sete países:África do Sul, Austrália, Brasil, Bulgária,Líbano, Moçambique e Portugal. Orelatório consolidado da pesquisa nosdiversos países serviu para a elabora-ção do guia que está disponível na pá-gina da OIT na internet e a versão emportuguês estará, brevemente, tam-bém na página do NESC.

Quantas pessoas foramentrevistadas?

No Brasil, especificamente, no Rio deJaneiro, foram realizadas 1.569 entre-vistas com profissionais de saúde de ummodo geral. Esta amostra foi constitu-ída a partir de dados do IBGE, utilizan-do como critérios de estratificação dospostos de trabalho os tipos de estabe-lecimento (com ou sem internação, es-pecializados ou de atendimento geral,particulares ou públicos) e categoriaprofissional. Além do questionário fo-ram feitos também grupos focais comtrabalhadores da saúde de diversos ní-veis de escolaridade, com representan-tes de sindicatos e também algumasentrevistas com representantes do po-der legislativo e judiciário.

Quais foram as questõesapontadas nessas entrevistas, aque tipo de violência estãoexpostos os profissionais desaúde?

No desenvolvimento do trabalho decampo, diversas vezes, nossa equipe foiprocurada por profissionais que vinham

relatar casos de assédio moral, situaçõesde trabalho vividas e relatadas com gran-de emoção, situações que geravam mui-to sofrimento. Creio que no seu pró-prio desenvolvimento, a pesquisa cum-priu um papel importante de mostrarque o problema existe e, como no casodo mecanismo perverso do assédiomoral inclui a atribuição de culpa à víti-ma, só o fato de saber que existe genteestudando e tem até nome, traz um alí-vio às vítimas e alento para trabalharcontra. As pessoas puderam ver que nãoé um problema só delas. E não eram sóaqueles que supostamente estão emuma posição hierárquica inferior, é umfenômeno que atinge, na verdade, to-dos os profissionais da área. Vários des-ses casos relatados eram de médicos.

Adotamos a classificação da OMS em vi-olência física e psicológica. A violência psi-cológica foi classificada em 4 tipos: agres-são verbal, o xingamento; o assédiomoral, a intimidação, o menosprezo,aquela coisa insidiosa que vai minando aidentidade da pessoa; o assédio sexual,

Publicado em julho-agosto-setembro-outubro / 2003

que também não é um ataque único, sãoataques freqüentes; e a discriminaçãoracial, que também abordamos comouma forma de violência. Em cada umdesses tipos violência, diversas questõeseram apresentadas. Quem eram osagressores? Houve algum tipo de inves-tigação? Como as pessoas reagiram?

E quem são esses agressores equais são as motivações?

A análise dos resultados da pesquisa noslevou a identificar dois grupos de agres-sores: o primeiro formado por chefes ecolegas de trabalho, o segundo por pa-cientes e seus parentes. Esta vem de umaviolência social disseminada, mas há umaparte que é reacional, apontada nos gru-pos focais de profissionais. Na medidaem que o cidadão não consegue o aten-dimento desejado ou é maltratado peloprofissional, como ele não tem canaisonde possa negociar sua necessidadeacaba partindo para a violência, comoúnica forma de fazer valer seus direitos.

Uma coisa que nos chamou atenção éa magnitude da violência que vem doprimeiro grupo, que vem de dentro dotrabalho, apesar de ser, estatisticamen-te, menor do que a que vem de fora.Também tem diversas razões. Em umdos grupos focais que fizemos com sin-dicalistas da área, uma das questõesapontadas foi algo que eles chamaramde violência institucional, que chega àsraias do assédio moral. É, por exem-plo, o fato de um auxiliar de enferma-gem ser obrigado a fazer procedimen-tos que estão fora de sua esfera de com-petência. Isso gera uma angústia muitogrande. Ou quando o profissional nãoé rendido e é obrigado a dobrar o plan-tão, foram relatados casos de gente quefica literalmente presa no local de tra-balho. Uma forma de violência que ossindicalistas disseram ser muito maisintensa no setor público do que no pri-vado, onde há o medo de ser denunci-

ado. Isso não significa que o serviçopúblico seja pior, mas é preciso criarmecanismos de controle, de gestãoparticipativa, para que esse tipo de vio-lência possa ser efetivamente coibida.

A pesquisa se preocupoutambém com o reverso damoeda, a posição do pacientecomo vítima de agressão dosprofissionais de saúde? E, poroutro lado, como essesprofissionais, aos quaiscomumente se atribui umaposição privilegiada em relaçãoaos pacientes, acabam setransformando em vítimas?

Não investigamos especificamente a vi-olência sofrida pelos pacientes, mas apa-rece como hipótese a partir dos resul-tados, sobretudo pelo aspecto reacionalque citei anteriormente. E também por-que os profissionais de saúde estão numaposição bastante diferenciada daquelesque os procuram, particularmente noserviço público. Embora os profissionaisde saúde não estejam, de modo geral,tendo sua dignidade profissional, e asvezes pessoal, respeitada, a populaçãoestá completamente massacrada. Háuma recessão muito grande, não há em-pregos, as condições de vida da popula-ção são muito precárias. Isso é claro, fazcom que as pessoas, no mínimo, tenhampouca paciência com a falta de atendi-mento, com as longas filas e mesmo como maltrato dos profissionais.

Quais as diferenças entre asagressões sofridas por homense mulheres, entre brancos enegros?

Se tomarmos a amostra como um todo,não há grandes diferenças entre ho-mens e mulheres, mas se pegarmos osmédicos há. As mulheres médicas so-frem mais violência do que os homens.Se tomarmos, por exemplo, os auxilia-

res de enfermagem ou enfermeiros,vamos encontrar mais violência contraos homens do que as mulheres. Temosrelatos de discriminação racial, tanto decolegas e chefes quanto de pacientes,aliás, mais de pacientes. Isso aparececom certa freqüência, cerca de 7% detoda amostra informou ter sofrido dis-criminação racial no último ano.

Vocês chegaram a fazer umacomparação com outros gruposde profissionais ou com aexposição à violência no mundodo trabalho em geral? Já foifeita uma comparação com oresultado das pesquisas nosoutros países?

A pesquisa foi só com profissionais desaúde, não temos dados de outras ca-tegorias. Essa foi a primeira pesquisaque tivemos notícia no Brasil a focali-zar a violência no ambiente de traba-lho. O que aparece é a violência regis-trada nas estatísticas de saúde. São ascausas externas, ferimento a bala, etc.ou a violência contra mulheres, crian-ças e adolescentes.

A comparação com os resultados deoutros países foi feita e não há grandesdiferenças. A grande maioria dos paí-ses pesquisados são periféricos, comexceção talvez de Austrália e Portugal,mas, mesmo aí, os resultados são se-melhantes. A violência nos ambientesde trabalho envolvendo profissionais desaúde é um fenômeno mundial.

O papel da relação existentenas próprias salas de aula dasfaculdades foi objeto de análisena pesquisa, sobretudo nasituação encontrada entre osprofissionais?

O que pudemos observar é que as pes-soas, em geral, são extremamente tole-rantes com a violência. Há uma certa ba-nalização da violência. Parece haver uma

tendência a minimizar, a negar no senti-do de não reconhecer situações de vio-lência com expressões do tipo “vocêentendeu mal, não foi bem isso que fu-lano quis dizer” e, novamente a vítima éculpada do “mal entendido”. Acaba quenão há um limite, não há discussão so-bre isso, sobre os motivos e formas dese evitar que aconteça. Eu acredito queseja nosso papel de professores de me-dicina, independente da área de especi-alidade na qual atuemos, conhecer e pro-mover a discussão desse tema. O fato éque estamos agredindo e não estamosnos dando conta disso. Um dos fatorespor exemplo que contribuem para oaumento da violência é a competição notrabalho. Se, por um lado, sabemos quehoje o mundo é competitivo e, no nos-so caso, essa competição se expressa nofunil do vestibular de medicina, na dis-puta por emprego e nos esforços parasua manutenção, por outro, nós, na es-cola médica, podemos e devemos esti-mular atitudes de solidariedade e respei-to no lidar com os outros, sejam paci-entes, colegas médicos ou o trabalha-dor da limpeza do hospital, atitudes es-sas que são incompatíveis com a lógicada competição. Entretanto, o que temosobservado é que as escolas acabam es-timulando a competição entre alunos eentre professores. Por isso, é preciso re-fletir sobre a formação que estamos ofe-recendo aos alunos de medicina e incluirconteúdos de outras áreas do conheci-mento para que possamos refletir so-bre a violência e uma série de outrasquestões que podem resultar no desen-volvimento de habilidades afetivas ecomunicacionais indispensáveis ao tra-balho médico. Aliás, é interessante quepudemos constatar que as pessoas an-dam ávidas por essas discussões, masnão se toma iniciativa. Não existem re-gistros das agressões, no máximo, aspessoas põem no livro de ocorrênciasuma anotação qualquer. Raríssimos são

os casos em que há uma investigação,em geral, não tem nenhuma conseqü-ência, não se leva a sério.

Existe alguma intenção de sefazer alguma coisa em termospráticos, sobretudo na formaçãodos profissionais de saúde, parapreparar terreno para umarealidade diferente da que foiencontrada na pesquisa?

Eu entendo que a escola médica possadar uma contribuição efetiva para a di-minuição da violência. Primeiro dandoexemplo mesmo, abrindo essa discus-são nos seus campos de prática, nos hos-pitais universitários e escolas. Isso é fun-damental, por isso essa entrevista no Bo-letim da ABEM é bastante oportuna.Quando vemos o gráfico de tipos deagressão por categorias profissionais, osmédicos são os que sofrem menosagressões por colegas e chefes. Isso éinteressante, porque os médicos estãono topo da hierarquia de poder dentrodo hospital, portanto são colocadosnuma posição em que acabam sendoperpetradores de violência. Então, valea pena investir numa discussão da rela-ção de equipe, de trabalho cooperativona formação do médico. Ele precisa sesentir mais integrante de uma equipecom a qual vai trabalhar as questões desaúde de uma comunidade e de umapessoa. As relações no interior dessaequipe têm que ser trabalhadas desde afaculdade, coisa que pouco se faz. Nãoé nem só através de nosso exemplocomo professores, é colocando isso emdiscussão mesmo, ser tema de reflexãode professores e alunos. Trabalhar emequipe é uma habilidade que deve serdesenvolvida, parte-se do pressupostoque as pessoas sabem fazer isso, ou queé assim mesmo.

Com relação aos pacientes se dá o mes-mo, essa habilidade de relacionar-se como paciente também tem que ser de-

senvolvida durante a formação. O do-ente ainda é visto como o sujeito quevai receber os conhecimentos e a ajudado médico que detém esse saber. Ao pa-ciente, nesta visão ultrapassada, cabeapenas o reconhecimento e a obediên-cia. A relação médico-paciente tem queser pensada como uma relação entreseres autônomos. É preciso que o pro-fissional médico se dê conta disso: o pa-ciente é um indivíduo que tem que sertão respeitado quanto o próprio profis-sional gosta de ser. Reconhecer o outrocomo sujeito de sua própria história nãoé algo que se atinge apenas ouvindo fa-lar disso. Há que se desenvolver esta ha-bilidade adquirindo conhecimentos, dis-cutindo com seus colegas e isso irá serefletir sobre a prática.

Surgiram outros projetos apartir da pesquisa?

O grande fruto dessa pesquisa foi nosestimular a pensar: Agora é com a gen-te, é preciso encontrar os caminhospara desenvolvê-la. Temos o projeto deelaborar uma cartilha para estimular adiscussão de forma mais lúdica, maissimples. Queremos sensibilizar as se-cretarias de saúde, os órgãos dolegislativo e do judiciário ligados ao se-tor saúde, para pensar coletivamenteem caminhos para minimizar a violên-cia. Queremos também sensibilizar asinstituições formadoras dos profissio-nais de saúde. Minha convicção é queeste é um tema muito grave, que refle-te diretamente na qualidade do atendi-mento que o setor saúde presta à po-pulação. É claro que não se limita a isso,envolve uma série de outros setores,não se consegue uma solução definiti-va, é claro, sem pensar na situação demiséria que vive a população, sem pen-sar na educação. Não é uma questãoque se resolva no âmbito da saúde, mastambém não tenho dúvida de que mes-mo aí muito há que se fazer.

José Paranaguá Santana - OPAS

Qual a sua inserçãoinstitucional e quais são asatividades que vemdesenvolvendo?

Estou no cargo de profissional nacio-nal da Representação da Opas no Bra-sil, onde exerço a função de coorde-nador do programa de cooperaçãotécnica em desenvolvimento de recur-sos humanos para a saúde.

Como tem sido executada aEducação à Distância na Áreada Saúde? Qual o seurepertório?

A experiência da Opas com programasde educação à distancia ainda é peque-na, embora se esteja trabalhando commais afinco nesse campo nos últimosanos. No Brasil, as primeiras iniciati-vas foram tomadas há cerca de trêsanos, como parte do processo de co-operação via Internet. Nossa propos-ta é colaborar com o desenvolvimen-to de redes de conhecimento cujosatores adotam a web como meio pre-

Consultor em Desenvolvimento deRH em Saúde OPAS/MS.

Repertório de Educação àDistância como um dos

Instrumentos da EducaçãoPermanente em Saúde –

Experiências Acumuladas ePerspectivas

ferencial de comunicação, atuantes emáreas específicas de aplicação para aeducação permanente de pessoal desaúde. Nesse sentido, estamos apoi-ando o desenvolvimento e estimulan-do a aplicação de tecnologias, medi-ante a consolidação de “redes colabo-rativas”, constituídas em associaçãocom instituições nacionais. Essa é a li-nha de cooperação central do progra-ma que estou coordenando atualmen-te na Opas. Todas as informações so-bre esse trabalho constam em nossapágina eletrônica (www.opas.org.br/rh), de onde podem ser acessadas aspáginas eletrônicas das redes colabo-rativas que já estão operando viaInternet. O desenvolvimento de cadauma dessas redes obedece a um rit-mo próprio, reservando-se a Opas àfunção de promover, consolidar e dis-seminar essas experiências. Dessemodo, a oferta regular de cursos eoutras iniciativas de educação perma-nente via Internet é um objetivo daspróprias instituições nacionais, para o

qual a Opas contribui diretamente ape-nas no desenvolvimento de projetospiloto. Contudo, essa participação po-derá ocorrer no contexto de progra-mas de cooperação financiados pelogoverno, como é o caso dos que es-tão em curso promovidos em conjun-to com o Ministério da Saúde.

Quais as vantagens edesvantagens da Educação àDistância?

Atualmente, quando se fala em edu-cação à distância fica implícita a refe-rência à Internet, embora não seja esseo único meio de praticá-la. As vanta-gens dessa nova abordagem relacio-nam-se ao próprio meio de comuni-cação, que apresenta, a cada momen-to, novas possibilidades e facilidadesantes sequer sonhadas. Entretanto, épreciso que recordemos uma vez maisas limitações das tecnologias de comu-nicação no desenvolvimento de pro-cessos cognitivos. Numa entrevistapublicada num livro editado pela

Publicado em novembro-dezembro / 2003

UNICAMP em 2002 (Recursos Huma-nos em Saúde: Política, Desenvolvi-mento e Mercado de Trabalho – orga-nizado por Barjas Negri, Regina Fariae Ana Luiza d’Ávila Viana), eu disse queo desafio da educação à distância con-tinua residindo no campo pedagógicoe não no campo da tecnologia de co-municação, seja a Internet ou outrashoje alcunhadas de convencionaiscomo o rádio, a televisão ou as moda-lidades ainda mais tradicionais onde seinclui o livro didático. A educação à dis-tância via Internet já está contribuindoe trará benefícios cada vez mais im-portantes para a formação e a educa-ção permanente de pessoal de saúdeno Brasil. Mas temos ainda enormescarências e dificuldades a serem supe-radas no campo pedagógico, desenvol-vendo metodologias e capacitandodocentes e instrutores. Essa é a prin-cipal preocupação e nessa direção es-tamos orientando os recursos da co-operação técnica da Opas.

Como podemos inserir aEducação à Distância comouma das ferramentas deEducação Permanente na Áreade Saúde? Existe algumainiciativa a respeito?

Como já disse anteriormente, a expe-riência da Opas nesse campo ainda é

pequena, até por ser uma organizaçãointergovernamental e como tal apenasreflete as preocupações e procura darcurso às prioridades estabelecidas pe-los seus estados membros. Além daexperiência já citada promovida pelaRepresentação do Brasil, há uma inici-ativa de âmbito regional que está sen-do coordenada pelo área de recursoshumanos do escritório central em Wa-shington (EEUU), que é o Campus Vir-tual em Saúde Pública, em cuja páginaeletrônica - www.campusvirtualsp.org- podem ser consultados seus propó-sitos bem como os produtos já dispo-níveis. Desse modo, a Opas pretendecontribuir de forma cada vez mais in-tensiva e efetiva para o desenvolvimen-to da educação à distância como fer-ramenta para a educação permanenteem saúde.

Quem tiver interesse naEducação à Distância seja comoaluno de curso outra atividadeou que busque o domínio dométodo, como pode buscar suainserção? Que orientação vocêdaria nos dois casos?

Há hoje uma oferta enorme de servi-ços e produtos de educação em saú-de à distância via Internet, como, ali-ás, acontece em tantos outros campospor onde corre a onda avassaladora

desse meio de comunicação. Prefiromanter-me na seara da própria coo-peração da Opas. As orientações paraa participação, tanto de alunos comode outros interessados no processo deeducação permanente via Internet, nasredes colaborativas associadas ao pro-grama de cooperação da Opas no Bra-sil, bem como no Campus Virtual deSaúde Pública, constam nas respecti-vas páginas eletrônicas. No caso da-queles interessados em conhecer ouaprofundar-se no domínio de tecno-logias cognitivas no campo da educa-ção à distância via Internet, o centrode referência com o qual estamos atu-ando no Brasil é o Núcleo de Tecnolo-gia Educacional em Saúde da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro(NUTES/UFRJ), que apóia as redes co-laborativas na capacitação de docen-tes ou instrutores para seus proces-sos educacionais. Um exemplo dessetrabalho cooperativo é o curso ofere-cido pela Rede IEPE (Iniciativa de Edu-cação Permanente em Enfermagem –www.abennacional.org.br/IEPE) paradocentes das escolas de enfermagemque pretendem participar dessa rede.

* Perguntas elaboradas pelo Prof.João José N. Marins – Diretor Exe-cutivo da ABEM.

Gilberto Perez Cardoso

Qual a importância para aformação profissional, aparticipação de alunos degraduação em atividades depesquisa?

As pesquisas em educação médicamostram que o médico se ressente deuma formação científica mais sólida. Ogrande volume de conhecimentos e anecessidade de atualização constantefaz com que o médico se defronte comum verdadeiro “bombardeio” de in-formações em congressos, revistas, naprópria internet. Como “filtrar” o queé válido cientificamente para utilizaçãona prática profissional? Penso que ojuízo crítico, desenvolvido no estu-dante de medicina ao trabalhar duran-te a graduação com projetos de pes-quisa e em contato estreito com o mé-todo científico lhe poderá ser valio-so para enfrentar essa heterogêneaavalanche de informações. Não se tra-ta de tornar todos os estudantes demedicina cientistas, mas de lhes for-necer uma formação científica mais só-lida, o que não tem acontecido em boaparte dos médicos formados até aqui.

Como está organizado oPrograma de IniciaçãoCientífica no Curso deGraduação de Medicina em quevocê participa?

O Programa de Iniciação Científica doCurso de Medicina da UFF (Univer-sidade Federal Fluminense) teve iní-cio em 1995, logo após a implanta-ção de seu novo currículo de gradua-

ção. Ele se estrutura em disciplinasoptativas, denominadas de IniciaçãoCientífica, que vão de I a VII e quepodem ser cursadas seqüencialmen-te pelo aluno interessado a partir dosegundo período do curso médico. Oaluno que optar pelo programa cursaa disciplina de Iniciação Científica I,que dura um período letivo e consis-te em seminários com um professorem que são abordados o método ci-entífico, pesquisa bibliográfica em me-dicina, códigos éticos para pesquisaem seres humanos e em animais, no-ções de bioestatística, tipos de estu-dos clínicos, comunicação do fato ci-entífico, construção do projeto depesquisa e mais alguns itens relevan-tes para o aluno que pretende se in-serir num projeto de pesquisa. Aindanessa disciplina ele procura um orien-tador e elabora, com as noções teó-ricas aprendidas e com a orientaçãodo último, um projeto de pesquisa, aser desenvolvido no próximo semes-tre. A seguir ele é avaliado na discipli-na e, caso aprovado, no próximo pe-ríodo se inscreve na Iniciação Cientí-fica II, quando passa a ter sua cargahorária semanal toda com o orienta-dor do projeto. Nesse semestre, suatarefa será desenvolver o projeto depesquisa elaborado. Ao fim do perío-do, costumamos, na UFF, realizar umagrande jornada científica com os alu-nos e professores. Os alunos apre-sentam o projeto, em que fase de an-damento ele estiver, sob forma depôster e este sofre a avaliação de um

outro professor. Assim, continuandoa ser aprovado, ele segue se matricu-lando na disciplina de Iniciação Cien-tífica, III, IV,.... , e assim sucessivamen-te, até a VII. Sempre executando umprojeto de pesquisa sob orientação deum professor e sendo avaliado peri-odicamente. Nos dois últimos anosdo curso não há a disciplina de Inicia-ção Científica, mas há o Trabalho deConclusão de Curso, obrigatório, queconsiste na apresentação de um tra-balho de pesquisa ou monografia eque é pré-requisito para a colação degrau. Os alunos que cursaram a Inici-ação Científica têm grande facilidadena elaboração desse Trabalho.

Qual o processo de avaliação edivulgação da participação dosalunos nas atividades depesquisa que são utilizados noreferido Programa?

Conforme comentamos, a avaliaçãodos alunos é eminentemente prática

Doutor em Medicina pela UFRJ;Professor Titular de Clínica

Médica da Universidade FederalFluminense (UFF); Coordenador

da Disciplina de IniciaçãoCientífica e da Pós-graduação em

Medicina da UFF

PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Publicado em janeiro-fevereiro-março-abril / 2004

e a apresentação dos pôsteres é pre-cedida de ampla divulgação. Os doisdias reservados para tal, ao fim decada período, são altamente estimu-lantes para os alunos e professores esão uma grande oportunidade de to-dos conhecerem o que outros exe-cutam em termos de pesquisa, naprópria universidade.

Quais as diferenças entre oPrograma de IniciaçãoCientífica curricular da UFF e oPIBIC ?

Eu diria que a principal diferença é queno PIBIC o aluno faz pesquisa e ganhauma bolsa; na disciplina de Iniciação Ci-entífica ele faz a mesma pesquisa, masganha créditos acadêmicos, que soma-dos aos créditos obrigatórios comple-tam o exigido para se graduar. No cur-so de Medicina da UFF, embora seja

uma disciplina optativa, a Iniciação Ci-entífica conta permanentemente com1/3 dos alunos do Curso de Medicinaenvolvidos nas atividades da discipli-na, o que considero muito bom. Achoque estamos atingindo o objetivo deproporcionar uma melhor formaçãocientífica aos médicos que estamos for-mando.

Que sugestões podem ser feitaspara as adequações e asinserções dos programas deiniciação científica noscurrículos de graduação emmedicina ?

Acredito que, em primeiro lugar, con-tar com elementos do corpo docen-te motivados para pesquisa científicaem medicina. Isso me parece primor-dial. Em segundo lugar, infra-estrutu-ra mínima. Não quero dizer com isso

apenas laboratórios, já que pesquisaem medicina não necessita ser feitasomente nos laboratórios. Minha li-nha de pesquisa no Programa de Ini-ciação Científica, por exemplo, em-bora eu seja clínico e endocrinologis-ta, é em Educação Médica e tenhovários alunos entusiasmados condu-zindo nossas investigações, que já ge-raram um livro, alguns trabalhos pu-blicados e apresentações em congres-sos. O método científico pode ser en-sinado e aprendido também fora delaboratórios. Por último, é necessá-rio estudantes motivados para se ma-tricularem numa disciplina optativa ebastante flexibilidade no currículo,para deixar tempo para tais ativida-des. Tempo para pesquisa, por sinal,é indispensável. É bom sempre lem-brar que “pesquisa é 1% de inspira-ção e 99% de transpiração...”