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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Joceval Andrade Bitencourt Descartes e a morte de Deus DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Joceval Andrade Bitencourt

Descartes e a morte de Deus

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Joceval Andrade Bitencourt

Descartes e a morte de Deus

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação do Prof. Doutor Carlos Arthur R. do Nascimento.

SÃO PAULO

2008

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Agradecimentos

Meus mais profundos agradecimentos:

Ao Prof. Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento, pela competência e paciência

que demonstrou ter na orientação deste trabalho.

A Ana Paloma Miranda Costa, pela presença afetiva e solidária durante todo o

percurso dessa caminhada intelectual.

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Banca Examinadora

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ÍNDICE

Resumo ____________________________________________________ 6

Introdução ___________________________________________________ 9

1 – Descartes sem metafísica ___________________________________ 17

2 – Deus na Física cartesiana (uma física em busca de uma

metafísica) ______________________________________________ 125

2.1 – Segunda parte do segundo capítulo _______________________ 216

2.1.1 – Impasses da metafísica cartesiana ____________________ 248

3 – Descartes: origem da morte de Deus __________________________ 266

Conclusão __________________________________________________ 363

Bibliografia _________________________________________________378

Anexo______________________________________________________400

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RESUMO

O presente trabalho buscou mostrar as possibilidades e os limites da metafísica

cartesiana, tendo como alvo principal, mas não único, investigar se é possível

creditar à filosofia de Descartes a postura através da qual se inaugura na cultura

ocidental a "morte de Deus". O resultado final, seja da ciência, seja da

metafísica cartesiana, é a afirmação do homem como centro em torno do qual

deve gravitar todo conhecimento, que tem na autonomia da razão natural sua

causa originária. O cogito ao afirmar, através dos fundamentos do método

inspirado nas leis da matemática, a primeira verdade, subordina todas as

outras, quer sobre Deus, quer sobre o mundo, a essa primeira verdade.

Descartes excluiu Deus de sua ciência; essa se processa à revelia de

qualquer instância exterior à ordem da razão natural. Se há um Deus na

metafísica cartesiana, não é possível identificá-lo com o Deus cristão: mistério

transcendente, que se revela e se dá a conhecer ao homem que o acolhe na fé. O

Deus da metafísica cartesiana é tão somente um princípio lógico, um funda-

mento racional, requerido pelas normas do método, ao qual encontra-se

subordinado. Assim, o Deus que Descartes apresenta ao mundo, através de sua

metafísica, já não é o Deus da religião; é, segundo a expressão de Pascal, o

Deus dos sábios e dos filósofos. A morte de Deus se apresenta então como uma

conseqüência direta da afirmação do homem, referência legitimadora de todo

conhecimento verdadeiro, principalmente daquele que busca apresentar-se

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como ciência. Deste modo, a morte de Deus estaria diretamente vinculada à

filosofia de Descartes. Teria sido na metafísica cartesiana, em sua própria

estruturação, que, mesmo não sendo essa a intenção explícita de Descartes, a

morte de Deus teve lugar pela primeira vez na história do pensamento

filosófico ocidental.

Palavras-chave: Descartes, metafísica, Deus, epistemologia

Abstratc

The present work attempts to show the possibilities and limits of the cartesian

metaphysics. It has as its main aim, but not the only one, to investigate the

possibility of assining to the philosophy of Descartes the posture through which

the death of God is inaugurated in western culture. The final result, either in

science or in cartesian metaphysics, is the assertion of man as the centre around

which all knowledge has to gravitate, knowledge that has in natural reason’s

authonomy its original cause. The cogito affirming, through the fundaments of

the method inspired by mathematical laws, the first truth, subordinates all the

other truthes, either about God or about the world, to this first one. Descartes

has excluded God from his science. This last one proceeds, notwithstanding

any instances external to natural reason’s order. If there is a God in cartesian

metaohysics, it is not possible to identify him to the Christian God, transcedent

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mistery, who reveals himself to man, who receives him in faith. The cartesian

methaphysics’ God is only a logical principle, a rational fundament, required

by the rules of the method, to which he is subordinated. Thus, the God whom

Descartes presents to the world through his metaphysics, is already not the God

of religion; he is, according to Pascal’s expression, the God of the wise and of

the philosophers. The death of God appears, them, as a direct consequence of

man’s affirmation; legitimating reference of all true konowledge, mainly that

which claims to present it self as science. It would be in cartesian metaphysics,

in ist own structuration, even if this was not Descartes’ own explicit intention,

that, for the first time, the death of God happened in western philosophical

thought.

Key words: Descartes, metaphysics, God, epistemology,

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INTRODUÇÃO

“Descartes c’est un homme terrible à prendre pour maître; son oeil semble

dire - ‘Encore un qui va se ‘tromper’”1.

Este trabalho inicia-se consciente dos riscos que se apresentam para quem

pretende conhecer e interpretar a obra de Descartes como um todo ou mesmo

um tema particular no interior desta. Não é recomendável tomar Descartes

como tema de reflexão sem ter em conta a epígrafe desta introdução. De fato,

Descartes parece anunciar, previamente, a todo aquele que pretende decifrar a

ordem de sua trama filosófica, o fracasso de tal empreitada. O mar é revolto, o

risco é sempre iminente; apesar disso, é preciso ir em frente, é preciso, tomando

os devidos cuidados, lançar-se ao mar e navegar, regido pela esperança de que

os ventos conduzam a nau em direção ao porto seguro e que o marinheiro

possa, ao cair da tarde, contemplar a terra firme da razão cartesiana. Nesta

empreitada, muitos são os guias que se apresentam para conduzir, estabelecer e

interpretar a direção “correta” da nau filosófica de Descartes. Mas qual guia

escolher? Em princípio, nenhum. A multiplicidade de intérpretes e

interpretações, quase sempre divergentes, em torno da obra de Descartes, não

recomenda que se tome um intérprete ou uma perspectiva particular de

interpretação como norte de pesquisa. Neste encontro filosófico, grande parte

dos mais ilustres e reconhecidos intérpretes da vida e da obra de Descartes

1 ALAIN, Histoire de mes pensées, p. 253.

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encontram-se presentes, entretanto, a nenhum, em particular, será oferecida a

cabeceira da mesa.

Depois de mais de trezentos anos de reflexão filosófica sobe a obra de

Descartes, ainda é possível encontrar um nicho não explorado, esquadrinhado,

conquistado pelos seus intérpretes, que possa servir de tema para uma

investigação conducente a uma tese de Doutorado? A resposta aparentemente

óbvia seria um rotundo não. Descartes seria terra conquistada, demarcada e

cercada - com arame farpado - pelos desbravadores das veredas filosóficas.

Neste sentido, parece que Descartes não teria mais nada a dizer que já não se

encontre sob pleno domínio de seus mais ilustres intérpretes. Já não seria mais

possível fazer falar os silêncios dos textos cartesianos, pois já não haveria mais

silêncios; tudo que tinha a ser dito, já foi dito. Descartes deixou-se revelar por

inteiro.

Engana-se quem assim interpreta as possibilidades oferecidas pelo conjunto das

reflexões filosóficas que Descartes legou aos humanos. Talvez, não seja

excesso afirmar que esse se apresenta, ainda hoje, com o mesmo vigor

filosófico, com o mesmo espírito provocativo com o qual se apresentou na

aurora do século XVII. Descartes é um daqueles autores que não envelhece

nunca; apesar da distância no tempo, provoca o espírito crítico de quem busca

entender a grande fábula do mundo, entender e dar respostas às provocações

intelectuais de um mundo já antigo, que se apresenta, a cada instante, cada vez

mais complexo, cada vez mais novo. Retornar a Descartes para melhor decifrar

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a trama com a qual tece sua filosofia, para melhor entender a ordem de seu

próprio sistema, é buscar entender o tempo de hoje; é buscar entender as

grandes questões filosóficas da atualidade que, apesar da passagem do tempo,

eram também questões de Descartes. Querendo ou não o homem

contemporâneo, em suas mais distintas e diversas manifestações intelectuais, é

herdeiro do cogito cartesiano. Descartes é moderno, Descartes é

contemporâneo; sua filosofia instaurou a modernidade e, até hoje, não se pode

deixar de reconhecer que as raízes da árvore que alimenta o espírito filosófico

do homem contemporâneo, encontram-se nos princípios da filosofia cartesiana.

Retomando Martial Gueroult, pode-se realmente afirmar que os mil canais da

filosofia moderna têm sua cabeceira na filosofia cartesiana.

Mas qual Descartes será tomado como objeto de reflexão neste trabalho? O

Descartes da ciência, sem metafísica? O Descartes que subordina a ciência à

metafísica? Ou o Descartes que busca, através da moral, a paz, a felicidade e o

bem estar do homem nesta vida? É possível dizer que essas três vertentes do

cartesianismo tornam-se alvo e unificam-se como objeto de reflexão deste

trabalho. Assim, Descartes será acompanhado nestes três momentos, que se a

princípio parecem independentes e distintos, estão, na verdade, inter-

relacionados, de modo que a compreensão de cada um deles em particular só se

justifica quando relacionada e articulada ao conjunto da obra do Meditador.

Descartes busca estabelecer uma unidade de todas as formas de conhecimento,

uma só ciência que possa abarcar e unificar todo o saber humano.

Conseqüentemente, a filosofia de Descartes encontra-se toda ela interligada, as

partes encontrando seu sentido na ordem lógica do todo e o todo, por sua vez,

encontrando nas partes que o conceituem a base onde se justifica e se esclarece.

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Fracassaria quem desejasse destacar um tema particular e dar conta dele

separadamente, sem contemplar a ordem do todo, o conjunto da obra de

Descartes.

Se o tema escolhido for Deus e sua relação com a filosofia cartesiana, a

situação torna-se ainda mais complexa, pois tal tema percorre toda a obra do

Meditador, alcançando, inclusive, sua volumosa correspondência. Sabe-se,

desde já, que a pretensão pode parecer excessiva e os riscos não menores;

entretanto, é preciso ir em frente, é preciso acompanhar todos os passos e

movimentos que Descartes impõe à idéia de Deus no traçado filosófico de seu

racionalismo.

Sobre a presença de Deus na filosofia cartesiana, têm-se, neste momento, muito

mais perguntas que respostas; espera-se que estas sejam oferecidas ao longo

deste trabalho. Qual, verdadeiramente, é a função de Deus na filosofia

cartesiana? Sua presença aí compromete a autonomia do sujeito no processo de

construção da verdade? A filosofia de Descartes, seja na ciência, seja na

metafísica, precisa realmente de Deus para garantir sua ordem de verdades?

Quais os impasses lógicos enfrentados por Descartes para garantir e justificar a

presença de Deus na ordem de seu sistema metafísico? A presença de Deus na

metafísica cartesiana é uma necessidade lógica ou uma concessão político-

religiosa? Ao justificar a presença de Deus na ordem de seu sistema filosófico,

não teria Descartes preparado as condições teóricas para se afirmar a “morte de

Deus”? Depois de Descartes, ainda é possível falar de Deus como fonte

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legitimadora da verdade? Perguntas que podem ser unificadas em uma única:

quais as possibilidades e os limites da metafísica cartesiana?

Os três capítulos que compõem este trabalho buscam responder essas questões,

sem pretensão de esgotar o assunto ou mesmo apresentar uma resposta

definitiva. Em filosofia, melhor, no conhecimento humano, não existem

respostas definitivas. Para o próprio progresso do conhecimento humano

melhor que elas continuem não existindo. Assim, o que ora começa a ser

apresentado não é um fato, mas só uma interpretação, uma perspectiva do

problema, nem a única, nem a melhor; só mais uma forma, mais uma

possibilidade de contemplar o livre vôo da ave de Minerva da filosofia

cartesiana. Para tanto, buscou-se, através dos três capítulos que se seguem,

percorrer de forma abrangente o território filosófico de Descartes, procurando

entender o esforço intelectual deste, bem como as conseqüências desse esforço,

para justificar e legitimar a presença de Deus na ordem das razões do homem.

No primeiro capítulo, Descartes sem metafísica, buscar-se-á mostrar que

Descartes, antes de ser um metafísico, é um cientista. Em sua reflexão está

preocupado em dar conta do mundo físico, em construir um novo sistema do

mundo a partir de uma reflexão puramente racional, sem nenhuma especulação

metafísica, sem nenhum interesse sobre a natureza de Deus ou a imortalidade

da alma. Buscar-se-á mostrar que, neste primeiro momento, Descartes não

precisa de Deus para legitimar as conquistas de sua ciência. Poder-se-ia dizer

que a intenção principal, não a única, deste capítulo é buscar entender os

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caminhos percorridos por Descartes para fundar uma ciência na qual a presença

de um Deus justificador e legitimador de todo conhecimento verdadeiro não se

faz necessária.

O segundo capítulo, Deus na física cartesiana - uma física em busca de uma

metafísica, será desenvolvido em duas etapas. Primeiro buscar-se-á mostrar, de

forma quase descritiva, sem acentuar a intervenção crítica sobre o assunto, o

processo através do qual Descartes constrói sua metafísica. No segundo

momento, de forma mais reflexiva e crítica, buscar-se-á entender a virada

filosófica de Descartes, isto é a ordem lógica, as possibilidades, as dificuldades

e os limites enfrentados por Descartes ao tentar fazer da metafísica o

fundamento da ciência. Quais as dificuldades, impasses lógicos, encontrados

por ele para fazer de Deus a base de sustentação de sua física. A orientação

deste capítulo tem como alvo responder às seguintes perguntas: para além das

questões gnosiológicas, haveria questões políticas presentes na metafísica

cartesiana? Qual o papel que o cogito e Deus desempenham na metafísica

cartesiana? O cogito inviabiliza a presença de Deus como causa primeira na

metafísica cartesiana? Deus inviabiliza a presença do cogito como causa

primeira na metafísica cartesiana? A presença de Deus na filosofia cartesiana

comprometeria a autonomia da razão? Seria a razão que se encontra

subordinada a Deus ou é Deus que se encontraria subordinado à razão? Buscar

responder a estas interrogações é buscar entender as possibilidades e os limites

da metafísica cartesiana. Ao final deste capítulo estarão preparadas as

condições gnosiológicas para, no primeiro momento, compreender-se a

natureza do Deus cartesiano, bem como, como este justifica-se na ordem

lógica de sua metafísica; no segundo momento, preparam-se as condições para

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o capítulo seguinte no qual buscar-se-á identificar, na metafísica cartesiana, a

origem da idéia da “morte de Deus” na razão Ocidental.

O terceiro capítulo, Descartes: a origem da morte de Deus. Buscar-se-á neste

capítulo entender a natureza do Deus da metafísica cartesiana. Cabe-lhe buscar

respostas para alguns questionamentos. É o Deus de Descartes o Deus dos

cristãos ou um Deus da razão, um Deus dos filósofos? Descartes, ao

subordinar Deus à ordem lógica, derivada da razão natural, não teria criado as

condições teóricas para afirmar a morte de Deus na ordem da razão? A

presença de Deus na metafísica cartesiana é uma necessidade lógica ou uma

concessão político-religiosa? Descartes teria deixado suas convicções religiosas

alcançarem suas convicções filosóficas? Não teria sido depois de Descartes

que, entre as mais diversas correntes filosóficas, estabeleceu-se a autonomia da

razão em relação ao conhecimento verdadeiro, à construção de uma ciência que

encontra na pura racionalidade humana sua base de sustentação, não sendo

mais possível falar de um Deus que se afirma e se reconhece como o único Ser

justificador e legitimador de todo conhecimento verdadeiro, de todo

conhecimento que busca ser reconhecido como ciência? O Deus da revelação

cristã teria como, sem perder sua aura de mistério, sobreviver no universo

estritamente lógico-matemático da metafísica cartesiana? É possível dizer que

Descartes, mesmo que essa não tenha sido sua intenção originária, tornou-se o

filósofo responsável por expulsar o Deus da revelação cristã do território da

razão? Não teria sido Descartes o filósofo que fez Deus retornar ao território

que lhe é próprio, o do mistério, da fé, da crença, ou mesmo da superstição?

Descartes estaria realmente preocupado em construir uma metafísica ou o que

busca, verdadeiramente, é construir uma ciência que possibilite ao homem o

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domínio da natureza, o conforto e a felicidade nesta vida? Por fim, uma última

questão, que orientou os três capítulos deste trabalho: seria, de fato, Descarte o

autor a quem pode e deve ser creditada a autoria da “morte de Deus” na ordem

do pensamento filosófico Ocidental? Responder a essa questão seria dar contar

globalmente da filosofia de Descartes, supor um percurso de sua reflexão,

perceber e percorrer os caminhos percorridos pelo Meditador na construção de

seu projeto filosófico. Tal é a intenção deste trabalho.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

DESCARTES SEM METAFÍSICA

“O universo não é uma idéia minha.

A minha idéia do universo é que é uma idéia minha.” (Fernando

Pessoa)

“Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado qualquer

partido, com respeitos às dificuldades que costumam ser disputadas entre os

doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa

do que a vulgar”2. Descartes dá a público estas linhas em 1637, data da

publicação do Discurso do Método, mas, refere-se a um período anterior, que

corresponde aos anos de 1619-1628. Período em que se deu a tomada de

2 DESCARTES, R. Discurso do Método, Obra Escolhida, p. 65. Neste trabalho, será adotada para as citações dos textos de Descartes, em primeiro lugar, a edição de Charles ADAM e Paul TONNERY. Paris: VRIN, 1996, 11 vols.; em segundo lugar, a edição de Ferdinand ALQUIÉ. Paris: Garnier, 1997, 3 vols. Por uma questão prática, todas as vezes que for citada a edição de Charles ADAM e Paul TONNERY, será usada a abreviatura costumeira, qual seja AT.; bem como, quando for citada a edição de Ferdinand ALQUIÉ será usada a abreviatura: Alq. Entretanto, quando citandos textos traduzidos para o português, principalmente no que diz respeito ao Discurso do Método e às Meditações, será utilizada a Obra Escolhida, São Paulo: Ed. Bertrand Brasil, 1973, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Dando prioridade às edições, bem como à tradução citada, recorrer-se-á a outras traduções, em português ou em outras línguas, quando necessário. Informa-se ainda que as citações obtidas de edições francesas ou em outros idiomas, não serão traduzidas para o português. Acrescente-se que certas variações de grafia provêm das traduções utilizadas e em nada interferem com o conteúdo dos textos.

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decisão de Descartes de abandonar os livros e o convívio com os homens cultos

para viajar em busca de entender a comédia que se desenrola no grande teatro

do mundo. “E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar

pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em

todas as comédias que nele se representam”3. Entre 1629 e 1633, Descartes

escreve o Le Monde ou Traité de la lumière. Nestes anos, desde 1619, toda a

preocupação especulativa de Descartes está voltada para as ciências4. Seus

interesses intelectuais estão direcionados para a matemática, a geometria

analítica, a óptica, a física, os fenômenos atmosféricos, a biologia e a

fabricação de lunetas5. O que interessa a Descartes é compreender e dar conta

da ordem do mundo físico, construir um novo sistema do mundo a partir de

uma reflexão puramente científica, sem nenhuma especulação metafísica6. “As

preocupações metafísicas aparecem bastante tarde no pensamento de

Descartes”7. Desta forma é possível afirmar, que há um bom indício de que a

reflexão científica de Descartes é anterior a sua reflexão metafísica8. Ele faz

3 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 64-65. 4 “Desde el descubrimiento del criterio metodológico fundamental - que una noticia del diario de Descartes nos permite situar en el 10 de noviembre de 1619 - trascurren nueve años, los quales aparecem totalmente ocupados – así lo atestigua el Discours de la méthode – con estudios físicos y matemáticos. Durante estos años van definiéndose y afianzándose, según cabe demostrar hasta en sus últimos detalles, los rasgos fundamentales del sistema del conocimiento, antes de que ningún problema metafísico aparezca en los horizontes de la especulación”. CASSIRER, E. El Problema del conocimiento, I, p. 452. 5 “Si l’on voulait exposer la physique de Descartes, au point de vue de sa contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler de la métaphysique, dans laquelle il a voulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui, par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à 1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, II, p. 86-87. 6 Neste período, “Descartes ocupa-se mais de ciência que de filosofia. Interessa-se pelas matemáticas (a solução que propõe do problema de Papus é o ponto de partida da geometria analítica), pela óptica (descoberta das leis de refração), pela física (problema da queda dos corpos), pelos fenômenos atmosféricos (problema dos parélios ou “falsos sóis”), pela biologia (pratica inúmeras dissecações), pela fabricação de lunetas, etc. É nessa época, entre 1629 e 1633, que Descartes escreve o tratado que será publicado depois de sua morte com o título Le Monde ou Traité de la lumière (O Mundo ou Tratado da Luz), cujo fim é constituído pelo texto conhecido pelo nome de Traité de l’homme (Tratado do Homem)”. PASCAL, G. Descartes, p. 5. 7 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 57. 8 “Si l’on voulait expreser la physique de Descartes, au point de vue de sa contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler de la métaphysique, dans laquelle il a vaulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à

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ciência, sem, em nenhum momento, buscar os seus fundamentos últimos9.

Assim, nesta época, está ausente da reflexão de Descartes qualquer interesse

filosófico pelas razões justificadoras da natureza de Deus e da Imortalidade da

Alma. Reflexões desse tipo só aparecerão bem mais tarde, mais

especificamente, no Discours de la méthode (1637), de forma ainda restrita, e

nas Meditationes de Prima Philosophia (1640), de forma madura e plena. É

para o período anterior, que pode ser identificado como “Descartes sem

metafísica”, que estará voltada a reflexão deste primeiro capítulo. Período em

que Descartes constrói sua cosmologia, buscando estabelecer uma origem

racional para o universo, sem recorrer à idéia de um Deus para estabelecer as

bases de sustentação da ciência. Nesse enfrentamento entre a pura ordem da

razão natural e as leis que regem o universo, sem nenhum embasamento

metafísico, encontram-se os fundamentos da ciência. Se a ciência cartesiana

busca, mais tarde, encontrar na metafísica, melhor em Deus, uma base segura e

certa para sua sustentação, isto não interessa neste momento; esse é um assunto

que será tratado no segundo capítulo deste trabalho. Por hora, interessa

unicamente entender os caminhos percorridos por Descartes para fundar a

ciência na qual a idéia de um Deus justificador da ordem da razão e do mundo

não se faz necessária10.

1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, É. Histoire de la Philosophie, II, p. 87. 9 “Descartes constrói a ciência sem se interessar sobre os seus fundamentos e declara, aliás, que não se atrevia a afirmar ‘que os princípios que utiliza sejam os princípios verdadeiros da natureza’; mas, acrescenta, ‘eles satisfazem-me quando os tomo por princípios das minhas investigações’”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 36. 10 “No início da sua indagação, Descartes não parece ter se preocupado muito em encontrar fundamentos filosóficos para o seu método e a sua ciência. (...) Por outras palavras, Descartes principiou por abraçar o mecanicismo como puro cientista e sem se interrogar acerca da sua relação com a metafísica”. ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o mecanicismo, p. 31. “Si l’on voulait exposer la physique de Descartes, au point de vue de se contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler se la métaphysique, dans laquelle il a voulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui, par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à 1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, É. Histoire de la philosophie, II, p. 86-87.

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Não é tarefa fácil enfrentar o pensamento de Descartes. Parece que,

antecipadamente, esta-se condenado ao fracasso. Remetendo-se a Descartes, no

mordaz comentário que faz sobre a maioria dos intérpretes de Aristóteles, pode-

se também dizer que se voltasse a esse mundo, com certeza não se reconheceria

e não validaria muitas das interpretações de sua filosofia ao longo desses três

séculos de história do cartesianismo11. Será mesmo culpa só dos seus

intérpretes ou também Descartes tem uma parcela de culpa nos deslizes de

interpretação cometidos por aqueles que se debruçam sobre sua obra, tentam

interpretar sua filosofia e decifrar seus enigmas? Mas Descartes é, como afirma

Koyré, “um homem prudente e dissimulado que pensa no que diz, mas não diz

11 Escreve Descartes: “A maioria daqueles que nesses últimos séculos quiseram ser filósofos seguiram cegamente Aristóteles, de forma que frequentemente corromperam o sentido de seus escritos, atribuindo-lhe diversas opiniões que ele não reconheceria como suas se retornasse a este mundo”. DESCARTES, R. Carta prefácio dos princípios da filosofia, p. 12. A crítica de Descartes tem endereço certo: ele dirige-se aos escolásticos, que a partir do século XII tomaram Aristóteles como referência, denominando – O Filósofo. “O próprio Aristóteles – assim sentencia Leonardo Bruni, tradutor da Política e da Ética a Nicômaco – não reconheceria seus livros depois da transformação que sofreram por obra da Escolástica, do mesmo modo que Acteão não foi reconhecido por seus próprios cachorros, depois de ter sido transformado em cervo”. Apud, CASSIRER, E. Indivíduo e cosmos na filosofia do renascimento, p. 4. Acrescenta-se que Leonardo Bruni fez duras críticas a Guilherme de Moerbeke, que no século XIII tinha traduzido a Política e revisto a tradução de Roberto Grosseteste da Ética a Nicômaco. Cf. NASCIMENTO, C. A. R. do. “O Comentário de Tomás de Aquino à “Política” de Aristóteles e os inícios do uso do termo Estado para designar a forma do poder político”, Veritas, v. 38, p. 248. Descartes, ao se dirigir aos seus futuros leitores e intérpretes solicita que eles não cometam com ele o mesmo erro que alguns seguidores e intérpretes cometeram com Aristóteles e sua obra. Eis o que diz Descartes: “O que é tão verdadeiro, nesta matéria, que, embora tenha muitas vezes expli-cado algumas de minhas opiniões a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las mui distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as mudavam de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse propósito, muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas de mim, se eu próprio não as tiver divulgado. E não me espantam de modo algum as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito desarrazoados, visto serem os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal relatados. Porque se vê também que quase nunca aconteceu que algum de seus sectários os haja superado: e estou seguro de que os mais apaixonados dos que seguem agora Aristóteles, crer-se-iam felizes, se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele o teve, embora sob a condição de nunca o terem maior. São como a hera, que não tende a subir mais alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes mesmo torna a descer, depois de ter chegado ao seu topo; pois me parece que também voltam a descer, isto é, se tornam de certa forma menos sapientes do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, não contentes em saber tudo o que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades, a cujo respeito nada disse e nas quais nunca talvez pensou. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 97-98.

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o que pensa”12. Não bastasse isso, Descartes seria também um pensador cujo

campo de reflexão abarca como que a totalidade do conhecimento humano

disponível em sua época: física, matemática, fisiologia, anatomia, moral,

metafísica, teologia13. O que Descartes pretende é uma tarefa quase sobre-

humana. Ele próprio, em carta a Beeckman, de 26 de março de 1619, reconhece

que seu projeto intelectual não pode ser alcançado por uma só pessoa:

“l’oeuvre, il est vrai, est infinie, et ne peut être accomplie par un seul”14. Torna-

se quase impossível que alguém, como intérprete do pensamento cartesiano,

possa acompanhar em plenitude todos os passos dados por Descartes nessa

caminhada em busca de uma ordem universal do saber. Como conseqüência,

seus intérpretes, grande número de vezes, acabam por fragmentá-lo, esquartejá-

lo, priorizando parte ou aspectos de seu pensamento em detrimento do todo.

Com isso, perde-se a visão de conjunto de sua obra e, a partir desse pequeno

território demarcado, tenta-se compreender e dar conta deste grande campo

aberto que é sua filosofia. Cada um de seu canto, de sua base restrita, acaba por

afirmar seu pensamento, sua interpretação como a mais adequada, como aquela

que deve servir como referência paradigmática para todo aquele que busca

entender o percurso da filosofia cartesiana15. Assim, ao fim e ao cabo, termina-

se por ter um Descartes para cada herdeiro ou intérprete, cada um construindo

seu próprio Descartes16: o Descartes de Baillet, o Descartes de Leibniz, de

12 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 16. 13 “De uma forma que há muito tempo deixou de ser possível em nossa era moderna especializada, [Descartes] tentou resolver os grandes problemas estruturais da metafísica e da epistemologia, criou uma teoria geral sobre a natureza e as origens do mundo físico, elaborou um trabalho detalhado em matemática pura e aplicada, escreveu tratados em mecânica e em fisiologia, investigou a natureza do homem e as relações entre a mente e o corpo e publicou reflexões abrangentes em psicologia e em ética”. COTTINGHAM, J. Dicionário - Descartes, p.11. 14 DESCARTES, R. Correspondência; Alq., I, p. 39; AT., X, p. 157. 15 “Com efeito, os escritores costumam ter um espírito tal que, todas as vezes que se deixam arrastar por uma credulidade irrefletida a tomar uma posição crítica numa controvérsia, sempre se esforçam em nos atrair a ela com os seus mais sutis argumentos”. DESCARTES, R. Regras para a orientação do espírito, reg. III, p. 11. 16 [...] Et elle a donné naissance à toutes sortes de courants divers, voire opposés: du cartésianisme est issu Spinoza, mais aussi Malebranche, mais aussi Leibniz; et, pour une bonne part, Arnauld, sans compter Régis;

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Espinosa, de Kant, de Hegel, dos fenomenólogos, dos existencialistas, etc.

Deixando os herdeiros e voltando-se para alguns de seus intérpretes, tem-se: o

Descartes de Gueroult, o Descartes de Alquié, o de Leroy, de Gilson, de Turró,

de Koyré, Laporte, Hamelin, só para ficar em alguns que se tornaram referência

obrigatória. Há, portanto, uma pluralidade de Descartes, ao ser este

contemplado a partir da margem da qual cada um desses intérpretes lança seu

olhar em direção à obra filosófica deste17. Qual Descartes deve-se tomar como

referência, como guia de orientação para a reflexão? De que porto é preciso

partir para, com segurança, se navegar em busca de uma correta interpretação

da filosofia de Descartes? Ao se escolher uma linha de interpretação, não se

está correndo o risco de tomar um porto de partida inadequado? Como já se

disse, as escolhas definem o ser. Aqui, a escolha define o tipo de interpretação

que será proposta ao longo do trabalho. Não seria talvez sábio não escolher,

não priorizar nenhum dos intérpretes e tomar o próprio Descartes como guia

primeiro de reflexão? Já que não é possível não escolher, escolha-se ou opte-se,

o quanto possível, por Descartes. Não que se tenha a pretensão de poder

abandonar ou não levar a sério tudo que foi pensado e dito sobre Descartes.

Seria abandonar mais de trezentos anos de investigação do pensamento pour une bonne part également, Locke, puis Berkeley, puis Hume; et Condillac, et La Mettrie; et encore Kant et Hegel; et Maine de Biran; et Auguste Comte; et Husserl. Tous ces gens-là se reclament de Descartes; tous sont, à quelque égard, ses disciples. Descartes les comprend et les dépasse tous”. LAPORT, J. Le rationalisme de Descartes, p. VII. 17 “Voilà Descartes embrigadé par les adversaires de la religion (les morts ont bon dos) comme il l'avait été, vers le milieu de sa vie, par ses défenseurs. Les membres de la Constituante et de la Convention décréteront qu'il fut un de leurs précur-seurs. La foi qu'il proclame? Les pages qu'il écrit pour démontrer l'existence de Dieu? «Ruse de style». Les saint-simoniens, les positivistes, les marxistes se réclament de ses disciplines. Cependant Víctor Cousin affirme qu'il est le fondateur du spiritualisme moderne, et Charles Adam que le dernier mot de sa physique est l'idealisme. Alain et Liard voyaient en lui un rationaliste libéral; Jean Laporte nous dépeint un empiriste, Gilson un théologien medieval. On nous a présenté un Descartes champion de l'Église apostolique et romaine, un Descartes huguenot, un Descartes masqué et dissimulateur conscient, un Descartes mystique et Rose-Croix, un Descartes des sociétés secrètes, un Descartes révolutionnaire, un Descartes avocat de l'ordre bourgeois. Pour les uns c'est la plus géniale expression de l'intelligence occidentale; pour les autres, une sorte de pedant qui sait tout mais rien de plus, le gardien du «Bon Marché de la Sagesse », le plus imbécile des rationalistes, le fossoyeur de tout art et de toute poésie, le principal responsable de la dissolution de notre culture. Autant de Descartes-Protée que der commentateurs. Après en avoir lu dix ou vingt, nous ne savons plus du tout qui il était”. FRÉDÉRIX, P. Monsieur René Descartes en son temps, p. 9-10.

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cartesiano. Não seria apenas descuido, mas uma arrogância desnecessária. Não

se pode ter e não se tem a pretensão de ser o Adão da filosofia cartesiana, isto

é, o próprio Descartes. Apesar das profundas e constantes divergências de

interpretação de seu pensamento, não se pode negar que cada um dos

intérpretes, segundo sua perspectiva, está a dialogar com a razão instaurada por

Descartes no século XVII; está a buscar saídas para as lacunas e os silêncios

deixados na ordem da razão cartesiana, que buscava, através da filosofia,

entender racionalmente a ordem do universo. Assim, esses intérpretes do

pensamento de Descartes se farão presentes neste trabalho à medida em que, na

dinâmica da elaboração do próprio texto, a interpretação de um ou de outro se

fizer necessária para que seja possível ter melhor compreensão na exegese do

pensamento cartesiano. O que equivale a dizer que, mesmo quando se recorrer

a seus intérpretes, ter-se-á sempre como solo de sustentação os próprios textos

de Descartes, buscando compreender, passo a passo, a lógica de sua filosofia;

como cada peça foi colocada; como cada traço foi riscado na arquitetura de seu

projeto filosófico. Seguindo suas veredas, seus grandes caminhos, deixando-se

guiar por ele, sem interferir ou forçar arbitrariamente asserções que atenderiam

muito mais a interesses que eventualmente direcionam a pesquisa do que à

ordem de seu pensamento e à intenção do autor. Agindo assim, espera-se

atender a uma exigência do próprio Descartes a todos aqueles que pretendem

lê-lo ou interpretá-lo18. Compreender um autor é compreender o tempo

18 Depois de ter desabonado a interpretação que Régio fez de sua obra, Descartes faz a seguinte solicitação aos seus futuros leitores e intérpretes: “que nunca me atribuam alguma opinião se não a encontrarem expressamente em meus escritos; e que não aceitem nenhuma como verdadeira nem em meus escritos nem em outros se não a virem clarissimamente ser deduzidas dos verdadeiros princípios”. DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos princípios da filosofia, p. 29. “Múltiplas vezes, Descartes adverte seu leitor – nas Respostas às Objeções e nas Cartas: retirar, ou modificar, ou deslocar uma peça do sistema é correr o risco de pô-lo abaixo. É preciso, pois, em primeiro lugar, ler Descartes, levando a sério o encadeamento de suas razões, acompanhando seus passos, como ele quis que se fizesse”. GRANGER, G.-G.; Introdução, In: Descartes - Obra escolhida, p. 10.

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histórico no qual este se encontra inserido19. Se isso vale como regra geral para

qualquer pensador, vale mais ainda para um pensador como Descartes que,

acima de tudo, foi um filósofo encarnado no seu tempo, filho de seu tempo; um

autor que tomou para si o papel e a responsabilidade de responder e superar as

grandes questões filosóficas, epistemológicas e morais, que emergiram da crise

cultural do entardecer do mundo antigo e medieval e do amanhecer do

Renascimento20 e do mundo moderno. Em toda sua obra, bem como em sua

correspondência, o que se vê é Descartes assumindo o papel de protagonista, de

timoneiro no cenário histórico do século XVII21. Segundo Hegel, “nunca será

exagero ressaltar a ação desse homem (Descartes) sobre seu século e sobre os

tempos novos”22. Quais são então, a largos traços, as principais características

desse tempo, em que Descartes nasceu, viveu e, acima de tudo, assumiu a

responsabilidade de findar e lançar as bases do tempo vindouro, de um novo

mundo; de ser o agente através do qual nasce o mundo moderno? O século

XVII é marcado por profundas transformações, período de crises em todos os

19 “Os historiadores da filosofia, que estudam doutrinas mais do que os homens, idéias mais do que pensamentos, dedicam em geral pouca importância ao intinerário pelo qual alguém se torna filósofo. [...] Os filósofos não nascem filósofos. A história em que começam por entrar não é a da filosofia, mas a da sua nação, da sua família, e também das crenças e da ciência do seu tempo, e é precisamente rompendo com essa história que descobrem a filosofia.[...] A ruptura de Descartes com os seus professores, com a sua família, com o seu país, e a sua solidão na Holanda, não serão, com efeito, os sinais da solidão do seu pensamento e daquela ruptura essencial pela qual escolheu ser filósofo?”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 59. 20 É interessante a interpretação que Châtelet faz sobre o Renascimento. “(...) Critico o termo ‘renascimento’... Na verdade, o que se chama ‘renascimento’ não passa da brutal radicalização de uma série de progressos feitos nos séculos precedentes. De uma só vez, todos esses progressos – que, por motivos e causas múltiplas, se acumularam de maneira um tanto secreta, sem entrar em contato uns com os outros – interagem subitamente entre si. Isto cria o evento maior que se chama habitualmente ‘Renascimento’. Talvez fosse mais justo chamá-lo ‘aparecimento’ ou ‘afloramento’ da modernidade”. CHÂTELET, F. Uma história da razão, p. 52. 21 “Afirma-se muitas vezes que o espírito de Descartes foi o próprio espírito do seu século, há quem se compraza em descobrir analogias entre os temas cartesianos e aqueles que os escritores clássicos desenvolveram, considera-se que Descartes exerceu uma influência decisiva, não apenas sobre a ciência e a filosofia do seu tempo, mas ainda sobre a sua literatura: não se supõe esta, depois de 1660, como finalidade suprema, a procura e a expressão da verdade? Não tem ela o culto da razão? De fato, apesar da hostilidade da escola, de numerosos sábios (como Fermat e Reberval), da maioria dos jesuítas, do próprio Parlamento de Paris, as idéias de Descartes difundiram-se largamente, não se pode traçar a história do pensamento francês e até europeu, a partir de 1650, sem lhe atribuir um importantíssimo lugar”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 141. 22 HEGEL, citado por HUISMAN, D. Dicionário dos filósofos, p. 269.

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campos da cultura: na política, na teologia, na filosofia, nas ciências e nas artes.

Crise de ruptura, de mutação, entre o pensamento antigo, que ainda não se fora

completamente, e o pensamento novo, que ainda não se afirmara inteiramente.

Contudo, é um dos momentos mais ricos na história do pensamento ocidental.

O mundo está “de cabeça para baixo”, nada mais se encontra no seu “devido

lugar”, o homem se encontra, como que perdido, sem referência, sem verdade,

sem norte; parece o fim dos tempos, como bem afirma o Pe. Mersenne: “não

vos parece – escreve ele a Ruarus – o anúncio do fim do mundo?”23. Pascal, por

sua vez, se apavora com “o silêncio dos espaços infinitos”24. O poeta John

Donne, em 1611, sintetiza, de forma exemplar, o estado de crise em que vive o

homem desse período:

“A nova filosofia põe tudo em dúvida,

O elemento do fogo está completamente extinto,

O sol está perdido, e também a terra,

E nenhum espírito humano tem com o que se orientar para

A procurar.

E os homens confessam livremente que este mundo está em

Ruínas, quando entre os planetas e o firmamento eles

Procuram tantos mundos novos;

Eles vêem então que tudo está de novo pulverizado em Átomos,

Tudo está em pedaços, toda a coerência perdida (...)25.

Neste cenário de incertezas, de dúvidas, de um quase pavor diante da completa

desordem referencial do mundo, renasce uma filosofia típica dos períodos de

crise; o ceticismo, em que as certezas e as verdades perdem o domínio sobre a 23 Apud, LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 263. 24 “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”. PASCAL, B. Pensamentos, frag. 206, Col. Os pensadores, p. 91. 25 DONNE, J. An anatomy of the world. Apud, DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento, p. 34.

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representação do mundo material e espiritual; em que a verdade, ordenadora do

real, com a qual se constrói uma determinada imagem do mundo, perde sua

força de representação, tornando-se vulnerável às críticas e às incertezas: “tudo

é possível, nada é verdadeiro. E se nada é seguro, só o erro é certo”26.

O ceticismo, que renasce no final da Idade Média, tem como seus mais ilustres

representantes: Agrippa (1485-1535), Sanchez (1523-1601), Charron (1541-

1603) e Montaigne (1533-1592). Mantendo suas diferenças, têm uma

orientação comum: negar não só as verdades das filosofias dogmáticas, como

também negar a própria possibilidade de se conhecer a verdade sobre qualquer

coisa.

A Europa está em crise. A síntese feita por G. Granger retrata as crises políticas

e religiosas, que tornaram o século em que viveu Descartes, um século

conturbado. “Poderia talvez haver a tendência de confundir o meio século em

que viveu Descartes com o período faustoso do ‘Grande Século’. Entre 1598,

ano da separação dos Países-Baixos da Coroa da Espanha, e 1650, data da

nomeação de João Witt como grande Pensionário da Holanda, são cinqüenta

anos, não de equilíbrio e de Classicismo, mas de perturbações, de conflitos e de

expressão barroca: é a época, não de Luíz XIV, mas da Mãe Coragem. Em

1619, estoura a guerra nascida de uma revolta protestante dos tchecos contra o

Imperador, e que devia durar trinta anos, devastando as Alemanhas. As alianças

se entrecruzam entre países católicos e protestantes, potências marítimas e

potências terrestres. A política interior dos Estados não é menos conturbada:

contestação do poder real em França pela nobreza e pela burguesia togada: é a

26 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 19.

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Fronda; luta nas Províncias Unidas entre os clientes da Família de Orange e os

grandes burgueses holandeses; revoluções na Inglaterra e ditadura de

Cromwell. E, por cima, os conflitos religiosos que opõem reformistas e

católicos e, muitas vezes mesmo, em cada confissão, duas tendências

violentamente antagônicas: uma liberal, a outra rigorista. É o caso do

calvinismo holandês entre os partidários liberais de Arminius e os de Gomar,

ferozmente ortodoxo. É também um pouco o caso do catolicismo francês, em

que o Cardeal de Bérulle se apresenta como um reformador. Sem dúvida é sob

esta forma religiosa que se manifestam então na consciência dos

contemporâneos os antagonismos mais profundos”27. J. Moutaux acrescenta

por sua vez: “o feudalismo desagrega-se e o cristianismo, já tendo enfrentado

muitos cismas, começa a se cindir mais uma vez; a autoridade da Igreja

Católica romana é contestada no seu próprio seio; a cristandade, união do

cristianismo e do feudalismo, se desloca”28. A ciência de Aristóteles, que tão

bem serviu à escolástica, começa a perder sua força de representação

verdadeira sobre o mundo; os navegantes retornam de longas viagens e

anunciam a descoberta de novos mundos29; a imprensa propaga, por todos os

cantos, essas novas conquistas e, assim, tanto estas como as concepções que as

acompanham se espalham por todos os cantos. O conhecimento e o saber se

libertam das clausuras clericais. Agora, tudo pode ser conhecido, discutido,

contestado, não só por uma elite intelectual, mas também pelo homem comum

que não tinha acesso à língua culta. A imprensa, de certa forma, traduzindo e

27 GRANGER, G.-G. Introdução, In: DESCARTES, R. Obra escolhida, p. 28-29. 28 MOUTAUX, J. Introdução, In: A Utopia – um convite à filosofia, p. 15. 29 Referindo-se às grandes conquistas marítimas dos portugueses, escreve Eduardo Bueno: “Para muitos historiadores, é justamente a ‘abertura’ do mundo desencadeada pelos navegadores de Portugal que estabelece, mais que o advento da imprensa ou a queda de Constantinopla, o legítimo início da Era Moderna. Ao se aventurarem ‘por mares nunca dantes navegados’, os portugueses derrubaram os mitos da geografia arcaica e provaram, com adorável arrogância, que o ciclo do saber não estava fechado a sete selos. Sua aventura marítima foi o primeiro processo humano de dimensões planetárias”. Brasil: uma História; p. 28-29.

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divulgando as novas idéias, democratiza a razão: todos os homens são capazes

de ler, entender e interpretar a ordem do mundo – o bom senso é a coisa do

mundo melhor partilhada30. A democratização da razão retira da Igreja o papel

que exerceu com “divina autoridade”, de, sozinha, traduzir e revelar ao homem

a verdade sobre o mundo. Sem exagero, pode-se dizer que a perda do domínio

da verdade corresponde à perda do domínio do mundo.

Entre os séculos XV e XVII, período em que, sem muita precisão, inicia-se o

nascimento do mundo moderno e o fim do mundo que o precede, processa-se

uma verdadeira revolução na história da humanidade. Muitos são os

movimentos transgressores ocorridos nesse período31. Talvez não seja de todo

despropositado afirmar que perpassa por eles um espírito de reforma: querem

emendar, melhorar, aliviar, mas retomando os fundamentos, voltando aos

princípios, querem re-formar, re-fazer, re-fundar32.

Há conquistas que iniciadas no século XIV se estendem até o século XVII.

Idéias e atitudes que já anunciam o declínio da Idade Média, que alimentam o

espírito humanista e que contribuem para o surgimento de um novo tempo:

Dante (1265-1321), Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), por

exemplo, tornam o uso do “vulgar” tão respeitado quanto o latim e, assim,

alargam o alcance de seus escritos. Textos gregos são retraduzidos ou 30 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 41. 31 “(...) pelo menos no que toca à filosofia da natureza, o historiador é levado a sentir que, na parte final do século dezesseis, um consenso essencialmente aristotélico se dissolveu para ser substituído, não por uma, mas por uma multiplicidade de escolas: atomistas, cartesianos, hermetistas e paracélsicos, helmontianos, matemáticos platônicos e pitagóricos, ecléticos e individualistas de muitos tipos”. HALL, A. R. A Revolução na Ciência 1500 -1750, p. 247. 32 Cf. MOUTAUX, J. Introdução, In: A Utopia – um convite à filosofia, p. 15.

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traduzidos pela primeira vez (a totalidade dos Diálogos de Platão, por

exemplo); a Reforma luterana marca a divisão do cristianismo ocidental;

Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) renovam a

astronomia. Acrescenta-se a matematização da natureza.

Pode se dizer que tendencialmente dá-se uma dessacralização do mundo e

instaura-se o homem como senhor e possuidor da natureza e da história. O

teocentrismo começa a declinar e anuncia-se o antropocentrismo como

referência a partir da qual o homem e o mundo adquirem sentido. Sobre essa

denominada revolução científica do século XVII, escreve Koyré: “Uma tal

mutação – uma das mais importantes, senão a mais importante depois da

invenção do cosmos pelo pensamento grego – foi, decerto, a revolução

científica do século XVII”33.

É neste burburinho cultural que se encontra Descartes, trabalhando

silenciosamente34, a ruminar o seu tempo, a buscar saídas para a reconstrução,

melhor, a construção de um novo edifício do saber, que possa superar e, ao

mesmo tempo, suportar as grandes questões emergidas da grande crise deste

período. Caberá a Descartes, de certo modo, o papel de fechar as portas do

passado e abrir as do futuro; caberá a ele a tarefa de traçar a nova cartografia

da razão, a cartografia que indicará os caminhos a serem percorridos pela

33 KOYRÉ, A. Estudos galilaicos, p. 14. 34 Até 1637, ano da publicação do Discurso do Método, nada da filosofia de Descartes tinha vindo a público; encontrava-se trabalhando em silêncio, comunicando os resultados das suas pesquisas unicamente a uns poucos amigos com os quais se correspondia.

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humanidade no final do século XVII35. Reconhecendo essa caracterísitica

originária da filosofia de Descartes, escreve Hegel: “Con Cartesio entramos, en

rigor, desde la escuela neoplatónica y lo que guarda relación con ella, en una

filosofía propia e independiente, que sabe que procede sustantivamente de la

razón y que la conciencia de sí es un momento esencial de la verdad. Esta

filosofía erigida sobre bases proprias y peculiares abandona totalmente el

terreno de la teología filosofante, por lo menos en cuanto al principio, para

situarse del otro lado. Aquí, ya podemos sentirnos en nuestra casa y gritar, al

fin, como el navegante después de una larga y azarosa travesía por turbulentos

mares: terra!”36.

No entanto, é preciso não se deixar levar pura e simplesmente pelas declarações

explicitas de Descartes. De fato, este parece fazer tabula rasa de todo saber

filosófico que o antecedeu, não reconhecendo, neste, nenhum valor a partir do

qual se possa fundamentar o conhecimento certo e verdadeiro sobre qualquer

coisa. É preciso começar do zero como se ninguém antes tivesse filosofado. Por

outro lado, parece reconhecer que não pretende reformar nada além dos seus

próprios pensamentos: “nunca o meu intento foi além de procurar reformar

meus próprios pensamentos, e construir um terreno que é todo meu”37. Koyré

comenta: “Descartes por mais que queira – muito sinceramente, sem dúvida –

35 “De fato, apesar de toda a vigorosa influência contrária de Newton, a luz lançada por Descartes iria estender-se até ao clarão mais vasto do Iluminismo setecentista e à Encyclopédie Diderort-Dalembet que constitui o seu principal monumento. Além disso, Descartes foi um matemático puro de gênio que também produziu trabalhos de imortal valor na física matemática – se não tivesse sido filósofo continuaria a ter grande dignidade na história da ciência. Em todos os aspectos menos num, a investigação experimental sistemática, Descartes destacava-se por altura da sua morte, e posteriormente aos olhos de todos os que nessa época eram capazes de compreender os seus livros, como o grande luminar, o homem que abriria um vasto caminho à posteridade”. HALL, A. R. Op. Cit., p. 248. 36 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la historia de la filosofía, p. 352. 37 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 51.

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restringir-lhe [da sua filosofia] o alcance, por mais que nos assegure que nunca

quis fazer outra coisa senão reformar as suas próprias idéias, com as quais, no

fim de contas, é livre de fazer o que lhe apetecer, não pode deixar de se dar

conta que acaba de aperfeiçoar a mais formidável máquina de guerra – guerra

contra a autoridade e a tradição – que o homem alguma vez possuiu”38. Quanto

à sua postura de filosofar, como se antes sequer tivesse existido filosofia,

projeto que o leva a negar toda a filosofia que o antecedeu, não se

reconhecendo como herdeiro de nenhuma delas, é preciso ter em conta pelo

menos os conhecidos trabalhos de Étienne Gilson, como por exemplo, os

Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système

cartésien39. Na Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia, Descartes faz uma

avaliação crítica de todas as filosofias, bem como dos filósofos que o

antecederam. O resultado dessa avaliação é terrível e até cruel. Todos

sucumbem à sua apreciação crítica: “Ora, desde sempre houve grandes homens

que buscaram encontrar [...] as primeiras causas e os verdadeiros Princípios de

que se pudessem deduzir as razões de tudo o que somos capazes de saber; e são

particularmente aqueles que trabalharam nisso que foram chamados de

Filósofos. Todavia, que eu saiba ninguém até o presente teve sucesso nesse

intento”40. Considerando o pensamento grego e, neste, seus dois maiores

representantes, Platão e Aristóteles, Descartes os destitui de qualquer

relevância filosófica que possa ser, verdadeiramente, levada a sério, creditando-

lhes incertezas e até mesmo uma certa falta de sinceridade no ato de filosofar:

38 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 16-17. 39 Descartes se excedeu, exagerou, ao negar ser herdeiro de qualquer contribuição filosófica do passado, particularmente do mundo medieval. O próprio Gilson escreve, logo no início deste livro: “Les recherches recentes poursuivies autour de Descartes ne permettent guère de mettre en doute l’influence que certains mouvements théologiques ont exercé sur sa pensée. La conception cartésienne de la liberté divine, la doctrine du mal, de l’erreur et du jugement, la conception de la liberté humaine enfin, ne s’expliquent pas complètement si l’on néglige la considération de ce que l’enseignement de la Flèche, la lecture de S. Thomas et la fréquentation des néo-platoniciens de l’Oratoire peuvent y avoir introduit”. p. 9. 40 DESCARTES, R. Carta-prefácio..., p. 9, (grifo nosso).

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“Os primeiros e principais de que temos os escritos são Platão e Aristóteles,

entre os quais não houve outra diferença senão que o primeiro, seguindo as

pegadas de seu mestre Sócrates, ingenuamente confessou que nada procurava

encontrar de certo, e contentou-se em escrever coisas que lhe pareceram ser

verossimilhantes, imaginando para tal feito alguns Princípios com os quais

buscava explicar as outras coisas; ao passo que Aristóteles teve menos

franqueza e, se bem que tivesse sido por vinte anos discípulo daquele e não

tivesse outros princípios senão os dele, mudou inteiramente a forma de

enunciá-los e os propôs como verdadeiros e seguros, embora não haja nenhum

sinal de que os tenha alguma vez estimado como tais”41. Não menos crítico é

Descartes ao se referir à escolástica medieval42: “... a maioria daqueles que

nestes últimos séculos quiseram ser filósofos seguiram cegamente Aristóteles,

de forma que freqüentemente corromperam o sentido de seus escritos,

atribuindo-lhe diversas opiniões que ele não reconheceria como suas se

retornasse a este mundo (...)”43. Mesmo aqueles que, segundo Descartes, não

seguiram a filosofia de Aristóteles, “dentre os quais estiveram vários dos

melhores espíritos”, não obtiveram qualquer êxito no filosofar, pois não

puderam se livrar da influência de Aristóteles, “já que [as opiniões deste] são as

únicas ensinadas nas escolas”44. Portanto, de forma direta ou indireta, todos

estão condenados à influência da filosofia de Aristóteles e, como conseqüência,

não foram capazes de chegar “ao conhecimento dos verdadeiros princípios

41 Idem, p. 9-10. 42 “Às portas do século XIII, um fato novo se produz na história das escolas: a emergência de uma instituição – a Universidade – na qual mestres eclesiásticos especialistas da cultura se associam para formar um corpo profissional segundo o modelo das corporações de ofício. Consagrado pelo papa, esse corpo é englobado pela Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída à jurisdição dos bispos e dos senhores, está submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle doutrinário. Essa nova instituição desenvolve-se de início em Paris e em Oxford (o studium de Bolonha é um caso à parte) e não é separável da emergência da cultura – fortemente organizada e privilegiada de maneira exclusiva – que chamamos ‘escolástica’”. GOFF, J. le.; SCHMITTA, J.-C. Dicionário – temático e técnico – Medieval. v. I, verbete: escolástica, p. 367. 43 DESCARTES, R. Carta-Prefácio..., p. 12. 44 Idem, ibidem.

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(...)”45. Depois de ter reconhecido como estéril todo o terreno filosófico que o

antecedeu, Descartes anuncia que aquele que nunca filosofou, que não recebeu

nenhuma influência da tradição filosófica, é o que está melhor preparado para

conhecer a verdadeira filosofia, ou seja, a nova filosofia que ele pretende

anunciar ao mundo. “Donde é necessário concluir que aqueles que menos

aprenderam de tudo quanto foi até aqui nomeado Filosofia são os mais capazes

de aprender a verdadeira”46. Logo em seguida, Descartes apresenta onde se

encontra a verdadeira filosofia, os verdadeiros princípios, através dos quais é

possível um conhecimento verdadeiro e certo sobre todas as coisa. “Depois de

fazer entender bem essas coisas, gostaria de acrescentar aqui as razões que

servem para provar que os verdadeiros Princípios pelos quais se pode chegar

ao mais alto grau de sabedoria, no qual consiste o soberano bem da vida

humana, são os que pus neste livro”, isto é, Os Princípios da Filosofia47.

Feita a apreciação crítica de toda a filosofia que o antecedeu, Descartes volta-se

para si mesmo, buscando avaliar criticamente o próprio processo de formação

intelectual. O resultado da apreciação, tal qual foi o resultado da apreciação da

tradição filosófica, não será muito positivo. Descartes, também aqui, não

encontra quase nada que possa ter valor representativo. Depois de reconhecer

que foi “nutrido nas letras desde a infância”48, que teve os melhores mestres de

seu tempo49, que estudou “numa das mais célebres escolas da Europa”50,

45 Idem, ibidem. 46 Idem, p. 14. 47 Idem, ibidem, (grifo nosso). 48 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. 49 “El nombre del profesor de filosofía de Descartes fué encontrado por el P. Rochemonteix con ayuda de la fecha para los estudios de Filosofía de Descartes (1609 – 1612), proporcionada por Baillet, y una lista de todos os profesores de La Flèche, que se conserva en los archivos de Gesù en Roma. Este profesor era el P. Francisco Véron. Antes sólo se conocía, por una carta de Descartes, el nombre de su pasante, el P. Nöel”. HAMELIN, O. El Sistema de Descartes, p. 24.

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Descartes parece encontrar-se de posse, não de sólidos conhecimentos, mas,

ao contrário, cheio de dúvidas e incertezas: “me achava enleado em tantas

dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando

instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância”51.

Todo o conhecimento adquirido era disperso, peças soltas que não

possibilitavam uma unidade sistemática52. Tendo avaliado os conhecimentos

oferecidos pela teologia53, pela filosofia54, pelas diversas ciências, pelos

conhecimentos originários ou derivados da astrologia, da alquimia e mesmo da

50 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. Descartes tinha uma profunda admiração, não só pelo colégio de la Flèche, bem como por seus antigos mestres. Em uma carta, de 12 de setembro de 1638, respondendo à consulta de um amigo sobre a escolha de um bom colégio para os estudos filosóficos de seu filho, diz Descartes: “Or encore que mon opinion ne soit pas que toutes les chose qu’on enseigne en philosophie soient aussi vraies que l’Évangile, toutefois, à cause qu’elle est la clef des autres sciences, je crois qu’il est très utile d’en avoir étudié le cours entier, en la façon qu’il s’enseigne dans les écoles des Jésuites, avant qu’on entreprenne d’élever son esprit au-dessus de la pédanterie, pour se faire savant de la bonne sorte. Et je dois rendre cet honneur à mes maitres, que de dire qu’il n’y a lieu au monde, où je juge qu’elle s’enseigne mieux qu’à la Flèche”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 89-90; AT., II, p. 377-378. “De 1604 à 1612, il est élève au collège de la Flèche, fondé par Henri IV et dirigé par les Jésuites. Il y reçu, dans les trois dernières années, un enseignement de la philosophie, consistant en exposés, résumés ou commentaires des oeuvres d’Aristote: l’Organon dans la première année, les livres physiques dans la seconde, la Métaphysique et le De anima dans la troisième; enseignement qui, selon la tradition, était destiné à préparer à la théologie. Dans la seconde année, il étudie en outre les mathématiques et l’algèbre dans le traité récent du P. Clavius. En 1616, il passe à Poitiers ses examens juridiques”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, v. II, p. 46. Sobre a exatidão das datas que correspondem aos estudos de Descartes no colégio de La Flèche, existe discordância entre seus intérpretes. Parece bastante confiável a datação feita por Geneviève Rodis-Lewis: “René Descartes entrou para o colégio de la Flèche na Páscoa de 1607 e saiu dali em setembro de 1615. Às vezes ainda se discutem essas datas, embora tenham sido finalmente abandonadas as de Baillet, que para lá o enviara pouco depois do irmão mais velho, Pierre, já em 1604, ano da abertura do colégio, onde os dois teriam permanecido até 1612”. Descartes – uma biografia, p. 25. 51 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. 52 “O ensino recebido por Descartes foi um ensino sem unidade, porque a cultura do século XVII, que então começava, era uma cultura sem unidade”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 17. 53 “Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima da nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza de meu raciocínio, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma assistência do céu e ser mais do que homem”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46, (grifo nosso). 54 “Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se disputa, e por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil”. Idem, ibidem.

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tradição55, Descartes reconhece que, à parte a matemática56, nenhum

conhecimento adquirido em todo seu processo de formação constitui base

segura e certa para fundar um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa.

Descartes toma então uma atitude drástica; resolve fechar o livro do passado,

desconhecer todos os conhecimentos adquiridos e, contando apenas consigo

mesmo, lançar-se em uma nova aventura de aprendizagem, na leitura do

grande livro do mundo57, esperando encontrar neste um conhecimento mais

sólido e verdadeiro do que todo aquele que lhe foi ensinado em seus quase dez

anos no colégio la Flèche58: “Foi por isso que, mal a idade me permitiu sair da

sujeição dos meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E

resolvendo-me a não procurar mais outra ciência senão a que pudesse descobrir

em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da

minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a freqüentar pessoas de

diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a

experimentar-me a mim próprio nos encontros que a sorte me proporcionava e

55 “Depois, quanto às ciências, na medida em que tomam seus princípios da filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister, para alívio de minha fortuna; e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falso título. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pela predição de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem”. Idem, ibidem. 56 “Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado”. Idem, p. 45. 57 A metáfora do “livro do mundo” tem uma longa história, desde os Padres da Igreja e os doutores medievais. Descartes e Galileu a usam, reinterpretendo-a, em sentidos distintos: Galileu a aplica ao mundo da natureza (“A filosofia encontra-se escrita neste ‘grande livro’ que continuamente se abre aos olhos [isto é, o universo] ...” – GALILEU, G. O Ensaidor, p. 21) e Descartes à sociedade humana (“cortes, exércitos, pessoas de diversos humores e condições” – cf. nota 71). 58 “Descartes deixa o colégio em 1614. Em 1616 faz em Poitiers o seu bacharelado e a sua licenciatura em direito. Em 1618 alista-se nos Países Baixos no exército de Maurício de Nassau”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 18.

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por toda parte a refletir sobre as coisas que se me apresentassem, de modo que

delas pudesse tirar algum proveito”59.

Esta apreciação de Descartes sobre sua formação intelectual, seja a adquirida

com a leitura dos filósofos do passado, seja a recebida nos bancos escolares,

serve para mostrar seu ponto de partida. Pode se chamar esse ponto de partida

de o marco zero do conhecimento ou, como dirão mais tarde os empiristas, a

página em branco do conhecimento. É uma total suspensão dos conhecimentos

adquiridos, uma verdadeira epoché intelectual. É a partir desse marco zero que

Descartes enuncia os primeiros fundamentos ou os primeiros princípios que

fundamentarão todo o saber humano. Assim, Descartes propõe-se, não só a

apresentar uma nova forma de filosofar, como também a reavaliar as verdades

já identificadas pela tradição filosófica e apresentar uma nova forma de ver,

interpretar e utilizar a herança do passado: “Ainda que todas as verdades que

ponho entre meus Princípios tenham sido conhecidas desde sempre por todo o

mundo, não houve todavia ninguém até o presente, que eu saiba, que as tenha

reconhecido como os Princípios da Filosofia, isto é, como tais que se possa

delas deduzir o conhecimento de todas as outras coisas que há no mundo”60. O

que evidencia a estratégia usada por Descartes para mostrar que todo o

conhecimento que pretende construir a partir desse momento, tem nele,

unicamente nele, sua fonte originaria. Apesar de sua alardeada humildade

intelectual, Descartes sustenta que mesmo aquilo que herdou dos predecessores

ou aprendeu com alguém recebe de sua parte um novo sentido e uma nova

função. Quer, assim, evidenciar duas coisas: primeiro, que cabe a ele a

59 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47. 60 DESCARTES, R. Carta prefácio dos princípios da filosofia, p.16.

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responsabilidade de sozinho ter descoberto toda a ordem do universo; segundo,

que toda sua filosofia (ou melhor, A filosofia) lhe pertence integralmente, é

toda sua, nada nela é propriamente herança ou resultado de qualquer

contribuição do saber que o antecedeu ou que lhe era contemporâneo. É o que

ilustra a carta de Descartes, de 17 de Outubro de 1630, dirigida a Beeckman, na

qual rejeita em termos contundentes a possibilidade de ser devedor de alguma

contribuição intelectual, mesmo que esta contribuição venha de alguém como

Beeckman; além de ter sido seu amigo61, foi sob influência desse que Descartes

se entusiasmou e foi iniciado nas ciências mecanicistas. “Car je ne pouvais en

aucune façon m’imaginer que vous fussiez devenu si stupide, et que vous vous

méconnussiez si fort que de croire en effet que j’eusse jamais rien appris de

vous, ou même que j’en pusse jamais apprendre aucune chose, si ce n’est de la

façon que j’ai coutume d’apprendre de toutes les choses qui sont en la nature,

voire même des moindres fourmis, et des plus petits vermisseaux”62.

Entre os anos de 1616, em que Descartes conclui o seu bacharelado em direito,

e 1625, encontra-se cumprindo a promessa de conhecer e entender o grande

livro do mundo. Nesse período, serve o exército de Maurício de Nassau;

encontra-se com Beeckman; escreve um Compêndio de música; vai à

Dinamarca e à Alemanha, se junta ao exército do duque da Baviera. De todas as

61 Em novembro de 1618, Descartes se encontra, de maneira meramente casual, com Beeckman; desse encontro nascerá, por um longo tempo (o primeiro encontro entre Descartes e Beeckman ocorre em 1618, e a carta citada é dirigida a Beeckman em 1630 – ano em que se dá a ruptura entre eles) uma grande amizade, graças à qual Descartes receberá uma grande influência, mesmo que, como de hábito, não a reconheça. Com Beeckman, Descartes trocará uma longa correspondência e é para este que encaminha uma de suas primeiras produções intelectuais: um breve Tratado de música. “Essa amizade é excepcional, porque contribuiu para modificar toda a orientação de Descartes. Beeckman exerceu sobre o filósofo uma fascinação intelectual, dando à espontânea atração que ele sentia pelas matemáticas um alcance científico bem mais aberto do que aquelas aplicações técnicas consideradas tão pouco elevadas”. RODIS-LEWIS, G. Descartes – uma biografia, p. 42. 62 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 273; AT., I, p. 157-158.

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experiências ao longo desses anos, uma delas tem particular interesse, pois é a

partir dela que Descartes toma mais uma decisão importante em sua vida:

construir os “mirabilis scientiae fundamenta”. Trata-se do ocorrido no dia 10

de novembro de 1619 em que, na pequena vila de Ulm na Baviera, Descartes,

aos 23 anos, depois de passar todo o dia agitado com seus pensamentos, à noite

ao adormecer, tem três sonhos reveladores63. Escreve Baillet (1649- 1706),

63 Primeiro Sonho – “Depois de adormecer sua imaginação se sentiu tocada pela representação de alguns fantasmas que se apresentaram a ele, e que o aterrorizaram de tal forma que, acreditando caminhar pelas ruas, era obrigado a se revirar sobre o lado esquerdo, para poder avançar no lugar onde queria ir, porque sentia uma grande fraqueza no lado direito sobre o qual não podia se sustentar. Envergonhado de andar assim, fez um esforço para se endireitar; mas sentiu um vento impetuoso, que carregando-o numa espécie de turbilhão, o obrigou a fazer três ou quatro voltas sobre o pé esquerdo. Não foi ainda o que o aterrorizou. A dificuldade que tinha para se arrastar, fazia com que acreditasse tombar a cada passo, até que tendo avistado um colégio aberto, sobre o seu caminho, entrou lá, para ali achar um abrigo, e um remédio para o seu mal. Ele tentou alcançar a igreja do colégio, onde seu primeiro pensamento era de fazer sua oração; mas percebendo que passara um homem seu conhecido, sem o cumprimentar, quis voltar sobre seus passos para ser cordial, e foi repelido com violência pelo vento que soprava contra a igreja. Ao mesmo tempo, viu no meio do pátio do colégio uma outra pessoa que o chamou por seu nome em termos polidos e corteses, e lhe disse que, se quisesse achar senhor N. ele tinha algo para lhe dar. O senhor Descartes imaginou que fosse um melão, que haviam trazido de algum país estrangeiro. Porém o que mais o surpreendeu, foi perceber que os que se juntavam a essa pessoa em redor dele para conversar, estavam retos e firmes sobre seus pés, embora ele estivesse sempre curvado e cambaleante sobre o mesmo solo, e que o vento, que pensara derrubá-lo muitas vezes houvesse diminuído bastante”. Segundo Sonho - “Nessa situação ele adormeceu de novo, depois de um intervalo de quase duas horas com pensamentos diversos sobre os bens e os males do mundo. Logo lhe veio um novo sonho no qual acreditou ter ouvido um barulho agudo e forte que tomou como uma trovoada”. “O pavor que teve o acordou de imediato, e, abrindo os olhos, percebeu muitas fagulhas de fogo espalhadas pelo quarto. Isto já lhe acontecera várias vezes em outros tempos e não lhe era incomum despertando no meio da noite ter os olhos muito brilhantes de modo a lhe permitir entrever os objetos mais próximos dele. Mas, nessa última ocasião, ele quis recorrer a razões emprestadas da filosofia e extraiu conclusões favoráveis ao seu espírito, depois de observar ao abrir e depois ao fechar os olhos alternadamente a qualidade das espécies que lhe eram representadas. Assim seu pavor se dissipou e ele readormeceu calmo”. Terceiro Sonho – “Um momento após, ele teve um terceiro sonho, que nada teve de terrível como os dois primeiros. Neste último, ele achou um livro sobre a mesa, sem saber quem o tinha colocado ali. Ele o abriu, e vendo que era um Dicionário, se alegrou muito na esperança que ele lhe poderia ser muito útil. No mesmo instante, encontrou outro livro sob sua mão, que também não lhe era desconhecido, não sabendo de onde lhe havia aparecido. Pensou ser uma antologia de poesias de diferentes autores, intitulada Corpus poetarum. Ele teve a curiosidade de nela querer ler alguma coisa, e na abertura do livro ele se deteve sobre o verso Quod vitae sectabor iter? Etc. No mesmo momento, percebeu um homem que ele não conhecia, mas que lhe apresentou uma peça de versos começando por Est et Non, e que a ele exaltava como uma peça excelente. O senhor Descartes lhe diz que sabia o que era e que esta peça estava entre os "Idílios" de Ausônio que se encontrava na grande Antologia de poetas que estava sobre a mesa. Ele mesmo quis mostrá-la a este homem, e se pôs a folhear o livro do qual ele se gabava de conhecer perfeitamente a ordem e a economia. Enquanto procurava o lugar, o homem perguntou-lhe onde ele havia pego o livro e o senhor Descartes respondeu-lhe que não podia lhe dizer como o obteve, mas que um momento antes manuseou ainda um outro que tinha acabado de desaparecer, sem saber quem o havia levado, nem quem o havia pego novamente. Ele não tinha acabado de dizer quando viu novamente aparecer o livro na outra ponta da mesa. Mas ele observou que este Dicionário não estava mais completo como o tinha visto na primeira vez. Entretanto, se deparou com as poesias de Ausônio na Antologia dos poetas que ele folheava, e não conseguindo achar a peça que principia por Est et Non, ele diz a esse homem que ele conhecia uma do mesmo poeta ainda mais bela que

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primeiro biógrafo de Descartes: “Il nous apprend que, le X de novembre 1619,

s’étant couché tout rempli de son enthousiasme, et tout occupé de la pensée

d’avoir trouvé ce jour-là les fondements de la science admirable, il eut trois

songes consécutifs, mais assez extraordinaires pour s’imaginer qu’ils pouvaient

lui être venus d’en haut”64. Deve-se lembrar, entretanto, e isso é muito

importante para bom entendimento da descoberta de Descartes, que tal

descoberta dos fondements de la science admirable, não ocorreu à noite, mas

sim durante o dia, período em que Descartes encontrava-se desperto, entretido

com seus próprios pensamentos65. Se não se tiver cuidado e seguir os passos de

Baillet, pode-se creditar a descoberta de Descartes a uma crise de caráter

religioso, conseqüência de fadiga intelectual66. “Il le fatigua de telle sorte que

esta e que ela começava por Quod vitae sectabor iter? A pessoa pediu para lhe mostrar e o senhor Descartes se considerou obrigado a procurá-la, quando ele encontrou diversos retratinhos gravados em talha-doce, o que lhe fez dizer que esse livro era bem bonito, mas não era da mesma impressão que aquele outro que ele conhecia. Estava nesse ponto, quando os livros e o homem sumiram e se apagaram da sua imaginação, sem contudo acordá-lo”. Olympica; AT., X, p. 181 (Texto traduzido e citado por Luci Buff, Sonhos sobre meditações de Descartes, p. 28-31. “Quoi qu’il en soit, l’impression qui lui resta de ces agitations lui fit faire le lendemain diverses réflexions sur le parti qu’il devait prendre. Sans trop présumer du sens favorable qu’il avait donné à ses songes, il recourut à Dieu tout de nouveau pour le prier de lui faire connaître sa volonté sans énigme, de vouloir l’éclairer, et le conduire dans la recherche de la vérité. Il tâcha même d’intéresser la Sainte Vierge dans cette affaire qu’il jugeait la plus importante de sa vie: et prenant occasion d’un voyage qu’il méditait en Itaile, il forma le voeu d’un pèlerinage à Notre-Dame-de-Lorette”. BAILLET, A. Vie de Monsieur Descartes, p. 38-39. 64 Continua BAILLET: “Il crut apercevoir à travers de leurs ombres les vestiges du chemin que Dieu lui traçait pour suivre sa volonté dans son choix de vie, et dans la recherche de cette vérité qui faisait le sujet de ses inquietudes. Mais l’air spirituel et divin qu’il affecta de donner aux explications qu’il fit de ses songe tenait si fort de cet enthousiasme dont il se croyait échauffé, que l’on aurait été porte à croire qu’il aurait eu le cerveau affaibli, ou qu’il aurait bu le soir avant que de se coucher. En effet, c’était la veille de saint Martin, au soir de laquelle on avait coutume de faire la débauche au lieu où il était, comme en France. Mais il nous assure qu’il avait passé le soir et toute la journée dans une grande sobriété, et qu’il y avait trois mois intiers qu’il n’avait bu de vin”. Idem, p. 38. 65 Cf. DESCARTES, R. Olympiques, Alq., I, p. 52, nota 3. 66 “‘La vie de M. Descartes par M. Baillet, disait Malebranche, n’est propre qu’à rendre ridicule ce philosophe et sa philosophie’. Huygens, fort approuvé par Leibniz, écrivait de son côté: ‘Cet endroit où il raconte comment il avaìt le cerveau trop échauffé et capable de visons, et son voeu à Notre-Dame de Lorette, marque une grande faiblesse; et je crois qu’elle paraîtra telle, même aux catholiques qui se sont défaits de la bigoterie’”. Apud, MARITAIN, J. Le sogne de Descartes, p. 8. Maritain, apesar de reconhecer que Baillet se excede na interpteração religiosa que faz da vida de Descartes, não concorda plenamente com as interpretações feitas pelos autores, acima citados, sobre Baillet. Bouillier, falando sobre a importância de Baillet como biográfo de Descartes, diz que ele “est de beaucoup le meilleur et le plus complet de tous les biographes de Descartes. [...] Mas malheureusement Baillet, qui est tout à fait dépourvu d’esprit philosophique et de sens critique”. Histoire de la philosophie cartésienne, I, p. 31. Entretanto, não se pode negar, à parte todas as críticas feitas a Baillet como biógrafo de Descartes, que seu texto tornou-se referência canônica para todos os futuros

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le feu lui prit cerveau: et il tomba dans une espèce d’enthousiasme qui disposa

de telle manière son esprit, déjà abattu, qu’il le mit en état de recevoir les

impressions des songes et des visions”67. A descoberta da “ciência admirável”

antecede os sonhos, que ocorreram à noite; estes parecem ser e, com certeza

são, o resultado da mente que passou o dia agitada e entusiasmada com sua

grande descoberta. Os sonhos e suas interpretações por Descartes teriam antes

um caráter confirmatório. O próprio Descartes, dezoito anos depois, no

Discurso do Método, deixa claro o cenário do dia no qual nasceu os fondements

de la science admirable:

“Achava-me, então na Alemanha, para onde

fora atraído pela ocorrência das guerras, que

ainda não findaram, e, quando retornava da

coroação do imperador para o exército, o início

do inverno me deteve num quartel, onde, não

encontrando nenhuma freqüentação que me

distraísse, e não tendo, além disso, por

felicidade, qualquer solicitude que me

perturbasse, permanecia o dia inteiro fechado

sozinho num quarto bem aquecido, onde

dispunha de todo o vagar para me entreter com

os meus pensamentos. Entre eles, um dos

primeiros foi que me lembrei de considerar que,

amiúde, não há tanta perfeição nas obras

compostas de várias peças, e feitas pelas mãos

estudiosos do meditador. “Apesar de suas falhas, a biografia produzida por Baillet continua a ser, sem a menor dúvida, a mais importante fonte isolada de nosso conhecimento sobre a vida de Descartes a partir de seus próprios textos”. GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 511. 67 BAILLET, A. Op. Cit., p. 37.

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de vários mestres, como naquelas em que um só

trabalhou”68.

Mesmo que a idéia de um método só se concretize, de forma definitiva e

acabada, dezoito anos depois, no Discurso do Método, é em 10 de novembro de

1619 que se tem a data de seu nascimento69. É a possibilidade da descoberta de

um método, através do qual possa dar conta de todo e qualquer saber humano e

unificá-lo, que tanto entusiasmou Descartes naquele dia. Poder-se-ia, portanto,

com segurança, considerar tal data como o marco zero do racionalismo

cartesiano, ponto de partida para estabelecer as regras, certas e seguras, para a

nova racionalidade, marco inicial para o nascimento do mundo moderno70.

Assim, Descartes toma a decisão de abandonar o “livro do mundo” e buscar no

próprio interior, em si mesmo, o conhecimento da verdade. Como

conseqüência, reconhece que o verdadeiro conhecimento não encontra-se fora

do sujeito, mas tem nele, unicamente nele, sua fonte originária.

68 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 48. 69 “Creio ter sido essa visão que marcou o início de sua teoria geral do ‘método’, à qual ele se referiu na afirmação de haver descoberto os ‘fundamentos de uma ciência admirável (mirablis scientiae fundamenta)’. Baillet data de 10 de novembro de 1619 essa ocasião”. GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 145. 70 “Nul doute qu’avant la nuit du 10 novembre 1619, Descartes ne préférat de lui-même, dans la recherche de la verité scientifique, l’élan spontané de son imagination et de son intelligence à l’enseignement de l’Ecole; mais désormais ces idées révolutionnaires, subversives, en apparence au moins, et où risquait d’entrer l’orgueil – où peut-être il pouvait voir le mauvais esprit le poussant vers ‘le Temple’, - ces idées n’étaient-elles pas consacrées par Dieu même? N’était-ce pas comme si Descartes eût entendu ce conseil divin: ‘Va, l’ensemble de toutes les sciences tu dois l’édifier par toi-même; imite en cela les poètes, fie-toi comme eux à ton inspiration; laisse de côté l’enseignement des livres; les germes de science qui sont en toi se développeront spontanément et tu doteras l’humanité de la science universelle?’ Si notre hypothèse se tient, si elle est acceptable, nous comprendrons du moins que prenant note de cette date, Descartes ait pu rappeler que ce jour-là il trouvait, à travers les visions de son ‘enthousiasme’, les fondements de la véritable science, de celle qui mérite notre admiration”. MILHAUD, G. Descartes savant, p. 58.

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“Mas, depois que empreguei alguns anos em

estudar assim no livro do mundo, e em procurar

adquirir alguma experiência, tomei um dia a

resolução de estudar a mim próprio e de

empregar todas as forças de meu espírito na

escolha dos caminhos que devia seguir. O que

me deu muito mais resultado, parece-me, do que

se jamais tivesse me afastado de meu país e de

meus livros”71.

O resultado dessa tomada de decisão de Descartes é a descoberta do método:

“Mas não temerei dizer que penso ter tido muita

felicidade de me haver encontrado, desde a

juventude, em certos caminhos, que me

conduziram a considerações e máximas, de que

formei um método, pelo qual me parece que eu

tenha meio de aumentar gradualmente meu

conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao

mais alto ponto, que a mediocridade do meu

espírito e a curta duração da minha vida lhe

permite atingir”72.

71 DESCARTES, R. Discurso do Método, p, 48. 72 Idem, p. 42.

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Tal tomada de decisão por Descartes está diretamente relacionada com o

encontro que teve, casualmente, com Beeckman73. Este encontro será

fundamental na primeira grande virada intelectual de Descartes. Beeckman é

quem o leva a despertar o espírito para as ciências especulativas,

particularmente a físico-matemática e a geometria74. Estudos estes que

conduzem Descartes, mais tarde, já livre da influência de Beeckman, a fazer

sua grande descoberta - um método universal para todas as ciências.

“[...] Beeckman est bien l’auteur responsable du

retour de Descartes aux spéculations théoriques,

mais ce qu’il engage Descartes à étudier, ce sont

uniquement les Mécaniques et la Géométrie. En

avril 1619, Descartes lui même ne pense pas à

autre chose; il sait qu’il doit à Beeckman d’être

revenu à ces études, il le reconnaît et l’en

remercie. Mais, entre cette date et la rédaction

du Discours, un fait important s’est produit: les

études purement mathématiques auxquelles

73 “Según ya es tradicional relatar desde la biografia de Baillet, el joven Descartes, inquieto por descifrar un cartel en flamenco que presentaba un problema matemático, pidió que se lo tradujera al latín otro de los curiosos que lo observaban; este resultó ser Isaac Beeckman, un intelectual holandés preocupado por los problemas de física al igual que Galileo en Italia, y de esta forma casual nació una fértil relación entre ambos”. TURRÓ, S. Descartes – Del hermetismo a la nueva ciência, p. 207. 74 Diferentemente da carta, quase raivosa, que Descartes dirige a Beeckman em 17 de outubro de 1630, no dia 23 de abril de 1619, escreve de forma muito amigável ao mesmo, reconhecendo a contribuição deste em sua tomada de posição intelectual: “Car vous êtes vraiment le seul à avoir secoué ma nonchalance; seul vous avez rappelé mes connaissances déjà presque échappées de ma mémoire, et vous avez ramené à de meilleures pensées mon esprit qui s’éloignait de toute occupation sérieuse. Si donc, par hasard, il sort de moi quelque chose qui ne soit pas à mépriser, vous pourrez à bon droit le réclamer entièrement pour vous”. Descartes, R. Correspondência, Alq., I, p. 41-42; AT., X, p. 162-163. Ainda sobre a relação entre Descartes e Beeckman, escreve Salvio Turró: “Para calibrar la importância de estas relaciones en el desarrolo de la obra cartesiana, basta dicir que, en el corto espacio de dos meses a lo sumo que duraron las conversaciones y discusiones entre ambos personajes, pues Beeckman partió de Breda el 2 de enero del siguiente año, Descartes pasó de ser un aventurero algo extravagante, a convertirse en un joven pensador inquieto por descubrir el saber universal de que tanto se hablaba en el paradigma renacentista, sin contar con los hallazgos geométricos que se inspiraron en tal amistad”. Op. Cit., p. 206.

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Descartes s’est livré, à l’instigation de

Beeckman, l’ont conduit d’abord à une

généralisation de méthodes qui ne doit rien à

Beeckman, et ensuite à l’universalisation de la

méthode mathématique, donc à l’idée de l’unité

de la science, qui est la grande découverte

cartésienne de l’hiver 1619”75.

A idéia de um método, através do qual, a razão possa orientar-se na busca do

conhecimento da verdade, não é originária em Descartes. Bem antes dele esta

idéia já era objeto de reflexão e de exposições mais ou menos elaboradas. Não

é necessário remontar ao Organon de Aristóteles ou à lógica estóica e à lógica

medieval, que tem em Guilherme de Ockham um representante qualificado.

Durante o Renascimento, a idéia dissemina-se de forma quase generalizada,

encontrando-se métodos para todos os gostos. São muitos os que apresentam

regras do método, através do qual se possa conhecer a verdade: Cornélio de

Agripa, Luís Vives, Melchior Cano, Jacó Acôncio, Leonardo da Vinci, Galileu,

Bacon, Campanella, etc76.

75 GILSON, É. Texte e commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la Méthode, p. 152. 76 Cf. HAMELIN, O. El Sistema de Descartes, p. 39-42, que conclui: “El problema del método era pues la preocupación general de todos los pensadores contemporáneos de Descartes y era corriente además que todos creyeran en su absoluto poder”. Ver também FRAILE, G. História de la filosofia, III, p. 494: “Antes que Descartes habían sentido esta necessidad Cornelio de Agripa, Luis Vives, Melchior Cano, Jacobo Aconcio, Leonardo de Vince, Galileo, Francisco Bacon, Campanella, así como Ramus y los ramistas, que hablaban de uma ‘lógica de la invención’ y propugnaban el método deductivo en la ciencia. En realidad podríamos remontar la proclamación del método hasta el Organon de Aristóteles y la lógica de los estoicos, que no son otra cosa que reglas para dirigir debidamente la actividad intelectiva en la investigación científica. Pero en Descartes la preocupación por el método se convierte en verdadera obsesión”.

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O Discurso do Método - publicado em 1637 - torna-se a referência

paradigmática da idéia de método do racionalismo cartesiano. Entretanto, a

idéia de um método já se encontra presente nos trabalhos de juventude de

Descartes, mesmo sem ainda delineá-lo com precisão77; a idéia de uma ciência

universal, de um saber regulador de todos os saberes. Em março de 1619, com

apenas 23 anos, Descartes escreve a Beeckman dizendo ou, de certa forma,

anunciando as principais características de uma nova ciência que ele pretente

oferecer ao mundo: “... une science aux fondements nouveaux, permettant de

résoudre en général toutes les questions que l’on peut proposer en n’importe

quel genre de quantité, tant continue que discontinue, mais chacune selon sa

nature”78. Segundo Alquié, “os escritos que se situam entre 1618 e 1621 são já

de um homem de ciência e de um meditativo”79. Se essas obras de juventude já

anunciam a idéia de uma única ciência, de uma ciência universal, é nas Regras

para a Direção do Espírito80 (1628) - obra que só virá a público postumamente

- que Descartes estabelece, de forma madura, o que pretende com a idéia de

método: dar “ao espírito uma direção que lhe permita formular juízos sólidos e

verdadeiros sobre tudo que se lhe apresenta”81. Seria possível dizer que esse

conjunto de regras é a primeira tentativa feita por Descartes para apresentar

uma nova forma de a razão ordenar-se na busca do conhecimento, em

77 “(...) el comienzo de la formación del método en Descartes se remonta a la época de su primera juventud; que él elaboró en varias redacciones sucesivas, parciales o de conjunto. Pero todas éstas son noticias históricas, en el sentido más real de palabra, y no pueden por eso revelarnos el verdadero secreto de la creación del método cartesiano”. HAMELIN, O. Op. cit., p. 50. 78 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 37-38; AT., X, p. 156-157. 79 ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 19. Continua Alquié: “Esses escritos [memórias redigidas para Beeckman, textos conhecidos por Baillet ou por Leibniz, como os Preâmbulos, as Observações, as Olímpicas, etc. – cf. AT., X, Cogitationes Privatae], confirmam que a ambição fundamental de Descartes foi fundamentar uma ciência universal”. Idem, Ibidem. 80 “Indiscutiblemente auténticas, escritas por Descartes al entrar en la madureza, las Regulae constituyen una fuente tan segura como abundante para el estúdio del método cartesiano. Sin embargo conviene subordinarlas al Discours, tomando a éste como base y a aquéllas como simple complemento”. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 58. 81 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. I, p. 1.

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substituição à que lhe fora ensinada na escola82. São, portanto, os primeiros

passos concretos de uma nova filosofia que se apresentam através das regras:

“Cumpre crer que todas as ciências são tão

ligadas entre si que é muito mais fácil

apreendê-las todas juntas do que separar apenas

uma delas das outras. Portanto, se alguém quer

procurar seriamente a verdade, não deve

escolher uma ciência específica: todas elas são

unidas entre si e dependem umas das outras”83.

Apesar de as Regras para a direção do espírito conterem a codificação de um

grande número de regras do método, esse projeto será postergado por

Descartes. Deixa-o de lado, provisoriamente, por considerar que um excesso de

regras para a construção do método, muito mais atrapalharia do que o ajudaria

na busca de uma direção segura e certa da verdade nas ciências84. A intenção de

Descartes é construir um conjunto de regras, simples e fáceis, que possibilitem

a qualquer um, que as obedeça, distinguir o verdadeiro do falso, fazer um bom

uso da própria razão; “pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é

aplicá-lo bem”85. “Quanto ao método, entendo por isso regras certas e fáceis

82 “Assim, o método nas Regulae pode ser considerado como a primeira tentativa de Descartes de substiruir a filosofia que se fazia nas Escolas por uma filosofia nova, ou antes por uma verdadeira ciência cuja evidência e cuja a certeza contrastariam com a aproximação e a obscuridade daquilo que se apresentava sob o nome de ciência”. GUENANCIA, P. Descartes, p. 12. 83 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., p. 4. 84 “E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 53. 85 Idem, p. 41.

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cuja exata observação fará que qualquer um nunca tome nada de falso por

verdadeiro, e que, sem despender inutilmente nenhum esforço de inteligência,

alcance, com um conhecimento gradual e contínuo de ciência, o verdadeiro

conhecimento de tudo quanto for capaz de conhecer”86. Só mais tarde, no

Discurso do Método, em 1637, de forma bastante reduzida, diferentemente do

grande número de preceitos das Regras para a direção do espírito, Descartes

apresenta as quatro regras que se transformarão em referência paradigmática do

método cartesiano. Primeiro - “jamais escolher alguma coisa como verdadeira

que eu não conhecesse como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação

e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão

clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de

pô-lo em dúvida. Segundo – o de dividir cada uma das dificuldades que eu

examinasse em tantas parcelas quanto possíveis e quantas necessárias fossem

para melhor resolvê-las. Terceiro – o de conduzir por ordem meus

pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer,

para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais

compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem

naturalmente uns aos outros. Quarto e o último - o de fazer em toda parte

enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de

nada omitir”87.

Depois de formular o critério de verdade (1ª ), as três regras seguintes,

denominadas de análise(2ª ), síntese (3ª) e enumeração(4ª), têm por função

primordial guiar ou orientar o espírito “no exercício das duas operações

86 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. IV, p. 20. 87 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 53-54.

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intelectuais fundamentais”88: intuição e dedução89. Estas operações, quando

reguladas ou guiadas pelo método, se efetuam pelo único caminho seguro e

certo para o conhecimento da verdade. Isto porque, “não há vias abertas ao

homem para conhecer com certeza a verdade afora a intuição evidente e a

dedução necessária”90. Descartes entende por intuição “não a confiança

instável dada pelos sentidos ou o juízo enganador de uma imaginação com más

construções, mas o conceito que a inteligência pura e atenta forma com tanta

facilidade e clareza que não fica nenhuma dúvida sobre o que

compreendemos”91. Quanto à dedução, nada mais é do que a observância da

ordem e do estrito encadeamento das intuições: “não é de outro modo que

conhecemos o vínculo que une o derradeiro anel de uma longa cadeia ao

primeiro, conquanto um único e mesmo olhar seja incapaz de nos fazer

apreender intuitivamente todos os anéis intermediários que constituem esse

vínculo: basta que os tenhamos percorrido sucessivamente e que guardemos a

lembrança de que cada um deles, desde o primeiro até o derradeiro, está preso

aos que estão mais próximos dele”92. Segundo Alquié, “um tal raciocínio difere

do silogismo escolástico, o qual opera fazendo entrar uns nos outros conceitos

de extensão e de compreensão diversas. A relação que, em Descartes, funda o

raciocínio não é a inerência. É uma conexão entre quantidades, conexão que

permite fixar o lugar dessas quantidades na ordem. Conseguir substituir o

aparente caos da experiência por um complexo ordenado e racionalmente

reconstruído, tal é efetivamente o objetivo da ciência cartesiana”93.

88 BEYSSADE, M. Descartes, p. 26. 89 “...eis o recensamento de todos os atos do nosso entendimento que nos permite alcançar o conhecimento das coisas, sem nenhum temor de nos enganarmos. Há somente dois atos para admitir, a saber: a intuição e a dedução”. DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. III, p. 13. 90 Idem, ibidem, reg. XII, p. 90-91 (grifo nosso). 91 Idem, ibidem, reg. III, p. 14. 92 Idem, ibidem, reg. III, p. 16. 93 ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o mecanicismo, p. 27.

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As quatro regras do método, quase simplórias, tão simples que parece que

qualquer homem, mesmo que nunca tenha estudado questões de método ou se

interessado por matemática ou filosofia, no uso mais comum da racionalidade é

coagido a considerá-las94. Entretanto, são essas quatro regras simples que

constituirão a base de sustentação dos mirabilis scientiae fundamenta95. A

simplicidade das regras do método sombreia sua luminosidade, sua verdadeira

intencionalidade: dar conta de uma ciência universal. A partir do método

cartesiano, todo saber humano estará submetido a uma ordem puramente

racional, obedecendo unicamente aos ditames de uma racionalidade matemática

que, desprovida de qualquer assistência divina, afirma-se como o único

caminho através do qual, no plano das ciências, é possível ao homem obter um

conhecimento verdadeiro e certo sobre todas as coisas. Aqui já percebe-se

claramente o que pretende Descartes: afirmar que a verdade só pode ser uma

conquista do sujeito, que o conhecimento é uma conquista do homem no limite

de sua racionalidade. A verdade, a partir do método cartesiano, afirma-se como

independente de qualquer autoridade, de qualquer divindade, de qualquer

metafísica. Afirma-se como uma conquista puramente metodológica, quer

dizer, humana. Neste momento, Descartes é, antes de ser metafísico, um

94 “Quem é que, com efeito, já alguma vez pôs em dúvida que o filósofo, enquanto tal, não devesse submeter-se somente à evidência da razão? E quem é que – até aos nossos dias, pelo menos – alguma vez negou o valor superior da idéia clara sobre a obscura? Ninguém. Como ninguém nunca contestou o valor da ordem e a necessidade de começar pelas idéias mais simples e mais fáceis, e não, inversamente, pelas mais difíceis e mais complicadas. São lugares-comuns da filosofia. Mas qual é essa clareza que devemos procurar? Qual é essa ordem que devemos seguir? Quais são essas coisas simples e fáceis pelas quais devemos começar? É nas respostas a essas perguntas que consiste a reforma cartesiana”. KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 12-13. 95 A simplicidade das regras do método são tão evidentes que alguns dos contemporâneos de Descartes se mostraram desencantados com elas, enquanto que seus partidários os diziam que Descartes manteve seu verdadeiro método em segredo, nunca querendo trazê-lo à público: “Las reglas que expresa en el Discurso son tan escasas y vulgares, que sus contemporáneos – Hobbes, Gassendi, Fermat, Pascal, Huygens y Leibniz – no pudieron menos de manifestar su desencanto. Sus partidarios lo disculpaban diciendo que el método había sido un secreto del que Descartes se había servido para sus descubrimientos en física y matemáticas, pero que nunca había querido revelar”. FRAILE, G. Historia de la filosofia, II, p. 495.

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cientista96. A ciência é o seu único objetivo, o método é o caminho correto para

alcançá-lo. Como fundamento da ciência, o método obedece unicamente a uma

ordem geométrica, a uma ordem matemática97. A matemática é a linguagem do

método e, através do uso correto do método, ela torna-se a gramática do saber.

Diante dela, o universo se revela, desvela seus segredos e seus mistérios98.

“Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar

exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura, contém tudo que dá

certeza às regras da aritmética”99. Reconhecendo que só na matemática é

possível um conhecimento seguro, que só através dela é possível um verdadeiro

alargamento do conhecimento humano, Descartes estranha que, no passado,

não se tenha percebido seu verdadeiro poder, seu verdadeiro alcance,

reduzindo-a ao restrito conhecimento das artes mecânicas: “Comprazia-me

sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas

razões; mas não notava ainda o seu verdadeiro emprego, e, pensando que

serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus

fundamentos tão firmes e sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de

mais elevado”100. Assim, Descartes assume a responsabilidade de elevar a

matemática ao seu verdadeiro papel, transformá-la em fundamento primeiro da

ciência universal. “Tendo esses pensamentos levado-me dos estudos

96 Este termo é tomado em seu sentido etimológico, isto é, daquele que pratica um certo tipo de conhecimento denominado ciência. O termo, no sentido atual, só começa a circular no século XIX. Cf. LEBRUN, G. O poder da ciência, ensaios de opinião (Estado, Ciência e Poder), p. 50. 97 “(...) Descartes só encontra certeza na matemática. O seu desejo de atingir em toda a parte a certeza leva-o, portanto, a considerar universal um método que, de fato, é de estilo matemático, e nunca foi aplicado de forma rigorosa a não ser no domínio da quantidade”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 24. 98 “La “Mathématique” est au centre: c’est à partir d’elle que “les mystères de la Nature” s’ouvriront “avec la même clef”, s’ils ont le même enchaînement. Cet espoir admirable répond à l’“imagination” dont parle le Discours: que toutes choses “s’entresuivent” à la façon des mathématiques, et il ne restera rien de si caché “qu’on ne découvre”. Ainsi la clef du savoir est l’ordre qui constitue le coeur de la méthode: unité de la science, méthode, mathématique universelle ne sont pas ici inventions particulières entre lesquelles il faudrait choisir. C’est l’aperception de leur corrélation qui est vraiment fondamentale: devant “le fondement de la Science”, Descartes s’émerveille”. RODIS-LEWIS, G. L’Oeuvre de Descartes, v. I, p. 47. 99 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 58. 100 Idem, ibidem, p. 45.

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específicos da Aritmética e da Geometria a uma investigação aprofundada e

geral da Matemática, perguntei-me de início o que precisamente todos

entendem por esse nome, e porque não são as ciências de que já foi falado, mas

também a Astronomia, a Música, a Óptica, a Mecânica, e um grande número de

outras101, que dizem fazer parte da Matemática (...). Refletindo nisso com mais

atenção, pareceu-me enfim claro reportar à Matemática tudo aquilo em que

somente se examinem a ordem e a medida, sem levar em conta se é em

números, em figuras, em astros, em sons, ou em qualquer outro objeto, que tal

medida deva ser procurada. Daí resulta que deve haver uma ciência geral que

explique tudo quanto se pode procurar referente à ordem e à medida, sem as

aplicar a uma matéria especial: essa ciência se designa, não pelo nome

emprestado, mas pelo nome, já antigo e consagrado pelo uso, Matemática

universal (...)”102. É para essa ciência que a razão humana deve voltar-se,

porque, só nela, encontram-se as raízes que sustentam a árvore do verdadeiro

conhecimento103. O conhecimento desta ciência “é preferível a qualquer outro

conhecimento transmitido humanamente, visto que é a fonte de todos os outros

101 Descartes alude às disciplinas denominadas “ciências intermediárias” a partir do século XIII e “matemáticas mistas” em sua época. Cf. NASCIMENTO, C. A. R. do. O estatuto epistemológico das ‘ciências intermediárias’ segundo São Tomás de Aquino, In: Idem, De Tomás de Aquino a Galileu, p. 13-87. 102 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. IV, p. 26-27. A idéia de uma matemática universal precedendo as disciplinas matemáticas particulares, consta na Metafísica de Aristóteles VI (E) 1026a 26-27. Roger Bacon fala também de uma matemática comum. Cf. Communia Mathematica, p. 38, que remete para o Catálogo das Ciências de Alfarabi. Communia Mathematica,Opera hactenus inedita Rogeri Baconi, Fasc. XVI, Partes prima et secunda. Oxonii e Typographeo clarendoniano; Londoni apud Humphredum Milford, 1940. Ver também Crapulli, G. (Org.). Mathesis Universalis - Genesi di un'idea nel Xvi secolo. 103 Segundo Baillet, mesmo quando Descartes resolve conhecer o Grande livro do mundo, não abandona os estudos da aritimética e da geometria, espera encontrar na ciência matemática os fundamentos para sua Matemática Universal. “Mais on peut dire qu’il n’abandonna l’étude particulière de l’arithmétique et de la géométrie, que pour se donner tout entier à la recherche de cette science générale, mais vraie et infaillible, que les Grecs ont nommée malicieusement Mathesis, et dont toutes les mathématiques ne sont que des parties. Il prétendait que ces connaissances particulières, pour mériter le nom de Mathématiques, devaient avoir des rapports, des proportions et des mesures pour objet. De là il jugeait qu’il y avait une science générale destinée à expliquer toutes les questions que l’on pourrait faire touchant les rapports, les proportions et le mesures, en les considérant comme détachées de toute matière: et que cette science générale pouvait à très juste titre porter le nom de Mathesis, ou Mathématique universelle, puisqu’elle renferme tout ce qui peut faire mériter le nom de science et de mathématique particulière aux autres connaissances”.BAILLET, A. Op. Cit., p. 53.

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(...)”104. Assim, “a conclusão de tudo o que precede não é, por certo, que se

deva aprender apenas a Aritmética e a Geometria, mas unicamente que, na

busca do conhecimento reto da verdade, não se deve ocupar-se com nenhum

objeto sobre o qual não se possa ter uma certeza tão grande quanto aquela das

demonstrações da Aritmética e da Geometria”105.

A conquista do método, bem como o êxito de sua aplicação, acentua em

Descartes a certeza de ter encontrado uma base sólida sobre a qual se assentará

a nova ciência, o seu progresso e todo saber produzido pelos “homens

puramente homens” 106. É a razão natural, sem nenhuma assistência especial de

Deus, que funda e garante toda a ordem de verdade do método e, como

conseqüência, toda a ordem de verdade da ciência. Não sendo o método

cartesiano uma técnica de classificação de verdades, afirma-se como o único

caminho através do qual se processa a invenção da verdade e da ciência.

Portanto, o método não é algo estranho que se encontra fora do próprio ato de

produção do conhecimento, como um simples conjunto de regras reguladoras e

classificadoras dos conhecimentos já obtidos; ao contrário, a natureza do

método cartesiano constitui-se como condição e possibilidade do próprio ato de

invenção e produção da verdade. Com isso, Descartes, ao mesmo tempo em

que afirma as bases metodológicas da nova racionalidade, denuncia a

fragilidade e inutilidade, para a ciência, do velho método silogístico, a Lógica

104 DESCARTES, R. Regras para a orientação…, reg. IV, p. 22-23. 105 Idem, reg. III, p. 10. 106 “Formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração da minha vida lhe permitam atingir. Pois já colhi dele tais frutos que [...] não deixo de obter extrema satisfação do progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens, há alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 42.

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aristotélica107 sistematizada no Organon108, assumido e incorporado, como o

verdadeiro método através do qual se produz a ciência, pela Escolástica109.

Segundo Descartes, o método silogístico dos antigos não tem nenhum valor

para a ciência, pois através dele não se conhece nada de novo, não se produz

um verdadeiro conhecimento; só ensina a explicar e expor o já conhecido; é

uma lógica de classificação e de esclarecimento, que pode ser útil para a

retórica, mas não tem nenhum valor para a ciência. A Lógica silogística –

segundo Descartes a conheceu bem quando aluno do colégio la Flèche; naquele

período essa era a técnica ensinada para a consecução da verdade – não passa

de uma “maquinaria perfeitamente adaptada para as disputas”110. No que diz

107 “Un silogismo es un conjunto de palabras o locuciones en el que, al hacerse determinadas asumpciones, se segue necesariamente, del hecho de haberse verificado de tal manera determinada las asumpciones, una cosa distinta de la que se había tomado. (…) Llamo perfecto al silogismo que no requiere nada más que lo que está comprendido en él para hacer evidente la conclusión necesaria. Y lo llamo imperfecto si requiere una o más proposiciones que, aunque sean consecuencia necesaria de los términos que han sido propuestos antes, no estón comprendidos en las premisas”. ARISTÓTELES, Analitica Primeira, I, Cap. 3, 24b-25a. 108 “La totalidad de las obras lógicas de Aristóteles se recogió tradicionalmente bajo un solo epígrafe: Organon. La palabra griega tiene el significado de “instrumento” o “medio” y respondia con ello al sentido más íntimo que Aristóteles dio a la Lógica: el de ser um medio o instrumento para la estructuración adecuada del pensar científico, de la investigación sabia y la discusión, investigadora o científica, dialéctica y erística”. SAMARANCH, F. Nota preliminar, In: ARISTÓTELES, Obras, Tratados de Lógica, p. 217. 109 “Desde os tempos de Alcuíno (séc. IX) até o século XII, a Idade Média conheceu apenas algumas obras lógicas de Aristóteles: As categorias e Da interpretação que, juntamente com a Isagoge de Porfírio (233-303) e os Comentários de Boécio (séc. VI), constituíam a Velha lógica. A partir das primeiras décadas do século XII aparecem os Primeiros e Segundos analíticos, os Tópicos e Dos sofismas, conhecidos como Lógica Nova, que, em conjunto com os primeiros, constituem o Órganon aristotélico. As obras de filosofia natural (Física) e a Metafísica chegaram mais tarde, em duas etapas. Primeiro, no final do século XII, através das traduções feitas do árabe para o latim na Escola de Tradutores de Toledo. Depois, na segunda metade do século XIII, com as traduções feitas diretamente do grego por Roberto Grosseteste (Ética a Nicômaco) e por Guilherme de Moerbeke, que estabeleceu uma nova versão latina para as principais obras de Aristóteles (...). Mas só no século XIII, quando a Física e a Metafísica chegam finalmente ao Ocidente, irá acontecer uma verdadeira revolução nos meios acadêmicos medievais”. COSTA, J. S. Tomás de Aquino – a razão a serviço da fé, p. 15-16. 110 “Le syllogisme, Descartes ne le condamne pas absolument. Il l’a même utilisé dans les Réponses aux Secondes Objections pour exposer plus clairement et démonstrativement sa doctrine. Ce qu’il condamne, c’est la prétention de faire du syllogisme autre chose et plus qu’un instrument d’exposition. Le syllogisme intéresse la rhétorique, non la philosophie, car il sert plutôt à expliquer à autrui les choses qu’on sait, ou même, comme l’art de Lulle, à parler sans jugement de celles qu’on ignore, qu’à les apprendre. Et voilà le premier reproche qu’il adresse à logique aristotélicienne: elle est stérile. L’esprit syllogisant, en effet, n’arrive à la conclusion qu’à la condition d’en posséder déjà la matière dans les premises; et la matière, en l’espèce, c’est la vérité meme qu’on s’applique à déduire. S’il est vrai que la connaissance des propositions générales presuppose celle des particulières, et qu’il faut commencer par celles-ci pour arriver à celles-là, on n’a pas le droit d’affirmer que tout homme est mortel à moins de savoir que Pierre l’est également, et par conséquent le syllogisme qui aboutit

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respeito à aquisição de conhecimentos verdadeiros, a silogísitica em nada pode

ajudar, é completamente estéril. O próprio Descartes quando examina de forma

crítica as ciências que aprendera na escola, no Discurso do Método, denuncia a

inutilidade da velha lógica aristotélica para a aquisição do conhecimento:

“...examinando-as, notei que, quanto à Lógica, os seus silogismos e a maior

parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que

já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio111, para falar, sem julgamento,

daquelas que se ignoram (...), do que para aprendê-las”112. Nas Regras para a

direção do espírito, regra X, Descartes aprofunda um pouco mais a

apresentação das regras do silogismo, demonstrando que a técnica é inerte e

que nela está ausente qualquer forma de juízo. A esterilidade da lógica

silogística suplica a necessidade de sua rejeição113:

“Desse modo, é sobretudo para evitar aqui que

nossa razão se dê férias durante o exame de

à cette conclusion ne saurait rien nous apprendre de nouveau”. LAPORTE, J. Le rationalisme de Descartes, p. 21-22. 111 “Raimundo Lúlio (1235 – 1315), autor de uma arte que permitiria provar a verdade do cristianismo aos infiéis e convertê-los. Os seus discípulos interpretavam-na geralmente como um método para desenvolver idéias e demonstrar conclusões sobre um assunto”. GILSON, E. nota 44, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 55. Em uma carta de 29 de abril de 1619, dirigida a Beeckman, Descartes narra o seu encontro com um discípulo de Lúlio: “J’ai recontré il y a trois jours dans une auberge de Dordrecht un homme savant avec lequel je me suis entretenu de l’Ars parva de Lulle. Il se vantait de pouvoir user des règles de cet Art avec un tel succès que, disait-il, il était capable, sur n’importe quel sujet, de discourir pendant une heure; puis, si on lui demandait de parler, une heure encore, sur la même matière, de trouver des propôs tout à fait différents des précédents, et ainsi pendant vingt heures de suíte”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 42-43. 112 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 52. 113 Segundo Alquié, essa crítica de Descartes “consiste à dire que le syllogisme est stérile, à cause précisément de son caractère formel. Pour que la conclusion soit vraie, en effet, il ne suffit pas que le raisonnement soit formellement correct, il faut aussi que ses prémisses soient matériellement vraies. Ainsi, pour pouvoir conclure que Socrate est mortel, il faut être assuré de la vérité de la majeure ‘tout homme est mortel’; et l’on n’en será aussuré que si l’on sait qu’aucun homme, Socrate ou quelque autre, n’échappe à la mortalité. De même, pour éviter de conclure que le mercure est solide, il faut savoir que la majeure ‘tout metal est solide’ est fausse: et l’on n’en sera assuré que si l’on sait qu’il existe au moins um metal, le mercure ou quelque autre, qui n’est pas solide. Il faut donc connaitre déjà la conclusion, si l’on veut pouvoir poser des premisses matériellement vraies, qui entreront dans la constitution d’un syllogisme formellement correct”. ALQUIÉ, F. nota 2, In: DESCARTES, R. Regle pour la direction..., reg. X, Alq., I, p. 130.

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algumas verdades que rejeitamos essas formas

lógicas como contrárias à nossa meta e, ao

contrário, procuramos com cuidado tudo o que

nos ajuda a manter nossos pensamentos atentos.

Ora, para que fique ainda mais evidente que

essa arte de raciocinar [a arte dialética] em nada

contribui para o conhecimento da verdade, há

que observar que os dialéticos não podem

construir com sua arte nenhum silogismo cuja

conclusão seja verdadeira, a não ser que já

conheçam antes a própria verdade que dele

deduzem. Daí resulta, manifestamente, que uma

forma lógica assim não permite a eles mesmos

perceber nada de novo e que, por conseguinte, a

dialética comum é totalmente inútil para aqueles

que querem descobrir a verdade das coisas. Ela

pode servir somente algumas vezes para expor

mais facilmente a outros as razões já conhecidas

e, conseqüentemente, cumpre fazê-la passar da

filosofia para a retórica”114.

O que torna o método cartesiano verdadeiramente revolucionário não é sua

superação do método silogístico, considerado tão frágil que sequer pode lhe

oferecer resistência, mas sua natureza matemática; sua capacidade de

transformar todas as formas de saber e submetê-los a um único tratamento,

cuja natureza é puramente matemática. Isso só é possível, porque, tanto o

método quanto o objeto ao qual ele se aplica têm a mesma natureza, ou seja,

uma natureza matemática. A implicação matemática, tanto por parte do sujeito

114 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. X, p. 64-65.

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que conhece, como do objeto a ser conhecido, impõe um princípio único que

irá regular todo o conhecimento humano. Mais ainda: impõe uma subordinação

completa do objeto conhecido ao espírito que conhece. Diferentemente da

ciência aristotélica115 - em que o espírito humano dependia das representações

sensíveis, a partir das quais buscava identificar a causa constitutiva, melhor

dizendo, a substância116 (ousía), que faz o ser, ser o que ele é, e que o

determina identitariamente na ordem e na classificação do ser e do saber – com

o método cartesiano processa-se uma virada epistémica: não é o espírito que é

determinado pelas essências do mundo, através das representações sensíveis,

mas, ao contrário, é o mundo, com as suas respectivas representações, que

movimenta-se em torno do espírito. Este afirma-se como centro gravitacional

de todas as representações do mundo. Assim, a função unificadora do saber,

das ciências, é a própia força unificadora do espírito. Segundo Descartes, a

sabedoria humana é única, não muda, não se altera; encontra-se, toda ela,

subordinada à estrutura normativa do método, obedecendo à regularidade das

leis matemáticas. A natureza, por sua vez, obedece às mesmas leis. Portanto,

todos os saberes, quando submetidos rigorosamente ao método, são iluminados

pelo mesmo espírito. Todas as ciências não são nada mais do que a produção

do espírito humano: “Como todas as ciências nada mais são senão a sabedoria

humana, que sempre permanece uma e a mesma, seja qual for a diferença dos

assuntos aos quais é aplicada, e que não lhe confere mais distinções (...) do que

115 Em Aristóteles, a compreensão e definição do ser dar-se-á a partir da realidade concreta, do mundo real no qual vive o homem. O realismo aristotélico conduz a dizer o que o ser é, tendo como referência a multiplicidade e a mutabilidade dos seres reais e dos seus significados, a partir dos quais cabe à filosofia (que é a ciência que conhece pelas causas), através da experiência, buscar a unidade identitária dessa multiplicidade de representações sensíveis: a ousía, a substância. Conhecer é conhecer a causa intrínseca de cada ser, a sua causa constitutiva e a sua finalidade, aquilo que faz do ser, ser o que ele é, a sua essência, a sua substância. Cf. BITENCOURT, J. A. Descartes: A constituição moderna da subjetividade, p. 33-34. 116 Substância é aqui entendida como “ce qu’il y a de permannent dans les chose qui changent, en tant que ce permannent est consideré comme un sujet qui est modifié par le changement tout en demeurant ‘le même’, et en servant de support commun à ses qualités successives”. LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie, Verbete: Substance, p. 1048.

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a luz do sol oferece à variedade das coisas que ilumina”117. A unidade do

espírito, a qual implica na unidade da natureza, além de abandonar a

diversidade metodológica do saber antigo, que, para cada objeto a ser

conhecido, estabelecia uma ciência correspondente118, aproxima Descartes da

ciência da natureza de seu tempo. De fato, a idéia de que tanto o espírito

quando a natureza têm a mesma linguagem, estão “escritos” em linguagem

matemática, encontra-se presente, tanto em Copérnico como em Galileu119,

para quem: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que

continuamente se abre perante nossos olhos [isto é, o universo], que não se

pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os

quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres são

triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é

impossível entender humanamente as palavras; sem elas nós vagamos perdidos

dentro de um obscuro labirinto”120. Tanto para Descartes como para Galileu, já

não existe nenhuma diferença entre as verdades da matemática e as verdades do

mundo da natureza, ambos têm uma e a mesma estrutura, pois estão “escritos”

em linguagem geométrica. Entretanto, entre Galileu e Descartes, mesmo tendo

em conta uma tal concordância, há uma grande diferença quanto ao centro

gravitacional a determinar a ordem do saber: “enquanto Galileu fundamenta a

unidade do método mecanicista na unidade de natureza da própria matéria (...),

117 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. I, p. 2. 118 “Todas as ciências e artes possuem os seus próprios princípios e as suas próprias causas através dos quais revelam as propriedades especiais do seu próprio objecto. Nessa medida, não nos é permitido utilizar os princípios de uma ciência para comprovar as propriedades de uma outra. Assim, quem quer que pense ser possível provar as propriedades naturais com argumentos matemáticos é simplesmente louco”. Apud. Considerazoni... da accademico Incógnito (Pisa 1612) In: Galileu, IV, p. 358, COTTINGHAM, J. A Filosofia de Descartes, p. 42. 119 “O que é novo é que o projeto de Copérnico e de Galileu não utiliza mais a linguagem cotidiana para elaborar essa razão, mas toma a linguagem matemática como modelo. Trata-se, pois, de produzir uma linguagem que seja tão próxima quanto possível da inteligibilidade, da exatidão e do rigor da linguagem matemática”. CHÂTELET, F. Uma história da razão, p. 66. 120 GALILEU, G. O Ensaiador, p. 21.

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Descartes assenta antes de mais nada a unidade do seu método na identidade

do próprio espírito humano que, sendo sempre o mesmo, deve sempre

raciocinar da mesma maneira”121. Tal diferença deriva certamente da

diversidade de projeto e de perspectiva dos dois pensadores. Galileu não

pretende construir um sistema totalizante como o que Descartes almeja122. O

próprio Descartes assinala isto. Em carta a Mersenne, de 11 de outubro de

1638, ao mesmo tempo em que elogia Galileu por ter elaborado uma ciência

derivada da matemática e, portanto, bem superior àquela ensinada na Escola, o

critica por não ter, através de sua ciência, buscado o conhecimento das

primeiras causas da natureza123. Restaria saber se aquilo que Descartes

considera uma fraqueza da parte de Galileu não é justamente o que constitui a

força deste. Descartes unifica ciência e filosofia num único e mesmo saber,

dotado de autonomia e independência racional124. Embora este último traço seja

comum a ambos, a partir de Descartes, como acima foi dito, o homem torna-se 121 ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 25. 122 “Convém (...) ter claro que Galileu não reinvindica qualquer inovação no método da ciência, ou antes, nunca reinvindica anterioridade ou precedência em questões metodológicas. As questões de precedência em que Galileu se envolveu são todas propriamente científicas: ou observacionais ou de conteúdo conceitual de teses teóricas que envolvem a análise matemática da experiência, como, por exemplo, a determinação da trajetória parabólica dos projéteis. Nesse sentido, Galileu não pretende reformar o Órganon, como o fez Bacon, nem dar ao método um domínio próprio e um tratamento sistemático, propondo-o como propedêutica ao conhecimento científico, como o fará Descartes. O que Galileu faz é reinvindicar a suficiência do método científico para decidir acerca das questões naturais, para as quais se pode usar a experiência, o discurso e o intelecto, em suma, para as quais se pode empregar a razão natural”. MARICONDA, P. R. Introdução, In: GALILEU, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, p. 30. 123 “Je commencerai cette lettre par mes observations sur le livre de Galilée. Je trouve en général qu'il philosophe beaucoup mieux que le vulgaire, en ce qu'il quitte le plus qu'il peut les erreurs de l'École et tâche à examiner les matières physiques par des raisons mathématiques. En cela je m'accorde entièrement avec lui et je tiens qu'il n'y a point d'autre moyen pour trouver la vérité. Mais il me semble qu’il manque beaucoup en ce qu’il fait continuellement des digressions et ne s'arrête point à expliquer tout à fait une matière; ce qui montre qu'il ne les a point exaimées par ordre, et que, sans avoir considéré les premières causes de la nature, il a seulement cherché les raisons de quelques effets particuliers, et ainsi qu'il a bâti sans fondement”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 91; AT., II, p. 380. 124 “(...) ninguém [antes de Descartes] foi capaz de combinar, ao mesmo tempo, ciência e filosofia de maneira integral. Galileu, por exemplo, foi um filósofo natural da mais alta qualidade, mas se não fosse isto não lhe teria cabido qualquer lugar na história da filosofia geral. (...) Sabe-se que Galileu evitava a metafísica tanto quanto lhe era possível e duvidava de todos os sistemas universais de pensamento. Preocupavam-no principalmente – mesmo em defesa do universo copernicista – as questões científicas e a discussão de problemas específicos. Não construiu uma filosofia da ciência metódica, embora os elementos de tal filosofia possam ser extraídos das suas obras”. HALL, A. R. Op. Cit., p. 248-249.

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o centro gravitacional em torno do qual gravita toda a ordem do saber. O

método cartesiano afirma e confirma o homem, o sujeito, no silêncio mais

profundo da sua singularidade, sem nenhuma assitência fora da ordem da razão,

como o ser através do qual toda ordem do saber adquire o estatuto de

verdade125. Assim sendo, a autonomia da razão é suficiente para dar conta da

natureza; esta encontra-se subordinada ao sujeito pensante, ou, em termos

cartesiano, ao cogito que determina toda sua ordem de verdade. Donde, ter a

verdade um estatuto puramente humano. Descartes ainda não precisa de Deus

para garantir e fundamentar o estatuto da verdade, pois o método, despido de

qualquer metafísica, basta-lhe, é suficiente nesta empreitada.

A matematização da natureza, bem como a sua subordinação a uma ordem

puramente racional, impõe, de forma definitiva, um limite entre o mundo

antigo, que já sem forças para se representar e se afirmar silencia e vê sua

cosmologia desmoronar como um castelo de areia que se esvai à chegada da

primeira onda, e o mundo novo, que de forma demolidora afirma-se, no vigor

de sua juventude, como a nova referência paradigmática do pensamento

humano. Quais são algumas das características relevantes dessa cosmologia,

antiga e medieval, que por mais de mil anos afirmou-se como o modelo do

verdadeiro mundo e que, no apagar das luzes do século XVII, silencia seu

canto, perde sua luminosidade, já não seduzindo muitos dos melhores

estudiosos?

125 “A filosofia de Descartes não exprime o ‘ponto de vista de Deus’, mas o de um espírito particular, do próprio Descartes, experimentando constante e resolutamente o desejo de encontrar uma verdade que não seja particular a esse sujeito”. PIERRE, G. Op. Cit., p. 12.

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Copérnico (1473–1543) ao afirmar a descentralização da terra126, o

heliocentrismo, impõe uma completa desordem no velho cosmo, todo ele

garantido no geocentrismo derivado da física de Aristóteles e da astronomia de

Ptolomeu127, que afirmavam ser a terra o centro referencial do universo, em

torno da qual tudo girava e era ordenado. A cosmologia aristotélica e medieval

estavam fundadas em uma física descritiva e por ela garantida; física de

classificação da ordem natural das coisas no universo. Como consequência

dessa física de constatação, que se apóia nos dados da percepção imediata, tem-

se um cosmo muito próximo daquele que se apresenta ao senso comum, ou

seja, a forma que tem o homem comum de ver e a partir do que vê, classificar e

estabelecer a ordem das coisas. Neste mundo, a natureza é sábia, estabelece a

ordem natural das coisas; cada uma destas busca o lugar natural dentro do

cosmo e, ao alcançá-lo, aí repousa. O cosmo é hierarquizado, ordenado, finito,

limitado. Nele, tudo se explica a partir de conceitos como natureza (physis128),

126 “... porque eu sabia que a outros antes de mim fora concedida a liberdade de imaginar os círculos que quisessem para explicar os fenômenos celestes, pensei que também me fosse facilmente permitido experimentar se, uma vez admitido algum movimento da Terra, poderia encontrar demonstrações mais seguras do que as deles para as revoluções das esferas celestes. E deste modo, admitindo os movimentos que eu à Terra atribuo na obra infra, com perguntas e longas observações, descobri que, se estabelecermos relação entre a rotação da terra e os movimentos dos restantes astros, e os calcularmos em conformidade com a revolução de cada um deles, não só se hão-de deduzir daí os seus fenômenos mas até se hão-de interligar as ordens e grandezas de todas as esferas e astros assim como o próprio céu, de modo que, em parte nenhuma, nada de si se possa deslocar sem a confusão das restantes partes e de toda a universalidade.” COPÉRNICO, N. As Revoluções dos orbes celestes, p. 9. 127 “PTOLOMEO (Claudius Ptolomeus) (fl.ca 140), hizo sus observaciones y compilaciones em Alejandría. Entre sus observaciones destacan las de los movimientos de los planetas. Ptolomeo descubrió (u observó) la irregularidad del movimiento de la Luna. La principal importancia de Ptolomeo reside en su compilación y sistematización de los datos resultados y doctrinas de los geógrafos y astrónomos griegos y alejandrinos – especialmente de Hiparco de Samos -, por lo que la astronomía antigua viene conocida con los nombres de “sistema de Ptolomeo” o “sistema ptolemaico”. Se trata de un sistema según el cual la Terra, formando um globo, se halla estacionada en el centro del universo, con el Sol, la Luna y las estrellas girando alrededor de la Tierra en órbitas circulares y movimiento uniforme (…)”. MORA, F. Diccionario de filosofia, v. III, ad verbum, p. 2744. É, contudo, importante relembrar que, embora Aristóteles e Ptolomeu concordem no que se refere ao geocentrismo, diferem quanto à natureza dos sistemas astronômicos. Aristóteles pensa que os astros giram em torno da terra em esferas homocêntricas, ao passo que a astronomia ptolemaica recorre a excêntricos, epiciclos, etc. O primeiro sistema, na Idade Média, era o que se encontrava na cosmologia e o segundo presidia os cálculos astronômicos, mesmo em versões simplificadas como nos tratados da esfera. 128 “Dos primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios de natureza material como sendo os únicos princípios de tudo que existe. Aquilo de que são constituídas todas as coisas, o primeiro elemento de que

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idéia129, substância, acidente, ato, potência, causalidade, essência, matéria,

forma. A partir de tais matrizes conceituais, estabelece-se e ordena-se o cosmo

em si e o saber que dele se pode ter. Todos esses conceitos, obedecendo a

ordem gnosiológica de cada filosofia à qual pertencem, estão dentro do limite

da racionalidade humana e não ultrapassam a ordem do universo no qual o

homem habita. O cosmo é o limite do homem no mundo. Seja em Platão, seja

em Aristóteles, não há nada além do cosmo, nada que o transcenda que o crie

ou o determine. Toda a lógica da cosmologia helênica, tenta dar conta do

mundo, nos limites do próprio mundo, não postulando nada além deste130:

“Ainsi les philosophes anciens, qui, n’étant point éclairés de la lumière de la nascem e o último em que se resolvem (persistindo a substância, mas mudando em suas determinações acidentais), a isso chamam eles o elemento e o princípio das coisas, julgando, por conseguinte, que nada é gerado ou destruído, já que essa espécie de entidade se conserva sempre, assim como não dizemos que Sócrates nasce quando se torna belo ou músico, ou que deixa de existir quando perde essas características, porque persiste o substrato em si, que é Sócrates. Da mesma forma, dizem eles que nenhuma outra coisa nasce ou deixa de existir, pois deve existir alguma entidade – uma ou mais de uma – das quais se originam todas as coisas, enquanto ela própria se conserva. Nem todos eles concordam, porém, quanto ao número e a natureza desses princípios”. ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3, 984a 9-20. 129 “- Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo sensível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma do mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública”. PLATÃO. A República, VII, 517b. 130 “... quem dedicar atenção aos traços fundamentais das cosmovisões, há de advertir que a grega, de um modo muito especial, adota uma atitude negativa face ao pensamento mágico. Contrapõe-se-lhe, e com isso a mentalidade a que primeiro se faz referência aqui encontra sua máxima objetivação. Em vez da concepção estreita do natural, temos a mais ampla. Na verdade, quando hoje proferimos a palavra ‘natureza’ na acepção elevada e viva em que Goethe a empregou, estamos em dívida com o espírito grego. Pois é graças a ele que o natural em si mesmo pode agora manter-se na glória do sublime e do divino. É certo que, quando intervêm os deuses gregos, coisas extraordinárias e maravilhosas acontecem. Isso não significa que uma força capaz de um alcance irrestrito se pronuncia, mas que uma realidade com multímoda expressão em nosso encontro se manifesta de modo vívido como uma grande forma essencial de nosso mundo. O que tem o primado e a supremacia não é o poder que consuma a ação, mas o ser que se desvela na forma. E os mais sagrados frêmitos não brotam do imenso e do poder ilimitado, mas sim das profundezas da experiência natural. Essa cosmovisão que chamamos de especificamente grega encontrou sua primeira e máxima expressão nos poemas homéricos. É reconhecível de imediato pela quase completa ausência do mágico. O que Goethe fez seu Fausto desejar, no termo de sua vida... Se eu pudesse afastar a magia de meu caminho. Esquecer por completo as fórmulas mágicas e postar-me diante de ti, Natureza, feito um homem somente, Então, sim, valeria a pena ser um homem. ... não se realizou em parte alguma, senão no espírito grego. A natureza, ante a qual Fausto quisera estar sem interferência alheia, para o espírito grego tornou-se idéia”. OTTO, W. F. Os deuses da Grécia – a imagem do divino na visão do espírito grego, p. 6-7.

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foi, ne savaient rien de la béatitude surnaturelle, ne considéraient que les biens

que nous pouvons posséder en cette vie; et c’était entre ceux’là qu’ils

cherchaient lequel était le souverain, c’est-à-dire le principal et le plus grand”

131. Se Platão situava para além das idéias o Bem, referência modelar para todas

as idéias, esse Bem não habitava em nenhum mundo distinto daquele habitado

pelo homem. Mesmo que este Bem, estando no mundo, encontre-se num plano

distinto [que só pode ser atingido pelo intelecto] daquele oferecido pelas

representações sensíveis que são fracas cópias dos seus modelos originários,

em nenhum momento distancia-se do mundo real no qual as idéias encarnam-

se. A física aristotélica, guiando-se pelos princípios das causas formais e finais,

determina, a partir das representações sensíveis do mundo, o ordenamento de

todo o cosmo132. O mundo físico, como o próprio nome indica, obedece a um

131 DESCARTES, R. Correspondência, carta de 20 de novembro de 1647 dirigida a Cristina (1601 – 1649), rainha da Suécia, Alq., III, p. 745; AT., V, p. 82-83. Descartes está falando da finalidade última da vida humana, mas sua observação vale igualmente para a ordem cósmica. 132 “Es así como la física aristotélica iniciará una categorización del mundo utilizando los conceptos acuñados por y para la biología, convirtiendo el modelo biológico en paradigma de explicación científica. La mirada del investigador aristotélico a la realidad se ve, pues, mediatizada por conceptos de finalidad y forma (que de hecho vienen a coincidir, puesto que ‘la forma es la causa final’), con lo que todo lo existente se muestra dotado de unas propiedades estructurales coincidentes con su modo de aparecer ordinario: basta entonces señalar las cualidades esenciales que se presentan en todo objeto para establecer su puesto en la categorización general del cosmos. En la Tierra observamos nacimiento, crecimiento y muerte, luego constituye una parcela de mundo distinta de los astros y planetas en los que no observamos tal evolución: se generan así las categorías máximas de mundo sublunar corruptible y mundo supralunar incorruptible. En el mundo sublunar ningún movimiento local es perpetuo, luego en él todo cuerpo tiene por estado natural el reposo. En el mundo supralunar los planetas se mueven de manera cíclica y constante, luego el movimiento circular uniforme es el estado propio de la región celeste. En la Tierra los elementos más densos y pesados suelen estar por debajo de los livianos, luego a los primeros les corresponde por naturaleza el abajo y a los segundos el arriba. A su vez, todo cuerpo terrestre (excepto los animales que tienen en sí mismos el principio del movimiento) se mueve por una causa ajena a él y termina en el reposo, luego el movimiento local de los cuerpos inertes es movimiento violeto. Con lo cual se deduce progresivamente la gran conceptualización de la física aristotélica, y se logra una sistematización cualitativa del universo en virtud de la ecuación fundamental ‘forma = finalidad’”. TURRÓ, S. Op. Cit., p. 35-36. Podem-se consultar apanhados semelhantes em M. Clavelin e Koyré. Que a ciência paradigmática em Aristóteles seja a biologia, é discutível. Cf. Daniel W. Graham. “Some Myths about Aristotle’s biological motivation”, Journal of the History of Ideas, 47 (1986), fasc. 4 (set-dec), p. 529-545. Nos Segundos Analíticos, a ciência que serve de modelo é a geometria. Segundo Guardini, na Idade Média, “o homem acredita na revelação bíblica. Esta dá-lhe a certeza de uma realidade divina que está fora e para lá do mundo. Também Deus está no mundo, porque foi criado por Ele, e é ele que o mantém e o realiza; mas Ele não pertence ao mundo, é soberano em relação a ele. Esta independência enraíza-se no Seu autêntico Absoluto e na sua pura personalidade. O Deus absolutamente pessoal não pertence a qualquer mundo, mas existe em Si, senhor de Si próprio. Ama o mundo, mas não depende dele. (...) Segundo a revelação bíblica, o mundo é criado

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ordenamento puramente natural (physis), sendo este o limite da física (ciência

da natureza) aristotélica. Um Deus criador e ordenador do mundo, que seja

distinto do cosmo e o transcenda é completamente estranho ao mundo helênico

como um todo e à física aristotélica em particular133. O primeiro motor imóvel

de Aristóteles não é criador, mas ordenador do cosmo e causa primeira de suas

transformações, mas a ele está ligado. A idéia de um Deus único,

simultaneamente imanente e transcendente ao mundo que o cria e governa

provém do judaísmo – “Ouça, Israel! Javé nosso Deus é o único Javé”

(Deuteronômio 6, 7) –, daí passando ao cristianismo e ao islamismo134. Os

por Deus que, por seu lado, em nenhum sentido necessita do mundo ou de um elemento do mundo para existir ou para criar”. GUARDINI, R. O fim da idade moderna; p. 19-20. 133 Caberá ao apóstulo Paulo a missão de apresentar o Deus judaico-cristão ao povo helênico. “Enquanto Paulo os esperava em Atenas, inflamava-se-lhe o espírito de indignação com o espetáculo desta cidade cheia de ídolos. Disputava por isso, na sinagoga, com judeus e com os adoradores de Deus, e na ágora, todos os dias, com os que a freqüentavam. Até mesmo alguns filósofos epicuristas e estóicos o abordavam. Uns diziam: ‘Que quer dizer este palrador? Outros: Dir-se-ia um pregador de divindades exóticas’. Porque ele anunciava Jesus e a Ressurreição. Tomaram-no então consigo e levaram-no ao Areópago dizendo: ‘Poderíamos saber que espécie de doutrina é esta que ensinas? Pois são opiniões estranhas que nos trazes aos ouvidos. Queríamos, portanto, saber o que isto quer dizer’. Todos os atenienses, com efeito, e os estrangeiros ali residentes, não passavam o tempo senão a dizer e ouvir as últimas novidades. De pé, no meio do Areópago, Paulo disse então: ‘Atenienses, sob todos os aspectos sois, eu o vejo, os mais religiosos dos homens. Pois percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Aquele que adorais sem conhecer, eu venho vos anunciar. O Deus que fez o mundo e tudo que nele se encontra, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos de homens, como se tivesse necessidade de alguma coisa, ele que a todos dá vida, respiração e tudo o mais. Se de um princípio único fez todo o gênero humano para habitar sobre a superfície da terra, se fixou tempos determinados e os limites do habitat dos homens, foi a fim de procurarem a divindade e, se possível, atingi-la às apalpadelas e encontrá-la; também ele não está longe de nós. É nela, com efeito, que temos a vida, o movimento e o ser. Assim, aliás, disseram alguns dos vossos: ‘Pois nós somos também de sua raça’. Se somos da raça de Deus, não devemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, esculpida pela arte e pelo engenho do homem. Ora, eis que Deus, fechando os olhos relativamente aos tempos de ignorância, fez agora saber aos homens que têm todos e por toda a parte de se arrependerem, porque ele fixou um dia para julgar o universo com justiça, por um homem que ele destinou, oferencendo a todos uma garantia ao ressuscitá-lo entre os mortos’. Ao ouvirem falar de ressurreição dos mortos, uns zombavam, outros diziam: ‘Ouvir-te-emos a respeito disto outra vez’. Foi assim que Paulo se retirou do meio deles. Alguns homens, contudo, aderiram a ele e abraçaram a fé. De seu número foi Dionísio, o Areopagita. Também certa mulher, chamada Damaris, e outros com eles”. Ato dos Apóstolos 17, 16 – 34. 134 Cf. nota 131, acima. “(...) el sistema aristotélico generó uma metafísica elaborada como fundamentación última de la extensión del modelo biológico a la totalidad de lo existente, y, a la postre, convirtió el modelo de explicación biológica en paradigma de explicación natural, tal como fue desarrollado por la tradicion islámica e integrado en la Europa cristiana de los siglos XII e XIII. En este sentido, la intensa labor desplegada por santo Tomás de Aquino significó la adaptación del paradigma aristotélico, eliminando cuidadosamente las imprecisiones que lo hacía susceptible de oposición al dogma cristiano y aproximación al averroísmos: negación de la existencia del entendimiento colectivo, afirmación de la inmortalidad del alma individual, Dios

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gregos representam o cosmo como uno, integral, esférico, fechado, todo cheio

e finito, onde cada coisa encontra repouso e sentido natural de ser, onde tudo

integraliza-se e harmoniza-se na ordem geral. O cosmo, todo ordenado, irá

conquistar os medievais cristãos do Ocidente que, depois de cristianizá-lo, o

adotarão como a obra perfeita de um Deus que, na sua mais absoluta liberdade,

o criou e nele fez habitar o homem criado à sua imagem e semelhança. A física

aristotélica forneceu-lhes o sentido racional do cosmo135, sendo ela incorporada

e subordinada ao quadro da doutrina cristã136.

O problema medieval, em última instância, não é um problema filosófico, mas

sim, um problema religioso137. O que interessa aos medievais é como justificar

como acto puro independiente del mundo y anterior a él, negación del alma del mundo, afirmación de una regularidad natural y una intervención sobrenatural mediante el milagro”. TURRÓ, S. Op. Cit., p. 33-34. 135 Segundo Gilson: “A física de Aristóteles, ainda que adulterada com neoplatonismo, trazia um jogo de conceitos e de princípios tão flexíveis e fecundos para a explicação das coisas naturais, que ninguém se resignava facilmente a renunciar a ela. Essa física podia ser inquietante ou, a princípio, difícil, mas, na verdade, era a única física sistemática que existia. Pela primeira vez, de um só golpe, os homens da Idade Média, se encontravam em presença de uma explicação integral dos fenômenos da natureza”. GILSON, E. A Filosofia na idade média, p. 479. 136 Aqui, não se pode deixar de acentuar a importância que teve Sto. Tomás, não só na interpretação da filosofia de Aristóteles, mas, acima de tudo, na sua cristianização. Sto. Tomás teve um papel importante na subordinação do cosmo aristotélico a uma perspectiva cristã. Eis uma questão polêmica entre os historiadores de Sto. Tomás de Aquino: até que ponto Tomás teria sido fiel ao pensamento de Aristóteles? Sobre esse assunto, vale a pena ouvir Torrell, um reconhecido intérprete do pensamento de Sto. Tomás: “Logo em seguida à sua morte [de Tomás de Aquino], seus adversários puseram seriamente em dúvida sua fidelidade aristotélica em relação a pontos bastante precisos, assim como a maneira pela qual ele aplicava a noção de scientia à teologia, a esse respeito, seus fiéis tiveram de admitir que seu mestre ‘prolongara’ o Filósofo.” Ainda sobre o assunto, continua Torrell: “Quanto à fidelidade aristotélica dessa exegese, os historiadores foram se tornando cada vez mais críticos. Reconhece-se que é inteligente, e sem dúvida profunda, muitas vezes literal, mas não deixou de desvirtuar a doutrina de Aristóteles em muitos pontos decisivos, como no comentário sobre a Ética, guiado pelo princípio explicitamente cristão da visão beatífica, ou naquele sobre a Metafísica, orientando no sentido de uma metafísica do ser que lhe era inteiramente estranha. Para não falar da metafísica criacionista, ou do abandono do politeísmo. Como jocosamente o dizia um dos seus mais profundos intérpretes contemporâneo, Tomás ‘batizou’ Aristóteles. A menos que se prefira dizer, com Gauthier, que ele herdou um Aristóteles ‘já todo cristão’, e que seu esforço foi o de lhe restituir certa pureza a fim de utilizá-lo como um instrumento de sua reflexão teológica. Mesmo os que hoje querem defender uma fidelidade substancial devem admitir que ela se operou por ‘aprofundamento e superação do texto de Aristóteles’. TORRELL, J.-P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 275-278. 137 “O eixo diretor, que organiza o pensamento dos filósofos escolásticos – em função da necessidade de conciliar as teorias filosóficas pagãs com as doutrinas bíblicas, é a insistência com o pressuposto da

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a ordem do universo, o homem nele inserido, a partir de um Deus criador138. É

com essa intenção que os medievais apossam-se da filosofia helênica139. Num

primeiro momento, a filosofia de Platão140, num segundo, a filosofia de

Aristóteles141. Dois filósofos que, cristianizados, dão suporte racional à

teologia cristã142. Sto. Tomás, grande resposável pela cristianização da filosofia

de Aristóteles, estabeleceu uma relação de subordinação entre a ciência do

homem (filosofia) e a ciência da revelação (teologia)143. Portanto, é com o

dependência do mundo com relação ao seu criador”. BICCA, L. Racionalidade moderna e subjetividade, p. 148. 138 Segundo Gilson: “Por mais livre que possa ser um pensamento filosófico e por mais profundo que deva ser a marca por ele deixada na superfície das coisas, ele sempre começa, pois, por um ato de submissão, ele se move livremente, mas dentro de um mundo dado. Essa afirmação, verdadeira para toda época filosófica, inclusive a nossa, se verifica de maneira mais evidente, se considerarmos a filosofia da Idade Média ocidental. Do mesmo modo que, em nossos dias, a reflexão do filósofo não pode deixar de se exercer sobre os resultados mais gerais das ciências históricas e sociais, na Idade Média, ela dificilmente pode se exercer sobre outra coisa que a revelação, de que o dogma é a expressão definitiva. O mundo imediatamente dado (...)é, então o mundo da fé. O universo aparece como a criação de um só Deus em três pessoas. Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado e não criado, consubstancial ao Pai, encarnou-se e fez-se homem para nos salvar do pecado de Adão. Por seu lado, o homem decaído deve colaborar para essa obra de salvação, submeter-se aos mandamentos de Deus e da Igreja de Deus, a fim de evitar a perdição eterna e desfrutar eternamente da felicidade celeste reservada aos eleitos. Essa vasta perspectiva, enriquecida pelo paciente trabalho dos Padres é a que a Idade Média impõe a todos os espíritos. A realidade é, pois, nessa época, diretamente sentida e pensada como religiosa. O que cumpre compreender e explicar é, tanto ou mais que aquilo que os olhos vêem, o que os Concílios definiram no tocante à origem do mundo e dos homens, assim como a seus destinos; e é esse um fato de importância decisiva, se se quiser explicar o caráter religioso dos grandes sistemas medievais”. GILSON, E. A Filosofia na Idade Média, p. 942-943, (grifo nosso) . 139 É claro que a relação entre o pensamento medieval e o pensamento helênico ultrapassa a filosofia de Platão e de Aristóteles. Entretanto, a escolha desses dois exemplos justifica-se porque, através de Sto. Agostinho e Sto. Tomás de Aquino, esses dois pensadores gregos adquirem uma importância preponderante na cosmovisão do homem medieval. 140 “O neoplatonismo foi a ponte que tornou possível a grande reviravolta que Santo Agostinho daria em sua vida ao converter-se à fé cristã. Com efeito, devido a sua orientação místico-religiosa, o neoplatonismo era visto nos meios cultos cristãos como a filosofia por excelência, capaz de dar à verdade revelada os fundamentos racionais que lhe faltavam”. COSTA, J. S. Tomás de Aquino - a razão a serviço da fé, p. 13. 141 “Para a inteligência cristã, para a solidez das suas bases e o vigor das suas iniciativas no campo teológico-filosófico, a assimilação de Aristóteles era um imperativo vital. Tal assimilação era também vital para os aspectos institucionais da inteligência cristã: para o desenvolvimento normal do ensino nas universidades, órgãos docentes da cristandade. Todos os grandes mestres do século XIII [sendo santo Tomás o maior deles] são, em maior ou menos medida, obreiros conscientes nessa obra de assimilação do aristotelismo”. VAZ, H. C. de L. Problemas de fronteiras – escritos filosofia I, p. 30. 142 “A atitude da Igreja medieval para com a literatura pagã caracterizou-se sobretudo por uma seleção. Alguns autores clássicos – Ovídio e Terêncio, por exemplo – tinham todas as suas obras inclídas na lista dos livros proibidos e outros, apenas algumas, enquanto que aqueles que não eram incompatíveis com a doutrina cristã eram inteiramente tolerados. Neste último caso – e foi o que aconteceu com Platão e Aristóteles – a Igreja não os considerava pagãos mas sim precursores do Evangelho e em certos aspectos dignos de figurar ao lado dos Padres da Igreja”. THROWER, J. Breve história do ateísmo ocidental, p. 82. 143 Cf. VAZ, H. C. de L. Op. Cit., I, p. 31.

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olhar religioso que o pensador medieval dirige-se à filosofia grega, buscando

encontrar nela instrumentos racionais para a verdade teológica que, por sua

própria natureza, a ultrapassa. Escreve Lima Vaz: para Santo Tomas, “a

filosofia não é a sabedoria suprema. Na organização dos planos da visão

intelectual, ela se insere na categoria de verdades (...) que se apresentam como

bases ou instrumentos no trabalho de elaboração racional das verdades mais

altas [as verdades ‘reveladas’], que constituem o universo da fé. A filosofia é,

em outras palavras, a ‘metafísica de um teólogo’”144. A “cristianização”145 da

filosofia de Aristóteles é a expressão acabada e plenamente madura, mesmo

que tardia, desse olhar religioso dos medievais. “O pensador medieval nunca

esqueceu que sua filosofia era uma filosofia religiosa, com uma firme

persuasão a respeito do destino imortal do homem. O Motor Imóvel de

Aristóteles, e o Pai personalizado dos cristãos, haviam-se tornado uma só

coisa. Havia uma Razão e um Amor eternos, que eram, ao mesmo tempo,

Criador e Fim de todo o esquema cósmico, e com os quais o homem, como ser

dotado de razão e amor, tinha uma afinidade essencial. Essa afinidade era

revelada na experiência religiosa e tal experiência era, para o pensador

medieval, o fato científico culminante”146. Estabelece-se assim uma relação de

unidade entre Deus, o homem e o mundo. “O mundo da natureza existia para

que pudesse ser conhecido e desfrutado pelo homem. E o homem existia, por

sua vez, para que pudesse ‘conhecer a Deus e deleitar-se com ele para

sempre’”147. O naturalismo da cosmologia aristotélica é substituído, no mundo

medieval, por uma cosmologia religiosamente orientada, em que a ordem 144 Op. Cit. p. 31 145 “Se santo Tomás batizou Aristóteles, (...) assim procedendo, o batismo produziu seu efeito normal: primeiro teve que morrer o vetus homo para que nascesse um novo homem. O nome deste novo cristão havia de ser um nome cristão. Não seria Aristóteles: seu verdadeiro nome seria Tomás de Aquino”. GILSON, E. A existência na filosofia de Sto. Tomás, p. 10. 146 BURTT, E. A. As bases metafísica da ciência moderna, p. 13. 147 Idem, ibidem.

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natural expressa o mistério transcendente da natureza de Deus. Tudo gira em

torno do Deus que criou o mundo e todas as coisas que nele existem, mas que

transcende o mundo por ele criado e, da sua transcendência, conduz o destino

de toda ordem humana e física do universo. Deus é a causa eficiente original

de onde tudo o mais provém e, ao mesmo tempo, a causa final, para a qual

convergem todas as coisas. O teocentrismo identifica o cosmo medieval e o

diferencia do cosmo helênico.

Romper com essa visão do mundo, seja ela grega ou medieval, torna-se a

obsessão de Descartes. Toda sua filosofia apresenta-se com um objetivo

bastante claro: substituir a concepção de mundo derivada da física aristotélica,

bem como a concepção de mundo divinamente orientada dos teólogos. Desse

mundo, bem como das suas formas de interpretações, sobra muito pouco, ou

não sobra nada: em oposição à teologia que se afirma como a senhora das

ciências, Descartes apresenta a filosofia como único meio seguro e certo para a

obtenção do conhecimento verdadeiro. Se não bastasse esta perspectiva, que,

por si só, é revolucionária, pois altera completamente o ponto referencial

anterior, a partir do qual o mundo passa a ser interpretado, Descartes também

irá romper com a idéia de um saber derivado – no qual o homem tem um papel

secundário, cabendo-lhe observar e descrever a verdade, cujo fundamento o

antecede – e apresentar, em substituição a essa idéia, a sua grande tomada de

decisão: “não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar

em mim próprio (...)”148. Contando consigo mesmo, Descartes vai fundamentar

a nova ordem do saber. Pela primeira vez no pensamento ocidental a verdade

148 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47.

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tem sua origem no sujeito149. O homem passa a ser o construtor, o forjador da

verdade. Mas Descartes ainda não está satisfeito com só negar as formas de ver

e de interpretar o mundo, o que quer, e é isso que irá fazer, é destruir toda a

armadura gnosiológica sustentada e justificada pela ordem do cosmo helênico

e medieval. Não é mais possível reformar ou salvar o velho cosmo, ele

encontra-se perdido e, como tal, deve ser abandonado, deixado de lado:

“Quanto ao Cosmo, o Cosmo helênico, o Cosmo de Aristóteles e da Idade

Média, esse Cosmo já abalado pela ciência moderna, por Copérnico, Galileu e

Kepler, Descartes destrói-o inteiramente”150. Em substituição a esse velho

cosmo, Descartes apresenta um mundo, infinito (indefinido), aberto, em que a

matéria é nada mais que matéria, desprovida de qualquer finalidade, desprovida

de alma, dotada de uma natureza mecânica e que se deixa traduzir em uma

linguagem puramente matemática151. Se Copérnico e Galileu já anunciavam a

natureza deste novo mundo, é Descartes quem, apoiando-se nos ombros desses

dois gigantes, assume a responsabilidade de fundamentar, justificar e legitimar

a estrutura gnosiológica do mundo moderno.

Em 22 de julho de 1633, Descartes anuncia, em carta dirigida ao padre

Mersenne (1588 – 1648)152, que o seu tratado Le Monde153 encontra-se quase

149 Até Descartes, o filosofar parte de um pressuposto dado como verdadeiro, seja ele a physis dos pré-socráticos, a Idéia em Platão, a Substância em Aristóteles ou Deus na filosofia cristã. (...) Descartes, ao romper com a tradição filosófica, está rompendo com essa razão dependente, dela derivada, e construindo, em seu lugar, uma nova razão, fundamentada, primeiramente, na autodeterminação do sujeito pensante. BITENCOURT, J. A. Op. Cit., p. 29. 150 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 45. 151 Sobre as diferenças existentes entre a física de Descartes e a física de Aristóteles, escreve Laberthonnière: “Si l’on veut bien s’arrêter à chercher la différence qui existe, par exemple, entre la physique d’Aristote et la physique de Descartes, voici, me semble-t-il, ce qu’on découvrira. Tandis qu’Aristote par sa physique aboutissait à se représenter le monde comme un ensemble de formes constituant une harmonie éternelle et qu’il s’arrêtait à contempler pour en jouir en spectateur, Descartes par la sienne aboutit à concevoir le monde comme une machine bien agencée qui déroule ses effets dans le temps et qu’il entreprend de connaître non pour le contempler, mais pour apprendre à le faire fonctionner et à l’utiliser”. Études sur Descartes, II, p. 287. 152 Merssene, além de ser um teólogo, geômetra, físico, um homem devotado às coisas de Deus, foi também um homem profundamente relacionado com os acontencimentos intelectuais de seu tempo. Uma espécie de correio

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concluído: “O meu tratado se acha quase terminado faltando-me ainda corrigi-

lo e copiá-lo. E temo tanto tal trabalho que, se não tivesse prometido, há mais

de três anos vo-lo remeter ao fim deste ano, não creio que pudesse dispor de

tempo para seu remate. Mas vou me esforçar por cumprir a minha promessa,

pedindo-vos, enquanto isso, que me queirais bem”154. A intenção de Descartes,

com Le Monde, é anunciar a todos a invenção de um novo mundo, que se

apresenta em substituição ao velho cosmo dos helênicos e dos medievais.

Neste tratado Descartes “explica a formação do Sol, das estrelas, da Terra, da

Lua, pela teoria dos turbilhões, e professa o heliocentrismo: a Terra gira em

torno do Sol”155. Assume, não só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, mas

também uma interpretação puramente mecanicista da natureza da matéria.

Teses perigosas, pois o momento histórico e político não são nada favoráveis

ao acolhimento de idéias que coloquem em risco ou contestem a cosmovisão

derivada da física aristotélica e cristianizada pelos escolásticos. As

perseguições intelectuais e pessoais tornam-se marca registrada do período. Em

17 de fevereiro de 1600, Giordano Bruno (1548-1600) é quemado vivo; no dia

5 de Março de 1616, a obra de Copérnio foi posta no Índex156. No dia 22 de

intelectual do século XVII. Descartes o tem em alta estima. Em carta, datada de 11 de junho de 1649, dirigida a Carcavi, o próprio Descartes reconhece a importância que teve o padre Mersenne em sua vida intelectual: “J’avais cet avantage pendant la vie du bon Père Mersenne, que, bien que je ne m’enquisse jamais d’aucune chose, je ne laissais pas d’être averti soigneusement de tout ce qui se passait entre les doctes; en sorte que, s’il me faisait quelquefois des questions, il m’en payait fort libéralement les réponses, en me donnant avis de toutes les expériences que lui ou d’autres avaient faites, de toutes les rares inventions qu’on avait trouvées ou cherchées, de tous les livres nouveaux qui étaient en quelque estime, et enfin de toutes les controverses qui étaient entre les savants”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 929; AT., V, p. 365. 153 O Mundo e o Tratado do Homem constituem duas parte de uma mesma obra. Esta obra foi escrita por Descartes entre os anos de 1629 e 1635, mas só será publicada após a sua morte. Entretanto, parte dessa obra será públicada em 1637, sob o título de: Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences. Obra que ficou conhecida simplesmente como Discurso do Método. 154 DESCARTES, R. Correspondência, AT., I, p. 268; Tradução de VALERY, P. In: O pensamento vivo de Descartes, p. 127. 155 ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 49. 156 “(...) ‘Assim, pelo presente decreto, condena-os e proíbe-os inteiramente, quer já impressos, quer a serem-no em qualquer lugar e não importa em qual idioma’. A Sagrada Congregação, depois de listar uma série de livros que estão proibidos pelo presente Decreto, diz, sobre Copérnico e sua teoria: ‘Chegou também ao conhecimento da supracitada Sagrada Congregação que a falsa doutrina pitagórica da mobilidade da Terra e

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junho de 1633, a Congregação do Santo Ofício (atualmente Congregação para a

Doutrina da Fé) condena Galileu e a sua doutrina sobre o heliocentrismo,

proíbe o Diálogo, impondo ao seu autor a prisão domiciliar e a obrigação de

recitar semanalmente os setes salmos penitenciais157. Segundo os teólogos do

Santo Ofício, o heliocentrismo de Galileu, além de contrariar as verdades

reveladas nas Sagradas Escrituras, não estava suficientemente estabelecido.

imobilidade do Sol, totalmente contrária à Divina Escritura, que As revoluções dos orbes celestes, de Nicolau Copérnico e o Comentário sobre Jô, de Diego de Zúñiga ensinam, já se propaga e é aceito por muitos. Isto pode ser verificado por uma carta impressa por um certo padre carmelita cujo título é Carta do Reverendo Padre Mestre Paolo Antônio Foscarini Carmelita, sobre a opinião dos Pitagóricos e de Copérnico a respeito da mobilidade da Terra e estabilidade do Sol e o novo sistema Pitagórico do mundo, Nápoles, Lázzaro Scoriggio, 1615, na qual o referido padre se esforça por mostrar que a mencionada doutrina sobre a imobilidade do Sol no centro do mundo e a mobilidade da Terra concorda com a verdade e não se opõe à Sagrada Escritura. Assim, para que esta opinião não medre mais, destruindo a verdade católica, declaro que As revoluções dos orbes, de Nicolau Copérnico, e o Comentário sobre Jó, de Diego de Zúñiga, devem ser suspensos até que sejam corrigidos; (...); que todos os demais que ensinam o mesmo devem ser igualmente proibidos. De conformidade com o que, pelo presente Decreto, proíbe, condena e suspende a todos respectivamente. Em fé do que o presente Decreto foi assindado pessoalmente pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Rr. Cardeal de Santa Cecília, Bispo de Alba, e munido de seu selo no dia 5 de março de 1616’”. “Decreto da Sagrada Congregação dos ilustríssimos Cardeais da Santa Igreja Romana, especialmente delegada pelo Santíssimo Senhor Nosso Papa Paulo V e pela Santa Sé Apostólica para o Índice dos livros e para a permissão, proibição, correção e impressão dos mesmos em toda a República Cristã”. In: GALILEU, G. Ciência e Fé, Cartas de Galileu sobre o acordo do sitema copernicano com a Bíblia, Trad. Carlos Arthur R. do Nascimento, p. 107-108 (grifo nosso). 157 Sobre a posição da Igreja ante o heliocentrismo defendido por Galileu, é sugestiva a carta que o Cardeal Belarmino ( 1524 -1621) – Padre da Companhia de Jesus, professor de teologia, que tornou-se, em 1592, reitor do Colégio Romano e teólogo do Papa Clemente VIII, sendo por este nomeado cardeal em 1599 – envia, em 1615, bem antes da condenação de Galileu, a Paulo Antônio Foscarini, frade carmelita, partidário da ciência de Galileu. Nesta carta, Belarmino diz que se Galileu afirmasse hipoteticamente as suas teses, tal como fez Copérnico, seria mais fácil a Igreja aceitá-las. O que a Igreja não aceita, segundo ele, é que Galileu afirme, de forma definitiva, as suas teses, que vão frontalmente contra as palavras das Escrituras: “Digo que me parece que Vossa Paternidade e o Senhor Galileu ajam prudentemente, contentando-se em falar ‘por suposição’ e não de modo absoluto, como eu sempre cri que tenha falado Copérnico. Porque dizer que, suposto que a Terra se move e o Sol está parado, salvam-se todas as aparências melhor do que com a afirmação dos excêntricos e epiciclos, está dito muitíssimo bem e não há perigo algum. E isto basta para o matemático. Mas querer afirmar que real-mente o Sol está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do oriente ao ocidente e que a Terra está no 3º céu e gira com suma velocidade em volta do Sol, é coisa muito perigosa não só de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas Escrituras”. Continua Belarmino: “Digo que, como o Sr. sabe, o Concílio proíbe explicar as Escrituras contra o consenso comum dos Santos Padres. E, se Vossa Paternidade quiser ler, não digo apenas os Santos Padres, mas os comentários modernos sobre o Gênesis, sobre os Salmos, sobre os Eclesiastes, sobre Josué, verá que todos concordam em explicar literalmente que o Sol está no céu e gira em torno da Terra com suma velocidade e que a Terra está muitíssimo distante do céu e está imóvel no centro do mundo. Considere agora o Sr., com sua prudência, se a Igreja pode tolerar que se dê às Escrituras um sentido contrário aos Santos Padres e a todos os expositores gregos e latinos. Nem se pode responder que esta não é matéria de fé, porque, se não é matéria de fé ‘por parte do objeto’, é matéria de fé ‘por parte de quem fala’. Assim, seria herético quem disesse que Abraão não teve dois filhos e Jacó doze, como quem disesse que Cristo não nasceu de uma virgem, porque um e outro o diz o Espírito Santo pela boca dos Profetas e Apóstolos”. Carta de Roberto Belarmino a Paulo Antônio Foscarini, 12 de abril de 1615, In: Idem, ibidem, p. 105-106.

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Portanto, a nova doutrina constitui-se em grande perigo para a fé e deve ser

condenada, não sendo permitido defender ou assumir tais teses como

verdadeiras. Segundo a Igreja, a condenação de Galileu deve servir não só para

que no futuro o próprio Galileu seja mais cauteloso e reservado, mas também

de exemplo para que outros não tomem os mesmos caminhos que ele158.

Determina a Sagrada Congregação do Santo Ofício, na sentença imposta a

Galileu, ao qualificar teologicamente as proposições relativas ao

heliocentrismo159:

“Essendo che tu, Galileo fig.'° del q.m Vinc.°

Galilei, Fiorentino, dell' età tua d'anni 70, fosti

denuntiato del 1615 in questo S.° Off.°, che

tenevi come vera la falsa dottrina, da alcuni

insegnata, ch' il sole sia centro del mondo et

imobile, e che la terra si muova anco di moto

diurno; ch' havevi discepoli, a' quali insegnavi la

medesima dottrina; che circa l' istessa tenevi

corrispondenza con alcuni mattematici di

158 É bem provável que, aos olhos de muitos de seus adversários eclesiásticos, os estudos de Galileu parecessem uma pretensão exorbitante. Por exemplo, correu o boato em Florença de que o dominicano Tomás Caccini teria começado seu sermão no 4º domingo do Advento de 1614 com uma citação distorcida de Atos, 1,11, em vez de dizer “homens da Galileia por que ficais assim a olhar para o céu?”, teria ele dito “homens de Galileu por que ficais assim a olhar para o céu?”. Cf. PASCHINI, P. Vite e opere di Galileo Galilei, p. 297. Tal exorbitância adquiria relevo dentro da tradição medieval do “desprezo do mundo”, testemunhada, por exemplo, no Sobre a miséria da vida humana, de Inocêncio III (1160-1216): “Tu, homem, andas pesquisando ervas e árvores; estas, porém, produzem flores, folhas e frutos, e tu produzes lêndias, piolhos e vermes; daquelas brotam azeite, vinho e bálsamo, e do teu corpo escarros, urina e excrementos”. Apud, MONDOLFO, R. Figuras e Idéias da Filosofia da renascença, p. 11. Nem todos pensavam assim, como Mateus Caccini, irmão de Tomás e o superior dos dominicanos. Cf. VOCANDARD, E. “Verbe Galilée”, In: VACANT, A.; ANGENOT, E. (orgs.). Dictionnaire de Théologie Catholique, Tomo VI, 1º parte, co. 1061. 159 Dada a importância, não só para a história da ciência, como também para a própria história da cultura ocidental, será transcrita, na íntegra, em anexo, a sentença imposta pela Igreja Católica a Galileu e a sua obra, bem como a abjuração deste último (Cf. anexo, p. 400s). Este texto apresenta: 1º ) a qualificação teológica das proposições atribuídas a Galileu; 2º ) a admoestação do Cardeal Belarmino; 3º ) a publicação do Diálogo; 4º ) o crime de que Galileu é acusado (violentamente suspeito de heresia); 5º ) a sentença e a abjuração.

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Germania; che tu havevi dato alle stampe alcune

lettere intitolate Delle macchie solari, nelle

quali spiegavi l' istessa dottrina come vera; che

all' obbiettioni che alle volte ti venivano fatte,

tolte dalla Sacra Scrittura, rispondevi glosando

detta Scrittura conforme al tuo senso; e

successivamente fu presentata copia d' una

scrittura, sotto forma di lettera, quale si diceva

esser stata scritta da te ad un tale già tuo

discepolo, et in essa, seguendo la positione del

Copernico, si contengono varie propositioni

contro il vero senso et auttorità della Sacra

Scrittura”160.

Tomando conhecimento, ao fim de novembro de 1633, da condenação de

Galileu, bem como das teses relativas ao heliocentrismo, Descartes, que sempre

foi um homem cauteloso, deixa de publicar Le Monde, no qual encontravam-se

incorporadas, tomadas como absolutamente verdadeiras, as teses do

heliocentrismo e do mecanicismo matemático. Descartes mantêm-se em

silêncio e não divulga para o mundo as novas conquistas científicas, a partir das

quais fundamenta e justifica a nova ordem do universo. Respondendo a uma

carta, enviada pelo Pe. Mersenne, em 11 de novembro de 1633, na qual

Mersenne cobrava-lhe o envio de seu tratado que lhe fora prometido161,

Descartes, de forma bastante clara, indica qual o motivo que o fizera não

cumprir o prometido:

160 Documenti del Processo Galileiano esistenti nell’Archivio de S. Uffizio e nell’Arcchivio Segreto Vaticano, Apud, FAVARO, A. In: Galileo e L’Inquisizione, p. 143. 161 Cf. p. 68-69, acima.

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“... J'en étais à ce point, lorsque j'ai reçu votre

dernière de 1'onzième de ce mois (...). En effet

je m'étais proposé de vous envoyer mon Monde

pour ces étrennes, et il n'y a pas plus de quinze

jours que j'étais encore tout résolu de vous en

envoyer au moins une partie, si le tout ne

pouvait être transcrit en ce temps-là; mais je

vous dirai que, m'étant fait enquérir ces jours à

Leyde et à Amsterdam si le Système du Monde

de Galilée n'y était point, à cause qu'il me

semblait avoir appris qu'il avait été imprimé en

Italie l'année passée, on m'a mandé qu'il était

vrai qu'il avait été imprimé, mais que tous les

exemplaires en avaient été brûlés à Rome au

même temps, et lui condamné à quelque

amende: ce qui m'a si fort étonné, que je me suis

quasi résolu de brûler tous mes papiers ou du

moins de ne les laisser voir à personne. Car je

ne me suis pu imaginer que lui, qui est Italien et

même bien voulu du Pape, ainsi que j’entends,

ait pu être criminalisé pour autre chose, sinon

qu'il aura sans doute voulu établir le

mouvement de la Terre; lequel je sais bien avoir

été autrefois censuré par quelques Cardinaux,

mais je pensais avoir ouï dire que depuis on ne

laissait pas de 1'enseigner publiquement, même

dans Rome; et je confesse que, s'il est faux, tous

les fondements de ma Philosophie le sont aussi,

car il se démontre par eux évidemment. Et il est

tellement lié avec toutes les parties de mon

Traité, que je ne l'en saurais détachcr, sans

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rendre le reste tout défectueux. Mais comme je

ne voudrais pour rien du monde qu'il sortît de

moi un discours, où il se trouvât le moindre mot

qui fût désapprouvé de l'Église, aussi aimé-je

mieux le supprimer, que de le faire paraître

estropié. (...) II y a déjà tant d’opinions en

Philosophie qui ont de 1'apparence, et qui

peuvent être soutenues en dispute, que si les

miennes n'ont rien de plus certain et ne peuvent

être approuvées sans controverse, je ne les veux

jamais publier”162.

Descartes renuncia a publicar seu livro, não tanto para não desagradar a Igreja,

mas para não ir contra seu ensinamento; de fato, diz ele “desapprouvé” e não

“déplaisant” ou “déplaire”. Quer também evitar qualquer tipo de controvérsia.

Sabia que suas idéias, tal qual as de Copérnico e de Galileu, não seriam aceitas

entre os doutos ou mesmo entre aqueles que, não sendo tão doutos, não eram

partidários incondicionais das doutrinas defendidas pela Igreja, mas antes

“misturam Aristóteles com a Bíblia”: “Aussi n’ai-je pas voulu le taire, afin de

battre de leurs armes ceux qui mêlent Aristote avec la Bible, et veulent abuser

de l’autorité de l’Église pour exercer leurs passions, j’entends de ceux qui ont

fait condamner Galilée, et qui feraient bien condamner aussi mes opinions,

s’ils pouvaient, en même sorte”163. Durante toda sua vida Descartes tentou

preservar-se, buscou viver discretamente, não chamar muito atenção sobre si

162 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 487-488; AT., I, p. 270-271, (grifo nosso). 163 Idem; Alq., II, p. 323-324; AT., III, p. 349-350.

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mesmo; evitou, de todas as formas, se expor publicamente164. Assim, retirou-se,

escondeu-se, tornou-se um nômade residencial165. Abandonou a França, passou

grande parte da vida na Holanda – país onde sentia-se seguro para, longe de tudo e

de todos, sendo um simples anônimo no meio do povo, viver e trabalhar em paz166.

Mesmo na Holanda, protegido pelo anonimato, tomou certos cuidados: trocou

constantemente de endereço para dificultar que fosse localizado ou pertubado em seu

trabalho. Buscava, acima de qualquer coisa, como ele mesmo diz, “o repouso e a

tranquilidade de espírito”167. Nesta empreitada, muito lhe ajudou a amizade com o

164 Baillet, referindo-se ao período em que Descartes esteve em Paris, ou seja, entre 1625 e 1628 – o que vale para Paris, vale também para a Holanda, país no qual Descartes viveu grande parte de sua vida –, revela o modo discreto que Descartes adotou na adminstração de sua própria vida: “Il était servi d’un petit nombre de valets; il marchait sans train dans les rues; vêtu d’un simples taffetas vert selon la mode de ces temps-là, ne portant le plumet, l’écharpe et l’épée que comme des marques de sa qualité, dont il n’était point libre alors à un gentilhomme de se dispenser”. Vie de Monsieur Descartes, p. 60. 165 Sobre o espírito nômade de Descartes, escreve Alquié: “De fato, em 1629 encontramo-lo em Amesterdão e depois, em 1630, em Leyde. Depois de um regresso a Amesterdão, instala-se em Deventer (1632). Em 1633 está de novo em Amesterdão, mas em 1635, acha-se em Utreque. Volta a Leyde antes de se fixar, em 1637, em Santport, e vê-lo-emos ainda, mais tarde, mudar frequentemente de residência. E não podemos seguir todas as suas deslocações, porque, ‘quando escrevia aos seus amigos (...) datava habitualmente as cartas, não do lugar onde morava, mas de algumas cidades como Amesterdão, Leyde, onde estava certo de que não o encontrariam’. E ‘quando começava a ser demasiadamente conhecido num sítio e se via visitado com excessiva freqüência por possoas que lhe eram inúteis, não tardava a mudar de casa para quebrar esses hábitos e a retirar-se para outro local onde não fosse conhecido’”. A filosofia de Descartes, p. 33-34. 166 Em carta, dirigida a BALZAC, datada de 5 de maio de 1631, Descartes narra seu entusiasmo por ter encontrado a cidade ideal para viver e trabalhar em paz: “[...]Au lieu qu'en cette grande ville où je suis, n'y ayant aucun homme, excepté moi, qui n'exerce la marchandise, chacun y est tellement attentif à son profit, que j'y pourrais demeurer toute ma vie sans être jamais vu de personne. Je vais me promener tous les jours parmi la confusion d’un grand peuple, avec autant de liberté et de repos que vous sauriez faire dans vos allées, et je n'y considère pas autrement les hommes que j'y vois, que je ferais les arbres qui se rencontrent en vos forets, ou les animaux qui y paissent. Le bruit même de leur tracas, n'interrompt pas plus mes rêveries que ferait celui de quelque ruisseau.[...] Que s'il y a du plaisir à voir croître les fruits en vos vergers, et à y être dans l’abondance jusqu'aux yeux, pensez-vous qu'il n 'y en ait pas bien autant, à voir venir ici des vaisseaux, qui nous apportent abondamment tout ce que produisent les Indes, et tout ce qu'il y a de rare en Europe? Quel autre lieu pourrait-on choisir au reste du monde, où toutes les commodités de la vie, et toutes les curiosités qui peuvent être souhaitées, soient si faciles à trouver qu'en celui-ci? Quel autre pays, où l'on puisse jouir d'une líberté si entière, où l'on puisse dormir avec moins d'inquétude, où il y ait toujours des armées sur pied exprès pour nous garder, où les empoisonnements, les trahisons, les calomnies soient moins connus, et où il soit demeuré plus de reste de l'innocence de nos aïeux? [...] Que si vous craignez les hivers du Septentrion, dites-moi quelles ombres, quel éventail, quelles fontaines vous pourraient si bien préserver à Rome des incommodités de la chaleur, comme un poêle et un grand feu vous exempteront ici d'avoir froid?” DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 292-293; AT., I, p. 203 -204. 167 “Pour moi, je ne cherche que le repos et la tranquillité d’esprit, qui sont des biens qui ne peuvent être possédés par ceux qui ont de l’animosité ou de l’ambition; et je ne demeure pas cependant sans sien faire, mais je ne pense pour maintenant qu’à m’instruire moi-même, et me juge fort peu capable de servir à instruire les autres, principalement ceux qui, ayant déjà acquis quelque crédit par de fausses opinions, auraient peut-être peur de le perdre, si la vérité se déscouvrait”. Alq., I, p. 493; AT., I, p. 282. Sobre essa pretenção de Descartes,

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Pe. Mersenne que, através da correspondência, não só o preservava, nunca

divulgando o seu verdadeiro endereço, como também mantinha-o sempre bem

informado de tudo que ocorria no mundo intelectual da época168. Assim, Descartes

podia trabalhar em paz, tendo próximos poucos amigos169 e partidários de sua

diz Alquié: O estranho é que, declarando não ter outra preocupação além do seu repouso, ele muda sem cessar de residência: damos com ele em Franeker, em Amsterdão, em Leida, em Deventer, em Sandport, em Hardenwijk, em Endegeest, em Egmond de Hoef, e o seu biógrafo, Baillet, poderá afirmar que o seu eremitério ‘quase nada teve de mais estável que a estada dos Israelitas na Arábia deserta’. Qual o motivo destas ininterruptas mudanças? Devemos ver nelas o efeito do sensato desejo de evitar os importunos, ou o sinal de uma incurável inquietude? Não nos é possível, neste domínio, asseverar o que quer que seja”. ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o Mecanismo, p. 19. O ideal solitário de encontrar seu próprio deserto para poder trabalhar em paz, tornou-se, para Descartes, uma busca obsessiva por toda vida. Em uma das suas últimas cartas, dirigida a Brégy, escrita no mês anterior à sua morte, em 15 de janeiro de 1650 – Descartes nasce em 31 de março de 1596 e morre em 11 de fevereiro de 1650 -, quando ele se encontrava a serviço da rainha Christine, volta a reafirmar, o que afirmou durante toda sua vida: o desejo de retornar ao seu deserto em busca da sua tranqüilidade e de seu repouso, podendo assim, trabalhar e viver em paz: “je vous jure que le désir que j’ai de retourner en mon désert, s’augmente tous les jours de plus en plus. (...) Je ne suis pas ici en mon élément, et je ne désire que la tranquillité et le repos, qui sont des biens que les plus puissants rois de la terre ne peuvent donner à ceux qui ne les savent pas prendre d’aux-mêmes”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 1121-1122; AT., V, p. 467. 168 “Pour se garder à lui, jouir de sa liberté, Descartes évite le public mondain, la foule des curieux: ses lecteurs. Pourtant 1'une des préoccupations du philosophe, dans son ‘désert’, est d'écrire pour le monde, en ne négligeant aucun de ses empires, et de s'enquérir auprès de ses correspondants, avec une insistance qui frise parfois l'indécence, de ce que le monde dit de lui et de ses écrits”. CAVAILLÉ, J.-P. Descartes – la fable du monde, p. 294. 169 Eis os principais amigos de Descartes, segundo Baillet: “Les principaux de ses amis, outre M. de Balzac dont nous venons de parler, furent M. Hardy, conseiller au Châtelet, habile dans la connaissance des mathématiques de d’un très grand nombre de langues. M. de Beaune, sieur de Goulion, conseiller au présidial de Blois, l’un des plus grands génies de son temps, en ce qui concernait les mathématique. M. Morin, professeur royal des mathématiques à Paris et docteur en médecine. Le Père Gibieuf, docteur de Sorbonne et prêtre de l’Oratoire, l’un des plus grands théologiens de son siècle. Le Père de la Barde, le Père de Sancy, le Père de Gondren, tout de la même congrégation, outre le Cardinal de Berulle qui en était le chef. M. des Argues, gentilhomme lionnois, habile dans les mécaniques. M. de Boissat, gentilhomme du Dauphiné qu’il avait vu au siège de Gavi. M. de Serizay, intendant de la Maison de M. de la Rochefaucauld. M. Sarazin, qui fur secrétaire de M. le Prince de Conti. M. Silhon, gentilhomme de Gascogne. M. Frenicle, sieur de Bessy. M. Iumeau, prieur de Sainte-Croix, qui passait pour l’un des grands arithméticiens du sècle avec M. Frenicle, et qui avait été précepteur de M. le Duc de Verneuil. M. de Marandé, greffier de la Cour des Aides. M. l’abbé de Launay. M. des Barreaux, M. l’abbé de Touchelaye l’aîné. M. de Gandais, M. de Ville-Arnoux, M. de Ville-Bressieux, médecin de Grenoble; et plusieurs outres encore, dont nous ne nommerons que M. Picot, Prieur du Rouvre, qui voulut être dans la suite des temps son correspondant et l’agent de ses affaires domestiques”. BAILLET. A. Op. Cit., p. 64-65. Hirschberger apresenta aqueles que, mais que amigos de Descartes, foram, principalmente, os primeiros partidários de sua ciência: “Na Holanda, sua segunda pátria, foi logo a sua Filosofia representada em Utrecht pelo filósofo RENERI (+ 1639) e o médico REGIUS (+ 1679). Em Leyden por João DE RAEY, GEILINCX e outros; e, em Amsterdão, o médico METER escreve, em 1666, de acordo com as suas idéias. Na França são cartesianos: CLAUDE DE CLERSELIER (+ 1686) que, mais tarde, publicará as obras póstumas de DESCARTES; o físico JACQUES ROHAULT (+ 1675); SILVANO RÉGIS, partidário do empirismo (+1707); assim como largos círculos eclesiásticos, em particular os oratorianos – em especial o cardeal BÉRULLE, fundador do Oratório; e os jansenistas de PORT-ROYAL. A Lógica de PORT-ROYAL, organizada por ANTOINE ARNAULD (+ 1694) e PIERRE NICOLE (+ 1695), aproveitando-se de esboços de PASCAL, é, em substância, Filosofia cartesiana. Mas também ambos os célebres bispos, BOSSUET e FÉNELON, decidem-se pelo cartesianismo. In-troduziram a doutrina na Alemanha JOHANNES CLAUBERG, (+ 1699) ; na Itália, MICHELANGELO FARDELLA (+

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ciência, distantes seus inimigos170 e opositores a sua ciência, que não eram poucos,

evitando expor-se a controvérsias que, segundo ele, só o desgastavam e roubavam-lhe

tempo precioso, que deveria ser totalmente dedicado às pesquisas científicas. Ao

recusar-se a publicar o livro (Le Monde), Descartes evita ao mesmo tempo, associar

publicamente suas idéias às de Galileu; evita indispor-se diretamente com a Igreja;

evita o confronto com os aristotélicos que, a seus olhos, não são muito confiáveis

quando se envolvem numa disputa intelectual171. Os aristotélicos, em sua grande

maioria, tinham adquirido autoridade suficiente, seja nas Universidades ou dentro da

hierarquia da Igreja, para colocar em risco, não só suas teses científicas, como

também sua própria vida. Não se deve esquecer que a ciência de Descartes é

excessivamente perigosa, ela coloca em risco a ordem do cosmo e a posição do

próprio homem no interior deste. Indo mais além, a verdade da Sagrada Escritura e a

autoridade da Igreja. Não são descabidos ou ingênuos os cuidados de Descartes em

proteger-se, bem como suas “perigosas” teses no campo da ciência e da filosofia.

Não demora muito, começam as proibições e censuras à sua obra. Primeiro por parte

dos calvinistas holandeses: em 1642 é proibido, censurado na Universidade de

Utrecht, em seguida, em 1648, é a vez de ser proibido em Leyden; em 1656, é

proibido nos estados da Holanda. Em 1663 as obras de Descartes são incluídas no

Index de Roma - Tribunal do santo ofício172.

1718) que fundiu o augustinismo com o cartesianismo e as doutrinas de MALEBRANCHE”. História da filosofia moderna, p. 131. 170 Entre seus inimigos ou simplesmente opositores de sua ciência, encontram-se: “o atomista GASSENDI, o materialista e nominalista HOBBES, o professor de teologia protestante de Utrecht, VOÉCIO (+ 1676), influenciado por ARISTÓTELES; muitos jesuítas; o bispo DANIEL HUET (+ 1721); o neoplatônico inglês HENRY MORE (+ 1687)”. Idem, ibidem, p. 131-132. 171 “Eles [os partidários de Aristóteles] me parecem semelhantes a um cego que, para se bater sem desvantagem com alguém que vê, o fizesse vir ao fundo de alguma adega muito obscura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me abstenha de publicar os princípios da Filosofia de que me sirvo: pois, sendo muito simples e muito evidentes, como o são, faria quase o mesmo, publicando-os, que se abrisse alguma janela, e fizesse entrar a luz nessa adega, para onde desceram para se bater”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 98. 172 Cf. HIRSCHBERGER, J. História da filosofia moderna, p. 130-131.

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No mês de abril de 1634, Descartes reafirma ao Pe. Mersenne que embora

reconhecendo que as teses do helicentrismo são absolutamente verdadeiras e que a

eventual falsidade dessas teses implicaria na falsidade de suas próprias teses

defendidas em Le Monde, já que estas se sustentam a partir daquelas, “je ne voudrais

toutefois pour rien du monde les soutenir contre l’autorité de l'Église”173. Como

já foi assinalado (cf. p. 69-70), Descartes mostra-se cauteloso; diante do perigo,

revela: “le désir que j'ai de vivre en repos et de continuer la vie que j'ai

commencée en prenant pour ma devise : bene vixit, bene qui latuit”174. Descartes

está a par do valor doutrinal relativo da sentença dos inquisidores: “Je sais bien

qu’on pourrait dire que tout ce que les Inquisiteurs de Rome ont decidé n’est

pas incontinent article de foi pour cela, et qu’il faut premièrement que le

Concile y ait passé”175. O fato é que Descartes não publicará em vida seu livro,

preferindo não se valer da consideração acima176. Entretanto, apesar da

condenação de Galileu, mantendo-se em silêncio, em todos os sentidos, não só

sobre esta, bem como sobre a divulgação de suas próprias idéias, relembrando

que “ne voyant point encore que cette censure ait été autorisée par le Pape ni

par le Concile, mais seulement par une Congrégation particulière des

Cardinaux Inquisiteurs”177, Descartes guarda a esperança de que tal condenação

possa ser revogada, que a direção dos ventos mude a seu favor e aí, quem sabe,

poderá anunciar publicamente ao mundo os fundamentos da única ciência

173 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 494-495; AT., I, p. 285. 174 Idem, Ibidem. 175 DESCARTES, R. Correpondência, Alq., I, p. 495; AT., I, p. 285. 176 Este assunto será retomado, de forma mais aprofundada no segundo capítulo deste trabalho, quando forem tratados os aspectos filosóficos e políticos da metafísica cartesiana. 177 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 497; AT., I, p. 285-286.

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verdadeira e certa: “et ainsi que mon Monde ne puisse voir le jour avec le

temps; auquel cas j'aurai besoin moi même de me servir de mes raisons”178.

Ao longo de toda sua vida Descartes não perdeu a esperança de ter um dia suas

idéias, defendidas em Le Monde, acolhidas pelos sábios e teólogos. Todas suas

obras publicadas, Discours de la Méthode (1637), Méditations Métaphysiques

(1641), Principes de la Philosophie (1644), Les Passions de l’Âme (1649), têm

a mesma intenção: apresentar seu pensamento como a ciência verdadeira e tê-

la, em substituição à velha ciência aristotélica-escolástica, adotada nas escolas

da cristandade179. Essa intenção de Descarte fica mais clara ainda, quando da

publicação dos Princípios da Filosofia. Neste livro, publicado em forma de

teses, como eram os textos adotados pelas escolas, Descartes pretende fazer

uma comparação entre sua filosofia e a filosofia de Aristóteles, adotada nos

manuais escolares. O texto escolhido para servir de contraponto à sua filosofia

é o manual do Padre Eustache. Como o Padre Eustache acaba morrendo antes

que Descartes concretizasse seu objetivo, este desiste de seu projeto original e,

em 1644, publica seu livro, contendo só as teses de sua ciência, sem estabelecer

nenhum confronto mais direto com os manuais escolásticos. Entretanto, a idéia

que movia o projeto de Descartes é bastante clara: prentende ver sua filosofia

adotada nas escolas cristãs, em substituição à filosofia de ordinária. O próprio

Descartes revela a Mersenne, em carta datada de 11 de novembro de 1640, qual

é o seu projeto: “(...) je vous dirai que je me suis résolu de les écrire avant que

de partir de ce pays, et de les publier peut être avant qu’il soit un an. Et mon

dessein est d’écrire par ordre tout un cours de ma Philosophie en forme de

thèses où sans aucune superfluité de discours, je mettrai seulement toutes mes 178 Idem, Alq., I, p. 497; AT., I, p. 288. 179 Cf. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 275; AT., III, p. 233.

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conclusions, avec les vraies raisons d’où je les tire, ce que je crois pouvoir faire

en fort peu de mots; et au même livre, de faire imprimer un cours de la

Philosophie ordinaire, tel que peut être celui du frère Eustache, avec mes notes

à la fin de chaque question, ou j’ajouterai les diverses opinions des autres, et ce

qu’on doit croire de toutes, et peut-être à la fin je ferai une comparaison de ces

deux philosophies”180. O mundo precisa conhecer e reconhecer sua filosofia.

Descartes não só busca o reconhecimento para sua obra, mas, também, seu

próprio reconhecimento enquanto filósofo. A esperança de ser alcançado pelo

sucesso, não é algo estranho à alma do filósofo. O próprio Descartes revela que

sendo ele um homem, como outro qualquer, também deseja o sucesso: “étant

homme comme les autres, je ne suis pas de ces insensibles qui ne se laissent

point toucher par le succès”181.

Em busca da concretização do projeto, Descartes traça várias estratégias na

tentativa de alcançar seu objetivo. Sua primeira estratégia “é divulgar o plano da

metafísica, da física e delas publicar completamente alguns extratos. Ao verem que

ele fornece provas convincentes da existência de Deus e da imortalidade da alma,

bem como uma ciência capaz de transformar a condição humana, teólogos e sábios

unir-se-ão talvez para lhe solicitar a publicação do seu livro, Le Monde, e garantir-lhe

a possibilidade de o editar sem ser molestado. Descartes publica, então, a Dióptrica,

os Meteoros e a Geometria para demonstrar a excelência de seu método; um

prefácio deve definir-lhe o espírito e dar a sensação da sua universal fecundidade, é

180 Idem, ibidem. 181 Idem, ibidem, Alq., III, p. 543; AT., IV, p. 157-158. Descartes escreve essa carta, ao padre Charlet, em 9 de fevereiro de 1645, bem depois do período da publicação do Discurso do Método que foi em 1637, mais precisamente, em 8 de junho de 1637. Entretanto, não é nenhum excesso afimar que o desejo de ser reconhecido, de ter sua filosofia aceita no universo culto de seu tempo, de obter sucesso em seu projeto filosófico, encontra-se presente desde a nascente de sua reflexão filosófica.

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o Discurso do Método (1637)”182. Este livro será publicado, sem o nome do

autor, em 1637, em língua francesa, o que não é comum na época, já que todas

as publicações eram feitas em latim, a língua culta daquele período183. Não é

desprovida de intenção a atitude de Descartes; ele prertende, como parte de sua

estratégia para a divulgação de suas idéias filosóficas, alcançar não só o público

culto, aquele versado nas filosofias antigas, mas, principalmente, o público

leigo que ainda não se encontra contaminado ou prisioneiro dos livros antigos

e, por isso mesmo, torna-se mais recepitivo às novas idéias, mais recepitivo à

aurora dos novos tempos. Descartes confirma essa estratégia ao escrever: “ (...)

se escrevo em francês, que é a língua do meu país, e não em latim, que é a de

meus preceptores, é porque espero que aqueles que se servem apenas de sua

razão natural inteiramente pura, julgarão melhor minhas opiniões, do que

aqueles que não acreditam senão nos livros antigos. E quanto aos que unem o

bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, não serão de

modo algum, tenho certeza, tão parciais em favor do latim, que recusem ouvir

minhas razões, porque as explico em língua vulgar”184.

No entanto, o grande sucesso que o Discurso do Método obteve não foi a

aceitação de suas teses científicas; estas, pelo contrário, geraram discussões e

controvérsias, coisa que Descartes buscava evitar de toda forma; o sucesso

obtido pelo Discurso foi com a introdução destinada a apresentar o que

Descartes verdadeiramente queria que fosse conhecido e aceito: os seus três

ensaios científicos. O Discurso do Método, propriamente dito, só tinha a 182 GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 12. 183 Diante do ocorrido com Galileu, Descartes toma todos os cuidados para não se indispor diretamente com as autoridades, tanto que a primeira edição do Discurso do Método, publicada em 8 de junho de 1637, sai sem a identificação do autor da obra. (Cf. II cap., nota 273 e 274) 184 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 102.

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intenção de mostrar os caminhos ou o método adotado pelo autor para alcançar

o conhecimento verdadeiro e certo sobre todas as coisas. Descartes busca

mostrar na introdução, os caminhos intelectuais que ele próprio percorreu para

alcançar as verdades da ciência, verdades estas apresentadas nos três ensaios

que seguem o Discurso. “Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método

que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de

que maneira me esforcei por conduzir a minha”185. Esta mesma inteção está

presente na carta de 27 de fevereiro de 1637, quando Descartes justifica a

Mersenne o que o teria levado a escolher o Discurso do Método, como título de

sua obra: “car je ne mets pas Traité de la Méthode, mais Discours de la

Méthode, ce qui est le même que Préface ou Avis touchant de la Méthode, pour

montrer que je n’ai pas dessein de l’enseigner, mais seulement d’en parler”186.

Apesar dessa aparente humildade, o projeto de Descarte é grandioso; ele

próprio diz com todas as letras qual é sua verdadeira intenção: “Mas, tão logo

adquiri algumas noções gerais relativas à Física, e, começando a comprová-las

em diversas dificuldades particulares, notei até onde podiam conduzir, e o

quanto diferem dos princípios que foram utilizados até o presente, julguei que

não podia mantê-las ocultas, sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga

a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas

me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à

vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se

pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do

fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos

cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos

185 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. 186 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 521-522; AT., I, p. 349. Há uma discordância entre as edições de AT. e Alq. no que se refere à datação desta carta. Segundo a ed. de AT., ela é de março (sem indicar o dia) de 1637; já segundo a edição de Alq., ela é de 27 de fevereiro de 1637.

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artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os

quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da

natureza”187. Na seqüência do texto Descartes explicita o que diz respeito à

mecânica e à medicina, que respectivamente aliviariam a humanidade de seu

trabalho e ajudariam a manter a saúde e a prolongar indefinidamente a vida, tendo

inclusive repercussões sobre o caráter das pessoas188. Descartes quer tirar o

homem de uma atitude puramente contemplativa e inculcar nele um ideal como

que prometéico ou faustiano, graças às aplicações técnicas da nova ciência.

Assim, no início da quinta parte do Discurso, Descartes apresenta, de forma

resumida, procurando evitar detalhes controversos, as principais teses que

defendera em Le Monde, as quais, por cautela e segurança, declinou de publicar:

“Mas, dado que procurei explicar as principais num tratado que certas

considerações me impedem de publicar189, não poderia dá-las melhor a

conhecer do que dizendo aqui, sumariamente, o que ele contém”190:

“Eu pretendia, antes de escrevê-lo, incluir nele

tudo o que julgava saber, quanto à natureza das

coisas materiais. (...), temendo não poder pôr

em meu discurso tudo o que tinha no pensa-

mento, tentei apenas expor bem amplamente o

que concebia da luz; depois, no seu ensejo,

acrescentar alguma coisa sobre o sol e as

estrelas fixas, porque a luz procede quase toda

187 Idem, p. 91. 188 Em oposição a uma filosofia puramente especulativa, contemplativa, Descartes apresenta uma filosofia eminentemente prática, uma filosofia voltada para a vida ordinária dos homens. Uma filosofia últil à vida. 189 Descartes se refere aqui à condenação de Galileu, o que o fez tomar a decisão de não publicar o seu livro, Le Monde. 190 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 74.

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deles; sobre os céus, porque a transmitem;

sobre os planetas, os cometas e a terra, porque

a refletem; e, em particular, sobre todos os

corpos que há sobre a terra, porque são ou

coloridos, ou transparentes, ou luminosos; e

enfim sobre o homem, porque é o seu

espectador”191.

Aqui começa o que se poderia chamar de jogo de simulação de Descartes: não se

mostra inteiramente, não se expõe verdadeiramente, não joga com todas as cartas

abertas sobre mesa; seu leitor ou mesmo opositor nunca saberá verdadeiramente o

jogo que está sendo jogado192; não confia o suficiente neles para deixar ver suas

verdadeiras intenções. Por questão de segurança, é preciso cuidado, não se expor

em excesso, não tornar trasparente no discurso aquilo que seu pensamento

verdadeiramente está pensando. Há sempre em seu texto um silêncio, um subtexto,

um dizer que não diz tudo, uma armadilha193. Sua linguagem, quase não é

filosófica, está muito próxima da linguagem quotidiana, cheia de metáforas, de

licenças poéticas, de fábulas, de truques que, em sua aparente simplicidade, vão

conquistando o leitor que, ao ler, sente-se como se estivesse lendo um romance,

uma fábula, que fala do homem, do mundo e da vida194. Este recurso literário

191 Idem, ibidem, (grifo nosso). 192 “Descartes evita intencionalmente publicar os pormenores de suas descobertas, e até modifica seu modo de exposição para que aqueles que venham a lê-lo não possam envaidecer-se de sempre as ter conhecido. Foi de propósito que, principalmente, tornou obscura sua Geometria”. GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 109, nota 31. 193 Segundo Malebranche para ler Descartes: “Não é preciso de modo algum acreditar na sua palavra, mas lê-lo como ele próprio nos adverte, com precaução, examinando se nunca se enganou, e não acreditando em nada do que ele diz, senão no que a evidência e as observações secretas da nossa razão nos obrigarem a acreditar”. Apud, RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, p. 80. É verdade que esta indicação pode visar antes de tudo sublinhar que o leitor deve submeter o texto ao crivo de sua razão e não tomá-lo como uma “autoridade”. 194 “Ensuite de quoi, néanmoins, je ne vous promets pas de mettre ici des démonstrations exactes de toutes les choses que je dirai; ce sera assez que je vous ouvre le chemin, par lequel vous les pourrez trouver de vous-

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contém um elemento de simulação: a beleza do canto, que tem a intenção de

seduzir a todos, não denucia, de imediato, aos navegadores, os perigos que os

aguardam ao aportarem em sua ilha. Nada em Descartes é sem propósito; pelo

menos a igenuidade não faz parte de seu espírito. Cada palavra é posta com

intenção certa; ele escreve como se estivesse elaborando um cálculo matemático195.

O que está em silêncio, por trás de cada palavra que escreve, além da intenção de

preservar-se, não se mostrando por inteiro, é a intenção de convencer, seduzir e

conquiatar a todos para sua filosofia, para a ciência. É esse artifício que transparece

nas palavras de Descartes, quando, ao final da quinta parte do Discurso do Método,

num jogo de sombra e luz, apresenta as teses que constituem os fundamentos de

sua ciência, buscando, através dos labirintos da linguagem, não se expor

excessivamente, protegendo-se com a própria linguagem para, assim, obter melhor

êxito do que obteve Galileu ao expor publicamente suas idéias: “tal como os

pintores que, não podendo representar igualmente bem num quadro plano todas

as diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais, que colocam à

luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto se possa vê-las ao

olhar aquela”196. Não se deve esquecer que as principais teses de Galileu

encontram-se incorporadas à ciência de Descartes. É preciso defender a ciência de

Galileu, sem falar de Galileu, é preciso defender o heliocentrismo, sem falar que a

même, quand vous prendrez la peine de les chercher. La plupart des esprits se dégoûtent, lorsqu'on leur rend les choses trop faciles. Et pour faire ici un tableau qui vous agrée, il est besoin que j ' y emploie de l'ombre aussi bien que des couleurs claires. Si bien que je me contenterai de poursuivre la description que j'ai commencée, comme n'ayant autre dessein que de vous raconter une fable”. DESCARTES, R. Le Monde, Alq., I, p. 364; AT., XI, p. 48. 195 “La philosophie cartésienne se veut rigoureusement démonstrative. Son auteur ne cesse de répéter qu’il suit l’ordre des géomètres, qu’il n’y a pas de bonne démonstration en philosophie qui ne soit mathématique, que son oeuvre ne peut être saisie par ceux qui n’ont pas l’esprit mathématique”. GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 12. 196 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 74.

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terra gira em torno do sol. Para dizer a verdade sobre o mundo real é preciso torná-

lo irreal, fazer dele uma ficção, trasformá-lo em uma fábula197.

Descartes tem plena consciência dos riscos que corre, tanto assim que prevendo-os

tenta evitá-los198. Todas as questões tratadas em seu Mundo, já tinham sido tratadas

pela cosmologia tradicional, associada à teologia cristã. Os doutos, dialéticos

hábeis nas disputas e frágeis no domínio da verdadeira ciência, estão a postos para

combater, condenar, queimar, quem quer que ponha em risco a velha ordem do

mundo. Descartes sabe disso. O que fazer então? Calar-se definitivamente? Expor-

se de forma direta e correr todos os riscos? Quem sabe não seria melhor encontrar

um meio de falar do mundo tal qual ele é, sem, no entanto, deixar perceber que se

está tratando diretamente do mundo dos sábios e dos doutos escolásticos? É 197 “Le recours à la forme fable nous apparaît main tenant comme l'adoption d'une convention littéraire prisée du lecteur ‘honnête’, ceci en vue d'y couler, comme dans un moule, des vérités inédites, une philosophie nouvelle et potentiellement scandaleuse, et afin non pas seulement de rendre cette philosophie crédible, vraisemblable (comme doit 1'être la ‘fable’ d'un roman ou d'une comédie), mais pour la faire recevoir pour ‘vraie’, en la donnant à performer sous une forme ludique au lecteur lui-même”. CAVAILLÉ, J.-P. Descartes – la fable du monde, p. 200. 198 Se em sua correspondência, onde não corre risco ou corre um risco bem menor, Descartes confessa abertamente que assimila à sua ciência as principais teses da ciência de Galileu (“je confesse que, s'il [o movimento da terra] est faux, tous les fondements de ma Philosophie le sont aussi, car il se démontre par eux évidemment. Et il est tellement lié avec toutes les parties de mon Traité, que je ne l'en saurais détacher, sans rendre le reste tout défectueux”. O mesmo não ocorre quado se trata de tornar suas idéias públicas. Nota-se a cautela de Descartes quando, no início da sexta parte do Discurso, evita, deliberadamente, se associar à ciência de Galileu. Não cita o nome de Galileu, não o defende e não assume que partilha das mesmas idéias, como o fez na correspndência: “ora, faz agora três anos que chegara ao fim do tratado que contém todas essas coisas, e que começara a revê-lo, a fim de pô-lo em mãos de um impressor, quando soube que pessoas, a quem respeito e cuja autoridade sobre minhas ações quase não é menor que minha própria razão sobre meus pensamentos, haviam desaprovado uma opinião de Física, publicada pouco antes por alguém, opinião que não quero dizer que a partilhasse, mas que nada reparara nela, antes de a censurarem, que pudesse imaginar ser prejudicial ou à Religião ou ao Estado, nem, por conseguinte, que me impedisse de escrevê-la, se a razão mo houvesse persuadido, e isso me fez recear que se encontrasse, do mesmo modo alguma entre as minhas, na qual me tivesse enganado, não obstante o grande cuidado que sempre tomei em não acolher novas em minha confiança, das quais não tivesse demonstrações muito certas, e de não escrever nenhuma que pudesse resultar em desvantagem para qualquer pessoa. O que bastou para me obrigar a mudar a resolução que eu tomara de publicá-las. Pois, embora as razões, pelas quais eu a adotara anteriormente, fossem muito fortes, minha inclinação, que sempre me movera a detestar o mister de fazer livros, me levou incontinênti a achar muitas outras para me escusar dela. E essas razões de uma parte e de outra são tais, que não só tenho aqui algum interesse em dizê-las, como talvez o público também o tenha em conhecê-las” DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 90, (grifo nosso).

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exatamente essa a saída encontrada por Descartes: supor um novo mundo; falar do

mundo real como se estivesse contando uma fábula. Assim, Descartes resolve,

estrategicamente, abandonar este mundo, não mais se submeter às disputas com os

doutos e defensores do velho mundo e, em seu lugar, supor um novo mundo que

obedeça não mais a uma ordem natural sacralizada, mas que esteja todo ele

submetido à autocracia racional que se expressa em linguagem puramente

matemática. Um mundo que, em sua essência, tenha uma estrutura matemática.

Razão e mundo expressam-se numa mesma linguagem: a linguagem da

matemática.

“(...) resolvi-me a deixar todo esse mundo às suas

disputas, e a falar somente do que aconteceria

num novo, se Deus criasse agora em qualquer

parte, nos espaços imaginários, bastante matéria

para compô-lo, e se agitasse diversamente, e

sem ordem, as diversas partes desta matéria, de

modo que compusesse com ela um caos tão

confuso quanto os poetas possam fazer crer, e

que, em seguida, não fizesse outra coisa senão

prestar o seu concurso comum à natureza, e

deixá-la agir segundo as leis por ele

estabelecidas”199.

199 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 75. Este modelo de proceder relembraria vários outros como o “salvar os fenômenos” da astronomia antiga e medieval, o “raciocínio de acordo com a imaginação” do final da Idade Média e mesmo as “experiências de pensamento” de Galileu. Não seria enfim impossível ver nele algo do raciocínio de acordo com o “poder absoluto” de Deus, costumeiro em Guilherme de Ockham. Ver, entre outros, DUHEM, P. “Salvar os fenômenos”. Cadernos de história e filosofia da ciência, p. 5-105; GRANT, E. Hipóteses no fim da Idade Média e nos primórdios da ciência modena. In: Iniciação à história da ciência, p. 41-57; KOYRÉ, A. “Le De motu gravium de Galilée. De l’expérience imaginaire et de son abus”. In: Idem, Étude d’histoire de la pensée scientifique, p. 203-249.

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Descartes buscava, assim, ter mais liberdade e segurança para apresentar suas

idéias. Não é justo negar ao mundo o conhecimento do seu Mundo. O mundo

precisa conhecê-lo200. “Meu Mundo em breve verá o mundo”201. Sua esperança

é que seus leitores fossem se acostumando com sua fábula, sem se dar conta, de

imediato, do que ele estava verdadeiramente propondo. Com isso, Descartes

acredita poder: primeiro, conquistar os leitores para suas idéias, sem assutá-los

com o novo mundo que lhes apresenta; segundo, não deixar que os aristotélicos

percebam que seu mundo confronta-se e destrói completamente o velho mundo

de Aristóteles, tão caro aos escolásticos202. O próprio Descartes, em carta

enviada a Mersenne, em 28 de janeiro de 1641, quando da publicação das

Meditações, deixa claro quais são as suas verdadeiras intenções. Intenções que

já se encontram presentes em todas as suas obras anteriores às Meditações.

Desde o início, o alvo de Descartes – não o único, mas o principal - é

Aristóteles, seu projeto é destruí-lo. Tem plena consciência que a aceitação de

sua ciência implica, necessariamente, na destruição da ciência de Aristóteles e

de seus seguidores.

“... je vous dirai, entre nous, que ces six

Meditations contiennent tous fondements de ma

200 “Hors du monde, dans les espaces imaginaires d’un loisir jalousement protégé, Descartes écrit son Monde pour le monde”. CAVAILLÉ, J.-P. Op. Cit., p. 294. 201 Cf. DESCARTES, R. Correspondência, AT., III, p. 523. Carta dirigida a seu amigo Huygens, em 31 de janeiro de 1642. 202 “Descartes pensait en effet trouver le moyen de présenter «agréablement» sa physique sans étonner ni choquer personne, sans lasser le public honnête, encourir les reproches et la censure des philosophes et des théologiens; le moyen de ménager la Bible et d'esquiver habilement toute discussion de fond avec la scolastique tout en se découvrant assez, 1'ironie aidant, pour que le lecteur lui-même soit amené à précipiter la ruine de 1'Ecole, et surtout pour que son monde imaginaire se révèle plus vrai que le vrai monde abandonné. Car ce n'est qu'à ce niveau ultime, qui requiert mais dépasse tous les autres, que sa fable accomplit pleinement sa fonction, cette visée de vérité assignée à la reconstruction imaginaire du monde: car dans cette fiction sont engagés non seulement les nouveaux principes de la science de la nature, mais aussi leur assise métaphysique”. CAVAILLÉ, J.-P. Op. Cit., p. 210.

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physique. Mais il ne le faut pas dire, s’il vous

plaît; car ceux qui favorisent Aristote feraient

peut-être plus de difficulté de les approuver; et

j’espère que ceux qui les liront, s’accoutumeront

insensiblement à mes príncipes, et en

reconnaîtront la vérité avant que de

s’apercevoir qu’ils détruisent ceux

d’Aristote”203.

Assim, não se pode negar que o mundo apresentado por Descartes é um mundo

completamente novo. Não é mais o mundo dos helênicos, de Aristóteles e dos

medievais. Trata-se de um mundo que nasce da ciência de Copérnico e

Galileu. Esse novo mundo é simples ou, pelo menos, bem menos complexo que

o antigo. É um mundo quantitativo, infinito, isto é, indefinido204, composto só

203 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 316-317; AT., III, p. 297-298. 204 “A extensão do mundo é indefinida. Além disso, também sabemos que este mundo, ou a matéria extensa de que o universo é composto, não tem limites, porque, por mais longe que levássemos a nossa imaginação, mesmo assim poderíamos imaginar outros espaços indefinidamente extensos, e não só os imaginamos como os concebemos tão reais quanto os imaginamos. Por isso, eles contêm um corpo indefinidamente extenso, pois a idéia de extensão que concebemos, seja em que espaço for, é a verdadeira que devemos ter do corpo”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 21, p. 68. Descartes define o mundo como indefinido. Em carta dirigida a Morus, em 5 de fevereiro de 1649, tratando desse assunto, escreve: “Ne regardez point comme une modestie affectée, mais comme une sage précaution, à mon avis, lorsque je dis qu’il y a certaines choses plutôt indéfinies qu’infinies. Car il n’y a que Dieu Seul que je conçoive positivement infini. Pour le reste , comme l’étendue du monde, le nombre des parties divisibles de la matière, et autres semblables, j’avoue ingénument que je ne sais point si elles sont absolument infinies ou non: ce que je sais, c’est que je n’y connais aucune fin, et à cet égard je les appelle indéfinies. (...) Cependant je crois qu’il y a une grande différence entre l’amplitude ou la gradeur de cette étendue corporelle et celle de Dieu, que je ne nomme point étendue, parce qu’à proprement parler il n’y en a point en lui, mais seulement immensité de substance ou d’essence, c’est pourquoi j’appelle celle-ci simplement infinie, et l’autre indéfinie”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 882-883; AT., V, p. 274-275. Segundo Koyré, uma “conseqüência importante da identificação entre a extensão e a matéria consiste na rejeição não só da finitude e da limitação do espaço como também das do mundo. Atribuir-lhe fronteira torna-se não só falso como absurdo e até contraditório. Não podemos postular um limite sem trasncendê-lo nesse mesmo ato. Temos de reconhecer, portanto, que o mundo real é infinito, ou antes – uma vez que Descartes recusa-se a usar este termo com relação ao mundo – indefinido”. Continua Koyré: “a infinitude do mundo parece assim estar estabelecida de maneira liquida e indiscutível. No entanto, Descartes nunca a afirma. Tal como Nicolau de Cusa, dois séculos antes, ele aplica o termo “infinito” apenas a Deus. Deus é infinito. O mundo é apenas indefinido”. KOYRÉ, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, p. 104-105. “Descartes, para evitar qualquer pergunta embaraçante (pois as polémicas anteriores tinham enchido a discusão de equívocos), escreve prudentemente que o mundo é ‘indefinido’”. LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 274. Descartes conserva a distinção tradicional, desde Filo de Alxandria, entre o infinito

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de matéria (extensão) e movimento; trata-se da natureza, que não deve ser

entendida como “quelque Déesse, ou quelque autre sorte de puissance

imaginaire205”, que se revela em sua ordem estritamente mecânica e se deixa

traduzir em uma linguagem puramente matemática.

Este novo mundo é destituído de qualquer representação que não seja clara e

distinta. O princípio de clareza e distinção regerá os passos da razão na

tradução da ordem do mundo, não havendo neste novo mundo nenhuma

representação que se afirme à margem deste princípio. A razão é inteiramente

regida pelo princípio de clareza e distinção:

“Chamo conhecimento claro àquilo que é manifesto a

um espírito atento: tal como dizemos ver claramente

os objetos perante nós, os quais agem fortemente

sobre os nossos olhos dispostos a fitá-los. E o

conhecimento distinto é aquela apreensão de tal modo

precisa e diferente de todas as outras que só

compreende em si aquilo que aparece manifestamente

àquele que a considera de modo adequado”206.

positivo ou de perfeição, porque ultrapassa toda perfeição limitada, e o infinito negativo (indefinido) porque sempre se pode acrescentar algo. É possível que, ao fazer isto, haja aí também um elemento de cautela. A “sage précaution” certamente não é “sábia” apenas no que se refere à doutrina; ela é “sábia” também em face de seus interlocutores. Para os gregos havia apenas o infinito no sentido de indefinido. A idéia de um infinito que represente uma perfeição e não uma ausência de limites é introduzida pelos neoplatônicos. Cf. CLARKE, N. W. “The limitation of act by potency: aristotelianism or neoplatonism”, The new scholasticism, v. XXVI, 1953, p.167-193.Cf. também: MONDOLFO, R. O infinito no pensamento da antiguidade clássica. 205 DESCARTES, R., Le Monde, Alq., I, p. 349; AT., XI, p. 36-37. 206 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, 45, p. 43, (grifo nosso).

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Descartes elimina das representações físicas, e isso é que é verdadeiramente

revolucionário em seu pensamento, todas as repesentaçãoes confusas que

impregnavam a estrutura do mundo antigo – cuja apreensão estava fora da

ordem da razão, pois o concurso das imagens fornecidas pelos sentidos

efetivava-se como fundamento do conhecimento verdadeiro, não só do mundo

físico, como também do próprio espírito do homem e da alma da qual este é

constituído207. Os sentidos não garantem nenhum conhecimento claro e distinto,

não é através deles que se conhece a verdade. Toda a física aristotélica, tem nos

sentidos sua base de sustentação, a partir da qual se formula a metafísica.

Invertendo o processo, ao invés de uma física que encaminha uma metafísica,

como fizeram Aristóteles e os medievais, Descartes fundamentará a sua física a

partir de uma metafísica208. Portanto, para possibilitar o caminho de sua física,

Descartes exclui do conhecimento, qualquer influência de idéias abstratas

derivadas dos sentidos, qualquer idéia que tenha sua origem nas representações

imediatas do mundo material e que alcance o homem pela via dos sentidos.

“(...) tudo o que recebi, até presentemente, como o

mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos: ora,

experimentei algumas vezes que esses sentidos eram

enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente

em quem já nos enganou uma vez209.

207 “(...) De acordo com toda a tradição aristotélica, o conhecimento do eu não passa de um ato secundário que se sobrepõe ao ato de conhecer o objeto sensível através da imagem. Descartes (...) defende que o espírito se conhece independentemente da imagem ou da imaginação”. KOBAYASHI, M. A Filosofia natural de Descartes, p. 61-62. 208 Essa inversão será melhor estudada quando, no segundo capítulo deste trabalho, se demostrar como e por que a física de Descartes solicita, como base de sustentação, uma metafísica. 209 DESCARTES, R. Meditações, p. 118.

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Se os sentidos possibilitaram a metafísica do cosmo antigo e medieval, agora,

ao contrário, eles são completamente enganadores, não oferecem nenhuma

direção segura para a ordem do conhecimento verdadeiro sobre o mundo.

Portanto, se se quiser verdadeiramente conhecer a nervura da ordem do mundo,

diz Descartes, tem-se que fechar os olhos, tapar os ouvidos, declinar o uso do

tato, renunciar aos demais sentidos, contar unicamente com a razão, na sua

mais absoluta independência; só assim pode-se conhecer a verdade sobre todas

as coisas210.

A experiência ensina a não confiar nos sentidos; portanto, deve-se duvidar

sistematicamente de tudo que tem origem neles211. Toda a física antiga é uma

física qualitativa, encontra suas bases de sustentação nas qualidades do mundo

físico212: força, forma, alma, potências vitais, almas vegetativas213. Descartes

exclui de sua física tudo isso. A física cartesiana é uma física quantitativa,

apoiada em fundamentos matemáticos214, na qual as representações sensíveis

não têm nenhuma receptividade, não fundamentam nenhuma ordem de

conhecimento. As idéias claras e distintas só podem ter uma e mesma origem: a

210 Cf. Idem, p. 138. 211 A suspensão dos sentidos, como base segura para o conhecimento da verdade, é o primeiro passo dado na construção da metafísica cartesiana. A dúvida metódica começa pela suspensão dos juízos derivados dos sentidos. Mas esse é um assunto que será tratado quando, no segundo capítulo desta tese, se abordar a metafísica cartesiana. 212 “La physique d'Aristote est basée sur la perception sensible, et c’est pour cella qu’elle est résolument antimathématique. Elle se refuse à substituer une abstraction géométrique aux faits qualitativement éterminés de 1'expérience et du sens commun et, elle dénie la possibilité même d'une physique mathématique en se fondant a) sur une hétérogénéité des concepts mathématiques avec les données de l’expérience sensible; b) sur l’incapacité des mathématiques d’expliquer la qualité et de déduire le mouvement. Il n’y a ni qualité, ni mouvement dans le royaume intemporel des figures et des nombres. KOYRÉ, A. Études d’histoire de la pensée scientifique, p. 181. 213 Cf. KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 55. 214 “Na Física só aceito princípios que também tenham sido aceitos na Matemática, de modo a poder provar por demonstração tudo quanto deduzirei, e estes princípios são suficientes para explicar por este processo todos os fenômenos da Natureza”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 64, p. 90.

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matemática, sendo esta o único caminho através do qual o homem pode

conhecer a verdade e produzir o verdadeiro conhecimento – “Só é claro o que é

matemático ou, pelo menos, matematizável”215. Ficam, assim, esclarecidos os

motivos que levaram Descartes a funtamentar toda a física em princípios

matemáticos, criando uma linguagem fisico-matemática, através da qual é

possível ao homem explicar todos os fenômenos da natureza.

“Não acrescento aqui mais nada a respeito das

figuras, nem sobre o modo como acontecem

diversidades incontáveis nos movimentos

devido às suas infinitas variedades, tanto mais

que estas coisas podem ser compreendidas

quando se falar delas, pressupondo-se que

aqueles que lêem os meus escritos conhecem os

elementos da Geometria, ou que pelo menos o

seu espírito seja dado à compreensão das

demonstrações da Matemática. Confesso

francamente que nas coisas corporais a única

matéria que conheço é aquela que pode ser

dividida, representada e movimentada de todas

as maneiras possíveis, isto é, aquela matéria a

que os geômetras chamam quantidade e que é

objeto das suas demonstrações; nesta matéria só

considero as suas divisões, figuras e movimentos.

E, enfim, ao tratar deste assunto só tomarei por

verdadeiro aquilo que tiver sido deduzido com

tanta evidência que poderia ser considerado

uma demonstração matemática. E uma vez que 215 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 55. Cf. nota 214, acima.

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este processo permite explicar todos os

fenômenos da Natureza, como se verificará pelo

que segue, não penso que devamos aceitar

outros princípios na Física, nem aliás devemos

desejar outros para além daqueles que aqui se

explicam” 216.

A física-geométrica de Descartes só é possível porque foi capaz de estabelecer

a distinção entre matéria e espírito, corpo e alma, fixando a total independência

entre essas representações conceituais. Tornada a extensão, o atributo principal

da matéria, e o pensamento, o atributo principal do espírito, rompe, portanto,

definitivamente, com a união existente entre o corpo e a alma, presentes na

física de Aristóteles e de seus seguidores escolásticos. Para Aristóteles, todo

corpo vivo é dotado de uma alma e seria absurdo pensar um sem,

concomitantemente, pensar o outro, pois são faces da mesma moeda. Portanto,

existe uma implicação necessária entre o corpo e a alma, um não existindo sem

o outro. Erram, segundo Aristóteles, os filósofos que, ao estudarem a natureza

das coisas dotadas de vida, tomam a alma como separada do corpo:

“Pero estos filósofos solo intentan explicar qué

es la naturaleza del alma, sin añadir detalle

alguno acerca del cuerpo, que es quien debe

recibirla, aunque podría ser posible, como

sugieren los escritos pitagóricos, que cualquier

alma hallara su modalidad propia en cualquier 216 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 46, p. 90.

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cuerpo, lo cual es absurdo, puesto que podemos

ver que cada cuerpo tiene su figura propia o

peculiar”217.

Segundo Aristóteles, o que acontece com o corpo e com a alma é o mesmo que

acontece com a matéria e a forma, ambos os pares constituem uma só unidade

inseparável. Seria absurdo, escreve o estagirita, pensar algo material sem

pensar, ao mesmo tempo, a forma correspondente. Portanto, assim como o

pensamento de um implica necessariamente o pensamento do outro, do mesmo

modo seria absurdo pensar ou tentar entender a natureza de um corpo vivo

separado ou desprovido de sua alma correspondente:

“Si, pues, hay que dar con una definición que

sea aplicable a toda alma, esta será ‘la primera

actualidad de un cuerpo natural que posea

órganos’. Así, no es más necesario preguntar si

el alma y el cuerpo son uno que preguntar si la

cera y la impresión que se marca en ella son

una cosa, o bien, en general, que preguntar si la

materia de cada cosa es lo mismo que aquello

de quien ella es la materia”218.

De acordo com Descartes, essa teoria física de Aristótelse atrapalha muito mais

do que ajuda a conhecer a verdadeira natureza das coisas. Não é possível,

217 ARISTÓTELES, Del alma, I, 3, 407b 20-24. 218 Idem, II,1, 412a 5-9.

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enquanto a natureza estiver dotada dessas qualidades misteriosas, dessas

misturas substanciais, conhecer verdadeiramente a natureza das coisas. É

preciso separar o que realmente faz parte da natureza da matéria daquilo que a

ela é acrescentado pela imaginação, caso contrário estar-se-á sempre condenado

à obscuridade e aos mistérios que habitam, por culpa do homem, a ordem da

matéria. Quando isso não é feito com rigor e precisão, acaba-se olhando não

para a matéria em si mesma, mas para suas qualidades misteriosas e confusas,

que seduzem e enganam os sentidos e, em conseqüência, comprometem a

capacidade de apreender e interpretar a natureza das coisas. Essa será a

primeira função da ciência cartesiana: expulsar da matéria tais qualidades

obscuras. Combater o hilemorfismo da física aristotélica e escolástica219, que, a

partir dos princípios complementares de matéria e forma, determina as

condições de ser de cada coisa. Superar o hilemorfismo da física antiga e

medieval pressupõe expulsar da matéria todas as qualidades estranhas à sua

natureza, identificar a matéria como simplesmente matéria; tomá-la pelo seu

atributo principal, a extensão, e subordiná-la às leis de uma física quantitativa,

de uma física-geométrica. Quando o pensamento é guiado por essa física

quantitativa, o que importa não é mais a matéria em si, mas sua representação

conceitual, sua essência que se expressa através do seu atibuto principal: a

extensão. Assim, o domínio da natureza e a construção de uma ordem do

mundo processam-se a partir desta física-geométrica, derivada da matemática,

que se encontra e é determinada pelo sujeito pensante e não mais pelas coisas

em si mesmas, em sua autonomia. As coisas materiais em si mesmas têm pouca

importância. Acentua-se a importância das representações conceituais que o

219 “El hilemorfismo o teoria hilemórfica de la realidad natural, se remonta a Aristóteles y fue desarrollada por muchos escolásticos del siglo XIII, especialmente por Santo Tomás. El nombre ‘hilemorfismo’ procede de los dos términos griegos, materia y forma, por basearse en los conceptos de materia (prima) y forma (substancial)”. MORA, J. F. Diccionario de filosofia, vol. II, verbete: Hilemorfismo, p. 1507.

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sujeito impõe às coisas e que não provêm das coisas em si mesmas. O

pensamento afirma-se sobre a matéria e a determina. A subordinação da

matéria à ordem do pensamento acaba por efetivar, de uma vez por todas, na

ciência e no mundo moderno, a preponderância do atributo da alma

(pensamento), sobre o atributo do corpo (extensão).

É necessário, então, classificar todos os tipos de conhecimento, saber qual a

natureza constitutiva de cada um deles, para submetê-los a uma mesma ordem

de razão, a uma armadura matemática. Segundo Descartes, todos os

conhecimentos podem ser divididos em dois grupos: uns têm a sua origem na

alma (razão) e não são nada fora dela; outros incluem todas as coisas que têm

alguma existência. Neste segundo grupo, distinguem-se as noções gerais e

outras mais particulares que potencializam as primeiras. A principal distinção

entre as coisas criadas é a das substâncias inteligentes ou propriedades destas e

a das substâncias corporais ou propriedades delas. Note-se que Descartes

procura, em primeiro lugar, distinguir e determinar a independência das

matrizes originárias dos conhecimentos – independência e distinção entre o

corpo e a alma –, para depois, subordinar um ao outro. Assim, tudo o que se

conhece ou se pode conhecer, pode ser classificado em dois gêneros:

“Tudo quanto cai sob a alçada do nosso conhecimento

distingue-se em dois gêneros: o primeiro contém

todas as coisas que possuem alguma existência e o

outro todas as verdades que não são nada fora do

pensamento. Em relação às coisas, em primeiro lugar

temos certas noções gerais que podem referir-se a

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tudo: isto é, as noções de substância, de duração, de

ordem, de número, e talvez outras ainda mais. Depois

temos outras, mais particulares, que servem para

distinguir aquelas. A principal distinção que observo

entre as coisas criadas é que umas são intelectuais, isto

é, substâncias inteligentes, ou então propriedades que

pertencem a tais substâncias; as outras são corporais,

isto é corpos ou propriedades que pertencem ao

corpo”220.

Esta passagem mostra, de forma bastante explícita, o dualismo cartesiano, a

diferenciação substancial entre corpo e alma: de um lado, o espírito e os

atributos do espírito, de outro, o corpo e os atributos do corpo. Esses dois

gêneros de coisas e de conhecimentos são inteira e completamente

independentes entre si. Corpo e alma, materia e pensamento são duas

substâncias que se distinguem em sua totalidade, não havendo entre elas

nenhuma mistura. Corpo e alma caracterizam-se por atributos distintos e

independentes. O atributo principal e constitutivo da matéria é a extensão,

sendo o principal e constitutivo da alma, o pensamento221. Um pode ser ou

existir sem o outro:

220 DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, I, art. 48, p. 44. 221 “Cada substância tem um atributo principal; o da alma é o pensamento, e o do corpo é a extensão. Se bem que cada atributo seja suficiente para conhecermos a substância, no entanto em cada uma há um atributo que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os outros atributos dependem. Assim, a extensão em comprimento, largura e altura constitui a natureza da substância corporal, e o pensamento constitui a natureza da substância que pensa”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, parte I, art. 53, p.46, (grifo nosso).

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“(...) já que, de um lado, tenho uma idéia clara e

distinta de mim mesmo, na medida em que sou

apenas uma coisa pensante e inextensa, e que,

de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na

medida em que é apenas uma coisa extensa e

que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha

alma, pela qual sou o que sou, é inteira e

verdadeiramente distinta do meu corpo e que ela

pode ser ou existir sem ele”222.

A distinção estabelece a natureza constitutiva de cada substância, identificando

o espírito como puro pensamento e a matéria como pura extensão. Descartes

pode agora, através da física-geométrica, estabelecer a comunicação entre as

duas substâncias. Ao identificar a natureza da matéria como sendo pura

extensão, Descartes subordinará a matéria á sua física-geométrica que, em sua

mais pura autonomia racional, sem nenhum concurso de qualquer outra

natureza que não seja o puro pensamento, estabelece e decifra as leis que a

constituem. O domínio das leis que regem a matéria torna o homem o sujeito

do conhecimento, o ser que, dominando a essência da natureza, torna-se o seu

senhor.

Mas, para saber como, através da física-geométrica, é possível a Descartes

afirmar a existência do mundo fora do sujeito e, ao mesmo tempo, submetê-lo a

uma estrutura matemática, é preciso provar que, de fato, a matéria é pura

222 DESCARTES, R. Meditações, p. 186-187.

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extensão e que, como tal, pode corresponder aos ditames da razão e a esta

subordinar-se.

O belo e conhecido texto sobre o “pedaço de cera”, ilustra a prova cartesiana de

que a matéria é, em sua essência, uma substância cuja natureza é pura extensão.

O resultado obtido na análise do pedaço de cera estende-se e alcança todas as

representações materiais, servindo como referência paradigmática para

identificar e estabelecer a extensão como a única essência da matéria; ao

mesmo tempo, acentua a certeza de que a matéria é, enquanto matéria,

independente do espírito, mas, enquanto essência, enquanto extensão, ao

espírito encontra-se subordinada:

“Tomemos como exemplo, este pedaço de cera

que acaba de ser tirado da colmeia: ele não

perdeu a doçura do mel que continha, retém

ainda algo do odor das flores de que foi

recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são

patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele

batemos, produzirá algum som. Enfim, todas as

coisas que podem distintamente fazer conhecer

um corpo encontram-se neste”223.

223 DESCARTES, R. Meditações, p. 131-132.

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Todas essas caracterísiticas que identificam o corpo (pedaço de cera) são

alteradas, modificadas, quando este corpo é aproximado do fogo: “...o que nele

restava de sabor exala-se, o odor se evanece, sua cor se modifica, sua figura se

altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido...”224. Entretanto, o mesmo

não perderá sua identidade, permanecerá sendo cera, apesar de já não ter mais

as mesmas características que tinha antes de ser aproximado do fogo. O que

permanece da cera, o que a identifica e a faz ser o que ela é, não são as

qualidades doçura, odor, cor, gosto, etc.; essas qualidades não pertencem aos

objetos, não pertencem à natureza da matéria, como queria a física de

Aristóteles, elas pertencem unicamente ao sujeito que as percebe225. Tais

qualidades se alteram, se trasformam, mudam de estado dependendo das

circunstâncias em que a cera se encontre; o que verdadeiramente permanece

nela e não muda, não se altera, que a faz ser o que é, é a sua extensão. Apesar

de todas as alterações da cera, algo nela permanece; esse algo é que constitui

sua verdadeira essência, sua identidade: a extensão. Assim, todas as mudanças

224 Idem, p. 132. 225 “Que si vous trouvez étrange que, pour expliquer ces éléments, je ne me serve point des qualités qu'on nomme chaleur, froideur, humidité, et sécheresse, ainsi, que font les philosophes, je vous dirai que ces qualités me semblent avoir elles-mêmes besoin d'explication, et que, si je ne me trompe, non seulement ces quatre qualités, mais aussi toutes les autres, et même toutes les formes des corps inanimés peuvent être expliquées, sans qu'il soit besoin de supposer pour cet effet aucune autre chose en leur matière, que le mouvement, la grosseur, la figure, et l’arrangement de ses parties”. DESCARTES, R. Le monde, Alq., I, p. 338; AT., XI, p. 25-26. Nos Princípios da filosofia, Descartes volta a reafirmar que essas qualidades não pertencem, como pensavam Aristóteles e os escolásticos, à natureza da matéria. “Assim, temos motivos para concluir que, seja como for, também não nos damos conta de que tudo quanto existe nestes objetos a que chamamos luz, cores, cheiros, gostos, sons, calor ou frio e outras qualidades que verificamos pelo tato. E o que chamamos as suas formas substanciais não são senão as diferentes figuras, posições, grandezas e movimentos das suas partes, que estão de tal maneira dispostas que podem acionar os nervos de diferentes maneiras de forma a desencadear na alma todas as diversas sensações”. Princípios da filosofia, IV, art. 198, p. 270-271. Escreve Descartes em Le monde: “Lorsque le vin qui est dans un tonneau ne coule point par l'ouverture qui est au bas, à cause que le dessus est tout fermé, c'est parler improprement que de dire, ainsi que l'on fait d'ordinaire, que cela se fait, crainte du vide. On sait bien que ce vin n'a point d'esprit pour craindre quelque chose; et, quand il en aurait, je ne sais pour quelle occasion il pourrait apprehender ce vide, qui n'est en effet qu'une chimère”. DESCARTES, R. Le monde, Alq., I, p. 333-334; AT., XI, p. 20. Alquié, faz o seguinte comentário: “Ceci est tout à fait conforme au príncipe de la physique et de la philosophie de Descartes, selon lequel il faut se garder d'attribuer aux corps ce qui n'appartient qu'à l'âme. Selon ce principe, qualités réelles et formes substantielles ne sont que des sentimentss transportés dans les choses (...)”. ALQUIÉ, F. Le monde de Descartes, Alq., I, p. 309. Comparar com o texto de O ensaiador de Galileu, nota 120

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que um corpo sofre, como o caso do pedaço de cera ao ser aproximado do fogo,

não passam de “modos da extensão, como as várias formas nas quais algo pode

ser extenso”226. A extenão torna-se o único atributo do qual a Natureza é

constutuida: “Não é o peso, nem a dureza, nem a dor, etc., que constitui a

natureza do corpo, mas só a extensão”227.

A identificação da matéria com a extensão acarreta que o universo é constituído

de uma só matéria. Toda matéria, em qualquer parte, tem uma e a mesma

essência: a extensão: “Logo, só há uma matéria no universo e só a conhecemos

porque é extensa”228. Já não se tem vários mundos, constituídos de matérias

diversas como pensavam Aristóteles e os escolásticos229. Quer se trate do céu

ou da Terra, trata-se de um e o mesmo mundo, constituído de uma e a mesma

matéria. Segundo Descartes, mesmo que houvesse “uma infinidade de

mundos”, todos eles teriam a extensão como sua identidade, como sua essência

e, conseqüentemente, só existiria um mundo, constituído de uma só matéria:

“Finalmente, não é difícil inferir de tudo isto

que a Terra e os céus são feitos de uma mesma

matéria e que, mesmo que houvesse uma

infinidade de mundos, seriam todos feitos da

mesma matéria. Donde se segue que não pode

haver vários mundos, pois claramente

226 COTTINGHAM, J. Dicionário – Descartes, p. 65. 227 DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, II, art. 4, p. 60. 228 Idem, II, art. 23, p. 69. 229 Aqui Descartes rompe com a idéia de um mundo hieraquizado, derivado da física de Aristóteles, incorporado e sacralizado pela teologia cristã. Segundo Aristóteles, existem dois mundos, o mundo supralunar, que se encontra acima, no alto e o mundo sublunar, que se encontra abaixo, isto é, a terra e o céu, o mundo terrestre e o mundo dos astros. Esses dois mundos, seja o de Aristóteles, seja o dos escolásticos, são constituídos de matérias diferentes. Galileu estabeleceu a mesma ruptura com suas observações astronômicas com a luneta, sendo estas dadas a público em O mensageiro celeste.

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concebemos que a matéria, cuja natureza

consiste unicamente em ser uma coisa extensa,

ocupa agora todos os espaços imagináveis em

que esses outros mundos poderiam existir, além

do que não poderíamos descobrir em nós a

idéia de qualquer outra matéria”230.

Com a conquista do método, Descartes alcançou a unidade do espírito; agora,

com a conquista da matéria, Descartes alcança a unidade do objeto: Le Monde.

O método determina a unidade do espírito, a matéria, a unidade do objeto. A

conquista da unicidade da matéria, que implica na unicidade do mundo (uma só

matéria, um só mundo) possibilita que seja superada a idéia de um mundo com

regiões completamente diferentes, constituídas de matéria diversa, como

pensavam Aristóteles e os escolásticos231. Possibilita também superar a idéia de

um mundo atomizado, com partes indivisíveis, como queriam os atomistas232,

já que à unicidade da matéria aplica-se o princípio da divisibilidade. Toda

matéria pode ser divisível. De fato, a matéria, além de ser una é divisível, não

existindo nenhuma parte dela que não seja dotada desta propriedade. Assim,

Descartes rejeita o atomismo, demostrando a insustentabilidade lógica de tal

230 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 22, p. 68. 231 La systématicité de la physique cartésienne ne tient pas, comme celle de la méthode, à l’unité de l’esprit mais à l’unité de son objet: le monde. Mais l’unité du monde ne signifie pas du tout la présence d’une harmonie universelle qui résonnerait en chacun de ses multiples points; elle vient de ce que la matière de tous les objets visibles ou invibles, de tous les phénomènes, y est identiques. La thèse de l’homogénéité de la matière est sans doute la thèse capitale et première de cette nouvelle physique qui par là rompt radicalement avec celle de l’École où domine l’enseignement d’Aristote sur la nature”. GUENANCIA, P. Descartes, p. 32-33. 232 “Se da este nombre a toda doctrina según la cual una realidad dada está compuesta de entidades indivisibles. (...) Un átomo no puede dividirse ya más, porque es, por estipulación, algo indivisible. (…) Sin embargo, suele llamarse ‘atomismeo’ más específicamente a las doctrinas de Leucipo, Demócrito y sus seguidores, especialmente los epicúreos, con Epicuro y Lucrecio”. MORA, J. F. Op. Cit., verbete: atomismo, p. 241.

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doutrina: “toute particule matérielle, occupant un certain espace, peut être

divisée. Elle n’est donc mas un atome”233:

“Também é fácil conhecer que não pode haver

átomos, isto é, partes dos corpos ou da matéria

que por natureza sejam indivisíveis [como

alguns filósofos imaginaram]. Pois, por mais

pequenas que as suas partes sejam, todavia — e

porque é necessário que sejam extensas — pen-

samos que não há sequer uma de entre elas que

não possa dividir-se em duas ou noutras ainda

mais pequenas; donde se segue que são divisíveis.

(...) Ainda que imaginássemos que Deus quisesse

reduzir alguma parte da matéria a uma partícula

tão mínima que não pudesse dividir-se noutras

mais pequenas, mesmo assim não poderíamos

concluir que ela seria indivisível, porque quando

Deus tomasse esta partícula tão pequena que

nenhuma criatura pudesse então dividi-la, nem

por isso poderia privar-se do poder de a dividir,

pois não é possível que a sua omnipotência

diminua, como já observamos. É por isso que

dizemos que qualquer partícula mínima extensa

[que possa existir no mundo] pode ser sempre

dividida, como é próprio da sua natureza”234.

233 ALQUIÉ, F. nota 2, In: DESCARTES, R. Les príncipes de la philosophie, Alq., III, p. 165. 234 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, II, art. 20, p. 68. Este trecho ilustra um típico argumento por recurso ao poder absoluto de Deus, muito utilizado por Ockham.

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Ao estabelecer a unicidade da matéria, bem como sua absoluta divisibilidade,

retirando-lhe toda distinção e especificação de partes, Descartes possibilita um

alcance absoluto à física-geométrica. Nada está fora de seu alcance: o mundo, na

sua unidade e divisibilidade, pode ser conhecido em todas as suas partes.

Absolutamente nada, referente à matéria, foge ao domínio do conhecimento

matemático. O universo torna-se transparente à razão em sua integralidade, sem

mistérios, sem segredos, sem matéria indivisível (ao modo dos atomistas)

inacessíveis ao conhecimento humano. Unificar a matéria e torná-la divisível é,

ao mesmo tempo, dar conta do universo como um todo – dotado de uma única

matéria –, conhecer cada parte da qual é constituído, pois a divisibilidade da

matéria é um fato, e subordiná-la às leis da física-geométrica que se torna o

referencial de verdade sobre o mundo, bem como sobre suas determinações235.

O êxito da física-geométrica justifica-se; através de sua aplicabilidade, torna-se

possível dar conta da matéria em si mesma, bem como do movimento ao qual

está submetida. Para Descartes, o universo é constituído unicamente de matéria

e movimento; sendo a geometria a ciência da matéria, pura extensão, e a física

é a ciência do movimento. Portanto, comprender a ordem do universo, sua

estrutura constitutiva, significa, necessariamente, conciliar duas ciências: a

geometria (ciência da extensão) e a física (ciência do movimento). O problema

é saber como se dá a identificação da física com a geometria e como, a partir

dela, elucidam-se todas as coisas.

235 “A noção de átomo em sentido estrito é, assim, incoerente com a explicação ‘geométrica’ da matéria como sendo aquilo que tem dimensões e é, desse modo, indefinidamente divisível”. COTTINGHAM, J. Dicionário – Descartes, p. 25.

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A resposta a essa questão implica um esforço do espírito. Não é tarefa fácil

responder a tal pergunta, principalmente para quem não é versado nas

matemáticas. A geometria dá conta, com sucesso, da extensão, “uma vez que a

infinita profusão das figuras basta, é certo, para expressar todas as diferenças

dos objetos sensíveis”236. Entretanto, não é possível encontrar nela base para

justificar o movimento: “Se por um lado podemos dizer que tudo que se move é

extenso, por outro, não podemos dizer que as coisas se movem apenas porque

são extensas”237. Portanto, é preciso encontrar na física, a base segura para dar

conta do movimento, caso contário, a realidade material que, enquanto

extensão, subordina-se à razão, enquanto movimento, ficará fora de seu

alcance. Ora, a intenção de Descartes é subordinar à razão toda a ordem do

mundo material. Portanto, é preciso subordinar não só a extensão, mas também

o próprio movimento (através da física) aos fundamentos da racionalidade.

Para dar conta do movimento, Descartes começa por criticar a idéia de

movimento da física de Aristóteles. Segundo Aristóteles, o movimento é a

atualização de um ente potencial, na medida em que é potencial. “Ahora bien:

puesto que dentro de cada uno do los géneros son cosas distintas lo que existe

en acto y lo que existe en potencia, el acto de aquello que existe en potencia,

precisamente en cuanto es tal potencia, es el movimiento”238. Segundo

Descartes, a física de Aristóteles peca ao tentar dotar o movimento de

inteligibilidade, identificando na própria coisa que se movimenta algo que a

faz movimentar-se, como se o movimento fosse uma entidade interna à

própria coisa que se movimenta. “Ils avouent eux-mêmes que la nature du 236 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. XII, p. 77. 237 Cf. SILVA, F. L. Descartes – a metafísica da modernidade, p. 78-79. 238 ARISTÓTELES, Física, III, 1, 201a 9.

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leur [mouvement] est fort peu connue, et pour la rendre en quelque façon

intelligible, ils ne l’ont encore su expliquer plus clairement qu'en ces termes:

Motus est actus entis in potentia, prout in potentia est, lesquels sont pour moi si

obscurs, que je suis contraint de les laisser ici en leur langue parce que je ne

les saurais interpréter. [Et en effet ces mots: le mouvement est l'acte d’un Être

en puissance, en tant qu’il est en puissance, ne sont pas plus clairs, pour être

français]”239. Em seu livro, Regras para a orientação do espírito, Descartes

chega mesmo a fazer gracejos, ridicularizando a definição de movimento

estabelcida por Aristóteles: “não parecem proferir palavras mágicas, com uma

força oculta e que superam o alcance do espírito humano, aqueles que dizem

que o movimento, coisa muito conhecida de cada um, é o ato do ser em

potência, enquanto está em potência? Quem compreende de fato essas

palavras? Quem ignora o que é movimento? E quem não reconheceria que tais

homens procuram um nó num junco?”240. Para a física cartesiana, não existe

nada de oculto ou misterioso no movimento, é simplesmente “a translação de

uma parte da matéria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhes são

imediatamente contíguos – e que consideramos em repouso – para a

proximidade de outros”241. A matéria que se desloca, movimenta-se, não traz

em si mesma a causa do seu movimento, pois matéria é pura extensão242.

Portanto, para explicá-la basta tomá-la nos seus modos representativos: largura,

comprimento e profundidade, conceitos que estão no limite da física à qual está

239 DESCARTES, R. Le monde, Alq., I, p. 352; AT., XI, p. 39. 240 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. XII, p. 92. 241 DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, II, art. 25, p. 69. 242 “Dans la science modern comme nous le savons bien, l'espace réel est identifié à celui de la géométrie, et le mouvement est considéré comme une translation purement gréométrique d'un point à un autre. C’est pourquoi le mouvement n'affecte d'aucune façon le corps qui en est doué. Le fait d'être en mouvement ou au repos ne produit aucune modification dans le corps; qu'il soit en mouvement ou au repos, il est toujours identique à lui-même. En tant que tel, il est absolument indifférent aux deux. Aussi somme-nous incapables d'attribuer le mouvement à un corps determiné pris en lui-même”. KOYRÉ, A. Études d’histoire de la pensée scientifique, p. 179.

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subordinada a idéia de movimento. Entretanto, a resposta de Descartes ainda

não é suficiente para justificar a própria origem do movimento. A causa

originária que o institui na ordem do universo. Ora, o próprio Descartes, ao

criticar a física de Aristóteles, afirma que o movimento não é parte constitutiva

da própria matéria, que este lhe é exterior. Mas qual é sua origem, como se

iniciou o processo, através do qual as coisas passaram a movimentar-se no

universo? Para responder à pergunta, Descartes recorre à idéia de Deus que,

além de criar a matéria, deu-lhe movimento e repouso e, em seu concurso

natural, conserva a mesma quantidade de movimento e repouso do momento

inicial: “Depois de ter examinado a natureza do movimento, é necessário

considerar a sua causa. [...] parece-me evidente que só pode ser Deus, cuja

omnipotência deu origem à matéria com o seu movimento e o repouso das suas

partes, conservando agora no universo, pelo seu concurso ordinário, tanto

movimento e repouso como quando o criou”243. A interpretação do movimento

possibilita a Descartes dar conta do movimento e do repouso na autonomia do

próprio movimento e do repouso e não na autonomia das coisas que se

movimentam ou se encontram em repouso. Com isso, pode-se compreender

todo o movimento do universo sem ter que creditar à matéria a causa do

movimento ou do repouso. A idéia corresponde perfeitamente bem à idéia de

um universo mecânico que, na autonomia de suas configurações, dos seus

movimentos, pode ser pensado através de uma física puramente quantitativa e

subordinado às suas leis. Se o universo, puramente mecânico, muda

constantemente suas configurações; cabe à física calcular as mudanças, calcular

as variáveis “e atribuir ao movimento as mudanças que ocorrem de um estado

243 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, parte 2, art. 36, p. 75. A abordagem cartesiana não deixa de ter um paralelo com o recurso de Atistóteles ao Primeiro Motor Imóvel no liv. VIII da Física.

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para outro”244. Assim, Descartes acaba por definir o movimento como simples

deslocamento, “ação pela qual um corpo passa de um lugar para outro”, ao

mesmo tempo em que credita à física a função de calcular e determinar as

variáveis dos deslocamentos. Ao defini-lo como simples “estado locativo”,

Descartes, confirma a matéria como simples extensão e o movimento como

simples estado de mudança ou repouso locais da matéria. A confirmação de que

o universo é, em sua totalidade, extensão e movimento e, como tal, encontra-se,

todo ele, subordinado a uma física-geométrica, garante, em primeiro lugar, a

completa distinção entre pensamento e matéria, em segundo lugar, garante a

subordinação do objeto (matéria) a uma ordem puramente racional.

Assim, recorrendo à geometria, como ciência da extensão, e à física, como

ciência do movimento, subordinando esta àquela, Descartes constrói uma

ciência físico-geométrica, dotada de um conjunto de leis fáceis, de conceitos

claros, sem recorrer a forças ocultas e obscuras, tão presentes na física

qualitativa de Aristóteles e dos escolásticos245. Detendo-se numa natureza que

é, em sua totalidade, extensão e movimento, Descartes garante que, através da

física, é possível ao homem “descobrir as mais belas coisas da natureza”:

“C’est ce que je souhaiterais que tout le monde voulût faire, pour être aidé par

l’expérince de plusieurs à découvrir les plus belles choses de la nature, et bâtir

244 SILVA, F. L. Descartes – a metafísica da modernidade, p. 79. 245 “Descartes descobre finalmente – aliás pelos seus próprios meios – a verdadeira utilização das matemáticas, que continuava a ser desconhecida nas Escolas: uma vez que a Natureza é matemática, as matemáticas são o esqueleto certo e sólido da física. O matemático deixa de ser o auxiliar vergonhoso do artesão ou do sonhador astrólogo cujas especulações reencontram a velha magia pitagórica dos números. (...) O matemático torna-se, juntamente com o engenheiro, o protótipo do sábio, o depositário do segredo divino. Ao reduzir a matéria à extensão, Descartes obtém essa segurança de crer que a sua Física é a geometria aplicada”. LENOBLE, R. Op. Cit., p. 261.

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une Physique claire, certaine, démontrée, et plus utile que celle qui s’enseigne

d’ordinaire”246.

Descartes tem plena consciência, que a física, dotada de leis fáceis e claras,

substitui com êxito a velha física sensualista de Aristóteles. Não só; tal é a sua

intenção, que só a física é capaz de dar conta da ordem do mundo, só ela é

capaz de, ao mesmo tempo, dar conta da inteligibilidade do real e submetê-lo a

uma ordem puramente racional. A ciência matemática abre caminho para que

Descartes possa tomar a máquina como referência paradigmática do mundo e

interpretá-lo em perspectiva puramente mecanicista. O cosmo já não é um

espaço escolhido por Deus para revelar ao homem “sua natureza invisível, seu

poder eterno e divino”, como proclamava São Paulo aos romanos (Rm. 1, 20),

mas é simplesmente a máquina da qual, o homem, de posse das ferramentas

conceituais oferecidas pela matemática, pode conhecer os mistérios, revelar os

segredos, decifrar a ordem mecânica, saber como cada peça encaixa-se e

justifica-se na ordem da grande máquina do mundo. Ante esta máquina do

mundo, o homem deixa de ser um admirador encantado com sua beleza e sua

ordem, para torna-se decifrador e senhor. O Deus artesão ou mesmo o Deus

geômetra são substituídos pelo Deus engenheiro, construtor de máquinas, o

arquiteto do mundo, relojoeiro, exterior ao mecanismo que ele constrói e põe em

marcha. O homem perdeu o medo de Deus, não o teme, enfrenta-o, e até põe-se

em seu lugar, torna-se, ele próprio, um engenheiro que, para compreender,

reconstrói as engrenagens da máquina do universo. Depois de ter dado o piparote

inicial para por o mundo em movimento, Deus pode retirar-se, não tem mais

246 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 295; AT., I, p. 216.

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nenhuma serventia para o homem de ciência247. Perdendo o domínio do mundo

da razão, resta-lhe, em seu silêncio, comunicar-se com o homem através da fé,

pela qual este adere às verdades que Deus lhe revela. Sendo a matemática o

domínio típico da razão humana, resta a Deus apenas um caminho, que não o da

ciência, para se comunicar com o homem: o coração. “É o coração que sente

Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”248.

Mas, para Descartes e os mecanicistas, o coração não passa de uma peça de

determinada máquina, como outra peça qualquer. A fisiologia cartesiana não

reserva para o coração nenhum estatuto privilegiado, sede de intuições ou

sentimentos, através dos quais Deus se comunica e se revela ao homem. Não há

nenhuma distinção entre o coração, os pulmões, rins ou intestinos, a não ser a

função que, como peças, cada um desempenha na fisiologia da máquina-corpo.

A matematização da matéria acabou por expulsar Deus da ordem das coisas e,

como conseqüência, acabou por estabelecer uma completa distinção entre ciência

e fé: estabelece e distingue dois planos de conhecimentos independentes. A

ciência cartesiana toma como seu objeto o mundo, a matéria, no limite da física-

geométrica, enquanto a fé tem como objeto Deus e a imortalidade da alma. Este

é também o domínio da metafísica, mas Descartes, no momento, ainda não

precisa recorrer a ela para fundar, justificar e legitimar a ciência, a não ser para, 247 “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôde evitar de fazê-lo dar um piparote para por o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus”. PASCAL, B. frag. 77, col. Os pensadores, p. 57-58. Essa crítica feita por Pascal a Descartes, será mais analisada no próximo capítulo. Por ora, quer-se apenas expressar a distinção entre as verdades conquistadas pela razão e as verdades reveladas pela fé. Não se deve reduzir a distinção entre razão e coração a uma oposição entre razão e sentimento. O termo “coração” expressa tanto o sentimento como a inteligência não discursiva. A distinção se aproxima da que há entre “espírito de geometria” e “espírito de finura”. Cf. OLIVEIRA, B. de. “Referências científicas no pensamento religioso de Blaise Pascal”, Revista da SBHC, n. 6, 1991, p. 14, nota 5. 248 Pascal é, de fato, um ferrenho crítico de Descartes. Dos seus fragmentos, quatro deles se dirigem diretamente a este e à sua filosofia; no frag. 76, se propõe a “escrever contra os que se aprofundam demais nas ciência. Descartes”; no frag. 77, afirma não perdoar Descartes por ele ter desejado passar sem Deus em sua filosofia; no frag. 78, escreve: “Descartes: inútil e incerto”; no frag. 79: “Descartes – cumpre dizer, grosso modo: ‘Isso se faz por figuras e movimentos’, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina é ridículo, pois é inútil e incerto, e penoso. E ainda que fosse verdadeiro, não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de trabalho”.

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como dizia Pascal, dar o peteleco inicial. Assim, sem metafísica ou com uma

metafísica mínima, Descartes faz ciência, sendo o objeto desta a natureza e as

regras de decifração de seus códigos, fornecidas unicamente pela razão natural.

Se a ciência vem a precisar, mais tarde, de uma metafísica desenvolvida que a

legitime, tal necessidade não se apresenta no momento. Por hora, Descartes

constrói a ciência, e a constrói, prescindindo de tal metafísica.

A idéia de que o mundo é uma máquina e que, de posse das leis matemáticas, é

possível ao homem conhecer e dominar a ordem de suas engrenagens tornou-se

um pano de fundo comum. Todos voltam-se para a nova ciência: Galileu,

Gassendi, Mersenne, e outros249. Todos estão seduzidos pela nova possibilidade

de, tornando-se independentes das forças estranhas à razão, conquistar e torna-se

senhor deste novo mundo: “Tudo se passa como se nos encontrássemos perante

uma crise do inconsciente coletivo: subtamente, o homem ocidental deixou de

tomar perante a Natureza a atitude da criança que escuta; virilizou-se e quer

tornar-se ‘o dono e senhor’”250. Entretanto, entre todos, Descartes se destaca. Em

Descartes o mecanicismo encontra sua forma acabada e madura. Só ele é, ao

mesmo tempo, cientista e fílósofo. Só ele foi capaz de, ao expulsar

definitivamente da matéria tudo o que não é matéria, todas as qualidades ou

finalidades251, reduzindo-a a pura extensão, conciliar o mundo da ciência (da

249 Cf. LENOBLE, R. Op. Cit., p. 261. 250 LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 262. 251 “Ainda que, no que respeita aos costumes, seja um pensamento piedoso e bom acreditar que Deus fez todas as coisas para nós, para mais o amarmos e lhe agradecermos tantos benefícios; e ainda que em certo sentido isso seja verdadeiro, pois podemos usufruir de todas as coisas criadas, pelo menos para exercitar o nosso espírito a reflectir nelas – sendo impelidos a louvar a Deus por seu intermédio -, apesar de tudo não é de modo algum verossímil que as coisas tenham sido feitas para nós, como se esse fosse o fim de Deus ao criá-las. E seria impertinente e inadequado servir-se desta opinião para apoiar raciocínios da Física (...)”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, III, art. 3, p. 94. Segundo Descartes, não se deve jamais construir argumentos a partir do conceito de causa final. Esse tipo de argumento não leva a conhecer a própria coisa. Esse teria sido o grande erro comentido por Aristóteles: “Voilà une règle qui doit être bien observée: ne jamais tirer argument des

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experiência) com o mundo da razão (filosofia), estabelcecendo entre os dois

mundos, uma só ordem, uma só determinação geométrica252.

Agora que a natureza é só matéria, sem qualidades, sem orientação, sem

interior253, sem mistérios, sem Deus, regida por leis permanentes, tais quais Deus

as estabeleceu no ato da criação do mundo e as conserva254; agora que as leis da

mecânica pertencem à física, tornando-se referência decifradora de toda a

engrenagem que constitui a natureza, estão preparadas as condições intelectuais

para que se efetive uma interpretação puramente técnica do mundo, através da

qual é possível ao homem submeter e manipular toda a natureza255. Um novo

causes finales. Car: 1º la connaissance des fins ne nous mène pas à connaissance des choses elles-mêmes; la nature de celles-ci n’en demeure pas moins cachée. Et c’est le grand défaut d’Aristote, d’argumenter toujours par la cause finale (...)”. DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 47. 252 “Confesso francamente que nas coisas corporais a única matéria que conheço é aquela que pode ser dividida, representada e movimentada de todas as maneiras possíveis, isto é, aquela matéria a que os geômetras chamam de quantidade e que é objeto das suas demonstrações; nesta matéria só considero as suas divisões, figuras e movimentos. E, enfim, ao tratar deste assunto só tomarei por verdadeiro aquilo que tiver sido deduzido com tanta evidência que poderia ser considerado uma demonstração matemática. E uma vez que este processo permite explicar todos os fenômenos da Natureza, como se verificará pelo que se segue, não penso que devemos aceitar outros princípios na Física, nem aliás devemos desejar outros para além daqueles que aqui se explicam”. DESCARTES, R. Princípios da Filossofia, II, art. 4, p. 90. 253 “A natureza torna-se, pois, sinônimo de existência em si, sem orientação, sem interior. Não tem mais orientação. O que se pensava ser orientação é mecanismo”. MERLEAU-PONTY, M. A Natureza, p. 12. 254 “Sachez donc, premièrement, que par la Nature je n'entends point ici quelque Déesse, ou quelque au tre sor te de puissance imaginaire, mais que je me sers de ce mot pour signifier la Matière même en tant que je la considère avec toutes les qualités que je lui ai attribuées comprises toutes ensemble, et sous cette condition que Dieu continue de la conserver en la même façon qu’il l’a créée. Car de cela seul qu'il continue ainsi de la conserver, il suit de necessité qu'il doit y avoir plusieurs changements en ses parties, lesquels ne pouvant, ce me semble, être proprement attribués à 1'action de Dieu, parce qu'elle ne change point, je les at tr ibue à la Nature; et les règles suivant lesquelles se font ces, changements, je les nomme les lois de la Nature”. DESCARTES, R. Le Monde, Alq, I, p. 349-350; AT., XI, p. 36-37. 255 “L'ambition de la science moderne est bien, comme n'ont cessé de le répéter les commentateurs du Discours de la Méthode, à travers le déploiement de la technique, de se soumettre et de manipuler les phénomènes du monde. Or cette manipulation requiert une déréalisation préalable: le monde ne peut être assujetti à la technique que si lui sont ôtées ses assises ontologiques, ou du moins si ces fondements sont laissés indeterminés. Pour que la technique triomphe, il faut que le monde ne soit pas. Et la ruine de l’ontologie ne fait qu'une avec la suprématie déclarée de la technique sur la nature par l'assimilation de la nature à la technique elle-même. (…). La nouvelle science de la nature est d’abord science des machines, mécanisme”. CAVAILLÉ, J.-P. Op. Cit., p. 41.

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mundo abre-se ao homem: o mundo-máquina; uma nova ciência apresenta-se

para decifrá-lo, a ciência mecaniscista256:

“Não vejo, efectivamente, nenhuma diferença

entre as máquinas feitas pelos artesãos e os

diversos corpos formados exclusivamente pela

Natureza (a não ser que aqueles feitos pelas

máquinas dependem apenas da disposição de

certos tubos, molas ou outros instrumentos) e que

são proporcionais às mãos daqueles que os

fabricam, e como são sempre tão grandes as

suas formas e movimentos podem ser facilmente

percepcionados; ao passo que os tubos ou molas

que causam os efeitos nos corpos naturais são

normalmente demasiado pequenos para que os

sentidos os possam percepcionar. É verdade que

todas as regras da Mecânica pertencem à Física,

de modo que todas as coisas artificiais são, por

isso, naturais. Por exemplo, quando um relógio

marca as horas por meio das rodas que o 256 Em carta enviada a Plempius para Fromondus, em 3 de outubro de 1637, Descartes fala do orgulho que tem de ter encontrado uma ciência (a Mecânica) que possui todos os seus raciocínios derivados da matemática e que, além de tudo, encontra na experiência a confirmação de todas as suas conclusões. “(...) Si ma philosophie lui semble trop grossière, de ce qu'elle considère les figures, les grandeurs et les mouvements, comme fait la Mécanique, il condamne ce que j'estime sur toutes choses digne d'être loué, et ce en quoi principalement je me préfère aux autres, et dont je me glorifie davantage, qui est de me servir d'une façon de philosopher où nulle raison n'est admise qui ne soit mathématique ou évidente, et dont les conclusions sont toutes appuyées sur des expériences très certaines. En sorte que tout ce que nous concluons, en vertu de ces príncipes, se pouvoir faire, se réalise en effet, toutes les fois que l'on applique comme il faut les choses actives aux passives. Je m'étonne de ce qu'il ne prend pas garde que cette Mécanique, qui jusques ici a été en usage, n'est autre chose qu'une petite partie de la vraie physique, laquelle, pour n'avoir pu trouver de place chez les sectateurs de la philosophie vulgaire, s'est retirée chez les mathématiciens. Or cette partie de la philosophie est demeurée plus vraie et moins corrompue que les autres; en effet, comme elle se rapporte à 1'usage et à la pratique, tous ceux qu i y manquent en la moindre chose ont coutume d 'ê t re pun is de la perte de tous leurs frais. En sorte que s'il méprise ma façon de philosopher, à cause qu 'e l le est semblable à la Mécanique, il me semble qu'i l fait la même chose que s'il la condamnait, à cause qu'elle est vraie”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 792-793; AT., I, p. 420-421.

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compõem, isso não lhe é menos natural do que

uma árvore produzir frutos. Por conseguinte,

quando um relojoeiro olha para um relógio que

não fez, mediante a simples observação de uma

única parte normalmente consegue avaliar quais

são as outras que não vê. Por isso considerei os

efeitos e as partes sensíveis dos corpos naturais

e procurei conhecer depois as partes

insensíveis”257.

Assim, tomando como referência a máquina, Descartes explica todas as

operações da natureza e todos os corpos que a compõem. Sejam estes animados

ou inanimados; sejam corpos celestes, ou terrestres; seja o mundo ou a

fisiologia do corpo humano; sejam micro ou macro-organismos, tudo é

extensão e movimento. Seu funcionamento corresponde, metaforicamente, ao

funcionamento de um relógio, modelo perfeito de máquina, que, como tal, pode

ser conhecido e manipulado através da técnica em todas as suas partes

constitutivas. Tudo que é necessário para se conhecer a engrenagem de certa

máquina, nela encontra-se, seja a máquina um relógio, uma árvore ou o corpo

humano. Conhecer passa a ser então, compreender o funcionamento desta

máquina. A fascinação de Descartes pela máquina é total: absolutamente tudo

pode tornar-se conhecido, se seguir-se o modelo de funcionamento das

máquinas. O modelo seguido pelo grande relojoeiro do universo, para dispor a

ordem da máquina, é semelhante ao do engenheiro que, através da técnica

constrói e põe em funcionamento um relógio ou as fontes que estão nos jardins

dos reis: “Ainsi que vous pouvez avoir vu, dans les grottes et les fontaines qui

257 DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, IV, art. 203, p. 274-275.

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sont aux jardins de nos Rois, que la seule force dont l’eau se meut, en sortant

de sa source, est suffisante pour y mouvoir diverses machines, et même pour

les y faire jouer de quelques instruments, ou prononcer quelques paroles, selon

la diverse disposition des tuyaux qui la conduisent”258.

É a mesma a ordem encontrada na máquina, como nos mencionados autômatos

hidráulicos dos jardins dos reis e na fisiologia do corpo humano. Ao expulsar

deste tudo que não é matéria, Descartes prepara o terreno para compreendê-lo

como pura matéria, pura extensão, como uma máquina que funciona

obedecendo às mesmas leis que obedece um planeta no percurso de sua órbita,

um relógio ao marcar as horas ou uma árvore ao produzir frutos. Não há

distinção entre o funcionamento das máquinas do mundo, todas elas obedecem

às mesmas leis e têm uma e mesma natureza. O que as diferencia é unicamente

a disposição de “certos tubos ou molas”, que constituem cada uma dessas

máquinas:

“Je désire que vous considériez, après cela, que

toutes les fonctions que j'ai attribuées à cette

machine, comme la digestion des viandes, le

battement du coeur et des artères, la nourriture

et la croissance des membres, la respiration, la

veille et le sommeil; la réception de la lumière,

des sons, des odeurs, des goûts, de la chaleur, et

de telles autres qualités, dans les organes des

258 DESCARTES, R. Traité de l’ Homme, Alq., I, p. 390; AT., XI, p. 130.

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sens extérieurs; l’impression de leurs idées

dans l’organe du sens commun et de

l’imagination, la rétention ou 1'empreinte de

ces idées dans la mémoire; les mouvements

intérieurs des appétits et des passions; et enfin

les mouvements extérieurs de tous les

membres, qui suivent si à propos, tant des

actions des objets qui se présentent aux sens,

que des passions, et des impressions qui se

rencontrent dans la mémoire, qu'ils imitent le

plus parfaitement qu'il est possible ceux d 'un

vrai homme: je désire, dis-je, que vous

considériez que ces fonctions suivent toutes

naturellement, en cette machine, de la seule

disposition de ses organes, ne plus ne moins

que font les mouvements d'une horloge, ou

autre automate, de celle de ses contrepoids et

de ses roues; en sorte qu'il ne faut point à leur

occasion concevoir en elle aucune autre âme

végétative, ni sensitive, ni aucun autre principe

de mouvement et de vie, que son sang et ses

esprits, agités par la chaleur du feu qui brûle

continuellement dans son coeur, et qui n'est

point d'autre nature que tous les feux qui sont

dans les corps inanimés”259.

Assim, explica-se tudo na natureza como um todo e na fisiologia do corpo

humano em particular. Nada de almas vegetativas ou sensitivas, nada de

259 DESCARTES, R. Traité de l’ homme, Alq., I, p. 479-480; AT., XI, p. 202.

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operações ocultas, nada de causas finais; tudo se revela e torna-se claro nos

limites da matéria - extensão e movimento - com a mesma simplicidade que se

revela e explica-se na mecânica do funcionamento de um relógio.

A analogia entre o funcionamento do corpo humano e o funcionamento do

relógio é bastante ilustrativa e merece atenção particular. O corpo-máquina é

como um relógio em funcionamento. Os ossos, nervos, coração, pele, sangue,

não são outra coisa senão molas, rodas, contrapesos que, obedecendo a ordem

lógica de encadeamento, desempenhando no particular a função que lhes é

determinada na ordem do todo, fazem com que a máquina-corpo desempenhe,

sem ajuda de qualquer alma ou espírito, tal qual um relógio, sua função260. As

mesmas leis que regem o universo como um todo, regem o corpo humano em

particular. O mundo-máquina e o homem-máquina são uma e a mesma coisa,

ambos integram-se na ordem de funcionamento da grande máquina universal.

“E como um relógio composto de rodas e

contrapesos não observa menos exatamente

todas as leis da natureza quando é mal feito, e

quando não mostra bem as horas, do que

quando satisfaz inteiramente o desejo do

artífice; da mesma maneira também, se

considero o corpo do homem como uma

máquina, de tal modo constituída e composta

de ossos, nervos, músculos, veias, sangue e

260 “Descartes elimina todo e qualquer predicado de valor, e da idéia de Natureza somente conserva a idéia de uma disposição dos órgãos. A Natureza é aquilo que tem propriedades intrísecas constitutivas, em relação às quais tudo o que o observador pode introduzir é exterior”. MERLEAU-PONTY, M. Op. Cit., p. 19-20.

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pele que, mesmo que não houvesse nela

nenhum espírito, não deixaria de se mover de

todas as maneiras que faz presentemente,

quando não se move pela direção de sua

vontade, nem por conseguinte pela ajuda do

espírito, mas somente pela disposição dos seus

órgãos, reconheço facilmente que seria tão

natural a este corpo, sendo, por exemplo,

hidrópico, sofrer a secura da garganta que

costuma significar ao espírito o sentimento de

sêde, e dispor-se por esta secura a mover seus

nervos e suas outras partes de forma requerida

para beber e assim aumentar seu mal e

prejudicar-se a si mesmo, quanto lhe é natural,

quando não tem nenhuma indisposição, ser

levado a beber para a sua utilidade por

semelhante secura da garganta. E, ainda que,

no concernente ao uso ao qual o relógio foi

destinado por seu artífice, eu possa dizer que

ele se desvia de sua natureza quando não marca

bem as horas; e que, do mesmo modo,

considerando a máquina do corpo humano

como formada por Deus para ter em si todos os

movimentos que custumeiramente estão aí, eu

tenho motivo de pensar que ela não segue a

ordem de sua natureza quando a garganta está

sêca e que beber prejudica-lhe a conservação;

reconheço, todavia, que este último modo de

explicar a natureza é muito diferente do outro.

Pois esta não é outra coisa senão uma simples

denominação, a qual depende inteiramente do

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meu pensamento, que compara um homem

doente a um relógio mal feito com a idéia que

tenho de um homem são e de um relógio bem

feito, e a qual não significa nada que se

encontre na coisa da qual ela é dita; ao passo

que, pela outra maneira de explicar a natureza,

entendo algo que se encontra verdadeiramente

nas coisas e, portanto, não deixa de ter alguma

verdade”261.

Eis, ao fim e ao cabo, o que a ciência de Descartes pretende alcançar: dominar

a natureza; tornar o homem seu senhor e possuidor. Submeter toda a ordem da

natureza à ordem da pura racionalidade mecânica. A matéria é extensão e,

como tal, abre-se ao cálculo do espírito que a traduz em linguagem puramente

matemática. Se a matémática torna-se a gramática do mundo, o método torna-

se o caminho correto de sua aplicabilidade. Um binômio perfeito: matemática e

método. Dupla inseparável na ordem da razão, que deseja e busca afirmar-se

como a verdadeira ciência. De posse desses dois conceitos - a matemática e o

método - Descartes pretente conquistar o mundo, constituído de acordo com as

leis geométricas da mecânica. A alma do mundo, transforma-se em espírito, no

sentido cartesiano, “que volta as costas ao mundo, dobra-se sobre si e encontra

no interior de si mesmo o abrigo seguro onde fixa sua morada”262. Instalado no

“conforto” dessa nova morada, Descartes encontra-se diante de um novo céu e

uma nova terra: a grande máquina do mundo subordinada às leis da razão

261 DESCARTES, R. Meditações, p. 193-194. 262 DOMINGUES, I. O Grau zero do conhecimento, p. 36.

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geométrica, sem natureza distintas dos artefatos, sem alma, exterior a Deus,

desprovido de qualquer matéria estranha à extensão geométrica, subordinado

unicamente às regras do método que expressam, não mais a linguagem da fé,

através da qual a verdade sobrenatural revela-se ao homem, nem a linguagem

da metafísica, mas a linguagem do cálculo, da matemática, expressão da

própria razão. O mundo tornou-se conteúdo do espírito, do pensamento263.

Antes de Kant264, do seu modo, Descartes também fez sua revolução

copernicana265; mudou o centro gravitacional do conhecimento. A partir de

Descartes, o sujeito, na autonomia da razão natural, torna-se o centro

gravitacional, em torno do qual o mundo adquire sentido e significado.

Ao término deste primeiro capítulo, longo caminho foi percorrido e o que se

viu, ao final do percurso, é a confirmação do que orientou o início da

caminhada: Descartes é, antes de tudo, um pensador voltado para a ciência,

guiado pela razão natural, que busca fundar uma ciência descomprometida de

qualquer base metafísica. É um Descartes sem metafísica que transparece em

suas obras, principalmente no: Tratado do Mundo, no Tratado do Homem, nas

263 “Agora é preciso construir uma representação da realidade. Assim como a noção de “idéia” emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a coisa da “mente”, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrimos e passa a ser algo que construímos”. TAYLOR, C. Op. Cit., p. 191. 264 “Até hoje admitiu-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam com esse pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira idéia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imóveis”. Kant, I. Crítica da razão pura (prefácio da segunda edição -1878), p. 19-20. 265 Esta afirmação, em hipótese alguma, tem a intenção de estabelecer comparação entre o pensamento de Descartes e o pensamento de Kant. Unicamente o que interessa, aqui, é mostrar como o giro gnosiológico processado por Descartes pode, por analogia, ser comparado ao giro – não é mais o sol que gira em torno da terra, mas, ao contrário, é a terra que gira em torno do sol - cosmológico do heliocentrismo de Copérnico.

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Regras para a Direção do Espírito, nos três ensaios, aos quais o Discurso do

Método serve como introdução, Dióptrica, Meteoros e Geometria, bem como,

na segunda, terceira e quarta partes dos Princípios da Filosofia. O que se vê

nestas obras é um Descartes geômetra, físico-matemático, um Descartes

fisiólogo e, até, um Descartes anatomista, mas não um Descartes metafísico.

Encontra-se nas obras e em grande parte de sua correspondência, um Descartes

que tenta dar conta do mundo, estabelecer a ordem das verdades relativas a

este, sem recorrer a Deus, a não ser como criador e mantenedor da máquina do

mundo, ou como um ser que é estranho aos ditames da razão natural. É de

posse do território da razão, que Descartes funda e garante a ordem do saber e

as bases gnosiológicas da ciência. Ao longo das obras, o que se vê é um

Descartes que busca, no rigor lógico do método, a garantia da ordem do saber.

Este se encontra subordinado exclusivamente à razão, que estabeleceu, por suas

próprias faculdades, o método como o único caminho que possibilita, no plano

da ciência, a conquista do conhecimento verdadeiro. A verdade adquire, então,

uma tonalidade puramente humana. A ciência é uma conquista do homem, sua

verdade reflete a natureza humana; o homem torna-se a referência desta. O

método mostra-se eficaz e a experiência confirma sua eficácia. Descartes não

precisa de absolutamente nada, além do método eficiente, para garantir a ordem

de verdade do saber científico, e, através desta conquista, determinar o rumo da

ciência moderna. Se, antes de Descartes, Deus se apresentava como o

garantidor primeiro e último da verdade, agora, na ciência cartesiana, Deus

perdeu sua função, o homem assumiu seu lugar, tornou-se o criador e

garantidor da verdade. Assim, a ciência cartesiana, acaba por transferir o lugar

e a responsabilidade de Deus para o homem. Com isto, a ciência cartesiana

supera o cosmocentrismo antigo e o teocentrismo dos medievais, instaurando

um antropocentrismo gnosiológico. O homem, sujeito de conhecimento, passa

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a ser o ser através do qual a verdade manifesta-se ao mundo266. Deus, como

garantidor do conhecimento verdadeiro, torna-se desnecessário, sendo sua

presença sugerida apenas para criar e colocar o mundo em funcionamento.

Depois desse primeiro momento, a máquina do mundo já não precisa mais dele,

funciona pela autonomia de sua engrenagem universal. Deus torna-se

desnecessário, descartável; o homem assume o seu lugar, torna-se o engenheiro

do universo, o técnico que, compreendendo a engrenagem da máquina, pode

usá-la, dominá-la, transformá-la. É o sujeito, na auto-suficiência do método,

que afirma-se como absoluto no plano do conhecimento e torna-se o alicerce

seguro e certo sobre o qual se erguerá a morada do saber científico. O sonho de

Beeckman, de Galileu, de Mersenne e de tantos outros mecanicistas, torna-se

realidade em Descartes.

Entretanto, apesar de se conhecer que a verdadeira intenção de Descartes foi

construir uma nova ciência, fundar a verdadeira ciência sobre o mundo e sobre

o homem, sabe-se, também, que Descartes construiu uma metafísica e, sob os

alicerces desta, ergueu a ciência. O que teria levado Descartes a buscar apoio

na metafísica para as conquistas obtidas no campo da ciência? Teria Descartes

construído uma metafísica, para, em paz, poder construir sua ciência? Se

Descartes buscou e encontrou, na física-geométrica, no seu método

matemático, na mecânica da natureza, as bases seguras e certas para

fundamentar toda ordem do saber, o que o teria levado a buscar – no Discurso

do Método267, nas Meditações e na primeira parte dos Princípios da Filosofia –

266 Cf. nota 454. 267 Está se falando aqui da primeira parte do Discurso do Método (essa obra foi publicada, pela primeira vez, em 1637, tendo como título original Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences. Entretanto, ao longo da história, ficou conhecida e consagrada simplemente com o título

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uma metafísica como fundamento da ciência? Se o rigor lógico do método é

suficiente para garantir a verdade da ciência, se a lógica da razão dá conta da

lógica do mundo, qual a verdadeira necessidade de Descartes buscar em Deus

os fundamentos metafísicos para sua ciência? Se a experiência confirma o êxito

e a auto-suficiência do método, como justificar que o mesmo método venha,

mais tarde, solicitar uma metafísica que lhe dê legitimidade? É o assunto do

próximo capítulo.

Discours de la Méthode), melhor, a parte onde Descartes descreve os caminhos metodológicos por ele percorridos para fundamentar a verdadeira ciência. A ciência que é anunciada nos três ensaios: Dióptrica, Meteoros e Geometria, aos quais o Discurso do Método serve como introdução.

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SEGUNDO CAPÍTULO

DEUS NA FÍSICA CARTESIANA

(UMA FÍSICA EM BUSCA DE UMA METAFÍSICA)

“... je vous dirai, entre nous, que ces six Meditations contiennent tous fondements de ma physique”.

(Descartes – correspondência)

No primeiro capítulo centrou-se, como alvo de reflexão, a perspectiva científica

de Descartes que, antes de ser metafísico, foi, acima de tudo, cientista; que no

primeiro período de sua reflexão não está preocupado em encontrar os

primeiros fundamentos da física e das demais ciências particulares. Basta-lhe a

autonomia do método. A ciência mecanicista é a expressão plena de uma

vitória da razão. A razão, na ordem do método matemático, é tomada como a

única referência, a partir da qual a verdade afirma-se e justifica-se. Toda a

ciência cartesiana, neste primeiro momento, encontra sua base de sustentação

na ordem do método, que tem como única armadura justificadora, a

matemática. Deus não se faz presente ou necessário para garantir as verdades

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conquistadas pela ciência. A razão, na ciência cartesiana, é absoluta. Seu

domínio sobre o real é pleno e suficiente para afirmar o homem como senhor e

possuidor da natureza. Entretanto, num segundo momento, o que se vê é um

Descartes metafísico, ou seja, um pensador em busca de uma metafísica que

justifique os primeiros princípios da física. Neste segundo capítulo, a reflexão

estará voltada para essa virada do pensamento cartesiano. Virada que será

contemplada e desenvolvida em dois momentos: 1º - apresentar, sem questionar

ou submeter a qualquer crítica, a arquitetura lógica da metafísica cartesiana; 2º

- entender a ordem lógica, os limites, as possibilidades e as possíveis

dificuldades enfrentadas pelo autor para fazer da metafísica a base de

sustentação da física. Por último, identificar e evidenciar os impasses lógicos

enfrentados por Descartes na construção de sua metafísica, bem como as

conseqüências desses impasses para a ordem do seu próprio sistema filosófico.

O que teria levado Descartes a buscar na metafísica os fundamentos para sua

ciência? Se a força lógica do método é suficiente para garantir as verdades da

ciência, se a lógica da razão dá conta da lógica da realidade, qual a verdadeira

necessidade que teve Descartes de ir buscar em Deus os fundamentos

metafísicos para sua ciência? Se a experiência confirma o êxito e a auto-

suficiência do método, como justificar que esse mesmo método venha, mais

tarde, solicitar uma metafísica que lhe dê legitimidade? Todos esses

questionamentos visam responder a uma pergunta que direciona e orienta a

reflexão deste capítulo: a presença de Deus na filosofia cartesiana compromete

a autonomia da razão? É, verdadeiramente, a razão que se encontra

subordinada a Deus ou é Deus que se encontra subordinado à razão?

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Responder a tais questões implica conhecer as possibilidades e os limites da

presença de Deus na filosofia de Descartes.

Em 1637, Descartes publica o Discours de la Méthode & Essais, contendo uma

breve introdução, que antecede e apresenta, pela primeira vez ao grande

público, as bases de uma nova ciência derivada de Copérnico e de Galileu, em

forma de três ensaios: Dioptrique, Météores e Géométrie. Nesta obra,

Descartes já apresenta todos os temas que serão elaborados e desenvolvidos ao

longo de suas obras posteriores268: o método, a metafísica e a física269.

Descartes obteve com a publicação do Discurso um grande sucesso. Mas, para

sua própria surpresa, o sucesso não derivou tanto dos três ensaios científicos.

Apesar de apresentarem ao mundo uma nova ciência, o que chamou mais a

atenção do mundo erudito foi sua metafísica. Aquilo que era apenas uma

introdução à nova ciência, assumiu o papel de ser a referência fundante de todo

o saber, inclusive da ciência270. É nesta introdução que Descartes aborda, pela

primeira vez, temas como Deus e a imortalidade da alma. É no Discurso do

Método que Descartes dá seus primeiros passos em direção a uma metafísica,

através da qual, justifica e fundamenta toda a ordem do saber. Mas,

verdadeiramente, a intenção de Descartes com este livro não é apresentar, de

268 Sobre a intenção e o alcance dos temas desenvolvidos no Discurso do Método, escreve Alquié: “Escrito em francês e proclamando logo no início, a universalidade da Razão, o Discurso do Método, é ao mesmo tempo um prefácio e uma obra de vulgarização: pretende interessar o público por esse método do qual Descartes tantas descobertas espera dar algumas amostras dos seus resultados. Mas não se encontra nele a expressão perfeita e definitiva de qualquer dos pensamentos de Descartes”. A filosofia de Descartes, p. 54. 269 “Toute la philosophie de Descartes est contenue en abrégé, dans le Discours de la Méthode. Descartes, dans ce premier ouvrage, si longtemps médité, a donné, en un petit nombre de pages, une admirable esquisse de sa méthode, de sa métaphysique et de sa physique”. BOUILLIER, F. Histoire de la philosophie cartésienne, I, p. 61. 270 “Porém, do ponto de vista da posteridade, a parte mais importante do livro de Descartes não foram os próprios ensaios, mas a introdução que os precedeu entitulada Discurso do Método de bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências”. COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes, p. 29-30.

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forma madura e plena, sua metafísica, pelo contrário, o que ele busca é só

monstrar os caminhos percorridos por sua razão na conquista das verdades na

ciência271. O Discurso do Método, de certa forma, tem um caráter

propagandístico, pois tem a intenção de propalar as conquistas da nova

ciência272 e, ao mesmo tempo, “à préparer le chemin et à sonder le gué”273. Ao

publicar este livro em francês e não em latim, como era regra entre os doutos, a

intenção de Descartes é conquistar o assentimento de um público bastante

amplo e diverso para suas idéias274: “... j’ai redigé ma philosophie de façon à ne

choquer personne, et qu’elle puisse être reçue partout, même aussi chez les

Turcs”275. Descartes deseja que todos, dos doutos ao homem mais comum,

inclusive as mulheres, possam entender a filosofia que o Discurso do Método

anuncia ao mundo. Em 22 de fevereiro de 1638, em correspondência com

Vatier, o meditador deixa clara essa intenção: “... un livre, où j’ai voulu que les

femmes mêmes puissent entendre quelque chose, et cependant que les plus

271 “Descartes (...) veut attendre l’accueil reservé à sa science pour achever et publier une métaphysique plus audacieuse encore que sa physique”. CAVAILLÉ, J.-P. Op. Cit., p. 306. 272 A grande preocupação de Descartes, ao publicar o seu Discurso do Método, é saber como suas idéias seriam aceitas pelo público em geral, mas, sobretudo, pelo público mais seleto, ligado às Universidades ou à Igreja. A preocupação de Descartes é tanta, que a primeira edição do seu Discurso, sairá sem a identificação do autor da obra. Descartes não quer se expor, tem medo que a identificação do autor das idéias do Discurso facilite sua identificação e se torne, assim, alvo fácil para as críticas ou mesmo as perseguições. Descartes sabe muito bem que suas idéias colocam em risco todo o mundo que o antecede. Por isso, é preciso cuidado, é preciso mostrar a sombra e esconder o sol que a possibilita. O próprio Descartes, em carta ao Pe. Dinet, indica os motivos que o levaram a omitir seu nome quando da publicação da primeira edição do Discurso: “Ayant fait imprimer en l’année 1637 quelques-uns de ces essais, je fis tout ce que je pus pour me mettre à couvert de l’envie que je prévoyais bien, tout indigne que je suis, qu’ils attireraient sur moi. Ce qui fut la cause pourquoi je ne voulus point y mettre mon nom; et non pas, comme il a peuêtre semblé à quelques-uns, parce que je me défiais de la vérité des raisons qui y sont contenues, et que j’eusse quelque honte, ou que je me repentisse de les avoir faits”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p.1080-1081; AT., VII, p. 574-575. 273 Apud, BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, II, p. 48. 274 “E se escrevo em francês, que é a língua de meu país, e não em latim, que é a de meus preceptores, é porque espero que aqueles que se servem apenas de sua razão natural inteiramente pura, julgarão melhor minhas opiniões, do que aqueles que não acreditam senão nos livros antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, não serão de modo algum, tenho certeza, tão parciais em favor do latim, que recusem ouvir minhas razões, porque as explico em língua vulgar”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 102. 275 DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 51.

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subtils trouvassent aussi assez de matière pour occuper leur attention”276.

Entretanto, apesar dessa característica propagandística e de divulgação do

Discurso, nele já se encontram, de forma ainda introdutória, os principais temas

que constituem as bases de sustentação da metafísica cartesiana. Em 1641,

Descartes publica, em latim, suas Meditationes de Prima Philosophia, cujo

título original completo é: Meditationes de Prima Philosophia in qua Dei

existentia et animae immortalitas demonstrantur277. Obra, na qual, de forma

plena e madura, retoma os principais temas metafísicos do Discurso e os

apresenta nesta série de meditações278. Em 1644, Descartes publica os

Príncipes de la Philosophie, composto de quatro partes, sendo que a primeira

trata dos princípios do conhecimento humano, a segunda, dos princípios das

coisas materiais, a terceira, do mundo visível e a quarta da Terra. Seja no

Discurso do Método, nas Meditações ou na primeira parte dos Princípios da

Filosofia, Descartes trata de um mesmo tema: sua metafísica. Há, entre alguns

intérpretes, discordâncias em identificar em qual destes três textos Descartes

apresenta, de forma conclusiva, sua metafísica. A polêmica gira,

principalmente, em torno do Discurso do Método e das Meditações. Segundo

276 Idem, Correspondência, Alq., I., p. 27; AT., I, p. 560. 277 DESCARTES, R. Meditações, Alq., II, p. 377; AT., VII, p. 1. 278 “...sa Métaphysique profitera de l'expérience faite avec le Discours et les Essais; il n'a pu la publier avec ce livre, car ce livre est destiné à sonder l'opinion; il est écrit en français et il sera lu par des femmes, par des mondains; or, la métaphysique est chose aristocratique; elle manie des idées dangereuses, et le métaphysicien est souvent obligé de présenter les pires doctrines soit pour les réfuter, soit même pour en faire jaillir la vérité; il peut se servir du pyrrhonisme pour arriver plus sûrement à l'absolue certitude; aussi Descartes réserve-t-il ces exposés pour un traité en latin destiné aux philosophes et aux théologiens, traité qui est prêt depuis bien longtemps, depuis 1629, et qui doit être non le récit d'un amateur curieux qui raconte ses lectures à travers le grand livre du monde, mais un recueil d'arguments qui doit convaincre les athées et les amener nécessairement au seuil de la vraie religion. Après le Discours, le seul problème qui se pose à Descartes est celui-ci: étant donné ce qui reste dans mes tiroirs, dois-je publier d'abord la Métaphysique ou la Physique? L'affaire de Galilée n'est toujours pas liquidée; d'autre part, l'ordre logique veut que la Physique passe après; il ne peut répondre complètement aux questions de la réfraction, par exemple ‘sans avoir auparavant démontré les principes de la Physique par la Métaphysique (ce que j'espère faire quelque jour, mais qui ne l'a point été par ci-devant)...’ (A Mersenne, 17 ou 27 mai 1638, II, p. 141-142, et Appendice, p. 729). Le petit traité, dont nous entendons parler depuis 1628, allait devenir, en 1641 les Méditations Métaphysiques”. GOUIHER, H. La pensée religieuse de Descartes, p. 96.

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alguns autores, tais como Gilson279, Guéroult280 e Hamelin281, o Discurso do

Método ainda não apresenta uma idéia global da metafísica cartesiana, já que

neste livro encontra-se ausente a dúvida metafísica, a idéia de um malin génie,

através do qual, Descartes eleva sua dúvida metodológica a uma dúvida

metafísica. Por isso, segundo esses intérpretes, só nas Meditações, aparece, em

plenitude, a metafísica cartesiana282. Entretanto, aqui não será contemplada essa

contenda hermenêutica; o que interessa, acima de qualquer polêmica exegética,

é apresentar a arquitetura lógica da metafísica cartesiana e, para tanto, as

Meditações torna-se-ão o texto básico, sobre o qual será centrada a reflexão do

presente capítulo. Essa escolha deve-se ao fato de que neste livro encontram-se

todos os elementos constituintes da metafísica cartesina. Isso não quer dizer

que não serão comtempladas outras obras de Descartes, mas apenas que as

Meditações serão o centro, em torno do qual as outras obras, bem como sua

correspondência, deverão gravitar.

A intenção de Descartes, com sua metafísica, é combater a metafísica de

Aristóteles e dos escolásticos. Melhor seria dizer: destruir a metafísica

aristotélica e, como conseqüência, destruir toda a metafísica dela derivada.

Segundo Descartes, Aristóteles não pode mais ser tomado como referência

paradigmática do saber. O saber dele, ou dele derivado, é vazio; não traz

qualquer fundamento através do qual se possa derivar qualquer ciência

verdadeira, seja sobre o mundo material ou imaterial. A prova da ineficácia

dessa ciência é que, ao longo dos séculos em que reinou como “ciência 279 GILSON, É. Texte et commentaire. In: DESCARTES, R. Discours de la Méthode, p. 290-291. 280 GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 34. 281 HAMELIN, O. El Sistema de Descartes, p. 126-127. 282 Sobre esse assunto, confira o texto de Alquié: Du cogito du “Discours” au cogito des “Meditations”, In: Idem, Leçons sur Descartes, p. 129-158.

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verdadeira”, não possibilitou, segundo Descartes, nenhum progresso ao

conhecimento humano283. Essa crítica à filosofia de Aristóteles também alcança

seus herdeiros, melhor, alcança os escolásticos que, segundo Descartes, só

geraram debates vazios, em nada contribuindo para a conquista de um

verdadeiro saber, tornando-se, desta forma, inúteis: “La philosophie dominante,

au contraire [ao contrário de sua própria filosofia], celle que l’on enseigne dans

les écoles et les universités, n’est qu’un amas confus d’opinions, pour la plupart

douteuses, comme le prouvent les discussions auxquelles elles donnent lieu

chaque jour, et entièrement inutiles, comme une longue expérience ne l’a que

trop appris”284. A ciência quantitativa, subordinada unicamente a uma ordem de

razão, superou, de forma definitiva, a ciência qualitativa de Aristóteles e dos

seus herdeiros. Chegou o momento, segundo Descartes, de combater a

metafísica de Aristóteles e, como conseqüência, a metafísica dos escolásticos,

usando as suas próprias armas, enfrentando-os em seu próprio campo de

batalha, mostrando-lhes que aquela velha metafísica, derivada da velha ciência

de Aristóteles, carece de fundamentos sólidos para se afirmar como um saber

verdadeiro285. Se a ciência de Aristóteles justifica sua metafísica, Descartes,

que já tinha combatido e vencido a ciência de Aristóteles, vai agora, através da

metafísica, fundamentar e justificar sua própria física e, ao mesmo tempo,

combater e destruir a metafísica de Aristóteles e dos seus herdeiros. Esse é o

283 “... assim, quando se têm verdadeiros Princípios em Filosofia, não se pode deixar de, seguindo-os, encontrar por vezes outras verdades; e não se poderia melhor provar a falsidade dos de Aristóteles senão dizendo que não se pôde fazer nenhum progresso por meio deles durantre vários séculos em que foram seguidos”. DESCARTES, R. Carta-prefácio dos princípios da filosofia, p. 27. Cf. também sobre o tema desta intenção cartesiana: ROBERT, J. D. “Descartes, créateur d’un nouveau style métaphysique”. Revue Philosophique de Louvain. 60 (1962), p. 369-393. 284 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 30. 285 “Aussi n’ai-je pas voulu le taire, afin de battre de leurs armes ceux qui mêlent Aristote avec la Bible, et veulent abuser de l’autorité de l’Eglise pour exercer leurs passions, j’entends de ceux qui ont fait condamner Galilée, et qui feraient bien condamner aussi mes opinions, s’ils pouvaient, en même sorte; mais si cela vient jamais en dispute, je me fais fort de montrer qu’il n’y a aucune opinion, en leur philosophie, qui s’accorde si bien avec la foi que les miennes. Idem, Alq., II, p. 323-324; AT., III, p. 349-350.

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objetivo principal dele, senão o único. Se esse é, verdadeiramente, o principal

objetivo de Descartes, ele não o diz de forma direta nas suas Meditações. Ao

contrário, procura amenizar suas verdadeiras intenções. Se essa intenção existe

no próprio corpo das Meditações, é de forma subliminar, indireta. Descartes

não quer se indispor com a Igreja ou mesmo com os Doutos que, ao longo de

séculos, se tornaram defensores aguerridos da filosofia aristotélica. É preciso

cuidado, o terreno que ele está pisando encontra-se completamente minado, não

se pode dar um passo em falso. Por outro lado, a metafísica que ele está

apresentando é uma carga de dinamite, mas isto deve ser camuflado. É preciso

destruir a metafísica antiga e medieval, mas, ao mesmo tempo, camuflar que

essa seja sua verdadeira intenção. Não é à toa que Descartes, antes de publicar

as Meditações, se dirige ao Deão e Doutores da Sorbone, para apresentar-lhes

suas idéias e, ao mesmo tempo, solicitar proteção para as mesmas: “A razão

que me leva a apresentar-vos esta obra é tão justa – e, quando conhecerdes seu

desígnio, estou certo de que tereis o também justo desígnio de tomá-la sob

vossa proteção”286. Descartes sabe muito bem, como seria importante, ter ao

seu lado, como defensores de suas idéias, os reconhecidos teólogos da Sagrada

Faculdade de Teologia de Paris. Tem tanta certeza de que suas idéias serão

aprovadas por estes que, por ocasião da primeira publicação das Meditações,

afirma que as mesmas foram aprovadas por aquela Faculdade287. Entretanto,

essa aprovação nunca veio a se confirmar; o que fez Descartes excluir, na

segunda edição das Meditações, tal referência. Nesta mesma carta, como já foi

dito, escrita de forma conciliadora, quase submissa, para obter o assentimento

286 DESCARTES, R. Meditações, Carta de apresentação dirigida aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris, p. 105. 287 “O título completo da edição de Paris era: Renati Descartes, Meditationes de Prima Philosophia, in qua Dei existentia et Animae immortalitas demonstratur. Acabou de imprimir-se em 28 de Agosto de 1641, e trazia na capa os dizeres: Cum Privilegio et Approbatione Doctorum”. FRAGA, G. Tradução, introdução e notas, In: DESCARTES, R. Meditações sobre a filosofia primeira, p. 76. Cf., AT., VII, p. 1.

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para suas idéias, Descartes declara que pretende se ocupar com as questões de

Deus e da alma, a partir de referências filosóficas, ou seja, a partir de

referências derivadas da razão natural: “Sempre estimei que estas duas

questões, de Deus e da alma, eram as principais entre as que devem ser

demonstradas mais pelas razões da Filosofia que da Teologia”288. Essa é a

intenção de Descartes: tratar da questão de Deus e da alma a partir de uma

perspectiva puramente racional. Em parte essa intenção é verdadeira, mas só

em parte. Sua metafísica vai, no entanto, muito além disso, devido às intenções

que regem a referida carta; pois, não é possível dizer tudo, revelar abertamente

suas intenções, que ultrapassam, na perspectiva de sua metafísica, uma

reflexão racional sobre Deus e a alma. O que ele não revela é que sua

metafísica tem como verdadeira intenção estabelecer os fundamentos primeiros

da nova ciência, que sua verdadeira intenção é apresentar uma nova metafísica

através da qual possa fundamentar e legitimar os primeiros princípios de sua

ciência mecanicista, em continuidade com Copérnico e Galileu. O que ele não

revela é que sua metafísica, além de estabelecer os fundamentos metafísicos

para a nova ciência mecanicista, destrói, de forma definitiva, toda a cosmovisão

de mundo fudada ou derivada da física qualitativa de Aristóteles e que tão bem

serve aos interesses teológicos dos escolásticos289. É preciso manter certo

segredo sobre o que verdadeiramente pretende, é preciso, às vezes, fazer do

silêncio290 uma morada segura para o bom exercício do pensamento291. Em 11

288 DESCARTES, R. Meditações, p. 105. 289 Cf. nota 203. 290 Sobre esse assunto, é sugestiva a carta que Descartes escreve a Régius, em julho de 1645: “Ceux qui me souponnent d’écrire d’une manière contraire à mes sentiments sur quelque sujet que ce soit, me font une injustice criante. Si je savais qui sont ces personnes-là, je ne pourrais m’empêcher de les regarder comme mes ennemis. J’ avoue qu’il y a de la prudence de se taire, dans certaines occasions et de ne point donner au public tout ce que l’on pense; mais d’écrire, sons necessite, quelque chose qui soit contraire à ses propres sentiments et vouloir le persuader à ses lecteurs, je regarde cela comme une bassesse et comme une pure méchanceté”. Texto da correspondência de Descartes, originalmente escrito em latim, traduzido e citado por Máxime Leroy, em: Descartes – le philosophe au masque, I, p. 17.

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de novembro de 1640, Descartes escreve a Mersenne: “J’ai envoyé dès hier ma

Métaphysique à M. de Zuylichem pour vous l’adresser; (...). Je n’y ai point mis

de titre, mais il me semble que le plus propre sera de mettre Renati Descartes

Meditationes de prima Philosophia; car je ne traite point en particulier de Dieu

et de l’âme, mais en général de toutes les premières chose qu’on peut connaître

en philosophant”292. Aí estaria a verdadeira intenção de Descartes: buscar os

fundamentos racionais para dar conta, além de Deus e da alma, de todas as

coisas sobre as quais se pode filosofar. A metafísica é apresentada – ver-se-á

mais tarde - como base de sustentação de todo o saber que a razão humana

pode conhecer. Assim, o projeto metafísico de Descartes é profundamente

ambicioso, ultrapassa, e em muito, uma especulação sobre as coisas imateriais,

está suposta à totalidade do saber humano. Se, como foi visto no capítulo

anterior, através da física, Descartes busca dar conta do mundo físico, do

mundo material, o projeto das Meditações busca, além de dar conta do mundo

imaterial, de Deus e da alma, dar conta também do mundo material293. Num

mesmo percurso visa-se, dar conta do mundo espiritual e do mundo físico, do

espírito e da matéria, do pensamento e da extensão, subordinando esta àquele.

A metafísica torna-se, no racionalismo cartesiano, a raiz que sustenta e

alimenta a árvore do conhecimento humano.

291 Segundo Klaas Woortmann, os pesquisadores, principalmente aqueles que se encontravam envolvidos com a nova forma de ver e interpretar o mundo, entre eles se encontrava Descartes, tinham motivos suficientes para manterem suas pesquisas sob segredo, protegendo-as, assim, dos seus opositores. Isto porque, neste período “a ciência da época, mesmo a inovadora, era especulativa; não havia como verificar experimentalmente as hipóteses e provar sua verdade contra um ambiente geral ainda centrado numa explicação aristotélico-tomista do mundo. O receio da condenação pelo establishment intelectual, para não falar do poder religioso, estende-se até o século XVII: Descartes e Spinoza cultivam suas verdades em segredo, a salvo dos ataques dos seus colegas”. Religião e ciência no renascimento, p. 22. 292 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 276-277; AT., III, p. 235. 293 “Las Meditaciones constituyen, junto con el Tratado del mundo, el eje del pensamiento cartesiano. Lo que en la formulación del mecanicismo aparecía como supuesto tras la fábula del mundo y se descubría em el Discurso, se tematiza de modo claro e inequívoco en las Meditaciones”. TURRÓ, S. Descartes, Del hermetismo a la nueva ciência, p. 398.

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Diferentemente de toda metafísica que o antecedeu, Descartes busca construir a

sua obedecendo ao mesmo rigor matemático que estabeleceu para a física. Ou

seja, aqui também, Descartes quer fugir de um saber garantido e ordenado por

uma lógica de observação, classificação e deduções, derivadas das

representações espontâneas que se oferecem aos sentidos a partir do mundo

sensível que, na sua positividade, se afirma como suficiente para determinar o

estatuto da verdade do sujeito que o contempla. Essa forma de ver e interpretar

o mundo, que se afirma sobre o sujeito, com seu realismo positivo, está muito

próxima daquela que tem o homem comum, na sua mais pura espontaneidade,

de ver e dar conta do mundo que se apresenta aos seus olhos, melhor dizendo,

aos seus sentidos294. Uma metafísica que parte do pressuposto de que a verdade

já existe, que ela (a verdade) antecede ao sujeito, cabendo-lhe o papel de

observador, classificador e desvelador desta verdade295. Na metafísica clássica,

na perspectiva cosmológica dos gregos, ou teológica dos cristãos, a verdade

preexiste ao sujeito, cabendo a este, no primeiro caso, através da filosofia,

294 Severino apresenta o que, segundo ele, constitui as três convicções fundamentais do “senso comum”: “1ª O mundo em que vivemos e seus processos são independentes de nós e do conhecimento que deles temos; 2ª O mundo em que vivemos é exterior à nossa mente; 3ª Quando refletimos acerca do mundo, aquilo que conseguimos saber pertence efetivamente ao mundo acerca do qual refletimos (...)”. Continua o autor: “Provisoriamente, podemos dizer que a filosofia realista, ou seja, o ‘realismo’ como posição filosófica, exprime o modo comum de pensar do homem. A diferença entre o ‘senso comum’ e filosofia realista encontrar-se-ia, pois, no fato de que o primeiro é um conjunto das nossas convicções fundamentais, enquanto que o ‘realismo filosófico’ é a reflexão sobre esse conjunto, uma reflexão que afirma a validade daquilo sobre o qual reflete”. SEVERINO, E. A filosofia moderna, p. 17-19. 295 Sobre essa antecedência da verdade em relação ao sujeito que a conhece, é interessante ver a tese de Santo Agostinho, que a afirma em plenitude: “Não é o pensar que cria a verdade, ele apenas a descobre: a verdade existe, portanto, em si mesma antes de ser descoberta”. Apud, idem, p. 42. Diz Santo Agostinho nas Confissões: “Ouvi, ó Juiz ótimo, ó Deus que sois a mesma Verdade, ouvi a minha resposta, dirigida a esse impugnador. Atendei. Digo-a diante de Vós e dos meus irmãos que ‘seguem legitimamente a lei cujo fim é a caridade’. Escutai e vede, se Vos apraz o que eu lhes digo. Eis as palavras fraternas e pacíficas que lhes dirijo: Se ambos vemos que é verdade o que tu dizes, e se ambos vemos que é verdade o que eu digo, onde, pergunto eu, o vemos nós? Nem eu, sem dúvida, o vejo em ti, nem tu em mim, mas vemo-lo ambos na imutável Verdade que está acima das nossas inteligências”. XII, 25, 35.

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desvendá-la ou, no segundo caso, através da fé, revelá-la296. Portanto, o

conteúdo de verdade da metafísica clássica de certo modo se impõe à razão;

esta o toma como um dado, como algo pressuposto. Na escolástica, a ciência

que garante em última instância o conhecimento dessa verdade pressuposta é a

teologia297. Essa metafísica tem um papel subordinado; sua função, como

sabedoria puramente humana e racional, é esclarecer, dentro dos limites da

razão humana, os caminhos através dos quais essas verdades relativas aos entes

imateriais se deixam apreender pelo homem que reflete sobre o ente como

ente298. Se a razão auxilia a fé, é a fé, que verdadeiramente abre o caminho

através do qual essas verdades referentes aos entes imateriais adquirem sentido

e significado pleno. A teologia revelada torna-se o conhecimento supremo e,

como tal, a ciência que subordina e regula todas as demais. Aquilo que os

medievais uniram - a sabedoria filosófica e a sabedoria teológica -, Descartes

separa. Como conseqüência, os medievais, embora distinguissem teologia

filosófica e teologia das Escrituras, não as separavam. Caberá a Descartes,

estabelecer definitivamente a separação entre os conhecimentos derivados da

razão e os conhecimentos derivados da fé299. Ao mesmo tempo em que

Descartes estabelece a distinção entre essas duas formas de conhecimentos, 296 “A indagação acerca do fundamento último da verdade predominou na história da filosofia até este momento (século XVII), assumindo ora uma perspectiva cosmológica, ora teológica. O que importa é que, tanto no dogmatismo metafísico grego, seja ele realista ou idealista, como no dogmatismo teológico medieval, a verdade se manifesta fora do âmbito do sujeito. Este poderia acercar-se dela, ou pela filosofia ou pelo exercício da fé”. RIBEIRO, E. E. M. Individualismo e verdade em Descartes – O Processo de estruturação do sujeito moderno, p. 10. 297 “Como ciência da causa suprema, a teologia reina suprema entre todas as ciências; todas são julgadas por ela e subordinadas a ela”. GILSON, É. Deus e a Filosofia, p. 62. 298 Cf., por exemplo, Tomás de Aquino, Comentário ao tratado da trindade de Boécio, questão 5, a. 4. 299 “Assim, o que aconteceu com a filosofia de Descartes, e independentemente da sua convicção pessoal cristã, foi a ruptura com a idéia medieval cristã de Saber. Para São Tomás de Aquino, por exemplo, a suprema expressão do saber era a teologia. ‘Esta doutrina sagrada’, diz São Tomás de Aquino, ‘é, entre todos os saberes humanos, o saber por excelência; não é apenas o mais elevado dentro de uma certa ordem, é-o absolutamente’. E porque será assim? Porque o próprio objeto da teologia é Deus, que é o mais elevado objeto concebível do conhecimento humano: ‘Só merece eminentemente ser chamado sábio aquele cujo estudo incida sobre a suprema causa absoluta do universo, ou seja, Deus’”. GILSON, É. Deus e a Filosofia, p. 62. Acrescente-se que os medievais não escreveram tratados independentes de metafísica; o primeiro a fazê-lo foi Suarez (1548 – 1617) com suas Disputationes Metaphysicae (1597).

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afirma a absoluta autonomia da razão no processo do conhecimento da verdade.

Portanto, a partir de Descartes, a razão conquista sua independência e, como

senhora de suas verdades, afirma-se como referência paradigmática de todo

conhecimento humano. “O que era novo em Descartes era a separação real e

prática entre a sabedoria filosófica e a sabedoria teológica”300. Em Descartes,

ao contrário dos escolásticos, todas as ciências devem adotar o mesmo

procedimento e assim a metafísica tem que se subordinar ao mesmo rigor

metodológico, melhor, matemático, usado quando da elaboração das ciências

físicas. Eis o sonho da metafísica cartesiana: provar a existência de Deus, a

imortalidade da alma e construir, a partir dessas verdades, um conhecimento

absolutamente verdadeiro sobre o mundo material, tendo a razão matemática

como única referência de prova. “Mas o que me contentava mais nesse método

era o fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo de minha razão, senão

perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse”301. O que entusiasma

Descartes com o seu método é a possibilidade de tratar de questões que agora

poderiam ser abordadas de uma perspectiva rigorosamente geométrica – antes

estas encontravam suas respostas últimas no plano da fé e da teologia, a qual

sempre tratou a questão da verdade por critérios não rigorosamente racionais.

Segundo Descartes, seguindo a ordem da razão geométrica, nenhuma verdade

fica fora do alcance da razão: mesmo aquelas mais ocultas ou que mais

escondidas estejam, a razão pode alcançá-las, podendo e devendo subordiná-

las à uma ordenação matemática derivada da razão natural. “Essas longas

cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-

se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de

imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens

300 Idem, Ibidem. 301 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 58.

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seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos

abstenhamos somente de aceitar por verdadeiro qualquer que não o seja, e que

guardemos sempre a ordem necessária para deduzi-las uma das outras, não

pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão

ocultas que não se descubram”302. O próprio Descartes informa que, na

pesquisa sobre o conhecimento de Deus e da alma, seguirá o mesmo método

usado na pesquisa sobre o conhecimento do mundo, qual seja, aquele usado

pelos geômetras: “…vi-me obrigado a seguir uma ordem semelhante àquela de

que se servem os geômetras, a saber, adiantar todas as coisas das quais depende

a proposição que se busca, antes de concluir algo dela”303. O êxito do método

geométrico aplicado à metafísica é tanto, que Descartes reconhece que as

verdades conquistadas na metafísica chegam a ser mais evidentes do que

aquelas obtidas pela geometria. Em carta a Mersenne em 15 de abril de 1630,

escreve Descartes: “Mais c’est la matière que j’ai le plus étudiée de toutes, et

en laquelle, grâces à Dieu, je me suis aucunement satisfait; au moins pensé-je

avoir trouvé comment on peut démontrer les vérités Métaphysiques, d’une

façon qui est plus évidente que les démonstrations de Géométrie.”304.

Descartes que conquistou, no plano da física para a ordem da razão, toda a

ordem de conhecimento verdadeiro sobre o mundo material, quer, agora no

plano da metafísica, obter o mesmo êxito; conquistar e subordinar à ordem da

razão, também, os conhecimentos referentes aos entes imateriais, os

conhecimentos que estão para lá do mundo físico, os conhecimentos

metafísicos: Deus e a alma. Mais ainda: talvez este seja, verdadeiramente, o

grande projeto de Descartes, demonstrar que as verdades conquistadas na

metafísica são tão evidentes que até mesmo as verdades obtidas, no primeiro 302 Idem, p. 55, (grifo nosso). 303 DESCARTES, R. Meditações, p. 111. 304 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 259; AT., I, p. 144.

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momento, com sua física, devam estar àquelas subordinadas. É na metafísica,

que a física cartesiana encontra seus verdadeiros fundamentos. Em 15 de abril

de 1630, Descartes declara a Mersenne que sem a metafísica não teria

encontrado os fundamentos de sua física: “et je vous dirai que je n’eusse su

trouver les fondements de la Physique, si je ne les eusse cherchés par cette voie

[metafísica]”305. O fato de saber se Descartes está ou não, com sua metafísica,

abrindo caminhos para mais facilmente passar com sua física, não interesa

neste primeiro momento; por ora, interessa evidenciar que Descartes constrói

toda sua metafísica como preparação para sua física. Na própria ordem

expositiva das Seis Meditações, a física só aparece depois que a metafísica

preparou os seus “fundamentos inabaláveis”306. A Metafísica nada acrescentará

às ciências particulares, o seu papel não é assumir e se sobrepor a estas, o seu

papel é estabelecer os fundamentos inabaláveis, os fundamentos últimos sobre

os quais se assenta todo o saber humano. O sonho de Descartes de encontrar

uma ciência universal, capaz de unificar toda ordem do saber humano, se

consuma e se realiza plenamente nas Meditações. Nelas, o homem, Deus e o

mundo adquirem unidade, subordinam-se a um só método, adquirem, através

da razão natural, o seu conteúdo de verdade e situam-se em condição

existencial. Se a matemática se apresentou, nas conquistas das ciências, como o

único caminho verdadeiro através do qual o homem pode conhecer e justificar

toda a ordem de verdade, essa mesma matemática deve servir como base de

sustentação de todo conhecimento metafísico. “E, portanto, ainda que tudo o

que concluí nas Meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a

existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito ao menos como tão

305 Idem, ibidem. 306 “É com as Meditações, cujo eixo será constituído pela teoria da veracidade divina, que pela primeira vez é posto em causa o valor daquela razão cujos processos até aí Descartes utilizara sem verdadeiramente se interrogar sobre a sua validade última”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 64.

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certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas, que se

referem apenas aos números e às figuras”307. Ou seja, a matemática torna-se,

assim como o fora na ciência, a referência paradigmática de sustentação das

verdades metafísica. Mesmo que essa matemática esteja, como se verá mais

tarde, em última instância, subordinada aos ditames de Deus, é através dela que

o mundo material e imaterial adquire sentido e significado. Se Descartes fez

ciência como matemático, foi também como matemático que fez metafísica.

O percurso das seis Meditações obedece a um rigor preciso, a uma ordem

previamente pensada e determinada nos limites da razão natural que se

expressa em linguagem de caráter matemático. Nada nas Meditações é por

acaso, ou se apresenta fortuitamente. Como escreve Gueroult: “l’intinérarie

biographique des Méditations n’est nullement l’histoire pragmatique de

découvertes contingentes, mais la chronologie nécessaire de démarches

intellectuelles qui, en conflit avec les obstacles sensibles, progressent vers la

vérité. L’ ‘ordre de l’invention’ ou l’ ‘ordre de la découverte’ n’est pas une

succession déconcertante de trouvailles fortuites, mais un ordre, c’est-à-dire,

comme en mathématique, l’engendrement nécessaire et rigoureux des raisons

les unes par les autres”308. É esse itinerário rigoroso e sistemático que se

apresenta nas Meditações, quase como um exercício espiritual, de reflexão a

respeito de cada uma das etapas do saber309. Assim, cada homem, cada sujeito

307 DESCARTES, R. Meditações, p. 173. 308 GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 338-339. 309 Segundo Sálvio Turró, Descartes ao escolher o termo Meditações para identificar sua metafísica, está profundamente influenciado pela idéia de meditação presente no século XVII: “En el siglo XVII, una meditación era una reflexión acerca de un problema personal y normalmente de índole espiritual o religiosa”. TURRÓ, S. Descartes. Del hermetismo a la nueva ciencia, p. 399. Assim, Descartes faz nas ciência, o mesmo percurso que faz o cristão em suas meditações particulares: “Es precisa, pues, una meditación para que el científio vuelva la vista sobre su propia actividad, se cuide de sí mismo y descubra al sujeto que yace tras su hacer ordinário”. Idem, ibidem, p. 400. Essa herança do modelo de meditação, segundo Turró, Descartes conserva das suas experências quando aluno do Colégio la Flèche, onde se adotava, como forma de meditação, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola: “Descartes, formado en La Flèche y educado desde su infancia según las disciplinas jesuitas, conservó, consciente o inconscientemente, su modelo de ejercicio espiritual en las meditataciones destinadas a la fundamentación del saber”. Idem, Ibidem.

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que queira verdadeiramente filosofar, tem que, ao mesmo uma vez na vida, na

singularidade de um andante solitário, percorrer essa odisséia intelectual310.

Não é tarefa fácil, pois nessa odisséia, o andante se encontra absolutamente

sozinho, tendo como companhia seus pensamentos, sem ajuda de nenhuma

divindade que venha ao seu socorro nos momentos de fraqueza, sem ajuda da

cultura, da tradição, da fé ou seja lá do que for. Tem que percorrer todo o

caminho, e precorrê-lo bem lentamente, dando um passo de cada vez, em

direção à verdade que só conquista verdadeiramente aquele que foi capaz de

vencer todos os obstáculos, todas as tentações que se apresentaram com o

intuito de seduzi-lo e desviá-lo do reto caminho que o conduz até ela. O

prêmio que o caminhador obtém, depois desse rigoroso exercício intelectual, é

a conquista da verdade que, mesmo se apresentando no final da caminhada, foi,

toda ela, construída ao longo desse difícil percurso espiritual311. Este é o

caminho do verdadeiro filosofar ou o caminho que deve ser percorrido por todo

aquele que pretende conhecer a verdade e construir a ciência verdadeira. “Se

alguém se propuser como questão examinar todas as verdades para cujo

conhecimento basta a razão humana – e parece-me que isso deve ser feito uma vez

na vida por todos os que se empenham seriamente em alcançar a sabedoria –

seguramente encontrará, de acordo com as regras fornecidas, que nenhum

conhecimento pode preceder o do entendimento, já que é dele que depende o

conhecimento de tudo o mais, e não o inverso”312. Sobre esse intinerário rigoroso

310 “A filosofia não é para Descartes um conjunto de idéias, é um pensamento: a sua ordem verdadeira não se pode confundir com o sistema, deve compreender o homem, a própria filosofia que, segundo a etimologia da palavra, ama a sabedoria sem a possuir completamernte, e não pode, pois, trasmiti-la sob a forma de um corpo constituído de doutrina, mas apenas pedindo a cada um que medite com ele, medite longamente, medite no tempo, reviva sucessivamente os diversos momentos de uma história que, a esse nível, se torna razão, sem contudo perder a sua temporalidade”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 11. 311 “Mas como um homem que caminha só e nas trevas, resolvi ir tão lentamente, usar de tanta circunspecção em todas as coisas, que, mesmo se avançasse muito pouco, evitaria pelo menos cair.” DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 52. 312 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., p. 50.

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e solitário do filosofar, Descartes é mais explícito ainda quando, na Carta-

Prefácio dos Princípios da Filosofia, indica que é muito mais útil àquele que

busca a verdadeira filosofia, enxergar com os seus próprios olhos do que, como

um cego, deixar-se guiar por outrem: “E, além do mais, que para cada homem

em particular é não somente útil viver com os que se aplicam a esse estudo,

mas que é incomparavelmente melhor aplicar-se pessoalmente a ele, assim

como sem dúvida muito mais vale servir-se dos próprios olhos para conduzir-se

e gozar por este meio da beleza das cores e da luz do que tê-lo fechados e

seguir a conduta de um outro”313. Essa atitude particular e estritamente pessoal

do ato de filosofar, só evidencia que “el punto de partida del pensamento

cartesiano es precisamente el pensamiento individual”314. Essa foi uma prática

exercida pelo próprio Descartes, que buscou sempre, e nisso encontrou o seu

maior prazer, seguir seus próprios passos, a deixara-se guiar por outrem:

“Nasci, confesso-o, com um espírito tal que o maior prazer dos estudos para

mim sempre consistiu, não em ouvir as razões dos outros, mas em fazer o

esforço eu mesmo para descobri-las”315. A filosofia é então uma tarefa pessoal

e intrasferível: “La philosophie - la sagesse - est en quelque sorte une affaire

personnelle du philosophe”316. Sobre esse aspecto da singularidade do sujeito no

ato do filosofar, é talvez emblemático o fato de Descartes ter escrito, tanto o

Discurso do Método, como as Meditações, usando sempre a primeira pessoa do

singular - Eu. Com isso parece acentuar o caráter individual de seu projeto; quer

mostrar que sua filosofia, acima de tudo, tem caráter pessoal, foi toda ela

313 DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia, p. 6. 314 HAMELIN, O. El sistema de Descartes, p. 215. 315 DESCARTES, R. Regas para a orientação..., reg. X, p. 61. Nesta mesma regra, continua Descartes: “...ainda jovem, ao estudo das ciências, toda vez que o título de um livro prometia-me uma nova descoberta, antes de levar mais adiante a minha leitura, tentava se, mediante uma sagacidade inata, eu não conseguiria por acaso chegar a igual resultado e evitava ciosamente privar-me desse prazer inocente com uma leitura apressada”. Idem, Ibidem. 316 HUSSERL, E. Méditations Cartésiennes – introduction a la phénoménologie, p. 2.

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construída num terreno só seu, tendo seu próprio eu como primeira referência317.

Já no início da segunda parte do Discurso do Método, Descates faz questão de

acentuar o caráter individual - um só homem, construindo todo o edifício do

saber - que será adotado em seu projeto filosófico: “não há tanta perfeição nas

obras compostas de várias peças, e feitas pelas mãos de diversos mestres, como

naquelas em que um só trabalhou...”318. É, em primeiro lugar, tendo sobre sua

própria singularidade um conhecimento verdadeiro, que o sujeito se prepara

para construir, também, sobre Deus e sobre o mundo, um conhecimento da

mesma ordem. “Or j’estime que tous ceux à qui Dieu a donné l’usage de cette

raison, sont obligés de l’employer principalement pour tâcher à le connaître et à

se connaître eux-mêmes. C’est par là que j’ai tâché de commencer mes

études”319. Descartes faz questão de acentuar, até com certa freqüência, esse

caráter individual do seu projeto filosófico, mostrando que a sua intenção

sempre foi reformar os seus próprios pensamentos, a partir de um território que

lhe pertence por inteiro, que seja, todo ele, todo seu: “Nunca o meu intento foi

além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno

que é todo meu”320. É nesse terreno, o terreno da subjetividade do sujeito

pensante, que, sem querer ou poder contar com ninguém, Descartes busca

317 “Aí está o traço mais extraordinário da personalidade forte e completa de Descartes, traço que o distingue da maioria dos outros filósofos: não existe nenhum outro cujo caráter, isto é, a reação do homem inteiro, apareça mais energicamente na produção especulativa. Sua filosofia inteira – e eu ousaria quase dizer sua ciência, sua geometria como sua física - confessa, supõe explicitamente e utiliza o seu EU”. VALERY, P. Op. Cit., p. 10. 318 Continua Descartes, “Assim, vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordendados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins...” “... se Esparta foi outrora muito florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, visto que muitas eram bastante alheias e mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que, tendo sido inventadas por um só, tendiam tôdas ao mesmo fim. E assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opiniões de mui diversas pessoas, não se acham, de modo algum, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode efetuar naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 48-49. 319 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 258-259; AT., I, p.144. 320 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 51. Nota-se a semelhança com o propósito de Sto. Agostinho: “Desejo conhecer a Deus e a alma. Nada mais? Absolutamente nada”. Solilífrios, cap. II, início.

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conduzir os seus próprios pensamentos, busca reformar as idéias sobre o

homem, sobre Deus e sobre o mundo: “... eu não podia escolher ninguém cujas

opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outrem, e achava-me como

que compelido a tentar eu próprio conduzir-me”321. Isso justifica o fato de

Descartes estar sempre a lembrar que nunca quis ensinar a ninguém “o método

que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão”322, mas unicamente

mostrar de que maneira se esforçou para construir sua própria razão, seu

próprio projeto filosófico323. Apesar de Descartes reconhecer que todo projeto

filosófico, inclusive o seu, é pessoal e intrasferível, o que ele quer,

verdadeiramente, é que sua filosofia torne-se a única referência paradigmática

para o verdadeiro filosofar. É como se ele quisesse dizer: olhem para todos os

lados, para o presente e para o passado, não encontrarão nenhuma filosofia,

excetuando a que eu lhes apresento, que possa conduzir ao conhecimento da

verdade e fazer progredir o conhecimento humano. A aparente humildade de

Descartes, de nunca ter pretendido mais do que reformar seus próprios

pensamentos, seria então só um recurso, quase uma estratégia discursiva, não

correspondendo à verdade pura e simples. Seu projeto não teria nada de

humilde, chegando mesmo a ser pretencioso: quer reconstruir, sozinho, o

universo inteiro dos conhecimentos, refundar todo o saber, melhor ainda,

mostrar e convidar todos os homens, “dotados de bom senso”, a seguir seus

passos, a tomar sua filosofia como referência modelar, pois só ela possibilita,

verdadeiramente, ao homem conhecer a verdade sobre todas as coisas e, como

conseqüência, torna-se senhor de si próprio e de todo o mundo que o cerca. 321 DESCARTES, R. Discurso do método, p. 52. 322 Idem, p. 43. 323 Depois de mostrar que seu único intento foi reformar seus próprios pensamentos, contruindo um conhe-cimento que fosse todo seu, diz Descartes: “De modo que, se, tendo minha obra me agradado bastante, eu vos mostro aqui o seu modêlo, nem por isso quero aconselhar alguém a imitá-lo”. Idem, p. 51. “... se há no mundo alguma obra que não possa ser tão bem acabada por nenhum outro exceto pelo mesmo que a começou, é aquela em que trabalho”. Idem, p. 99.

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Apesar de ser essa a verdadeira intenção de Descartes, ele mesmo reconhece

que não é tarefa fácil; que existem muito poucos homens capazes de entendê-lo

e, portando, de segui-lo nesta empreitada. A adesão à sua filosofia torna-se

ainda mais difícil, porque, o que Descartes procura não é uma adesão cega, uma

adesão de devoto; ao contrário, o que ele busca é encontrar homens capazes de

meditar seriamente como ele o fez, capazes de percorrer, junto com ele, todo o

caminho, todas as etapas de seu intinerário filosófico. Aquele que for capaz de,

seriamente, enfrentar essa caminhada filosófica, com rigor, disciplina e livre de

todo preconceito, com certeza chegará às mesmas verdades a que ele chegou e,

como recompensa, conhecerá as mais belas coisas que o conhecimento humano

pode produzir324. Descartes reconehce que bem poucos homens podem ou estão

preparados para seguir seus passos: “je ne conseillerai jamais à le lire sinon à

ceux qui voudront avec moi méditer sérieusement, et qui pourront détacher

leur esprit du commerce des sens, et le délivrer entièrement de toutes sortes de

préjugué; lesquels je ne sais que trop être en fort petit nombre”325. Aqui a

escolha é livre, ninguém pode ser forçado a seguir os passos das Meditações,

ninguém pode ser conduzido a pensar sobre o que não deseja pensar ou a ver o

que não quer ver. Se assim não fosse, não teria sentido, já que todo o projeto

cartesiano funda-se no livre arbítrio do sujeito pensante. O próprio Descartes

afirma que não está em seu poder fazer ver o que se encontra no fundo do

324 “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganam a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 41, (grifo nosso). 325 DESCARTES, R. Méditations – préface de l’auteur au lecteur, Alq., II, p. 393; AT., VII, p. 9-10. O texto acima citado (prefácio ao leitor) não se encontra presente na edição brasileira da Obra Escolhida de Descartes. Edição que foi adotada (ver nota 1, primeiro capítulo) como referência para o presente trabalho.

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gabinete ao homem que não quer ou não deseja entrar lá para olhar326. As

verdades que enuncia tornam-se manifestas, mas somente àqueles que são

capazes de lê-lo seriamente: “je ne conseillerai jamais à personne de le lire [As

Meditações] sinon à ceux qui voudront avec moi méditer sérieusement”327.

Estes serão capazes de conhecer e entender o que o meditador lhes apresenta.

Continua Descartes: “por isso que eu gostaria de assegurar aos que desconfiam

demasiado de suas forças que não há coisa alguma em meus escritos que não

possam entender inteiramente se se derem ao trabalho de examiná-los; e não

obstante também advertir aos outros de que mesmo os mais exelentes espíritos

precisam de muito tempo e atenção para observar todas as coisas que tive o

intento de neles incluir”328. Os que não se dispõem ao rigor da reflexão e não o

levam verdadeiramente a sério, estão condenados a não compreendê-lo e, neste

caso, segundo Descartes, não lhe cabe impor sua filosofia a alguém que não a

tome a sério: “(...) não poderei enfiá-lo329 à força no espírito dos que lerem as

minhas Meditações apenas como um romance, para se desenfadar, e sem lhes

prestar grande atenção”330. Não cabe a Descartes conduzir o homem em direção

à sua filosofia, cabe ao homem, de posse do seu livre arbítrio, refazer os passos

de Descartes e chegar a ela, não porque é algo novo, mas porque é o único

projeto que verdadeiramente conduz o homem a conhecer a verdade e, de posse

desta, tornar-se senhor e possuidor da natureza. Assim, garante Descartes,

aquele que tiver a audácia e a persistência de seguí-lo, percorrer, como ele o

fez, o caminho que apresenta em seu projeto filosófico, será contemplado ao

326 Cf. DESCARTES, R. Correspondência, AT., III, p. 285. 327 DESCARTES, Meditações – préface de l’auteur au lecteur, Alq., II, p.393; AT, VII, p. 9. 328 Idem, Carta-prefácio dos princípios da filosofia, p. 19. 329 “Ora, que há em nós alguma idéia de um ente soberanamente poderoso e perfeito, e também que a realidade objetiva desta idéia não se encontra em nós, nem formal, nem eminentemente, isto tornar-se-á manifesto aos que pensarem seriamente no assunto, e quiserem dar-se ao trabalho de meditá-lo comigo...” DESCARTES, R. Meditações – respostas do autor às Segundas Objeções, p. 214. 330 Idem, ibidem.

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final da caminhada, não só com a mais bela filosofia e a mais digna ao homem,

como a mais útil à vida que o homem jamais pensou conhecer e conquistar.

Essa é a filosofia que Descartes procura e deseja que todo homem também

possa procurar. “La philosophie que je recherche, ainsi que tous ceux qui

ont’conçu pour elle une noble passion, est la connaissance des vérités qu’il

nous est permis d’acquérir par les lumières naturelles, et qui peuvent être utiles

au genre humain: il n’est pas d’étude plus belle, plus digne de l’homme; il n’en

est point qui puisse mieux servir notre bien-être ici-bas”331. Eis o projeto

filosófico de Descartes: fundar uma filosofia que seja absolutamente verdadeira

e que seja, ao mesmo tempo, últil à vida de todos os homens332.

É nas Meditações que Descartes apresenta, de forma plena a odisséia de sua

metafísica. Portanto, é sobre estas que a reflexão estará voltada a partir deste

momento; seguindo cada passo dado por Descartes na construção de seu

projeto metafísico, buscando entender a ordem, os movimentos conceituais, a

dinâmica por ele desenvolvida na construção dessas seis Meditações, assim

denominadas: Das coisas que se podem colocar em dúvida; Da Natureza do

Espírito Humano, e de como Ele é mais Fácil de Conhecer do que o Corpo; De

Deus, que Ele Existe; Do Verdadeiro e do Falso; Da Essência das Coisas

Materiais, e, Novamente, de Deus, que Ele Existe; Da existência das coisas

materiais e da distinção real entre a alma e o corpo do homem.

331 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 30. 332 Sobre o mesmo assunto, Cf. cap. I, p. 82-83.

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A primeira Meditação é emblemática de todo o projeto filosófico de Descartes.

Ela trás, em si, a base de sustentação das cinco Meditações seguintes. É

estranho dizer que ela sustenta todas as outras cinco Meditações, já que, na

Primeira Meditação, Descartes nada afirma de positivo, contenta-se em

suspender o julgamento sobre todos os conhecimentos adquiridos, melhor,

contenta-se em desfazer-se de todos os conhecimentos incertos e duvidosos.

Para tanto, Descartes coloca todos os conhecimentos adquiridos na sua

formação cultural, bem como toda a ordem filosófica que o antecedeu, sob o

tribunal da razão, julgando-os, de forma radical, acerca de seu estatuto de

verdade. É preciso julgar todos os conhecimentos adquiridos, buscando saber se

algum deles, não correspondendo à verdade, comprometeria todos demais

conhecimentos. Assim como uma maçã podre pode contaminar todas as outras

maçãs contidas num cesto, um conhecimento falso, quando tomado por

verdadeiro, compromete e contamina toda a cadeia de razões dele derivado333.

Tomando consciência de que admitira muitas opiniões falsas e de que tirar

delas conseqüências só poderia levar ao que é duvidoso e incerto, Descartes

formula um propósito: “... de modo que me era necessário tentar seriamente,

uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera

crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse

estabelecer algo de firme e de constante nas ciência”334. Para atingir esse

333 “Si d'aventure il avait une corbeille pleine de pommes, et qu'il appréhendat que quelques-unes ne fussent pourries, et qu'il voulût les ôter, de peur qu'elles ne corrompissent le reste, comment s'y prendran-il pour le faire? Ne commencerait il pas tout d'abord à vider sa corbeille; et après cela, regardant toutes ces pommes les unes après les autres, ne choisirait il pas celles-là seules qu'il verrait n'être point gâtées; et, laissant là les autres, ne les remettrait il pas daus sou panier? Tout de même aussi, ceux qui n'ont jamais bien philosophé ont diverses opinions en leur esprit qu'ils ont commencé à y amasser dès leur bas; et, appréhendant avec raison que la plupart ne soient pas vraies, ils tâchent de les séparer d'avec les autres, de peur que leur mélange ne les rende toutes incertaines. Et, pour ne se point tromper, ils ne sauraient mieux faire que de les rejeter une fois toutes ensemble, ni plus ni moins que si elles étaient toutes fausses et incertaines; puis, les examinant par ordre les unes après les autres, reprendre celles-là seules qu’ils reconnaîtront être vraies et indubitables”. DESCARTES, R. Meditações, resposta às Setimas Objeções, Alq., II, p. 982-983; AT., VII, p. 481. 334 DESCARTES, R. Meditações, p. 117.

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objetivo, Descartes recorre à dúvida como critério de verificabilidade de todo

conhecimento. Ou seja, qualquer conhecimento que deseja se afirmar como

verdadeiro terá que enfrentar a dúvida, não só enfrentá-la, mas vencê-la. Faz-se

necessário lembrar, no entanto, que essa dúvida se distingue, de forma absoluta,

da dúvida espontânea do homem comum que, diante de uma determinada

decisão, se sente inseguro, incerto em concluir sua deliberação; a dúvida de que

fala Descartes, não é uma dúvida natural e ocasional, ela é o resultado de uma

decisão do espírito, em sua mais plena liberdade para exercê-la. Portanto, na

metafísica cartesiana, a dúvida abandona a espontaneidade do espírito para

submeter-se ao rigor do método, a dúvida transforma-se em método. Como

conseqüência, pode-se dizer que o exercício da dúvida é a primeira

demonstração da maturidade do espírito que busca e deseja conhecer a

verdade335: “para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na

vida, pôr todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder”336. A dúvida é,

assim, uma preparação do espírito para o conhecimento da verdade337. A

dúvida, enquanto método (este é verdadeiramente o sentido da dúvida

cartesiana) é provisória, ela é o mais puro recurso metodológico. Deve-se ter

sempre em mente, se se deseja entender o desenvolvimento da razão cartesiana,

que Descartes não é um cético, ele, por sinal, tinha horror aos céticos, que 335 “Descartes considera como não-existente tudo quanto o precedera e inicia a marcha, partindo do marco zero. Mais tarde Kant, Husserl recomeçarão novamente, de maneira radical. Quem, em sua existência, não presentiu, uma vez sequer, que tudo estava por fazer, nem sentiu, ao menos em desejo, a audácia de apagar tudo para tudo recomeçar, esse tal não recebeu o batismo metafísico”. GUSDORF, G. Tratado de metafísica, p. 23, (grifo nosso). 336 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 1, p. 27. “Porque fomos crianças antes de sermos homens, e porque julgamos ora bem ora mal as coisas que se nos apresentam aos sentidos quando ainda não tínhamos completo uso da razão, há vários juízos precipitados que nos impedem agora de alcançar o conhecimento da verdade; [e de tal maneira nos tornam confiantes que] só conseguimos libertar-nos deles se tomarmos a iniciativa de duvidar, pelo menos uma vez na vida, de todas as coisas em que encontramos a mínima suspeita de incerteza”. Idem, Ibidem. 337 Respondendo a uma crítica feita por Gassendi, segundo a qual a dúvida não basta para o conhecimento da verdade, Descartes diz em que sentido ele faz uso da dúvida: “...embora seja verdadeiro que a dúvida apenas não basta para estabelecer qualquer verdade, ela não deixa de ser útil para preparar o espírito a estabelecê-la após, e é somente nisto que eu a empreguei”. DESCARTES, R. Meditações, resposta do autor às Quintas Objeções formuladas pelo Senhor Gassendi, p. 286.

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duvidavam por duvidar338: “não que imitasse, para tanto, os céticos, que

duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário,

todo o meu intuito tendia tão somente a me certificar, e remover a terra

movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila”339. Esses céticos,

segundo Descartes, são incapazes de filosofar verdadeiramente, já que são

incapazes de se livrarem da dúvida que introduziram na filosofia: “...ils ont eux

mêmes retiré si peu de fruit de leur méthode de philosopher, qu’ils ont erré

toute leur vie et n’ont pu se délivrer des doutes qu’ils ont introduits dans la

philosophie...”340. Pode-se dizer que a dúvida metodológica é um

enfrentamento entre Descartes e os céticos, é a arma que o meditador usa para

combater esses pensadores que, estando e defendendo suas idéias por todos os

cantos, tornam-se, segundo Descartes, um impedimento ao conhecimento da

verdade e, como conseqüência, ao progresso do conhecimento humano. Entre o

início do século XVI e o fim do século XVII, o ceticismo torna-se, como que,

uma filosofia ou uma forma de pensamento bastante em moda341; todos, ou

pelos menos os melhores espíritos, tornam-se herdeiros de Pirro342. Todos

aqueles que tinham alguma habilidade, que pensavam ter um pouco mais de

338 “Antes de Descartes existiram céticos, mas que eram apenas céticos. Descartes ensinou à sua época a arte de fazer com que o ceticismo desse à luz a certeza filosófica”. O abade François Para du Phanjas, Apud, POPKIN, R. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza, p. 271. O movimento cético no século XVII era representado principalmente pelos “Libertinos”. Idem, cap. V. 339 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 64. 340 Idem, La recherche de la vérité, Alq., II, p. 1129-1130; AT., X, p. 519-520. 341 “Desde 1530, depois de ter passado em revista todos os domínios do saber humano, Agripa proclama a incerteza e a vanidade das ciências. Cinqüenta anos mais tarde, depois de ter submetido a exame crítico a humana faculdade de conhecer, Sanches reitera, e mesmo agrava, o julgamento: Não se sabe nada. Nada se pode conhecer. Nem o mundo, nem a nós próprios. Enfim, Montaigne acaba e faz o balanço: o homem nada sabe, porque o homem não é nada”. KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 20. 342 “O movimento pirrônico atribui seu próprio começo à figura lendária de Pirro de Elis, que viveu de c. 360 a 275 a.C. e a seu discípulo Tímon, que viveu de c. 315 a 225 a.C. As histórias acerca de Pirro que chegaram até nós revelam que ele não era um teórico, mas ao contrário, o exemplo vivo e completo de alguém que punha tudo em dúvida, um homem que não aceitava se comprometer com nenhum juízo que fosse além de como as coisas pareciam ser. Seus interesses parecem ter sido predominantemente éticos e morais, e nesta área ele buscava evitar a infelicidade que poderia ser conseqüência das teorias sobre valores, evitando basear seus juízos nelas. Se estas teorias sobre valores fossem de algum modo sujeitas a dúvidas, aceitá-las e usá-las poderia apenas levar-nos à angústia mental”. POPKIN, R. Op. Cit., p. 15.

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espírito e que se encontravam insatisfeitos com a filosofia ordinária, ou seja,

aquela derivada de Aristóteles e dos escolásticos, acabavam por adotar o

ceticismo como postura intelectual: “Et ne me dites point que cette secte est à

présent abolie: elle est en vigueur autant qu’elle fut jamais; et la plupart de ceux

qui pensent avoir un peu plus d’esprit que les autres, ne trouvant rien dans la

philosophie ordinaire qui les satisfasse, et n’en voyant point de meilleure, se

jettent aussitôt dans celle des sceptiques”343. Descartes sabe muito bem, o

perigo que o pensamento cético representa para a própria possibilidade do

progresso do conhecimento humano. Aqueles que mergulham nas águas

profundas do ceticismo jamais alcançam um solo firme para tomá-lo como

base de sustentação que possibilite construir um conhecimento verdadeiro

sobre qualquer coisa. No fundo, o ceticismo acaba sendo um fundo sem fundo,

um fundo que jamais pode ser alcançado e que implica na própria

impossibilidade de se contruir, sequer, um único saber verdadeiro. Segundo

Descartes: “ces doutes si généraux nous mèneraient tout droit dans l’ignorance

de Socrate, ou dans l’incertitude des Pyrrhoniens; et c’est une cau profonde, où

il ne me semble pas qu’on puisse trouver pied”344. A vitória do ceticismo

implicaria, necessariamente, na derrota da razão. Descartes tem plena

consciência desse perigo e não economiza esforços para evitá-lo. Depois de

Descartes, o ceticismo radical perdeu suas forças, já não pôde ser levado a

sério. Com Descartes, o ceticismo torna-se método. Torna-se critério de

verificação da validade do conhecimento humano. Se para os céticos, a dúvida

343 DESCARTES, R. Méditations - Septièmes Objections et Réponses, Alq., II, p. 1059-1060; AT., VII, p. 548-549. 344 DESCARTES, R. La Recherche de la Vérité, Alq., II, p. 1120; AT., X, p. 512. Essa mesma imagem, usada para identificar o estado de dúvida de Sócrates e dos Pirrônicos, Descartes usa, no início da sua Segunda Meditação, para identificar o estado de dúvida e incerteza em que ele se encontrava ao final da sua Perimeira Meditação. “A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las.... como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona”. DESCARTES, R. Meditações, p. 124.

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é um estado natural do próprio pensamento, para Descartes, a dúvida é só um

método, uma arma da qual todo homem, “dotado de bom senso”, deve usar para

guerrear contra os preconceitos e os prejuízos do espírito345. É o meio através

do qual o homem, libertando-se das representações derivadas do mundo físico

de que era prisioneiro, volta-se para contemplar o sol da razão natural346.

Contra a dúvida cética, a dúvida metódica. Se alguém quer duvidar, então, que

a dúvida seja exercida de forma radical, que não se duvide por duvidar, que se

duvide com uma verdadeira intenção, qual seja: encontrar uma base segura

sobre a qual possa se erguer toda a ordem do saber, sem que a dúvida possa

alcançá-la347. A dúvida cartesiana anseia por seu próprio fim. Sua caminhada é

longa; caminhada que é, ao mesmo tempo, sua afirmação e preparação para sua

própria morte, preparação de sua própria consumação. Quanto mais a dúvida se

apresenta fortalecida, mais próxima se encontra sua derrocada; seu

fortalecimento é, simultaneamente, a aproximação de sua ruína. A vitória da

razão, a conquista da primeira verdade, implica, necessariamente, na derrota da

dúvida. Por isso, esta tem que ser exercida plenamente, de forma radical e

absoluta, sem que absolutamente nada, seja o homem, Deus ou o mundo, possa

estar fora de seu alcance. Só assim, aquilo que a ela sobreviver poderá afirmar-

se como verdade indubitável, verdade absolutamente verdadeira, sobre a qual a 345 “Non seulement la fin du doute cartésien diffère de la fin du doute des sceptiques, mais encore sa méthode n’est pas la même que la leur. La critique des sceptiques ne tend, selon la parole de Montaigne, qu’à ‘vérifier l’ignorance’; elle part donc du probable et douteux pour nous conduire à d’autres probables qui lui font équilibre. La critique cartésienne tend, au contraire, à vérifier la vérité; elle ne part donc du douteux et probable que pour l’éliminer, et elle l’élimine en lui opposant du certain, qu’il s’agisse de la certitude de sa vérité ou de la certitude de sa fausseté, car cette dernière certitude est encore une vérité. On peut donc dire que le scepticisme pur viserait à entretenir le doute comme l’état normal de la pensée, au lieu que Descartes ne le considère que comme une maladie dont il entreprend de nous guérir”. GILSON, É. Texte e commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la méthode, p. 269. 346 “Le doute concernant les choses matérielles est donc un doute méthodique, une ascèse, comparable à l’effort du prisonnier de Platon pour se tourner vers la lumière”. BRÉHIER, E. Op. Cit., p. 68-69. 347 “O céptico será vencido pelas suas próprias armas. Duvida... Pois bem! Vamos ensinar-lhe a duvidar. A nossa dúvida não será um estado – estado de uma incerteza negligente -, será uma ação livre, voluntária, e que levaremos às últimas conseqüências. Dúvida-estado, dúvida-acção: a ruptura é profunda. E, no fundo, a vitória – em princípio – está já alcançada. Porque a dúvida, o céptico e Montaigne sofrem-na. Descartes exerce-a. Ao exercê-la livremente, dominou-a. E assim se libertou dela”. KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 36.

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dúvida não tem mais nenhuma gerência. Isso é possível? A priori, não é

possível responder essa pergunta; não é possível saber se alguma verdade

sobreviverá à dúvida. Essa é uma resposta que só se obtém no próprio exercício

da dúvida, no próprio exercício do método. A superação da dúvida, e como

conseqüência, a conquista da verdade, não é tarefa fácil, é uma caminhada

arriscada, profundamente perigosa, pois corre-se o risco de nela se perder ou se

abandonar; diante dos perigos que oferece, prefere-se, muitas vezes, voltar

atrás, retroceder, instalar-se na “segurança” das antigas opiniões, crenças ou

ilusões348. Mas, aí, jamais se faria ciência, aí, jamais haveria progresso do

conhecimento humano. Por isso, se se quiser, verdadeiramente, conhecer a

verdade, tem-se que correr o risco de exercitar o método da dúvida até o limite

que a própria dúvida impõe e não apenas até o limite do desejo ou estado de

espírito do sujeito que duvida. A caminhada da dúvida não pode ser

interrompida, ela tem que ir até o fim e esgotar suas forças e possibilidades.

Entretanto, é preciso insistir, em nenhum momento, essa dúvida é um estado

natural do espírito, ao contrário, ela é uma dúvida exercida pelo sujeito que

duvida, uma dúvida sobre a qual este sujeito tem pleno domínio e, portanto,

exerce-a e não a sofre. Isso não altera a radicalidade da dúvida, ao contrário, só

a reforça. Pois se ela é uma dúvida metódica, não pode ser exercida por meio

de um acordo com a razão, ou no limite dos interesses daquele que duvida; pelo

contrário, sendo metódica, tem que exercer-se livremente, não deixar escapar

nada, exaurir todos os seus limites349. É da morte da dúvida que nasce a

348 “Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado...”. DESCARTES, R. Meditações, p. 123. 349 A dúvida aqui é plena e radical, é uma dúvida cética, no seu sentido mais radical do termo. Essa dúvida, só se distingue da dúvida cética porque ela é metodológica, e como método, ela é provisória. Alguns adversários de Descartes não compreendem a radicalidade da sua dúvida, não a levam a sério como o próprio Descartes a levou. Gassendi, um dos críticos mais ferrenhos de Descartes, critica da dúvida cartesiana: “Quoi que vous en disiez, il n'y aura personne qui se persuade que vous soyez pleinement persuadé qu’il n’y a rien de vrai de tout

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primeira verdade no espírito do homem. É exatamente isso que Descartes busca

ao exercitar a dúvida de forma tão radical e profunda: encontrar uma verdade

tão certa, tão indubitável que “todas as mais extravagantes suposições dos

céticos não seriam capazes de a abalar”350.

No exercício desta dúvida metodológica, Descartes não julgará cada

conhecimento em particular, tomará como referência as bases de sustentação,

os alicerces sobre os quais esses conhecimentos foram erguidos. Se o alicerce

não tiver solidez e firmeza suficiente para sustentar o edifício que se ergue

sobre ele, destruí-lo, implica em destruir todo o edifício que nele se apóia: “a

ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício”351.

O menor motivo de dúvida sobre as fontes do saber servirá como critério para

rejeitar como falso todos os conhecimentos derivados dessa fonte.

ce que vous avez jamais connu, et que les sens, ou le sommeil, ou Dieu, ou un mauvais génie, vous ont continuellement imposé. N'eût-ce pas été une cbose plus digne de la candeur d'un philosophe et du zèle de la vérité de dire les choses simplement, de bonne foi, et comme elles sont, que non pas, comme on vous pourrait objecter, recourir à cette machine, forger ces illusions, rechercher ces détours et ces nouveautés? Néanmoins, puisque vous l'avez ainsi trouvé bon, je ne contesterai pas davantage”. DESCARTES, R. Meditações – Cinquèmes Objections, Gassendi au très honorable René Descartes, Alq., II, p. 708; AT., VII, p. 258. O próprio Descartes não leva muito a sério as críticas Gassendi. Segundo Descartes, falta à crítica deste uma postura filosófica, não só no entendimento do verdadeiro papel da dúvida, bem como na forma como ele constrói sua crítica à dúvida metódica. Descartes chega a dizer que a crítica de Gassendi é derivada da falta de um conhecimento filosófico. “Car, où vous dites qu’il n’était ‘pas besoin de feindre un Dieu trompeur, ni que je dormais’, un philosophe aurait cru être obligé d’ajouter la raison pourquoi ces choses ne peuvent être révoquées en doute, ou s’il n’en eût point eu, comme de vrai il n’y en a point, il se serait abstenu de dire cela”. […] “Un philosophe n’aurait pas dit aussi qu’en...”. “Et un philosophe ne serait pas plus étonné de cette supposition…”. “[...] et celui qui appelle cela ‘recourir à une machine, forger des illusions, rechercher des détours et des nouveautés’, et qui dit que cela est ‘indigne de la candeur d’un philosophe et du zèle de la vérité’, montre bien qu’il ne se veut pas lui-même servir de cette candeur philosophique, ni mettre en usage les raisons, mais seulement donner aux choses le fard et les couleurs de la rhétorique”. Idem, Réponses de l’auteur aux Cinquèmes Objections; Alq., II, p. 789-790; AT., VII, p. 348-349. 350 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 67. 351 Idem, Meditações, p. 118.

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A dúvida comporta, enquanto método, dois níveis: a dúvida natural e a dúvida

metafísica. No primeiro momento, Descartes submete ao julgamento da dúvida

todos os conhecimentos derivados dos sentidos, no segundo momento, a dúvida

ultrapassa os sentidos e alcança todas as representações do intelecto. A dúvida

natural divide-se, por sua vez, em dois graus, no primeiro visa as

representações sensíveis em vigílha, no segundo, visa as representações

sensíveis presentes nos sonhos. Ao submeter as representações dos sentidos ao

crivo da dúvida metodológica, Descartes está submetendo a julgamento todos

os conhecimentos derivados da física aristotélica e assumidos, como

verdadeiros, pelos escolásticos. O que está em jogo é saber se,

verdadeiramente, a física de Aristóteles tem solidez suficiente para, num

enfrentamento com a dúvida metódica, sustentar seu estatuto de ciência

verdadeira. Portanto, não é nada pouco o que Descartes faz nesse primeiro

momento de sua Meditação. Ele está a julgar o princípio que ordenou a

cosmovisão do mundo helênico, principalmente a partir de Aristóteles, e do

mundo medieval. A dúvida cética, por seu lado, já tinha desqualificado a

validade desses conhecimentos, mas, como já foi visto, os céticos duvidam por

duvidar, não buscando nenhum conhecimento verdadeiro, a ser posto no lugar

do destruído352. Portanto, Descartes, neste primeiro momento, tem como alvo

de sua dúvida metódica os céticos e Aristóteles. É preciso denunciar o perigo

de uma filosofia cética, que nada constrói de verdadeiro e, ao mesmo tempo, a

fragilidade da ciência aristotélica que, não passando pelo crivo da dúvida, perde

sua função explicativa e não mais garante qualquer ordem de verdade neste

campo da ciência ou da filosofia. Assim, neste primeiro grau da dúvida escreve

Descartes: “Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e 352 Diga-se de passagem, que a física aristotélica tinha sido objeto de críticas desde a Antiguidade e desde o momento em que se tornou conhecida no Ocidente. Estas críticas, no entanto, visavam pontos particulares e não atingiam o sistema como um todo.

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seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos353: ora, experimentei algumas

vezes que esses sentidos eram enganosos, e é prudência nunca se fiar

inteiramente em quem já nos enganou uma vez”354. Descarta-se, assim,

qualquer confiança nos sentidos como referência para a obtenção de qualquer

conhecimento verdadeiro. Pelo menos, no que diz respeito a estes, a dúvida

vence. Ela mostra que os sentidos se enganam, que neles não se deve confiar se

se quiser construir um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa.

Entretanto, se as coisas “pouco sensíveis e muito distantes355” que chegam ao

espírito não são confiáveis, como duvidar das representações sensíveis mais

imediatas, tais como, por exemplo, “que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo,

vestindo um chambre... como negar que estas mãos e este corpo sejam

meus?”356. Só os loucos podem negar essas representações tão fortes e

imediatas que, quase como que se impõem ao espírito357. Um homem de

ciência não pode se comportar como um louco358. Para alcançar essas

representações mais imediatas, quase corporais, é preciso passar para o segundo

grau da dúvida: o argumento dos sonhos. Com o segundo grau da dúvida,

353 Não custa lembrar aqui que toda a formação acadêmica de Descartes tem origem na Escola dos Jesuítas, onde Aristóteles, seja em seu texto, seja através das releituras escolásticas, era a referência, no plano filosófico, do conhecimento verdadeiro. 354 DESCARTES, R. Meditações, p. 118. 355 Idem, Ibidem. 356 Idem, Ibidem. 357 Não confiar nessas representações tão imediatas, ou delas duvidar, é quase se comparar a um louco ou insensato. “A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas que? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos”. DESCARTES, R. Meditações, p. 118-119. 358 “Entre todas as formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais freqüentados pelo século XVI. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco”. Continua Foucault, “Descartes adquiriu agora essa certeza, e agarra-se firmemente a ela: a loucura não pode mais dizer-lhe respeito. Seria extravagante acreditar que se é extravagante; como experiência do pensamento, a loucura implica a si próprio e, portanto, exclui-se do projeto. Com isso, o perigo da loucura desapareceu do próprio exercício da Razão. Esta se vê entrincheirada na plena posse de si mesma, onde só pode encontrar como armadilha o erro, e como perigos, as ilusões. A dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paissagens do sonho, sempre guiado pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser”. História da loucura, p. 47.

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Descartes busca alcançar todas, absolutamente todas, as representações

sensíveis e os seus conteúdos respectivos. É bom notar que a dúvida vai

acentuando-se, tornando-se mais ampla, mais intensa e mais complexa,

assumindo e negando, cada vez mais, enquanto conteúdos de verdade, diversos

níveis de conhecimento. Em primeiro lugar, a dúvida alcançou as

representações do mundo, agora, num segundo momento, ela tenta alcançar as

representações mais imediatas derivadas dos sentidos, ou pelo menos os seus

conteúdos representativos. Descartes está, com isso, abandonado, aos pouco, o

mundo físico, tirando-lhe sua força de determinação e representação sobre o

espírito. Poder-se-ia dizer que Descartes está retirando todos os créditos que

sustentam a física de Aristóteles. A garantia de que não se pode confiar nessas

certezas tão imediatas é que durante o sono, tais representações sensíveis

apresentam-se ao espírito com a mesma força representativa que se apresentam

diante do espírito quando este se encontra em estado de vigília. “Quantas vezes

ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava nesse lugar, que estava vestido,

que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro do meu

leito?”359. Não se tem nenhuma base segura para afirmar que essas

representações, que se apresentam nos sonhos, são mais ou menos verdadeiras

do que aquelas que se apresentam ao espírito no estado de vigília. O argumento

do sonho, com os seus conteúdos representativos, acaba por exaurir qualquer

resquício de força que ainda poderia existir nas representações sensíveis como

base segura para garantir qualquer conhecimento verdadeiro. Já que não é

possível, verdadeiramente, distinguir a vigília do sono, nada garante que

estando o espírito num estado, sinta-se como se estivesse no outro e vice-versa.

Ao analisar mais de perto, Descartes percebe que, mesmo no estado do sono,

algumas representações sensíveis sobrevivem ao ataque da dúvida, ou seja, a 359 DESCARTES, R. Meditações, p. 119. Era costume geral dormir nu no século XVII.

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dúvida parece não ter fôlego para alcançá-las. Sendo a matéria, para Descartes,

pura extensão, é pura representação matemática. São exatamente essas

representações, derivadas da extensão, que sobrevivem ao ataque da dúvida no

argumento do sonho. O argumento do sonho não tem alcance suficiente para

atingir as verdades matemáticas: “... a Aritmética, a Geometria e outras ciências

dessa natureza..., contém alguma coisa de certo e indubitável. Pois, quer esteja

acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número

cinco, e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível

que verdades tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou

incerteza”360. Portanto, as verdades matemáticas estão fora do alcance da

dúvida natural, ou seja, daquelas representações derivadas do mundo sensível.

O primeiro nível da dúvida se esgota plenamente nas representações sensíveis,

seu alcance não atinge as representações intelectuais. Com isso, Descartes

acaba de destituir o mundo material, base de sustentação de todas as

representações sensíveis, de ser a instância de onde emanaria qualquer ordem

de verdade. Toda “verdade” dele derivada sucumbe à dúvida, mostra-se

dubitável. Assim, Descartes deixa fora da dúvida natural, apenas aquelas

representações que estão no espírito, mas que não implicam nenhuma

necessidade de existência real, quais sejam: as representações matemáticas.

Como se verá mais tarde (na Quinta Meditação), as verdades das matemáticas

não implicam uma existência de fato, mas só uma existência possível. Agindo

assim, Descartes trás para o domínio do espírito o último conteúdo que terá que

enfrentar a dúvida. Destituído o mundo físico da ordem de suas verdades, é

chegada a hora de submeter ao método da dúvida as representações intelectuais,

para ver, se, sobrevivem ou sucumbem à dúvida. O perigo torna-se cada vez

mais eminente. Se a dúvida alcançar até as representações intelectuais, a 360 Idem, p. 121.

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própria possibilidade do conhecimento humano torna-se impossível. É preciso

dar mais esse passo, correr mais esse risco, tornar a dúvida exagerada,

hiperbólica, caso contrário, ela não alcança seu limite e, nesse caso, teria

havido um impedimento ao próprio exercício pleno da dúvida, excluindo dela

as representações que se encontram para além do mundo sensível, as

representações imateriais e, como conseqüência, estaria impedido, num

primeiro momento, o espírito de obter um conhecimento verdadeiro sobre sua

própria essência; num segundo momento, estaria impedido de fazer uma

passagem segura entre sua própria existência e a existência de Deus, passagem

fundamental e necessária para a plena realização da metafísica cartesiana361.

Entretanto, é importante acentuar que, apesar do exagero da dúvida, desse salto

das coisas materiais para as coisas imateriais, esta não ultrapassa a ordem do

pensamento, não trasborda nem para a moral, nem para a religião; mantém-se

no estrito limite do método, melhor, no estrito limite da ordem da razão

natural362. Para atingir esse nível da dúvida, é preciso saltar da dúvida das

representações sensíveis (essa já se esgotou, chegou ao seu limite) e passar para

o segundo nível da dúvida: a dúvida metafísica. Só esta pode proceder ao

enfrentamento com as representações puramente intelectuais e, como

conseqüência, questionar as verdades matemáticas. É à idéia da existência de

um Deus, todo poderoso, que pode tudo, com poder, inclusive, para levar o

sujeito a se enganar sobre verdades, em princípio, mais evidentes e

indubitáveis, como as verdades matemáticas, que Descartes recorre para levar a

dúvida a alcançar as representações intelectuais, para transformar a dúvida

361 “A dúvida é o único meio de conhecer corretamente as coisas imateriais ou metafísicas. Segue-se daí que aquele que ainda não se exercitou suficientemente na dúvida é de todo incapaz de compreender qualquer coisa de metafísica – e em conseqüência, que também não poderia em absoluto compreender nada da verdadeira natureza do sujeito pensante e do próprio Deus”. LACROIX, J. Marxismo, existencialismo e personalismo, p. 102. 362 Cf. BEYSSADE, M. Descartes, p. 33.

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natural em dúvida metafísica. Entretanto, sobre Deus, Descartes ainda não tem

nenhuma garantia indubitável de sua existência. A própria existência de Deus

ainda não foi colocada à prova. Sobre a existência de Deus, ele só tem uma

“opinião” e não uma certeza. “... há muito que tenho no meu espírito certa

opinião de que há um Deus que tudo pode...”363. A existência de Deus é só uma

hipótese, ainda não é uma certeza, ainda não é uma verdade da razão. Na

metafísica cartesiana, Deus é um problema de ordem racional. Caso ele exista,

é a razão que terá que provar, dar conta da sua existência. Neste momento, na

Primeira Meditação, Descartes ainda não submeteu a idéia de Deus a esta

prova. Por isso, pelo menos por enquanto, a existência de Deus é só uma

possibilidade, uma “crença” puramente subjetiva a que Descartes recorre para

poder levar seu método à máxima potência. A “opinião” não afirma

absolutamente nada com certeza inabalável, não garante nenhum conhecimento

verdadeiro. Aqui, a “opinião” sobre a existência de Deus, equivale a dizer: se

Deus existir, caso Deus exista, na possibilidade de Deus existir. Se a “opinião”

ainda não tem força suficiente para afirmar ou garantir uma verdade

indubitável, inclusive sobre a existência de Deus, serve muito bem, como

recurso metodológico para colocar à prova as verdades matemáticas. Isso

porque, caso Deus exista, ele só pode ser pensado em sua plenitude de ser, ou

seja, dotado de todas as qualidades e poderes que a natureza de Deus impõe. Se

a esse Deus todos os poderes forem creditados, não é logicamente possível

excluir dele nenhum desses, inclusive o de levar o espírito a se enganar sempre,

mesmo nas coisas mais simples, como em uma simples operação matemática:

“...pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em

que faço a adição de dois mais três, ou em que enumere os lados de um

363 DESCARTES, R. Meditações, p. 121.

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quadrado...”364. Portanto, a possibilidade da existência de um Deus que possa,

mesmo na sua infinita bondade, conduzir o espírito ao engano, retira da ordem

da razão a garantia de ser a fonte originária de qualquer saber certo e

indubitável. Instala no espírito do homem, de forma definitiva, o reino da

dúvida, da opinião e da incerteza. Levantada a hipótese de um Deus enganador,

encerra-se a possibilidade de a verdade ser uma conquista do sujeito, credita-se

a Deus a posse e o domínio pleno de todo o território da verdade. O próprio

Descartes reconhece que, estando o espírito no reino da opinião, da incerteza,

seria fácil, e até prático negar a existência de Deus e essa tese teria a mesma

força lógica que a tese contrária. Mas, aí, o espírito permaneceria no pântano

das incertezas e jamais a ciência seria possível. Seria a vitória de um ceticismo

exacerbado. A intenção de Descartes é elevar a dúvida à máxima potência,

torná-la universal, exagerada, hiperbólica. Esse objetivo é alcançado com a

possibilidade da existência de um Deus que queira e possa levar o espírito a se

enganar sempre que assim o desejar. Frente a tal hipótese, Descartes “... é

obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha

crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar

atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões

muito fortes e maduramente consideradas”365. Diante de tal constatação, não

resta alternativa a não ser suspender todas as garantias do que era tido como

verdade, não mais dar crédito a estas antigas opiniões. A dúvida é plena, a

incerteza conquistou todo o território da razão, o ceticismo instalou o seu

reinado no espírito do homem. Entretanto, a caminhada continua, e nesta

caminhada, um problema de ordem lógica se apresenta. Se para os teólogos, o

poder de Deus é absoluto e, portanto, ele pode tudo, inclusive levar o homem a

364 DESCARTES, R. Meditações, p. 121. 365 Idem, p. 122.

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se enganar, para Descartes, Deus não pode, por um impedimento estritamente

lógico, ser dotado de tal poder366. Ora, há pouco, o próprio Descartes não

levantou a hipótese de um Deus enganador? Sim. Mas deve-se ter em conta que

essa possibilidade é só um recurso metodológico ao qual Descartes recorre para

levar a dúvida ao seu estado máximo, ao seu estado hiperbólico367. De fato,

Descartes não reconhece em Deus essa possibilidade. Se Deus existe (coisa que

Descartes ainda não afirmou e da qual só tem uma “opinião”) não está na sua

natureza a possibilidade de ser enganador. Seria uma contradição lógica

creditar a Deus esse poder. O poder de enganar, que a princípio parece ser a

confirmação do poder absoluto de Deus, é, no entanto, a confirmação de uma

366 “... negais que Deus possa mentir ou enganar; conquanto se encontrem escolásticos que sustentam o contrário, como Gabriel, Ariminensis, e alguns outros, os quais pensam que Deus mente, falando absolutamente, isto é, que Ele significa algo aos homens contra sua intenção, e contra o que decretou e resolveu, como quando, sem acrescentar condição, diz aos ninivitas por seu profeta: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida, e ao dizer muitas outras coisas que não aconteceram, porque não pretendeu que tais palavras correspondessem à sua intenção ou a seu decreto. Porque se empederniu e cegou o Faraó, e se pôs nos profetas um espírito de mentira, como podeis afirmar que não podemos ser enganados por Ele? Não pode Deus comportar-se com os homens como um médico com seus doentes, e um pai com seus filhos, que tanto um como outro enganam tão amiúde, mas sempre com prudência e utilidade? Pois se Deus nos mostrasse a verdade inteira e nua, que olho ou antes que espírito possuiria bastante força para suportá-la?”. DESCARTES, R. Meditações – Segundas Objeções – recolhidas pelo R. P. Mersenne da boca de diversos teólogos e filósofos, p. 204-205. Esses teólogos não alcançam a reflexão que Descares lhes apresenta na Primeira Meditação. De fato, esses teólogos tentam refutar Descartes recorrendo à idéia de um Deus antropomórfico, mas não é esse Deus que Descartes contempla em sua reflexão. O Deus sobre o qual Descartes está refletindo é um Deus que os teólogos não conhecem e, portanto, se o conhecessem, jamais o aceitariam. A situação, além de ser embaraçosa é perigosa para Descartes. É preciso bastante cuidado ao defender a tese da impossibilidade de um Deus enganador. O próprio Descartes, ao responder às Segundas Objeções, feitas pelos teólogos, escreve: “...quando digo que Deus não pode mentir, nem ser enganador, penso convir com todos os teólogos que alguma vez existiram e hão de existir no futuro. E tudo quanto alegai em comentário não possui mais força, do que se, tendo negado que Deus se encoleriza, ou que esteja sujeito às outras paixões da alma, me objetardes as passagens da Escritura onde parece que lhe são atribuídas algumas paixões humanas. Pois todos conhecem suficientemente a distinção que há entre essas maneiras de falar de Deus, de que a Escritura se serve comumente, que se acomodam à capacidade do vulgo e contêm de fato alguma verdade, mas apenas na medida em que esta se relaciona aos homens, e as que expressam uma verdade mais simples e mais pura e que não muda de natureza, embora não se lhes relacione de modo algum; destas é que cada qual deve usar ao filosofar e foi delas que precisei utilizar-me principalmente nas minhas Meditações, visto que mesmo aí eu não suponho ainda que algum homem me fosse conhecido, e não me considerava tampouco composto de corpo e espírito, mas um espírito somente”. DESCARTES, R. Meditações – respostas do autor às Segundas Objeções recolhidas de muitos teólogos e filósofos pelo R. Pe Mersenne, p. 221. 367 “M. Gouhier a bien montré qu’il convenait de distinguer de l’hypothèse du Dieu trompeur, qui est argument métaphysique, celle du mauvais génie, hypothèse méthodologique, artifice par lequel Descartes pousse son doute à l’extrême, le rend total et radical”. ALQUIÉ, F. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes, p. 176.

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carência, de uma falta de ser; é uma ação negativa do ser, a qual não pode

pertencer à natureza daquele que é sumamente perfeito. Escreve Descartes: “em

toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição368”, logo em

seguida, continua o autor: “... querer enganar testemunha indubitavelmente

fraqueza”369. Aquele que tudo é, não pode ser portador de nenhuma falta de ser.

Deus é a verdade, a falsidade não pertence à sua natureza. É neste sentido que

Descartes, em carta a Clerselier, de 23 de abril de 1646, afirma que “la Verité

consiste en l’être, et la fausseté au non-être seulement”370. O poder de enganar

é a confirmação da presença de certo não ser no ser. A possibilidade de Deus

ser portador desse poder, só confirmaria um decréscimo do seu próprio ser. A

malignidade, ou seja, a intenção de enganar, não pode pertencer à natureza de

Deus. Este, se é que de fato realmente existe, só pode existir na sua mais pura e

absoluta positividade e, portanto, a negatividade, o engano ou a intenção de

enganar, não faz parte de sua natureza. Logo, o poder de enganar não faz parte

da natureza de Deus, não por sua bondade ou por uma livre escolha sua, mas

por um impedimento estritamente lógico. Se Deus não pode conduzir o espírito

ao engano, ao erro, então as verdades que foram conquistadas, as verdades

matemáticas, que são indubitáveis, estão salvas, a dúvida não pode alcançá-las.

Isso seria verdade, se Descartes não exagerasse mais ainda seu método; se não

levasse às últimas conseqüências a possibilidade da dúvida metódica. De fato,

Deus não pode ser um enganador, mas quem sabe não há um outro ser, um

gênio maligno, dotado de poderes suficientes para enganar o espírito sempre,

mesmo nas verdades que, a princípio, sejam tomadas pelo espírito como as

mais certas e verdadeiras. “Suporei [novamente, aqui, Descartes só formula

uma ‘suposição’, uma hipótese], pois, que há, não um verdadeiro Deus, que é a 368 DESCARTES, R. Meditações, p. 159. 369 Idem, ibidem. 370 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 923; AT., V, p. 356.

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soberana fonte da verdade, mas um certo gênio maligno, não menos ardiloso e

enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-

me”371. Esse momento é importantíssimo na metafísica cartesiana, pois é nele

que Descarte faz a passagem do plano da ciência para o plano da filosofia ou da

metafísica. Ou, como escreve Gilson: “substitue à une simple critique de nos

connaissances une critique de nos moyens de connaître” 372. Tanto a idéia de

um Deus enganador, quanto a idéia do gênio maligno, têm uma e mesma

função, possibilitar o pleno exercício da dúvida metodológica. São recursos

usados para expor à dúvida todas as potencialidades373. Quanto mais amplo e

371 DESCARTES, R. Meditações, p. 122-123. 372 GILSON, É. Texte et commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la Méthode, p. 290. 373 Entretanto, apesar de Descartes recorrer à tese de um Deus enganador e à tese de um gênio maligno, como recurso metodológico, para elevar a dúvida ao seu mais alto limite, essas duas teses são complementares, mas não são idênticas. A tese de um Deus enganador é de ordem metafísica, enquanto que a tese do gênio maligno é de ordem puramente metodológica. Escreve Gouhier: “L'hypothèse du Dieu trompeur et l'artifice du malin génie sont deux pensées complémentaires mais distinctes; car, pour qu'elles soient complémentaires, il ne faut pas que l'on puisse dire: ‘Un Dieu trompeur ou un malin génie’. La première naît d'un scrupule de l’intelligence; elle est de nature métaphysique et disparaît lorsque la métaphysique démontre sa fausseté. La seconde est un procédé méthodologique, oeuvre de la volonté et de l'imagination appliquées à l’invention d'une expérience; elle disparaît lorsque l'expérience cesse. Le Dieu trompeur représente une existence possible dont je ne sais encore rien; il est peut-être ‘le vrai Dieu confusément connu’. Le malin génie est une création aussi artificielle qu'artificieuse, n'ayant aucune prétention à l'existence et dont l'essence n'a point de secret pour moi, puisque j'en suis l’auteur. Ni les intentions ni le contenu des deux pensées ne permettent de regarder l'une comme une variante de l'autre. Leur véritable relation apparaît avec leur rôle dans le doute méthodique. Pour continuer à douter en face de l'évidence, Descartes a besoin d'envisager le cas d'un univers entièrement falsifié. S'il l'exprime à travers l'hypothèse d'un Dieu trompeur, son doute ne tardera guère à faiblir devant une pareille invraisemblance; le Dieu familier qui l'habite depuis l'enfance déchirera bien vite cette caricature offensante. L'artifice du moyen génie signifie que le plus grand danger pour la vérité n'est pas le scepticisme mais l'habitude; le mol oreiller, c'est le probable et non le doute. [...] Le doute ne sera total qu'à la condition de n'être point suspendu à une opinion douteuse, c'est-à-dire à une probabilité virtuelle. Un pur artífice, sans référence à l’être possible, complètement vide de toute prétention existentielle, reste le seul moyen d'envisager la falsification de l’univers sans la moindre supposition concernant sa cause première. GOUHIER, H. Essais, p. 162-165; Apud, RODIS-LEWIS, G. Descartes – textes et débats, p. 190-191. Também Alquié reconhece que, apesar de ambas as teses, do Deus enganador e do gênio maligno, terem, na dúvida metodológica, uma mesma função, elas são constituidas de naturezas distintas: “Le malin génie n’est pas une raison, mais un moyen de douter. Il ne constitue pas un argument, mais soutient un effort de la volonté; aussi, ayant sa place en les Méditations, qui sont exercices spirituels, disparaît-il dans l’exposé systématique des Principes, où se maintient la seule idée du Dieu trompeur, raison de douter et donc pièce nécessaire du système. Pourtant, les limites des deux hypothèses ne sont pas aisées à définir et, au paragraphe 6 des Principes (I), la supposition que Dieu pourrait prendre ‘plaisir à nous tromper’ semble bien retenir quelque chose du mauvais génie lui-même. Si l’on songe, en effet, que les deux hypothèses reprennent le thème cartésien de la déception intersubjective, et de la peur d’être trompé par l’autre, que toutes deux supposent un être qui n’existe pas (il n’y a ni Dieu trompeur ni malin génie), que l’une et l’autre sont transcendantes à la raison et atteignent les essences par une critique externe, et en les prenant du dehors, on comprendra que le problème des rapports du Dieu trompeur et du malin génie ne saurait être facilement résolu: on y retrouve, en effet, celui des rapports du doute intellectuel et du doute volontaire, et, plus profondément encore, la difficulté de définir ce qu’est, pour Descartes, la liberté.

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radical for o alcance da dúvida, mais firme será a verdade que a ela sobreviver.

Diante da possibilidade exagerada, puro recurso metodológico, da existência do

gênio maligno374 que, de fato, por sua própria natureza, tenha o poder de levar o

espírito a se enganar e, como conseqüência, retirar o crédito de verdade de

todos os conhecimentos – até daqueles mais simples, como uma operação do

tipo 3 + 2, derivados da matemática – não resta outra alternativa a Descartes a

não ser reconhecer a vitória do ceticismo: não é possível ao homem ter certeza

de nenhuma verdade. Enquanto a tese do gênio maligno não for superada, todos

os conhecimentos, todos os juízos, estão sob suspeição. Estão corroídos pela

dúvida e pela incerteza. A qualquer momento esse gênio maligno pode estar

atuando sobre o espírito, mesmo que sobre essa atuação o espírito não tenha

qualquer consciência375. Entretanto, segundo Descartes, se não está em seu

“poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu

alcance suspender meu juízo”376. Um pouco mais acima, viu-se que a

verdadeira intenção de Descartes, na Primeira Meditação, não era afirmar

nenhuma verdade, mas sim, eliminar todos os preconceitos presentes em seu

espírito. Portanto, consuma-se o que o meditador buscava na primeira etapa do

seu percurso metodológico: todos os conhecimentos adquiridos são incertos e

duvidosos, não constituem nenhum conhecimento verdadeiro, nenhuma ciência

que seja digna deste nome. Só resta a suspensão de todos os juízos. Nada é

certo; todos, absolutamente todos os conhecimentos, a partir da tese ou da

Ce qui, selon nous, distingue avant tout l’hypothèse du Dieu trompeur et celle du malin génie, c’est que, toutes deux transcendantes à la raison, elles sont, par contre, différemment situées par rapport à l’inquiétude: le Dieu trompeur est intérieur au doute intellectuel, le mauvais génie n’est lié qu’à l’assomption volontaire de l’incertitude.” ALQUIÉ, F. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes, p. 176 - 177. 374 “Sócrates tinha o seu Daimon. Descartes dá a si próprio um Diabo, para as necessidades do seu raciocínio”. VALERY, P. Op. Cit., p. 21. 375 “Qualquer crédito, qualquer teste de confiabilidade acerca dos nossos conhecimentos está sujeito ao questionamento, porque tanto o crédito, quanto a sua aplicação podem estar infectados pelo gênio maligno”. POPKIN, R. Op. Cit., p. 280. 376 DESCARTES, R. Meditações, p. 123.

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possibilidade da presença do gênio maligno, encontram-se sob suspeita. O

ceticismo é pleno e absoluto377. Não se poderia encontrar, neste momento,

ninguém mais pirrônico que Descartes378. Um estado de vazio absoluto, de

ausência plena de qualquer base sobre a qual possa se assentar o edifício do

conhecimento – um estado pirrônico379. A suspensão dos juízos, por um lado,

deixa certa melancolia da “vitória” do ceticismo, por outro - é essa a verdadeira

intenção de Descartes, desde o início da sua Primeira Meditação -, prepara o

espírito contra as armadilhas das seduções fáceis, preguiçosas e perigosas,

deixa o espírito alerta para recomeçar a nova caminhada, onde o caminhante

torna-se o dono dos seus próprios passos, assume a direção de seu espírito,

torna-se seu único guia e senhor: “Eis por que cuidarei zelosamente de não

reconhecer em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu

espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso

que seja, nunca poderá impor-me algo”380.

O fato de Descartes ter imergido todos os conhecimentos em dúvida tão

profunda, de ter enfrentado o ceticismo tão a sério, não tornou o seu espírito

imune à dúvida; pelo contrário, a qualquer momento esta pode reaparecer,

estando o risco sempre presente, à espreita, esperando qualquer descuido do 377 “Descartes se abandona a la duda tan francamente como un escéptico, y sólo difiere de él en que lleva el escepticismo hasta un extremo tal, como nadie hasta entonces había pensado hacerlo, y en esto grado final, la refutación del escepticismo resulta de su mismo agotamiento”. HAMELIN, O. El sistema de Descartes, p. 120. 378 “A possibilidade de estarmos sendo sempre enganados por algum ser maligno levanta dúvidas sobre as coisas mais evidentes e sobre qualquer critério de evidência que possamos ter”. POPKIN, R. Op. Cit., p. 281. 379 “Quase que imediatamente após a primeira publicação da filosofia de Descartes, surgiram críticos acusando-o de aderir ao pirronismo. Começando com Pierre Petit e o padre Bourdin na França, e com Gisbert e Martinus Schoockius em Utrecht, foi feita a acusação de que Descartes havia feito concessões em demasia desde o início, e tinha adotado um ceticismo do qual nada de certo poderia emergir. Com seu método da dúvida ele havia derrubado todas as evidências aceitáveis que possuímos, havia rejeitado o senso comum, a experiência e a autoridade, havia eliminado todas as possibilidades de se encontrar um fundamento seguro para o nosso conhecimento. Uma vez que um ceticismo deste tipo era perigoso não só para a filosofia, mas para a religião também, Descartes, cético e ateu, devia ser destruído”. Idem, p. 301-302. 380 DESCARTES, R. Meditações, p. 123.

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espírito para atacá-lo. A Primeira Meditação não traz nenhuma verdade; essa

não é sua função. A intenção de Descartes é, em primeiro lugar, retirar o

crédito a todos os conhecimentos adquiridos, ou seja, de toda a base filosófica

que sustenta o conhecimento que o antecedeu; segundo, tornado-se, também

ele, um cético, combatê-los, vencê-los, superá-los, mostrando que o caminho da

verdade passa, necessariamente, pela superação da crise cética que se instalou

no espírito do homem no apagar das luzes do século XVII. Agora, livre das

falsas verdades, livre do ceticismo ingênuo, o espírito encontra-se preparado

para reiniciar a caminhada em busca da verdade. Ainda não se sabe,

verdadeiramente, se a verdade é possível, mas, já se sabe que o espírito, ao arar

a terra, retirando-lhe todas as impurezas, exterminando todas as ervas daninhas,

preparou as condições de sua possibilidade.

Se, na Primeira Meditação, a verdade só aparece como uma possibilidade, na

Segunda Meditação, ela emerge das profundezas da dúvida, como verdade

conquistada, certa e indubitável. Mesmo que na Primeira Meditação, a dúvida,

aplicada com o rigor do método, tenha retirado qualquer garantia em relação às

coisas sensíveis e tenha abalado até as verdades matemáticas, mesmo assim, é

preciso continuar a caminhada, dando mais um passo à frente, levando a dúvida

a atacar o último reduto ainda não sitiado pela ação do gênio maligno. É

preciso levar a dúvida a questionar o próprio sujeito que duvida. Última

barreira que o homem, que leva a dúvida a sério, tem que enfrentar e transpor;

se possível. De novo, momento de grande perigo, um passo em falso poderá

fazer desmoronar a própria possibilidade do conhecimento humano. Entretanto,

apesar dos riscos, não é possível deixar de fazer esse enfrentamento. É preciso

saber, ter certeza ou não do próprio sujeito que duvida. Não se tem certeza de

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mais nada, tudo parece incerto e duvidoso. Não se tem certeza da existência de

Deus, da existência do mundo físico que se apresenta aos sentidos, das

verdades derivadas da matemática, não se tem certeza sequer da existência do

próprio corpo do sujeito que duvida381. Será, também, que o sujeito não tem

certeza de sua própria existência? Será que o sujeito que duvida, existe? “Mas

eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu,

nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também,

portanto, de que eu não existia?”382. De todas as perguntas feitas por Descartes,

talvez essa seja a mais perigosa. O perigo da resposta é tão evidente que a

maioria dos homens recusa-se a fazer tal pergunta, optando por instalar-se no

plano das crenças, da fé; encontrando em Deus a confortável “certeza” e

garantia de sua própria existência. Sobre essa escolha, não será feito nenhum

juízo de valor, se é certa ou errada, se é a melhor ou a pior escolha, cabendo

apenas constatar que, através dela, a verdadeira ciência não seria possível.

Portanto, se se quiser, verdadeiramete, construir uma ciência certa e

indubitável, apesar do risco que se torna cada vez mais eminente, a pergunta

tem que ser feita. É preciso correr todos os riscos, inclusive de se ver instalado

num estado de dúvida tão profundo que dele não seja mais possível se livrar.

Poder-se-ia dizer que Descartes só faz essa pergunta, tão perigosa e arriscada,

porque, a priori, já é senhor da resposta. Portanto, o jogo não é limpo.

Descartes sabe, antecipadamente, que, ao fim do jogo, a vitória é do jogador

que arriscou seus últimos recursos em uma última cartada. Contudo, o método

não pode antecipar a verdade. Se a verdade existe, ela tem que se provar; negar

381 “dúvida, suscitada a partir de alguns julgamentos, e depois generalizada no fim da meditação primeira, não visa convencer o leitor de que o que ele sente, toca e vê não existe realmente, no que ela cessaria de ser uma dúvida e se tornaria uma afirmação dogmática, mas que tudo aquilo de que ele estava certo até agora envolvia um julgamento de conformidade entre as idéias e as coisas que elas representam, que se revela ser apenas um ato de crença, e não uma experiência incontestável e imediata”. GUENANCIA, P. Op. Cit., p. 79. 382 DESCARTES, R. Meditações, p. 125.

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a dúvida e vencê-la. O jogo de Descartes é, pois, um jogo limpo, não é

puramente retórico; ele obedece às regas da matemática, não havendo blefe. O

que Descartes não pode é fazer uma concessão ao espírito, retirando-lhe a

possibilidade deste enfrentamento épico. Negar-lhe essa possibilidade é que

seria verdadeiramente blefar, não levar o jogo a sério, não esgotar todas as

possibilidades da dúvida, não levar a dúvida a questionar o próprio sujeito que

duvida. Descartes é fiel às regras do método; a elas, nenhuma exceção poderá

ser feita, sequer o homem concreto, o sujeito pensante, pode excluir-se de se

expor aos riscos desse enfrentamento com a dúvida. Por isso, a pergunta de

Descartes é válida e necessária para a consumação da própria dúvida. Assim,

detendo-se unicamente na ordem lógica do método, Descartes responde à

pergunta sobre a possibilidade da não existência do sujeito que duvida:

“Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas

pensei alguma coisa”383. Sobre essa verdade, sequer a ação de um gênio

maligno, ou de qualquer outro ser, poderá lançar qualquer dúvida: “Engane-me

quem puder, ainda assim jamais poderá fazer que eu nada seja enquanto eu

pensar que sou algo; ou que algum dia seja verdade que eu não tenha jamais

existido, sendo verdade agora que eu existo...”384. Em relação a essa primeira

verdade conquistada, o gênio maligno foi vencido, já não tem força suficiente

para colocar em risco essa primeira verdade indubitável. O espírito, em relação

a si mesmo, tornou-se imune às artimanhas urdidas por esse perverso gênio.

Entretanto, o espírito ainda não se livrou desse gênio maligno de forma

absoluta. O espírito tem pleno domínio sobre essa primeira verdade; sobre ela,

mesmo que esse gênio maligno quisesse enganá-lo, ele não obteria êxito, o

espírito encontra-se imune à sua malignidade. Se se tem certeza da

383 DESCARTES, R. Meditações, p. 125. 384 Idem, p. 138.

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inacessibilidade do gênio maligno a essa primeira verdade, sobre a qual o

espírito tem pleno domínio e conhecimento, não se tem a mesma certeza sobre

as possíveis verdades ainda não conhecidas pelo espírito. Em relação às coisas

sobre as quais o espírito não tem nenhum conhecimento, nada pode ser dito, ou

seja, o espírito não pode emitir nenhum juízo385. Todos os outros

conhecimentos que estão para além do espírito, ainda estão em risco. Sobre

eles, não se tem ainda nenhum domínio, porquanto, eles estão acessíveis, a

qualquer momento, à ação desse gênio embusteiro. Logo, sobre esse possível

ainda desconhecido ao espírito, o gênio maligno pode atuar, pode o enganar há

qualquer momento. A questão aqui é bastante complexa. Se o gênio maligno

pode continuar atuando em relação ao que o espírito ainda não conhece, ainda

não conquistou, nunca o espírito (que tem a sua natureza no limite do humano)

poderá superá-lo ou destruí-lo. Sempre haverá algo desconhecido ao espírito,

em relação ao qual esse gênio perverso pode atuar. Como conseqüência, o

irracionalismo torna-se uma possibilidade de fato386. A conquista da

racionalidade está condicionada à eliminação deste gênio perverso e ardiloso.

Descartes reconhece esse limite e o risco que corre a razão. O espírito não

transcende ao humano, ele não é divino, sua natureza é puramente humana,

nada de divino nele se encontra presente. O gênio maligno, dotado de uma

natureza que pode tudo, tem todos os poderes ao seu alcance. O gênio maligno

é um Deus transcendente, dotado de todos os poderes negativos em relação ao

sujeito que pretende chegar ao conhecimento: o mau, o engano, a malignidade,

o embuste, etc. Esse gênio maligno só poderá, verdadeiramente, ser combatido 385 “Mas também pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho não existirem, já que me são desconhecidas, não sejam efetivamente diferentes de mim, que eu conheço? Nada sei a respeito, não o discuto atualmente, não posso dar meu juízo senão a coisas que me são conhecidas: reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser”. Idem, p. 129. 386 “El genio maligno no es sino el símbolo de la violencia que podría imponerle al espíritu la naturaleza tal vez irracional del universo. Y para refutarla haberá que hacer desaparecer esa irracionalidad”. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 128.

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e vencido plenamente, por um Deus, também transcendente, dotado de uma

natureza onipotente, no sentido positivo, na qual estejam ausentes todas as

qualidades, no sentido negativo, que estão presentes na natureza do gênio

maligno, tais como: a bondade, a honestidade, a perfeição, etc. Para, de fato,

combater esse gênio perverso, a razão terá que conquistar uma verdade

referente a algo que tenha a mesma força que a dele, mas em sentido positivo,

uma verdade que, sendo positivamente onipotente, pode alcançá-lo e vencê-lo.

Só com a conquista da verdade sobre a existência de um Deus que, na sua

infinita bondade e por um impedimento lógico, não possa conduzir o espírito ao

engano, será possível destruir, definitivamente, a dúvida hiperbólica, eliminar,

da ordem do pensamento, a hipótese da existência do gênio maligno. Até que

essa segunda verdade seja racionalmente conquistada: Deus existe e ele não é

enganador, o gênio maligno estará à espreita, preparado para enganar o sujeito

sobre as coisas que ele ainda não conhece, sobre as coisas que estão para além

de si mesmo. A função da certeza quanto à existência do sujeito que pensa, pelo

menos nesse primeiro momento da conquista desta primeira verdade, não é

vencer completamente o gênio maligno, não estando ao seu alcance essa

possibilidade, pois este ainda conserva seus poderes no que se refere ao que não

é o sujeito, sobre o que nada se pode dizer ainda. Se o sujeito pensa, isto

garante a verdade sobre sua existência, mas ainda nada se afirmou ou negou

sobre a existência de Deus e a existência do mundo. Só com a possível

conquista da segunda verdade, Deus existe, a terceira verdade, o mundo existe,

poderá ser conquistada. A conquista da verdade sobre Deus antecede e

possibilita a conquista da verdade sobre o mundo. A conquista da metafísica

antecede e possibilita a conquista da física. Mas Descartes não precisa da

terceira verdade para destruir a tese do gênio maligno, basta-lhe a conquista da

segunda verdade: Deus existe, ele não é engandor. A conquista dessa segunda

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verdade já é suficiente para, por um lado, eliminar a tese do gênio maligno, que

sempre foi um puro recurso metodológico, e, por outro, conquistar, para a

ordem da razão, todas as verdades sobre o mundo. Melhor dizendo, para

efetivar, de fato, a verdadeira física e as ciências particulares. Esse assunto será

retomado mais tarde. Por enquanto, é necessário voltar à ordem das razões

cartesiana, voltar à primeira verdade indubitável: “eu sou, eu existo”, que

sobrevive à ação do gênio maligno sobre o espírito de quem duvida. Essa

primeira verdade, é preciso deixar claro desde já, não é uma conquista

garantida ou concedida por Deus. Ela é conquistada à revelia de Deus. Sobre

Deus, Descartes ainda não tem nenhuma garantia racional de sua existência.

Essa primeira conquista está, toda ela, na ordem da razão natural. É através do

puro exercício da razão, obedecendo rigorosamente à ordem do método, que se

enfrentou e venceu o primeiro embate com o gênio maligno. Logo, está se

falando aqui de uma verdade cuja natureza é puramente do sujeito que pensa.

Assim, no plano gnosiológico, Descartes pode anunciar, depois de uma longa

caminhada, cheia de tentações e seduções, a primeira verdade de sua

metafisica, a primeira vitória da razão. Essa primeira verdade, não será a

última, nem tampouco a mais importante, é apenas a primeira verdade, na

ordem da razão, a partir da qual todas as outras, caso elas sejam possíveis, o

que ainda não se sabe, terão seu ponto de partida, sua base de lançamento na

trajetória do verdadeiro conhecimento humano. Descartes tem tanta certeza de

que essa primeira verdade está imune de qualquer dúvida ou ataque de qualquer

gênio maligno, que pode, depois de retornar do inferno da dúvida, no início da

segunda Meditação, formular, de maneira canônica, a primeira verdade

indubitável de sua metafísica: “De sorte que, após ter pensado bastante nisto e

de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter

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por constante que esta proposição, eu sou, eu existo387, é necessariamente

verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito”388.

De fato, a consciência da dúvida credita a Descartes sua primeira verdade

indubitável, afirma e confirma seu primeiro juízo de existência, isto é, afirma

que o sujeito que duvida, existe. Sobre essa verdade, nenhum gênio maligno

pode ter acesso. Entretanto, essa primeira verdade ainda não garante ao sujeito

um conhecimento sobre sua própria natureza, só garante a atualidade do ato do

pensamento, a presentificação na existência do sujeito pensante. O sujeito sabe

que é, mas ainda não sabe o que ele é: “... não conheço ainda bastante

claramente o que sou, eu que estou certo de que sou”389. Sobre esse eu, do qual

o sujeito está certo, é preciso fazer outra pergunta que possibilite, através dela,

conhecer sua natureza, sua essência. Qual é a natureza desse eu, qual é,

verdadeiramente, a natureza desse eu-existente? Pode ser que, além do próprio

pensamento, algo, como por exemplo, a imaginação, possa fazer parte dos

constituintes dessa natureza do eu-pensante: “... le fait que je me pense comme

étant par nature pure pensée n’implique nullement qu’en soi je sois une nature

exclusivement pensante”390. Depois de uma investigação detalhada para saber

quais são os atributos derivados do corpo ou da alma que possam identificar a

natureza do eu-existente391; depois de ter excluído a imaginação como

387 Talvez não haja, em toda a história da filosofia, uma proposição mais conhecida e popular do que essa de Descartes que ao afirmar o pensamento afirma, concomitantemente, a existência do sujeito pensante. Ela aparece, pela primeira vez, em 1637, em língua francesa, no Discurso do Método: je pense, donc je suis (Penso, logo existo); em 1641, reaparece, em latim, nas Meditações: Ego sum, ego existo (Eu sou, eu existo); em 1644, volta a reaparecer, em latim, nos Princípios da Filosofia: Cogito ergo sum (Penso, logo existo). Essa proposição tornou-se canônica, referência para toda a filosofia de Descartes. Na maioria das vezes, a proposição se sobrepõe, com certeza, para tristeza de Descartes, a sua própria filosofa. Ou seja, fala-se muito sobre essa frase canônica, mas abandona-se a ordem das razões que a justifica e a determina. A proposição popularizou-se de tal forma que acabou completamente desgarrada do seu sentido originário. Caiu na boca do povo, que a repete mecanicamente como um mantra: Penso, logo existo. 388 DESCARTES, R. Meditações, p. 125-126. 389 Idem, p. 126. 390 GUEROULT, M. Op. Cit., I, p. 87. 391 Cf. DESCARTES, R. Meditações, p. 126-128.

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referência através da qual a natureza desse eu possa ser identificada392,

Descartes chega à conclusão de que só o pensamento, unicamente o

pensamento, é um atributo essencial da alma. O pensamento é o único atributo

que pertence e identifica o eu-existente: “... verifico aqui que o pensamento é

um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim”393.

Portanto, o pensamento pertence à natureza do espírito, não como algo

agregado ou acrescentado a ele, mas como algo que é a própria natureza do que

existe. Um, implica, necessariamente, a presença do outro. Espírito e

pensamento constituem uma só unidade existente. “Eu sou, eu existo: isto é

certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois

poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo

de ser ou existir”394. Se, anteriormente, o sujeito apreendia distintamente sua

existência, seu eu-existente, faltava-lhe a apreensão do que ele era, da natureza

dessa existência, desse eu-existente. Agora, o círculo se fecha, consuma-se a

identidade existencial do sujeito: o pensamento. “Nada admito agora que não

seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois falando precisamente, senão

uma coisa que pensa, isto é um espírito, um entendimento ou uma razão...”395.

Espírito, entendimento, razão, que para Descartes, são uma e a mesma coisa,

torna-se a referência que identifica o sujeito pensante, torna-se a substância da

qual o sujeito é constituído: o homem é uma coisa que pensa396. O sujeito

ainda não sabe se Deus existe, ainda não sabe se o próprio mundo existe, ainda

392 “E, assim, reconheço certamente que nada, de tudo o que posso compreender por meio da minha imagi-nação, pertence a este conhecimento que tenho de mim mesmo...”. Idem, p. 129. 393 Idem, p. 128. 394 Idem, Ibidem. 395 Idem, Ibidem, (grifo nosso). Ao longo deste texto, por diversas vezes, o cogito será denominado espírito, entendimento, razão, sujeito, eu, etc., entretanto, apesar da multiplicidade de denominações conceituais, todos esses conceitos terão a mesma referência, identificar a natureza ou a essência substancial do homem, qual seja, o pensamento; essência substancial da natureza humana e, ao mesmo tempo, aquilo que distinguí-a de qualquer outra substância possível. 396 Cf. Idem, Ibidem.

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não sabe se existe alguma coisa para além dele mesmo, mas já sabe que ele

existe e de qual natureza é a substância que o constitui. Essa é a primeira

verdade na ordem das razões. É o ponto de apoio de Arquimedes que Descartes

procurava: “Arquimedes, para tirar o globo terrestre do seu lugar e transportá-lo

para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro.

Assim, terei eu o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para

encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável”397. Descartes

conquista sua primeira verdade, obedecendo, rigorosamente à ordem puramente

racional, obedecendo à ordem do método. Ao fim e ao cabo, chega-se à

primeira verdade como uma conquista da razão natural. Descartes, tal qual

Prometeu, rouba de Deus a posse da verdade originária na ordem da descoberta.

A partir daí, o homem torna-se o ente através do qual a verdade aparece e se

instala entre os homens. Descartes transfere para o homem o poder que, antes

dele, pertencia a Deus ou ao mundo. O homem assume o lugar de Deus e, de

seu topos enuncia a primeira verdade, através da qual, de posse dela, pode

tornar-se o senhor absoluto do universo. Agora, o universo inteiro está ao seu

alcance e, se assim o quiser, pode estar sob o seu domínio. Como foi visto no

capítulo anterior, o homem torna-se o ente, o centro, em torno do qual o

universo gravita. Mesmo que num segundo momento, na ordem do ser,

Descartes venha a subordinar essa primeira conquista a Deus, que tudo pode,

num primeiro momento, na ordem da razão, essa primeira verdade é pura e

inteiramente independente de Deus ou de qualquer outra coisa derivada do

mundo físico. Na ordem da metafísica cartesiana, cronologicamente, o eu ou o

sujeito pensante é anterior a Deus, mesmo que na ordem do ser,

ontologicamente, este seja anterior àquele. A conquista da primeira verdade é a

afimação absoluta do homem que, contando unicamente com a força da luz 397 Idem, p. 124.

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natural, inventa, forja, no fogo da razão, a natureza humana da verdade. Em

nenhum momento Descartes recorre ao concurso de Deus para fundar ou

justificar a verdade do cogito. É no limite do homem, puramente humano, que

essa primeira verdade encontra o seu estatuto de juízo de existência. Descartes

estar a um passo de recorrer a Deus como fonte garantidora dessa primeira

conquista398, de saltar da física (antropologia) para a metafísica (teologia), de

buscar nesta o fundamento ontológico do primeiro juízo de existência da

metafisica. Mas este é um segundo passo, o primeiro passo, e é isso que

interessa neste momento, foi dado na autonomia e na independência absoluta

do sujeito pensante. É ainda no limite desse eu pensante, desse eu senhor

absoluto da primeira verdade, que Descartes constrói toda a ordem do saber

científico399. Na própria ordem expositiva das Meditações, a primeira prova da

existência de Deus é posterior à prova da existência do sujeito pensante. Na

ordem da razão, Deus vem num segundo momento. Se é que Deus existe, ainda

não se sabe, a sua existência só pode ser afirmada depois de confirmada a

existência do sujeito pensante. Na ordem das razões cartesiana, a existência do

sujeito antecede à existência de Deus.

398 “O cogito, que é primordial na ordem do conhecimento, e por essa razão terá que ser sempre retomado, revela que Deus é primordial na ordem do Ser e que o pensamento se lhe deve subordinar”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 12. 399 “La connaissance que je suis une chose qui pense, étant la première de toutes (la première vérité indubitable de la science), n'a pu être conditionnée par une autre: la première des choses connues ne peut dépendre de choses qui sont encore inconnues et, en conséquence, supposées nulles. Sa connaissance n'a donc pu dépendre de choses qui sont l'objet de l'imagination, lesquelles enveloppent les corps dont l’existence m'est inconnue (rejetée hors du savoir certain comme douteuse, le douteux étant assimilé au faux), et par conséquent annulée. Par où je comprends, d'une part, que si je veux me connaître moi-même, selon l’ordre des raisons, je dois me connaître par l'entendement pur et non par l’imagination qui ne me parle que du corps, et, d'autre part, que je dois me connaître comme étant simplement et uniquement, c'est-à-dire essentiellement, pensée pure (intellectus). (...) J'ai, d'une part, appris ce que je suis: je suis un esprit, c'est-à-dire une chose pensante exclusive de tout élément corporel; j'ai, d'autre part, appris ce qu'est la nature de cet esprit: c'est essentiellement une intelligence, par elle-même exclusive de l’imagination et du sens (...)”. GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 64-65.

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Se no primeiro momento, antes da conquista da primeira verdade indubitável,

Descartes tinha excluído da natureza da alma, tudo o que não fosse puro

pensamento, agora, de posse da primeira verdade, reintegra à sua primeira

conquista todas as representações que antes se apresentavam como duvidosas; o

querer, o desejar, o sentir, que não fazem parte da natureza ou essência da

alma, deste eu pensante, se apresentam como modos do pensamento e são

reintegrados a este. A existência do eu, garante a existência dessas

representações que não constituem sua natureza. Afinal de contas, quem quer,

deseja e sente, é o sujeito pensante, o espírito que, conhecendo-se a si mesmo,

conhece e reconhece os seus modos de ser: “mas o que sou eu, portanto? Uma

coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que

concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e

que sente”400. De todas essas representações presentes no espírito, parece que a

imaginação é a que se apresenta com mais força, a tal ponto parecer uma

imposição das representações do mundo sobre a natureza do eu pensante. É

preciso então investigar para saber até onde a imaginação, ou a imagem,

presente ao espírito, tem o poder de determinar a ordem do seu ser. Ao retomar

a imaginação, conceito antes excluído da natureza do eu, para uma análise mais

precisa e pontual, Descartes busca destituir a imaginação de qualquer valor,

enquanto derivada do mundo e que produz no espírito uma imagem, uma

representação do mundo, de qualquer ordem de verdade401. Destituir a

imaginação de ser detentora de algo verdadeiro que possa determinar a ordem

do pensamento é destituir de qualquer valor verdadeiro a física aristotélica e

escolástica, que considerava a imagem, derivada do mundo físico, como 400 DESCARTES, R. Meditações, p. 130. 401 “E assim, reconheço, certamente que nada, de tudo o que posso compreender por meio da imaginação, pertence a esse conhecimento que tenho de mim mesmo e que é necessário lembrar e desviar o espírito dessa maneira de conhecer a fim de que ele próprio possa reconhecer muito distintamente sua natureza”. DESCARTES, R. Meditações, p. 129-130.

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impondo ao espírito a verdade da qual era portadora402. Portanto, é preciso

provar que, mesmo sendo a imaginação um modo do pensamento, ela não

constitui nenhum fundamento na ordem da razão. Excluir a imaginação da

natureza do espírito é, em última instância, libertar o espírito do mundo físico,

torná-lo independente do corpo, estabelecer, definitivamente, a distinção e

independência entre a ordem do eu e a ordem do mundo, a ordem do espírito e

a ordem da matéria, enfim, entre a res-cogitans e a res-extensa. Descartes, em

carta a Mersenne, mesmo reconhecendo o valor da imaginação para o exercício

da matemática, a considera um verdadeiro estorvo quando se trata de, através

dela, conhecer as questões metafísicas: “Car la partie de l’esprit qui aide le plus

aux mathématiques, à savoir, l’imagination, nuit plus qu’elle ne sert pour les

spéculations métaphysiques”403. Enquanto a imaginação não for destituída do

poder de desviar a razão da ordem do pensamento, o espírito “não pode ainda

conter-se nos justos limites da verdade”404. A desqualificação da imaginação,

como fonte originária de qualquer ordem de verdade, começa com a análise que

Descartes faz da verdadeira natureza das coisas corpóreas. Ou seja, “os corpos

que tocamos e vemos”405. Buscando saber, verdadeiramente, qual a natureza ou

a essência da matéria, Descartes toma para análise, como referência

paradigmática de todos os corpos que são tocados ou vistos, o famoso pedaço

de cera406: “Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera...”. No primeiro

402 “Segundo Descartes, o objeto primeiro do intelecto humano é o nosso próprio espírito. E separar o espírito do corpo representa, no fim das contas, destruir a tradição aristotélica que atribui uma primazia epistemológica ao objeto sensível ou à imaginação”. KOBAYASHI, M. Op. Cit., p. 62. 403 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 151; AT., II, p. 622. Aqui também Descartes não deixa de “herdar” dos escolásticos. Cf. Tomás de Aquino, Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, Q. 6, a, e 3 resposta e 2 404 DESCARTES, R. Meditações, p. 131. 405 Idem, ibidem. 406 “O principal objetivo da análise do pedaço de cera [...] consiste igualmente em assegurar-se da prioridade do conhecimento do seu espírito sobre o do objeto do intelecto e, ainda mais, sobre o objeto da imaginação”. KOBAYASHI, M. Op. Cit., p. 61. Comparar com o parágrafo 48 de O Ensaidor de Galileu. Cf. NASCIMENTO, C. A. R. do. Sobre uma frase de Galileu, In: Idem, De Tomás de Aquino a Galileu, p.175-184.

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capítulo deste trabalho, Descartes já foi acompanhado nessa análise407,

portanto, a mesma não será, aqui, retomada, o que interessa, neste momento, é

o resultado dessa análise, é constatar como aqui, de forma definitiva, Descartes

exclui da ordem do espírito, qualquer ordem sensorial e, como conseqüência,

abre caminho para a futura subordinação da ordem da matéria à ordem da

razão. Ao fim da análise, depois de ter excluído da cera todas as qualidades que

nela estão e que através dos sentidos chegam ao espírito – tais como a

temperatura (quente ou frio), o som, o sabor, o odor, a cor e formato, bem como

a flexibilidade (duro ou mole) e a mutabilidade, e como conseqüência, a própria

imagem que o espírito faz dessas qualidades –, Descartes pode concluir que

nem a percepção sensorial, nem a imaginação podem fornecer um

conhecimento verdadeiro sobre a cera. Sobre esta, “somente o meu

entendimento é quem a concebe”408. Na sexta Meditação, Descartes é ainda

mais radical ao destituir a razão de qualquer influência da imaginação: “Noto,

além disso, que esta virtude de imaginar que existe em mim, na medida em que

difere do poder de conceber, não é de modo algum necessário à minha natureza

ou à minha essência, isto é, à essência do meu espírito”409. A intenção de

Descartes é eliminar ou afastar da ordem da razão os entulhos, fornecidos pelos

sentidos, que impedem a pureza do espírito, impedem que a razão mostre-se em

sua essência, afirmando-se no seu sentido mais puro e independente dessas

representações enganosas. Livre desses entraves dos sentidos, a razão abre

caminho para justificar-se como fonte originária de todas as verdades, podendo,

assim, constituir-se como a única referência através da qual o mundo adquire

sentido e significado. Só a ordem da razão pode conhecer a essência da ordem

dos corpos, melhor, das representações físicas do mundo: “... enfim, eis que 407 Ver cap. I, p. 100-102 408 DESCARTES, R. Meditações, p. 133. 409 Idem, p. 181.

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insensivelmente cheguei aonde queria; pois, já que é coisa presentemente

conhecida por mim que, propriamente falando, só conhecemos os corpos pela

faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos

sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas

somente por os conceber pelo pensamento, reconheço com evidência que nada

há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito”410. Assim, pode-se

ainda não ter nenhum conhecimento seguro sobre a ordem das coisas distintas

do espírito, pode-se não ter nenhum conhecimento verdadeiro sobre o mundo;

este ainda pode ser completamente estranho e enganoso, mas já se tem pleno

domínio sobre a natureza, a essência do eu, sabe-se o que é, o que o constitui e,

principalmente, sabe-se o que dele não faz parte. Excluídas todas as

representações do mundo, o que se encontra, ao final da segunda Meditação, é

a afirmação de que só o pensamento, nada, absolutamente nada, além dele,

determina e identifica a natureza do espírito. O mundo ainda é um território

estranho; entretanto, o eu, o espírito, é território conhecido, demarcado e

definitivamente conquistado.

A conquista definitiva do território do espírito acentua, em Descartes, a certeza

de que a caminhada filosófica tem que ser reiniciada, tendo como ponto de

partida a auto-consciência do sujeito pensante. É contando consigo mesmo que,

de posse da primeira verdade, Descartes vai à busca de sua segunda verdade, a

saber: a existência de Deus. Se os olhos abertos (os sentidos) eram a condição,

na física aristotélica e escolástica, de apreensão do mundo, agora, contando só

com o espírito, Descartes pode fechar os olhos do corpo e abrir os olhos do

410 Idem, p. 136, (grifo nosso).

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espírito para contemplar e dar conta do mundo411. O início da Terceira

Meditação é, ao mesmo tempo, a afirmação do espírito como único guia na

ordem do saber e a negação das matrizes de sustentação gnoseológica da física

e da metafísica de Aristóteles, bem como, de toda a Escolástica:

“Fecharei agora os olhos, tamparei meus

ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus

sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento

todas as imagens de coisas corporais, ou ao

menos, uma vez que mal se pode fazê-lo,

reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim,

entretendo-me apenas comigo mesmo e

considerando meu interior, empreenderei

tornar-me pouco a pouco mais conhecido e

mais familiar a mim mesmo”.412

Estabelecido o espírito como ponto de partida para o conhecimento da verdade,

é preciso, agora, estabelecer as regras para direcionar seu exercício, para que o

mesmo não ande desembestado, sem direção e sem saber qual o limite para seu

próprio exercício. As regras são como rédeas que impõem limite e direção à

411 “Aqueles que não filosofaram por ordem, formularam outras opiniões sobre este assunto porque nunca distinguiram com bastante cuidado a sua alma [ou seja, aquilo que pensa] do corpo [ou seja, o que é extenso em comprimento, largura e altura]. Mais ainda que não pusessem nenhuma dificuldade em crer que estavam no mundo, estando mais seguros disto do que de qualquer outra coisa, como não tiveram em conta que quando se tratava de uma certeza metafísica deveriam considerar somente o pensamento, e que, pelo contrário, preferiram crer que era o corpo que viam com os olhos e tocavam com as mãos e ao qual despropositadamente atribuíam a faculdade de sentir, por isso não conheceram distintamente a natureza da alma”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 12, p. 31. 412 DESCARTES, R. Meditações, p. 136. Há o curioso paralelo do “homem voador” em Avicena. Muito provavelmente Descartes não o conheceu. Cf. ATTIE FILHO, M. Os sentidos internos..., Ibn Sina (Avicena), p. 48-50.

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espontaneidade do espírito413, retendo-o “no justo limite da verdade”414. O rigor

do método é a rédea da razão. É exatamente o rigor do método que impede o

espírito de vagabundear livremente pelos campos das seduções que os sentidos

lhe oferecem415. Como já foi dito, não “é suficiente ter o espírito bom, o

principal é aplicá-lo bem”416. O princípio de clareza e distinção torna-se a

regra reguladora de todo o conhecimento que pretende se impor como

verdadeiro:

“...parece-me que já posso estabelecer como

regra geral que todas as coisas que

concebemos mui clara e distintamente são

todas verdadeiras”417.

Regido pela regra de clareza e de distinção, o espírito, mais uma vez, volta-se

sobre si mesmo, sobre sua própria interioridade, para inspecionar todas as

idéias que, de alguma forma, nele se encontram presentes, buscando saber,

verdadeiramente, a origem de cada uma delas, melhor, para saber se ele, que é

só espírito, é o autor originário dessas idéias ou se existe alguma cuja autoria

não lhe pertence, requerendo, para tanto, a existência de outro ser, fora do

espírito, ao qual possa ser creditada tal autoria. A existência de outro ser, para

além do próprio cogito, confirmaria que o sujeito pensante não está sozinho no

413 Descartes, na Segunda Meditação, escreve sobre o espírito que, na sua caminhada, ainda não sabe identificar inteiramente a sua própria essência: “Soltemos-lhe, pois, ainda uma vez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave e oportunamente, possamos mais facilmente dominá-lo e conduzi-lo”. Idem, p. 131. 414 TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes, p. 41. 415 Cf. Idem, ibidem. 416 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 41. 417 Idem, Meditações, p. 137.

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mundo, possibilitando, assim, que o sujeito saia de si mesmo, saia da solidão de

sua própria singularidade e busque o conhecimento desse outro ser, se é que

ele, de fato, existe; coisa que Descartes ainda não pode afirmar. É preciso saber

“... se a realidade objetiva de alguma de minhas idéias é tal que eu reconheça

claramente que ela não está em mim nem formal nem eminentemente e que, por

conseguinte, não posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí decorre necessariamente

que não existo sozinho no mundo, mas que há ainda algo que existe e que é a

causa desta idéia; ao passo que, se não se encontrar em mim uma tal idéia, não

terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar de existência

de qualquer outra coisa além de mim mesmo...”418. Essa inspeção de todas as

idéias é o que é conhecido, em Descartes, como “teoria das idéias”419. É a

preparação para que Deus entre em cena e faça sua estréia na metafísica

cartesiana, é a preparação para uma fundamentação metafísica de todo o saber,

no limite, é a preparação para a fundamentação metafísica da ciência. Mais

ainda, é através dessa inspeção do próprio espírito que Descartes prepara a

transição entre o conhecimento do eu, de Deus e do mundo, enfim, entre a

metafísica e a física. Em busca dessa transição, Descartes elabora três teses,

através das quais busca provar a existência de Deus, bem como as

conseqüências de tal existência para o conhecimento humano. Tais teses são as

418 DESCARTES, R. Meditações, p. 146. 419 Na análise da “teoria das idéias”, Descartes distingue, em todas estas “dois aspectos, um pelo qual as idéias são semelhantes e igualmente modos do meu pensamento, o outro pelo qual as idéias, exibindo diversas coisas, são diferentes e desiguais. Ora, Descartes reconhece uma realidade própria a este conteúdo representativo. Ao lado da realidade formal da idéia, constituída pelo primeiro aspecto, realidade indubitável e indiscutivelmente ligada ao eu pensante como o modo à substância, e da realidade formal da coisa representada, realidade duvidosa de momento, Descartes põe uma terceira forma de realidade, a realidade objetiva da idéia, constituída pelo segundo aspecto desta, realidade sem dúvida imperfeita em relação à realidade formal da coisa, mas não nula, e tão indubitável quanto a realidade formal da idéia. Aplicado a esta forma de ser, o princípio da causalidade tido por evidente, Descartes mostra que, mesmo que as idéias na sua realidade objetiva possam produzir-se uma a outra, elas chamam ao seu princípio um ser cuja a realidade não é apenas objetiva, mas formal. Este é, com efeito, o modo de ser próprio que não poderia subsistir sem um ser além dele, e de outra ordem que não a dele, para a qual ele remete. Este ser próprio da idéia só é possível se tudo não for idéia. É neste sentido que a realidade objetiva é uma realidade depreciada em relação à realidade formal: exige como causa um ser formalmente existente”. BEYSSADE, M. Descartes, p. 38.

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seguintes: Prova a posteriori ou causal, primeira e segunda provas, em que, na

Terceira Meditação, a partir da idéia do perfeito que existe no sujeito (primeira

prova) e pela própria existência do sujeito, na medida em que ele tem uma idéia

de Deus (segunda prova), a existência deste é provada; na terceira prova, prova

a priori, denominada por Kant de argumento ontológico420, Descartes, a partir

da idéia de essência do perfeito, apresenta sua última prova da existência de

Deus (na Quinta Meditação). Na primeira prova, depois de ter analisado todas

as idéias presentes no espírito, identificando a natureza de cada uma delas,

descartando sobre essas idéias, qualquer autoria ou origem fora do cogito,

como, por exemplo, a derivação do mundo sensível e a apreenção pelos

sentidos421, Descartes volta-se para a idéia de Deus, para saber se também essa

idéia, que se encontra no espírito, tem sua origem identificada na autonomia do

cogito: “... resta tão-somente a idéia de Deus, na qual é preciso considerar se há

algo que não possa ter provindo de mim mesmo. Pelo nome de Deus entendo

uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente

e pela qual eu próprio e todas as coisas que são [se é verdade que há coisas que

existem422] foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e

tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado

de que essa idéia possa tirar sua origem de mim tão-somente. E, por

conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes,

que Deus existe”423. Está implicado no princípio de causalidade (princípio que

rege a primeira e a segunda provas), que do nada, nada pode derivar, pois, nada

420 Este assunto será retomando quando for contemplada a exposição da referida prova. 421 “(...) até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso que acreditei haver coisas foras de mim, e diferentes do meu ser, as quais pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio que seja, enviam-me suas idéias ou imagens, e imprimem em mim suas semelhanças”. DESCARTES, R. Meditações, p. 142-143. 422 Descartes ainda não tem nenhum certeza da existência do mundo. A garantia da existência do mundo será obtida depois da garantia da existência de Deus. Na ordem da razão, a primeira verdade é a existência do sujeito pensante, a segunda é a existência de Deus e a terceira é a existência do mundo. 423 DESCARTES, R. Meditações, p. 149.

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pode ter como origem, como causa, o nada424. “Daí decorre não somente que o

nada não poderia produzir coisa alguma, mas também que o que é mais

perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser uma

decorrência e uma dependência do menos perfeito”425. O Eu, que, por sua

própria natureza, é imperfeito, não pode ser a causa da idéia do perfeito; esta

deve ter outra origem que, trazendo em si mesma uma essência perfeita, pode,

como conseqüência, produzir a idéia do perfeito que se encontra no espírito.

Portanto, pode concluir Descartes: Deus existe e a prova de sua existência é a

idéia de infinito e perfeito que existe no espírito, já que o sujeito, como um ser

imperfeito e finito, não pode ser o autor dessa idéia426. Descartes vai um pouco

mais além e diz o porquê da impossibilidade de ser o próprio sujeito o autor

dessa idéia do perfeito que existe nele. O fato de o sujeito ter conhecimento da

presença dessa idéia em seu espírito, não implica que ele tenha um total

conhecimento dessa idéia, que ele a conheça em toda a sua compreensão: “não

devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas

somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o

424 Nas respostas às Segundas Objeções, Descartes diz: “nada existe em um efeito, que não tenha existido de forma semelhante ou mais excelente na causa, é uma primeira noção, e tão evidente, que não há nada mais claro; e esta outra noção comum, que de nada nada se faz, a compreende em si, porque, se se concorda que existe algo no efeito que não existiu na sua causa, cumpre concordar também que isso procede do nada; e se é evidente que o nada não pode ser a causa de algo, é somente porque, nesta causa, não haveria a mesma coisa do que no efeito”. DESCARTES, R. Meditações, p. 214. 425 Idem, p. 144. 426 Nos Princípios da Filosofia, mesmo que Descartes altere a ordem da apresentação desta prova, que nas Meditações, antecede à prova a priori ou ontológica e nos Princípios lhe é posterior, vale a pena contemplar o resumo de toda a argumentação. “(...) porque encontramos em nós a idéia de um Deus ou de um Ser sumamente perfeito, podemos investigar a causa que determina essa idéia em nós. Todavia, depois de ter ponderado com devida atenção como são imensas as perfeições que tal idéia nos representa, somos obrigados a confessar que só a poderíamos ter a partir de um ser perfeito. Ou seja: de um Deus que é verdadeiramente [ou que existe] porque, pela luz natural, sabemos que o nada não pode ser origem do que quer que seja e que o mais perfeito não poderia ser uma conseqüência ou uma dependência do menos perfeito, mas também por verificarmos [por meio desta mesma luz] que é impossível que tenhamos a idéia ou a imagem do que quer que seja se em nós e fora de nós não houver um original que engloba todas as perfeições [que assim se nos apresentam]. Mas como sabemos que estamos submetidos a muitas imperfeições [que não possuímos essa extrema perfeição de que temos idéia], devemos concluir que elas estão nalguma natureza diferente da nossa, e na verdade muito perfeita, isto é, em Deus”. DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, I, art. 18, p. 33-34.

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repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz”427. O reconhecimento

da idéia de imperfeição do sujeito que duvida, implica, ao mesmo tempo, no

reconhecimento da anterioridade da idéia de perfeito em relação à de

imperfeito. Sendo o sujeito imperfeito, não pode ser, em si mesmo, o autor da

idéia do perfeito, isso implicaria em uma flagrante contradição lógica. Assim

não fosse, o sujeito, que é imperfeito, seria o autor da idéia de perfeito que

existe nele; nesse caso, ele não poderia ser imperfeito, já que seria o próprio

autor da idéia do perfeito. Portanto, a idéia do perfeito só pode ter como autor o

que seja, em si mesmo, perfeito. O que dá ao sujeito o conhecimento da idéia

de perfeito não é a plena compreensão da própria idéia do perfeito, ao

contrário, é do recohecimento da imperfeição de sua própria natureza – sobre a

qual o sujeito tem plena consciência, já que este é o estado do seu próprio ser –

que nasce a consciência de que a idéia de perfeição, mesmo estando presente

em seu espírito, não pode ter neste a sua causa originária; requerendo, para

tanto, a existência de outro ser, dotado de uma essência perfeita, a partir da qual

possa ser identificada e creditada a causa originária da idéia de perfeição. A

idéia de infinito e perfeito costituem uma verdadeira idéia e é anterior em

relação ao imperfeito; o sujeito conhece o perfeito antes de conhecer o próprio

imperfeito, ou seja, conhece a Deus, antes de conhecer a si mesmo. Caso ele

não tivesse consciência (não domínio) da idéia do perfeito, jamais poderia ter

consciência da idéia de imperfeição428. O reconhecimento do falso implica na

anterioridade, pelo menos enquanto possibilidade, da idéia de verdade. Se

assim não fosse, jamais o sujeito teria consciência da sua própria imperfeição,

jamais daria conta de ser ele um sujeito que duvida, que deseja, enfim, um 427 DESCARTES, R. Meditações, p. 150. 428 “A originalidade de Descartes consiste em fazer do infinito positivo a própria condição do pensamento do negativo, traço que vai marcar profundamente o ‘grande racionalismo’ do século XVII. O infinito é ontologicamente primeiro em relação ao finito, mesmo se cronologicamente a primeira certeza é a do meu ser finito”. RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, p. 42.

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sujeito constutuído de uma incompletude: “... vejo manifestamente que há mais

realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de

alguma maneira, tenho em mim a noção de infinito anteriormente à do finito,

isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu

pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não

sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia de um ser mais

perfeito que o meu, em comparação ao qual eu reconheceria as carências de

minha natureza?”429. A própria consciência da imperfieção, exige, como

condição lógica necessária, a presença da idéia de perfeição. Entretanto, o

homem, como ser imperfeito que é, jamais abarcará a totalidade da idéia do

perfeito. Não está no poder do sujeito compreender a totalidade do que está

contido na idéia de infinito, caso comprendesse toda extensão dessa idéia,

poderia, ele mesmo, ser seu autor, ou seja, seria ele o póprio Deus. Que a posse

da idéia do perfeito não lhe é plenamente conhecida, é um fato; entretanto,

também é um fato a plena consciência da presença da idéia do perfeito nele, ou

seja, essa presença é incontestável, portanto é uma verdade clara e distinta430.

Na metafísica cartesiana, a idéia de Deus antecede à idéia do próprio sujeito

pensante, como a idéia do perfeito antecede à idéia do imperfeito ou a idéia de

infinito antecede à idéia de finito431. Isto é importante porque é nessa

429 DESCARTES, R. Meditações, p. 150. 430 “...ainda que eu não compreenda o infinito, ou mesmo que se encontre em Deus uma infinidade de coisas que eu não possa compeender, nem talvez também atingir de modo algum pelo pensamento: pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo; e basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro, estão em Deus formal ou eminentemente, para que a idéia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais distinta dentre todas as que se acham em meu espírito”. Idem, p. 151. 431 DESCARTES, R. Meditações, p. 150. “Il est très vrai de dire que nous ne concevons pas l’infini par la négation de la limitation; et de ce que la limitation contient en soi la négation de l’infini, c’est à tort qu’on infère que la négation de la limitation contient la connaissance de l’infini; parce que ce par quoi l’infini diffère du fini est réel et positif, et qu’au contraire la limitation par laquelle le fini diffère de l’infini est un non-être ou une négation d’être: or ce qui n’est point ne nous peut conduire à la connaissance de ce qui est; mais au contraire, c’est à partir de la connaissance d’une chose qu’on doit concevoir sa négation”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 364-365; AT., III, p. 426-427.

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anterioridade de Deus em relação ao sujeito pensante, que Descartes irá buscar

guarida para sustentar os fundamentos de sua física e das ciências particulares:

“... ainda que a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu

uma substância, eu não teria, todavia a idéia de uma substância infinita, eu que

sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma

substância que fosse verdadeiramente infinita”432. Essa substância infinita é

Deus. Segundo Descartes, garantido pelo princípio de causalidade, a presença

da idéia de Deus no sujeito, garante a existência de Deus fora do sujeito.

Conclui Descartes: “A idéia, digo, desse ser soberanamente perfeito e infinito

[Deus] é inteiramente verdadeira”433. Portanto, Deus existe. Essa é uma verdade

indubitável. Uma verdade conquistada na pura ordem do método, regida pelos

princípios de clareza e de distinção: “Essa mesma idéia [Deus existe] é também

mui clara e distinta, porque tudo o que meu espírito concebe clara e

distintamente de real e de verdadeiro, e que contém em si alguma perfeição,

está contido e encerrado inteiramente nessa idéia”434. Assim, a metafísica

cartesiana, dá por concluída sua primeira prova, através da qual demonstra que

Deus existe.

A segunda prova que Descartes apresenta da existência de Deus, é uma

continuidade da primeira prova, seguindo o mesmo princípio de causalidade. O

próprio Descartes, em 2 de maio de 1644, declara ao Pe. Mesland que sua

segunda demonstração da existência de Deus, está em continuidade com a

432 DESCARTES, R. Meditações, p. 149-150. 433 Idem, p. 151. 434 Idem, ibidem.

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primeira prova; melhor, é uma explicação da primeira prova435. Reconhecendo

ser a primeira prova um pouco difícil para ser compreendida, principalmente

pela complexidade da teoria das idéias, Descartes elabora a segunda, para que a

primeira seja mais facilmente entendida436. Se na primeira prova, Descartes

parte da idéia de Deus que existe no sujeito, na segunda prova, partindo do

próprio espírito, de sua própria contingência como existente, já que ele é um

ente imperfeito, que duvida, Descartes prova a existência de Deus. Descartes

poderia partir da própria contingência do mundo para, a partir dela, afirmar a

necessidade lógica da existência de um não-contingente, de Deus. Contudo,

prefere partir de sua própria contingência por ser esta mais evidente e, neste

sentido, mais segura que o mundo físico, ponto de partida das provas da

Escolástica, que de suas representações sensíveis fundamentam a existência de

Deus; como afirma Gilson, referindo-se especificamente a santo Tomás de

Aquino, que busca “nas coisas sensíveis, cuja a natureza é proporcional à

nossa, um ponto de apoio para nos elevar a Deus”437. Até o momento, a única

verdade que pertence ao espírito por inteira é a verdade do cogito, é a 435 “Il importe peu que ma seconde démonstration, fondée sur notre propre existence, soit considérée comme différente de la première, ou seulement comme une explication de cette première. Mais, ainsi que c'est un effet de Dieu de m'avoir créé, aussi en est-ce un d'avoir mis en moi son idée; et il n'y a aucun effet venant de lui, par lequel on ne puisse démontrer son existence. Toutefois, il me semble que toutes ces démonstrations, prises des effets, reviennent à une; et même qu'elles ne sont pas accomplies, si ces effets ne nous sont évidents (c'est pourquoi j'ai plutôt consideré ma propre existence, que celle du ciel et de la terre, de laquelle je ne suis pas si certain), et si nous n'y joignons l’idée que nous avons de Dieu. Car mon âme étant finie, je ne puis connaitre que l'ordre des causes n'est pas infini, sinon en tant que j'ai en moi cette idée de la première cause; et encore qu'on admette une première cause, qui me conserve, je ne puis dire qu’elle sois Dieu, si je n'ai véritablement l’idée de Dieu”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 69; AT., IV, p. 112. 436 “Ora, que há em nós alguma idéia de um ente soberanamente poderoso e perfeito, e também que a realidade objetiva desta idéia não se encontra em nós, nem formal, nem eminentemente, isto torna-se-á manifesto aos que pensarem seriamente no assunto, e quiserem dar-se ao trabalho de meditá-lo comigo; mas não poderei enfiá-lo à força no espírito dos que lerem as minhas Meditações apenas como um romance, para se desenfadar, e sem lhes prestar grande atenção. Ora, de tudo isso, conclui-se mui manifestamente que Deus existe. E todavia, em favor daqueles cuja a luz natural é tão fraca, que não vêem que constitui uma primeira noção, que toda a perfeição que está objetivamente numa idéia deve estar realmente em alguma de suas causas, ainda a demonstrei de maneira fácil de conceber, mostrando que o espírito que tem esta idéia não pode existir por si próprio; e portanto não vejo o que podeis desejar mais para me dardes as mãos, como haveis prometido”. DESCARTES, R. Meditações – respostas do autor às Segundas Objeções, p. 214. 437 GILSON, E. A filosofia da idade média, p. 658. Relembre-se que a 3º via de Tomás de Aquino parte justamente da contigência dos entes sub-humanos. Cf. Suma de Teologia, Ia, Q. 2, a. 3.

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consciência da própria existência do sujeito pensante. Portanto, se o espírito

deseja conhecer outras verdades para além dessa primeira, é para esta primeira

verdade, conquistada na mais pura autonomia do método, que ele deve voltar-

se. Essa primeira verdade, de natureza puramente humana, exatamente por ter o

homem como sua causa originária, é contigente, imperfeita e limitada. Assim,

Descartes abandona a contigência do mundo e volta-se para a própria

contigência do sujeito pensante buscando aí a referência para fundamentar sua

segunda prova da existência de Deus. “A contingência do meu espírito, único

ser cuja existência é indubitável, substitui a contingência do mundo”438. Isto,

porque, neste momento, o mundo, na sua contingência, ainda está fora do

alcance do cogito. Sobre o mundo, propriamente dito, o cogito não tem

nenhuma verdade, melhor, ainda não sabe sequer se ele existe, essa é uma

terceira verdade que só será conquistada na Sexta Meditação. Por enquanto,

Descartes ainda está tentando provar sua segunda verdade: Deus existe. Sobre

essa verdade, Descartes ainda se encontra na sua segunda prova, das três por

ele estabelecidas. A partir da contingência do espírito, que é finito e imperfeito,

a não contingência de Deus, no qual o espírito reconhece, além de sua

necessidade lógica e ontológica, a causa de sua própria existência, será

provada, isto é, a existência de Deus será, pela segunda vez, provada: “Eis por

que desejo passar adiante e considerar se eu mesmo, que tenho essa idéia de

Deus, poderia existir, no caso de não haver Deus. E pergunto, de quem tirarei

minha existência”439? Novamente aqui, é pelo princípio de imperfeição do

espírito, que Descartes chega a Deus, autor, não só da idéia de perfeição que

existe no espírito, mas autor do próprio espírito que tem a idéia de infinito, ou

seja, de Deus. “Se eu fosse independente de todo outro ser, e fosse eu próprio o

438 BEYSSADE, M. Op. Cit., p. 40. 439 DESCARTES, R. Meditações, p. 153.

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autor do meu ser, certamente não duvidaria de coisa alguma, não mais

conceberia desejos e, enfim, não me faltaria perfeição alguma; pois eu me teria

dado todas aquelas de que tenho alguma idéia e assim seria Deus”440. O sujeito,

que tem plena consciência de sua própria existência, ao mesmo tempo, tem

consciência de sua finitude, de sua imperfeição; tem consciência, não do que

lhe falta de ser para ser perfeito, isso é impossível ao espírito saber, está fora do

alcance do cogito, só tem consciência de sua imperfeição atual, de sua

imperfeição no presente, como conseqüência, seria absurdo imaginar a hipótese

de o sujeito ser o autor de seu próprio ser. Retorna-se, assim, à base da primeira

prova, o imperfeito não gera o perfeito; do não ser, nada de ser pode ser

derivado. Portanto, o sujeito, ser imperfeito, não pode ter criado a si mesmo,

não pode ser o responsável pela idéia do perfeito que nele existe. O espírito, em

sua imperfeição, portanto, na sua contigência, exige, por necessidade lógica,

um outro que seja, ao mesmo tempo, em sua infinita perfeição, em sua não

contigência, isto é, como necessário, causa deste contigente que é o homem,

bem como causa da idéia do perfeito nele presente. Isto basta para

demonstrar, de forma indubitável, que Deus existe. “É preciso concluir

necessariamente que, pelo simples fato de que eu existo e de que a idéia de um

ser soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está

mui evidentemente demonstrada”441. Assim, conclui-se a segunda prova

demonstrativa da existência de Deus.

440 Idem, Ibidem. 441 DESCARTES, R. Meditações, p. 156.

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No início da Quarta Meditação, Descartes faz um resumo preciso, no qual

incorpora suas duas provas da existência de Deus; neste, contempla todo o

percurso feito até aqui para provar, de fato, que Deus existe:

“(...) quando considero que duvido, isto é, que

sou uma coisa incompleta e dependente, a

idéia de um ser completo e independente, ou

seja, de Deus, apresenta-se ao meu espírito

com igual distinção e clareza; e do simples

fato de que essa idéia se encontrta em mim, ou

que sou ou existo, eu que possuo esta idéia,

concluo tão evidentemente a existência de

Deus e que a minha depende inteiramente dele

em todos os momentos de minha vida, que não

penso que o espírito humano possa conhecer

algo com maior evidência e certeza”442.

Concluída a segunda prova, já é sabido que Deus existe e existe fora do sujeito

pensante, que ele é o único autor possível da idéia de perfeição que existe no

sujeito, mas isso não basta, ainda é preciso saber, como essa idéia chegou até o

sujeito, como o eu a adquiriu. Essa idéia não foi adquirida através da

experiência dos sentidos – Descartes já descartou os sentidos como origem de

qualquer conhecimento verdadeiro –, também não é uma ilusão ou uma ficção

do espírito. Portanto, em que momento o espírito tornou-se morada para a idéia

do perfeito? Segundo Descartes essa idéia de perfeito é instalada no espírito do 442 Idem, p.159.

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homem no momento do seu nascimento. Por quem? Pelo único que a possui em

plenitude: Deus. Isso é o mesmo que dizer: Deus, ao criar o homem, instalou

em seu espírito, a sua própria presença. O homem tornou-se, assim, um ente

que tem a idéia de Deus: “Não resta outra coisa a dizer senão que, como a idéia

de mim mesmo, ela (a idéia de Deus) nasceu e foi produzida comigo desde o

momento em que fui criado”443. A idéia de Deus é a marca impressa da

presença de Deus na alma do homem. Deus assina a sua obra, instalando na

criatura a marca do criador. “Não se deve achar estranho que Deus, ao me criar,

haja posto em mim esta idéia para ser como que a marca do operário impressa

em sua obra”444. Assim, Descartes justifica, com o argumento da marca

impressa, o modo através do qual a idéia de Deus, em sua infinita completude,

se instala no espírito do homem. A idéia de Deus é inata ao homem, este já

nasce com ela. O inatismo, a que Descartes recorre aqui para justificar a

presença de Deus no espírito do homem, servirá, mais tarde, para justificar e

garantir, todas as verdades claras e distintas que o espírito pode alcançar ou

conhecer445. A tomada de posse, via a luz natural, da idéia de Deus garante a

Descartes a base de sustentação de toda sua metafísica. Mas, ainda, não se

chegou ao acabamento desta; trata-se apenas do início da caminhada em

direção à sua construção. Poder-se-ia dizer que ainda se está nos primeiros

passos de uma razão que, obedecendo ao rigor das regras do método, prova que

Deus existe e que o homem traz impressa na sua alma, desde o seu nascimento,

a idéia de Deus. Portanto, até agora, Descartes não recorreu, em nenhum

momento, a Deus para, através dele, justificar sua ordem de verdades. Até

agora o método cartesiano registrou, no cartório da razão, as duas verdades 443 Idem, p.157. 444 Idem, Ibidem. 445 “(...) notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de refletir bastante sobre elas, não poderímos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 74.

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conquistadas pela razão natural: Eu existo, Deus existe. Provada essa segunda

verdade, é preciso dar mais um passo e provar que este Deus, cuja existência a

razão natural acaba de provar, não é um Deus enganador, não é um Deus capaz

de fazer o espírito se enganar até mesmo no que diz respeito ao conhecimento

que ele acaba de conquistar: Deus existe; mas enquanto não for eliminada

definitivamente a possibilidade de ser ludibriado por Deus, o sujeito não pode

ter garantia de nenhuma verdade, não pode conhecer nada de certo e

indubitável, além de sua própria existência. Ora, segundo Descartes, esse Deus,

cuja existência o cogito acaba de provar, é, na sua infinita perfeição, dotado de

todas as qualidades, de “todas essas altas perfeições”, portanto, nada a ele falta

para ser o que é; ele é sumamente perfeito, não sendo esse espírito perfeito

portador de nenhuma carência. Todas essas qualidades, possíveis de serem

pensadas, habitam em Deus, em plenitude. Essa plenitude de qualidades

presentes em Deus identifica sua absoluta superioridade em relação ao homem,

que, por sua própria natureza, é finito e imperfeito. Mas, ao mesmo tempo,

impõe-lhe um limite: Deus pode tudo, mas não pode ir contra sua própria

natureza, não pode fazer nada que esteja fora da ordem de sua própria essência.

Deus não pode se enganar nem enganar aos outros; está fora de seu alcance

essa possibilidade. A própria lógica nega-lhe esta via. Aqui, nem Deus está

autorizado a desobedecer à ordem lógica da razão. A própria razão natural

impõe um limite à ação de Deus. Assim, a metafísica cartesiana, a seu modo,

acaba por subordinar Deus aos ditames da lógica puramente racional. O seu

poder, pelo menos no plano da ciência, não está autorizado a transgredir as leis

que regem a razão natural446. Descartes não está falando do Deus da religião, da

revelação ou da fé, mas do Deus da razão, do Deus dos filósofos, como se verá

446 Advirta-se que o caráter paradoxal destas asserções é apenas aparente, pois Deus (infinito e perfeito) é a suma razão, a suma lógica e não está sendo subordinado a nada exterior a ele.

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no terceiro capítulo deste trabalho. Não compete à ciência o exame dos

milagres; ela se restringe às leis, provadas segundo o rigor do método, expresão

da própria razão humana. Por isso, o Deus da metafísica cartesiana percorre o

caminho ditado pelas regras do método, único caminho através do qual a

ciência (todas elas) pode se afirmar como verdadeira. Portanto, nem Deus está

autorizado, no estrito limite da razão natural, a transgredir as leis que regem o

método. Deus pode tudo, mas não pode contradizer-se. Ele não pode ser o que

ele não é. Se ele é perfeito, infinito, sumamente bom, completo, não pode ser,

ao mesmo tempo, imperfeito, incompleto, mau ou enganador. Aquele que é o

superlativo do ser, não pode sofrer nenhuma restrição nessa sua

superlatividade. Isso seria ir de encontro ao primeiro principio que diz que não

é possível ser e não ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto e na mesma

relação. Se essa lei (princípio de não-contradição) vale para todos os entes que

mudam em seus aspectos e em suas relações, isto é, são contigentes, vale,

muito mais ainda, para Deus, que é o único ser que É, em plenitude, em todos

os tempos, em todos os aspectos e em todas as relações, ou seja, um ser que é

plenamente, sem nenhuma possibilidade de alteração, é necessário. Deus é, não

pode não ser. Essas qualidades negativas seriam a presença do não-ser no ser,

seriam carência de ser; ora, a quem nada falta para ser o que é, a carência nunca

se faz presente447, portanto: “é bastante evidente que ele [Deus] não pode ser

embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste depende

necessariamente de alguma carência”448. Descartes conquista, então, um

complemento importantíssimo para sua segunda verdade: Deus existe, ele não é

embusteiro, como conseqüência, não pode conduzir o sujeito ao erro: “pois,

primeiramente, reconheço que é impossível que ele [Deus] me engane jamais, 447 “la idéia de la absoluta perfección tiene por causa una realidad formalmente absoluta”. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 210. 448 DESCARTES, R. Meditações, p. 157.

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posto que em toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição.

E, conquanto pareça que poder enganar seja um sinal de sutileza ou de poder,

todavia querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia. E,

portanto, isso não se pode encontrar em Deus”449. Com essa conquista,

Descartes joga por terra o único impedimento que se apresentava como entrave

para o progresso do conhecimento, qual seja: a presença de um Deus

enganador, um gênio maligno que, na sua malignidade, colocava em risco todas

as conquistas do cogito, colocava em risco o próprio progresso do

conhecimento humano. A eliminação da dúvida hiperbólica é a grande vitória

da razão, é a confirmação de que a razão pode, obedecendo ao rigor das leis

que regem a razão natural, alcançar os conhecimentos claros, distintos e

verdadeiros sobre todas as coisas. Agora, nada impede o vôo da razão. Pode

alçar o seu vôo, livre de todos os impedimentos, regida unicamente pelas leis

que ela própria estabeleceu e que representa sua própria natureza intríseca. Se

Deus existe, se ele não pode ser enganador, o erro ou o acerto se encontra sob a

total responsabilidade do sujeito, no limite de sua própria racionalidade. Para

evitar o erro, basta ao sujeito ser vigilante e obedecer às leis que regem a razão

natural. O erro, só confirma, em relação a Deus, a imperfeição da natureza

humana: “Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que

dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho

necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus

particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de

o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito

em mim”450. Deus não engana, mas o sujeito pode se enganar; para evitar o

449 Idem, p. 159. 450 Idem, p. 160.

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erro, basta-lhe “usar bem as faculdades do (...) espírito”451. Usar bem as

faculdades do espírito é deter-se no limite do entendimento que, por sua própria

natureza, é limitado e finito, e não deixá-las guiarem-se pela vontade que, por

sua própria natureza, é ilimitada452. Erra-se quando se deixa a vontade, que é

ilimitada, conduzir o entendimento que, por sua própria natureza, é limitado e

finito453. Com isso Descartes credita ao homem, e só a ele, a responsabilidade

de ser o ser através do qual a verdade aparece no mundo454. A falta ou o

pecado, não decorrem de algum defeito da natureza humana, nem de um estado

de decaimento em que este se encontrasse, mas é um ato praticado pelo homem

no sentido estrito de sua própria racionalidade; portanto cabe a ele, unicamente,

evitá-lo ou realizá-lo. Ao provar que Deus existe e que ele não pode ser

enganador, Descartes, de forma muito engenhosa, preserva a idéia de um Deus,

mas destitui-o do papel de ser o objeto da primeira verdade na ordem da

descoberta: Deus “é o primeiro ser cuja existência reconheço, depois da

minha”455. A existência do sujeito antecede, na ordem gnosiológica, a

existência de Deus. “Deus existe porque eu existo, eu tenho uma idéia de

451 BEYSSADE, M. Op. Cit., p. 45. 452 “As faculdades que concorrem para o juízo, e que são tudo o que nele há de real, não têm defeito. O juízo é feito de entendimento e de vontade. O entendimento apercebe infalivelmente o que apercebe claramente. É certo que é finito. Mas é da natureza do entendimento criado ser assim, e aqui não tenho de me queixar de Deus. E, do mesmo modo, a minha vontade é sem defeito. Mas, desta vez, a sua perfeição consiste no fato de não ter limites, porque se pode estender a todas as coisas, nem graus, porque é faculdade de opção, faculdade do sim ou do não. A vontade é infinita. Desde logo pode ultrapassar os limites do entendimento, daí vem o erro. Eu julgo quando não tenho idéias claras e distintas, quando não vejo nada; julgo sem aperceber. O erro vem, portanto, da minha operação, e não do meu ser; sou o único responsável por ele, e posso evitá-lo. Vemos como esta concepção está afastada da idéia de uma natureza decaída, ou de um pecado natural. É agora, por um ato pensante, que me engano, ou que peco”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 101. 453 “Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque”. DESCARTES, R. Meditações, p. 165. 454 “Le vrai est chose humaine, puisque je dois l’affimer pour qu’il existe. Avant mon jugement, qui est adhésion de ma volonté et engagement libre de mon être, il n’existe rien que des idées neutre et flottantes qui ne sont ni vraies ni fausses. Ainsi l’homme est-il l’être por qui la vérité apparaît dans le monde: sa tâche est de s’engager totalment pour que l’ordre naturel des existants devienne um ordre des vérité.”. SARTRE, J.-P. La liberté cartésienne, In: Idem, Situations, I, p. 292. 455 BEYSSADE, M. Op. Cit., p. 39.

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Deus”456, na ordem da contrução do conhecimento. Assim, a razão, senhora de

suas possibilidades e de seus limites, abre sua nova empreitada em busca do

conhecimento da terceira verdade: a existência do mundo. No primeiro capítulo

deste trabalho, mostrou-se como a razão, depois de conhecer a si mesma, volta-

se, regida unicamente pelo método, para o conhecimento do mundo. Aqui, ao

contrário, antes do conhecimento do mundo, a razão buscou conhecer e provar

a existência de Deus. Por que essa inversão foi necessária? Por que, antes da

física, a metafísica? Por que Deus se apresentou à razão, antes que o mundo se

apresentasse? Porque, aqui, Descartes está buscando a base metafísica para

sustentar e garantir a física, isto é, a física e as ciências mais particulares; está

buscando conquistar uma verdade não contingente, através da qual possa

garantir o conhecimento verdadeiro de um mundo contingente. Aqui, o

processo se inverte: Deus antecede e garante a ordem do conhecimento da

verdade; se no plano do conhecimento o cogito se mostra auto-suficiente, no

plano do ser, o cogito subordina-se a Deus, pois só ele é capaz de ser

absolutamente princípio. Através dessa dupla ordem entre o imperfeito e o

perfeito, entre a carência do ser do sujeito e a plenitude do ser de Deus,

Descartes faz a transição entre a autonomia solitária do cogito e Deus,

subordinando o primeiro ao segundo, bem como prepara a transição para o

mundo que, até o presente momento, ainda espera para ter a sua própria

existência conhecida. Essa inversão ontológica, do infinito em relação ao finito,

possibilita a Descartes contemplar uma base metafísica para todo o seu sistema.

Isto porque, sendo o infinito anterior ao finito, o infinito, Deus, passa a ser, no

racionalismo cartesiano, o verdadeiro princípio, ao qual toda a ordem

456 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 62.

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epistemológica se subordinará457. Este primeiro princípio, Deus, não só

antecede ao eu, mas garante todas as verdades claras e distintas, que este eu

possa produzir458. “E, certamente, não pode haver outra [causa das falsidades e

dos erros] além daquela que expliquei; pois, todas as vezes que retenho minha

vontade nos limites de meu conhecimento, de tal modo que ela não formule

juízo algum senão a respeito das coisas que lhe são claras e distintamente

representadas pelo entendimento, não pode ocorrer que eu me engane; porque

toda concepção clara e distinta é sem dúvida algo de real e de positivo, e

portanto não pode ter sua origem no nada, mas deve ter necessariamente Deus

como seu autor. Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito, não pode ser a

causa de erro algum; e por conseguinte é preciso concluir que uma tal

concepção ou um tal juízo é verdadeiro”459. Deus torna-se o legitimador das

idéias claras e distintas, logo, torna-se o grande legitimador das verdades que

fundamentam e justificam os primeiros princípios da ciência. A ciência

encontra em Deus, em última instância, seus fundamentos metafísicos. O

cogito, regido unicamente pelo método, obedecendo aos princípios de clareza e

distinção, conhece a verdade, mas, sendo dotado de uma natureza finita,

imperfeita, subordina-se a Deus que, na sua infinita perfeição, não o engana,

para, nele, encontrar a garantia definitiva daquelas verdades que foram clara e

distintamente alcançadas pela razão natural460. Enfim, chega-se onde

457 “Assim se instaura uma verdadeira dialética ascendente, em que o ser limitado do ego pensante se subordina ao ser infinito, o único capaz de ser absolutamente princípio”. RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, p. 42. 458 Antes mesmo das Meditações, já no Discurso do Método, Descartes apresenta Deus como ser que garante todas as idéias claras e distintas, a base ou a mola propulsora de toda sua metafísica; “...aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que conecebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo que existe em nós vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provinientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeira”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 72. 462 DESCARTES, R. Meditações, p. 169. Descartes utiliza uma distinção tradicional, de origem aristotélica, entre o primeiro para nós e o primeiro em si. 460 Pode parecer que Descartes esteja raciocinando em círculo. A razão, na autonomia do método, conhece clara e distintamente todas as verdades, inclusive aquela que se refere à existência de Deus; em seguida, a própria

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verdadeiramente Descartes queria: Deus existe, não é enganador e garante

todos os conhecimentos claros e distintos. Estabelece-se, assim, uma base

metafísica sobre a qual assentarão todas as conquistas do espírito, toda a

ciência humana. Deus não cria a verdade, esta é de responsabilidade do

espírito, mas torna-se seu abonador e fiador. Agora a ciência é possível, o

espírito encontra em Deus a garantia de que, agindo em obediência às regras do

método, pode conhecer a verdade sobre todas as coisas; isto é, pode, com

segurança, abandonar o refúgio de sua subjetividade, sua silenciosa

interioridade, e lançar-se em busca do conhecimento do mundo. Se Descartes

buscava um princípio através do qual fosse possível legitimar as conquistas da

nova ciência, ciência de Copérnico, de Galileu e dele próprio, acaba de

encontrá-lo: Deus é este verdadeiro princípio. Deus torna-se, em última

instância, o grande legitimador da ciência cartesiana, aquele, do qual depende

toda a verdade da verdadeira ciência461. Pode parecer estranho que uma razão

que sempre buscou pautar-se na odem da luz natural para construir a ordem de

todo saber verdadeiro venha, ao fim e ao cabo, legitimar-se fora de si mesma,

em uma instância que, por sua própria natureza, ultrapassa ao conhecimento

humano. Essa estranheza será assunto da segunda parte deste capítulo; por

enquanto deve-se deixar a metafísica cartesiana seguir seu livre vôo sem

interferir no seu percurso.

Apesar de todas as verdades indubitáveis obtidas até agora – eu existo, Deus

existe, Deus não pode ser enganador, Deus garante todas as idéias claras e razão, que conquistou a sua segunda verdade: Deus existe, tem que recorrrer a Deus para nele validar o estatudo de verdade das idéias claras e distintas. Na segunda parte deste capítulo, este assunto será retomado, apresentando as críticas feitas a Descartes sobre essa questão, bem como a forma como se posiciona em relação a essas críticas. 461 Cf. DESCARTES, R. Meditações, p. 179.

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distintas –, Descartes ainda não tem, sobre o mundo, nenhum conhecimento

claro e distinto; sequer tem certeza de sua existência. Se no primeiro momento

o mundo foi conquistado pela ciência462, nesse segundo momento, o conteúdo

da ciência ainda não se apresentou, o mundo ainda não se fez presente ao

espírito. Até agora, só o espírito se afirmou como condição e possibilidade dos

conhecimentos derivados unicamente de sua própria interioridade; o espírito

encontra-se ainda no campo restrito à metafísica, encontra-se ainda construindo

as bases metafísicas que possibilitem e justifiquem os primeiros fundamentos

de todos os conhecimentos, inclusive e, principalmente, os da ciência. Mas, é

chegada a hora de iniciar essa passagem do eu ao mundo. Tendo já conquistado

um saber verdadeiro sobre o eu e sobre Deus, busca-se, também, um

conhecimento verdadeiro sobre o mundo, sendo essa, afinal de contas, a

verdadeira intenção de Descartes: conquistar o mundo, subordinando-o as

necessidades humanas; o alívio do trabalho cansativo, das doenças e do

comportamento inadequado. É possível encontrar sobre o mundo uma verdade

tão indubitável quanto aquela que foi encontrada sobre a existência do sujeito

pensante e sobre a existência de Deus? Ainda não é possível responder a essa

pergunta, pois é preciso perguntar ao próprio mundo sobre sua existência, isto

é, perguntar qual é sua essência. Para Descartes, o mundo é constituído, em sua

essência, de extensão e movimento, todo ele subordinado às leis da física e da

geometria, ou seja, de uma física-geométrica. No primeiro capítulo deste

trabalho procurou-se mostrar que a ciência cartesiana não precisaria de Deus

para se justificar. No entanto, embora o sujeito pensante tivesse conhecimento

do mundo, faltava-lhe a garantia da correspondência entre o que pensa sobre o

mundo e o que o mundo é em si mesmo. É preciso saber se as idéias sobre o

462 Cf. todo o primeiro capítulo.

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mundo correspondem ao mundo tal qual é em si mesmo. Todas as verdades

conquistadas, mesmo sendo absolutamente verdadeiras, ainda não são

suficientes para garantir essa correspondência entre as idéias e o mundo, ainda

não são suficientes para justificar e legitimar um conhecimento verdadeiro do

mundo. A imperfeição da natureza humana impõe um limite último ao

conhecimento que o sujeito tem das coisas. Descartes ainda se encontra no puro

campo da subjetividade, no puro campo da sua própria interioridade; é preciso

ultrapassar esse limite, é preciso escapar de um possível solipsismo463, e isso só

será possível quando for estabelecida uma base sólida de conhecimento que

relacione as idéias e o mundo, que estabeleça um vínculo entre o mundo

subjetivo e o mundo objetivo, entre a realidade congnoscente do sujeito e a

realidade física do mundo. Para obter êxito nesta empreitada, Descartes vai em

busca, mais uma vez, de uma prova da existência de Deus. Através dessa nova

prova, Descartes pode obter dois ganhos fundamentais para sua metafísica: 1º:

provar que existe um mundo físico para além da subjetividade do cogito; 2º:

depois de provar a existência deste mundo, subordiná-lo aos ditames do

cogito464. Essa última prova, não é mais uma prova que se afirma a partir da

imperfeição do espírito, da contigência do sujeito pensante, nem tampouco da

idéia de Deus que existe no sujeito que o pensa; é uma prova que parte da

própria natureza de Deus, de sua essência, que, segundo Descartes, envolve,

463 Não se pode negar que as duas provas, sobre a existência de Deus, que antecede à prova ontológica, são as primeiras tentativas elaboradas por Descartes para encontrar uma saída, para não permanecer numa pura subjetividade ou um possível solipsismo. Cf. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 226. Apesar de o próprio Descartes reconhecer que a prova Ontológica é a mais eficiente, melhor, a única que verdadeiramente prova a exitência de Deus. Cf. DESCARTES, R. Meditações - respostas às Quartas Objeções, Alq., II, p. 681; AT., IX, p. 184. 464 “Tendo chegado ao ponto de ter provado a existência de Deus, o discurso de Descartes quase se trasforma: toda a realidade que havia posto em dúvida readquire veracidade, porque Deus é a garantia da verdade humana, da veracidade dos nossos juízos desde que formulados de acordo com o método da clareza e da distinção. Deus é a garantia da própria correspondência entre coisas sensíveis, realidades materiais e idéias com as quais pensamos tais coisas materiais e sensíveis, porque Deus não pode me enganar. A hipótese do gênio maligno é hipótese falsificada”. TOMATIS, F. O argumento ontológico – a existência de Deus de Anselmo a Schelling, p. 49.

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necessariamente, a própria existência deste. É o resultado desta nova prova que

irá possibilitar a Descartes um verdadeiro fundamento metafísico para a

ciência465. Quando a ciência bastava a Descartes, ele conquistou, regido pelo

princípio de clareza e distinção, a ordem do mundo, que é constituido

unicamente de extensão e movimento; agora, no plano metafísico, onde a

ciência por si só não basta, onde se busca o primeiro princípio, pergunta

Descartes se não é possível, seguindo o mesmo caminho, o das essências,

encontrar uma outra prova da existência de Deus: “... se do simples fato de que

posso tirar do meu pensamento a idéia de alguma coisa segue-se que tudo

quanto reconheço pertencer clara e distintamente a esta coisa pertence-lhe de

fato, não posso tirar disto um argumento e uma prova demonstrativa da

existência de Deus?”466. Ao responder essa pergunta, Descartes apresenta a

terceira e última prova da existência de Deus: a prova, denominada ontológica

por Kant467. Prova onde, a partir da essência de Deus, sua existência é

465 “E, com esta última [a prova ontológica], completa-se a passagem da esfera da minha ciência para a esfera da verdade das coisas, ou seja, a esfera da ciência”. KOBAYASHI, M. Op. Cit., p. 73. 466 DESCARTES, R. Meditações, p. 172. 467 Segundo Kant, tendo como referência o “argumento ontológico”, não é possível provar a existência de Deus, isto porque: “o conceito de um ser absolutamente necessário é um conceito puro da razão, isto é, uma simples idéia, cuja realidade objetiva está ainda longe de ser provada pelo fato de a razão necessitar dela e que, aliás, não faz outra coisa que não seja indicar-nos uma certa perfeição inacessível, e que serve, na verdade, mais para limitar o entendimento do que para o estender a novos objetos”. O erro desse argumento, segundo Kant, é que, abstraindo-se de toda a experiência possível, infere-se a existência de Deus de forma a priori, apenas derivando-a de puros conceitos, de juízos puramente analíticos. A partir de juízos analíticos, fala-se de algo que esta fora dos limites desses juízos, estendendo-os para além do nosso entendimento. “Toda proposição da geometria, como por exemplo, que um triângulo tem três ângulos, é absolutamente necessária e assim se falava de um objeto, que está totalmente fora da esfera do nosso entendimento, como se se compreendesse perfeitamente o que se quer dizer com o seu conceito”. “Todos os exemplos propostos (no argumento ontológico) são, sem exceção, extraídos unicamente de juízos, mas não de coisas e da sua existência”. Continua Kant: “O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil sob diversos aspectos; mas, precisamente porque é simplesmente uma idéia, é totalmente incapaz, por si só, de alargar o nosso conhecimento, relativo ao que existe”. Isso porque, o argumento ontológico, acaba abstraindo-se de toda e qualquer experiência e construindo uma prova sobre a existência de Deus a partir de puros conceitos, ou seja, abandonam-se, nesse argumento, todos os juízos sintéticos e, a priori, a partir de juízos puramente analíticos, prova-se a existência de Deus. Conclui Kant: “Por conseguinte, em vão se dispendeu esforços e canseira com a célebre prova ontológica [cartesiana] da existência de um Ser supremo a partir de conceitos, e assim como um mercador não aumenta a sua fortuna se acrescentar uns zeros ao seu livro caixa para aumentar o seu pecúlio, assim também ninguém pode enriquecer os seus conhecimentos mediante simples idéias”. KANT, E. Crítica da razão pura, dialética transcendental, livro II, capítulo III, 4ª seção, p. 500-507.

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justificada como necessária. Esta prova, que se encontra no Discurso do

Método468, nas Meditações e nos Princípios da Filosofia469, aqui só será

apresentada tal como consta nas Meditações470: “É certo que não encontro

menos em mim sua idéia [de Deus], isto é, a idéia de um ser soberanamente

perfeito, do que a idéia de qualquer figura ou de qualquer número que seja. E

não reconheço menos clara e distintamente que uma existência atual e eterna

pertence à sua natureza do que reconheço que tudo quanto posso demonstrar de

qualquer figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à natureza

dessa figura ou desse número”471. Descartes reconhece nesta prova, por ele

denominada de prova pela causa eficiente, a única, entre as três provas da

existência de Deus, verdadeiramente capaz de provar que Deus existe: “Et je

pense qu’il est manifeste à tout le monde que la considération de la cause

efficiente est le premier et principal moyen, pour ne pas dire le seul et

l’unique, que nous ayons pour prouver l’existence de Dieu”472. Segundo Gilson,

468 Formulação da prova Ontológica no Discurso do Método: “... notei também que nada havia nelas [nas demonstrações geométricas] que me assegurasse a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu via muito bem que, supondo um triângulo, cumpria que seus três ângulos fossem iguais a dois retos; mas, apesar disso, nada via que garantisse haver no mundo qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma forma como na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou mesmo ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer demonstração de geometria”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 70. 469 Formulação da prova Ontológica nos Princípios da Filosofia: “Quando posteriormente o pensamento passa em revista as diversas idéias ou noções que estão em si aí encontra a noção de um ser omnisciente, todo poderoso e extremamente perfeito (e facilmente julga, através do que apreende que tal idéia, que Deus, que é esse Ser todo perfeito, é ou existe; com efeito, embora o pensamento possua distintamente idéias de muitas outras coisas, não encontra nada que o certifique da existência do seu objeto) e observa nessa idéia não-somente uma existência possível, como nas outras, mas absolutamente necessária e eterna. E como vê que na idéia que faz do triângulo se encontra compreendido que os seus três ângulos são iguais a dois retos, da mesma maneira e só pelo fato de se aperceber de que a existência necessária e eterna está compreendida na idéia de um Ser perfeito, deve concluir que um tal Ser, todo perfeito, é ou existe”. DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, I, art. 14, p. 32. 470 “Cette preuve, qui ne vient qu’en dernier lieu, dans les Méditations, et qui n’est qu’indiquée dans le Discours de la Méthode, est mise en première ligne dans les Principes où Descartes s’adresse plus particulièremente aux doctes et à l’École”. BOUILLIER, F. Op. Cit., I, p. 95. 471 DESCARTES, R. Meditações, p. 172. 472 Idem, Meditações – respostas às Quartas Objeções, Alq., II, p. 681; AT., IX, p. 184. Descartes estende, analogicamente, a idéia corrente de causa eficiente para aplicá-la a Deus em relação a si mesmo: ele é o único

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essa terceira prova da existência de Deus nasce no momento em que Descartes

“começa a examinar a idéia de extensão, a fim de definir a natureza das coisas

exteriores; mas ao seu pensamento impõe-se uma comparação entre as idéias

geométricas e a idéia de Deus, e sugere-lhe uma segunda prova473 da existência

de Deus: pode conceber-se claramente uma figura geométrica sem conceber

que o seu objeto exista; não se pode conceber claramente a idéia de Deus sem a

conceber como existente; logo, é evidente que Deus existe. É o que se chama,

segundo Kant, o argumento ontológico, porque conclui da idéia de Deus para a

sua existência”474.

Antes de Descartes, foi santo Anselmo (1033-1109) quem primeiro elaborou

uma prova da existência de Deus, partindo da noção do “id quo majus cogitari

non potest”, que é Deus475. Descartes não reconhece nenhuma semelhança

entre sua prova e aquela elaborada por santo Anselmo; chega mesmo a dizer,

que no tempo em que elaborava sua prova, sequer conhecia o pensamento de

santo Anselmo. Ferrenha discussão tem sido travada para saber se Descartes,

verdadeiramente, tomou como ponto de partida, na elaboração de sua prova, a

prova de Anselmo, ou se, de fato, existe, entre ambas, uma total

independência476. Eis uma grande querela sobre a qual não cabe aqui maiores

que se põe na existência (é o Ser positivamente). Ver a respeito GILSON, E. Texte et commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la méthode, p. 351. 473 Gilson está se referindo, aqui, à 2º prova sobre a existência de Deus, que, no Discurso do Método, se apresenta como a segunda das três provas, entetanto, nas Meditações, esta mesma prova (prova ontológica) é apresentada como a última das três provas elaboradas por Descartes para provar a existência de Deus. 474 GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 78, nota 32. 475 Cf. Santo Anselmo, Proslógico, col. Os Pensadores, p. 95-140. 476 “La plupart des historiens de la philosophie ont remarqué l'analogie qui existe au fond, malgré la diversité des tours et des formes, entre cet argument et celui de saint Anselme, dans le Proslogium. Huet et Leibniz ont même accusé Descartes d'avoir, de propos délibéré, commis un véritable larcin au détriment de saint Anselme. Quant à nous, il nous semble probable que ne connaissant pas saint Augustin, encore moins connaissait-il saint Anselme, si ce n'est peut-être bien vaguement par les objections de saint Thomas, et l'enseignement philosophique de La Flèche. Nous croyons donc qu'il n'y a rien à reprocher à Descartes, à l'égard de la bonne foi, s'il faut lui ôter

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desenvolvimentos. A estrutura lógica da prova cartesiana poderia ser

apresentada como segue. Segundo Descartes, uma prova da existência de Deus

deve se apresentar ao espírito com a mesma força e certeza que as verdades

matemáticas. Isto porque, tanto a verdade sobre Deus como as verdades

matemáticas, fundamentam-se no mesmo critério de clareza e distinção.

Diferentemente de toda a filosofia que o antecedeu, em Descartes a afirmação

da existência de Deus – se ele existir de fato, ou seja, se existir na realidade,

fora do próprio pensamento, coisa que ainda não se sabe de forma conclusiva –

é a razão que deverá estabelecê-la, garantida unicamente pelos princípios da

clareza e da distinção, que regeram todas as conquiatas da matemática e que

deverão orientá-la na busca de um fundamento racional para provar a existência

de Deus: “portanto, ainda que tudo o que concluí nas Meditações anteriores não

fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em

meu espírito ao menos como tão certa quanto considerei até agora todas as

verdades das Matemáticas, que se referem apenas aos números e às figuras”477.

É tendo como referência as essências matemáticas que Descartes vai buscar a

existência de Deus e, partindo da essência deste, irá provar que, de fato, Deus

existe. Segundo Descartes, em Deus, essência e existência são pensadas como

uma única unidade lógica; a presença de uma implicando, necessariamente, a

presença da outra; esses dois conceitos não podem ser pensados, por um

impedimento lógico, separadamente: “verifico claramente que a existência não

pode ser separada da essência de Deus, tanto quanto da essência de um

triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais

a dois retos ou, da idéia de uma montanha, a idéia de um vale”478. É tão absurdo

quelque chose en fait d'originalité. Mais ce qui importe surtout, c'est d'apprécier la valeur de ce nouvel argu-ment”. BOUILLIER, F. Op. Cit., I, p. 94-95. 477 DESCARTES, R. Meditações, p. 173. 478 Idem, Ibidem.

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pensar Deus sem uma existência necessária, quanto pensar uma montanha sem

vale ou um triângulo sem que a soma de seus três ângulos seja 180 graus. A

idéia de montanha implica a idéia de vale; a idéia de triângulo implica que a

grandeza total de seus três ângulos seja igual a dois ângulos retos; a idéia de

Deus implica sua existência. Entretanto, apesar dessa implicação necessária

entre essência e existência no que diz respeito a Deus e entre a noção de uma

figura geométrica e suas propriedades, há que se fazer uma distinção. No que

diz respeito às essências matemáticas, a implicação é puramente lógica, o que

significa dizer que o espírito não pode pensar um triângulo sem os seus três

ângulos correspondentes, ou uma montanha sem vale, mas isso não implica a

necessidade da existência real, nada determina que a existência dessas verdades

pensadas corresponda à realidade de fato. Portanto, esses entes matemáticos

não impõem uma necessidade de existência real. O fato de o pensamento

pensar montanhas e vales, não implica nenhuma necessidade de que existam,

de fato, montanhas ou vales, só implica que, enquanto são pensados, montanhas

e vales, triângulo e seus ângulos correspondentes, não podem ser pensados

separadamente. Não se deve esquecer que Descartes está em busca de uma

prova que garanta a existência real de Deus e não uma existência na ordem do

puro pensamento, como é o caso da existência dos entes matemáticos, onde o

pensamento basta para garantir sua existência lógica: “meu pensamento não

impõe necessidade alguma às coisas”479. O sujeito pensante é livre para

imaginar um cavalo alado, “ainda que não haja nenhum que disponha de

asas”480. Essa mesma liberdade não tem o pensamento quando pensa Deus. O

pensamento não é livre para pensar Deus sem uma existência real. A existência

real de Deus se impõe ao pensamento como necessária; não estando no espírito

479 Idem, p. 174. 480 Idem, ibidem.

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o poder de conceber Deus sem uma existência necessária, como está nele o

poder de imaginar um cavalo alado, ou montanhas e vales, sem a necessidade

de uma existência real. É uma prova suficiente para demostrar que Deus existe

o fato do sujeito não poder concebê-lo sem uma existência real e necessesária:

“do simples fato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a

existência lhe é inseparável, e, portanto, que Deus existe verdadeiramente”481.

Assim, a partir da idéia de Deus, que existe no sujeito pensante, Descartes

prova a existência necessária de Deus fora do sujeito pensante482. Como

conseqüência, a metafísica cartesiana acaba de conquistar, de forma plena, sua

segunda verdade: Deus existe. A força dessa última verdade, conquistada pelo

cogito, se mostra tão evidente que acaba por se impor ao pensamento sem que o

pensamento tenha liberdade de afimá-la ou negá-la. Não está no poder do

pensamento impor a necessidade da existência real de Deus, mas, segundo

Descartes, é o próprio Deus que impõe ao pensamento que assim o pense, ou

seja, a existência de Deus se impõe ao pensamento de tal forma que o próprio

pensamento está impedido de não pensá-lo como existente: “não que meu

pensamento possa fazer que isso seja assim, e que imponha às coisas qualquer

necessidade; mas, ao contrário, porque a necessidade da própria coisa, a saber,

da existência de Deus, determina o meu pensamento a concebê-lo dessa

maneira”483. Essa existência real de Deus é fundamental para o próprio

481 Idem, ibidem. 482 Diferentemente da metafísica que o antecedeu, que partindo das coisas sensíveis ou de uma “intuição do princípio divino” ascende à idéia de um Deus perfeito, em Descartes, inverte-se esse processo: é através da essência, ou seja, da ordem das representações do espírito, que se chega à idéia ou à prova de que Deus existe: “dans l’École, l’affirmation de l’existence de Dieu emprunte toute sa certitude à celle des choses sensibles, d’où l’on remonte jusqu’à lui comme d’un effet à une cause; par une voie inverse, le néoplatonisme part d’une intuition du principe divin, pour aller de Dieu, comme cause, aux choses, comme effets de cette cause. Il semble y auvoir là une alternative, à laquelle la pensée de Descartes échappe pourtant; et les deux premières démarches de sa métaphysique font voir l’impossibilité de l’une et l’autre de ces voies: le doute méthodique, en montrant qu’il n’y a aucune certitude dans les choses sensibles ni même dans les choses mathématiques, empêche d’aller des choses à Dieu; la théorie des vérités éternelles interdit de dériver l’essence des choses, de Dieu comme modèle”. BRÉHIER, E. Op. Cit., p. 66. 483 DESCARTES, R. Meditações, p. 174.

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progresso da metafísica cartesiana. Assim, Descartes prova que existe algo real

para além da singularidade do cogito. Não é um “algo” real qualquer, mas Deus

que, no seu superlativo de perfeições, garante todas as verdades que

possibilitam a transição entre o pensamento e o mundo, sobre o qual o sujeito

pensante ainda não tem um conhecimento claro e distinto de sua existencial

real. Não é demais lembrar que, sobre o mundo, o sujeito só tem um

conhecimento das suas essências, ou seja, um conhecimento matemático, mas

esse conhecimento não implica a necessidade de uma existência real do mundo

para além do próprio pensamento. Só com a conquista definitiva sobre a

existência de Deus, o mundo adquire possibilidade de existência real. Se a

verdade do mundo é uma conquista da razão, só o é, porque Deus a garante.

Sem esta última prova, o espírito jamais poderia ter garantia de seus

conhecimentos, nunca podería ter certeza de que aquilo que o pensamento

pensa sobre o mundo, corresponde, verdadeiramente, ao mundo tal qual ele é

em si mesmo484. Isto porque, só depois que o sujeito conquista a verdade clara e

distinta sobre a existência de Deus pode encontrar, nesse Deus conquistado a

partir do cogito, a garantia das idéias claras e distintas, através das quais o

espírito, seguro de que Deus não o engana e as garante, pode sair de si mesmo e

partir para a conquista da sua terceira verdade: “a existência das coisas

materiais”485. Já no Discurso do Método, onde ainda se encontra ausente a

dúvida hiperbólica, portanto, onde a metafísica ainda não se apresentou de

forma plena, Descartes coloca no eixo central de sua metafísica as idéias claras

e distintas que garantem um conhecimento verdadeiro de Deus; Deus, na sua

infinita perfeição, garante todos os conhecimentos claros e distintos, através

dos quais o espírito lança-se para o conhecimento verdadeiro de todas as coisas: 484 “A física de Descartes deve ser verdadeira, não apenas na medida em que é matemática, mas na medida em que corresponde à matéria”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 104. 485 DESCARTES, R. Meditações, p. 178.

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“em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que

as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras,

não é certo senão porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o

que existe em nós nos vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou

noções, sendo coisas reais, e provinientes de Deus em tudo em que são claras e

distintas, só podem por isso ser verdadeiras”486. A conquista de um

conhecimento verdadeiro sobre Deus confirma, em Descartes, a certeza de ter

encontrado a primeira ciência verdadeira, a primeira ciência indubitável,

portanto, a única capaz de se tornar ciência das outras ciências, melhor, a

ciência originária das outras ciências, aquela que se afirma como condição e

possibilidade de garantia do conhecimento verdadeiro de todas as outras

ciências. Sobre essa verdade primordial, segundo Descartes, nenhuma objeção

poderá ser feita, porque, a própria ordem lógica da razão conduz à sua

conquista, portanto, qualquer objeção que venha a ser feita já nasce condenada

ao insucesso487. Só o verdadeiro conhecimento de Deus, possibilita um

conhecimento verdadeiro de todas as outras coisas. Antes de ter conquistado

essa verdade primordial, o espírito não tem como ter acesso, de forma segura e

certa, a nenhum conhecimento verdadeiro: “assim, reconheço muito claramente

486 Idem, Discurso do Método, p. 72. 487 “Mas, após ter reconhecido haver um Deus, porque ao mesmo tempo reconheci também que todas as coisas dependem dele e que ele não é enganador, e que, em seguida a isso, julguei que tudo quanto concebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro: ainda que não mais pense nas razões pelas quais julguei tal ser verdadeiro, desde que me lembre de tê-lo compreendido clara e distintamente, ninguém pode apresentar-me razão contrária alguma que me faça jamais colocá-lo em dúvida; e, assim, tenho dele uma ciência verdadeira. E esta mesma ciência se estende a todas as outras coisas que me lembro ter outrora demonstrado, como as verdades da Geometria e outras semelhantes: pois, que poderão objetar, para obrigar-me a colocá-las em dúvida? Dir-me-ão que minha natureza é tal que sou muito sujeito a enganar-me? Mas, já sei que me não posso enganar nos juízos cujas razões conheço claramente. Dirme-ão que outrora tive muitas coisas por verdadeiras e certas, as quais mais tarde reconheci serem falsas? Mas eu não havia conhecido claramente nem distintamente tais coisas e, não conhecendo ainda esta regra pela qual me certifico da verdade, era levado a acreditar nelas por razões que reconheci depois serem menos fortes do que então imaginara. O que mais poderão, pois, objetar-me. Que talvez eu durma (como eu mesmo me objetei acima) ou que todos os pensamentos que tenho atualmente não são mais verdadeiros do que os sonhos que imaginamos ao dormir? Mas, mesmo que estivesse dormindo, tudo que se apresenta a meu espírito com evidência é absolutametne verdadeiro...”. DESCARTES, R. Meditações, p. 177-178, (grifo nosso).

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que a certeza e a verdade de toda ciência depende do tão-só conheimento do

verdadeiro Deus: de sorte que, antes que eu o conhecesse, não podia saber

perfeitamente nenhuma outra coisa”488. Como conseqüência, antes dessa

conquista, o eu jamais poderia sair de si mesmo, de sua própria interioridade

para ir à busca de um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa que fosse

além do sítio de seu eu subjetivo, da interioridade de seu próprio pensamento.

Aí, no estrito território do “eu sou, eu existo”, a verdadeira ciência do que é

distinto deste eu, jamais seria possível. A conquista de Deus pelo cogito,

confirma a conquista de uma metafísica para a física. A ciência, em última

instância, encontra, em Deus, a garantia de verdade de todos os seus

enunciados. A metafísica impõe os primeiros princípios que sustentam e

justificam, dos fundamentos, até as últimas conseqüências, a ciência cartesiana.

Agora que o espírito tem certeza de que Deus existe, renova suas esperanças de

que, sobre o mundo, possa obter, também, um conhecimento tão verdadeiro

como o que foi obtido sobre a exitência de Deus e sobre as essências da

matemática. Se a luz natural mostrou-se tão eficiente na conquistas dessas

verdades, espera-se que ela mostre a mesma eficiência na conquista das

substâncias extensas, isto é, na conquista do mundo. Essa não é só uma

esperança, é quase uma certeza de Descartes: “Agora que o [a Deus] conheço

tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de

coisas, não somente das que existem nele, mas também das que pertencem à

natureza corpórea, na medida em que ela pode servir de objeto às demostrações

dos geômetras, os quais não se preocupam de modo algum com sua

existência”489. Eis a ordem da razão cartesiana: Eu, Deus e o mundo. Duas

verdades dessa ordem de razões (Deus e mundo) têm a sua origem na primeira

488 Idem, Meditações, p. 178. 489 Idem, ibidem.

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verdade, naquela verdade a partir da qual o eu afirma, antes de afirmar a

existência de Deus e do mundo, sua própria existência. Com a prova

ontológica, o cogito conquista Deus e abre-se para a conquista do mundo: “só

resta agora examinar se existem coisas materiais: e certamente ao menos já sei

que as pode haver, na medida em que são consideradas como objeto das

demonstrações de Geometria, visto que, dessa maneira, eu as concebo mui clara

e distintamente”. Inicia-se, aqui, a Sexta Meditação, na qual Descartes busca

demonstrar sua terceira verdade, o mundo existe, assim intitulada: “da

existência das coisas materiais e da distinção real entre a alma e o corpo do

homem”490. Pode-se dizer que a Sexta Meditação constitui a ciência cartesiana,

todas as cinco Meditações anteriores, sendo como que uma preparação para a

Sexta Meditação, a construção do solo metafísico sobre o qual se assentarão

todas as verdades da verdadeira ciência, ou seja, essas Meditações que

antecedem à Sexta Meditação constituem o substrato metafísico que sustenta os

primeiros princípios da física e das demais ciências491. Portanto, neste

momento, basta acrescentar à Quinta Meditação, todo o primeiro capítulo deste

trabalho, qual seja, a própria ciência cartesiana, aquela ciência em que, naquele

momento, Deus não se fazia necessário. Agora, depois da conquista da

metafísica, Deus se faz necessesário, isto é, torna-se o primeiro príncipio da

ciência. Assim, a ciência cartesiana, aquela que se coloca na trilha de

490 DESCARTES, R. Meditações, p. 178. 491 “... Descartes n’avait pu éprouver comme une question la réalité du monde extérieur, s’il n’avait d’abord compris comme une donnée de fond l’extériorité du monde réel”. MARION, J.-L. Sur la théologie blanche de Descartes, p. 259. “Deve-se notar que, nas Meditações, a problemática de Descartes não é de modo algum, como certos textos das Regulae poderiam sugerir, a do poder do espírito, mas quase que pelo contrário, a do reconhecimento do domínio que exercem o ser ou o verdadeiro não apenas sobre a alma (de que se trata exclusivamente nas cinco primeiras meditações) mas também sobre o homem, isto é, sobre o composto de alma e corpo (Meditação sexta). Trata-se de encontrar, pela luz natural e nas idéias do entendimento, essas essências ou naturezas imutáveis, postas no espírito por Deus, e garantidas por sua veracidade (Meditação terceira e quinta); de encontrar também, nos ensinamentos da natureza e no sentimento que é como que o seu testemunho, a instituição de uma ordem que regule as relações entre a alma e o corpo, por um lado, o homem e o mundo, por outro (Meditação sexta)”. GUENANCIA, P. Op. Cit., p. 93.

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Copérnico e de Galileu, a ciência mecanicista, encontra-se legitimada toda ela

em uma metafísica derivada da razão natural492. Se, na ordem do método,

instância de que dependem as conquistas da ciência cartesiana, a matemática é

suficiente para afirmar e garantir toda a ordem do saber, agora, depois da

metafísica, o próprio método, ou seja, toda a ordem matemática, da qual ele é

derivado, encontra em Deus o primeiro princípio legitimador de toda sua ordem

de verdade. Inverte-se a ordem, na ontologia cartesiana, Deus antecede,

possibilita e garante o conhecimento verdadeiro do eu e do mundo. Mesmo que

na ordem do método o eu seja anterior a Deus, na metafísica, na ontologia

cartesiana, Deus é anterior ao eu. Na “árvore do conhecimento”, a metafísica

torna-se a raiz que sustenta e alimenta o tronco, os ramos, as folhas e os frutos

de todo conhecimento humano: “Assim, toda a Filosofia é como uma árvore

cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os galhos que saem do tronco

são todas as outras ciências...”493.

O texto que serve como epígrafe deste capítulo, serve, também, como sua

conclusão. Pois, de certa forma, ele orientou todo o percurso feito até aqui, ou

melhor dizendo, orientou o próprio projeto cartesiano, realizado nas Meditações,

bem como nos Princípios da Filosofia, qual seja: o de construir uma física, na

qual se apoiam as ciências particulares, que tenha na metafísica todos os seus

fundamentos: “... je vous dirai, entre nous, que ces six Meditations contiennent

492 Porque Deus se faz tão necessário para a metafísica cartesiana? “Em primeiro lugar, Deus é necessário como garantia da existência do mundo material, porque, após a dúvida radical, a existência de todos os objetos materiais foi questionada; em segundo lugar, Deus também é a garantia para a confiabilidade das capacidades cognitivas humanas, porque, se nós humanos duvidamos radicalmente, também podemos pôr em dúvida que nós dispomos de uma confiável capacidade de pensamento; em terceiro lugar, [...], Deus também é necessário como garantia para existência de verdades lógicas e matemáticas, porque estas verdades não foram nem livremente inventadas pelos homens, nem fazem parte do mundo material”. PERLER, D. O projeto de uma refundamentação radical do saber, In: KREIMEMDAHL, L. (org.). Filósofos do século XVII, p. 110-111. 493 DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos princípios da filosofia, p. 21.

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tous fondements de ma physique”494. De fato, ao longo de toda a primeira parte

deste capítulo, o que se viu foi a consumação desse projeto cartesiano.

Entretanto, a citação feita acima ainda não é a mais adequada para concluir e

sintetizar todo o percurso feito por Descartes na efetivação de uma metafísica

que se contituísse como fundamento de toda ciência verdadeira. É na Carta-

Prefácio dos Princípios da Filosofia, que Descartes faz um resumo, claro e

distinto, de todo o percurso por ele realizado na efetivação de seu projeto

filosófico. A citação deste breve resumo, a título de conclusão da primeira

parte deste capítulo, justifica-se porque nele se encontra, em grandes linhas,

todo o movimento da razão cartesiana, que o levou, depois de uma longa

caminhada, a conquistar e estabelecer, de forma definitiva, os fundamentos

metafísicos de sua física:

“... aquele que quer duvidar de tudo não pode

todavia duvidar de que ele existe enquanto

dúvida e que aquele que assim raciocina, não

podendo duvidar de si mesmo, e duvidando

entretanto de todo o restante, não é o que

dizemos ser nosso corpo, mas o que

chamamos nossa alma ou nosso pensamento,

tomei o ser ou a existência desse pensamento

como o primeiro Princípio, do qual deduzi

clarissimamente os seguintes, a saber: há um

Deus que é autor de tudo o que há no mundo e

que, sendo a fonte de toda verdade, não criou

nosso intelecto de tal natureza que se possa

enganar no juízo que faz das coisas de que tem 494 Idem, Correspondência, Alq., II, p. 316-317; AT., III, p. 297-298.

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uma percepção muito clara e muito distinta.

Estão aí todos os Princípios de que me sirvo

no tocante as coisas imateriais ou Metafísicas,

dos quais deduzi clarissimamente os das coisas

corporais ou Físicas, a saber: há corpos

extensos em comprimento, largura e

profundidade, que tem diversas figuras e se

movem de diversas maneiras. Eis, em suma,

todos os Princípios de que deduzo a verdade

das outras coisas”495.

495 DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos princípios da filosofia, p. 15-16.

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SEGUNDA PARTE DO SEGUNDO CAPÍTULO

Percorrida a ordem das razões da metafísica cartesiana, cabe, agora, na segunda

parte deste capítulo, submeter a uma breve apreciação crítica, alguns momentos

da arquitetura lógica do sistema metafísico de Descartes, buscando saber até

que ponto o próprio sistema metafísico dá conta de problemas, às vezes

impasses lógicos, no interior de si mesmo e que a ele sobrevivem. Poderia

parecer uma arrogância, um excesso de pretensão querer questionar ou levantar

problemas lógicos, não satisfatoriamente solucionados, no interior de um

sistema filosófico de um autor da magnitude de Descartes. Não parece este tão

óbvio e coerente na construção do seu projeto filosófico, que não deixa espaço

para que se possa apontar qualquer erro ou mesmo fragilidade lógica na trama

conceitual que estabelece para fundamentar seu sistema e justificá-lo? Ora, em

filosofia, nada é óbvio, ou melhor, o que é óbvio, é o mais problemático. Certa

desconfiança sobre o óbvio é fundamental para o próprio progresso do

conhecimento humano496. “Quanto mais desconfiança, mais filosofia”497.

Justifica-se, assim, o olhar mais crítico que direciona a segunda parte deste

capítulo. Mesmo um pensador do porte de Descarte, não está livre de cometer

deslizes; poder-se-ia dizer que não é impossível encontrar fissuras no bloco de

496 Malebranche adverte como se deve ler Descartes: “Não é preciso de modo algum acreditar na sua palavra, mas lê-lo como ele próprio nos adverte, com precaução, examinando se nunca se enganou, e não acreditando em nada do que diz, senão no que a evidência e as observações secretas da nossa razão nos obrigarem a acreditar”. Apud, RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, p. 80. 497 NIETZSCHE, F. A gaia ciência, p. 239.

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seu projeto filosófico. O que, com certeza, não é nenhum demérito para o

meditador, pois ele próprio reconhece que a natureza humana é limitada,

portanto, sujeita ao erro498. Não seria justo para com o próprio Descartes,

colocá-lo fora do alcance de sua própria filosofia499. Toda filosofia ou pelo

menos algumas, não deixam de nascer com certa arrogância, a intenção inicial

de solucionar todos os problemas que, segundo elas, não foram solucionados, a

contento, pelas demais500. Assim foi Platão em relação aos sofistas e aos pré-

socráticos, Aristóteles, em relação aos sofistas e a Platão. A filosofia de

Descartes não está imune a esta pretensão, ele pretende, com sua filosofia,

superar, definitivamente, todo pensamento filosófico que o precedeu.

Presunção certamente destinada ao fracasso, como se pretendessem assumir, no

plano do conhecimento, o papel de Prometeu, ser o herói capaz de salvar a

humanidade das trevas da ignorância e do erro e reconduzi-la à luz501. 498 “É preciso confessar que a vida do homem está sujeita a falhar muito freqüentemente nas coisas particulares; e, enfim, é preciso reconhecer a imperfeição e a fraqueza de nossa natureza”. DESCARTES, R. Meditações, p. 199. 499 “Fora do progresso da explicação científica, o cartesianismo estava condenado a um dilema: ou o pôr em questão do ensino recebido descobria, com Malebranche, que Descartes sendo homem como os outros, poderia ter-se enganado, inclusivamente nos princípios, e era a ruptura com a escola; ou então, na aceitação inconstestada das bases do sistema, o lugar pertencia aos comentadores”. RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, p. 81. 500 “O metafísico clássico não pode escapar à tentação política. Possui o monopólio da verdade. De sua existência particular trasferiu-se para a essência universal e, em vista disso, possui o segredo que deve servir de lei para a humanidade inteira. Em acordo com o preceito do sábio, e por autoridade da razão, a prática deve estar sujeita à teoria. A vontade de poder do pensador que, no têrmo de sua experiência mental, pretende impor a toda humanidade a solução por ele encontrada, prolonga-se muito naturalmente num despotismo da razão. Como observava Jorge Sorel, dos intelectuais racionalistas, possuídos de intrépidos otimismo, saem, em tempo de revolução, os piores dos terroristas. Negar-se a ceder às exisgências deles equivale a desobedecer à própria verdade. Ainda bem que os homens de governo desconfiam dos filósofos, e, se de quando em quando consentem em que eles falem, pouca ou nenhuma atenção lhes prestam. De ordinário, o metafísico satisfaz-se com afirmar, no plano das idéias, sua pretensão ao poder absoluto, formulando a reinvindicação em termos da máxima clareza. Por vêzes os grandes filósofos começaram na humildade; mas, regra geral, acabam na segurança pontifical de um monopólio dententor de toda certeza”. GUSDORF, G. Tratado de metafísica, p. 53. “As relações de metafísico para metafísico quase sempre são relações de crítica e de refutação, não de gratidão e de amizade. Cada um puxa a verdade para junto de si e, depois de a ter confiscado para o seu uso, não admite que outros nela participem”. Idem, p. 158. 501 Vale a pena, relembrar a sátira que Erasmo de Rotterdam (1496 -1536) escreve sobre os filósofos. Depois de ter criticado os sofistas, chamando-os de “eternos discutidores”, escreve: “Seguem-lhes, imediatamente, os veneráveis filósofos, respeitáveis pela barba branca e pela túnica. Gabam-se de ser os únicos sábios e acreditam que todos os outros homens não passem de sombras móveis. Rasguemos esse véu de orgulho e de presunção, e vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouvi-los

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Descartes, que apesar de toda sua alardeada humildade, pois “nunca desejou

ensinar nada a ninguém”, buscou trazer para si a responsabilidade de re-fundar

a filosofia, de filosofar como se partisse do zero, como se ninguém, antes dele,

tivesse, verdadeiramente, filosofado. Ao assumir essa postura filosófica,

comportando-se como um novo Adão da filosofia, Descartes acabou deixando,

na arquitetura de seu projeto filosófico, problemas, mesmo impasses lógicos,

que não foram satisfatoriamente solucionados, cujas respostas não foram

suficientes para acalmar e silenciar as inquietudes dos intérpretes, ou mesmo

dos opositores. São esses problemas, que sobrevivem no interior de um

sistema filosófico, que fazem com que outros pensadores busquem encontrar

novas respostas, novas soluções, novo direcionamento para o caminhar da

razão. Assim, apesar dos Descartes, a filosofia segue o seu curso, alimentando-

se muito mais das perguntas que é capaz de fazer do que das respostas que é

capaz de oferecer. Além disso, não se deve esquecer, que toda filosofia é filha

do seu tempo, ela é forjada no interior de um tempo cultural determinado, que

condiciona suas respostas, que trazem assim as marcas do mesmo. Fora desse

tempo histórico, no qual ela foi engendrada, na maioria das vezes, poderia não

ter seu sentido pleno, poderia, no limite, não passar de um romance que narra

sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas, todos esses globos são por eles conhecidos tão bem como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio. Sem duvidar de nada, eles vos dizem a causa do trovão, dos ventos, dos eclipses e de todos os outros mistérios físicos. Na verdade, ao ouvi-los falar com tanta convicção, qualquer os julgaria membros do grande conselho dos deuses ou testemunhas oculares da natureza quando tudo saiu do nada. Mas, a despeito disso, a natureza, essa hábil produtora do universo, parece zombar das suas conjecturas. Basta, com efeito, refletir-se sobre a estranha diversidade dos seus sistemas, para se dever confessar que eles não têm nenhuma idéia segura, pois que, enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em nada. Os filósofos nem ao menos se conhecem, porquanto, ao tentarem elevar-se às mais sublimes especulações, caem num buraco com que não contavam e quebram a cabeça contra uma pedra. Estragando a vista na contemplação meticulosa da natureza e com o espírito sempre distante, vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, as matérias-primas, os quid, os esse, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince”. Erasmo de Rotterdam. Elogio da Loucura, Col. Os Pensadores, p. 94. Aqui, a memória nos convida a relembrar também o velho argumento: se tudo é incerto, também essa afirmação é incerta.

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as peripécias da razão em um passado longínquo502. Descartes também é um

filósofo de seu tempo, encarnado em um tempo histórico no qual assume o

papel de ser o timoneiro da razão, buscando conduzir o espírito humano em

direção a um novo modo de pensar. Ao fazê-lo, sua filosofia se desdobra para

atender às questões derivadas da efervescência cultural comum ao século

XVII503. Por isso, muitas vezes, encontra-se Descartes fazendo uma verdadeira

ginástica conceitual para justificar, no interior de seu sistema filosófico, temas

que nem sempre a ordem lógica do mesmo suporta sem levantar alguma

suspeição. Ao fim e ao cabo, o que se busca, aqui, é entender os limites desta

ordem lógica, as possíveis dificuldades enfrentadas por Descartes para fazer da

metafísica a base de sustentação da ciência mecanicista. O que teria levado

Descartes a buscar na metafísica os fundamentos para a ciência? Se a força

lógica do método é suficiente para garantir as verdades da ciência, se a lógica

da razão dá conta da lógica da realidade504, que necessidade teve Descartes de

ir buscar em Deus o fundamento metafísico para a ciência? Se a experiência

confirma o êxito e a auto-suficiência do método, como justificar que esse

mesmo método venha, mais tarde, a solicitar uma metafísica que lhe dê

legitimidade505? Além disso, não seria possível identificar e evidenciar

impasses lógicos enfrentados por Descartes na construção de sua metafísica,

bem como conseqüências desses impasses para a ordem do próprio sistema 502 Não se pretende descartar pura e simplesmente a análise interna de um sistema filosófico; é a própria análise seguindo a lógica interna que remete para o contexto extra-textual. Cf. CHÂTELET, F. A questão da história da filosofia hoje. In: GRISONI, D. (Org.). Políticas da filosofia, p. 32-42. 503 “O Descartes dos diálogos, ainda hoje tão atuais como em seu tempo, não é um cidadão do universo do discurso. Enquadra-se perfeitamente na época em que viveu como súdito leal do rei Luís XIII, como amigo de Guez de Balzac e de Mersenne, certamente como peregrino do santuário de Loreto, como diretor leigo de Isabel, como explicador de Cristina e como contemporâneo muito contrariado da condenação de Galileu. Não se deve exigir da obra o segredo do homem, nem do homem o segredo da obra, porque o segredo não se encontra nem de um lado nem do outro, mas sim no movimento que liga ambos os lados, da mutualidade da obra e da vida”. GUSDORF, G. Op. Cit., p. 15, (grifo nosso). 504 Cf. todo o primeiro capítulo deste trabalho. 505 É exatamente o êxito da correspondência entre a teoria e a prática de sua filosofia que enche Descartes de orgulho, como fica claro na carta que ele escreve a Fromondus, defendendo-se da acusação que este lhe faz de ter escrito uma filosofia tosca. Cf. nota 256.

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filosófico? Todos esses questionamentos visam responder a uma pergunta que

direciona e orienta o conjunto deste capítulo, qual seja: a presença de Deus na

filosofia cartesiana compromete a autonomia da razão? É, verdadeiramente, a

razão que se encontra subordinada a Deus ou é Deus que se encontra

subordinado à razão? Responder a tais questões implica reconhecer a

possibilidade e os limites da presença de Deus na filosofia de Descartes.

Desde logo, é preciso dizer: o problema de Descartes não é um problema

religioso, mas sim um problema filosófico. De uma forma quase irônica, ele

mesmo diz que apesar de reverenciar a teologia para ela não se voltará, pois

reconhece que esta se encontra fora do alcance da razão humana; portanto, para

conhecê-la é preciso ter assistência do céu e, para tanto, é preciso ser mais do

que humano. Isso, além de ser uma legítima delimitação do tema de estudo

(subjecta na terminologia medieval), pode também conter uma refinada ironia.

O que Descartes está dizendo é que sua filosofia não está preocupada em dar

conta de questões que não dependam da ordem natural da razão, que toda sua

filosofia está voltada para compreender a ordem do conhecimento no limite do

humano, no limite da razão natural. Escreve Descartes: “Eu reverenciava a

nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo

aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto

aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que

para lá conduzem estão acima de nossa inteligência, não ousaria submetê-as à

fraqueza de meus raciocínios, e pensava que, para empreender o seu exame e

lograr êxito, era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser

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mais do que homem”506. Assim, Descartes distingue cuidadosamente o campo

da razão do campo da fé, separa o saber filosófico do saber religioso e

estabelece um limite para o exercício do saber teológico ao dizer que os

teólogos (isto é, os teólogos escolásticos) erram ao buscar tratar a revelação

com os recursos da razão escolástica, através da qual buscam tematizá-la e

esclarecê-la507. Entretanto, apesar de ter estabelecido a distinção entre essas

duas formas de saber, Descartes, nas Meditações e mais especificamente, na

carta dirigida aos Doutos da Sorbone, coloca sua filosofia a serviço da própria

fé, considerando, no campo da filosofia, temas tradicionalmente conhecidos

como “preâmbulos da fé”, isto é, a existência de Deus e a imortalidade da alma.

Chega a dizer que sua filosofia é a que melhor se apresenta para compreender

esses temas teológicos e, mais ainda, é a única à qual a Igreja pode, apoiando-

se na razão natural, recorrer para combater os incrédulos que põem em risco os

valores mais caros à religião: “Sempre estimei que estas duas questões [Deus e

a imortalidade da alma], eram as principais entre as que devem ser

demonstradas mais pela razão da Filosofia que da Teologia: pois, embora seja

suficiente, a nós outros que somos fiéis, acreditar pela fé que há um Deus e que

a alma humana não morre com o corpo, certamente não parece possível poder

jamais persuadir os infiéis de religião alguma, nem quase mesmo de qualquer

virtude moral, se primeiramente não se lhes provarem essas duas coisas pela

razão natural”508. Descartes vai mais longe, na tentativa de ter os teólogos da

Sorbone como aliados de sua filosofia: chega a dizer que ela está plenamente

de acordo com os ensinamentos das Sagradas Escrituras, portanto, de acordo

506 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46. Sobre esse assunto, ver as anotações esclarecedoras de Étienne Gilson, Discours, p. 132-135. 507 “Cette Théologie-là a nom Théologie positive. Elle se borne à rechercher et à classer, sans y rien mettre de son chef, l’enseignement de la Révélation, tel qu’il est contenu dans les écrits des Pères de l’Église, et dans les décrets des Conciles et des Papes”. LAPORTE, J. Le rationalisme de Descartes, p. 335. 508 DESCARTES, R. Meditações, p. 105.

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com os fundamentos da religião cristã: “E, na verdade, cuidei que vós outros,

Senhores, com todos os teólogos, não somente assegurais que a existência de

Deus pode ser provada pela razão natural, mas também que se infere da Santa

Escritura que o seu conhecimento é muito mais claro do que o que se tem de

muitas coisas criadas e que, com efeito, esse conhecimento é tão fácil que os

que não o possuem são culpados. Como é patente nestas palavras da Sabedoria,

capítulo 13, onde é dito que a ignorância deles não é perdoável: pois se seu

espírito penetrou tão a fundo no conhecimento das coisas do mundo, como é

possível que não tenham encontrado mais facilmente o Soberano Senhor

dessas coisas? E aos Romanos, capítulo primeiro, é dito que são

indesculpáveis509. E ainda, no mesmo lugar, por estas palavras: o que é

conhecido de Deus é manifesto neles, parece que somos advertidos de que tudo

quanto se pode saber de Deus pode ser demonstrado por razões, as quais não é

necessário buscar alhures que em nós mesmos, e as quais só nosso espírito é

capaz de nos fornecer. Daí por que julguei que não seria absolutamente fora de

propósito que mostrasse aqui por que meios isto pode ser feito e que via é

preciso tomar para chegar ao conhecimento de Deus com mais facilidade e

certeza do que conhecemos as coisas deste mundo”510. Em outro momento,

Descartes afirma, de forma bastante direta, que sua filosofia ajusta-se às

verdades das Sagradas Escrituras, bem mais do que aquela filosofia

apresentada pela Escola; portanto, espera que os teólogos a tomem em

substituição àquela: “C'est pourquoi, s 'il m'est ici permis de dire la vérité sans

envie, j'ose espérer que le temps viendra, auquel cette opinion, qui admet les

accidents réels, será rejetée par les théologiens comme peu sûre en la foi,

éloignée de la raison, et du tout incompréhensible, et que la mienne será reçue 509 Neste trecho Descartes cita as duas passagens tradicionalmente evocadas no contexto das “provas racionais” da existência de Deus: Romanos, 1, 19-20 e Sabedoria, 13, 1-9. 510 DESCARTES, R. Meditações, p. 106.

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en sa place comme certaine et indubitable. Ce que j'ai cru ne devoir pas ici

dissimuler, pour prévenir, autant qu'il m'est possible, les calomnies de ceux

qui, voulant paraitre plus savants que les autres, et ne pouvant souffrir qu’on

propose aucune opinion différente des leurs, qui soit estimée vraie et

importante, ont coutume de dire qu'elle répugne aux vérités de la foi, et tâchent

d'abolir par autorité ce qu'ils ne peuvent réfuter par raison. Mais j'appelle de

leur sentence à celle des bons et orthodoxes théologiens, au jugement et à la

censure desquels je me soumettrai toujours très volontiers”511. Será que

Descartes não estaria contradizendo-se ao misturar o que antes havia

separado512? Ele mesmo, em carta dirigida, provavelmente, a Plempius, afirma

que não se devem buscar nas Escrituras fundamentos para o conhecimento das

ciências humana; que é um abuso misturar as coisas sacras com as coisas

profanas: “que c'est appliquer l’Écriture sainte à une fin pour laquelle Dieu ne

l’a point donnée, et par conséquent en abuser, que d'en vouloir tirer la

connaissance des vérités qui n’appartiennent qu'aux sciences humaines, et qui

ne servent point à notre salut. Mais peut-être aussi que cet auteur n'entend point

511 DESCARTES, R. Meditações, réponses de l’auteur aux Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 704; AT., VII, p. 255. Segundo Alquié, é raro ver Descartes fazer uma declaração de forma tão segura e ousada contra o tomismo. Cf. ALQUIÉ, F. Notas, In: DESCARTES, R. Meditações, réponses aux Quatrièmes Objections, nota I. Referindo-se, ainda, à posição tomada nas respostas às Quartas Objeções, Descartes, em carta a Dinet, sem nenhuma cautela, o que é uma grande surpresa, já que sempre primou pela prudência, declara porque sua filosofia pode servir para explicar questões religiosas com muito mais eficiência do que aquela filosofia adotada pela Escola: “Pour ce qui est de la théologie, comme une vérité ne peut jamais être contraire à une autre vérité, ce serait une espèce d'impiété d'appréhender que les vérités découvertes en la philosophie fussent contraires à celles de la foi. Et même j'avance hardiment que notre religion ne nous enseigne rien qui ne se puisse expliquer aussi facilement, ou même avec plus de facilité, suivant mes principes, que suivant ceux qui sont communément reçus; et il me semble avoir déjà donné une assez belle preuve de cela, sur la fin de ma réponse aux quatrièmes objections, touchant une question où l’on a pour l'ordinaire le plus de peine à faire accorder la philosophie avec la théologie. Et je serais encore prêt de faire la même chose s u r toutes les autres questions, s'il en était besoin”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 1088-1089; AT., VII, p. 581. 512 Não se trata nem de supor um descuido de Descartes ou de pretender sondar suas intenções: “não temos que nos basear na ‘franqueza’ de Descartes que, de resto, a apregoa demasiado”. KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 17. “Mesmo que se investigue a correspondência de Descartes, seus escritos inéditos, ou sua história pessoal, jamais se saberá, com certeza, a razão última, ou primeira, de seus atos”. RIBEIRO, E. E. M. R. Op. Cit., p. 17.

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user de la Bible en ce sens-là, ni mêler les choses saintes aux profanes”513. Se

se levar em conta todo o desenvolvimento da sua filosofia, tem-se que

reconhecer que, de fato, Descartes não tem nenhuma intenção em misturar a

ordem da razão natural, com a ordem da razão sobrenatural, misturar as

ciências dos homens com as ciências de Deus. Não há dúvida que Descartes

trata, em sua metafísica, desses dois temas (a alma e Deus), mas em nenhum

momento são eles abordados a partir de uma perspectiva teológica e, se se for

mais longe (como se verá no próximo capítulo), a perspectiva em que Descartes

os estuda, além de ser completamente distinta daquela estudada pelos teólogos,

eventualmente coloca em risco as próprias elaborações teológicas: “Embora

Descartes se esforçasse por mostrar que seu projeto era muito diferente do

adotado na filosofia escolástica, ele não queria dar a impressão de rejeitá-la”514.

Deus ou a alma não são, na filosofia de Descartes, um problema religioso, mas

um problema técnico de natureza exclusivamente filosófica. Descartes fala

como um livre pensador, não como um crente515. Sua metafísica opõe-se e,

como conseqüência, põe em risco toda metafísica que parte do princípio de que

é preciso primeiro crer para depois compreender; põe em risco e opõe-se, de

forma radical, a toda a metafísica escolástica, que encontra-se subordinada aos

fundamentos dogmáticos da fé cristã, no sentido de que se elabora no seio

desta e explicita-se como esclarecimento desta, embora por meios

exclusivamente racionais. Se assim é, por que Descartes se preocupa em

apresentar sua metafísica como a que mais compatibilidade tem com a fé

cristã? Certamente, para além da validade objetiva dos argumentos, não é

513 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 82; AT., II, p. 348. 514 GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 434. 515 “A liberdade de Descartes em relação à teologia e ao seu uso da razão é a de um pensador independente, livre no que diz respeito aos “livres pensadores” (Primeira e Segunda Meditações) e ao conhecimento teológico de então (Terceira, Quarta e Quinta Meditações)”. ROSENFIELD, D. L. Descartes e as peripécias da razão, p. 108.

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impossível detectar num texto como a carta aos doutores da Sorbonne uma

retórica ad hominens, apresentando sua construção filosófica dentro dos

quadros e com uma linguagem aceitáveis a estes. Descartes precisa do

reconhecimento de sua filosofia, sabe que um acolhimento do “Deão e doutores

da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris” à sua metafísica, abriria o vau

para, sem maiores problemas – de toda ordem –, passar com sua física, com sua

ciência. “... l’approbation de la Sorbonne, que je désire, et qui me semble

pouvoir extremement servir à mes desseins” 516. A cautela, que sempre foi uma

das características marcantes de sua personalidade, mais uma vez faz-se

presente na tentativa de convencer seus possíveis opositores de que sua

filosofia não só não coloca em risco os fundamentos da religião, mas até

mesmo os fortalece mais eficazmente que a filosofia escolástica517. É preciso

então apresentar essa nova metafísica de forma a não suscetibilizar as

autoridades religiosas e acadêmicas518. É verdade que Descartes tem muitos

amigos, mas não é menos verdade que inimigos não lhe faltam; estes estão por

todos os lados, principalmente assumindo importantes cargos, seja nas

universidades, seja nos postos eclesiásticos519. Seus inimigos, ou simplesmente

seus opositores, estão no poder. Descartes sabe, não só pelo exemplo do que

ocorreu com Galileu, mas com tantos outros, de perseguições anteriores ou

contemporâneas de que são capazes esses senhores que, falando em nome de 516 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 275; AT., III, p. 233. 517 A primeira máxima da moral provisória de Descartes já ilustra, de forma clara, a cautela e a moderação que o meditador tomará como princípio normativo de toda sua vida: “A primeira era obedecer às leis e os costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 59. 518 “Uma fonte constante de preocupação para Descartes, durante a quarta década do século XVII, era a hostilidade que seu trabalho despertava entre os teólogos. Sua correspondência contém muitas de suas respostas – às vezes cautelosas e polidas, outras irritadas e impacientes – a uma ampla gama de objeções, que vão desde os pequenos jogos de palavras até ataques frontais, provenientes tanto de seus correligionários na França católica quanto dos pastores protestantes holandeses no país de seu exílio”. COTTINGHAM, J. Dicionário, Descartes – Introdução, p. 14. 519 Cf. notas 169-170.

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Deus, dizendo-se diretamente autorizados por ele, cometem os maiores

pecados, tornam-se homens cruéis e perigosos520. Neste terreno minado por

toda parte, a cautela, em Descartes, é uma condição de sobrevivência521. “Para

Charles Adam, Descartes faz um jogo duplo: pretende ganhar para si os

teólogos, para depois disso, sem riscos pessoais, levar os seus adversários para

o campo da física. ‘Le pavillon, si l’on ose dire, devait couvrir la marchandise;

et Descartes tenait à la marchandise pour le moins autant qu’au pavillon’”522.

Aqui, mais uma vez, Descartes pensa em tudo que diz, mas não diz tudo que

pensa523. Diante dos perigos que as circunstâncias históricas apresentam,

520 Erasmo de Rotterdam que, mesmo tendo vivido um século antes de Descartes, conheceu os perigos que se apresentavam a todo aquele que ousasse confrontar-se com os paladinos da ortodoxia teológica, escreve: “Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, tem um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como urso furibundos, mordem-vos e não largam senão depois de vos terem obrigado a fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles. Embora não haja ninguém que, tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro que me devem muito. Eis por que impus ao meu amor-próprio favorecê-los mais do que a todos os outros mortais, e de fato são eles os meus maiores prediletos. É por isso que, do alto da sua elevação e à maneira de tantos anjos que habitam o terceiro céu, consideram o resto dos homens como outros tantos animais bajuladores e têm piedade deles. Cercados de uma série de magistrais definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o que compõe a malícia da escola sacra, usam de tantos subterfúgios que o próprio Vulcano não conseguiria embrulhá-los, mesmo empregando a rede de que se serve para mostrar aos deuses os seus cornos nascentes. Não há nó que esses senhores não saibam desfazer de um golpe com a mais que tenédia bipene do distinguo: bipene formado de todos os novos vocábulos sonoros e empolados que nasceram no seio da sutileza escolástica”. Erasmo de Rotterdam, Op. Cit., p. 95-96. 521 “Gostaria muito de prosseguir e de mostrar aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Mas, dado que, para tal efeito, seria agora necessário que falasse de muitas questões controvertidas entre os doutos, com os quais não desejo indispor-me, creio que será melhor que eu me abstenha e somente diga, em geral, quais são elas, a fim de deixar que os mais sábios julguem se seria últil que o público fosse a respeito mais particularmente informado”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 73. 522 FRAGA, G. de. Introdução, tradução e notas, In: DESCARTES, R. Meditações sobre a filosofia primeira, p. 54, nota 20. 523 Gouhier, se remetendo ao texto de M. Adam, diz: “En réalité, la prudence de Descartes ne peut être invoquée qu'à propos de deux faits : l'affaire de Galilée et la publication des Méditations; mais si ce que nous avons dit à leur sujet est exact, les choses se présentent d'une manière infiniment moins dramatique qu'on ne l'a cru. Pour la publication des Méditations, y a-t-il même une question? La défense de Dieu est un prétexte, dit M. Adam, Descartes ‘joue un double jeu’; et ‘pourquoi ce double jeu qui ressemble à une comédie?’ pour séduire les théologiens; la physique est une pilule amère qu'ils avaleront sans s'en apercevoir dans une confiture métaphysique; ‘il prend ses mesures le plus habilement qu'il peut’; ‘tout cela est en dehors de son plan d'études et du programme qu'il s'est tracé... C’est une tactique à laquelle il se croit obligé pour le succès de ses opérations principales, mais qui les retardent’, car il ‘ne veut pas renouveler à ses dépens l'aventure de Galilée’ (XII, p. 304 sq.). Deux lettres à Mersenne, que nous avons rapportées, découvrent sa véritable pensée; nous les avons situées: nous avons montré comment l'idée d'écrire un ouvrage apologétique était un très ancien

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Descartes, por prudência, evita colocar no discurso tudo o que tinha no

pensamento524. O sol que ilumina toda sua filosofia é o sol da luz natural,

aquela que o homem busca e encontra no seu próprio interior. É desse interior,

onde o rigor do método se exercita plenamente, que nasce e se expande toda a

luminosidade do saber cartesiano. O próprio Descartes se diz seguro de que ele

“ne puis avoir aucune connaissance de ce qui est hors de moi”525. Busca, de

todas as formas, não misturar filosofia com a religião526, mesmo quando lança-

se sobre alguns temas teológicos, é na perspectiva da razão natural que os

mesmos são tratados527: “Je n’ai jamais méprisé personne pour n’être pas de

même sentiment que moi, principalement touchant les choses de la foi; car je

sais que la foi est un don de Dieu [...]. Mais j’ai déjà souvent protesté que je ne

voulais point me mêler d’aucune controverse de théologie; et d’autant que je ne

traite aussi dans ma philosophie que des choses qui sont connues clairement par

la lumière naturelle...”528. Deus, na metafísica cartesiana, não é uma questão de

fé, de revelação das Sagradas Escrituras, mas sim uma questão de método,

uma questão metafísica, uma questão puramente do domínio da razão natural.

Quanto à alma, em nenhum momento Descartes está preocupado diretamente

com a imortalidade desta, uma vez que a imortalidade lhe parece uma

conseqüência direta da imaterialidade da alma. Apesar deste tema constar logo

na carta de apresentação de sua metafísica, ele não será tratado explicitamente projet de Descartes, et comment, au moment de le réaliser, il l'a associé à des polèmiques passagères qui expliquent les deux textes cités”. La pensée religieuse de Descartes, p. 171. 524 Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 74. 525 Idem, Correspondência, Alq., II, p. 905; AT., VII, p. 744. 526 Descartes, referindo-se a d’Édouar Herbert, que em 1624 publicou o livro De veritate, diz: “... j’y ai trouvé au commencement plusieurs choses qui m’ont semblé fort bonnes, et où il témoigne être plus savant que le commun en métaphysique, qui est une science que presque personne n’entend; mais parce qu’il me semblait ensuite qu’il mêlait la religion avec la philosophie, et que cela est entièrement contre mon sens, je ne le lus pas jusques à la fin”. DESCARTES, R. Correspondência – Alq., II, p. 136; AT., II, p. 570-571. 527 “O intinerário cartesiano não é religioso [...], se é verdade que Descartes identifica o Infinito que afirma com o Deus cristão, fá-lo em nome de uma fé que ele próprio declara exterior ao conhecimento”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 60. 528 DESCARTES, R. Meditações (Objeções e Respostas) – Lettre au Pèrre Dinet, Alq., II, p. 1095; AT. VII, p. 598.

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nesta, ou melhor, Descartes o considera implicado no que afirma sobre a

imaterialidade. Além disso, ele é extremamente discreto no que concerne à

vida futura da alma, após a morte do corpo529. Talvez mesmo, quando trata da

alma, a intenção de Descartes seja outra, estaria muito mais preocupado em

destituir a matéria do que quer que seja que pudesse lembrar algo de ordem

espiritual, como as formas substanciais da física de tipo aristotélico. A matéria

é então considerada como pura extensão, como pura representação de ordem

matemática. A distinção entre o corpo e a alma e a sobrevivência desta em

relação àquele atende, então, muito mais a uma necessidade puramente

científica do que metafísica ou religiosa530. Isto significa que o foco de

Descartes não está nem na religião nem na metafísica. O que ele está buscando,

na metafísica, é um fundamento puramente racional para legitimar sua física.

Segundo Livio Teixeira, “é interessante notar que as ‘Meditações’ não

terminam com a prova da existência de Deus ou da imortalidade da alma, o que

poria em evidência os propósitos metafísicos ou religiosos de Descartes;

terminam, ao invés, com a prova da existência das coisas materiais, da

distinção real entre a alma e o corpo do homem e da união da alma e do 529 Cf. DESCARTES, R. Discours de la Méthode – texte et commentaire par Étienne Gilson, p. 436-438, para maiores detalhes. “Sin embargo, en las Méditations, la inmortalidad Del alma está decididamente relegada al último plano”. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 265. 530 A fim de ter a seu favor os Doutos da Sorbone, Descartes se apresenta como um filósofo cristão que construiu uma filosofia que contempla as exigências e as solicitações feitas a todo os filósofos cristãos pelo concílio de Latrão: “E, no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é fácil conhecer-lhe a natureza, e alguns tenham mesmo ousado dizer que as razões humanas nos persuadem de que ela morre com o corpo e que somente a fé nos ensina o contrário, todavia, visto que o concílio de Latrão, na sessão 8, os condena e ordena expressamente aos filósofos cristãos que respondam a seus argumentos e empreguem todas as forças de seus espírito para dar a conhecer a verdade – ousei efetivamente empreendê-lo neste escrito”. DESCARTES, R. Meditações, p. 106. Descartes está se referindo ao “concílio de Latrão [denominado de Latrão V] celebrado em Roma de 3 de maio de 1512 a 16 de março de 1517, sob os pontificados de Júlio II e de Leão X”. Entre outras questões, o concílo de Latrão, “posiciona-se contra a escola averrroísta de Pádua, representada por Pomponazzi (1426 – 1525, professor em Bolonha na época do concílio), que considerava, contrariamente a Tomás de Aquino, que a doutrina cristã da imortalidade da alma não podia ser defendida em termos filosóficos (i. e., nos termos de Aristóteles) [...], o texto continua exortando os ‘filósofos cristãos’ a combater os argumentos em favor da mortalidade da alma ou da unicidade da alma intelectiva em todos os homens, e condenando a idéia de ‘dupla verdade’: ‘toda asserção contrária à verdade da fé é falsa’, pois ‘o verdadeiro não pode ser contrário ao verdadeiro’”. LACOSTE, J.-Y. Dicionário crítico de teologia, verbete: Latrão V, p. 995-996.

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corpo”531. Isso só acentua as evidências de que a reflexão de Descartes está, de

fato, voltada, preponderantemente, para o campo da física, melhor, para o

campo da ciência. Quem toma Descartes como um puro metafísico –

preocupado em encontrar provas metafísicas para a existência de Deus e a

imortalidade da alma, possibilitando, através dessas provas, justificar a filiação

de sua filosofia com a teologia cristã – ficaria, de fato, surpreso ao se deparar

com um texto no qual o meditador afirma exatamente o contrário dessa tese,

um texto no qual o próprio Descartes, de certa forma, desvaloriza a reflexão

metafísica, recomenda ao leitor, ao pesquisador, não perder muito tempo na

leitura das Meditações, bem como nas suas questões metafísicas, porque, o que

verdadeiramente deve ser desejado pelo homem é o estudo da física: “Il ne faut

pas se pencher comme cela sur ces Méditations et sur les questiones de

métaphysique, ni se travailler ainsi à les commenter; encore bien moins faut-il,

comme certains le tentent, les approfondir plus que n’a fait l’auteur; il les a lui-

même approfondies suffisamment pour une introduction. (...) elles détournent

trop l’esprit de la physique et des choses sensibles, et le rendent impropre à les

examiner; pourtant c’est là l’occupation qu’on devrait le plus souhaiter à

l’homme”532. Nessa mesma linha de reflexão, em 28 de junho de 1643, declara

Descartes a Elisabeth: “Et je puis dire, avec verité, que la principale règle que

j’ai toujours observée en mes études, et celle que je crois m’avoir le plus servi

pour acquérir quelque connaissance, a été que je n’ai jamais employé que fort

peu d’heures, par jour, aux pensées qui occupent l’imagination [neste ponto

Alquié acrescenta a seguinte nota: ‘C’est-a-dire aux mathématiques, à la

physique et à quelques autres sujets sérieux’], et fort peu d’heures, par an, à

celles qui occupent l’entendement seul [Escreve Alquié: ‘C’est-à-dire à la

531 TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes, p. 75-76. 532 DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 75; AT., V, p. 165.

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métaphysique’] ...”533. Neste sentido, Descartes está sendo muito mais claro e

explícito no Discurso do Método, quando declara que sua filosofia subordina-se

unicamente aos ditames da razão natural, portanto, quando afirma que as

questões teológicas não são de sua competência534, do que quando, nas

Meditações, tenta passar a idéia de que sua filosofia atende aos dogmas da

teologia cristã e se coaduna com eles. Descartes é um cristão. Disso, não há

dúvida: “pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu”535. Mas será que sua

filosofia acompanha sua fé pessoal? Pergunta que certamente pode ter várias

respostas, dependendo do sentido que se dá ao verbo acompanhar. Eis algumas

considerações interessantes de Émile Bréhier:

“Jamais Descartes n’a fait intervenir

spontanément dans le tissu de sa philosophie le

moindre dogme spécifiquement chrétien ou

catholique. Il a affirmé sa foi non pas en tant

que philosophe, mais en tant que citoyen d’un

pays attaché à la religión dans laquelle Dieu lui

avait fait la grâce de le faire naître. Cet

atachement, dont la sincérité est manifeste,

implique tout naturellement la conviction

qu’aucune vérité philosophique ne peut être

incompatible avec la vérité des dogmes révélés

(ce qui est l’idée courant des rapports de la foi

et de la raison dans le thomisme); aussi, 533 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 45; AT., III, 695. 534 “Descartes separa radicalmente os dois domínios da teologia (conjunto de verdades que basta crer e praticar para se salvar) e o da filosofia (conjunto de verdades acessíveis à razão). Quanto à teologia (aplicação da razão ao conteúdo da verdade revelada), considera-a mais perigosa do que útil para a religião e, de todos os modos, como não sendo da sua competência”.GILSON. E. nota 55, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 45-46. 535 DESCARTES, R. Discurso do método, p. 46.

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lorsque des théologiens critiquent sa théorie de

la matière en affirmant qu’elle ne s’accorde

pas avec le dogme de la transubstantiation,

Descartes s’efforce de montrer la

compatibilité. On voit ainsi de quelle façon

oblique et accidentelle s’introduit la

préoccupation du dogme, et combien la vision

cartésienne de l’univers en est foncièrement

indépendante”536.

Descartes não confunde os objetos de estudo. A filosofia tem seu domínio

próprio, inteiramente sob a jurisdição da razão natural e não pode inserir no seu

corpo de verdades a verdade revelada. Mas, por outro lado, não pode também

contradizê-la. Tal postura poderia ser tida como perfeitamente tradicional. Um

Tomás de Aquino diria o mesmo. No entanto, há no cartesianismo algo mais

que a simples distinção entre religião e teologia, de um lado, e filosofia e

ciência, do outro. Há uma verdadeira separação entre os dois domínios. “Pero

conviene distinguir entre Descartes y el cartesianismo, entre su persona y sus

doctrinas o entre sus intenciones – indudablemente buenas y sinceras – y los

resultados y derivaciones a que ha dado lugar su filosofia. Su tendencia

fuertemente racionalista es evidente. [...] Com su método puramente racional

prepara no solo la distinción entre la filosofia y la teología, sino la separación y

hasta una verdadera oposición entre el pensamiento racional y la fe”537. O

filósofo já não é mais um teólogo filosofante, ele é pura e simplesmente

filósofo. Descartes busca o conhecimento como se fosse um bem supremo, mas

será esse conhecimento idêntico àquele que a religião apresenta como bem 536 BRÉHIER, É. Histoire de la philosophie, II, p. 65. 537 FRAILE, G. Historia de la filosofia, III, p. 544.

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supremo e que o crente alcança através da fé? Não. Com certeza não é esse o

bem supremo que a filosofia de Descartes busca alcançar. O bem supremo,

quando se trata de ciência, não é Deus, mas sim a filosofia, melhor, não se

encontra nem nas raízes metafísicas de sua filosofia, nem mesmo no tronco

físico, mas nas ciências particulares, das quais se colhem os frutos. Se não se

quiser ir tão longe, pode-se considerar o conjunto da Árvore da Filosofia. Só a

filosofia aí representada pode conduzir o homem, detendo-se rigorosamente nos

limites da razão natural, a conhecer a verdade que a ele se revela como seu bem

supremo: “Ora, esse soberano bem considerado pela luz natural, sem a luz da

fé, não é outra coisa que o conhecimento da verdade por suas causas primeiras,

isto é a sabedoria, de que a filosofia é o estudo”538. Este tema será retomado e

mais desenvolvido no terceiro capítulo deste trabalho. Por hora, o que será

enfocado é o significado da própria presença de Deus na metafísica cartesiana.

Será essa presença necessária à ordem da metafísica? Seria isenta de

dificuldades a sustentação, feita por Descartes, da ordem lógica de sua

metafísica a partir de Deus?

Segundo Descartes, antes de um verdadeiro conhecimento sobre Deus, nenhum

conhecimento pode apresentar-se como verdadeiro. Descartes reconhece e faz

questão de acentuar que só através do conhecimento verdadeiro sobre Deus é

possível, ao homem, obter um conhecimento verdadeiro sobre todas as outras

coisas: sobre o próprio eu e sobre a matéria, sobre o pensamento e a extensão,

sobre a metafísica e a física539. Entretanto, antes que Deus se apresente como

uma verdade indubitável à razão, a verdade do cogito - primeira verdade da

538 DESCARTES, R. Carta-prefácio dos princípios da filosofia, p. 7-8. 539 Cf. DESCARTES, R. Meditações, p. 178.

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metafísica cartesiana - afirma-se como uma verdade indubitável, verdade esta,

em cuja existência nem mesmo Deus em seu infinito poder, pode interferir. A

primeira verdade, “eu sou”, é uma conquista absoluta do sujeito; ela se

consuma à revelia de qualquer força superior, de qualquer Deus. Se outras

verdades existem, a ela estarão subordinadas, pois nela encontram sua causa,

têm sua identidade originária. Nenhuma verdade, mesmo a verdade sobre a

existência de Deus, se apresenta como independente dessa primeira verdade

indubitável. Portanto, na ordem do método, ordem puramente matemática, a

presença de Deus não se faz necessária para o conhecimento da verdade. O

método basta. Ele estabelece os limites da verdade540. Na ordem do método, o

cogito revela-se como a verdade primordial, na ordem do Ser, Deus revela-se

como a verdade primordial541. Mesmo que, no segundo momento, na ontologia

cartesiana, na ordem do ser, Deus se apresente como aquele que garante ou

abona as verdades da razão e, como tal, as anteceda, tornando-se a causa

primeira do ser, a questão que se coloca é a seguinte: mesmo na ordem do ser,

o sujeito só pode conhecer a verdade se primeiro conhecer a Deus? Seja na

ordem do método, seja na ordem do ser, o conhecimento do eu, antecede e

possibilita todos os outros conhecimentos. Na ordem do ser, Deus se apresenta

como anterior à consciência que o sujeito tem de si mesmo; a idéia do infinito e

perfeito antecede a idéia de finito e imperfeito. Portanto, na ordem do ser, o

homem conhece que Deus vem antes de si próprio. Entretanto, mesmo na

ordem do ser, é o sujeito que, na autonomia de sua racionalidade, obedecendo

540 “Deus é para Descartes a garantia da verdade, mas no que diz respeito à formulação do seu método, não seria necessário esse recurso, pois a metafísica que sustenta o método cartesiano é uma metafísica do sujeito, é ele [o sujeito] que subjaz e sustenta a possibilidade do conhecimento científico. O sujeito é absoluto na ciência. Que este sujeito necessite de outro absoluto que o sustente, Deus, é um outro problema”. RIBEIRO, E. E. M. Op. Cit., p. 31. 541 “O cogito, que é primordial na ordem do conhecimento e por essa razão terá que ser sempre retomado, revela que Deus é primordial na ordem do Ser e que o pensamento se lhe deve subordinar”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 12.

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ao rigor do método, afirma e conquista essa anterioridade de Deus em relação

ao sujeito pensante, ou seja: é o pensamento que, diante dos limites impostos

pela própria natureza humana, estabelece ou reconhece a existência de um Deus

que é a causa do seu ser e que, na sua infinita perfeição, garante e valida a

verdade originária do cogito. “De fato, Descartes declara muitas vezes que as

verdades matemáticas, ou lógicas, exigem a caução de Deus. Mas não invoca

nunca a veracidade divina na afirmação do cogito ou do próprio Deus. Muito

pelo contrário, o cogito é afirmado no momento em que Deus é suposto

enganador, e contra o gênio malicioso”542. Continua Alquié, “ao nível do cogito

e de Deus, o ser, primeiro separado das idéias, pode tornar-se seu fundamento e

sua substância”543. É regra, lei que rege todo o sistema da filosofia cartesiana,

seja a ciência, seja a metafísica, que todo conhecimento para ser absolutamente

verdadeiro tem que passar pelo crivo da clareza e da distinção, só o

conhecimento conquistado a partir destas duas balizas do pensamento pode

apresentar-se como verdadeiro, como indubitável. Segundo Descartes, Deus

garante todo conhecimento claro e distinto; logo, todo conhecimento verdadeiro

e indubitável. Mas, poderia ele não garantir essas verdades indubitáveis?

Poderia Deus contrariar a ordem do que é absolutamente verdadeiro? Estaria no

poder de Deus fazer com que o que é verdadeiro, não o seja ou vice-versa? Se o

sujeito conhece a verdade, e esta apresenta-se a seu espírito como absoluta-

mente verdadeira, mesmo assim, teria ainda Deus alcance sobre essa verdade?

O próprio Descartes não disse que não está na natureza de Deus a possibilidade

de ser enganador? Não teria então Descartes colocado Deus em um impasse

lógico, impondo-lhe uma verdade sobre a qual ele já não pode interferir? Com

isso, mesmo contemplando a anterioridade de Deus em relação ao sujeito,

542 ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 99. 543 Idem, ibidem.

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mesmo reconhecendo-lhe a função de garantir toda a ordem de verdade do ser,

não estaria Deus sem uma função na metafísica cartesiana? Se assim é, não

estaria Deus presente na metafísica cartesiana só de forma alegórica, sem

nenhuma autonomia no que concerne à ordem da verdade conquistada através

da luz natural? Descartes sempre buscou, seja no campo da física, seja no

campo da metafísica, a autonomia da razão na ordem do conhecimento da

verdade. A verdade é uma conquista do sujeito na mais absoluta independência

da singularidade do eu pensante. “Se alguém se propuser como questão

examinar todas as verdades para cujo conhecimento basta a razão humana [...],

seguramente encontrará, de acordo com as regras oferecidas, que nenhum

conhecimento pode preceder ao do entendimento, já que é dele que depende o

conhecimento de tudo o mais, e não o inverso”544. Se assim é, a presença de

Deus na metafísica cartesiana, não destitui o sujeito de sua autoridade de ser o

primeiro através do qual a verdade ou o erro, quando for o caso, se manifesta

no mundo. Independentemente de Deus, ou apesar dele, a verdade é uma

conquista do sujeito545. Deus não tem nenhuma jurisdição sobre a primeira

verdade do cogito. De fato, a razão tem absoluta autonomia sobre a conquista

de sua primeira verdade, sobre essa verdade clara e distinta, mesmo que Deus

queira, já não pode atuar, ela se encontra fora de seu alcance. Neste momento,

uma pergunta se impõe: se a primeira verdade do cogito encontra-se fora do

alcance de Deus, Deus, em si mesmo, encontra-se fora do alcance do cogito?

Descartes percorre as Meditações 3ª e 5ª buscando provas através das quais

possa garantir a existência de Deus; sobre elas, fala exaustivamente, mas ao

buscar, de fato, uma prova rigorosa da existência de Deus, não estaria

Descartes abandonando a ordem da razão e saltando para um plano que a

544 DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. VIII, p. 50-51. 545 “El sujeto del conocimiento es así el fundamento de la metafísica cartesiana”. TURRÓ, S. Op. Cit., p. 390.

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própria racionalidade já não pode alcançar? É mesmo possível o Deus da fé, o

Deus da revelação, ser alcançado através de provas estritamente racionais?

Estabelecer para Deus provas racionais não é, ao mesmo tempo, subordiná-lo

aos limites da razão humana e, como conseqüência, lançar as bases de sua

própria consumação, de sua própria morte? Está na jurisdição da razão a

possibilidade de, sobre Deus, obter um conhecimento claro e distinto? Não é o

próprio Descartes quem diz que a razão só deve se ocupar dos objetos que ela

pode conhecer como indubitáveis546? É possível uma prova, uma única prova,

racional que dê conta da natureza infinita de Deus? Sim, até porque, dar conta

da existência de Deus é dar conta da totalidade da sua infinitude; mas o próprio

Descartes reconhece que o homem, na sua finitude, pode ter consciência da

presença que existe nele da idéia de infinitude, mas que, sendo ele um ser

finito, não pode abarcar essa idéia; esta, em muito lhe ultrapassa547: “É

necessário acreditar em tudo o que Deus revelou, embora Ele esteja para além

do alcance do nosso espírito”548. Escreve Ivan Domingues: “Deus e seus

atributos são ‘insondáveis’ [nós tocamos o infinito; jamais o abraçamos; sua

natureza íntima nos escapa para sempre]”549. Portanto, essa ultrapassagem, esse

acréscimo de ser de Deus em relação ao homem, não pode nunca ser conhecido

pelo próprio homem, exceto no caso em que este abandone o plano da

racionalidade e se lance, como um devoto, em busca de um Deus que se revele

546 “Os objetos com os quais devemos nos ocupar são aqueles que nossos espíritos parecem ser suficientes para conhecer de uma maneira certa e indubitável”. DESCARTES, R. Regras para a orientação..., reg. II, p. 5. Na conclusão desta mesma regra, diz Descartes: “... a conclusão de tudo o que precede não é, por certo, que se deva aprender apenas a Aritmética e a Geometria, mas unicamente, que, na busca do conhecimento reto da verdade, não se deve ocupar-se com nenhum objeto sobre o qual não se possa ter uma certeza tão grande quanto aquela das demonstrações da Aritmética e da Geometria”. 547 “Loin, donc, de me rendre Dieu inconnaissable, l'incompréhensibilité, quoique enveloppant une certaine limitation nécessaire de ma connaissance (je ne pourrai jamais épuiser l'infini, en avoir une connaissance ‘adéquate’, c'est-à-dire complète), est en même temps, comme ratio formalis de l'infini, ce qui me permet de le connaltre comme tel”. GUEROULT, M. Op. Cit., I, p. 206. 548 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 25, p. 36. 549 O grau zero do conhecimento, p. 60.

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à fé. “Não há, no pensamento cartesiano, como fundamentar logicamente esta

relação entre Deus e o Eu. Partindo do cogito, e contrariando ao propósito de

Descartes, a função de garantia da verdade, atribuída a Deus, só se justifica a

partir de um ato de Fé”550. Continua o autor: “ou seja, a proposta cartesiana de

atribuir ao homem a possibilidade de dirigir, tanto seus pensamentos como suas

ações, acaba por ser neutralizada pela afirmação de que o fundamento da

verdade é exterior à realidade humana”551. Descartes terá muitas dificuldades

para justificar, ao mesmo tempo, a autonomia absoluta da razão na ordem do

método e, no segundo momento, a necessidade da presença de um Deus que,

estando “subordinado” à ordem do método, ou seja, no limite da pura

racionalidade, possa tornar-se, ao mesmo tempo, a causa originária de todas as

verdades claras e distintas; portanto, possa tornar-se a causa originária da

primeira verdade do cogito. A afirmação absoluta do sujeito em relação ao

conhecimento da verdade, retira de Deus o direito de ser a primeira causa da

verdade. Como superar esse impasse? Como afirmar Deus, sem negar o

sujeito; como afirmar o sujeito, sem negar a Deus? Quando Descartes é

criticado por ter construído um pensamento circular552, ele se defende dizendo

que a atuação de Deus só se faz necessária para garantir o conteúdo de verdades

derivadas das lembranças, mas que Deus não se faz necessário para garantir o

estatuto da verdade no momento em que ela é conquistada e instituída pelo

cogito. Se assim é, como fica a tese cartesiana de que antes de um

conhecimento verdadeiro sobre Deus, nenhum conhecimento verdadeiro pode

se apresentar ao sujeito? Na ordem das razões, o conhecimento verdadeiro

sobre o eu, não antecede e possibilita um conhecimento verdadeiro sobre Deus?

Mas não se acabou de ver que, no momento em que o pensamento pensa, ele 550 RIBEIRO, E. E. M. Op. Cit., p. 75. 551 Idem, p. 76. 552 Cf. cap. II, p. 248s.

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conquista verdades claras e distintas; portanto, verdades que constituem toda

ordem do saber, seja da ciência, seja da metafísica, independentemente de

Deus? Se a metafísica cartesiana abre uma exceção, possibilitando ao sujeito a

conquista de uma única verdade sem que, sobre ela, Deus tenha alguma

intervenção, não está aberto o caminho para que Deus torne-se desnecessário na

ordem do saber natural? Se nenhum conhecimento pode afirmar-se como

verdadeiro antes de passar pelo crivo do cogito, Deus só pode apresentar-se

num segundo momento, só pode apresentar-se como abonador dessa verdade

que o cogito conquistou. Antes dessa conquista originária, nenhum

conhecimento pode apresentar-se ao espírito como verdadeiro. Deus perde sua

função, restando-lhe, unicamente, o papel de garantir as verdades que já foram

conquistadas pelo cogito e que se encontram na memória do sujeito meditador;

resta-lhe a função de garantir ao homem – que não podendo ter presente na sua

consciência a totalidade das verdades claras e distintas já conquistadas –,

quando recorre à memória, que aquelas verdades que no passado foram intuídas

como absolutamente verdadeira são, atualmente, verdadeiras; não porque são

novamente submetidas à ordem do cogito, mas porque Deus garante, na ordem

sucessiva do tempo, seu estatuto de verdade. Para Descartes, a verdade do

cogito é a verdade que é conquistada no instante553 em que o cogito pensa. O

cogito, por sua própria natureza, quando pensa, pensa o algo uno; não está ao

seu alcance pensar uma multiplicidade de coisas ao mesmo tempo; isso faz com

que, quase sempre, o homem tenha que recorrer à memória para buscar nela

553 Bréhier interpretando o texto de Jean Wahl, Du rôle de l’idée de l’instant dans la philosophie de Descartes, diz: “Ce que garantissent la bonté et l’immutabilité de Dieu, c'est la constance de l'évidence à travers le temps; dès lors (à condition bien entendu que notre souvenir soit fidèle). il suffira que nous nous souvenions d'avoir perçu une proposition avec évidence pour être sûrs qu'elle est vraie. La certitude provient d'une vision instantanée, et les instants successifs sont en eux-mêmes si indépendants les uns des autres, que nous ne pourrions conclure de ce qu'est pour nous la vérité en un moment à ce qu'elle sera au moment suivant, si nous n'avions, pour lier cette poussière d'instants, l’immutabilité divine”. BRÉHIER, E. Op. Cit., p. 82-83.

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aquelas verdades que não estão submetidas no instante do cogito554. Ao

destituir Deus do poder de legislar sobre a primeira verdade da ordem da razão,

não estaria Descartes guardando para Deus um papel secundário na ordem de

sua metafísica? A função de garantir as verdades que se encontram, já

conquistadas, na memória, não destitui Deus de ser a causa originária de todas

as verdades? Não está ferido mortalmente o princípio de que só o conhecimento

verdadeiro sobre Deus garante o conhecimento verdadeiro sobre todas as outras

coisas? “O cogito não é uma exceção a este princípio?”555 Feita a exceção ao

Eu, que se institui à revelia de Deus, não está aberta a ‘possibilidade’ de outras

exceções? Deus atua sobre as verdades mediatas, mas não sobre as verdades

imediatas. Essas verdades imediatas se afirmam como claras e distintas,

independentemente de Deus. O que se vê aqui é a conquista de um

conhecimento auto-suficiente, um conhecimento auto-garantidor; um sujeito

auto-suficiente que, subordinando-se unicamente às leis impostas pelo próprio

pensamento, constrói um conhecimento absolutamente verdadeiro sobre todas

as coisas. Se esse conhecimento é possível, se a primeira verdade da metafísica

cartesiana “eu existo”, fonte originária de todas as outras verdades, é uma

conquista da razão natural, qual a função de Deus na metafísica cartesiana?

Não estaria ele, ao ser destituído como causa dessa primeira verdade,

desprovido de qualquer função? Se antes de um conhecimento verdadeiro sobre

Deus nenhum conhecimento pode se apresentar como verdadeiro, como ficaria

o conhecimento adquirido por alguém que sequer acredita em Deus, sequer

acredita na possibilidade de sua existência? A adição de 2 + 2 é sempre 4,

independentemente da crença do calculador, seja ele um crente ou um ateu,

554 “Mais notre esprit ne peut concevoir qu’une seule chose en même temps. [...] De plus, toute pensée se fait en un instant, et il nous vient à l’esprit beaucoup de pensées dans cette demonstration”. DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 9. 555 COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes, p. 105.

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tenha ou não tenha ele um conhecimento de Deus, essa verdade será sempre a

mesma, ela se apresentará ao entendimento de forma clara e distinta; logo,

indubitável. A verdade, quando apresenta-se ao espírito de forma clara e

distinta, independentemente da crença daquele que a pensa, será sempre

indubitavelmente verdadeira. Descartes não discorda: “c’est à savoir que ce que

l’on conçoit clairement et distinctement, par qui que ce puisse être qu’il soit

ainsi conçu, est vrai, et ne le semble ou ne le paraît pas seulement”556. É bem

ilustrativo, sobre essa questão, o questionamento que Mersenne faz, nas

Segundas Objeções, a Descartes: “Adicionai a isso que um ateu conhece clara e

distintamente que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos,

embora esteja muito longe de crer na existência de Deus, posto que a negou

completamente”557. Provocação que Descartes responde da seguinte forma:

“Ora, que um ateu possa conhecer claramente que os três ângulos de um

triângulo são iguais a dois retos, não o nego; mas sustento apenas que não

conhece isso por uma ciência verdadeira e certa, porque todo conhecimento que

se pode tornar duvidoso não deve ser denominado ciência, e uma vez que se

supõe tratar-se de um ateu, não pode ele ter certeza de não ser enganado nas

coisas que lhe parecem muito evidentes, como já foi demonstrado mais acima;

e, embora essa dúvida talvez não lhe ocorra ao pensamento, pode no entanto

ocorrer-lhe, se a examinar, ou se lhe for proposta por outrem; nunca estará fora

do perigo de concebê-la, caso não reconheça primeiramente um Deus”558. Veja-

se que aqui Descartes confirma que mesmo um ateu pode conhecer a verdade, o

que falta ao ateu não é a possibilidade de enunciar a primeira verdade, mas sim

a garantia de que, na ordem do tempo, essa verdade lhe seja absolutamente

556 DESCARTES, R. Meditações, respostas às Sétimas Objeções, Alq., II, p. 1016; AT., VII, p. 511. 557 Idem, Meditações – Segundas Objeções, recolhidas pelo R. P. Mersenne da boca de diversos teólogos e filósofos, p. 204. 558 Idem, Meditações – Resposta do autor às Segundas Objeções, p. 219.

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verdadeira; para ter essa certeza ele terá que ter a certeza de que Deus existe e

de que ele não o engana, que Deus é a causa do seu próprio ser559. Portanto,

para Descartes, o ateu pode conhecer a verdade, o que ele não pode é conhecê-

la de maneira absolutamente certa, isto é, por verdadeira ciência, já que sua

verdade será sempre a verdade do instante, a verdade intuída no instante em

que o cogito pensa. Ela será sempre uma verdade particular, singular, não

podendo ser jamais ordenada na lei do pensamento que tem a função de

compactar, na ordem do tempo, essa multiplicidade de instantes do cogito. Essa

função de garantir o estatuto das verdades claras e distintas, que já foram

conquistadas pelo cogito, não parece tão nobre como aquela que, no primeiro

momento, parecia ser a função de Deus na metafísica cartesiana, qual seja: ser a

causa originária de todas as verdades. Se Deus perde a função de garantir a

conquista da primeira verdade do cogito, restando-lhe a função de garantir as

verdades claras e distintas que já foram conquistadas pelo cogito e que se

encontram nos arquivos da memória do homem560, cabe, mais uma vez,

perguntar: qual, então, é a verdadeira função de Deus no sistema cartesiano?

Segundo John Cottingham, a resposta à pergunta, “está na própria natureza

temporária dos lampejos de intuição de que o pensador frui. A identificação

segura da verdade permanece, para uma dada proposição qualquer, apenas

durante o tempo em que o pensador medita sobre essa questão; logo que essa

atenção divaga, mesmo que seja por um momento, a certeza desvanece-se”561.

559 “Pour ce qui regarde la science d'un athée, il est aisé de montrer qu'il ne peut rien savoir avec certitude et assurance; car, comme j'ai déjà dit ci-devant, d'autant moins puissant será celui qu'il reconnaitra pour l'auteur de son être, d'autant plus aura-t-il occasion de douter si sa nature n'est point tellement imparfaite qu'il se trompe, même dans les choses qui lui semblent très evidentes; et jamais il ne pourra être délivré de ce doute, si, premièrement, il ne reconnait qu'il a été créé par un vrai Dieu, príncipe de toute vérité, et qui ne peut étre trompeur”. DESCARTES, R. Meditações – Respostas às Sextas Objeções, Alq., II, p. 868; AT., VII, p. 428. 560 Segundo Bréhier, “Descartes ne peut avoir voulu dire, comme on le dit parfois, que Dieu garantit la mémoire; car rien n’empêchera la mémoire d’être faillible, de nous porter à croire que nous avons perçu une évidence alors qu’il n’en est rien; la fidélité de la mémoire ne dépend que de notre attention”. Op. Cit., p. 81. 561 COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes, p. 105.

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Então, o progresso da ciência dependeria dessa assistência de Deus; só com ela

seria possível superar a temporalidade da presentificação da ação do cogito e,

com isso, possibilitar a construção de um saber sistemático que se afirma para

além dos lampejos, dos instantes do cogito. Assim, ao mesmo tempo em que

Descartes garante ao sujeito a função de ser quem instaura a verdade clara e

distinta, sobre todas as coisas, garante a Deus a função de ser aquele que torna

possível a ciência, pois sem ele, o sujeito, devido à sua própria natureza, não

ultrapassaria o lampejo do instante e, como conseqüência, a própria ciência não

seria possível. O que não se pode negar aqui é que, mesmo Descartes tendo

reservado a Deus essa função em sua metafísica, este acaba de receber um

golpe mortal. Há aqui um desvanecimento do poder de Deus, é como se se

estivesse diante de um Deus que perdeu sua força de ser o Ser através do qual

todas as verdades encontram sua causa originária. Deus faria, assim, parte do

sistema, mas não é a condição mesma deste; perdeu sua natureza divina, pois

não seria a causa de todas as causas, apresentando-se numa função secundária,

já que a função primeira, na ordem da verdade, pertence ao sujeito no limite das

leis do próprio pensamento. Deus perde sua coroa e, ao longo da história,

depois de Descartes, essa não lhe será restituída. A ordem da razão, depois de

Descartes, torna-se, cada vez mais, independente de Deus. Neste sentido, pode-

se dizer que a filosofia de Descartes apresenta, pela primeira vez, as bases de

uma filosofia na qual a presença de Deus não se faz mais necessária; onde a

razão se auto-justifica nos limites de suas próprias leis e afirma-se

completamente fora do alcance da jurisdição divina. Não seria excesso afirmar

que a filosofia de Descartes, mesmo que essa não seja sua intenção originária,

prepara o terreno, prepara as condições teóricas para o que será enunciado mais

tarde, de forma clara e direta: a morte de Deus.

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Se assim é, o que leva Descartes, mesmo correndo o risco de perder o solo

natural de sua física, a saltar da física para a metafísica, da ordem do método

para a ordem do ser? Parece que a questão metafísica em Descartes não é uma

questão puramente gnosiológica, mas também uma questão política. Descartes

sabe que sua filosofia natural, exclusivamente quantitativa, jamais seria aceita

no círculo filosófico de seu tempo562. Uma ciência, onde a presença de Deus é

desnecessária na ordem da verdade, uma ciência onde Deus só aparece como o

responsável pela criação e conservação do mundo, fora desse primeiro

momento, sua presença já não se faz necessária. Tal ciência jamais seria aceita

pelas autoridades da Igreja ou pelos doutos das Universidades563. A ciência

cartesiana segue o seu caminho sem precisar do beneplácito de Deus. Num

Universo infinito que, por pura precaução, Descartes define como indefinido,

não há lugar para Deus564. Mesmo que Descartes tente encontrar, de todas as

formas, em sua ciência, um lugar para Deus, sente-se embaraçado quando 562 Não são sem propósito as preocupações de Descartes; em breve ele verá suas suspeitas se concretizarem: sua filosofia torna-se o centro de acirradas discussões, que vão desde uma simples oposição até a proibição de que a mesma seja matéria de ensino nas universidades. Teólogos e peripatéticos viam na filosofia de Descartes um grande perigo e se emprenharam, de todas as formas, em proibí-la: “arrivent à convaincre le pouvoir royal et même le Parlement [que a filosofia de Descartes atentava contra] l'ordre publíc: la doctrine de Descartes est interdite, non comme autrefois celle de saint Thomas ou de Siger de Brabant, par un pouvoir spirituel disant la vérité, mais par un pouvoir temporel, chargé de la police publique. C'est le côté extérieur de l'histoire, l'anecdote: amusante parfois, comme lorsque Boileau, prévenu que le Parlement de Paris était sur le point de prendre un arrêt interdisant d'enseigner toute autre philosophie que celle d'Aristote, l’empêcha par son célèbre Arrêt burlesque; tragique aussi, lorsque le débat se complique du conflit entre les Jésuites, les Jansénistes et les Oratoriens qui, tous trois, s'efforcent de diriger l'éducation de la jeunesse; les Jésuites en general hostiles à Descartes et tenant à leurs cours traditionnels; les Jansénistes, comme Arnauld et Nicole, marquant leur attachement à Descartes en introduisant dans leur Logique des fragments entiers des Regulae; les Oratoriens, chez qui Descartes avait de bonne heure compté tant d'amis, favorablement disposés par la ressemblance qu'ils voyaient entre son spiritualisme et celui de saint Augustin; nous touchons ici à une politique compliquée, qui aboutit à des pamphlets comme le Voyage du monde de Descartes du P. Daniel, aux accusations d'hérésie de M. de La Ville [...] et, plus brutalement, à un formulaire imposé par les Jésuites aux professeurs Oratoriens (1678), qui déclaraient croire aux formes substantielles, aux accidents réels et au vide”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, II, p. 113-114. 563 “O projeto [que] Descartes almejava [era], em última instância, a legitimação metafísica de sua filosofia natural, que era decididamente copernicana. Para que essa legitimação metafísica tivesse êxito, era preciso mostrar que ela se coadunava com os ensinamentos da Igreja e não implicava nem conduzia a nenhuma heterodoxia teológica. Em termos gerais, Descartes menteve-se longe das questões teológicas, restringindo sua atuação a mostrar que não havia incompatibilidade entre sua metafísica e a ortodoxia teológica”. GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 435. 564 Cf. KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao mundo infinito, cap. IV e V, p. 100 e segs, p. 116 e segs.

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incitado a identificar e justificar esse lugar565. Descartes sabe que sua ciência é

certa, mas, ao mesmo tempo, perigosa. Ele tem pleno domínio dessa ciência, Le

Monde é sua expressão acabada. Mas como fazer para torná-la aceitável, como

fazer para que sua ciência encontre espaço entre os doutos, um meio tão

resistente a qualquer outra ciência que não fosse a oficialmente transmitida nas

cátedras universitárias? Descartes pretende não só ombrear-se com Copérnico

e Galileu, mas até mesmo construir um sistema completo, mais fundamentado

que os estudos parciais destes. Precisa tornar o mecanicismo palatável aos

meios acadêmicos; mas como fazer isso sem colocar em risco sua obra, ou

mesmo sua própria vida? O caminho politicamente correto e menos perigoso,

não seria buscar na metafísica, melhor, em Deus, os fundamentos de sua

física566? A condenação de Galileu já não seria um indicativo dos perigos que

se anunciavam para qualquer ciência que tivesse a pretensão de afirmar-se à

revelia da palavra de Deus, a Bíblia? Descarte não pretende ter a mesma sorte

de Galileu: “ceux qui ont fait condamner Galilée, et qui feraient bien

condamner aussi mes opinions, et s’ils pouvaient, en même sorte”567. Assim, é

plausível sustentar que: “a questão da legitimação metafísica surgiu,

principalmente, em virtude de Descartes tomar o heliocentrismo como uma

conseqüência direta da cosmologia mecanicista de Le Monde, e de as

condenações de 1616 e, sobretudo, 1633, haverem indicado que nenhum

argumento puramente natural-filosófico seria aceito568” pelos doutos e teólogos

565 “El Dios cartesiano es creador y conservador del mundo, pero no tiene nada más que compartir con éste. Dios no es el alma que penetra, vivifica y mueve el mundo. Puesto que es infinito y espiritual, Dios está fuera del mundo. Urgido por el teólogo Henry More a decir dónde estaba Dios, Descartes se vio obligado a contestar nullibli, en ninguna parte. A causa de dicha respuesta Descartes y los cartesianos fueron llamados ‘nullibistas’ y ateos”. REALE, G. e ANTISERI, D. Historia del pensamiento filosófico y científico, II, p. 330. 566 “Em suma, a essência de um Deus cartesiano estava largamente determinada pela sua função filosófica, que era criar e preservar um mundo mecânico da ciência como o próprio Descartes o concebeu”. GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 68. 567 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 323-324; AT., III, p. 349-350. 568 GAUKROGER, S. Descartes, uma biografia intelectual, p. 430.

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da Igreja569. Alquié parece ir ao ponto central da discussão quando sustenta: “o

569 É bastante conhecida a bela obra que Bertol Brecht escreveu sobre A vida de Galileu. Mesmo sabedo que essa peça de teatro mistura dados de realidade com dados de ficção, vale a pena citar, aqui, o diálogo (talvez só imaginado por Brecht, mas, mesmo que assim o seja, não se encontra muito fora do alcance da realidade dos fatos) entre Galileu e o Pequeno Monge. Este, mesmo reconhecendo a teoria de Galileu como verdadeira, tenta convencê-lo a renunciá-la e acolher, com humildade, o Decreto do Collegium Romanum. “Cenário: ‘No palácio do embaixador de Roma. Galileu escuta o Pequeno Monge que, após a sessão do Collegium Romanum, lhe havia assoprado a conclusão do astrônomo papal’. Começa o diálogo, Galileu solicitando que o Pequeno Monge fale o que deseja falar. Diz Galileu ao Pequeno Monge: Pode falar, fale! A roupa que o senhor usa lhe dá o direito de dizer toda e qualquer coisa. O PEQUENO MONGE: Eu estudei matemática, Senhor Galileu. GALILEU: Não seria má coisa, se levasse o senhor a concordar que dois e dois, ao menos de vez em quando, fazem quatro! O PEQUENO MONGE: Senhor Galileu, há três noites que eu não durmo, eu não consegui conciliar o Decreto, que eu li, com o satélite de Júpiter, que eu vi. Decidi que rezava missa hoje cedo e vinha ver o senhor. GALILEU: Para me dizer que não há satélites em Júpiter? O PEQUENO MONGE: Não. Mas consegui perceber a sabedoria do Decreto. O Decreto me fez ver que a pesquisa desenfreada é perigosa para a humanidade, e eu decidi renunciar à astronomia. Apesar disso, ainda faço questão de submeter ao senhor os motivos que podem levar, mesmo um astrônomo, a desistir de elaboração e uma certa teoria. GALILEU: Pois lhe digo que esses motivos eu conheço bem. O PEQUENO MONGE: Entendo que o senhor esteja amargo. O senhor está pensando em certos poderes extraordinários que a Igreja dispõe. GALILEU: Diga de uma vez: instrumento de tortura. O PEQUENO MONGE: Mas quero lembrar outras razões. O senhor permita que eu fale de mim. Nasci no campo, sou fïlho de camponeses. São gente simples. Sabem tudo sobre a oliveira, mas pouco além disso. Observando as fases de Venus, vejo os meus pais diante de mim, sentados diante do fogão com a minha irmã, comendo o seu queijo. Acima deles vejo o teto, escurecido pela fumaça de muitos século e vejo bem as suas mãos velhas e deformadas, segurando a colher pequena. A vida deles não é boa, mas até a sua desgraça manifesta uma certa ordem. São os vários circulos, desde os dias de lavar o chão, até as estações no olival, até o pagamento dos impostos. Há regularidade nos desastres que eles sofrem. As costas de meu pai vergam, mas não é de uma vez, é um pouco mais em cada primavera, trabalhando nas oliveiras; e os partos, é a mesma coisa, vinham regularmente, até deixar a minha mãe acabada. Para subir por esses caminhos desgraçados, arrastando um cesto e pingando suor para parir os filhos, e até para comer, é preciso ter força, e essa força de onde é que eles tiram, se não é do sentimento da constância e da necessidade, que lhes vem olhando os campos, olhando as árvores, que reverdecem todos os anos, vendo a igreja pequena, ouvindo a Bíblia aos domingos. Eles estão seguros — foram ensinados assim — de que o olho de Deus está posto neles, atento, quase ansioso, de que o espetáculo do mundo foi construído em torno deles, para que eles, os atores, pudessem desempenhar os seus papéis grandes ou pequenos. Que diria a minha gente se ouvisse de mim que moram num pedaço pequeno de rocha que gira ininterruptamente no espaço vazio, à volta de outra estrela, um pedaço entre muitos, sem maior expressão? Para que tanta paciência e resignação diante da miséria? Elas não fïcariam sem cabimento? Qual é o cabimento da Sagrada Escritura que explicou tudo e disse que tudo é necessário, o suor, a paciência, a fome, a submissão, se ela agora está toda errada? Não, eu vejo o olho deles ficando arisco, vejo como descansam a colher, vejo como eles se sentem traídos e esbulhados. Então o olho não está posto em nós, é o que pensam. Nós é que precisamos cuidar de nós mesmos, sem instruções, velhos e acabados como estamos? Nenhum papel nos foi destinado, afora este papel terrestre e lamentável, numa estrela minúscula, inteiramente dependente, que não tem nada girando à sua volta? Não há sentido na nossa miséria; fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido; esforço é vergar as costas e arrastar, não é mérito. O senhor compreende agora a verdadeira misericórdia maternal, a grande bondade da alma que eu vejo no Decreto da Santa Congregação. GALILEU: Bondade da alma! Provavelmente, o que o senhor quer dizer é só que não sobrou nada, que o vinho foi bebido, que a boca deles está seca, de modo que o melhor é beijar a batina! Mas por que não há nada? Por que é que só é ordem, neste país, a ordem de uma gaveta vazia? E necessidade só existe a de se matar no trabalho? Em meio das vinhas carregadas, ao pé dos trigais! Seus camponeses pagam a guerra que o Vigário do suave Filho de Deus provoca na Espanha e na Alemanha. Por que ele põe a Terra centro do universo? Para que o trono de Pedro possa ficar no centro da Terra! E isso que importa. O senhor tem razão, não são os planetas que importam, são os camponeses. E o senhor, não me venha com a beleza dos fenômenos que o tempo redourou! O senhor sabe como a ostra margaritífera produz a sua pérola? É urna doença de vida ou morte. Ela envolve um corpo estranho, intolerável para ela, um grão de areia, por exemplo, numa bola de gosma. Ela quase morre no processo. A pérola que vá para o diabo. Eu prefiro a

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problema da conexão da ciência e do ser era colocado, na sua época [de

Descartes], com particular intensidade, pelos conflitos que se iam

multiplicando entre o conhecimento racional e o religioso [...], o caso Galileu

parecia tornar mais urgente a solução do problema”570. Seria até possível

pensar que Descartes obteve maior sucesso do que seus antecessores quando se

pensa num sistema totalizante, único que estabelece conexão entre diversas

formas de conhecimento, uma única unidade racional; foi capaz, através de sua

filosofia, de estabelecer a conexão entre, de um lado, a física e a metafísica, ou

melhor, de estabelecer os fundamentos metafísicos da física; por outro lado,

estabeleceu a conexão entre a física e as ciências particulares, sobretudo a

mecânica. Todo este mundo, traduzido em signos matemáticos, é concebido

como funcionando segundo as leis da mecânica. Se o Le Monde é a expressão

plena da nova ciência mecanicista cartesiana, as Meditações são a legitimação

dessa nova ciência. Neste sentido, pode-se dizer que a metafísica de Descartes

supre a falta que ele denunciava na filosofia de Copérnico e de Galileu:

“Je commencerai cette lettre par mes

observacions sur le livre de Galilée. Je trouve

en général qu'il philosophe beaucoup mieux

que le vulgaire, en ce qu'il quitte le plus qu'il

peut les erreurs de l'École, et tâche à examiner

les matières physiques par des raisons

mathématiques. En cela je m'accorde

ostra com saúde. A miséria não é condição das virtudes, meu amigo. Se a sua gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Hoje, a virtude dos exaustos nasce da terra exausta, mas eu sou contra. Meu caro, as minhas novas bombas d'àgua fazem mais milagre do que a sua ridícula trabalheira sobre-humana. — ‘Crescei e multiplicai-vos’, pois os campos são estéreis e a guerra vos dizima. O senhor quer que eu minta à sua gente? BRECHT, B. A vida de Galileu, p. 131-135. 570 ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o Mecanismo, p. 33.

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entièrement avec lui et je tiens qu'il n'y a point

d'autre moyen pour trouver la vérité. Mais il

me semble qu’il manque beaucoup en ce qu'il

fait continuellement des digressions et ne

s'arrête point à expliquer tout à fait une

matière; ce qui montre qu'il ne les a point

examinées par ordre, et que, sans avoir

considéré les premières causes de la nature, il

a seulement cherché les raisons de quelques

effets particuliers, et ainsi qu'il a bâti sans

fondement. Or d'autant que sa façon de

philosopher est plus proche de la vraie,

d'autant peut-on plus aisément connaitre ses

lautes, ainsi qu’on peut mieux diré quand

s'égarent ceux qui suivent quelquefois le droit

chemin, que quand s'égarent ceux qui n'y

entrent jamais”571.

Descartes, com sua metafísica, preparou o vau para que a ciência mecanicista

fosse tida como o único caminho verdadeiro através do qual o mundo pode ser

dominado e explorado pelos seres humanos, a saúde destes conservada e seu

trabalho aliviado. O mundo talvez não deixe de ser a expressão da generosidade

de Deus, mas deixa de ser o palco onde Deus encena o espetáculo de suas

verdades, para tornar-se pura matéria, pura extensão, que se deixa traduzir

numa linguagem matemática, expressão do Geômetra, que o modelou em

“triângulos, círculos e outras figuras geométricas” e que, nos tempos de

571 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 91; AT., II, p. 380.

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Newton, se tornará o engenheiro que construiu e faz funcionar esta grande

máquina.

IMPASSES DA METAFÍSICA CARTESIANA

Apesar do esforço lógico que Descartes faz para conduzir a nau de sua

metafísica sem transgredir a ordem lógica de seu próprio sistema filosófico,

seus intérpretes e críticos não deixam de apontar transgressões, inconsistências

conceituais, cometidas por ele na construção do seu projeto filosófico.

Descartes, ainda em vida, duelou contra seus críticos em defesa de sua

filosofia. Basta contemplar o conjunto de sua Obra, entre elas, as Objeções e

Respostas e, principalmente, sua Correpondência, para se ter a verdadeira

dimensão da luta travada por ele contra seus críticos. Apesar do esforço de

Descartes para defender a estrutura lógica de seu sistema filosófico, não é

possível negar que, em determinados momentos, ele próprio encontra muitas

dificuldades para justificar, no limite da pura razão natural, alguns enunciados

da armadura de sua metafísica. Seus intérpretes, críticos e opositores, estão

sempre atentos para apontar essas dificuldades lógicas do racionalismo

cartesiano. De todos os possíveis problemas existentes na metafísica cartesiana

– decorrentes da necessidade de Descartes de, primeiro, fundar uma física

puramente mecanicista e, segundo, estabelecer, para essa física, uma

fundamentação metafísica – dois parecem ser consenso entre os seus intérpretes

e críticos, são eles: 1 - o dualismo cartesiano; 2 - o círculo cartesiano. Sobre

esses dois problemas, mesmo paradoxos, se fará, a partir de agora, uma breve

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apreciação crítica; mostrando as diversas posições, tanto do próprio Descartes,

quanto dos seus críticos e opositores, ou simplesmente a posição daqueles que,

apesar das constantes divergências exegéticas, se apresentam e são

reconhecidos como seus legítimos intérpretes.

1 – 0 dualismo cartesiano. Este é um paradoxo que gerou ao próprio Descartes

e ainda tem gerado, entre seus intérpretes, grandes polêmicas e conflitos de

interpretações572. O que teria levado Descartes, depois de passar quase todo

percurso de sua obra fundamentando rigorosamente a distinção entre o espírito

e a matéria, a res-cogitans e a res-extensa, no final da Sexta Meditação, buscar

uma unidade entre essas duas substâncias distintas573? É possível justificar,

respeitando os preceitos do método, como sempre quis Descartes, essa união?

Caso não seja possível, estaria em risco a própria ordem lógica da metafísica

cartesiana? Se no primeiro momento, a distinção entre espírito e matéria, alma

e corpo, é essencial para a ciência cartesiana, no segundo momento, a união

entre espírito e matéria, alma e corpo, torna-se necessária para a fundamentação

metafísica da ciência. Com a distinção, Descartes faz ciência, com a união,

Descartes estabelece os fundamentos metafísicos da ciência. A conquista da

matéria como pura extensão, tornou possível a Descartes combater a física 572 O problema do dualismo, ou seja, a distinção e, ao mesmo tempo, a união substancial entre a alma e o corpo, se encontra presente em toda obra de Descartes, bem como na sua correspondência e nas respostas que ele apresenta contra as objeções que lhes são feitas. Seguem algumas referências onde o tema pode ser encontrado: Respostas às quartas objeções feitas por Arnauld, AT., VII, p. 218 e s., Alq., II, p. 668-669 e s.; Carta a Regius, janeiro de 1642, AT., III, p. 492 e s., Alq., II, p. 914-915; Resposta a..., agosto de 1641, AT., III, p. 421 e s., Alq., II, p. 359 e s.; Carta a Arnauld, 29 de julho de 1648, AT., V, p. 222 e s., Alq., III, p. 860 e s.; Respostas às quintas objeções, AT., VII, p. 384 e s., Alq., II, p. 832-836; Respostas às sextas objeções, AT., VII, p. 441-447, Alq., III, p. 882 e s.; Carta a Elizabeth, 28 de junho de 1643, AT., III, p. 691-692, Alq., III, p. 43-49; Carta a Elizabeth, 21 de maio de 1643, AT., III, p. 665, Alq., III, p. 19. 573 “Um dos grandes paradoxos do desenvolvimento filosófico de Descartes é que, depois de despendida tanta energia para argumentar que a mente e o corpo são duas substâncias distintas e mutuamente independentes, ele tenha gastado uma grande parte de sua década final de vida insistindo em sua interdependência – uma interdependência tão próxima e imediata que chega ao que ele chamou ‘união substancial real”. COTTINGHAM, J. Descartes, p. 41.

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qualitativa de tipo aristotélica. Afirmando a matéria como pura extensão,

Descartes exclui dela, todas as qualidades sensíveis, elimina da matéria aquela

“alma interior”, que a física qualitativa creditava a essa574. Retirando da matéria

tudo que não é matéria, vendo-a como um puro conceito matemático, pode

Descartes submetê-la ao espírito, tendo-a sob o seu mais absoluto domínio575. A

união entre matéria e espírito, se faz necessária à metafísica cartesiana porque,

através dela, a ordem do sistema se fecha, o espírito pode garantir a existência

da matéria e, com isso, afirmar que o mundo existe; portanto, garantido pelo

cogito, afirma a existência do próprio sujeito, em seguida a existência de Deus

e por último a existência do mundo. No primeiro momento, o entendimento é

puro entendimento, distinto, de forma absoluta, de qualquer relação que não

faça parte da sua própria essência: “deve-se conceber que essa força pela qual

conhecemos propriamente as coisas é puramente espiritual e não é menos

distinta do corpo inteiro do que o sangue o é do osso ou a mão do olho”576.

Neste momento, a incomunicabilidade entre espírito e matéria é plena, a

separação é completa. Escreve Descartes: “cada substância tem um atributo

principal; o da alma é o pensamento, e o do corpo é a extensão”577. Continua o

meditador: “... a extensão em comprimento, largura e altura constitui a natureza

da substância corporal, e o pensamento constitui a natureza da substância que 574 “A idéia da separação da alma e do corpo é fundamental no sistema de Descartes. Ela é em primeiro lugar a conquista inicial do método. O “cogito” significa que podemos conhecer com plena certeza a existência da alma, enquanto a dúvida ainda continua a pairar sobre a existência do corpo e dos corpos em geral. E uma vez provada a existência destes, o que se fará na 6ª Meditação, fica estabelecida a diferença substancial entre duas noções cuja confusão fazia em grande parte a confusão e a incerteza de toda ciência e de toda filosofia da Idade Média”.TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes, p. 74-75. 575 “Aqueles que não filosofaram por ordem, formularam outras opiniões sobre este assunto porque nunca distinguiram com bastante cuidado a sua alma [ou seja, aquilo que pensa] do corpo [ou seja, o que é extenso em comprimento, largura e altura]. Mas ainda que não pusessem nenhuma dificuldade em crer que estavam no mundo, estando mais seguros disto do que de qualquer outra coisa, como não tiveram em conta que quando se tratava de uma certeza metafísica deviam considerar somente o pensamento, e que, pelo contrário, preferiam crer que era o corpo que viam com os olhos e tocavam com as mãos e ao qual despropositadamente atribuíam a faculdade de sentir, por isso não conheceram distintamente a natureza da alma”. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 12, p. 31. 576 DESCARTES, R. Regras para orientação do espírito, XII, p. 79. 577 DESCARTERS, R. Princípios da filosofia, I, art. 53, p. 46.

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pensa”578. Essa distinção, esse dualismo entre espírito e matéria, percorrerá

todo o sistema filosófico de Descartes579. Já no início das Meditações, ele faz

questão de estabelecer essa distinção:

“... e, portanto, pelo próprio fato de que

conheço com certeza que eu existo, e que, no

entanto, noto que não pertence

necessariamente nenhuma outra coisa à minha

natureza ou à minha essência, a não ser que

sou uma coisa que pensa, concluo

efetivamente que a minha essência consiste

somente em que sou uma coisa que pensa ou

uma substância da qual toda a essência, ou

natureza consiste em pensar. E embora talvez

[...] eu tenha um corpo ao qual estou muito

estritamente conjugado, todavia, já que, de um

lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim

mesmo, na medida em que sou apenas uma

coisa pensante e inextensa, e que, por outro

lado, tenho uma idéia distinta do corpo, na

medida em que é apenas uma coisa extensa e

que não pensa, é certo que este eu, isto é,

minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira

578 Idem, ibidem. “Com efeito, tudo quanto pode ser atribuído ao corpo pressupõe a extensão e não passa de dependência do que é extenso. Igualmente, todas as propriedades que encontramos na coisa pensante são diferentes maneiras de pensar. Por exemplo, não poderíamos conceber uma figura se não for uma coisa extensa, nem um movimento sem ser num espaço extenso; assim, a imaginação, o sentimento e a vontade dependem de tal maneira de uma coisa que pensa que não o podemos conceber sem ela. Pelo contrário, já podemos conceber a extensão sem a figura ou sem movimento, e a coisa pensante sem imaginação ou sem sentimento, e assim por diante, como se revelará a quem prestar atenção”. Idem, Ibidem. 579 “The thesis of the incorporality of the mind seems, from first to last, a fixed point in Descartes thinking”. COTTINGHAM, J. Cartesian dualism: theology, metaphysics, and science, In: The Combridge companion to Descartes, p. 236.

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e verdadeiramente distinta do meu corpo e que

pode ser ou existir sem ele”580.

A este primeiro momento da metafísica cartesiana, segue-se o segundo: para

sair de um eu puramente subjetivo, regulado exclusivamente pela ordem

matemática, que não implica nenhuma necessidade de que esses entes pensados

existam, de fato, fora do pensamento – “meu pensamento não impõe

necessidade alguma às coisas”581 –, Descartes precisa provar a existência do

mundo físico; só assim sua ciência torna-se possível, só assim, sua metafísica

pode tornar-se raiz de sua ciência. Nesse segundo momento, a metafísica de

Descartes precisa dessa união substancial para justificar a existência do próprio

mundo; sem ela jamais se poderia provar que existe algo para além do próprio

entendimento e, como conseqüência, a metafísica, matriz dos conceitos de

extensão e movimentos, não encontraria a matéria sobre a qual a física, ou

melhor, a própria ciência justifica-se e legitima-se582. Pode-se dizer que essa

união substancial é a união entre a metafísica e a física, entre o entendimento e

580 DESCARTES, Meditações, p. 186-187. Segundo Antônio Damásio, “esse é o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre substância corporal, infinitamente divisível, com volumes, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, por um lado e a estrutura e funcionamento do organismo biológico do outro”. Continua o autor: “é curioso pensar que Descartes contribuiu para a alteração do rumo da medicina, ajudando a abandonar a abordagem orgânica da mente-no-corpo que predominou desde Hipócrates até o Renascimento. Se o tivesse conhecido, Aristóteles teria ficado irritado com Descartes”. O erro de Descartes, p. 280 e 282. 581 DESCARTES, R. Meditações, p. 174. 582 “… el pensamiento, tomado aparte, no debería contener nada que no fuera inteligible, claro e distinto; para que haya en ello algo obscuro y confuso, es necesario que su substancia se encontre alterada por una substancia estraña, y hasta que esté bastante íntimamente unida a esta substancia para que la naturaleza de su propio contenido se encuentre modificado hasta tal punto. La existencia de sensaciones confusas que nacen en el alma sin su consentimiento prueba por lo tanto que el alma está substancialmente unida a un cuerpo, y por consiguiente también que este cuerpo existe. Pero una vez probada la existencia del cuerpo al que está unido, el alma se ve obligada a admitir la existencia de otros cuerpos, que obran sobre el suyo, y cuya acción sufra por su intermedio; por lo tanto el mundo exterior existe”. GILSON, É. Introdução, In: DESCARTES, R. Obras filosóficas, p. 15.

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a matéria, entre a res-cogitans e a res-extensa. Sem essa união, apesar de todos

os problemas dela derivados, ter-se-ia a incomunicabilidade absoluta entre

esses dois mundos e o projeto cartesiano, de uma ciência universal, através da

qual toda ordem do saber fosse legitimada, não se consumaria583. Essa

necessidade lógica do sistema justifica que, na Sexta Meditação, Descartes

venha a unir aquilo que, no início das Meditações, foi separado. No resumo da

Sexta Meditação, escreve Descartes: “Mostro que a alma do homem é

realmente distinta do corpo e que, todavia, ela lhe é tão estritamente conjugada

e unida que compõe como uma mesma coisa com ele” 584. Neste momento,

surpreendentemente, aquilo que Descartes fez questão de distinguir, mostrando

sua incompatibilidade substancial, volta a se “unir”, estabelecendo-se entre

duas substâncias distintas, uma união substancial, um único todo. Segundo

Descartes, a própria natureza ensina ao espírito a necessidade dessa união

substancial: “a natureza me ensina também por esses sentimentos de dor, fome,

sêde etc, que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu

navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estritamente e de tal

modo confundido e misturado que componho com ele um único todo”585. Em

carta a Elizabeth, 28 de junho de 1643, escreve Descartes: “concevoir l’union

qui est entre deux choses, c’est les concevoir comme une seule”586. Descartes

está tão certo de que essa união, entre o corpo e a alma, é uma união substancial

583 “Esta ciencia [a física] estudia en efecto el mundo de los cuerpos; pues bien, la metafísica acaba de definir el objeto de sus investigaciones con perfecta precisión; no queda, pues, a la física nada más que hacer que aceptar esta definición y adaptarse a ella. Es expresarse mal, en efecto, decir que la metafísica prueba la existencia del mundo exterior; prueba únicamente la existencia de la extensión y no garantiza nada más. Sin la unión del alma y del cuerpo, y las sensaciones confusas que de ella resultan, no podríamos probar jamás la existencia del mundo de los cuerpos; pero la sola idea clara y distinta que tenemos de este mundo, es la de la extensión , con la del movimiento que no es más que una sucesión de sitios ocupados por un mismo cuerpo en la extensión; la extensión y el movimiento son, pues, las únicas cosas exteriores cuya existencia hayamos probado verdaderamente, y por consiguiente também las únicas que puedan ser el objeto de la física”. Idem, p. 15-16. 584 DESCARTES, R. Meditações (resumo da sexta Meditação), p. 114. 585 DESCARTES, Meditações, p. 189. 586 Idem, Correspondência, Alq., III, p. 44; AT., III, p. 692.

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que, quando Regius, um cartesiano de primeira hora, professor da Universidade

de Utrecht, publica um texto afirmando que o homem é um ser por acidente,

que a união entre a alma e o corpo é uma união determinada “par sa situation

et sa disposition”, Descartes, o responde, de forma veemente, ao mesmo tempo

em que reafirma que “l’âme est réellement et substantiellement unie au corps,

non par sa situatíon et sa disposition (comme vous dites dans votre dernier

écrit, ce qui est encore faux et sujet à être repris selon moi), mais qu’elle est

unie au corps par une véritable union...”587. Nas Respostas as Quartas

Objeções, Descartes reafirma o que disse no final da Sexta Meditação (Cf. nota

585, supra): “Car, dans la même sixième Méditation, où j’ai parlé de la

distinction de l’esprit d’avec le corps, j’ai aussi montré qu’il lui est

substantiellement uni; pour preuve de quoi je me suis servi de raisons qui sont

telles, que je n’ai point souvenance d’en avoir jamais lu ailleurs de plus fortes

et convaincantes”588. Questão, de fato, embaraçosa. Como é possível que

substâncias absolutamente distintas em suas naturezas, em suas essências,

possam unir-se, formar um único todo? “Como podem duas substâncias que

apresentam atributos totalmente diferenciados (extensão e pensamento)

encontrar-se numa conexão causal recíproca? Pela lei da física, uma tal

conexão não é explicável”589. Gassendi, nas Cinquèmes Objections, questiona

Descartes: “Comment une chose corporelle pourra-t-elle en embrasser une qui 587 “...ainsi, toutes les fois que l’occasion s'en présentera, vous devez avouer, soit en particulier, soit en public, que vous croyez que l’homme est un véritable être par soi et non par accident; et que l’âme est réellement et substantiellement unie au corps, non par sa situatíon et sa disposition (comme vous dites dans votre dernier écrit, ce qui est encore faux et sujet à être repris selon moi), mais qu'elle est unie au corps par une véritable union, telle que tous l’admettent, quoique personne n'explique quelle est cette union, ce que vous n'êtes pas tenu non plus de faire. Cependant vous pouvez l’expliquer, comme je l’ai fait dans ma Métaphysique, en disant que nous percevons que les sentiments de douleur, et tous autres de pareille nature, ne sont pas de pures pensées de l’âme distincte du corps, mais des perceptions confuses de cette âme qui est réellement unie au corps : car si un ange était uni au corps humain, il n'aurait pas les sentiments tels que nous, mais il percevrait seulement les mouvements causés par les objets extérieurs, et par lá il serait différent d'un véritable homme “. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 914-915; AT., III, p. 492-493. 588 Idem, Meditações, Réponses aux Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 668-669; AT., IX, p. 177. 589 PERLER, D. O projeto de uma refutação radical do saber, In: KREIMENDAHL, L. Filósofos do século XVII, p. 108.

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est incorporelle, pour la tenir unie et jointe à soi-même? Ou bien comment ce

qui est incorporel pourra-t-il s’attacher à ce qui est corporel, pour s’y unir et s’y

joindre réciproquement, s’il n’y a rien du tout en lui par quoi il se le puisse

joindre ni par quoi il lui puisse être joint590? Descartes sempre buscou garantir

toda a ordem da razão por princípios claros e distintos; como, a partir dessa lei

normativa do pensamento, justificar essa união substancial? Basta ter a certeza

que Deus garante todo conhecimento claro e distinto, para tornar possível, de

forma indubitável, essa união substancial? Tem a razão, verdadeiramente, um

pensamento claro e distinto sobre essa união substancial? Este princípio é

suficiente para garantir a verdade da distinção; terá ele validade para garantir a

união? Em princípio teria que ter, já que Deus garante todos os conhecimentos

claros e distintos591. O problema é saber se, sobre essa união, pode a razão ter

um conhecimento claro e distinto. Só este princípio basta para garantir a

validade dessa união e invalidar todas as posições ou críticas contrárias? Não

estaria completamente fora do alcance da razão, mesmo garantido o princípio

por Deus, a possibilidade de verdadeiramente dar conta dessa união?

Conseguiria Descartes superar esse dualismo que a ordem lógica de sua

metafísica engendra? Apesar dos vários argumentos filosóficos que Descartes

aduz para justificar essa união, parece que nem ele próprio está convencido de,

racionalmente, poder fundamentá-la e justificá-la a contento. Parece que o

próprio Descartes reconhece a impossibilidade de superar, racionalmente, a

contradição que se faz presente nessa união substancial. Segundo Hamelin, as

respostas de Descartes ao problema da união substancial não resolvem a

contradição que o próprio problema apresenta; seriam respostas meramente

590 DESCARTES, R. Meditações – Cinquièmes Objections, Alq., II, p. 783-784; AT., VII, p. 344. 591 “... sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo”. DESCARTES, R. Meditações, p. 186.

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verbais592. Burman questiona Descartes: “Comment l’âme peut-elle être

affectée par le corp et réciproquement, puisque ce sont des natures tout à fait

différentes593? Descartes reconhece a dificuldade para justificar, a partir de

princípios claros e distintos, essa união substancial: “Cela est très dificile à

expliquer; mais l’expérience suffit: elle est si claire ici, qu’on ne saurait

aucunement la nier; on le voit bien dans les passions...”594. Acaso, não parece

estranho que Descartes recorra à experiência cotidiana, para justificar essa

união substancial e não mais ao conhecimento claro e distinto, repetido quase

como um mantra em toda sua metafísica, como lei balizadora de todo

conhecimento que busca afirmar-se como verdadeiro, revelando-se como

ciência? Não parece que, neste caso, Descartes está renunciando à possibilidade

de, através da razão, fundamentar e justificar essa união substancial? De fato,

essa união substancial está fora do alcance do entendimento, fora do alcance

das idéias claras e distintas, fora do alcance de sua ciência, fora do alcance de

sua física, seu sintoma são as experiências comuns dos homens que, por sua

própria natureza, são incertas e confusas595. O próprio Descartes recomenda a

Elisabeth (carta supra citada) que, se ela quiser conhecer a união substancial

entre o corpo e a alma, deve deixar-se guiar, não pelo entendimento, mas pela 592 “Descartes, pues, en el fondo, ha mezclado indudablemente, de modo realista, el pensamíento y la extensión, restaurando así, bajo el nombre de unión de alma y cuerpo, una de esas entidades a medias material y a medias espiritual, que justamente él había denunciado y combatido en los escolásticos. El carácter contradictorio y verbal de su doctrina se manifiesta por sí mismo. La unidad de composición que, de dos seres completos y separados, forma un tercer ser, es, si es posible, más contradictoria en Descartes que en la escolástica, si se tiene en cuenta la resuelta concepción que aquel supo formarse de la incompatibilidad de la extensión y el pensamiento. Establecida esta incompatibilidad, el tercer orden de cosas constituído por su unión es evidentemente quimérico, o en otros términos, la tercera idea primitiva que Descartes agrega a las del pensamiento y la extensión no puede ser más que un nombre. Por estas razones, la lógica de la historia ha despreciado como nulas las declaraciones literales de Descartes y ha reconocido, en cambio, que el ocasionalismo es, en espíritu y en verdad, la única doctrina cartesiana de las relaciones del alma y el cuerpo”. HAMELIN, O. Op. Cit., p. 298. 593 DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 71. 594 Idem, ibidem. 595 “[...] uma coisa é certa: que a união da alma e do corpo não se conhece pelo entendimento e nem pelo entendimento ajudado pela imaginação. Como só pode haver conhecimento certo pelo entendimento, conclui-se que o conhecimento possível das coisas da união da alma e do corpo há de ser inevitavelmente incerto e confuso”. TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes, p. 84.

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experiência comum, pelas conversas ordinárias, pela experiência da própria

vida: “... usant seulement de la vie et des conversations ordinaires, et en

s’abstenant de méditer et d’étudier aux choses qui exercent l’imagination,

qu’on apprend à concevoir l’union de l’âme du corps”596. Segundo Gilson, essa

união é possível, mas não racionalmente concebível: “reste à savoir si cette

union substantielle que requiert le système y est concevable? Elle y reste

possible, mais non concevable”597. É ilustrativo, como conclusão destas

considerações, melhor, dessa renuncia de Descartes em encontrar uma

fundamentação lógica e plausível para justificar essa união substancial, ver a

resposta que Descartes fornece à Rainha Elizabeteh, quando esta demonstra

inquietude e insatisfação com os argumentos apresentados por Descartes para

justificar e fundamentar a união substancial. É surpreendente a resposta com a

qual Descartes busca aplacar as inquietações intelectuais da Rainha. Ao

responder, parece que Descartes desiste de uma vez por todas de encontrar

argumentos racionais para justificar a tese de uma união substancial entre o

corpo e a alma; é como se desistisse de sua própria tese, reconhecendo a

impossibilidade lógica de tal união. Não parece que o espírito humano seja

capaz de dar conta, com clareza e evidência, dessa união: “...j’ai jugé que

c’était ces méditations, plutôt que les pensées qui requièrent moins d’attention,

qui lui ont fait trouver de l’obscurité en la notion que nous avons de leur

union; ne me semblant pas que l’esprit humain soit capable de concevoir bien

distinctement, et en même temps, la distinction d’entre l’âme et le corps, et

leur union; à cause qu’il faut, pour cela, les concevoir comme une seule chose,

et ensemble les concevoir comme deux, ce qui se contrarie”598. Alguns têm

tomado essa posição de Descartes, como um ato de jogar a toalha, desistir 596 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 45; AT., III, p. 693. 597 GILSON, É. Texte et commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la Méthode, p. 434. 598 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 46; AT., III, p. 693.

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definitivamente de buscar, na pura ordem da razão, uma fundamentação

plausível para justificar a união substancial599.

2 - O círculo cartesiano600. Esse é um problema lógico, até mesmo um

paradoxo, que se apresenta na transição e subordinação da física à metafísica

cartesiana. Descartes, na Terceira Meditação, estabeleceu o princípio de

clareza e distinção como regra para o conhecimento de todas as verdades,

inclusive para provar a existência de Deus. Portanto, Deus, num primeiro

momento, é uma conquista da razão, pois é através das idéias claras e distintas

que o cogito prova sua existência. Entretanto, conquistada esta verdade, “Deus

existe”, Descartes recorre a Deus, para garantir a própria verdade conquistada.

As idéias claras e distintas garantem o conhecimento que se tem de Deus;

recorre-se a Deus para garantir e validar as idéias claras e distintas. “Em poucas

palavras, o problema que surge é o seguinte: se é preciso que se confirme a

599 Cf. COTTINGHAM, J. Descartes, p. 48. 600 Este é um problema que o próprio Descartes teve que enfrentar desde cedo. Já nas Objeções e Respostas, este paradoxo, em diversos momentos, lhe é apresentado: “Em terceiro lugar, como ainda não estais certo da existência de Deus e dizeis, no entanto, que não podeis estar seguro de coisa alguma, ou conhecer coisa alguma clara e distintamente, se primeiro não conheceis certa e claramente que Deus existe, segue-se que não sabeis ainda que sois uma coisa pensante, porquanto, segundo vós, tal conhecimento depende do conhecimento claro de um Deus existente, que ainda não demonstrastes, nos lugares onde concluís que conheceis claramente o que sois”. Cf. DESCARTES, R. Meditações – Segundas Objeções, p. 204. “Il ne me reste plus qu'un scrupule, qui est de savoir comment il se peut défendre de ne pas commettre un cercle, lorsqu' il dit que nous ne sommes assurés que les choses que nous concevons clairement et distinctement sont vraies, qu'à cause que Dieu est ou existe. Car nous ne pouvons être assurés que Dieu est, sinon parce que nous concevons cela très clairement et très distinctement; donc, auparavant que d'être assurés de l'existence de Dieu, nous devons être assurés que toutes les choses que nus concevons clairement et distinctement sont toutes vraies”. Cf. Idem, Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 652; AT., VII, p. 214. Segundo Loeb, sob a questão do Círculo cartesiano, existem duas linhas de interpretações assim denominadas: interpretação epistemológica e interpretação psicológica. De acordo com a interpretação epistemológica: “Descartes holds that the argument for the truth rule removes the reason for doubt in that it provides a good reason not to doubt beliefs based on clear and distinct perception, or at least shows that there is no good reason to doubt them. Filiam-se a essa intepretação: Doney, Frankfurt, and Gewirth.” De acordo com a interpretação psicológica: “Descartes holds that the argument for the truth rule removes the reason for doubt in that it renders it psychologically impossible to doubt beliefs based on clear and distinct perception, or at least enables one to attain a state in which it is psychologically impossible to doubt them. Larmore and Rubin are most clearly proponents of this interpretation”. LOEB, L. E. The cartesian circle, In: The Cambridge companion to Descartes, p. 201.

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existência de um Deus veraz para que eu tenha confiança nas percepções claras

e distintas de meu intelecto, então, como posso, sem incorrer em circularidade,

basear-me nas percepções intelectuais que foram, no princípio, necessárias à

construção da prova da existência de Deus?”601. Não parece que Descartes está

raciocinando em círculo602? Se as idéias claras e distintas garantem um

conhecimento verdadeiro, por que precisa-se de Deus para garantir a verdade

das idéias claras e distintas603? De fato, Descartes afirma que todo

conhecimento claro e distinto é verdadeiro; dele não se pode duvidar, mas só o

é na garantia da presentificação do próprio ato do pensamento: “por mais que

ele [o gênio malígno] me engane não poderá jamais fazer com que eu nada seja,

enquanto eu pensar ser alguma coisa”604; “eu sou, eu existo: isto é certo, mas

por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso”605. Portanto, a

palavra “enquanto”, determina a “duração” do próprio ato do pensamento, o eu

é, enquanto pensa, durante o tempo em que está pensando, fora desse tempo (o 601 COTTINGHAM, J. Dicionário - Descartes, p. 34. 602 Nas respostas às Quartas Objeções, Descartes declara aos críticos, que o acusam de ter fundado a sua base metafísica a partir de um raciocínio circular, o que lhe retirava qualquer fundamento lógico: “Enfin j'ai déjà fait voir assez clairement, dans les réponses aux secondes Objections [...], que je ne suis point tombé dans la faute qu'on appelle cercle, lorsque j'ai dit que nous ne sommes assurés que les choses que nous concevons fort clairement et fort distinctement sont toutes vraies, qu'à cause que Dieu est ou existe; et que nous ne sommes assurés que Dieu est ou existe, qu'à cause que nous concevons cela fort clairement et fort distincte-ment; en faisant distinction des choses que nous concevons en effet fort clairement, d'avec celles que nous nous ressouvenons d'avoir autrefois fort clairement conçues”. Meditações, résponses aux Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 690; AT., VII, p. 214. Entretanto, pareceria que essa resposta ainda não é suficiente para resolver o problema e dar conta das críticas recebidas. Na resposta às Segundas Objeções, Descartes trata a questão numa outra perspectiva, mostrando porque a razão precisa recorrer a Deus para validar-se, já que a razão não pode recorrer a si mesma. Isso implicaria em cair, aí sim, em uma circularidade: “Primeiramente, tão logo pensamos conceber claramente qualquer verdade, somos naturalmente levados a crer nela. E, se tal crença for tão forte que jamais possamos alimentar qualquer razão de duvidar daquilo que acreditamos desta forma, nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda a certeza que se possa razoavelmente desejar. Pois, o que nos importa, se talvez alguém fingir que mesmo aquilo, de cuja verdade nos sentimos tão fortemente persuadidos, parece falso aos olhos de Deus ou dos anjos, e que, portanto, em termos absolutos, é falso? Por que devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crença ou uma persuasão tão firme, que não possa ser suprimida; a qual, por conseguinte, é em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza. Mas é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável”. Meditações, p. 208. 603 Ver sobre o assunto: GOUHIER, H. La pensée métaphysique de Descartes, p. 265-285; RODIS-LEWIS, G. Descartes – textes et débats, p. 254-277; GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 242-243. 604 DESCARTES, R. Meditações, p. 125, (grifo nosso). 605 Idem, p. 128, (grifo nosso).

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tempo presente), já não se tem garantia da clareza e da distinção dessa verdade.

O tempo da lembrança não oferece a mesma garantia, clara e evidente, do

tempo presente do ato de pensar. Por isso Descartes recorre a Deus para

garantir e validar as verdades derivadas das lembranças e não aquelas que são

intuídas no próprio ato do pensamento, ou seja, “enquanto” o sujeito está

pensando. Deus atua sobre as verdades mediatas, mas não sobre as verdades

imediatas. Essas verdades imediatas se afirmam como claras e evidentes,

independentemente de Deus. Segundo Cottingham: “parece claro, então, que a

forma de Descartes sair da Objeção do Círculo era reivindicar que existem

algumas proposições de cuja auto-evidência poderemos usufruir, desde que

continuemos a ocuparmos-nos delas, sem necessidade alguma de garantia

divina”606. O próprio Descartes afirma o limite sobre o qual a presença de Deus

se faz necessária para garantir e validar algumas proposições: “...onde afirmei

que nada podemos saber de certo, se não conhecemos primeiramente que Deus

existe, afirmei, em termos expressos, que falava apenas da ciência dessas

conclusões, cujas lembranças nos podem retornar ao espírito, quando não

mais pensamos nas razões de onde as tiramos”607. Deus se faz necessário para

garantir e validar as verdades mediatas, que são resgatadas pelas lembranças,

mas não se faz necessário às verdades imediatas, aquelas que são evidentes no

próprio e durante o ato do pensamento. Nos Princípios da Filosofia, Descartes

apresenta essa tese de forma clara e precisa:

“O pensamento conhece-se a si mesmo desta

maneira, embora persista em duvidar das outras

coisas, e quando usa de circunspecção para 606 COTTINGHAM, J. A Filosofia de Descartes, p. 99. 607 DESCARTES, R. Meditações, respostas às Segundas Objeções, p. 218.

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tentar levar o conhecimento mais além encontra

em si primeiramente as idéias de várias coisas;

e enquanto as contempla simplesmente e não

confirma se há alguma coisa fora de si

semelhante as idéias e que também não o

negue, está livre do perigo de se iludir. O

pensamento encontra também algumas noções

comuns com que compõe demonstrações que o

persuadem tão absolutamente de que não

poderia duvidar da sua verdade enquanto se

dedicasse a isso. Por exemplo, tem em si as

idéias dos números e das figuras; ou ainda a

seguinte noção: ‘se acrescentamos quantidades

iguais a outras quantidades iguais, o todo será

igual’, e muitas outras tão evidentes como esta,

por meio das quais se torna fácil, por exemplo,

demonstrar que os três ângulos de um triângulo

são iguais a dois retos, etc. Enquanto apreende

estas noções, bem como a ordem pela qual

deduziu tal conclusão ou outras semelhantes, o

pensamento acha-se muito seguro da sua

verdade. Pórem, como não podia pensar sempre

assim com tanta atenção, quando se lembra de

alguma conclusão sem ter em conta a ordem da

sua demonstração, pensando no entanto que o

autor do seu ser teria podido criá-lo com tal

natureza mesmo se se iludisse em tudo o que

lhe parece muito evidente, vê bem que tem

justa razão para desconfiar da verdade de tudo

aquilo de que não se apercebe distintamente, e

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que não poderia ter nenhuma ciência certa antes

de haver conhecido Aquele que o criou”608.

O ato do pensamento oferece a evidência da verdade, a lembrança desse ato não

oferece a mesma evidência. Por ter restringido o alcance de Deus unicamente

às verdades mediatas, àquelas derivadas das lembranças, Descartes afirma que

seu raciocínio não é circular: “je ne suis point tombé dans la faute qu’on

appelle cercle”609; isso porque – ao afirmar que as coisas que são conhecidas

de forma clara e distinta são verdadeiras, porque Deus existe e que Deus

existe, porque tem-se dele um conhecimento claro e distinto – Descartes

distingue, e é exatamente essa distinção que o livra, segundo ele, de um

raciocínio circular, “des choses que nous concevons en effet fort clairement,

d’avec celles que nous nous ressouvenons d’avoir autrefois fort clairement

conçues”610. Segundo Gilson, Descartes não incorre em nenhum risco ao

solicitar a presença de um Deus veraz para garantir e validar o estatuto de

verdade das idéias claras e distintas, isto porque: “Na realidade, toda evidência

se basta a si própria enquanto durar, mas a percepção da evidência é

inseparável das provas que as preparam, e, como nos dispensamos quase

sempre de recorrer a elas, acontece que raciocinamos menos com as evidências

do que com a lembrança que julgamos ter outrora percepcionado como

evidente. Ora, a recordação de uma evidência não é uma evidência, e a prova

está em que a recordação deste gênero é muitas vezes falsa; a veracidade

divina é invocada por Descartes para provar que tais erros são acidentais, logo,

608 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, 13, p. 31-32. 609 Idem, Meditações, Réponses aux Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 690; AT., VII, p. 214. 610 Idem, Ibidem, (grifo nosso).

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evitáveis, e que a recordação de uma evidência real é tão verdadeira como esta

evidência”611.

Ao longo deste capítulo, percorreu-se toda a metafísica cartesiana, buscando

mostrar a arquitetura lógica da trama conceitual através da qual Descartes

apresenta e justifica suas três verdades: a existência do sujeito pensante, a

existência de Deus e, por último, a existência do mundo. Buscou-se, na

primeira parte deste capítulo, deixar a metafísica cartesiana seguir seu curso

natural, sem interferir ou submetê-la, sempre que possível, a nenhuma

apreciação crítica, obedecendo, rigorosamente, à planta riscada por Descartes

na construção de uma metafísica capaz de superar toda metafísica sensualista

que o antecedeu e, ao mesmo tempo, capaz de dar conta, justificar e legitimar, a

partir de referências derivadas unicamente da razão natural, a ciência

mecanicista, na esteira de Copérnico e Galileu, que se anunciava na aurora do

século XVII. No segundo momento deste capítulo, de forma crítica, buscou-se

entender e problematizar a presença de Deus na metafísica cartesiana; buscou-

se saber em que sentido a presença de Deus interfere na intenção originária da

razão, ser auto-suficiente no processo de construção da verdade. Uma pergunta

direcionou a construção e a necessidade da segunda parte deste capítulo: o que

teria levado Descartes a buscar na metafísica os fundamentos primeiros e

últimos para a ciência? Se o rigor lógico do método é suficiente para garantir a

verdade da ciência, se a lógica da razão dá conta da lógica da mundo – como

foi visto no capítulo anterior -, que necessidade teria Descartes de ir buscar em

Deus os fundamentos metafísicos para a ciência? Em torno dessa questão,

outras se fizeram necessárias, mas todas elas tendo a mesma natureza e 611 GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 80, nota 44.

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intenção: saber até que ponto a presença de Deus na metafísica cartesiana

interfere com o sujeito pensante ou retira dele a autonomia da racionalidade, o

destitui de ser quem funda a ordem de verdade sobre ele mesmo, sobre Deus e

sobre o mundo. Deus percorre toda a metafísica cartesiana, buscando um lugar

para instalar sua morada na ordem lógica da razão. De fato, não se pode negar

que Descartes tenha encontrado tal lugar para Deus habitar. Entretanto, apesar

desse lugar, que Deus assume na ordem lógica da razão, em nenhum momento

(e foi isso que se tentou demonstrar ao longo desse capítulo) sua presença

destitui o sujeito de sua autonomia congnoscente. Apesar da presença de Deus,

Descartes preservou, na estrutura lógica de sua metafísica, a autonomia do

sujeito como aquele a partir do qual o homem, Deus e o mundo, adquirem

sentido e significado. Por último, no final deste capítulo, busca-se mostrar as

dificuldades, até mesmo impasses lógicos, enfrentados por Descartes, para

acomodar, na ordem lógica do seu sistema, a presença de Deus. O dualismo,

bem como a construção de um raciocínio circular, são provas evidentes das

dificuldades enfrentadas por Descartes para justificar e legitimar o lugar de

Deus no interior de seu sistema metafísico.

Mesmo reconhecendo que, de fato, Descartes justifica e acomoda Deus como o

pilar fundamental de sustentação de seu projeto metafísico, isso não encerra a

questão; pelo contrário, abre uma longa e acirrada polêmica de caráter

exegético: qual é a natureza desse Deus de que fala Descartes em sua

metafísica? Havendo na metafísica cartesiana uma subordinação de Deus à

ordem da razão, não é mais possível afirmar que esse Deus que aí sobrevive

tem a mesma essência que o Deus que se encontra presente na religião; não é

mais possível tomar o Deus que sobrevive na metafísica cartesiana como o

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Deus da fé, o Deus da revelação. Sem dúvida, o Deus que sobrevive na

metafísica cartesiana é o Deus da razão, um Deus que se justifica a partir de

uma necessidade lógica, um Deus cuja natureza é uma exigência da razão e não

um Ser sobrenatural que, de sua transcendência, revela-se e comunica-se ao

homem através da fé. É sobre a natureza deste Deus da metafísica cartesiana

que tratará o próximo capítulo deste trabalho; buscar-se-á saber um pouco mais

sobre sua natureza e quais são suas possíveis relações com o Deus da revelação,

o Deus que as Sagradas Escrituras anunciam ao mundo. Buscar-se-á também

saber se é possível compatibilizar o Deus da metafísica cartesiana com o Deus

dos cristãos ou se a construção lógica de um sistema racional no qual se

justifica a essência ou natureza de Deus, não é, ao mesmo tempo, o anúncio do

fim de Deus, a preparação de sua consumação. Descartes, é verdade, teria então

encontrado, em sua metafísica, um lugar para Deus; teria legitimado, a partir de

fundamentos puramente racionais, sua existência, bem como sua necessidade

na arquitetura de seu projeto filosófico, mas, ao inserir Deus na ordem do

pensamento, não o teria condenado à morte? O antropocentrismo de Descartes

não colocaria o homem no lugar de Deus? A metafísica cartesiana não seria, ao

fim e ao cabo, a nascente originária da idéia da “morte de Deus”? Não teria

sido Descartes, de fato, o autor que criou as condições teóricas para a afimação

da idéia da morte de Deus? Este é o assunto do próximo capítulo.

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TERCEIRO CAPÍTULO

DESCARTES: A ORIGEM DA MORTE DE DEUS

Ut comoedi, moniti ne in fronte appareat pudor, personam induunt, sic ego, hoc mundi theatrum conscensurus, in quo

hactenus spectator exstiti, larvatus prodeo (Descartes – Cogitationes privatx612)

O presente capítulo pretende ser uma consequência ou conclusão dos dois

capítulos anteriores. Poder-se-ia mesmo dizer que tudo que foi trabalhado até

agora foi uma preparação da tese que será desenvolvida neste capítulo.

Entretanto, isto não quer dizer que os dois capítulos anteriores se apresentem

apenas como introdução ao terceiro capítulo; cada um deles sustenta e dá conta

de uma tese própria: o primeiro dá conta da ciência; o segundo, da metafísica

cartesiana. De outro lado, a autonomia dos capítulos não pressupõe a inteira

independência dos temas abordados. Há entre eles um encadeamento lógico,

expressão da ordem das razões recomendada pela filosofia de Descartes613.

612 Cf. AT., X, p. 213. 613 “Et il est à remarquer, en tout ce que j’écris, que je ne suis pas l’ordre des matières, mais seulement celui des raisons: c’est-à-dire que je n’entreprends point de dire en un même lieu tout ce qui appartient à une matière, à cause qu’il me serait impossible de le bien prouver, y ayant des raisons qui doivent être tirées de bien plus loin les unes que les autres; mais en raisonnant par ordre a facilioribus ad difficiliora, j’en déduis ce que je puis, tantôt pour une matière, tantôt pour une autre; ce qui est, à mon avis, le vrai chemin pour bien trouver et expliquer la vérité”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 301; AT., III, p. 266, (grifo nosso). “Na

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Assim, justifica-se o fato de, em alguns momentos, temas que já foram

contemplados nos capítulos anteriores serem novamente retomados. É neste

sentido que o capítulo encontra nos dois capítulos que o antecedem, uma

preparação para seu advento.

A morte de Deus, tem sua origem na ciência cartesiana, ciência sem metafísica,

e se consuma na metafísica racional, naquela metafisica que encontra-se nos

fundamentos da matemática, única a indicar o que é seguro e certo para o

exercício da razão. Não há dúvida de que Deus, como um problema filosófico,

percorre todo o trajeto deste trabalho. Como foi estudado no primeiro capítulo,

Descartes buscou, em todo seu projeto científico, construir uma ciência em que

Deus não se fizesse necessário, em que a ordem de todas as coisas encontrasse

como fundamento a natureza das próprias coisas, as leis matemáticas que

regem a substância extensa de que a natureza é constituída. O mecanicismo

cartesiano toma todo o mundo físico como objeto, cuja natureza é puramente

matemática, que se deixa traduzir e revelar pela razão humana, instância que

expressa toda a ordem de verdade constitutiva da ordem do mundo. Não há,

pois, lugar para Deus na ciência cartesiana. Se a filosofia de Descartes se

restringisse a sua ciência – pelo menos no primeiro momento, qual seja, no

momento em que Descartes escreve Le Monde –, poder-se-ia afirmar que Deus

não tem nenhuma função na ordem do saber humano. Entretanto, como foi

visto ao logo de todo o primeiro capítulo, Descartes tem, além de um interesse

medida em que, após haver aqui apresentado algumas de minhas palavras, acrescentais que é tudo quanto disse no que se refere à questão proposta, sou obrigado a advertir o leitor de que não cuidastes suficientemente da se-qüência e da conexão daquilo que escrevi; pois creio que ela é tal para a prova de cada questão que todas as coisas que a precedem, para isso contribuem e grande parte das que a seguem: de sorte que não poderíeis relatar fielmente tudo quanto disse de alguma questão se não apresentásseis ao mesmo tempo tudo o que escrevi a respeito das outras”. DESCARTES, R. Meditações – respostas do autor às Quintas Objeções, p. 275.

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científico, um interesse político: legitimar, tornar aceitável entre os doutos e

teólogos do seu tempo, aquela ciência, por ele aceita como absolutamente

verdadeira, que tem origem em Copérnico e Galileu. Portanto, é válido afirmar

que Descartes, ao aceitar a responsabilidade de legitimador da nova ciência,

assume um papel que ultrapassa o de um simples cientista e reveste-se, com

todas as conseqüências que a ultrapassagem pode e vai acarretar, de um alcance

político. Assim, a metafísica cartesiana é a expressão dessa ação que identifica,

em Descartes, uma atitude, ao mesmo tempo, de cientista e de político. Se no

segundo capítulo Deus tornou-se fundamento da física, a ciência aí repousando,

em toda sua ordem de verdades, Descartes não o fez por um ato gratuito; pelo

contrário, ele reconhece que não é possível fazer ciência sem estabelecer a

causa primeira da ordem de todo o saber; a causa primeira é Deus. Entretanto,

Deus que, na metafísica cartesiana, tornou-se causa primeira, ou primeiro

princípio, desempenha duas funções no sistema filosófico de Descartes. Em

primeiro lugar, desempenha a função gnosiológica, condição e possibilidade da

estrutura lógica do próprio sistema como um todo; em segundo lugar, exerce

uma função política, ou seja, tornar possível, entre a ordem culta de seu tempo,

o acolhimento da ciência mecanicista, o acolhimento de uma ciência em que a

presença de Deus é quase nula ou desnecessária. O problema de Descartes é,

por um lado, encontrar um Deus que possa, sem fugir dos limites da

racionalidade, sustentar toda a árvore do conhecimento, e, por outro, não

escandalizar os senhores que se apresentam como os legítimos representantes e

administradores da verdade originária do Deus da revelação. Para legitimar e

justificar a natureza e a necessidade de Deus em seu sistema filosófico,

Descartes abandona o Deus da revelação, o Deus que revela ao homem, através

da fé, todas as verdades, inclusive algumas daquelas que têm origem nas

ciências, e assumi um Deus desprovido da aura sobrenatural, cuja natureza é

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puramente lógico-matemática, encontrando na razão natural o limite, sua

condição de ser. Descartes, seja porque motivo for, puramente científico,

político ou religioso, ao subordinar a física à metafísica, ao subordinar a ciência

a Deus, acabou por deslocar radicalmente o Deus da religião para a filosofia,

subordinando-o a fundamentos puramente racionais e, como conseqüência,

acabando por instaurar, no Ocidente, uma nova natureza de Deus: um Deus que

atende a necessidades estritamente lógicas que a razão, no seu livre exercício,

formula para justificar e legitimar suas próprias verdades. É sobre a natureza do

Deus cartesiano que tratará o terceiro capítulo. Buscar-se-á saber até que ponto

o Deus da metafísica cartesiana corresponde ao Deus cristão, àquele que fala ao

homem através das Sagradas Escrituras, ou se, ao contrário, o Deus cartesiano

nem de Deus pode ser chamado, sendo mais um fundamento lógico, um puro

conceito posto pela razão como base de sustentação de toda a estrutura

gnosiológica do conhecimento humano – pelo menos para aquele conhecimento

que pretende ser reconhecido como ciência. É o Deus de Descartes o Deus dos

cristãos ou um Deus da razão, um Deus dos filósofos? Teria como o Deus da

revelação, sem perder sua aura de mistério, sobreviver no universo estritamente

lógico-matemático da metafisica cartesiana? Teria Descartes, ao subordinar o

Deus da revelação a fundamentos estritamente matemáticos, dado início à

preparação do anúncio da morte de Deus? Ao final das Meditações, ainda é

possível falar do Deus da filosofia cartesiana como se estivesse falando do

mesmo Deus da religião cristã? O Deus que sobrevive às Seis Meditações é o

mesmo Deus que o cristianismo apresenta aos seus adeptos para ser conhecido,

amado, adorado e tomado como aquele que enviou seu Filho ao mundo para

redimir os homens dos pecados? Ao afirmar o Eu pensante como centro

gravitacional em torno do qual tudo, absolutamente tudo, inclusive Deus, gira e

tem que se submeter às provas de validação para afirmar-se como idéia clara e

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distinta, para afirmar-se como verdadeiro, não teria Descartes imposto a Deus

uma perda de referência, afirmando-o como um mero coadjuvante na ordem do

pensamento; tirando-lhe a autoridade que lhe fora creditada pela doutrina cristã,

representada pela revelação neo-testamentária, pela Patristíca e pela

Escolástica, ao defenderem a tese de que o Deus da revelação afirmava-se

como causa primeira e última de todas as coisas, como verdade primeira da

qual originam-se todas as verdades possíveis independentemente de qualquer

prova racional? São perguntas que têm sido alvo de reflexão de reconhecidos

estudiosos da filosofia de Descartes. Entretanto, não há entre os intérpretes, em

sua grande maioria, consenso sobre o papel de Deus na filosofia cartesiana ou

mesmo o papel que desempenha a religião nesta filosofia. É freqüente a

constatação de que Descartes, no que diz respeito à religião, nunca usou de

muita sinceridade. O próprio Descartes em muito contribuiu para isso, não se

mostrando por inteiro, escondendo-se nas entrelinhas de seu texto, nos seus

subtextos, mascarando-se para não deixar à mostra a verdadeira face ou suas

verdadeiras intenções. Não foi ele mesmo quem anunciou que, como diz a

epígrafe deste capítulo, tal qual os atores, entraria no teatro do mundo,

mascarado? Como decifrar o enigma Descartes? Como encontrar o que

verdadeiramente esconde por trás das máscaras? “Voilà comment, il y a une

enigme cartésienne, et pourquoi il convient d’en démêler l’angoisse et le

mystère chez un homme dont la devise, d’ailleurs, est révélatrice: qui bene

latuit, bene vixit”614. Descartes sempre foi um homem cauteloso com a sua

própria exposição, nunca se mostrou diretamente, sempre teve o cuidado de

procurar saber o que estavam pensando ou falando sobre ele. Quando da

publicação das Meditações, antes de apresentá-las ao público, fez questão de,

através de seu amigo Mersenne, que fossem encaminhadas a diversos 614 LEROY, M. Descartes, le philosophe au masque, I, p. 19.

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intelectuais, para que pudesse saber, por antecipação, a opinião dos mesmos

sobre sua obra, melhor: para que essa fosse publicada já com uma defesa sobre

as críticas a ela dirigidas. Esse é mais um esforço de Descartes para evitar

possíveis confrontos com as autoridades religiosas e, como conseqüência, obter

a aprovação da Sorbone para sua metafísica. Descartes não quer, de forma

alguma, desagradar os teólogos. É o que revela ao padre Mersenne em 30 de

setembro de 1640615. O resultado desta atitude são as Objeções e Respostas,

publicadas como anexo ao corpo do texto das Seis Meditações. O próprio

Descartes, em carta a Mersenne, de 8 de outubro de 1629, declara como

gostaria de se comportar em relação ao público que poderia tomar

conhecimento de sua filosofia: “Au reste, je vous prie de n'en parler à personne

du monde; car j'ai résolu de l’exposer en públic, comme un échantillon de ma

Philosophie, et d'être caché derrière le tableau pour écouter ce qu'on en dira”616.

Escreve Descartes nos Princípios da Filosofia: “Contudo, e porque não quero

fiarme demasiado em mim mesmo, não afirmo nada: submeto todas essas 615 “Je m’étais ci-devant proposé de ne faire imprimer que vingt ou trente exemplaires de mon petit traité de Métaphysique, pour les envoyer à autant de théologiens et leur en demander leur opinion, ainsi que je vous avais mandé. Mais pour ce que je vois pas que je puisse faire cela sans qu’il soit vu presque de tous ceux qui aurant la curiosité de le voir..., il me semble que je farai peut-être mieux d’en faire faire une impression publique tout du premier coup. Car je ne crains pas qu’il y ait rien qui puisse désagréer aux théologiens; mais j’eusse seulement désiré avoir l’approbation de plusieurs pour empêcher les cavillations des ignorants qui ont envie de contredire et qui pourront être d’autant plus éloquents en cette matière qu’ils l’entendront moins et qu’ils croiront qu’elle peut être moins entendue par le peuple, si ce n’est que l’autorité de plusieurs gens doctes les retienne. Et pour cela j’ai pensé que, si je vous envoyais mon traité en manuscrit et que vous le fissiez voir au P. Gibieuf [superior da ordem dos Oratórios], auquel je pourrais aussi en écrire pour le prier de l’examiner, je suis fort trompé s’il manque à me faire la faveur de l’approuver. Puis vous le pouvez aussi faire voir à quelques autres, selon que vous jugerez. Et ayant ainsi l’approbation de trois ou quatre ou plusieurs, on le ferait imprimer, et je le dédierais, si vous le trouvez bon, à Messieurs de la Sorbonne en général, afin de les prier d’être mes protecteurs en la cause de Dieu. Car je dirai que les cavillations du Père Bourdin m’ont fait résoudre à me munir dorénavant, le plus que je pourrai, de l’autorité d’autrui, puisque la vérité est si peu estimée étant seule... Puisque je dois recevoir les objections des Jésuites dans quatre ou cinq mois, je crois qu’il faut que je me tienne en posture de les attendre. Et cependant j’ai envie de relire un peu leur philosophie, ce que je n’ai pas fait depuis vingt ans, afin de voir si elle me semblera maintenant meilleure qu’elle ne faisait autrefois... Je voudrais bien aussi savoir s’il y a quelqu’un qui ait fait un abrégé de toute la philosophie de l’Ecole et qui soit suivi; car cela m’épargnerait le temps de lire leurs gros livres”. DESCARTES, R. Correspondência; apud, LABERTHONNIÈRE, In: Études sur Descartes, II, p. 175-176. Obs.: Esta carta consta, em latim, na Edição de AT. (III, p. 233), não constando na Edição, em francês, de Alquié. Por este motivo, a referida carta foi citada aqui na tradução feita por Laberthonnière. 616 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 224; AT., I, p. 23.

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minhas opiniões aos juízos dos mais sábios e à autoridade da Igreja”617.

Portanto, Descartes, de fato, não gosta de expor-se, prefere habitar entre as

sombras, gosta de manter-se no anonimato, prefere ver do que ser visto,

prefere não correr riscos618, evita, de todas as formas, tronar-se protagonista de

qualquer polêmica. Na sexta parte do Discurso do Método, Descartes declara

sua pretensão de que o público, através de seus livros, tome conhecimento de

suas idéias, entretanto, para proteger-se das pôlemicas e das controvésias, acaba

mudando de opinião619: “Mas sobrevieram, desde então, outras razões que me

levaram a mudar de opinião, e pensar que devia na verdade continuar

escrevendo todas as coisas que julgasse de alguma importância, (...) mas que

não devia de modo algum consentir que fossem publicados durante a minha

vida, a fim de que nem as oposições e as controvérsias a que estariam talvez

sujeitos, nem mesmo a reputação, qualquer que ela fosse, que me pudessem

granjear, me dessem o menor ensejo de perder o tempo que desejo empregar

em instruir-me”620. Palavras que só confirmam a pretensão, quase obsessiva, do

meditador em proteger-se e preservar-se. Realmente a metáfora da máscara lhe

cai bem; não há nenhuma ironia na atitude, parecendo que Descartes sempre

desejou mesmo não mostrar-se, usar máscara, para, fora do olhar do outro,

poder ser ele verdadeiramete quem é e, acima de tudo, poder dedicar-se, por 617 Idem, Princípios da filosofia, IV, art. 207, p. 277. 618 Diz Jaspers sobre Descartes: “... no es fácil mostrar de manera más precisa y más clara (...) en qué consiste precisamente la grandeza filosófica de Descartes. Esa grandeza ha sido puesta en duda. En la literatura sobre Descartes existen hipotéticas revelaciones por medio de las que se lo quiere desenmascarar como un hipócrita que no dice lo que piensa; como un cobarde que se esconde, se oculta con máscaras, siempre temeroso y desconfiado; como un arrogante insoportable que, al mismo tiempo que envidia la capacidad de los demás, realiza una astuta política en beneficio de su propia gloria; como un revolucionario que desea destruir todo lo existente. A tales apreciaciones no nos adherimos de ninguna manera". JASPERS, K. Descartes y la filosofia, p. 7-8. 619 Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 94. 620 Idem, p. 94-95. Em 1 de novembro de 1646, portanto, bem depois da publicação do Discurso do Método, recorrendo aos versos de Sêneca, Descartes volta a declarar que, para evitar as polêmicas e controvérsias em torno de sua obra, não mais publicará livros: “... je crois que le mieux que je puisse faire dorénavant, est de m’abstenir de faire des livres; et ayant pris pour ma devise: ‘Illi mors gravis incubat, / Qui, notus nimis omnibus, / Ignotus moritur sibi’ (Une mort pénible l’attend / Celui qui, trop connu de tous / Meurt inconnu de lui-même), de n’étudier plus que pour m’instruire...”. Idem, Alq., III, p. 694; AT., IV, p. 537; Tradução feita por Alquié (Alq., III, p. 684).

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inteiro, a seu trabalho, sem ser incomodado por terceiros. Saber qual é o

verdadeiro Descartes que se esconde por trás das máscaras, é o que todos os

estudiosos e intérpretes buscam. Apesar da seriedade com que cada um deles

empenha-se na tarefa, quase sempre o resultado obtido é mais um convite para

que outros, com igual seriedade e competência, continuem o trabalho que,

tentando ser definitivo, mostra-se provisório e parcial. Descartes acaba sempre

mostrando-se novo, quando um novo olhar dirige-se à sua obra, não tendo

assim, intencionalmente ou não, facilitado o trabalho dos intérpretes. O

‘enigma Descartes’ continua à espera de seu Édipo Rei. Segundo Leroy,

“Descartes s’échappe; il se cache; il dissimule un secret; toute sa vie, il fut

préoccupé de ‘chiffres’; il prétendit même écrire à la Princesse Palatine en

usant de cette sûreté”621. Falando espcificamente sobre a religião de Descartes,

diz Laporte: “La Religion de Descartes a fait couler beaucoup d’encre. Tout ce

qu’on en peut dire est subordonné à la question de sa sincérité”622. Uns

afirmam que Descartes é sincero quando toma Deus como fundamento de sua

metafísica, outros o acusam de insinceridade, creditando-lhe o papel de

dissimulador, que nunca diz verdadeiramente o que pensa623. Eis Descartes

apresentado pelos intérpretes: ora, um puro racionalista que volta as costas às

questões teológicas, ora um apologista da religião624. “Depuis que l’on étudie

621 Op. Cit., I, p. 13. 622 LAPORTE, Jean, Le rationalisme de Descartes, p. 299 623 “Por toda a obra metafísica de Descartes, encontramos uma tensão entre o que poderia ser chamado modo racionalista, em que o projeto é tornar inteiramente transparente a estrutura da realidade à luz razão, e o que poderia ser chamado de modo devocional em que o meditador humildemente reflete sobre a grandeza da divindade e a fraqueza da mente humana perante a incomparável majestade do criador. COTTINGHAM, J. Dicionário – Descartes, p. 51. 624 “Sabe-se que, para alguns, Descartes é um filósofo a-religioso, apenas ocultando o seu jogo quando se julga em perigo; para outros, é um verdadeiro apologista”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 50. Entre os intéprestes de Descartes que o definem como um apologiata da fé católica, encontra-se Adriano Baillet, seu primeiro biógrafo. Baillet o apresenta “como un Cristiano sincero vibrante de fé, un apologista que ante todo se propone defender la religión contra los libertinos. También admiten su sinceridad religiosa Antonio Arnauld, Monseñor Dupanloup, A Laberthonnière y, más recientemente, H. Espinas, E. Blondel, J. Chevalier, H. Gouhier, E. Gilson”. RAILLE, G. Historia de la filosofia, III, p. 543. “Su ortodoxia y hasta su sinceridad religiosa fueron puestas en litigio por algunos contemporáneos protestantes (G. Voet) y católicos (P. Valois);

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Descartes il y a deux compre-hensions: la compréhension racionaliste et la

compréhensions apologétique, qui, plus que jamais, s’affrontent”625. Segundo

Blondel, “C’est un problème que le christianisme de Descartes, et un problème

qui n’est simple, ni peut-être susceptible d’une solution unique et

catégorique”626. Descartes acaba por fornecer subsídios para que os intérpretes

encontrem, em sua obra, bases para afirmar teses tão opostas, deixando, sobre

ele, uma tremenda polissemia de interpretações, distintas e até conflitantes.

Assim, levando-se em conta a perspectiva de um só intérprete, jamais se terá,

sobre Descartes, uma visão abrangente, e o quanto possível, sobre a vida, a

obra, ou a relação entre a vida e a obra. “O que se pode dizer a respeito de um

Descartes diferente do filósofo puramente racionalista e exclusivamente

interessado na ciência. Porque os historiadores modernos descobriram um

Descartes não só metafísico, mas também cristão. Sem dúvida há fatos que

justificam as opiniões opostas a respeito da religião de Descartes, opiniões que

vieram a lume já durante a vida do filósofo. Assim, enquanto na Holanda

Descartes encontra-se obrigado a defender-se das acusações de ateísmo perante

os professores de uma universidade protestante, na França ele é acusado de

freqüentar o culto protestante. Fatos como esses deram origem a uma sorte de

debates entre autores modernos franceses que apresentam, uns, um Descartes

agnóstico ou deista, como M. Blondel e Ch. Adam, e talvez pertencente à

confraria dos Rosa-Cruz, como M. Leroy, no seu Descartes, le philosophe au

masque, cheio de inteligência; outros, como Espinas, L. Blanchet, H. Gouhier e J.

Laporte, não hesitam em fazer de Descartes um Católico coerente e sincero e

después por los tradicionalistas, en el siglo XIX (lammennais, Montalembert, Lacordaire, Gebert, que llegaron a calificarlo de ‘Lutero de la filosofía’); más tarde por los neotomistas (Gioberti, Liberatore), por A. Fouillée y, recientemente, por G. Cantecor y Máximo Leroy”. Idem, p. 544. 625 LEROY, M. Op. Cit., I, p. 23. 626 BLONDEL, M. Dialogues avec les philosophes, p. 41.

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mesmo um apologista da fé”627. Só a título de exemplo dessas posições

exegéticas, será mostrada aqui a posição de dois intérpretes de Descartes, cada

um defendendo uma das teses acima enunciadas628. Henri Gouhier, depois de

formular uma série de ponderações sobre alguns textos de Descartes,

principalmente uma carta dirigida a Mersenne, datada de 15 de abril de 1630,

em que Descartes defende a tese de que Deus é o autor das verdades eternas,

atribui um caráter apologético à metafísica cartesiana629: “Ainsi, sa Physique

será, cette fois, directement une oeuvre apologétique, puisque ses lecteurs

apprendront à honorer Dieu et à parler de lui autrement que les païens”630.

Maxime Leroy, no livro Descartes – le philosophe au masque, questiona, de

forma interrogativa, a sinceridade religiosa de Descartes: “Loyal sujet, qu’a-t-il

pensé sur les rois et sur les peuples? Catholique, dans ses déclarations, aurait

été, à part soi, Rose-Croix, déiste et même athée, ou peut-être descrètement

protestant par bienséance sociale? Qu’a-t-il pensé sur l’Eglise, sur l’École, sur

627 TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral em Descartes, p. 6. 628 Sobre esse assunto, vale a pena ver o resumo que L. Teixeira faz da introdução do livro de Henri Gouhier, La pensée religieuse de Descartes: “H. Gouhier, na parte introdutória de seu trabalho, faz um resumo dos estudos modernos sobre a religião de Descartes, mencionando primeiro aqueles que, desde D'Alembert (no prefácio da Enciclopédia) e passando pur Bouillier, Renouvier, Fouillé e outros, apresentam um Descartes ‘racionalista’, isto é, libertador de uma razão que durante toda a Idade Média permanecera acorrentada e impotente. Trata em seguida dos que sustentam a tese de que Descartes foi antes de tudo um cientisia um ‘físico’, para o qual a metafísica não constitui senão um ponto de partida, uma introdução, ‘um apóio solido à verdade científica’. Entre os que sustentam essa tese, aliás de pontos de vistas bem diversos e de opiniões diferentes sobre a religião em descartes, encontram-se: Liard, Ch. Adam, Gilson, Laberthonnière, Jacques Maritain, Levy-Brühl. Em terceiro lugar H. Gouhier, à guisa de transição para sua própria tese, na qual sustenta as ‘intenções apologéticas de Descartes’ nos apresenta os estudos de A. Espinas e L. Blachet que defendem a idéia de um Descartes apologista”. TEIXEIRA, L. A religião de Descartes (Separata do n. 21 da Revista de História), p. 3. Ainda sobre esse mesmo assunto, vale a pena levar em conta as indicações bibliográfica, feitas por Máxime Leroy, sobre a filosofia cartesiana: “D'admirables études ont été écrites, pendant les vingt ou trente dernières années, sur Descartes. Le sujet est inépuisable. Lisons d'abord les anciens: Víctor Cousin, Millet, Bouillier. Lisons ensuite nos contemporains: Ch. Adam, auteur d'une très belle biographie; L. Lévy-Brühl, dont un cours sur Descartes est célèbre, León Brunschvicg, le profond philosophe-mathématicien, l'historien Gustave Cohen, qui nous a révélé un Descartes hollandais de l'originalité la plus imprévue, la plus neuve; Étienne Gilson, parfait commentateur du Discours; Hamelin, G. Milhaud, Louis Liard, Espinas, Fortunat Strowski, Louis Dimier, Roustan, Blanchet, H. Gouhier, Paul Rives, A. Koyré, J. Chevalier, Alain, Paul Valéry, sociologues, psychologues, historiens et savants, tous cartésiens subtilement informés”. LEROY, M. Op. Cit., I, p. 24. 629 Cf. Idem, p. 19. 630 GOUHIER, H. La pensée religieuse de Descartes, p. 77.

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les Jésuites, ses maîtres, tout au fond de lui même? Descartes a, expressément,

mis en dehors de sa méthode, donc du doute et du libre examen, les vérités de

la foi: en ceci, il reproduisait d’anciennes distinctions de théologiens, il

respectait les limites au delà desquelles ceux-ci déclaraient hérétiques et

malicieuses les investigations de la raison. Il afirma sa foi, il remplit ses devoirs

monarchistes et religieux, non sans ostentation. Fut-il sincère?”631. Ao longo da

obra Leroy procura demonstrar a insinceridade religiosa de Descartes. Como a

pretensão deste capítulo não é aprofundar nesta questão, não serão aqui

apresentados argumentos favoráveis ou contra as teses contrárias defendidas

por Gouhier e Leroy. É possível creditar razão a cada um dos intérpretes, a

depender da perspectiva do olhar que toma a obra de Descartes como alvo de

reflexão. Assim, a razão muda de lugar quando o olhar toma direção contrária.

Nunca se pode ter certeza absoluta sobre as convicções religiosas de Descartes,

pois só ele próprio pode revelar as verdadeiras convicções632. Resta aos seus

intérpretes propor interpretações dos sinais que Descartes vai deixando ao

longo de sua caminhada filosófica, lembrando, no entanto, que, por mais

competentes e reconhecidos que sejam, eles apresentam uma visão, uma

perspectiva da questão, o que, naturalmente, não é a última nem tampouco a

única detentora da verdade; é apenas uma das possíveis interpretações. Sobre os

intérpretes de Descartes diz Leroy: “L’étude du cas Descartes est difficile,

mais, comme on le voit, la diffculté est tout autant dans le silence du grand

homme que dans l’imagination partiale de ses interprètes”633. Dois estudiosos

do pensamento de Descartes destacam-se, até mesmo por apresentarem e

defenderem teses contrárias: Henri Gouhier e Máxime Leroy. Segundo 631 LEROY, M. Op. Cit., I, p. 15. 632 “L’histoire de la philosophie, comme toute histoire, n’est jamais qu’une reconstruction du passé. Cette reconstruction n’est pas susceptible de vérification directe, puisque le passé est mort”. LAPORTE, J. Le rationalisme de Descartes, p. IX. 633 LEROY, M. Op. Cit., I, p. 22.

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Gouhier, Descartes é um apologista da fé católica; segundo Leroy, Descartes

não é um homem sincero no que diz respeito à religião. Segundo Lívio

Teixeira, em relação à questão religiosa de Descartes, não se deve tomar o

partido nem de Gouhier, nem de Leroy, porque “não acreditamos que Descartes

tenha sido intencionalmente um apologista da fé católica, como queria H.

Gouhier e outros. Mas também, não podemos admitir com M. Leroy a tese da

insinceridade do filósofo em matéria de religião”634. Lívio Teixeira, ao final do

trabalho A religião em Descartes, apresenta um quadro bem representativo da

religiosidade de Descartes, quadro que ultrapassa os extremos de Gouhier e

Leroy, sem deixar de contemplar o que os autores apresentam de positivo para

melhor compreensão do tema. Neste sentido, reconhece, por um lado, que

Descartes é um católico, sem ser um paladino da ortodoxia ou mesmo das

questões teológicas, sem colocar sua filosofia a serviço da religião635; de outro

lado, nega que Descartes, em relação à religião, seja um homem insincero,

mascarado, enganador; apresenta-o simplesmente como um católico praticante,

que não se envolve com questões teológicas, que reconhece, desde bem cedo,

que essas questões estão para além da capacidade da razão natural e, portanto,

para além do homem que é simplesmente homem636. Em Descartes encontra-se

uma religião de tradição, um catolicismo que é herança social; em relação à

religião, Descartes não é indiferente, não sendo, no entanto, possível encontrar

nele um exercício religioso do tipo praticado por um Agostinho, um Lutero, um

Pascal; em relação à religião, Descartes é um homem tolerante, sendo prova

634 TEIXEIRA, L. A religião de Descartes, p. 36. 635 Segundo Alquié, “Descartes não foi um cristão muito fervoroso. Sem qualquer fanatismo, recorda a Voët que não fez voto de castidade e não se preocupa com passar por santo”. A filosofia de Descartes, p. 50. 636 Neste sentido, Descartes está sendo coerente com sua própria filosofia, já que reconhece que as questões teológicas estão para além do homem, fora dos limites da razão natural. Já na primeira parte do Discurso do Método, diz Descartes que pensava que, sobre o conhecimento da teologia, “para lograr êxito, era necessário ter alguma extraordinária assitência do céu e ser mais do que homem”. DESCARTES, R. Discurso do método, p. 46. Em carta a Mersenne, 11 de novembro de 1640, diz Descartes: “Notre âme, étant finie, ne peut comprendre l’infini”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 275; AT., III, p. 234.

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disso a forma como se relacionava com as mais diversas tendências religiosas;

apesar de estabelecer, com a religião, uma relação de distanciamento, não deixa

de reconhecer que existe algo a ultrapassar o homem ou a razão humana,

havendo assim certo misticismo no racionalismo cartesiano637.

Apesar de toda a discussão, a questão da religião na obra de Descartes ou

mesmo a religiosidade do próprio Descartes permanecerá em aberto, como uma

questão, pois nenhuma resposta teve força suficiente para silenciar as

inquietações de que, por sua própria natureza, a questão é portadora. Sobre

Descartes nunca se poderia afirmar quais são, verdadeiramente, suas intenções,

pois parte-se de pressupostos, de interpretações de sinais, nem sempre claros,

que o meditador deixa ao longo de sua caminhada. São pistas, mas nunca sabe-

se verdadeiramente se elas conduzem a um resultado seguro e certo.

Seja qual for a posição religiosa de Descartes, o que não se pode negar, e é o

que pretende-se mostrar no capítulo, é que o Deus sobrevivente na metafísica

cartesiana não é mais o Deus cristão, nem o Deus da revelação. O Deus da

metafísica cartesiana anuncia a morte do Deus cristão e afirma um novo Deus:

o Deus da razão, o Deus da ciência, ou, como Pascal o identificou, o Deus dos

filósofos638. A partir de Descartes, o Deus da religião deixa de ser o Ser e a

verdade e tornar-se o Deus da fé pura e simplesmente, que sobrevive à revelia

da razão. Há como que um decréscimo de Deus, fazendo com que o homem

637 Cf. TEIXEIRA, L. A religião de Descartes, p. 36-37. 638 “Desde Blaise Pascal, costuma opor-se o Deus dos filósofos ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Pressupõe-se que a Filosofia não consiga ultrapassar a idéia de um absoluto abstrato, porque se pressupõe que a Filosofia não possa ultrapassar a racionalidade tecnológica”. ZILLES, U. Crer para compreender, p. 42.

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possa prescindir dele, afirmando-se como a única referência originária da

verdade, base segura e certa de todas as outras verdades possíveis. Aquele que,

antes de Descartes, subordinava-se a uma verdade que o antecedia, depois de

Descartes, conquista, ele mesmo, o direito de ser o sujeito da verdade,

conquista o direito de ser, ele mesmo, a causa originária da verdade639. “La

philosophie de Descartes n’exprime pas le ‘point de vue de Dieu’ mais celui

d’un esprit particulier, Descartes lui-même, éprouvant constamment et

résolument le désir de trouver une vérité qui ne soit pas particulière à ce sujet”

640. A metafísica cartesiana, nunca se saberá se essa é a verdadeira intenção de

Descartes, anuncia a morte de Deus. A conseqüência de tal filosofia é fazer

coro com todas aquelas filosofias que, no século XVII, se filiavam a certas

tendências filosóficas que, para afirmar o homem como referência em torno do

qual gira a ordem do saber verdadeiro sobre todas as coisas, tiveram,

necessariamente, de expulsar Deus do centro, destituindo-o do poder de ser o

Ser a partir do qual todas as coisas são e podem ser conhecidas, destituindo-o

da condição de Ser a causa originária da verdade primeira. Segundo Gilson tal

atitude, secularizada e secularizante da filosofia, ocorreu porque,

diferentemente da Idade Média, onde “quase todos os filósofos eram monges,

padres ou pelo menos simples clérigos”641, na Idade Moderna, mais

especificamente, no período identificado como humanismo642, a filosofia,

quase toda ela, “foi criada por leigos, não por homens da Igreja, e para dar

respostas à cidade natural dos homens e não à cidade sobrenatural de Deus”643.

639 Sobre esse assunto, ver BITENCOURT, J. Descartes: a constituição moderna da subjetividade, Cap. 1º (da verdade sem sujeito ao sujeito da verdade) da dissertação de mestrado, PUC-SP, p. 14 e s. 640 GUENANCIA, P. Descartes, p. 11. 641 GILSON, É. Deus e a filsofia, p. 61. 642 “... apesar de sua incerta significação, o humanismo marca a supremacia, em número e qualidade, dos intelectuais leigos sobre o clérigo. E este será um dos rasgo fundamentais da Filosofia moderna: uma Filosofia de homens leigos para a cidade laica”. STACCONE, G. Filosofia da Religião, p. 70-71. 643 GILSON, É. Deus e a filosofia, p. 61.

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O giro gnosiológico, mesmo que tal não fosse a intenção originária dos

pensadores da época, finda por distanciar o homem de Deus, ou melhor, torna o

homem, cada vez mais independente de Deus e, como conseqüência, uma

forma de ateísmo passa a se acentuar no pensamento e na praxis do homem

moderno. É desta forma e trilhando este ideário que o ateísmo se propaga nos

séculos XVII e XVIII644. Mesmo tendo orgulhado-se de ter encontrado

racionalmente as provas da existência de Deus e, como conseqüência, ter

apresentado sua filosofia como aquela que melhor serve para combater os

incrédulos, em carta ao padre Mersenne, de 23 de dezembro de 1630, escreve o

meditador: “Pour moi, j'ose bien me vanter d'en avoir trouvé une qui me

satisfait entièrement, et qui me fait savoir plus certainement que Dieu est, que

je ne sais la vérité d'aucune proposition de Geométrie; mais je ne sais pas si je

serais capable de la faire entendre à tout le monde, en la même façon que je

l'entends; et je crois qu'il vaut mieux ne toucher point du tout à cette matière,

que de la traiter imparfaitement. Le consentement universel de tous les peuples

est assez suffisant, pour maintenir la Divinité contre les injures des athés, et un

particulier ne doit jamais entrer en dispute contre eux s'il n'est très assuré de les

convaince”645. Não se pode negar que a filosofia cartesiana contribuiu para que

o homem moderno se afastasse de Deus, tomando nas próprias mãos poderes

que antes pertenciam a Deus e afirmando-se como o centro gravitacional do

“saber verdadeiro”. O antropocentrismo gnosiológico, só pode afirmar-se

plenamente, com a morte do teocentrismo gnosiológico. O cogito garante o

ponto de partida para que o homem conquiste todos os conhecimentos, com

644 “... a miséria e a desgraça dos tempos que atravessamos que estão tão infectados de ateus e de homens que desprezam Deus e toda e qualquer religião, que são aqueles que não têm religião os mais apreciados e hipocritamente chamados homens prestáveis, pois, estando, corrompidos pela impiedade e o ateísmo e tendo estudado bem Maquiavel que sabem bem na ponta da língua, não têm escrúpulos nem consciência”. Citado por Buckley, In: Atheism in Eglish Renaissance, Apud, James Thrower, Op. Cit., p. 86. 645 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 286-287; AT., I, p. 180-181.

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base no conhecimento de si mesmo, sem nenhuma intermediação. O cogito

afirma o homem, e, como conseqüência, afirma a verdade em uma perspectiva

puramente humana; ao fazer isso, empurra para a região do duvidoso todas as

asserções que tentam afimar-se à revelia desta primeira verdade originária. O

terreno do duvidoso é instável; sobre ele não é possível erguer nenhum

conhecimento seguro e certo, sobre ele não é possível erguer-se a verdadeira

ciência. A ciência exige uma rocha firme para construir-se como uma cadeia de

verdades. O cogito é a rocha firme que Descartes apresenta ao mundo. Fora da

referência (Cogito, ergo sum) legitimadora de todo conhecimento verdadeiro, a

verdade, através da qual a ciência busca sua base de sustentação, inexiste. O

homem torna-se autor absoluto da primeira verdade, ponto de partida para todas

as outras verdades possíveis. Segundo Sartre: “não pode haver outra verdade,

no ponto de partida, senão esta: penso, logo existo; é aí que se atinge a si

própria a verdade absoluta da consciência. Toda teoria que considera o homem

fora deste momento é antes de mais uma teoria que suprime a verdade, porque

fora deste cogito cartesiano todos os objetos são apenas prováveis e uma

doutrina de probabilidade que não está ligada a uma verdade desfaz-se no nada;

para definir o provável, temos de possuir o verdadeiro. Portanto, para que haja

uma verdade qualquer é necessária uma verdade absoluta; e esta é simples, fácil

de atingir, está ao alcance de toda a gente; consiste em nos apreendermos sem

intermediário”646. Portanto, é possível afirmar que Descartes instaura a idéia de

que a única verdade absoluta é aquela que o sujeito produz a partir da

autonomia plena de sua própria racionalidade. O cogito instaura a afirmação do

eu como primeira verdade verdadeiramente absoluta; se outras verdades

existem, e com certeza existem, têm necessariamente de ter, nesta primeira

verdade absoluta, a filiação originária. O padrão ‘cogito’ torna-se a primeira 646 SARTRE. J.-P. O existencialismo é um humanismo, p. 247-248.

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referência para distinguir o verdadeiro e o que não o é; o que é ciência e o que é

supertição, crença. Desta forma, o homem assume o poder que antes pertencia a

Deus de ser o Ser através do qual a verdade apresenta-se ao mundo. O

descolocamento da verdade suprema de Deus para o homem processa-se de

forma tal que implicará em revisão da própria natureza de Deus e do homem. O

Deus que era a verdade – “eu sou o caminho, a verdade e a vida”, João 14-6 –,

nada diz à razão, não tem mais nenhuma serventia na ordem do conhecimento

humano; não é posssível construir, no campo das ciências, nenhum

conhecimento claro e distinto a partir desta verdade originária, pois a mesma

oferece-se ao homem, não como uma conquista de sua própria racionalidade,

mas como uma revelação, a que só o homem dotado de fé pode ter acesso e

assumir como verdade absoluta647. De posse do cogito, pode o homem assumir

o lugar que antes pertencia a Deus e afirmar: Eu sou a verdade. A verdade

originária do cogito legitimará e validará o verdadeiro conhecimento, aquele do

qual a ciência mecanicista é portadora. Mesmo para o homem de fé, que dá

assentimento às verdades reveladas por Deus; tal verdade não tem nenhuma

serventia para a ciência que Descartes busca. O que Descartes busca é uma

verdade conquistada pela razão e com a qual a operacionalização do mundo

material e até de si mesmo seja possível. O que Descartes busca é tornar o

homem portador de uma verdade que, tendo origem no homem, seja capaz de

conquistar todas as coisas. Neste sentido, é possível afirmar que o mundo

cartesiano é, antes de qualquer coisa, uma conquista, uma construção, do

espírito humano, do pensamento; o que, para Descartes, tem o mesmo 647 “Na base de toda reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma mensagem, que tem sua origem no próprio Deus. O conhecimento que ela propõe ao homem não provém de uma reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus”. João Paulo II, Fides et Ratio (carta Encíclica), p. 15. Relembre-se o “crede ut intelligas” de Sto. Agostinho, que constitui a orientação básica do pensamento medieval. Cf. JEANNEAU, E. A filosofia na Idade Média, p. 13-15; Cf. também: NASCIMENTO, C. A. R. do. O entendimento da fé segundo Santo Agostinho, In: Anais do IV Encontro internacional de estudos medievais, 4 a 7 de julho de 2001, Belo Horizonte.

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significado. Toda a obra de Descartes visa, acima de qualquer outra coisa,

tornar possível a efetivação desta idéia. Assim sendo, aquela verdade originária

de Deus não tem mais nenhuma serventia para a ciência, porque não é uma

conquista autônoma do sujeito, nem portadora de um saber que possibilite a

operacionalização do mundo material. A conquista da razão ou sua re-conquista

– isto porque, para a filosofia grega a razão, contrapondo-se ao mito, afirma-se

como autônoma, não se subordinando a nenhuma revelação divina –, é o

projeto de Descartes. Sua obra é a busca da efetivação dessa conquista. Poder-

se-ia então dizer que a razão cartesiana é herdeira, se não da filosofia, como

Descartes fazia questão de afirmar, ao menos da forma autônoma de filosofar

dos gregos. É possível dizer que Descartes, tal qual os gregos, constrói uma

filosofia na qual o homem torna-se a referência da verdade. A razão cartesiana

retorna aos gregos, busca neles a forma originária do filosofar. “A filosofia

moderna substitui o tema Deus, central na filosofia medieval, pelo tema

homem. Com Descartes realiza-se um retorno ao modo de filosofar dos antigos

filósofos gregos, que ignoravam qualquer revelação divina e investigavam a

realidade do mundo só pela luz natural da razão”648. Os gregos criaram a

filosofia sem ter um conhecimento revelado de Deus; Descartes, mesmo tendo

um conhecimento revelado de Deus, prescindiu deste conhecimento no

momento de construir um conhecimento filosófico-científico sobre todas as

coisas. A filosofia, caminho através do qual o homem decifra a verdade das

coisas, é o “supremo bem” que o homem, guiado unicamente pela luz natural,

pode conhecer. O “supremo bem” que Descartes toma como causa primeira da

filosofia, corresponde ao “supremo bem” que os filósofos gregos definiam

como a meta a que se chega pelo livre uso da razão, que se exerce sem nenhum

auxílio da fé ou sem ser guiado por qualquer idéia de uma revelação 648 ZILLES, U. Filosofia da Religião, p. 23.

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sobrenatural. Descartes, apesar de ter conhecimento da reveleção cristã, apesar

de professar a crença católica, em nenhum momento indroduz na filosofia

dados que ultrapassam os limites da razão. Para os filósofos gregos o homem

só deve estimar como bem, aquilo que lhe pertence, ou seja, aquilo que faz

parte de sua natureza, de sua essência natural649. É exatamente neste sentido

que o filosofar de Descartes aproxima-se do filosofar dos antigos filósofos

gregos, como escreve: “Je ne vois rien que nous devions estimer bien, sinon ce

qui nous appartient en quelque façon, et qui est tel, que c’est perfection pour

nous de l’avoir. Ainsi les philosophes anciens, qui n’étant point éclairés de la

lumière de la foi, ne savaient rien de la béatitude surnaturelle, ne considéraient

que les biens que nous pouvons posséder en cette vie; et c’était entre ceux-là

qu’ils cherchaient lequel était le souverain, c’est-a-dire le principal et le plus

grand”650. Essas palavras de Descartes têm elavada importância neste capítulo,

pois, num primeiro momento, estabelecem a natureza antropocêntrica de sua

filosofia; segundo, retira qualquer possibilidade de o Deus cristão afirmar-se

como fundamento de sua metafísica, afirmando que a razão é capaz de sozinha,

contando com sua própria faculdade, estabelecer os fundamentos da verdade e

através deles, possibilitar a conquista de um conhecimento verdadeiro e certo

sobre todas as coisas. De posse do território da razão, o homem assume o lugar

de Deus, e vai mais longe: decifra e revela os seus segredos651. Destituir Deus

649 “Entre os feitos fundamentais da filosofia grega está o fato de ela ter sido a primeira a conseguir desvincular da esfera do pensamento mítico o conceito de autoconsciência e o de mundo”. CASSIRER, E. Indivíduo e cosmo na filosofia do renascimento, p. 206-207. 650 DESCARTES, R. Corespondência, Carta a Cristina da Suécia, 20 de novembro de 1647, Alq., III, p. 745. 651 De certa forma, guardando as devidas distinções, é possível dizer que Descartes faz com o Deus Cristão, o mesmo que os gregos fizeram com os deuses de sua mitologia; viraram-lhes as costa, perderam o medo dos deuses, tornaram-se independetes destes, libertaram-se dos seus poderes e, como conseqüência, assumiram, de posse de sua própria racionalidade, o destino do homem e do mundo. Essa, com certeza, foi a grande contribuição que deu o povo helênico para a humanidade. Segundo Pierre Grimal, falando da transição entre o pensamento mítico e o pensanemto racional no mundo grego, “Não há, até aos filósofos, quando o raciocínio atingiu o seu limite, quem não tenha recorrido a ele [o mito] como um modo de conhecimento susceptível de libertar o desconhecido. Assim, Platão, no Fédon, no Fedro, no Banquete, na República, noutras obras ainda, prolonga o seu pensamento através de mitos que inventa. Não é, sem dúvida, excessivo sustentar que esta

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do território da razão é, ao mesmo tempo, resgatar o homem e, como

consequência, a humanidade, das trevas da ignorância, da subserviência às

crenças e superstições, concedendo-lhe a plenitude de autonomia, o direito de

superar a infância e assumir a maioridade racional. Descartes acaba por fazer

com que o homem seja, ele mesmo, um Prometeu, sendo convidado a exercitar

o “bom senso” e, com isso, estabelecer o próprio norte na ordem da vontade e

do conhecimento da verdade; como conseqüência, converter-se em senhor e

possuidor da natureza. Para que o homem obtenha êxito na empreitada, basta

conduzir a razão nos limites de um método rigorosamente matemático, pois só

este possibilita o conhecimento das verdades claras e distintas, só este

possibilita ao homem conhecer a natureza essencial de como as coisas são

constituídas. “A filosofia cartesiana será, antes de mais, um esforço para

estender a todo o corpo dos conhecimentos humanos o método matemático, que

em si não é senão o uso normal da razão, as regras do método têm por objeto

descrever a maneira como pensa o espírito ao pensar matematicamente”652. É o

bom uso dessa razão, uma razão que se encontra unicamente subordinada às

regras do método, que identifica o homem de bom senso e o diferencia daquele

que, mesmo sendo dotado de uma razão comum a todos os homens653, ainda

não amadureceu o suficiente para fazer bom uso dela, não perdeu o hábito de

mal pensar654, ainda permanece na infância da razão, recorrendo a outras

generalização do mito e esta libertação dos seus poderes foram um dos contributos fundamentais – talvez mesmo o contributo mais essencial – do helenismo ao pensamento humano. Graças a ele, o sagrado perdeu os seus terrores; abriu-se à reflexão toda uma zona da alma; graças a ele, a poesia pôde trasformar-se em sabedoria”. A mitologia grega, p. 22-23. 652 GILSON, É. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do método, p. 14. 653 “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganam a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens” DESCARTES, R. Discurso do método, p. 41, (grifo nosso). 654 “Para construir a filosofia é, pois, necessário adquirir, antes de mais, o hábito de bem pensar; mas, quando se quer aplicar o método a objetos sobre os quais temos opiniões há muito formadas, é preciso, além disso, perder o hábito de mal pensar”. Idem, p. 15.

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forças, estranhas a esta, para dar sentido e significado ao mundo em que vive.

O homem que age assim, não age como filósofo; age muito mais como um

devoto que busca apoio na religião, ou como aquele que vê na teologia, o

fundamento para justificar a verdade. A verdade torna-se, a partir de Descartes,

um processo de construção e não uma revelação que ao homem é concedida por

Deus655: quem quer conhecer a verdade, tem que construí-la, pois ela não é uma

conquista que se realiza independentemente do homem, ao contrário, ela tem

no homem sua única causa originária, este é seu legítimo conquistador e autor.

Se essa característica do filosofar adotada por Descartes, por um lado, o

aproxima dos filósofos antigos, por outro, o distancia dos filósofos medievais,

daqueles filósofos que nomearam Deus como o bem supremo que o homem

pode conhecer e a quem pode aspirar656, acantando como verdadeira a palavra

da revelação que diz: “Deus é a verdade”657. Segundo Hamelin: “Es muy

655 Diferentemente da filosofia cartesiana, para o pensamento cristão essa verdade que existe no espírito do homem não tem neste a sua verdadeira origem. “Esta enigmática presença da verdade em nós, que não provém de nós nem das coisas e da qual, sem dúvida, participamos, propõe o problema da sua origem. E nos autoriza, portanto, a colocar a hipótese ‘Deus’ como possível solução do problema da origem da verdade intuída por nossa mente e do problema da inteligibilidade de todo o existente”. SCIACCA, M. F. Como se comprova a existência de Deus e a imortalidade da alma, p. 60. “É um fato que a mente humana conhece verdades que têm os caracteres divinos de necessidade, imultabilidade e absolutismo; é um fato que ela não as cria e que tampouco as recebe das coisas finitas e contigentes; portanto Deus existe como verdade em si, da qual deriva a verdade que está em nós”. Idem, p. 150-151. 656 São Paulo, I Co 1, 22-25, em oposição aos judeus e ao povo helênico, indica a natureza do Deus que, através de Cristo, apresenta-se como expressão da verdadeira sabedoria, portanto, como o bem supremo. “Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. 657 “... a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Essa verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam nele ou o procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objeto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele "caminho da vida" (Sl 16/15,1 1) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino”. João Paulo II, Op. Cit., p. 26.

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cierto que, em tesis general, una doctrina no se comprende sino por las que la

preceden: Aristóteles no se comprende sino por Platón, Kant por Leibniz e por

Hume. Pero tratándose de Descartes, este truísmo se vê de pronto desmentido;

porque de hecho, el estúdio de los predecesores de Descartes, por lo menos el

de aquellos estrictamente filosófos, tal como aparece en los historiadores, es de

escaso interés”658. Hamelin acrescenta ainda: “lo cierto es que, en los filósofos

del Renacimiento como tales, o en la Escolástica, tomada ésta en su parte

original, sólo podríamos encontrar una ínfima parte de los antecedentes

explicativos del cartesianismo”659. Por isso, segundo Hamelin, Descartes

“continúa la Antigüedad, o al contrario, encuentra en ella un sistema, según él,

caduco contra el cual quiere reaccionar”660. No entanto, logo em seguida,

Hamelin enuncia uma tese bastante problemática, segundo a qual Descartes

vem depois dos antigos, como se não houvesse existido nada entre ele e os

gregos661: “Descartes aparece después de los Antiguos, casi como si no hubiera

nada entre ellos y él, con excepción de los físicos”662. Segundo Gilson, que

defende tese contrária à de Hamelin, seria até natural que Descartes fizesse o

regresso da razão humana aos gregos, “uma vez que a [sua] filosofia não era

direta ou indiretamente regulada pela teologia”663; portanto, “não tinha

qualquer razão664” para aproximar sua filosofia da filosofia dos medievais.

Entretanto, ainda segundo Gilson, não é isso que realmente acontece. Os 658 HAMELIN, O. El sistema de Descartes, p. 11-12. 659 Idem, ibidem. 660 Idem, p. 18. 661 “A compreensão de Descartes e os problemas da sua interpretação não dependem apenas da perspectivsa da sua inserção numa anterioridade ou numa posterioridade, por exemplo, se está ligado a uma tradição escolástica ou se rompe totalmente com ela. Deste ponto de vista, a concepção da escola de Kuno Fischer ou da de Natorp que, com certa razão, destaca que Descartes usa o vocabulário filosófico da escolástica, alterando-lhe, no entanto, o sentido. Mas é natural que esse “pai” da filosofia moderna não fosse, em relação à Idade Média e, com mais razão, ao Renascimento, um filho espúrio: e, de fato, depois de Von Hertling, de Gilson e de Gouhier, não é mais possível sustentar a tese da independência de Descartes em relação à escolástica”. FRAGA , G. de. Op. Cit., p. 52. 662 Idem, p. 24. 663 GILSON, É. Deus e a filosofia, p. 63. 664 Idem, Ibidem.

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filósofos antigos estão diante dos deuses da mitologia grega, Descartes, ao

contrário, se encontra diante de um Deus diferente; um Deus transcendente, um

Deus da revelação, aquele Deus que se afirma como o único ser verdadeiro,

criador do mundo onde habita o homem e fim último de todas as coisas. Tal

Deus, com certeza, era completamente desconhecido da cosmologia do homem

grego, ele está fora da elaboração da cosmovisão do pensador grego. “Quando

um filósofo grego tinha de abordar um problema da teologia natural através de

um método puramente racional, via-se confrontado apenas como os deuses

religiosos da mitologia grega. Qualquer que fosse seu nome, posição ou função,

nenhum dos deuses da religião grega alguma vez reclamara ser o uno, o único e

supremo ser, criador do mundo, primeiro princípio e fim último de todas as

coisas”665. Acrescenta Gilson, “Descartes não poderia abordar o mesmo

problema filosófico, sem estar confrontado com o Deus cristão”666. Gilson

afirma que o fato de Descartes confessar uma religião cristã irá implicar na

impossibilidade de ele elaborar uma metafísica sem contemplar na base de sua

sustentação um Deus sobre o qual o filósofo, mesmo que a contra gosto, acaba

tendo que confessar sua filiação: “Quando um filósofo é também cristão, pode

muito bem dizer no início da pesquisa: vou fingir que não sou cristão; vou

tentar procurar, apenas pela razão natural e sem a luz da fé, as primeiras causas,

os primeiros princípios que podem explicar todas as coisas. Como desporto

intelectual, este é tão bom como qualquer outro; mas está destinado ao fracasso,

porque quando um homem sabe e acredita que há apenas uma causa de tudo o

que existe, o Deus em que acredita, dificilmente pode ser outra coisa que não a

causa do que ele conhece”667. É neste sentido que Gilson afirma que o Deus de

Descartes é o Deus dos cristãos. Ao que parece, Gilson acaba por identificar em 665 Idem, Ibidem. 666 Idem, Ibidem. 667 Idem, p. 63-64.

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Descartes um crente de maior intensidade que o próprio Descartes parece

reconhecer. Não se pode negar a importantíssima contribuição de Gilson para

uma melhor compreensão das origens da filosofia cartesiana; entretanto,

também não se pode negar que Gilson, em certos momentos, parece afirmar

mais do que o próprio Descartes. Ultrapassa a intenção de Descartes e acaba

por subordinar sua filosofia à revelação e à teologia668, coisa que, como visto

nos capítulos anteriores, Descartes não economizou esforços para separar669.

Escreve Gilson: “se tornou para mim evidente, tecnicamente falando, que a

metafísica de Descartes fora uma desastrada revisão da metafísica

escolástica”670. Pode-se dizer que Gilson carrega nas tintas e acaba

interpretando Descartes a partir de Sto. Tomás de Aquino671, o que faz com que

668 Não é só Gilson que é responsável por uma leitura cristã da filosofia cartesiana, existem outros autores, como Espinas e Blanchet que também a adotam, mas, com certeza, Gilson é um dos melhores representantes dessa corrente exegética. “L'érudition moderne a, d'une façon très heureuse, complètement renouvelé ces points de vue un peu naïfs. Depuis les études d'Espinas, et surtout depuis la thèse de M. Gilson et celle de M. Blanchet, on sait que la pensée cartésienne s'est développée au milieu de préoccupations apologétiques, dans une atmosphère chargée de théologie, qu'elle a travaillé sur des matériaux traditionnels et qu’elle n’a rien d'un ‘commencement absolu’; − et certes, de nombreuses et curieuses découvertes sont encore promises à ceux qui poursuivront dans le détail la recherche des relations des idées de Descartes avec la scolastique de son temps. Documents en mains, on s'aperçoit de ce qu'on aurait pu sans témérité affirmer a priori: à savoir que même dans l'ordre intellectuel, il n'y a pas de génération spontanée. Il serait bien plus vrai de dire, en appliquant à la succession des grands systèmes l'axiome de la physique aristotélicienne, que la corruption de l'un est la génération de l'autre. Ainsi se révèle, malgré Descartes, entre Descartes et ses prédécesseurs une continuité dont le champ apparaîtra d'autant plus vaste que l'histoire des idées sera mieux connue”. MARITAIN, J. Le song de Descartes, p. 36-37, (grifo nosso). 669 “... la pensée de Descartes en ce qui concerne l'erreur, le jugement el les rapports qui unissent l'enten-dement à la volonté, est f'ortement influencée par l'enseignement qu’il reçut à la Flèche et la philosophie de saint Thomas. Le problème se pose donc de savoir si la philosophie cartésienne est d'inspiration essentielle-ment théologique, ou si les éléments théologiques qu'elle contient, sont un apport accidentel et extérieur, sans lien véritable avec le sens profond du système. D'un mot, après avoir découvert tant de théologie dans la pensée de Descartes il reste à déterminer quelle place exacte la théologie y occupe, et si le ròle qu'elle y joue est le rôle principal ou simplement un rôle subordonné”. GILSON, E. La liberté chez Descartes et la théologie, p. 433. 670 Idem, Deus e a filosofia, p. 16, (grifo nosso). 671 Em seu livro, Deus e a filosofia, Gilson faz o seguinte comentário: “Se nas páginas que se seguem São Tomás de Aquino se parece algo demasiado como o deus ex machina de um qualquer drama metafísico abstrato, a minha objeção imediata será que falei como um tomista, medindo todas as outras filosofias pela bitola do tomismo. Gostaria pelo menos de garantir aos meus leitores que se o fiz – o que é bem possível – cometi o que me parece pessoalmente ser um pecado imperdoável relativamente à própria essência da filosofia. Todavia, antes de me condenarem por esse crime, terão de se certificar que efetivamente o cometi”. Deus e a filosofia, p. 15. Este comentário de Gilson, de certa forma contempla o que se quer dizer ao afirmar que a sua interpretação de Descartes tende a conduzí-lo, em excesso, para o campo da escolástica, mais especificamente, para a filosofia de Sto. Tomás de Aquino. De fato, um dos grandes méritos de Gilson, não é ter reinterpretado

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o primeiro, pelo menos na interpretação de Gilson, apareça como herdeiro e,

acima de tudo, como o autor que construiu uma metafísica inferior àquela já

apresentada por Sto. Tomás de Aquino672. Mais que isso, para Gilson, certos

temas da metafísica cartesiana só podem ser realmente compreendidos se

considerados a partir do pensamento de Sto. Tomás de Aquino673: “La

conception cartésienne de la liberté divine, la doctrine du mal, de l'erreur et du

jugement, la conception de la liberté humaine enfin, ne s'expliquent pas

complètement si l'on néglige la considération de ce que l'enseignement de la

Flèche, la lecture de S. Thomas et la fréquentation des néo-platoniciens de

l'Oratoire peuvent y avoir introduit”674. A falta de reconhecimento ou mesmo

indiferença de Descartes em relação às influências recebidas do pensamento

filosófico medieval, segundo Gilson, é mais um defeito, entre outros, da

filosofia de Descartes: “Esta desconcertante indiferença de Descartes em Descartes tendo como referência o tomismo, mas sim, ter trazido Sto. Tomás de Aquino para a discussão filosófica, pelo menos para os pensadores católicos. “O significado histórico-cultural de Etienne Gilson é bem evideciado por este juizo de Jacques Maritaain: Gilson teve o mérito de modificar a postura do mundo acadêmico em relação à Idade Média e, em particular, de permitir que os intelectuais católicos falassem de Santo Tomás sem corar”. GHISALBERTI, A. Deus na filosofia do século XX, diversos, Étienne Gilson (1884-1978), Filosofia na fé, p. 253. 672 É o próprio Gilson quem faz questão de evidenciar a escolha do filósofo e, como conseqüência, da filosofia de sua preferência. O escolhido, com certeza não é Descartes. Ao narrar o percurso que o levou a escrever La Liberté chez Descartes et la théologie, Gilson fala da superioridade da filosofia de Sto. Tomás de Aquino em relação à de Descartes, bem como acentua que, em relação aos problemas metafísicos, são as respostas oferecidas por aquele que verdadeiramente fazem sentido. Eis o que diz Gilson em relação à filosofia de Sto. Tomás de Aquino e a filosofia de Descartes: “Sob o ponto de vista histórico, esta obra [La Liberté chez Descartes et la théologie] está desatualizada, mas os seus nove longos anos de preparação ensinaram-me duas coisas: primeiro, a ler São Tomás de Aquino; em segundo lugar, que Descartes tinha tentado em vão resolver, através do seu famoso método, problemas filosóficos cuja única formulação e solução corretas eram inseparáveis do método de São Tomás de Aquino. Por outras palavras, [...] descobri que o único contexto no qual as conclusões metafísicas de Descartes faziam sentido era no da metafísica de São Tomás de Aquino”. GILSON, É. Deus e a filosofia, p. 16. 673 Opondo-se à tese de Gilson, escreve Fraile: “Es inegable el contacto de Descartes con la escolástica. (...) Pero desde su primera juventud su actitud fue poco favorable hacia la escolástica, con la cual rompe desde su obra más temprana, que es la Regulae ad directionem ingenii, quizá influida por Vives y Ramus. De ella dice en el Discurso del Método: ‘Esta ciencia da los medios de hablar de todas las cosas con apariencias de verdad y de hacerse admirar de los menos sabios’. No obstante, conserva los temas generales y la terminología escolástica. Habla de sustancia, esencia, existencia, accidente, modos, causas, formas, extensión, ideas, pensamiento, persona, etc. Sin embargo, el sentido que les da es muy distinto y equívoco en la mayor parte de los casos. Para interpretar rectamente esos términos es preciso encuadrarlos dentro de su propia filosofía y su pensamiento peculiar”. Historia de la filosofia, III, p. 486. 674 GILSON, E. Etudes sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien, p. 9.

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relação à possível origem de uma idéia metafísica de tal importância não é de

modo algum o único acidente de sua filosofia”675; “Descartes estava tão

preocupado em não corromper a pureza racional de sua metafísica com

qualquer elemento da fé cristã que simplesmente decretou a inerência universal

da definição cristã de Deus. Tal como as idéias inatas de Platão, a idéia inata de

Descartes era uma reminiscência; contudo, não a reminisciência de uma idéia

contemplada pela alma numa vida anterior, mas simplesmente a reminiscência

do que ele tinha aprendido na igreja quando era pequeno”676. A consequência

desta postura ou impostura de Descartes, ainda segundo Gilson, é que ele

acaba, pelo menos em relação à metafísica, “reafirmando as principais

conclusões da teologia cristã como se a teologia cristã nunca tivesse

existido”677. Mesmo defendendo essa filiação entre a metafísica cartesiana e a

metafísica medieval e, principalmente, a metafísica de Sto. Tomás de Aquino,

Gilson não deixa de reconhecer também a distinção, ou a separação, entre o

pensamento de Descartes em relação ao de Sto. Tomás, bem como em relação a

todo o pensamento medieval. Segundo Gilson, o que acontece com a filosofia

de Descartes, e independentemente da sua concepção pessoal cristã, foi a

ruptura com a idéia medieval cristã de saber678. Para Sto. Tomás de Aquino, por

675 Idem, p. 66. 676 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 65-66. 677 Idem, p. 64. Não só Gilson tem essa opinião sobre Descartes; Fraile, historiador da filosofia, com um viés tomista acetuado, diz ao concluir sua interpretação da filosofia de Descartes: “La impresión que produce el balance final de la filosofía que Descartes se esfuerza por construir sobre bases nuevas, sólidas e inconmovibles, y con que pretendía suplantar todas las anteriores, es un poco decepcionante. Ninguna de sus partes resiste la comparación con los tratados griegos ni medievales sobre esas mismas materias, ni en el rigor de la investigación ni en riqueza y profundidad de contenido”. Op. Cit., p. 542-543. GHISALBERTI, interpretantando o pensamento de Gilson, diz: “A partir de um primeiro reconhecimento, Gilson convenceu-se de que a filosofia grega saíra da Idade Média diferentemente de como entrara e de que, longe de seguir aos gregos como se nada tivesse havido entre eles e ele, Descartes se seguira à Idade Média quase como se os gregos nunca tivessem existido”. Deus na fiilosofia do século XX, diversos, Étienne Gilson (1884-1978), Filosofia na fé, p. 254. 678 “En la Edad Media la teología y la filosofía son una misma cosa – punto de vista este que, para la teología, es el exacto. Si la teología no es la filosofía, no sabe lo que quiere. La doctrina existe en el catecismo; el desarrollo del cetecismo es, empero, filosofía. Por otra parte, lo histórico no es religión. En la Edad Media, pues, existe esta unidad de la teología y la filosofía; es lo que se llama escolástica, tanto teología escolástica,

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exemplo, a suprema expressão do saber era a teologia. Esta “doutrina sagrada”,

diz Sto. Tomás de Aquino “é, entre todos os saberes, o saber por excelência;

não é apenas o mais elevado dentro de uma ordem, é-o absolutamente”679.

Assim o é, segundo Gilson, na trilha de Tomás: “porque o próprio objeto da

teologia é Deus, que é o mais elevado objeto concebível do conhecimento

humano. ‘Só merece eminentemente ser chamado sábio aquele cujo estudo

incida sobre a suprema causa absoluta do universo, ou seja, Deus’. Como

ciência da causa suprema, a teologia reina suprema entre todas as outras

ciências; todas são julgadas por ela e subordinadas a ela”680. Diferentemente de

Tomás de Aquino, para Descartes o supremo bem do conhecimento humano é a

filosofia, pois só ela possibilita ao homem a aquisição de um conhecimento

que tem sua origem unicamente no uso reto da razão. Em carta dirigida a

Elisabeth, de 18 de agosto de 1645, escreve Descartes:

“Au reste, toute sorte de désirs ne sont pas

incompatibles avec la béatitude; il n'y a que ceux

qui sont accompagnés d'impatience et de

tristesse. Il n'est pas nécessaire aussi que notre

raison ne se trompe point; il suffit que notre

conscience nous témoigne que nous n'avons

jamais manqué de résolution et de vertu, pour

exécuter toutes les choses que nous avons jugé

être les meilleures, et ainsi la vertu seule est

como filosofía escolástica. Una ciência de la teología como conocimiento de la verdad es el modo de la erudición por esta parte. Su carácter peculiar es ser una concepción espiritual de la doctrina de la Iglesia; pues esta era ya tan firme, que ni la filosofía de la Edad Media ni ninguna outra podían hacer ya nada en ella más que elevarla al pensamiento para satisfacer en ella también la forma del pensamiento”. HEGEL, Lecciones sobre la filosofia de la historia universal, p. 628. 679 GILSON, E. Deus e a filsosofia, p. 62. 680 Idem, ibidem.

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suffisante pour nous rendre contents en cette

vie. Mais néanmoins parce que, lorsqu'elle

n'est pas éclairée par l'entendement, elle peut

être fausse, c'est-à-dire que la volonté et

résolution de bien faire nous peut porter à des

choses mauvaises, quand nous les croyons

bonnes, le contentement qui en revient n'est

pas solide; et parce qu'on oppose

ordinairement cette vertu aux plaisirs, aux

appétits et aux passions, elle est très difficile à

mettre en pratique, au lieu que droit usage de

la raison, donnant une vraie connaissance du

bien, empêche que la vertu ne soit fausse, et

même l'accordant avec les plaisirs licites, il en

rend l'usage si aisé, et nous faisant connaitre la

condition de notre nature, il borne tellement

nos désirs, qu'il faut avouer que la plus grande

félicité de l’homme dépend de ce droit usage

de la raison, et par conséquent que l'étude qui

sert à l’acquérir, est la plus utile occupation

qu'on puisse avoir, comme elle est aussi sans

doute la plus agréable et la plus douce”681.

Ao tomar o reto uso da razão, como o bem supremo do homem, Descartes

distancia-se dos medievais, para quem o único bem supremo é Deus,

aproximando-se dos filósofos antigos que também assim procediam ao

conceberem o bem supremo do homem. Segundo Gilson, Descartes,

diferentemente dos medievais, operou uma separação entre o conhecimento 681 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 590; AT., IV, p. 267, (grifo nosso).

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filosófico e o conhecimento teológico: “o que era novo em Descartes era a

separação real e prática entre a sabedoria filosófica e a sabedoria teológica”682.

Assim, como o homem moderno perde o medo de Deus, torna-se independente

dele e afirma-se como o único timoneiro que, guiando-se pela luz natural da

razão, conduz sua nau em busca do conhecimento claro e distinto e, no limite,

em busca de sua própria felicidade. Nenhum texto poderia demonstrar melhor

essa atitude de Descartes em afirmar o homem como o ser que, em relação ao

conhecimento e à ação livre, pode, se fizer uso correto da razão e no exercício

do “libre arbitre”, tornar-se semelhante a Deus e, no limite, independente

deste: “le libre arbitre est de soi la chose la plus noble qui puisse être en nous,

d'autant qu'il nous rend en quelque façon pareils à Dieu et semble nous

exempter de lui être sujets, et que, par conséquent, son bon usage est le plus

grand de tous nos biens, il est aussi celui qui est le plus proprement nôtre et qui

nous importe le plus, d'où il suit que ce n'est que de lui que nos plus grands

contentements peuvent proceder”683. Em seu livro, As paixões da alma,

Descartes volta a reafirmar que o exercício do livre-arbítrio torna o homem

semelhante a Deus: “... as ações que dependem desse livre-arbítrio são as

únicas pelas quais podemos com razão ser louvados ou censurados, e ele nos

torna de alguma forma semelhantes a Deus”684. Essas palavras de Descartes

podem ser tomadas como referência para se afirmar que, de fato, sua filosofia é,

ao mesmo tempo, uma forma de tornar o homem independente de Deus e,

682 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 62. 683 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 747-748; AT., V, p. 85, (grifo nosso). 684 DESCARTES, R. As paixões da alma, art. 152, p. 135, (grifo nosso). Poder-se-ia argumentar que Descartes diz “semelhantes” e não “iguais”. Acrescenta mesmo, na passagem citada das Paixões da alma, “de alguma forma”. Sto. Tomás de Aquino não diz outra coisa, bastando citar o prólogo da Ia IIae, da Suma de Teologia: “Posto que, como diz Damasceno ‘diz-se o homem feito à imagem de Deus, na medida em que por imagem quer-se dizer dotado de intelecto, livre quanto à decisão e tendo autodomínio’, depois que se falou precedentemente do exemplar, isto é, de Deus e do que procedeu do poder divino de acordo com sua vontade, resta considerar a respeito de sua imagem, isto é, a respeito do homem, na medida em que também ele é princípio de suas obras por ter decisão livre e domínio de suas obras”.

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como conseqüência, negar a revelação ou a teologia como fonte originária de

qualquer verdade que tenha validade para a ciência. Se não bastasse o que foi

dito acima, valeria a pena ver o que escreve Descartes a Huygens, em carta de

10 de outubro de 1642: “quoique nous veuillions croire et même que nous

pensions croire fort fermement tout ce que la religion nous apprend, nous

n’avons pas toutefois coutume d’en être si touchés que de ce qui nous est

persuadé par des raisons naturelles fort evidentes”685. Para Descartes, o que é

persuadido firmemente pela razão natural toca ou convence mais o homem em

busca da verdade do que os ensinamentos da religião. Assim, no racionalismo

cartesiano, o papel que desempenha a religião no plano do conhecimento da

verdade é, no mínimo, secundário.

Faz-se necessário, para melhor esclarecer o campo de reflexão, distinguir, em

Descartes, duas caracterísicas bem definidas de sua personalidade. De um lado,

tem-se um Descartes que busca, através das ciências, um conhecimento

verdadeiro e certo sobre todas as coisas, de outro, um Descartes pessoa,

indíviduo, que, além dessa verdade de natureza antropocêntrica, busca um

conhecimento sobre o Deus que a religião, principalmente a religião católica,

ensina. Como um bom católico, Descartes quer conhecer o Deus que sua

religião ensina, no qual verdadeiramente ele acredita. Por isso, se se quiser

conhecer realmente o pensamento filosófico de Descartes é necessário, antes de

qualquer coisa, ser capaz de distinguir dois Descartes: o Descartes filósofo e o

Descartes cristão. Os dois estão, de fato, juntos, mas não se identificam. Pelo

menos o Descartes filósofo elabora um grande esforço - e não esconde de

ninguém - para não misturar as coisas da razão com as coisas da fé. Tomar um 685 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 938; AT., III, p. 799.

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pelo outro, é condenar-se a não entendê-lo, ao trasformar sua filosofia numa

extenção de sua religião, o que, em hipótese alguma, corresponde à intenção do

meditador. Se a idéia, mesmo que errada, insiste em querer aparecer, este fato

deve ser creditado muito mais a alguns dos seus intérpretes do que ao projeto

originário de Descartes. Está certo Guillermo Fraile quando recomenda

distinguir-se entre Descartes e o cartesianismo: “conviene distinguir entre

Descartes y el cartesianismo, entre su persona y sus doctrinas o entre suas

intenciones – indudablemente buenas y sinceras - y los resultados y

derivaciones a que ha dado lugar su filosofía”686. Apesar de Descartes adotar

uma religião para o seu uso pessoal, em nenhum momento mistura filosofia

com religião. Logo no início da Terceira Parte do Discurso do Método, quando

estabelece as máximas para uma moral provisória, afirma que sua religião é

aquela na qual “Deus lhe concedeu a graça de ser instruído desde a infância”687.

Segundo Lívio Teixeira, “ainda que sincera [a religião de Descartes] não

passaria de uma daquelas convenções sociais, mencionadas na moral

provisória, cuja a aceitação lhe permitiria entregar-se a seus labores científicos

e filosóficos sem o temor de ser perseguido ou incomodado”688. Num outro

sítio, quando convidado pelo pastor Revius a tornar-se um praticante da religião

reformada, ele recusa o convite e afirma que sua religião é a religião de seu rei;

diante da insistência de Revius, volta a afirmar que já tem uma religião e que

esta é a mesma religião que praticava a sua “ama-de-leite”689. “Boutade?

Ironie690?” É a pergunta de Leroy, diante da resposta de Descartes a Revius. Em

torno dessa pergunta, Leroy faz outros questionamentos nos quais conduz a 686 FRAILE, G. Op. Cit., p. 544. 687 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 59. 688 TEIXEIRA, L. A religião de Descates, p. 30. 689 “Ao pastor protestante Revius, que instava com ele para abraçar a religião reformada, Descartes respondeu: ‘tenho a religião do meu rei’. Mas continuando aquele a insistir, Descartes acrescenta: ‘tenho a religião da minha ama’. GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 63, nota 3. 690 LEROY, M. Op. Cit., II, p. 13.

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identificar Descartes como um homem que pratica uma religião muito mais

como uma prática social: “Descartes, ce jour-là, aurait-il, proféré, comme on l'a

dit, le mot le plus moderne de toute sa vie? N'envisagerait-il la religion que

comme une tradition sociale, à la façon de Balzac, dans cette lettre à l'évèque

d'aire, où l'auteur du Socrate chrétien afírmait ne vouloir ‘rien croire de plus

véritable que ce qu'il a appris de sa mère et de sa nourrice?’”691. Muitos não

levam a sério a religiosidade de Descartes; acham que ele disfarça, escamoteia

suas verdadeiras intenções religiosas; escreve, reiteiradas vezes, que pratica uma

religião só para manter-se fora de qualquer polêmica, evitando, desta forma, que

os olhares das autoridades religiosas ou de outras autoridades voltem-se em sua

direção. Quanto mais as autoridades acreditarem em sua sinceridade, menos o

incomodarão; mais ele poderá trabalhar em paz, desenvolver suas reflexões no

campo das ciências sem ser percebido. Não faltam críticos à postura religiosa

de Descartes; seja no passado ou no presente, são abundantes os intérpretes que

reconhecem em Descartes uma prática religiosa de aparência, um certo ateismo

prático, reconhecem que o que buscava mesmo era viver em paz. “Su

religiosidad sólo habría sido aparente. En realidad habría sido un indiferente en

religión, temeroso de las autoridades, a las que habría engñado con

declaraciones hipócritas para que le dejaran vivir en paz”692. Faile considera

essa crítica contundente à religiosidade, considera que é um excesso taxá-lo de

um insincero na prática da religião. O que Descartes não faz é deixar a religião

imiscuir-se em sua filosofia. O que ele busca evitar de todas as formas, é

trasformar sua filosofia em guardiã dos preceitos religiosos ou teológicos. O que

se pode dizer é que Descartes tem uma religião, mas que ele, como pensador,

não faz uso dos pressupostos teóricos dessa religião, que pratica, para

691 Idem, ibidem. 692 FRAILE, G. Op. Cit., p. 544.

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fundamentar os pressupostos de sua filosofia. Não há insinceridade religiosa em

Descartes; o que há é, de fato, uma prática religiosa sem nenhum excesso, mas

simplesmente como um homem que cumpre suas obrigações religiosas, sem

torna-se um beato, sem submeter ou subordinar sua filosofia à religião.

Segundo Gilson, “não era homem para levantar qualquer objeção contra a

sabedoria da fé cristã, sendo ele próprio cristão, encarava-a como o seu único

meio de salvação pessoal através de Cristo e da Igreja de Cristo”693; entretanto,

o mesmo não ocorre com o Descartes filósofo. Neste caso, “Descartes estava

interessado num tipo de sabedoria completamente diferente, ou seja, um

conhecimento racional ‘das primeiras causas e dos verdadeiros princípios a

partir dos quais podem ser deduzidas as razões de tudo aquilo que é possível’.

É esse o bem natural e humano ‘considerado pela razão natural sem a luz da

fé’”694. É o próprio Descartes quem estabelece a direção secular de sua reflexão

filosófica: “j’ai souvent protesté que je ne voulais point me mêler d’aucune

controverse de théologie; et d’autant que je ne traite aussi dans ma philosophie

que des choses qui sont connues clairement par la lumière naturelle, elles ne

sauraient être contraires à la théologie de personne, à moins que cette théologie

ne fût elle-même manifestement opposée à la lumière de la raison; ce que je

sais que personne n’avouera de la théologie dont il fait profession”695. Em

outra ocasião, escreve Descartes: “Pour votre question de théologie, encore

qu’elle passe la capacité de mon esprit, elle ne me semble pas toutefois hors de

ma profesión, parce qu’elle ne touche point à ce qui dépend de la révélation, ce

que je nomme proprement théologie; mais elle est plutôt métaphysique et se

doit examiner par la raison humaine”696. Acumulam-se na obra de Descartes

693 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 62. 694 Idem, p. 63. 695 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 1095; AT., VII, p. 598. 696 Idem, Correspondência, Alq., I, p. 258; AT., I, p. 143-144.

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exemplos para justificar a independência de sua filosofia em relação à teologia;

essa é quase uma obsessão. Tal preocupação justifica-se exatamente porque

Descartes quer, antes de qualquer coisa, acentuar a identidade puramente

humana de seu projeto filosófico; mostrar que sua filosofia, toda ela, é

construída a partir da razão natural697. O fato de Descartes ter destacado a

filosofia como o bem supremo humano, no domínio do conhecimento, é

importante, porque assim, acaba privilegiando o caráter puramente humano,

melhor dizendo, antropocêntrico, de sua filosofia. Neste sentido, Denis Moreau

destaca que “Descartes, católico, quis todavia construir sua filosofia como um

“homem puramente homem, servindo-se só dos instrumentos intelectuais de

que os homens são naturalmente dotados, sem apelar a esta outra fonte de

inteligibilidade constituída pela revelação sobrenatural, a palavra de Deus que

os cristãos pensam encontrar na Bíblia”698. A filosofia de Descartes é uma

filosofia, ponto final. Não faz nenhum sentindo buscar na religião uma âncora

ou qualquer fundamento para sua filosofia. Se Descartes estabelece alguma

relação ou algum estudo em torno da teologia, não é visando sua filosofia, mas

sua própria instrução: “vu que je n’ai jamais fait profession de l’étude de la

théologie, et que je ne m’y suis appliqué qu’autant que j’ai cru qu’elle était 697 “... a grande différence entre les vérités acquises et les révélées, en ce que, la connaissance de celles-ci ne dépendant que de la gràce (laquelle Dieu ne dénie à personne, encore qu'elle ne soit pas efficace en tous), les plus idiots et les plus simples y peuvent aussi bien réussir que les plus subtils; au lieu que, sans avoir plus d’esprit que le commun, on ne doit pas espérer de rien faire d'extraordmaire touchant les sciences humaines. Et enfin, bien que nous soyons obligés à prendre garde que nos raisonnements ne nous persuadent aucune chose qui soit contraire à ce que Dieu a voulu que nous crussions, je crois néanmoins que c'est appliquer l'Écriture sainte à une fin pour laquelle Dieu ne l'a point donnée, et par conséqüent en abuser, que d'en vouloir tirer la connaissance des vérités qui n'appartiennent qu'aux sciences humaines, et qui ne servent point à notre salut". DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 81-82; AT., II, p. 347. “...je n'ai jamais méprisé personne pour n'être pas de même sentiment que moi, principalement touchant les choses de la foi, car je sais que la foi est un don de Dieu; bien au contraire, je chéris et honore plusieurs théologiens et prédicateurs qui professent la même religion que lui. Mais j'ai déjà souvent protesté que je ne voulais point me mêler d'aucune controverse de théologie; et d'autant que je ne traite aussi dans ma philosophie que des choses qui sont connues clairement par la lumière naturelle, elles ne sauraient être contraires à la théologie de personne, à moins que cette théologie ne fût elle-même manifestement opposée à la lumière de la raison; ce que je sais que personne n'avouera de la théologie dont il fait profession”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 1095; AT., VII, p. 597-598. 698 MOREAU, D. Apresentação e notas, In: DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia, p. 8, nota, 20.

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nécessaire pour ma propre instruction”699. Mesmo Gilson reconhecendo que o

novo em Descartes é o fato dele ter separado a reflexão filosófica da reflexão

teológica, na seqüência de sua interpretação, acaba por vincular, melhor,

subordinar a filosofia de Descartes a uma teologia cristã, fazendo deste

pensador o mais legítimo representante de uma “nova” filosofia cristã. Gilson

chega a afirmar que sem o Deus cristão, Descartes não teria encontrado a raiz, o

primeiro princípio de sua filosofia. “Descartes nunca duvidou por um só

momento de que o primeiro princípio de uma filosofia totalmente separada da

teologia cristã acabaria por se revelar o mesmo Deus que a filosofia nunca tinha

conseguido descobrir enquanto permanecera alheia à influência da revelação

cristã”700. É neste sentido que Gilson irá afirmar que, apesar de Descartes fazer

questão de não deixar sua filosofia ser contaminada por nenhum elemento da fé

cristã, o Deus que esta filosofia apresenta é o mesmo Deus que ele conheceu,

ainda pequeno, quando freqüentava a Igreja: “Descartes estava tão preocupado

em não corromper a pureza racional de sua metafísica com qualquer elemento

da fé cristã que simplesmente decretou a inerência universal da definição cristã

de Deus. Tal como as idéias inatas de Platão, a idéia inata de Deus em

Descartes, era uma reminiscência; contudo, não a reminiscência de uma idéia

contemplada pela alma numa vida anterior, mas simplesmente a reminiscência

do que tinha aprendido na igreja quando era pequeno”701. Será que Descartes,

se vivo fosse, assumiria, como sua, essa interpretação de Gilson702? Muito

provavelmente não. A resposta é pelo menos uma hipótese.

699 DESCARTES, R. Meditações, réponses aux Sixièmes Objections, Alq., II, p. 869; AT., III, p. 429. 700 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 64. 701 Idem, p. 67. 702 Sobre o mesmo assunto, confere p. 20-22 do 1º capítulo.

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No entanto, é preciso ver mais de perto porque Gilson considera a natureza do

Deus da metafísica cartesiana, como cristã: “o Deus de Descartes é um Deus

inequivocamente cristão”703. Ele o considera principalmente porque “Tout le

système cartésien est suspendu à l’idée d’un Dieu tout-puissant, qui se crée en

quelque sorte soi-même, crée à plus forte raison les vérités éternelles, y

compris celles des mathématiques, crée l’univers ex nihilo et le conserve dans

l’être par une création continuée de tous les instants, sans laquelle toutes chose

retomberaient dans le néant d’où sa volonté les a tirées. Nous aurons à nous

demander bientôt si les Grecs ont connu l’idée de création, mais le seul fait

qu’il y ait lieu de se le demander suggère irrésistiblement l’hypothèse que

Descartes dépend directement ici de la tradition biblique et chrétienne et que,

dans son essence même, sa cosmogonie ne fait qu’approfondir l’enseignement

de ses maîtres touchant l’origine de l’univers. Qu’est-ce d’ailleurs, en somme,

que ce Dieu de Descartes: être infini, parfait, tout-puissant, créateur du ciel et

de la terre, qui a fait l’homme à son image et ressemblance et conserve toutes

chose par la même action qui les a crées, sinon le Dieu du Christianisme dont

on reconnaît ici facilement la nature et les attributs traditionnels?704” Seguindo

a mesma linha de raciocínio de Gilson, Alquié defende a tese de que o Deus da

filosofia cartesiana corresponde ao Deus da teologia cristã: “Para Descartes, o

absoluto aparece no fim, isto é, depois da ciência, e depois da reflexão que

descobre o cogito como fonte da própria ciência. Mas permanece no começo,

razão pela qual o Deus de Descartes pode ir ao encontro do Cristianismo,

simultaneamente criador e reencontrado pelo homem no termo de uma ascese.

Ele está no princípio, está antes do mundo e antes do eu que colocou no ser”705.

Nem todos os intérpretes de Descartes seguem essa mesma linha de 703 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 65. 704 GILSON, E. L’Esprit de la philosophie médiévale, p. 12. 705 ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 12.

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interpretação. Segundo Leonel Ribeiro, “o Deus, cuja idéia o espírito descobre

em si mesmo, não é nem o da crença tradicional, nem o da fé, nem o dos

teólogos, nem o dos filósofos escolásticos, ainda que tenha com o destes

alguma semelhança”706. Essa questão é crucial para a caracterização do Deus

cartesiano e de sua metafísica, tanto é que mesmo aqueles que reconhecem uma

filiação entre o Deus cartesiano e o Deus cristão, não deixam de reconhecer, ao

mesmo tempo, uma distância abissal entre a natureza dos dois deuses. Não se

pode deixar de reconhecer que, de fato, Deus desempenha um papel

fundamental em toda a filosofia cartesiana, tornado-se, em sua metafísica, o

fundamento último de todo o conhecimento. Sobre este aspecto não há grande

divergência, a questão torna-se mais complexa quando se busca conhecer ou

estabelecer um paralelo entre a natureza do Deus que o cristianismo apresenta

ao homem, e aquele Deus que se apresenta como fundamento ontológico e

gnosiológico da metafísica cartesiana. Trata-se do mesmo Deus, como

defendem Gilson e Alquié? Só pelo simples fato do Deus cartesiano ser

resultado de uma demonstração racional, já não se distingue, por completo,

daquele Deus que se revela ao homem unicamente através da fé e que encontra-

se completamente fora do alcance da razão? No entanto, Descartes busca

demonstrar racionalmente um Deus cujos atributos são os da revelação cristã.

Então, de duas uma: ou a revelação não é revelação e reduz-se à razão, ou

então as demonstrações de Descartes não são puramente racionais. Talvez haja

um pouco dos dois. De fato os atributos que Descartes menciona seriam, pelo

menos para Sto. Tomás de Aquino (Cf. Suma de teologia, 1ª parte, Q. 2-26), ao

menos parcialmente recuperáveis pela razão (a rigor não seriam atributos

exclusivamente sobrenaturais); Descartes conserva este dado do pensamento

medieval. O que há de próprio em Descartes é justamente querer estabelecer 706 SANTOS, L. R. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Princípios da filosofia, p. 142.

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este dado (em si racional) fora de uma obra teológica e sem referir-se à

continuidade com os dados revelados. Para Descartes, é um conhecimento

racional de Deus que possibilita ao homem um conhecimento racional do

mundo. Neste sentido, não há como distinguir-se o método usado por Descartes

para conhecer a ordem da matéria, do método usado para conhecer a natureza

de Deus. Só há um método, aquele derivado das matemáticas, só há uma

ciência, aquela que a razão metodológica é capaz de produzir. Portanto, seja no

campo da matéria, seja no campo do espírito, só há um único caminho para o

conhecimento da verdade, qual seja, aquele de que a razão metódica é capaz de

dar conta. Mesmo tendo em Deus a garantia de todo conhecimento verdadeiro,

o conhecimento sobre Deus não ultrapassa o conhecimento racional, não

ultrapassa um conhecimento geométrico sobre Deus. A geometria é a lente

através da qual Descartes contempla e dá conta da natureza de Deus. É guiado

por esse olhar que a filosofia cartesiana justifica todas as idéias claras e

distintas e, através delas, contrói um saber sobre o homem, sobre Deus e sobre

o mundo. É exatamente com essa idéia metafísica que Descartes conclui sua

Quinta Meditação e prepara-se para dá início ao conhecimento das substâncias

extensas, para assentar sobre as conquistas anunciadas no final da Quinta

Meditação as bases da ciência mecanicista, as bases do conhecimento sobre a

ordem física do mundo707. É como se Descartes estivesse a dizer que o fato de

se obter um conhecimento claro e distinto de Deus, abre a possibilidade de se

obter um conhecimento verdadeiro de todo o resto, já que, em Deus encontra-se

a causa original de toda verdade possível. É exatamente isso que Descartes

afirma ao final da Quarta Parte do Discurso do Método: “aquilo mesmo que há

pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos mui clara e

mui distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão porque Deus é ou 707 Cf. DESCARTES, R. Meditações, p. 178.

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existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós vem dele. Donde

se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de

Deus em tudo que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras”708.

Em nenhum momento Descartes recorre aos mesmos caminhos que percorre

um cristão para conhecer a Deus. Um cristão conhece a Deus através da fé,

melhor ainda, para o cristão só a fé, a verdadeira fé, conduz a um conhecimento

verdadeiro de Deus709. Descartes, ao contrário, sequer falou da fé. A fé, no

sentido de se obter um conhecimento sobre Deus e as coisas do mundo,

distingue-se da razão. Esta é auto-suficiente na busca do conhecimento sobre

Deus, não precisa recorrer a nada que esteja fora do estrito, domínio racional.

Logo, na metafísica cartesiana é para a razão, e no limite desta, que Deus

revela-se, não só como existente, mas também como verdadeiro. No resumo da

Quarta Meditação, Descartes mostra o caminho que percorrerá para justificar

as bases que sustentam a metafísica: “é de notar que não trato de modo algum,

neste lugar, do pecado, isto é, do erro que se comete na busca do bem e do mal,

mas somente daqueles que sobrevêm no julgamento e no discernimento do

verdadeiro e do falso; que não pretendo falar aí das coisas que competem à fé

ou à conduta da vida, mas somente daquelas que dizem respeito às verdades

especulativas e conhecidas por meio tão-só da luz natural”710. Nas respostas às

Quartas Objeções, Descartes reafirma o que foi dito no resumo da Quarta

Meditação: “dans la quatrième Meditation je n'ai parlé que de l’erreur qui se

commet dans le discernement du vrai et du faux, et non pas de celle qui arrive

dans la poursuite du bien et du mal; et que j'ai toujours excepté les choses qui

regardent la foi et les actions de notre vie, lorsque j'ai dit que nous ne devons

708 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 72. 709 “A fé é uma atitude interior daquele que crê. (...) Sendo adesão a Deus, a fé só é possível na medida em que Deus se faz conhecer. Deus fala aos homens”. LACOSTE, J.-Y. Dicionário crítico de teologia, p. 718-719. 710 DESCARTES, R. Meditações, p. 114.

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donner créance qu'aux choses que nous connaissons évidemment...”711. Assim,

intencionalmente, Descartes demarca, de forma clara, as fronteiras que separam

a filosofia da teologia e reafirma o caráter secular da primeira. Entretanto, não

exclui a necessidade de que a pergunta, acerca de saber se é ou não é possível

obter sobre Deus um conhecimento verdadeiro nos limites da razão, volte a ser

feita. A questão que se coloca é a seguinte: é possível obter sobre Deus, sem a

ajuda da fé, um conhecimento verdadeiro, portanto claro e distinto, submetido

rigorosamente às leis do método? Sim. É de forma afirmativa que Descartes

responde a questão. Na resposta às Quartas Objeções, no estudo das causas,

Descartes trata da função da causa eficiente: “Et je pense qu'il est manifeste à

tout le monde que la considération de la cause efficiente est le premier et

principal moyen, pour ne pas dire le seul et l'unique, que nous ayons pour

prouver l'existence de Dieu. Or nous ne pouvons nous en servir, si nous ne

donnons licence à notre esprit de rechercher les causes efficientes de toutes

les choses qui sont au monde, sans en excepter Dieu même; car pour quelle

raison l’excepterions-nous de cette recherche, avant qu'il ait été prouvé qu'il

existe?”712. Num outro momento, Descartes escreve que tudo que se pode saber

sobre Deus, pode ser demonstrado racionalmente. Para um verdadeiro

conhecimento sobre Deus, a razão basta. “... tudo quanto se pode saber de Deus

pode ser demonstrado por razões, as quais não é necessário buscar alhures que

em nós mesmos, e as quais só nossso espírito é capaz de fornecer”713. Neste

caso, será mesmo, como queria Descartes, que o espírito é capaz de abarcar a

totalidade do conhecimento sobre Deus, ou seja, está sob seu alcance dar conta

da totalidade do que se pode conhecer sobre Deus, como exige a natureza do

próprio conhecimento que deseja dar conta do objeto de sua reflexão? É 711 Idem, Réponses aux Quatrièmes Objections, Alq., II, p. 692; AT., VII, p. 247-248. 712 Idem, Alq., II, p. 681; AT., VII, p. 238. 713 Idem, Meditações, carta aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris, p. 106.

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possível afirmar sobre Deus que ele existe, que é eterno, infinito, verdadeiro,

sem dar um salto da razão para a fé? É possível, como queria Descartes, obter

sobre Deus um conhecimento tão verdadeiro como aquele obtido no plano das

ciências? Cartesianamente falando, a resposta tem que ser afirmativa, pois é

exatamente o que Descartes busca obter sobre Deus, um conhecimento tão

verdadeiro como aquele obtido para fazer da ciência mecânica uma ciência

verdadeira. Não é possível, sobre essa verdade metafísica, existir qualquer

dúvida, qualquer suspeita; ela tem que ser absolutamente verdadeira, até porque

é sobre ela que Descartes fará assentar as bases de sustentação de sua ciência.

Entretanto, nem todos os comentadores concordam com essa possibilidade

cartesiana. Para alguns, tendo como base unicamente a razão é impossível ao

homem ter acesso a Deus, conhecê-lo, compartilhar de seus segredos, conhecer

seus mistérios. A razão não é um caminho seguro e certo para aquele que

pretende conhecer a Deus. A fé é o único caminho através do qual Deus se

deixa conhecer nos seus mistérios. Quem pretende conhecer Deus, sem ser

guiado pela fé, está condenado ao fracasso. “Crer em Deus é aceitá-lo como

sentido da vida e do mundo. A fé situa-se no plano do reconhecimento, pois

aceita-se ou rejeita-se Deus, mas não se demonstra Deus racionalmente. O

Deus cientificamente demonstrado é um pobre Deus”714. Enuncia a Encíclica

Fides et Ratio: “não se de pode esquecer que a Revelação permanece envolvida

em mistério. Jesus, com toda sua vida, revela seguramente o rosto do Pai,

porque ele veio para manifestar os segredos de Deus; e contudo, o

conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo caráter

parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do

mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente”715. Com certeza

714 ZILLES, U. Crer e compreender, p. 146, (grifo nosso). 715 Jõao Paulo II, Fides et ratio, p. 20.

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Descartes não discordaria desta tese. Não é o próprio Descartes quem afirma,

que sendo o espírito finito não pode conhecer, dar conta da natureza divina, que

é infinita? Em carta a Mersenne, de 27 de maio de 1630, Descartes vai mais

longe ainda: não só afirma a finitude da natureza humana em relação à

infinitude da natureza de divina, mas afirma que diante da desproporção do

homem em relação a Deus, embora o homem possa conhecê-lo, não pode

concebê-lo ou compreendê-lo: “Je dis que je le sais, et non pas que je le conçois

ni que je le comprends; car on peut savoir que Dieu est infini et tout-puissant,

encore que notre âme étant finie ne le puisse comprendre ni concevoir”716.

Continua Descartes: “de même que nous pouvons bien toucher avec les mains

une montagne, mais non pas l’embrasser comme nous ferions un arbre, ou

quelque autre chose que ce soit, qui n’excédât point la grandeur de nos bras: car

comprendre c’est embrasser de la pensée, mais pour savoir une chose, il suffit

de la toucher de la pensée”717. Se, tendo como guia a razão o homem não pode

compreender ou conceber Deus, não estaria dando o meditador, mesmo sem

reconhecer, um salto para fora da ordem da razão, para o domínio do

desconhecido, por este “saber de Deus” só ser aceito, sem compreensão, no

plano da fé? Não estaria Descartes, embora reconhecendo a existência de Deus

e de seus atributos, através da razão, sustentando algo que poderia se

denominar de “fé na existência de um Deus” que ultrapassa o que a razão pode

falar sobre ele? “Tem-se a impressão de que Descartes praticou mais em sua

filosofia do que aquilo sobre que refletiu teoricamente. Pressupõe, desde o

começo, que a dúvida se funda na verdade? Não aceitou sua existência já antes

de reconhecê-la pela dúvida? Não acreditava ele na existência de Deus antes de 716 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 267; AT., I, p. 152. 717 Idem, ibidem. Passagem muito interessante porque Descartes retoma a distinção agostiniana entre “saber” e “compreender”, interpretando este último de acordo com a metáfora original de Zenon o estóico. Pode-se saber que os enunciados mencionandos são verdadeiros, sem, no entanto, abarcar ou compreender tudo que está contido neles.

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tentar demonstrá-la? Não praticou ele, na sua dúvida, extraordinária confiança

na realidade? Não fez isso por estar situado e protegido pela fé cristã?”718.

Parece, mesmo contra a vontade de Descartes, não ser possível afirmar ou

provar a existência de Deus sem dar um salto da razão para a fé, ou no mínimo,

aceitar por meio de crença ou disposição do espírito a existência de algo que

ultrapassa a natureza finita do homem. De qualquer forma, o salto para a ordem

da fé ou crença, ou mesmo o pressuposto da existência de Deus, não é feito sem

comprometimento das normas reguladoras das faculdades da razão. Porque

parece que a própria ordem metafísica exige uma transgressão da ordem da

razão. Aqui, de fato, apresenta-se um problema metafísico: qual o limite da

razão natural? Descartes quer, até mesmo pela filiação ao mecanicismo,

manter-se no estrito campo da ciência, campo em que a razão natural atua

contando com suas próprias forças. Entretanto, o próprio conhecimento da

ciência exige de Descartes, até como necessidade de legitimação das conquistas

da nova ciência, uma metafísica que lhe dê, por um lado, uma aceitação nos

meios intelectuais do seu tempo e, por outro, lhe possibilite um conhecimento

claro e distinto sobre os primeiros princípios ou as primeiras causas a partir das

quais se erguem todos os outros saberes. É diante da dupla necessidade que

Descartes, num primeiro momento, pratica uma ciência na qual a presença de

Deus como que não se faz necessária; num segundo momento, constrói uma

metafísica, em que a presença de Deus constitui o fundamento da razão e,

conseqüentemente, torna-se base de sustentação de todo saber verdadeiro719. O

problema é saber como, garantido unicamente pela ordem natural da razão, é

possível saltar da ciência para a metafísica, da lógica imanente para a lógica

transcendente, sem trasgredir os limites da razão natural. Segundo Gaukroger,

718 ZILLES, U. Filosofia da religião, p. 33. 719 O primeiro capítulo desta tese trata da primeira questão, enquanto que o segundo capítulo trata da segunda.

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esbarra-se no “problema metafísico de que, por si só, a luz natural da razão não

pode gerar uma compreensão da natureza última das coisas, pois o abismo

cognitivo entre Deus e nós mesmos (...) significa que não podemos esperar que

nossas faculdades cognitivas sejam capazes de apreender a lógica divina por

trás do modo como as coisas são”720. Mas não é esse o caminho que busca

Descartes, pois não pretende ceder as conquistas obtidas no plano da luz natural

a uma ordem que a extrapola; não quer justificar os fundamentos de sua

filosofia em algo que a razão não possa alcançar. A ordem da razão cartesiana

não é, então, uma ordem que possa se justificar como derivada de uma

instância fora do homem e a partir da qual a verdade revela-se a este; ao

contrário, toda sua filosofia, pelo menos esta é a intenção, realizaria-se num

plano do homem puramente homem, melhor, no limite de sua própria

racionalidade, no âmbito da natureza humana. É neste sentido, e usando as

ferramentas que a razão fornece, buscando deixar de lado qualquer caminho

indicado pela fé ou por outras forças distintas da luz natural, que Descartes

busca um acesso a Deus. Se isso é possível ou não, se Descartes obteve êxito

em sua empreitada ou não, é outra questão que será vista ao longo deste

capítulo. Mas uma coisa é certa: o Deus de Descartes é um Deus da razão, não

é o Deus da fé. Não há como converter o Deus da fé no Deus da razão, ou o

Deus da razão no Deus da fé, e afirmar que ambos se equivalem. Se se levar

em conta a natureza do Deus cristão, há que se reconhecer que, em relação a

Descartes, Pascal está certo: “É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o

que é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão”721. Segundo Pascal, quando

a razão tenta dar conta de Deus, fracassa, não o alcança: “A fé é um dom de

Deus; não imagineis que a consideramos um dom do raciocínio. As outras 720 GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 388-389. 721 PASCAL, B. Op. Cit., frag. 278, p. 107. Cf. nota 248, onde se indica não haver nenhuma relação entre a definição que Pascal oferece para o conceito “coeur” e para o conceito “sentimentos”.

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religiões não dizem isso de sua fé: só davam o raciocínio para atingi-la, o qual,

entretanto, não a alcança”722. Logo em seguida Pascal estabelece o verdadeiro

meio através do qual o homem pode conhecer os primeiros princípios, o que

pode ser traduzido por Deus: “Conhecemos a verdade não só pela razão mas

também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os

princípios...”723. De fato, os caminhos de Descartes em direção a Deus são

distintos dos de Pascal. Este trilha os caminhos em direção ao conhecimento de

Deus, tendo a fé como guia, como um bom e devoto cristão724; aquele, ao

contrário, é puramente como filósofo que busca a Deus. Ambos buscam Deus,

um como filósofo, o outro como crente. Será que o Deus que ambos encontram

é o mesmo? Com certeza, não. Pascal e Descartes, não estão pensando no

mesmo Deus: um fala do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e o outro do Deus

dos filósofos e dos sábios. Todo cristão sabe que são muitos os caminhos que o

levam a Deus; ele também sabe que entre esses caminhos está o caminho da

razão. Sabe que este caminho permite ter acesso a Deus, mas sem revelar seus

segredos, conhecer seus mistérios, conquistar seu território, ao fim e ao cabo,

abarcá-lo, abraçá-lo com a razão. Se se seguir os passos de Descartes, não há

como não reconhecer que o seu Deus se distingue do Deus de Pascal. Além

disso, não é pelos mesmos caminhos que Descartes e Pascal obtêm, sobre Deus,

um conhecimento verdadeiro. O caminho de Pascal é o mistério, são as

verdades do coração, dá fé, da revelação. De fato, esses são os caminhos que

levam o cristão mais diretamente a Deus. No conhecimento de Deus, segundo

Pascal, a razão tem pouca serventia, não é através dessa via que se tem acesso

722 Idem, frag. 279. 723 Idem, frag. 282. 724 Tudo isto está mais no domínio do “esprit de finesse” e não no do “esprit de géométrie”, no qual Pascal era pelo menos tão bom quanto Descartes.

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às primeiras causas, aos primeiros princípios725: “a razão é razoável na medida

em que conhece que desconhece os princípios relativos ao conhecimento das

coisas em geral. Ela não é razoável quando pretende chegar a esse

conhecimento mediante o estabelecimento de princípios universais

indubitáveis. Descartes teria errado por ter tentado estabelecer os princípios

metafísicos de todo conhecimento”726. Descartes apresenta a razão como o

verdadeiro caminho para o conhecimento de Deus. Segundo Rosenfield,

Descartes desloca o modo do conhecimento do “coração” para o “intelecto”, da

“fé” para a “razão”, procurando demonstrar, apenas por “luz natural”, a

essência de Deus naquilo que este conhecimento pode ter de completo na

perspectiva de um intelecto finito”727. Portanto, o que fundamenta a ordem do

saber da revelação, a fé, exterior à razão, também se encontra fora da filosofia.

Descartes a dispensa porque não vê nela a garantia do conhecimento racional,

fonte das ciências. Segundo Descartes, há uma grande diferença entre a verdade

conquistada pela razão e a conquistada pela fé revelada pela graça de Deus:

“En quoi il me semble ne pas remarquer qu’il y a grande difference entre les

vérités acquises et les révélées, en ce que, la connaissance de celles-ci ne

dépendant que de la grâce (laquelle Dieu ne dénie à personne, encore qu’elle ne

soit pas efficace en tous), les plus idiots et les plus simples y peuvent aussi

bien réussir que les plus subtils; au lieu que, sans avoir plus d’esprit que le

commun, on ne doit pas espérer de rien faire d’extraordinaire touchant les

sciences humaines728”. Todo homem de fé pode conhecer as verdades reveladas

pelo dom Deus. Entretanto, quando se trata do conhecimento verdadeiro das

725 Pascal critica a pretensão, inclusive de Descartes: “que tenham querido compreender os princípios das coisas, e assim chegar ao conhecimento do todo, através de uma presunção tão infinita quanto o seu objeto”. Op. Cit., frag. 72, p. 51. 726 ROSENFIELD, D. L. Descartes e as peripécias da razão, p. 229-230. 727 Op. Cit. p. 108-109. 728 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 81; AT., II, p. 347.

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ciências, as verdades “reveladas” não têm utilidade, não têm nenhuma

serventia. Para o conhecimento destas o homem precisa de espírito, que para

Descartes significa que precisa fazer o reto uso da razão, pois só esta possibilita

ao homem o conhecimento das primeiras causas de todas as coisas; somente

através dela, é possível fazer ciência e, de posse desta, conhecer as coisas “mais

belas” do mundo.

Desde bem cedo, aos 21 anos, Descartes tinha plena consciência de que a

ciência matemática tem um papel central na ciência da natureza. É esse

conhecimento, produzido a partir dos conhecimentos matemáticos, que torna-se

modelo de todos os conhecimentos que a razão humana pode obter729. É

característico mostrar como Descartes estabelece a distinção entre os

conhecimentos derivados da fé, e os derivados do método, por sua vez derivado

da matemática. Com o primeiro constrói-se a teologia, com o segundo

constrói-se a ciência da natureza. Ao estabelecer essa distinção, está, ao mesmo

tempo, acusando e denunciando a inutilidade, para o conhecimento das coisas

da natureza, da filosofia que o antecedeu. Apesar da distinção entre as duas

formas de conhecimento clara no século XIII, no mínimo, não era costumeiro

estabelecer uma separação entre as mesmas. Ao contrário, era freqüente

subordinar todo o conhecimento racional aos ditames do conhecimento que se

recebe pela fé, tornando esta, assim, o princípio estruturante de todo

conhecimento, seja derivado dos sentidos, da razão filosófica ou da revelação

divina. “O problema da relação entre fé e razão acompanha o Cristianismo,

729 “Ainda em sua adolescência, Descartes dedicou-se plenamente aos estudos matemáticos, abandonando gradualmente todos os demais interesses, de tal modo que, aos 21 anos de idade, era senhor de tudo o que até então se conhecia dessa ciência”. BURTT, E. A. Op., Cit., p. 85.

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como herdeiro da filosofia grega, através dos séculos até hoje. Já nos primeiros

séculos encontramos filósofos, como Celso (século II), que tentam demonstrar

a incompatibilidade entre Cristianismo e razão filosófica. Por outro lado,

também não faltam homens que, como Orígenes (século III), tentam, contra

Celso, conciliar a razão com a fé através do diálogo”730. Mas, não há dúvida de

que dois ilustres representantes desta discussão no Ocidente são: Sto.

Agostinho e Sto. Tomás de Aquino. Neste sentido, vale a pena acompanhar o

resumo interpretativo que faz Urbano Zilles da Encíclica Fides et Ratio. Essa

encíclica “destaca dois momentos fortes e decisivos dessa longa história,

momentos ligados aos nomes de Sto. Agostinho e de São Tomás de Aquino.

Reconhece em Agostinho (354-430) a primeira grande síntese bem-sucedida

entre fé e razão, entre fé cristã e filosofia, no caso do neoplatonismo. A

posição de Agostinho de Hipona está caracterizada na frase ‘intellige ut credas.

Crede ut intelligas’ (Serm. 43,7). Segundo ele, primeiro a inteligência prepara

para a fé, depois a fé dirige e ilumina a inteligência. Finalmente a fé, iluminada

pela inteligência conduz ao amor. Dessa forma, vai do entendimento para a fé e

da fé para o entendoimento e de ambos para o amor”731. No segundo momento

da questão, “Tomás de Aquino determina a relação entre a fé e a razão da

seguinte forma: a) Fé e razão são modos diferentes de conhecer; b) Fé e razão,

filosofia e teologia, não podem contradizer-se, porque Deus é o autor comum

de ambas; c) Embora a razão seja suficiente para conhecer as verdades

fundamentais de ordem natural e seja autônoma no estudo das coisas naturais, é

incapaz, por si só, de penetrar nos mistérios de Deus. Por isso Deus veio

bondosamente ao encontro do homem com sua Revelação. Essa orienta o

filósofo em suas pesquisas; d) Mas a razão pode prestar um gande serviço à fé,

730 ZILLES, U. Crer e compreender, p. 120. 731 Idem, p. 120-121.

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seja para demonstrar aquelas coisas que são preâmbulos da fé, seja para

ilustrar, por meio de semelhança e dessemelhanças, as coisas que pertencem à

fé; seja para opor-se às coisas que são ditas contra a fé”732. Diferentemente

desses dois pensadores, Descartes acaba privilegiando aqueles conhecimentos

derivados da pura ordem racional, aqueles conhecimentos sobre os quais é

possível pronunciar-se com a garantia dos fundamentos matemáticos, pois só

eles são capazes de forjar os conhecimentos claros e distintos. Quanto aos

conhecimentos derivados da fé, Descartes os credita à teologia, ciência que,

desde o início de sua reflexão, no Discurso do Método, está fora dos limites da

razão pura e simples. Os conhecimentos derivados da fé, pertencem ao reino da

revelação, expressam-se através de metáforas e, portanto, não determinam os

fundamentos das ciências. Assim, a razão cartesiana traça seus caminhos na

absoluta independência de qualquer assistência revelada, de qualquer base que

tenha a fé como condição de possiblidade. Transportar para a teologia, aquilo

que não faz parte de sua natureza, como os pressupostos filosóficos e os

procedimentos que lhe são próprios, é abusar do poder da filosofia e, como

conseqüência, comprometer o território da teologia733. Descartes, neste ponto,

assim como não pretende apoiar a filosofia na teologia, não vê também que

vantagem poderia haver em se valer da filosofia nesta última. Ao contrário, a

732 Idem, p. 121-122. 733 “Nous ne devons pas soumettre la Théologie à des raisonnements, tels que nous les employons en Mathématiques et pour d'autres vérités, puisqu'elle échappe à nos prises; elle est d'autant meilleure qu'elle garde sa simplicité; et si l'auteur savait que quelqu'un transporterait dans la Théologie les raisonnements de sa Philosophie et ferait de sa Philosophie un tel abus, il regretterait bien la peine qu'il s'est donnée. Nous pouvons sans doute, nous devons même démontrer que les vérités théologiques ne répugnent pas aux vérités philosophiques; mais nous ne devons aucunement les soumettre à notre examen. C'est ainsi que des moines ont donné lieu à toutes les sectes et hérésies avec leur Théologie, je veux dire leur Scolastique, qu'il faudrait avant tout bannir. Et quel besoin de se donner tant de mal, puisque nous voyons que les simples d'esprit et les paysans peuvent gagner le ciel aussi bien que nous? Ceci certainement devrait nous avertir qu'il vaut bien mieux avoir une Théologie aussi simple qu'eux, que de tourmenter des textes dans maintes controverses, et d'en corrompre ainsi le sens et donner lieu à des querelles, des batailles, des rixis, bellis et similibus, et praecipue cum hinc assueverint Theologi adversae partís suae Theologis omnia afïingere et calumniari, ut calumniandi artem plane sibi familiarem reddiderint, et vix aliter quam calumniari, etiam inadvertentes, possint”. DESCARTES, R. Entretien avec Burman, p. 119-121; AT., V, p. 159.

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história da teologia escolástica parece mostrar antes as desvantagens que daí

resultam. Ele se situa, então, entre aqueles que ressaltam a transcendência da

teologia em relação à filosofia e não entre aqueles que sustentam que “embora

a teologia católica pressuponha que Deus pode ser conhecido pelo homem sem

uma revelação especial, a fé religiosa cristã deve ser uma resposta pessoal à

revelação. Isto, por um lado, implica que o crente tenha, como infraestrutura de

sua fé, um certo conhecimento natural de Deus. Esta é a razão por que a

teologia católica sempre deu importância ao discurso filosófico”734. Toda

tentativa feita por uma parte da Patrística, principalmente através de Santo

Agostinho, e pela Escolástica, através de Sto. Tomás de Aquino, de, através da

filosofia, seja recorrendo ao pensamento dos platônicos, seja recorrendo a

diversas versões do aristotelismo e do platonismo, dar uma expressão racional e

filosófica aos fundamentos teológicos do cristianismo. Com Descartes isso cai

por terra, levando assim a termo a tendência daqueles que suspeitaram que a

união da filosofia com a teologia era uma tentativa destinada ao malogro.

Poder-se-ia mesmo afirmar que, de fato, a filosofia de Descartes, se não por si

mesma, pelo menos pelo que pretendem tirar dela, coloca em risco a própria

religião cristã, que, em princípio, ele tentara favorecer. Um sintoma disto pode

ser encontrado em Bossuet (1627-1704), que tornou-se famoso por sua

“ortodoxia católica, que defendió contra protestantes, quietistas e

incrédulos”735, pois, mesmo que de início tenha achado que poderia encontrar

“en el cartesianismo un auxilio en su lucha, ya que estimaba compatibles una

física cartesiana y una teología tomista”736, teve que reconhecer, mais tarde, já

no final de sua vida, os perigos que representava, para a Igreja, o racionalismo

derivado da filosofia de Descartes. É ele mesmo quem diz: “veo … preparase 734 ZILLES, U. Crer e compreender, p. 18. 735 GOGUEL, E. Descartes y su tiempo, p. 164. 736 Idem, Ibidem.

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un gran combate contra la Iglesia bajo el nombre de filosofía cartesiana. Veo

proceder de su seno y de sus principios, a mi parecer mal entendidos, más de

una herejía; y preveo que las consecuencias que deducen de ellos contra los

dogmas que han sostenido nuestros padres van a volverla odiosa y harán perder

a la Iglesia toda el fruto que podía esperar de esta doctrina para establecer en el

espíritu de los filósofos la divinidad y la inmortalidad del alma ... De estos

mismos principios mal entendidos otro inconveniente terrible gana

paulatinamente las mentes ... : se introduce... una libertad de juzgar en virtud de

la cual, sin miramiento por la tradición, expresan temerariamente todo lo que

piensan”737. Paul Hazzard reconhece que a filosofia cartesiana de início

pareceu ser uma filosofia que poderia servir à causa da religião, mas que logo

se viu que isso não era verdade; ao contrário, ela trazia dentro de si o que

levaria à negação da religião: “No início, a filosofia cartesiana veio dar o que

parecia ser um apoio extremamente valioso à causa da religião. Mas esta

mesma filosofia continha dentro de si um embrião da irreligião que o tempo

haveria de trazer à luz e que atua, funciona e é deliberadamente utilizada para

destruir e minar as bases da fé”738. A idéia de que a filosofia de Descartes

poderia servir aos interesses da Igreja, recebeu impulso e disseminou-se entre

muitos dos intérpretes a partir de um fato ocorrido na França entre 1627 e 1628

(não há muita precisão nesta data); período em que, estando Descartes em

Paris, participou de uma reunião na casa do Cardeal Bérulle (1575 - 1629)739,

na qual iria fazer uma conferência o anti-aristotélico Chandoux740; Segundo

737 Apud, Idem, Ibidem. 738 HAZZARD, P. The European Mind 1680-1715, Apud, THROWER, J. Op. Cit., p. 93. 739 “Peu de jours après son retour [Bailler se refere ao retorno de Descartes a Paris], il se tint une assemblée de personnes savantes et curieuses chez le Nonce du Pape, M. de Bangé, qui fut cardinal peu de temps après, et qui honorait notre philosophe de son amitié depuis quelques temps. M. Descartes y fut convié et il y mena le Père Mersenne et M. de Ville-Bressieux pour entendre le sieur Chandoux qui devait y débiter des sentiments vouveaux sur la philosophie”. BAILLET, A. Vie de Monsieur Descartes, p. 69-70. 740 “Descartes compareceu à reunião com Villebressieu, Morin e Mersenne também se encontrava na platéia, assim como o cardeal Bérulle, fundador do Oratório e força motriz por trás da reforma das ordens religiosas. O

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Baillet, “Chandoux fit un grand discours pour réfuter la maneière d’enseigner la

philosophie qui est ordinaire dens l’école. Il proposa même un système assez

suivi pour la philosophie qu’il prétendait établir, et qu’il voulait faire passer

pour nouvelle”741. É o próprio Descartes quem relata a impressão que teve ao

assistir a conferência: “je fus obrigé de faire dans l’entretien que j’eus avec le

Nonce du Pape, le Cardinal de Bérulle, Le Père Mersenne, et toute cette grande

et savante compagnie qui s’était assemblée chez le dit Nonce pour entendre le

discours de M. De Chandoux touchant sa nouvelle philosophie”742. Diante da

exposição de Chandoux - excetuando Descartes que permaneceu em silêncio, o

conferencista foi muito aplaudido por todos presentes743 -, provocado pelo

cardeal Berulle a se pronunciar a respeito do conteúdo da conferência,

Descartes pronunciou-se criticando os princípios apresentatos pelo

conferenciasta e apresentando, em oposição às teses de Chandoux, os primeiros

princípios de sua filosofia, isto é, o método. A reação do público foi tão

favorável a Descartes que, como ele próprio afirma, foi constrangido a escrever

e levar ao conhecimento do público a nova filosofia: “Vous en restâtes

convaincu comme tous ceux qui prirent la peine de me conjurer de les écrire et

de les enseigner au public”744. Entre aqueles que se impressionaram com a nova

orador era um químico/alquimista chamado Chandoux, especialista em metais não preciosos, que mais tarde seria executado por falsificação. Chandoux propunha uma nova filosofia quimíca e criticava a fundamentação aristotélica da filosofia química existente. Embora não saibamos o que ele defendeu, parece ter sido algo mais ou menos nos moldes do pensamento mecanicista da época. É evidente que o discurso foi recebido com entusiasmo, mas Descartes ficou menos impressionado. Quando Bérulle Ihe perguntou o motivo, parece ter-se erguido e falado contra a palestra, elogiando a rejeição de Aristóteles por Chandoux, mas criticando o orador por substituí-lo por algo meramente provável. Desafiado a dizer se tinha algo melhor a oferecer, ele propôs seus ‘princípios naturais’”. GAUKROGER, S. Descartes – uma biografia intelectual, p. 235. 741 BAILLET, A. Op. Cit., p. 70. 742 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 294; AT., I, 213. 743 “L’agrément dont il accompagna son discours imposa tellement à la compagnie qu’il en reçut des applaudissements presque universels. Il n’y eut que M. Descartes qui affecta de ne point faire éclater au dehors les signes d’une satisfaction qu’il n’avait pas effectivement reçue du discours du sieur de Chandoux. Le Cardinal de Berulle qui était de l’assemblée s’aperçut de son silence. Ce qui le port à lui demander son sentiment sur ce qu’il venait d’entendre, et qui avait paru si beau à la compagnie”. BAILLET, A. Op. Cit., p. 70. 744 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 294; AT., I, 213.

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filosofia apresentada por Descartes e, viram nela, uma filosofia possível de ser

tomada pela Igreja, em substituição à filosofia da Escola que mostrava ser

incapaz de dar conta das inquietações emergentes da crise paradigmática

surgida, de forma acentuada, ao final do século XVII, estava o cardeal

Bérulle, que convocou Descartes a se aprofundar em suas pesquisas e reformar

a filosofia em benefício da humanidade745. “Bérulle, lui-même fondateur d’un

Ordre religieux, lui fit une obligation de conscience de travailler à la

rèformation de la philosophie. Dans un entretien particulier qu’il voulut avoir

ensuite avec le jeune philosophe, celui-ci lui fit entrevoir l’utilité que le public

retirerait de sa manière de philosopher, si on l’appliquait à la mécanique et à la

médecine: et ce n’est pas ce qui toucha le moins le coeur du religieux”746. Se as

pesquisas de Descartes tinham a intenção de atender à solicitação do Cardeal

Bérulle talvez nunca se saberá com certeza, mas o que se pode afirmar é que,

no mínimo, tal solicitação não foi o fator único e nem talvez o principal para o

desenvolvimento de sua filosofia. Descartes já se encontrava, antes de qualquer 745 Sobre essa passagem da vida intelectual de Descartes, escreve Gilson: L'historicité de ce passage est entièrement confïrmée par le témoignage de Clerselier, que Baillet nous a transmis. Après la fameuse dispute de Descartes contre le sieur de Chandoux (voir à p. 30,1. 18) : ‘ Le cardinal de Bérulle sur tous les autres (en marge : Mémoire manuscrit de Claude Clerselier, Ibid.) goûta merveilleusement tout ce qu'il en avait entendu et pria M. Descartes qu'il put l'entendre encore une autre fois sur le même sujet en particulier. M. Descartes, sensible à l'honneur qu'il recevait d'une proposition si obligeante, lui rendit visite peu de jours après et l'entretint des premières pensées qui lui étaient venues sur la Philosophie, après qu'il se fut aperçu de l'inutilité des moyens qu'on emploie communément pour la traiter. Il lui fit entrevoir les suites que ces pensées pourraient avoir, si elles étaient bien conduites, et l'utilité que le públic en retirerait, si l'on appliquait sa manière de philosopher à la Médecine et à la Mécanique, dont l'une produirait le rétablissement et la conservation de la santé, l'autre la diminution et le soulagement des travaux des hommes. Le Cardinal n'eut pas de peine à comprendre l'importance du dessein: et, le jugeant très propre pour l'exécuter, il employa l'autorité qu'il avait sur son esprit pour le porter à entreprendre ce grand ouvrage. Il lui en fit même une obligation de conscience, sur ce qu'ayant reçu de Dieu une force et une pénétration d'esprit avec des lumières sur cela qu'il n'avait point accordées à d'autres, il lui rendrait un compte exact de l'emploi de ses talents et serait responsable devant ce juge souverain des hommes du tort qu'il ferait au genre humain en le privant du fruit de ses méditations (en marge : Clerselief, Ibid). Il alla même jusqu'à l'assurer qu'avec des intentions aussi pures et une capacité d'esprit aussi vaste que celle qu'il lui connaissait, Dieu ne manquerait pas de bénir son travail et de le combler de tout le succés qu'il en pourrait attendre» (Baillet, t. I, p. 164-165 ; dans Ch. Adam, Vie de Descartes, t. I, p. 96-97, note). Descartes partit pour la Hollande immédiatement après (1628); c'est donc bien sous l'influence d'une préoccupation de cet ordre qu'il entreprit la rédaction de sa philosophie dans l'intention de la communiquer au públic”. GILSON, E. Texte et commentaire, In: DESCARTES, R. Discours de la Méthode, p. 444-445. 746 ADAM, Ch. Descartes, sa vie et son oeuvre, p. 23-24.

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chamamento do cardeal Bérulle, voltado para uma nova ciência e filosofia,

mesmo se os resultados das pesquisas ainda fossem desconhecidos do

público747. O certo é que o resultado das pesquisas de Descartes acabam por

não atender às expectativas do cardeal Bérulle; ao contrário, mesmo que essa

não tenha sido a intenção inicial de Descartes, sua filosofia não será adequada

às pretensões da Igreja de ter nela um recurso no que se refere aos preâmbulos

da fé (existência de Deus e imortalidade da alma), bem como na sistematização

teológica da revelação cristã. Para tristeza e incômodo da Igreja, a filosofia de

Descartes não irá substituir os platonismos e aristotelismos no papel que

desempenharam, por toda a Idade Média, de ser, à revelia dos filósofos, servos

da Teologia748.

A conseqüência da afirmação do racionalismo, é o declinio ou a agonia de uma

forma de pensamento e mesmo de cultura que busca apoio tomando

“emprestado” da filosofia seus fundamentos racionais. “Le rationalisme est la

mort de la spiritualité”749. Com o Deus cartesiano não há espiritualidade, amor,

fé, mistérios, o que há é derivado de uma ordem puramente matemática que

“subordina-se” às leis rigorosas do método. Entretanto, apesar de sustentar

que só o caminho da pura racionalidade possibilita o conhecimento verdadeiro

de todas as coisas, inclusive o conhecimento através do qual se conhece a Deus,

747 Cf. Cap. I, p. 41-43. 748 Santo Tomás reconhece o valor da filosofia em si mesma. “‘O estudo da filosofia, tomado em si, é lícito e louvável, em razão das verdades que os filósofos conheceram' (ST IIa IIae, q. 167, a. l, ad 3). Mas não é por ela mesma que o teólogo recorre à filosofia; a existência de uma relação de subordinação permite à teologia ‘governar’ à filosofia e utilizar seus resultados (Tomas, In Sent. I. Prologo, q. l a. 1), 'para tornar mais claro o que nela é trasmitido (ST Ia. q. l a. 5, ad 2)’”. Cf. LACOSTE, J.-Y. Op. Cit., p. 744. Seguindo a mesma linha de interpretação de Lacoste, Lima Vaz, diz o seguinte: para Santo Tomas, “a filosofia não é a sabedoria suprema. Na organização dos planos da visão intelectual, ela se insere na categoria de verdades que santo Tomás designou com o nome de ‘revelável’ (ver Summa theol.., I, p., 3, a. 3 c.), ou seja, verdades que se apresentam como bases ou instrumentos no trabalho de elaboração racional das verdades mais altas (as verdades ‘reveladas’), que constituem o universo da fé. A filosofia é, em outras palavras, a ‘metafísica de um teólogo’”. VAZ, H. C. de L. Problemas de fronteiras – escritos filosóficos I, p. 31. 749 MARITAIN, J. Le songe de Descartes, p. 275.

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Descartes reconhece, num segundo momento, que sendo Deus infinito e o

homem inteiramente finito, é preciso crer em tudo que Deus revelou e que

ultrapassa o alcance do espírito do homem. O próprio Deus e a revelação

contêm mistérios, como a Encarnação e a Trindade que não se deixam

compreender de maneira perfeitamente clara, estando acima do alcance da

racionalidade humana; portanto, não é possível aos humanos conhecer a Deus,

tendo a razão como referência única de acesso ao conhecimento750. Se a tese for

verdadeira, não estaria comprometida a plena racionalidade da raiz - a

metafísica - que sustenta a ciência cartesiana? Não estaria Descartes

concordando que nem tudo em sua metafísica pode ser compreendido

racionalmente, nos limites do método por ele mesmo apresentado como o único

caminho verdadeiro no plano das ciência? O racionalismo cartesianao não

estaria tangenciando um certo irracionalismo dissimulado? Para manter-se no

plano estrito da racionalidade, nada pode estar fora do seu alcance, nada pode

constituir-se como verdadeiro à revelia ou independentemente das regras do

método. Dominar a máquina do universo pressupõe dominar todas as leis que a

regem, pressupõe dominar racionalmente os primeiros princípios que

possibilitam e garantem a veracidades das leis que permitem que as coisas

sejam como são. Portanto, o domínio da natureza, pressupõe o domínio racional

dos primeiros princípios, pressupõe o domínio de Deus e até um certo domínio

do que ultrapassa o campo da racionalidade, pois é racional que Deus, sendo

infinito, comporte mistérios que ultrapassam o intelecto finito do homem e que

este não pode compeender perfeitamente. Um comprometimento do

conhecimento da primeira causa implica no comprometimento de todos os

conhecimentos derivados. Portanto, mesmo que Descartes defenda a

impossibilidade de que o homem possa obter pela razão um conhecimento 750 Cf. DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 24 e 25, p. 36.

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completo sobre Deus, não há contradição em sua metafísica pois esta busca,

sobre Deus, um conhecimento tão verdadeiro quanto aquele obtido como

resultado de um cálculo geomêtrico ou aritmético. Na ordem do conhecimento

racional não pode haver concessão e não há possibilidade para o mais ou menos

verdadeiro, para um quase conhecimento total; a ordem da lógica, melhor, do

método, é excludente; a verdade ou se afirma como absolutamente verdadeira,

ou não tem nenhuma validade, não tem nenhum poder de operacionalizar e dar

conta do conhecimento verdadeiro que a ciência busca. É a obtenção de um

conhecimento absolutamente verdadeiro, calcado em fundamentos

matemáticos, que possibilita a Descartes ter a certeza, não só de sua

existência, como também da existência de Deus e, como conseqüência, da

existência do mundo. Ao identificar a matéria como pura extensão geométrica,

subordinando-a a uma física do tipo matemética, Descartes exclui, da ordem da

ciência – seja essa ciência aplicado ao plano que for – todo conhecimento

verossímil751. É neste sentido que ele busca um conhecimento, sobre Deus, tão

verdadeiro e indubitável quanto aquele obtido através da matemática. Essa

idéia percorre toda a metafísica, seja na exposição do Discurso do Método: “é

pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe, quanto sê-

lo-ia qualquer demostração de geometria”752; seja na exposição das Meditações:

“portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações anteriores não fosse

de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu

751 Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46. Ao refutar, em seu método, a possibilidade da verossimilhança, Descartes está combatendo diretamente a escolástica que, no plano do conhecimento, “distinguia entre o falso, o provável ou verossímil e o necessariamente verdadeiro: o verdadeiro necessário só se encontrava nas matemáticas puras, na metafísica e nas proposições mais abstratas da física, onde não intervém a consideração da matéria; o provável reinava, pelo contrário, sobre cada pormenor da física, que deve ter em conta a matéria e o elemento contingente que introduz nos raciocínios. Ao definir a matéria pela extensão geométrica, isto é, pelo próprio tipo do inteligível, Descartes constituirá uma física do tipo matemático, eliminará a noção de provável do campo desta ciência e não admitirá, por conseqüência, nenhum degrau intermediário de certeza entre o verdadeiro e o falso”. GILSON, E. Intridução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46, nota 59. 752 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 70.

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espírito ao menos como tão certa quanto considerei até agora as verdades das

Matemáticas, que se referem apenas aos números e às figuras”753. Deus é o

primeiro princípio. O primeiro princípio é um princípio matemático. Por isto, a

impossibilidade de identificar o Deus de natureza geométrica, da metafísica

cartesiana, com aquele Deus que as Sagradas Escrituras oferecem aos homens,

o Deus que se anuncia como sendo a verdade. O Deus que sobrevive na

metafísica cartesiana já não pode corresponder, sem deixar resto, àquele Deus

cristão. “O Deus dos cristãos não consiste num Deus simplesmente autor de

verdades geométricas ... o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o

Deus dos cristãos, é um Deus de amor e consolação”754. Pascal está pensando

no Deus cristão, aquele que se revela nas Escrituras e que mandou seu filho,

Jesus Cristo, ao mundo para redimir os homens dos pecados. É o Deus que só é

conhecido através do seu filho, Jesus Cristo, que apresenta-se como o

verdadeiro Deus cristão. Pode-se percorrer toda a obra de Descartes, inclusive

As Meditações, obra paradigmática de sua metafísica, e em nenhum momento

encontrar-se-á Descartes escrevendo ou defendendo a tese de um Deus de

amor, ou mesmo de um Deus que se revela aos homens através do seu filho. Ao

contrário, o Deus que se apresenta na metafísica cartesiana é o Deus da ordem

racional, um Deus que se expressa e deixa-se entender a partir de pressupostos

geométricos. Se o Deus da metafísica cartesiana, pode ser conhecido,

racionalmente, pelo menos é isso que Descartes pretende com as provas sobre

sua existência; o Deus cristão, aquele que é apresentado pela doutrina católica,

só pode ser conhecido através da fé, tendo Jesus Cristo como mediador: “Só

conhecemos Deus por Jesus Cristo. Sem esse mediador, fica suprimida toda

753 Idem, Meditações, p. 173. 754 PASCAL, B. Op. Cit., frag. 556, p. 174.

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comunicação com Deus; por Jeus Cristo, conhecemos Deus”755. Num outro

momento, diz Pascal: “Todos os que procuram Deus fora de Jesus Cristo, e que

se detêm na natureza, ou não encontram luzes que os iluminem, ou acabam por

encontrar um meio de conhecer Deus e de servi-lo sem mediador, e por aí caem

no ateísmo ou no deísmo, que são duas coisas que a religião cristã abomina

quase igualmente. Sem Jesus Cristo o mundo não subsistiria; pois precisaria ser

destruído ou ser como o inferno”756. Para Sto. Agostinho, sem se trilhar o

caminho de Jesus Cristo, o caminho para o verdadeiro conhecimento de Deus,

fica inacessível757. Tanto Descartes, quanto os cristãos, buscam a Deus, mas por

caminhos distintos: um pelo caminho da fé, o outro, pelo caminho da

matemática. Diferentemente do cristão que diante de Deus curva-se em

orações, o filósofo – no caso, Descartes – diante do seu Deus, põe-se a calcular.

O cristão contempla Deus, o filósofo raciocina sobre Deus. Segundo Urbano

Zilles, “o discurso filosófico é um discurso sobre Deus, não um diálogo com

Deus, pois ao Deus dos filósofos falta o caráter pessoal, capaz de amar e ser

amado. Só o Deus pessoal é fonte e origem de todo pensamento. A tradição

judaico-cristã apresenta-nos um Deus que se revela em Jesus Cristo como um

Deus absoluto, transcendente e imanente, mas um Deus que se torna acessível

na experiência humana, um Deus que se comunica conosco”758. Este pode até

ser o Deus que Descartes cultiva na sua religiosidade particular, o Deus para o

seu culto pessoal, mas com certeza não o é, não pode ser, o Deus que apresenta

em sua metafísica. Este não é o Deus que torna-se fundamento, raiz da ciência.

Segundo Sciacca, apoiado por uma interpretação de Bréhier, “o cartesianismo 755 Idem, frag. 547, p. 166. 756 Idem, frag. 556, p. 175. 757 “Buscava um meio para me prover de forças a fim de ser apto para gozar-Vos, mas não o encontraria, enquanto não abraçasse ‘o Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo Homem-Deus bendito por todos os séculos, que está acima de todas as coisas. Ele chamava-me e dizia: ‘Sou o caminho, a Verdade e a vida’”. Agostinho. Confissões, VII, 18, 24. 758 ZILLES, U. Crer e compreender, p. 17.

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não é uma filosofia cristã”759, porque, “não basta demonstrar a existência de

Deus por meio de provas racionais para ser filosófo cristão: como diz Pascal,

sem Cristo, medianeiro, não há cristianismo. Ora, a metafísica de Descartes

orienta-se no sentido da religião natural, que é anticristã, pelo fato de não

querer saber de Deus, nem da revelação, nem da igreja”760. Se se assumir como

verdadeiro o que estabelecem Gilson e Hoehner para identificar uma filosofia

como sendo cristã761 – “É cristã toda filosofia que, criada por cristãos

convictos, distingue entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas

proposições com razões naturais, e não obstante vê na revelação cristã um

auxílio valioso, e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a

razão”762 –, a filosofia cartesiana encontra-se fora do alcance de ser

identificada, mesmo que por analogia, como uma filosofia cristã. As referências

que orientam uma filosofia cristã estão ausente do racionalismo cartesiano.

Mesmo quando Descartes busca provar a existência de Deus, não é para as

referências da religião revelada que sua reflexão orienta-se; ao contrário, é para

o exercício da razão dentro de seus limites como razão humana, tendo como

modelo o procedimento da matemática. O caminho que, na metafísica

cartesiana, leva o homem a Deus com certeza não é o da Fé, nem o de Jesus

Cristo, nem tampouco o das palavras reveladas das Sagradas Escrituras, ou

mesmo das orientações ou das determinações do ensinamento da Igreja, mas

sim a razão. As três provas elaboradas por Descartes para dar conta da

existência de Deus, prova a posteriori ou causal, primeira e segunda provas e

759 SCIACCA, M. F. O problema de Deus e da religião na filosofia contemporânea, p. 188. 760 Idem, Ibidem. 761 A própria denominação de “filosofia cristã” já é bastante polêmica. Não há, entre os historiadores da filosofia, uma concordância plena quanto à existência de tal filosofia. Sobre essa questão, basta ver as interpretações de Étienne Gilson, por um lado, defendendo a existência de tal filosofia, e, por outro, Émile Bhéhier, negando que, de fato, exista uma filosofia cristã. Esta é uma celeuma hermenêutica que não será contemplada neste trabalho. 762 GILSON, E.; BOEHNER, Ph. História da filosofia cristã, p. 9.

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prova a priori, terceira prova, se sustentam no rigor do método que obedece ao

procedimento matemático. A este método, nada, nem mesmo Deus, permanece

tão distante que não possa ser alcançado ou tão oculto que não possa ser

descoberto. A matemática, fornece a essência do método, construído

obedecendo seu modelo de ordem, clareza e distinção. Mas será que Deus se

torna visível à luz desse procedimento? Será que as provas elaboradas por

Descartes dão conta, verdadeiramente, daquele Deus que o cristão afirma que é

puro amor e que só se revela ao homem através da mediação de Jesus Cristo?

Segundo Kierkegaard, “querer provar a existência de Deus, é o cúmulo do

ridículo. Ou ele existe, e nesse caso não podemos prová-lo (como não posso

provar a existência de alguém; quando muito posso encontrar testemunhos em

favor desse alguém, mas fatalmente pressuponho a existência dele); – ou Deus

não existe, o que também não é demonstrável”763. Na mesma linha de

interpretação, que afirma a impossibilidade de que a razão humana possa, sobre

Deus, construir uma única prova válida, escreve Mackie, “Diós no puede ser

captado en ningún concepto, no puede ser cabalmente expresado en ningún

enunciado, no puede definirse en definición alguna: él es incomprensible,

inexpresable, indefinible”764. Segundo Pascal, não é possível, através do

metódo dos filosófos, conhecer verdadeiramente a Deus, que não se deixa

capturar pela rede dos conceitos talhados à imagem dos conceitos aritiméticos

ou geométricos. “Todos os que pretenderam conhecer Deus e prová-lo sem

Jesus Cristo só possuíam provas inoperantes. Mas para provar Jesus Cristo,

temos as profecias, que são provas sólidas e palpáveis. E essas profecias se

realizam e se revelam verdadeiras pelos acontecimentos, assinalando a certeza

dessas verdades e, portando, trazendo a prova da divindade de Jesus Cristo.

763 Apud, GUSDORF, G. Tratado de metafísica, p. 470. 764 MACKIE, J. L. El milagro del teísmo, p. 28.

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Nele, e por ele, pois, conhecemos Deus. Fora daí e sem a Escritura, sem o

pecado original, sem o mediador necessário, prometido e chegado, não se pode

absolutamente provar Deus, nem ensinar a boa doutrina e a boa moral. Mas, por

Jesus Cristo e em Jesus Cristo, prova-se Deus e ensina-se a moral e a doutrina.

Jesus Cristo é, portanto, o verdadeiro Deus dos homens”765. Este não é o

caminho que Descartes percorre; o que ele busca não é um fundamento para a

fé, mas um fundamento para a razão; este não se encontra em Jesus Cristo, mas

na matamética, mesmo que esta seja, em útima instância, uma criação de Deus

e não do homem766, isto porque, segundo Descartes, Deus é o primeiro autor de

todas as leis que regem o universo. Tal qual um monarca absoluto que

estabelece as leis do seu reino, Deus estabelece as leis da natureza, as leis que

765 PASCAL, B. Op. Cit., frag. 547, p. 166. “Mesmo se um homem estivesse persuadido de que as proporções dos números são verdades imateriais , eternas e dependentes de uma primeira verdade em que subsistem, e que se chama Deus, eu não o julgaria ainda muito adiantado em sua salvação. O Deus dos cristão não consiste num Deus simplesmente autor de verdades geométricas e da ordem dos elementos; essa é a porção dos pagãos e dos epicuristas”. Idem, frag. 556, p. 174 766 Toda a ordem do universo tem a sua garantia nas leis das matemáticas e estas, por suas vez, têm sua origem em Deus. Deus é o autor das leis que regem o universo. É em Deus que a matemática, fonte originária das idéias claras e distintas, encontra a sua verdadeira origem. “Ajoutons à cela que cette matière peut être divisée en toutes les parties et selon toutes les figures que nous pouvons imaginer; et que chacune de ses parties est capable de recevoir en soi tous les mouvements que nous pouvons aussi concevoir. Et supposons de plus que Dieu la divise véritablement en plusieurs telles parties, les unes plus grosses, les autres plus petites, les unes d'une figure, les autres d'une autre, telles qu'il nous plaira de les feindre. Non pas qu'il les sépare pour cela l'une de l'autre, en sorte qu'il y ait quelque vide entre deux: mais pensons que toute la distinction qu'il y met consiste dans la diversité des mouvements qu'il leur donne, faisant que, dès le premier instant qu'elles sont créées, les unes commencent à se mouvoir d'un côté, les autres d'un autre; les unes plus vite, les autres plus lentement (ou même, si vous voulez, point du tout) et qu'elles continuent par après leur mouvement suivant les lois ordinaires de la Nature. Car Dieu a si merveilleusement établi ces Lois qu'en-core que nous supposions qu'il ne crée rien de plus que ce que j'ai dit et même qu'il ne mette en ceci aucun ordre ni proportion, mais qu'il en compose un chaos le plus confus et le plus embrouillé que les Poètes puissent décrire: elles sont suffisantes pour faire que les parties de ce chaos se démêlent d'elles-mêmes et se disposent en si bon ordre qu'elles auront la forme d'un Monde très parfait et dans lequel on pourra voir non seulement de la lumière, mais aussi toutes les autres choses, tant générales que particulières, qui paraissent dans ce vrai Monde”. DESCARTES, R. Le Monde; Alq., I, p. 346-347; AT., XI, p. 34-35. “La valeur objective de l’idée est entièrement indepéndante de l’existence d’une chose dans la nature, parce qu’elle se fonde sur l’indiscutable présence en elle d’une réalité objective, sur la raison interne de son être qui est en lui-même indépendant de cette existence. Loin qu’elle se fonde sur l’existence, c’est l’existence qui se fonde sur elle. Aussi les idées claires et distinctes sont-elles innées, puisqu’elles ne dépendent que de mon seul entendement, ce qu’atteste ce fait que beaucoup de notions ou figures mathématiques sont telles qu’elles ne pourront jamais tomber sous mes sens. En outre, de même que la véracité divine me permet d’affirmer maintenant en toute sécurité leur valeur objective, de même elle me permet d’affirmer en toute sécurité que toutes les propriétés que j’aperçois clairement et distinctement appartenir à leur nature sont vraies, c’est-à-dire leur appartiennent effectivement. L’arithmétique et la géométrie sont donc entièrement fondées”. GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 334.

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constituem a gramática do real. Escreve Laporte: “si notre monde matériel est

ce qu’il est, c’est parce qu’il a plu à Dieu d’en soumettre les vicissitudes aux

lois qui sont présentement les lois de la nature”767. Toda a ordem do universo

obedece ao rigor das leis matemáticas que o arquiteto do universo estabeleceu

no instante da criação768. Afirma Descartes em uma famosa carta dirigida a

Mersenne em 15 de abril de 1630:

“... en ma Physique plusieurs questions

métaphysiques, et particulièrement celle-ci:

que les vérités mathématiques, lesquelles vous

nommez éternelles, ont été établies de Dieu et

en dépendent entièrement, aussi bien que tout

le reste des créatures. C’est, en effet, parler de

Dieu comme d’un Jupiter ou Saturne, et

l’assujettir au Styx et aux Destinées, que de

dire que ces vérités son indepéndantes de lui.

Ne craignez point, je vous prie, d’assurer et de

publier partout que c’est Dieu qui a établi ces

lois en la nature, ainsi qu’un roi établit des lois

en son royaume”769.

O Deus matemático apresenta-se como o criador geômetra do universo, que

Descartes, através das suas provas metafísicas, quer dar conta. É o Deus que,

despido do seu manto de mistério, apresentando-se como um puro e legítimo

767 Le rationalisme de Descartes, p. 352. 768 Ver nota 766: “Car Dieu a si merveilleusement... vrai Monde”. 769 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 259-260; AT., I, p. 145.

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princípio de razão, mostra-se e revela-se em uma linguagem modelada sobre a

da matemática e torna-se, na metafísica cartesiana, a raiz da árvore do

conhecimento. Tal Deus não pode corresponder ao Deus cristão; não há

equivalência entre as duas definições de Deus770. O Deus da razão de que fala o

filósofo, não é o Deus da Trindade, da Encarnação, do sacrifício, da cruz, do

amor, o Deus dos profetas; ao contrário, esses elementos e representações estão

longe do Deus de Descartes; este é simplesmente um princípio ontológico e

lógico, origem de todas as coisas por ele criadas e sustentáculo do saber que se

produz sobre elas771. O verdadeiro Deus da metafísica cartesiana é o Deus da

razão; o templo no qual ele manifesta-se e revela-se a todo homem dotado de

bom senso, é o método. “Seulement nous ne pouvons pas ne remarquer que le

Dieu vers lequel il a tourné ainsi son coeur pour l'adorer et le remercier, ce n'est

pas Dieu principe du salut éternel et pris pour fin supra-terrestre, c'est Dieu

principe de la science par laquelle on peut savoir le monde pour le posséder

humainement dans le temps et dans l'espace. A ce titre c'est donc Dieu conçu

comme source, et comme cause des biens de ce monde, ou plutôt de l'unique

770 Blondel, pensador cristão, em nota ao verbete Dieu, do Vocabulário filosófico de Lalande, demonstra os limites do Deus dos filósofos e dos sábios: “Le Dieu des philosophes et des savants, c’est l’être de raison, atteint ou supposé par une méthode intellectuelle, considéré comme un principe d’explication ou d’existence, que l’homme a la présomption de définir ou même d’influencer, comme un objet qu’il posséderait dans la représentation qu’il s’en donne”. BLONDEL, M. Verbete: Dieu, In: LALANDE, A. Vocabulaire – technique et critique – de la philosophie, p. 229. 771 Blondel, na seqüência da nota precedente, apresenta o que, segundo ele, é a natureza do Deus verdadeiramente cristão e em que sentido esse Deus, que ele chama ‘O Deus de Abraão’, seguindo a mesma linha de interpretação de Pascal, se distingue do Deus dos filósofos e dos sábios: “Le Dieu d’Abraham, c’est l’être mystérieux et bon qui révèle librement quelque chose de ses insondables perfections, qu’on n’atteint pas par l’esprit seul, en qui l’on reconnaît pratiquement une intime Réalité inaccessible à nos prises naturelles, et vis-à-vis de qui le commencement de la sagesse ne saurait être que crainte et humilité; mais en même temps c’est le Dieu qui en révélant à l’homme les secrets de sa vie le convie à sa divinité même, l’appelle à changer sa condition naturellement servile de créature en une amitié, en une adoption surnaturellement filiale, lui commande de l’aimer et ne se donne qu’à qui se donne à Lui. L’idée fondamentele, qu’il importe de ne pas négliger parce qu’elle est, au regard même du philosophe, l’âme de la vie religieuse (vraie ou fausse, mais historiquement et psychologiquement certaine), c’est donc celle-ci: on traite Dieu comme une idole si on se borne à en faire un objet de connaissance et si l’on ne réserve pas son action originale dans la réciprocité des rapports qui nous unissent à Lui. Le Dieu d’Abraham, c’est à la fois le mystère vivant qui se manifeste par la Révélation, qui se communique par la tradition, qui se rapproche de l’homme par l’Alliance, qui lui promete et lui demande l’Amour dans l’Adoption déifiante”. Idem, Ibidem, p. 229-230.

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bien de ce monde, qui est la science”772. O Deus, que se apresenta na metafísica

cartesiana, é um Deus frio como um axioma matemático, cuja função é

fundamentar a substância pensante e a substância extensa, como substância

infinita. Deus é o autor da natureza: “por natureza, considerada em geral, não

entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que

Deus estabeleceu nas coisas criadas”773. Até aí tudo bem, pois o Deus cristão

também é o autor da natureza. O problema é que para Descartes, nos limites da

razão natural (vide todo o primeiro capítulo), Deus é só o autor da natureza,

mais nada além. Ele é apenas uma exigência da fundamentação da ordem e da

disposição que pôs nas coisas criadas por ele. “O Mundo trasformou-se assim

num sistema racional e independente cuja existência era atribuída a um único

ato criador de Deus mas que podia ser entendida sem necessidade de qualquer

outra referência ao sobrenatural”774. A racionalidade imanente ao mundo

expressa-se em leis mecânicas, traduzidas em uma linguagem puramente

geométrica. A idéia de uma geometria reguladora de todos os saberes, inclusive

do saber sobre Deus, gerencia e ordena a ciência una e universal pensada por

Descartes. Se a metafísica constitui a raiz de todos os saberes, é o Deus

geômetra, o grande arquiteto universal que está na base da ciência universal

cartesiana. O Deus cartesiano torna-se alicerce do saber para a metafísica, para

física, para as ciências particulares, isto é, a mecânica, a medicina e a moral;

nenhum saber pode a ele anteceder, todos tem nele sua raiz última. Logo, é este

conhecimento verdadeiro que antecede e, ao mesmo tempo, possibilita a

aquisição de todos os outros conhecimentos verdadeiros possíveis.

772 LABERTHONNIÈRE, Études sur Descartes, II, p. 247. 773 DESCARTES, R. Meditações, p. 189. 774 THROWER, J. Op. Cit., p. 91.

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No entanto, Descartes constrói primeiro a ciência, garantida pela física, sem

metafísica; a participação de Deus na física, bem como nas ciências

particulares, é quase nula, cabendo-lhe principalmente a função de ter criado e

de manter a ordem constante do universal. Depois, num segundo momento,

constrói uma metafísica, que torna-se a raiz de sua física e que tem Deus como

primeiro princípio. Não há, portanto, em Descartes, dois deuses, um da ciência,

outro da metafísica; é um só Deus, ordenando-se ou colocando-se como

fundamento de todo o saber humano. O que é verdade para a física, tem que ser

também para a metafísica; até porque, ao fim e ao cabo, não há mais como

destinguir-se a física da metafísica, já que aquela encontra nesta seus

fundamentos e tem os mesmos procedimentos. “O que é a pedra angular da

metafísica cartesiana tem de ser necessariamente também a pedra angular da

física que vai buscar os seus princípios na metafísica”775. Seja a metafísica, seja

a física, seja a mecânica, a medicina ou a moral, são ramos de uma mesma

ciência; ramificações de um mesmo tronco do conhecimento humano, todo ele

erigido sobre as raizes metafísicas e conquistado pelo mesmo método – a

mathesis universalis. “Siendo una la ciencia y formando un solo cuerpo sus

distintas ramas, a todas deberá corresponderles un mismo método, tanto a las

matemáticas, como la física o a la metafísica”776. Ao transformar a natureza de

todos os saberes em uma ordem matemática, Descartes estabelece uma unidade

entre o pensamento e as coisas, entre o pensar e o ser, em sentido diverso

daquele pensado por Parmênides de Eléia (cerca de 530 - 460 a.C)777. Como

775 GILSON, E. Deus e a Filosofia, p. 66. 776 FRAILE, G. Op. Cit., p. 490. 777 “Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é (pois não é exeqüível), nem o dirias... Parmênides de Eléia, In: Proclo, Comentário ao Timeu, I, 345,

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conseqüência, Descartes subordina todas as coisas à autocracia da razão, ao

rigor do método. Isto é possível porque as leis que regem o pensamento são as

mesmas leis que regem a ordem natural das coisas. Pensamento e matéria são

constituídos de uma mesma trama: a matemática. Tendo a matemática como

essência, tanto do pensamento quanto da matéria, abre-se a possibilidade para

que haja entre essas duas substâncias distintas, uma comunicação. Assim, o

que é pensado sobre as coisas pode, de fato, corresponder ao que estas são em

si mesmas. É exatamente o resultado exitoso da correspondência entre o

racional e o real que faz com que Descartes possa ter tanta confiança em seu

método, tornando-o referência de validação para absolutamente todo

conhecimento que busque ser reconhecido como verdadeiro778. A matemática

torna-se a referência hermenêutica da verdadeira ciência, a chave com a qual o

homem abre as infinitas portas do universo. Talvez essa fosse uma idéia que

circulava no ar, sejam quais forem seus cambiantes. Kepler (1571 - 1630),

contemporâneo de Descartes, chega a identificar a geometria com o próprio

Deus: “A geometria existiu antes da criação, é eterna como a mente de Deus, é

o próprio Deus (...) a geometria proporcionou a Deus um modelo para a criação

e foi implantada no homem, junto à semelhança de Deus”779. Como já

mencionado, a metáfora de que a natureza está escrita em uma linguagem

matemática, já fora usada anteriormente por Galileu780. Seja como for, é

indubitável, como relembra Frederick Copleston, que o ideal dos metafísicos

continentais dos séculos XVII e XVIII era o de um sitema dedutivo de verdade

18. “... pois o mesmo é pensar e portanto ser”. Idem, In: Clemente de Alexandria, Tapeçarias, VI, 23. Pré-socráticos, col. Os pensadores, vol. I, p. 88. 778 Em 1628 (período provável da composição das Regras para a orientação do espírito), nas primeiras investigações sobre o método, Descartes, na Regra IV, já estabelece a importância que terá a matemática na construção de sua ciência. É à matemática universal que Descartes recorre para fundamentar a estrutura do método de uma ciência sob a qual erguerá o saber verdadeio de todas as coisas. 779 KEPLER, J. Apud, ESTRADA, J. Deus nas tradições filosóficas, v. I, p. 97, nota 2. 780 Cf., nota 120. Trata-se de um aspecto que poderia ser rastreado na história da filosofia, dos gregos aos filósofos do século dezessete, passando pela Idade Média e a Renascença.

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análoga a um sistema matemático e que as considerações aí implicadas

pesaram muito para Descartes781. Assim, Descartes incorpora como ninguém

em sua filosofia a idéia de que o saber filosófico para ser verdadeiro tem que

obedecer o rigor das matemáticas. A busca de um conhecimento filosófico

verdadeiro sobre Deus não foge desta obrigação. Não é possível tal

conhecimento firmar-se como verdadeiro, ainda que seja sobre Deus, sem que o

mesmo seja provado por uma cadeia de razões cujo modelo encontra-se nas

demonstrações matemáticas; ou seja, sem que o mesmo tenha passado pelos

rigores do método. No racionalismo cartesiano o saber antecede e possibilita o

ser. A consciência do sujeito pensante antecede e possibilita a existência de

todas as coisas que estão para lá da subjetivida do meditador782. “... étant assuré

que je ne puis avoir aucune connaissance de ce qui est hors de moi, que par

l’entremise des idées que j’en ai eues en moi, je me garde bien de rapporter mes

jugements immédiatement aux choses et de leur rien attribuer de positif, que je

ne l’aperçoive auparavant en leurs idées”783. Neste sentido, é possível afirmar

que “Descartes tenha sido o primeiro filosófo a perceber que não se devia partir

das coisas exteriores se se desejava adquirir alguma certeza referente a elas, e

que, ao contrário, o verdadeiro ponto de partida da ciência deveria ser

encontrado no interior do pensamento, isto é, do eu pensante. Em outros termos,

781 Cf. Copleston, F. From Descartes to Leininiz, In: Idem, A History of Philosophy, v. IV, p. 11-12 (trad. inédita de Carlos Arthur R. do Nascimento). 782 “... todo el que haya comprendido bien hasta dónde se extienden nuestros sentidos y qué es lo que en rigor pueden llevar hasta nuestra facultad de pensar, debe confesar, al contrario, que ellos no nos representan las ideas de las cosas tales como nosotros las formamos en nuestro pensamiento; de manera que, salvo ciertas circunstancias que no pertenecen sino a la experiencia, no hay nada, en nuestras ideas, que no sea natural al espíritu o a su facultad de pensar. Por ejemplo, es únicamente la experiencia la que nos hace juzgar que éstas o aquéllas ideas, actualmente presentes en nuestro espíritu, se refieren a algunas cosas que están fuera de nosotros; pero si juzgamos así, no es en verdad porque esas cosas las hayan trasmitido a nuestro espíritu por intermedio de los órganos de los sentides tales como las percibimos, sino porque le han trasmitido a nuestro espíritu algo que le ha servido de ocasión para que, por la facultad natural que él tiene, las formara en ese momento y no en otro”. DESCARTES, R. Réponse au placard de Regius, Apud. HAMELIN, O. El sistema de Descartes, p. 186. 783 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 905; AT., III, p. 474.

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um verdadeiro início requer uma subjetividade radical”784. Nesta mesma linha

de interpretação, escreve Hamelin: “el cogito, primera verdad, es la verdad de

um razonamiento más que la de um juicio; él constituye, pero sólo en el orden

del conocimiento, una progresión, una marcha del pensamiento al ser”785. É

possível perceber a distinção entre a forma de filosofia de Descartes e aquela

filosofia praticada na Antiguidade e, mais tarde, pelas correntes medievais, que

defendiam a tese de que todo verdadeiro conhecimento tem sua origem no ser

do mundo externo, sendo o pensar apenas um momento através do qual o

homem desvela a verdade que se encontra velada no ser das coisas. Todo

conhecimento, inclusive aquele que prova a existência de Deus, tem no mundo

sensível e contingente sua fonte originária786. Escreve Descartes: “os próprios

filósofos tem por máxima, nas escolas, que nada há no entendimento que não

haja estado primeiramente nos sentidos”787. Segundo Gilson, para Sto. Tomás

de Aquino, “o nosso pensamento nada pode conhecer, acerca da natureza de

Deus e da alma, além do que podemos concluir a partir do conhecimento

sensível”788. Para confirmar a tese de Sto. Tomás, basta conferir as cinco vias,

através das quais ele busca provar a existência de Deus, todas elas encontram

no mundo sensível, portando no mundo contingente, sua base de sustentação789.

784 GUENANCIA, P. Op. Cit., p. 76. 785 HAMELIN, O. Op. Cit., p. 144, (grifo nosso). 786 “Desde Descartes temos um primado do sujeito sobre o objeto, do interno sobre o externo, da consciência sobre o ser, da imanência sobre a trascendência. Para a Antiguidade, como para a Idade Média, o dado primeiro era o objetivo e o real, sobretudo o mundo externo. De agora em diante, é o contrário: o objetivo é excluido pelo subjetivo”. HIRSCHBERGER, J. História da filosofia moderna, p. 115. 787 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 71. 788 GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 79, nota 38. 789 “Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta é a procedente do movimento; pois, é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em acto. Pois mover não é senão levar alguma causa da potência ao acto; assim, o cálido actual, como o fogo, torna a madeira, cálido potencial, em cálido actual, e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma causa estar em acto e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois, o cálido actual não pode simultaneamente ser cálido potencial, mas, é frio em potência. Logo, é impossível uma causa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido há-de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se move, é necessário

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Deus, que é um ser não contingente, portanto, necessário, só pode ser

racionalmente conhecido a partir do mundo sensível e contingente. Fraile,

resumindo uma característica comum dos teólogos escolásticos, afirma: “el

conocimiento de Dios es mediato, oscuro, más negativo que positivo, adquirido

partiendo de la realidad de los seres contingentes del mundo sensible, que

postulan un ser necessario...790". O Padre Bourdin, nas Septièmes Objections,

associando-se à filosofia da Escola791 e contrapondo-se à filosofia de Descartes,

seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até o infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por conseqüência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus. A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma causa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removido a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus. A terceira via, procedente do possível e do necessário, é a seguinte. – Vemos que certas causas podem ser e não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as causas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria pois, o que não é só pode começar a existir por uma causa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora a causa da sua necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que tem a causa da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde, é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; e a tal ser, todos chamam Deus. A quarta via procede dos graus que se encontram nas causas. Assim, nelas se encontram em proporção maior e menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por conseqüente, maximamente ser; pois, as causas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como diz o Filósofo. Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo quanto existe, e chama-se Deus. A quinta via procede do governo das causas. – Pois, vemos que algumas, como os corpos naturais, carecentes de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem sempre frequentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta, que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela intenção. Mas os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as causas naturais se ordenam ao fim, e a que chamamos Deus”. Suma Teológica, Iª, q. 2, a. III. 790 Op. Cit., III, p. 522. 791 “...dans l'École, l'affirmation de l'existence de Dieu emprunte toute sa certitude à celle des choses sensibles, d'où l'on remonte jusqu'à lui comme d'un effet à une cause; par une voie inverse, le néoplatonisme part d'une intuition du principe divin, pour aller de Dieu, comme cause, aux choses, comme effets de cette cause. Il semble y

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afirma que “du connaitre à l’être la conséquence n’est pas bonne”792. Em

direção contrária segue o racionalismo cartesiano. Neste, antes que algo se

apresente como verdadeiro, cabe à razão construir sua ordem de verdade,

mesmo que a verdade seja sobre a existência de Deus. Aquilo que se constitui

como base de sustentação da metafísica clássica, qual seja, os sentidos, ponto

de partida para o conhecimento da verdade, inclusive para a obtenção de um

conhecimento verdadeiro sobre a existência de Deus, na metafísica cartesiana,

em princípio, não tem nenhum valor, pelo contrário, se o sujeito quer conhecer

a verdade, quer fundar uma ciência verdadeira, deve evitar a via dos sentidos,

deve colocá-la sob suspeição, pois ela, quase sempre, é enganosa. O Deus da

metafísica clássica, antes mesmo de habitar como verdade no homem, é exigido

pelo mundo. O mundo, em si mesmo, em sua contingência, já é uma prova de

que Deus existe793. O Deus da metafísica cartesiana, ao contrário, antes de ser

uma exigência do mundo, é uma exigência para o pensamento; a primeira via

de acesso é a mente humana; se ele também é requerido pelo mundo, como a

metafisica cartesiana irá demonstrar, a verdade só aparecerá num segundo

momento; só depois que constitui-se como uma conquista da razão em si

mesma, passa ele a ter existência no mundo. O Deus cartesiano tem sua

existência afirmada no cogito. Deus é a primeira verdade que o homem

conhece, depois de conhecer a si mesmo. O cogito antecede, assim, a Deus. É

neste sentido que o método, no rigor de suas leis, torna-se a base de sustentação

de qualquer prova que queira firmar-se como verdadeira, que queira ser

avoir là une alternative, à laquelle la pensée de Descartes échappe pourtant; et les deux premières démarches de sa métaphysique font voir l'impossibilité de l'une et l'autre de ces voies: le doute méthodique, en montrant qu'il n'y a aucune certitude dans les choses sensibles ni même dans les choses mathématiques, empêche d'aller des choses à Dieu”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, II, p. 66. 792 DESCARTES, R. Meditações – Sétima Objeção, Alq., II, p. 1010; AT., VII, p. 506. 793 “O que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles (Os pagãos), pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível - seu eterno poder e sua divindade - tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas”. Rom. 1, 19-21.

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reconhecida como ciência, mesmo que esta prova diga respeito à exitência de

Deus.

A questão é saber: pode o Deus vivo dos cristãos tornar-se prisioneiro da trama

urdida pelas regras, pelas leis do método? Não seria um contra-senso pensar

nesta possibilidade? É, em algum momento, o Deus cartesiano um Deus vivo,

tal qual o é o Deus cristão? Gilson reconheceu, como foi visto um pouco mais a

cima794, que, originariamente, o Deus cartesiano é um Deus cristão, entretanto,

o mesmo Gilson afirma que Descartes acabou por conduzir o Deus cristão por

caminhos puramente racionais, o que acabou por comprometer e retirar

qualquer identidade com o Deus vivo da revelação. O Deus de Descartes,

escreve Gilson: “é um Deus nato morto. Ele não pode sequer viver porque, tal

como Descartes o tinha concebido, ele era um Deus do cristianismo reduzido à

condição de princípio filosófico, em suma, uma mistura infeliz de fé religiosa e

pensamento racional”795. Diante do Deus que Descartes apresenta em sua

metafísica, pergunta Leroy, “Le Dieu du Discours et des Meditationns ne

serait-il pas simplesment le symbole de l’ordre scientifique, comme le Dieu de

Durkheim n’est que le symbole, sans réalité celeste, de la morale oeuvre de la

société796? A essa pergunta, Leroy lança outra pergunta: “Descartes n’aurait-il

pas dit: Je crois en Dieu, pour pouvoir dire impunément: Je sais que la terre

tourne”797? Só em parte isso é verdade. De fato, Descartes precisa trabalhar em

paz; afirmar o Deus cristão é uma forma de alcançar esse objetivo. Mas a

questão de Deus em sua metafísica ultrapassa em muito essa necessidade

794 Cf. p. 288 e 289 795 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 69. 796 Op. Cit., II, p. 42. 797 Idem, Ibidem.

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eminentemente prática. Quando Descartes fala de Deus, além de estar

interessado nessa questão prática, está, acima de tudo, interessado em encontrar

um fundamento primeiro para justificar e sustentar as bases metafísicas de sua

física. Portanto, o Deus da metafísica cartesiana é muito mais um princípio

lógico, um fundamento racional, uma causa lógica que a razão estabelece para

garantir toda a ordem de verdades das causas subseqüentes à primeira causa, do

que um Deus da religião que se põe como inacessível a qualquer racionalidade,

um Deus que, na sua infinitude, se apresenta fora da possibilidade de ser

alcançado pela finitude da razão humana798. Esse Deus, que assim comunica-se

com o homem, nada tem a ver com o Deus da metafísica de Descartes. No

limite, poder-se-ia dizer, que este Deus em nada tem a ver com a própria

ordem da ciência. No que diz respeito àquela ciência que nasce a partir do

século XVII e que expressa a linguagem do método puramente racional, o Deus

da religião não encontra mais guarida; esse novo território da razão se afirma

sem precisar, em nenhum momento, de seu beneplácito. Ao Deus da religião,

se contrapõe o Deus dos filósofos, melhor, o Deus de Descartes. “O ‘Deus’ de

Descartes [ou o deus ‘des Philosophes et des savants’, como lamenta Pascal

numa outra passagem] não é um SER pessoal, não é um Deus dos viventes; é

apenas uma força infinita que garante o perfeito e regula o funcionamento do

universo. Um ‘Deus’ que serve de garantia e segurança para a ciência e o

conhecimento, sem nenhum envolvimento com a vida do homem. Enfim, uma

força impessoal, como para Aristóteles ou Platão”799. Continua o autor: “Com a

filosofia cartesiana, Deus sai da experiência existencial do homem, para tornar-

798 “je n’ai jamais traité de l’infini que pour me soumettre à lui, et non point pour déterminer ce qu’il est, ou [ce] qu’il n’est pas”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 313; AT., III, p. 293. 799 STACCONE, G. Filosofia da religião, p. 75.

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se o ‘pivô’ da ordem harmoniosa do universo e a explicação das leis físicas que

regem o mundo”800.

O Deus cristão não encontra, sob a metafísica cartesiana, um lugar para

justificar o seu reino. Segundo Sciacca, no cartesianismo “não resta lugar para

o problema do sobrenatural, da transcendência de Deus, para a hipótese

ontológica, baseada no realismo da natureza e da vida. O Deus “fabricador” do

céu e da terra, fruto da imaginação, foi definitivamente vencido pelo Deus dos

filósofos ou o Deus da razão”801. Ficam claras duas coisas: o caminho que

conduz o homem em direção ao Deus cristão, é a fé; o caminho que conduz o

filosófo - Descartes - para Deus, é a razão matemática. Segundo Maritain,

depois de Deus ter atendido às necessidades de sua metafísica racional,

Descartes se afasta de Deus, já não mais se interessa por ele: “Il a besoin de

Dieu comme garant de la science, il se parte donc à lui par la voie la plus

rapide, et qui ressemble le plus à une intuition: pour savoir qu’il existe et qu’il

garantit l’ordre humain. Pratiquement rassuré là-dessus, Dieu ne l’intéresse

plus, c’est le monde qui l’intéresse. Il se détourne religieusement de Dieu”802.

Nesta mesma linha de interpretação Jaspers afirma que, Descartes depois de ter

usado Deus como ponto de partida de sua filosofia livra-se dele, já que não

mais precisa de Deus para dar continuidade ao movimento do seu projeto

filosófico: Descartes “usa [Deus] como punto de partida ineludible para todo

conocimiento de la verdad. Pero él no lo encuadra en su movimiento filosófico

de pensamientos como una plenitud del ser, como el origen real en la presencia

800 Idem, Ibidem. 801 SCIACCA, M. F. O problema de Deus e da religião na filosofia contemporânea, p. 170. 802 MARITAIN, J. Le sogne de Descartes, p. 286.

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de la existencia, sino como un mero pensamiento de Dios, como un Dios ya

demostrado que en la continuación del camino de los pensamientos puede

quedar fuera del juego ya que sólo tenía la función de fortalecer la exactitud de

la claridad y distiación como critérios del conocimiento, para luego colocar ese

conocimiento enteramente sobre su base”803.

O olhar de Descartes, e do seu Deus, está, então, voltado para o mundo; este é o

objeto de sua verdadeira vocação, este é o fim para o qual toda sua filosofia

está direcionada. É o pleno domínio da matéria, da natureza, o que visa, em

primeiro lugar, senão unicamente, a física derivada da metafísica cartesiana.

Não há na matéria nada que não seja aquilo que pode ser compreendido no

estrito limite da física, entendendo-se por física, a física pura, aquela física

quantitativa que, por sua natureza, distingue-se da física qualitativa que a

antecedeu. A natureza não tem nada que ultrapasse o espírito do homem, que

fuja das determinações de sua racionalidade. É exatamente a natureza

desencantada, sem fantasia, sem magia, sem deuses, sem finalidade, que é

objeto da física cartesiana. A natureza, que não é portadora de nenhum segredo,

cujas leis, embora dependam da vontade divina, podem ser estudadas por si

mesmas, que se constitui como matéria da ciência mecanicista, ciência adotada

por Descartes como a verdadeira ciência. Em Descartes está fora de

possibilidade uma interpretação teológica ou teleológica do mundo. Se há no

mundo um desígnio de Deus, este não pode ser conhecido pelo homem, é um

segredo que pertence a Deus, que só ele pode saber; portanto, no campo da

ciência, este segredo nebuloso, inacessível a qualquer forma de racionalidade,

803 JASPERS, K. Descartes y la filosofia, p. 25, (grifo nosso).

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não tem nenhuma ultilidade, nenhuma serventia. O mundo foi criado por Deus

por “pura vontade, e mesmo que ele tivesse algumas razões para criá-lo, essas

razões só Ele as conhece. O homem não tem, nem pode ter, a menor idéia sobre

elas. Por conseguinte, não é só inútil, como ainda absurdo, tentar descobrir

Seus desígnios. Concepções e explanações teleológicas não têm lugar e

nenhum valor na ciência física, tanto quanto não têm lugar nem sentido na

matemática...”804. Assim, portanto, a natureza é cega, se tem uma direção

previamente determinada por Deus, cabe ao homem, no limite de sua razão

natural, dizer o que a natureza é, tendo como referência os pressupostos do

espírito ou, o que quer dizer a mesma coisa, os pressupostos da física que, por

sua própria natureza, apresenta-se como o único caminho através do qual a

natureza deixa-se conquistar. Não há nenhuma finalidade na física cartesiana;

como conseqüência, não há nenhuma finalidade na natureza na qual ela é

aplicada805.

A eliminação da causalidade final, a causa por excelência (causa das causas)

para a metafisica aristótélica, que tantos serviços prestou à filosofia da Escola,

deixa Deus inútil, sem função final na ordem constitutiva das coisas. O fim que

o homem busca já não é Deus, mas o conhecimento certo e verdadeiro que ele

pode alcançar no estrito limite de sua racionalidade806. Se é possível estabelecer

804 KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito, p. 100-101. 805 “La Physique cartésienne paraît d’abord opposer à Religion des difficultés préjudicielles à sa structure même, et qui se résument en deux mots: elle est mécaniste, elle est antifinaliste, donc elle exclut la Providence et le Miracle”. LAPORTE, J. Le rationalisme de Descartes, p. 343. 806“Com a derrubada da causalidade final, Deus, como concebido pelo aristotelismo, estava praticamente perdido; negar francamente sua existência, no entanto era, à época de Galileu, um passo demasiado radical para que qualquer pensador importante pudesse considerá-lo. A única maneira de mantê-lo no universo era inverter a metafísica aristotélica e encará-lo como a Primeira Causa Eficiente, ou Criador dos átomos. Essa visão [...] se adequava admiravelmente, em muitos aspectos, à concepção cristã popular de Deus como o construtor original do mundo a partir do nada. Desse modo, Deus deixa de ser o Bem Supremo em qualquer sentido importante;

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um fim para a ciência, tal fim é o conhecimento da natureza: o pleno domínio

da natureza. Nesta mesma direção vai a metafísica quando torna-se raiz da

física. Seja a metafísica, seja a física, visam a mesma coisa: dominar a

natureza, tornar o homem seu senhor absoluto. É exatamente por isso que

Descartes não se “contenta com una física puramente teórica, sino prática y

aplicable a las realidades corpóreas del mundo exterior, a fin de dominar la

natureza material”807.

Se o olhar do meditador eleva-se, por alguns momentos, à contemplação do

Deus cristão, é na tentativa de seduzi-lo e subordiná-lo às teias de sua

metafísica. Depois do longo percurso para conhecer, através do método, a

Deus, é para o mundo que Descartes se volta, porque é verdadeiramente aí que

encontram-se seus legítimos interesses808. Das Seis Meditações, as cinco

primeiras são como que uma preparação para tornar possível, através dos

fundamentos de uma ciência mecanicista, um verdadeiro conhecimento do

mundo físico. A fisica, bem como o êxito de sua aplicabilidade, credita a

ciência de uma vez por todas como o único saber que, sobre o mundo, descobre

e constrói a verdade. Enquanto a física é a ciência da descoberta, a metafísica é

a ciência da confirmação das descobertas. Como escreve Cassirer, “la

metafísica no ayuda a descubrir, sino simplemente a confirmar y acreditar los

principios de la ciencia”809. A metafísica prepara a chegada da física; entretanto

ele é um imenso inventor mecânico, a cujo poder se faz apelo somente para explicar o aparecimento inicial do átomos. Com o passar do tempo, torna-se mais e mais irresistivel a tendência de colocar nos próprios átomos toda a causalidade ulterior de qualquer efeito” BURTT, E. A. Op. Cit. p. 78-79. 807 FRAILE, G. Op. Cit., p. 532. 808 Cf. ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o mecanismo, p. 42. 809 CASSIRER, E. El problema del conocimiento, I, 452. Em nota, Cassirer faz um esclarecimento a essa passagem que vale a pena ser transcrito aqui: “Es cierto que Descartes afirma reiteradamente en sus cartas que no pude fundamentar los principios de su física sin remitirse a los rasgos fundamentales de su metafisica, pero esto no se refiere a la determinación intrínseca de tales principios, ni por tanto, a la tesis de que todos los

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é a física a verdadeira ciência que produz a verdade, que constrói os

fundamentos da ciência verdadeira. Quanto à metafísica, sua verdadeira função

na ciência cartesiana é ser a ciência da confirmação, ou seja, ela estabelece os

fundamentos que possibilitam a física; sustentada por suas raizes, esta ergue

seu tronco do qual derivam todos os outros ramos das ciências particulares.

Justifica-se, assim, que Descartes tenha ido buscar na metafísica a origem

última das verdades de sua física e de sua ciência. Mesmo que esta tenha

nascido antes da metafísica, é nesta que a ciência terá sua origem, é na

metafísica que Descartes encontra a confirmação dos primeiros príncipios de

sua ciência. Mesmo que Descartes tenha primeiramente construído sua ciência

sem metafísica – o Le Monde, livro postumamente publicado, é um bom

exemplo desse período – e só depois, no Discurso do Método e nas Meditações,

tenha apresentado sua metafísica, é a metafísica que antecede e possibilita a

própria física, porque desta torna-se a raiz, fundamento e origem. A física, após

ter encontrado na metafísica sua legitimidade ou legitimação, segue em frente,

sem olhar para trás, em busca da conquista do mundo. O Deus que foi

conquistado, através da metafísica, é necessário e suficiente para garantir e

legitimar as conquistas da física, no limite, as conquistas da ciência

mecanicanisita. Neste sentido, é possível afirmar que Descartes constrói um

Deus à imagem e semelhança das necessidades de sua ciência. Não parece

descabida, então, a pergunta de Hirschberger: “Deus é apenas objeto do nosso

pensamento ou existe realmente?”810. O que não se pode negar, e é

precisamente isso que este capítulo tem tentado demonstrar, é que o Deus de

Descartes é um Deus construído para atender a uma necessidade, para atender a fenómenos naturales se reducen a los criterios de magnitud, forma y movimiento. Pero lo que necesita de la metafísica es para asegurar a estos conceptos, provientes de la matemática pura, su aplicación a la existencia, es decir, para demostrar la ‘armonia’ entre las ideas claras y nítidas del intelecto y la realidad absoluta”. Idem, p. 452-453, nota 10. 810 Op. Cit., p. 120.

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uma função previamente determinada, qual seja: tornar-se fundamento para a

ciência mecaniscista que, mesmo sendo verdadeira, busca, na metafísica, uma

causa legitimadora em última instância; “a essência de um Deus cartesiano

estava largamente determinada pela sua função filosófica, que era criar e

preservar um mundo mecânico da ciência como o próprio Descartes o

concebeu”811. A mundanização do pensar filosófico de Descartes implica,

necessariamente, na contrução de uma filosofia de caráter explicitamente

secular. Uma filosofia voltada para a vida, como o próprio Descartes faz

questão de afirmar: “eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir

o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com

segurança nesta vida”812. Declaração certamente a ser associada àquela do

início da sexta parte do Discurso sobre o domínio da natureza, permitindo

(através da mecânica) melhor gozar de todos os frutos da terra e (através da

medicina) conservar a saúde, o primeiro dos bens, no qual se encontra inclusive

a base da saúde do espírito (templo da moral)813. Portanto é para esta vida, e

não para uma outra vida, como a que a religião oferece aos seus fiés, que a

filosofia de Descartes se volta. O que este quer não é salvar a alma humana,

nem facilitar ou abir os caminhos para que se possa conhecer a terra prometida

e, como consequência, a felicidade eterna oferecida pelas religiões, que só se

realiza plenamente num outro mundo; ao contrário, sua filosofia visa, antes de

qualquer coisa, o mundo dado, o mundo concreto e ordinário dos humanos. J.

Maritain, com precisão e brevidade, identifica essa característica essencial da

filosofia de Descartes: “L’entendement cartésien ne se traîne pas vers les

choses divines, il s’installe dans les choses terrestres”814. É neste mundo que o

811 GILSON, E. Deus e a filosofia, p. 68. 812 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47. 813 Cf. Discurso do método, p. 90-92. 814 MARITAIN, J. Le songe de Descartes, p. 271.

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homem, “dotado de bom senso”, pode torna-se seu senhor e, mais ainda,

aprender como ser prudente nos negócios, ser capaz de conhecer todas as coisas

possíveis, administrar e conservar sua saúde, de posse do domínio das técnicas,

inventar todas as artes815 e, no limite, como resultado de todas essas conquistas:

conhecer a “felicidade nesta vida”. Neste sentido, não seria nenhum excesso

dizer que a filosofia de Descartes é uma filosofia de afirmação da vida, porque,

em última instância, é a contemplação da vida ordinária dos homens o que ela

visa e cultiva: “la philosophie que je cultive n’est pas si barbare ni si farouche

qu’elle rejette l’usage des passions; au contraire, c’est en lui seul que je mets

toute la douceur et la félicité de cette vie”816. A preocupação em construir uma

filosofia prática, útil à vida, é tão evidente em Descartes que ele chega a dizer,

em carta ao Marquês de Newcastle, em outubro de 1645, que a conservação de

sua saúde foi sempre o principal objetivo de seus estudos: “La conservation de

la santé a été de tout temps le principal but de mes études, et je ne doute point

qu’il n’y ait moyen d’acquérir beaucoup de connaissances, touchant la médicine,

qui ont été ignorées jusqu’à présent”817. Descartes torna-se “cobaia” de suas

próprias experiências no campo da medicina; não de uma medicina qualquer,

como, por exemplo, daquela herdada dos seus antepassados, mas daquela que tem

sua origem garantida pelos fundamentos de sua física, ou seja, de sua medicina

mecanicista, na esperança de que, através do bom uso desta, possa administrar

melhor seu corpo-máquina e, com isso, só ser surpreendido pela morte quando já

tiver alcançado mais que um século de vida – infelizmente os acontecimentos não

confirmaram a intenção do filósofo818. É exatamente essa esperança que se

encontra presente quando, no dia 4 de dezembro de 1637, escreve a Huygens819:

815 Cf. DESCARTES, R. Carta-prefácio dos princípios da filosofia, p. 4. 816 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 846; AT., V, p. 135. 817 Idem, Correspondência, Alq., III, p. 624; AT., IV, p. 329. 818 Descartes nasceu em 1596 e morreu em 1650, viveu, portanto, 54 anos.

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“je n'ai jamais eu plus de soin de me

conserver que maintenant, et au lieu que je

pensais autrefois que la mort ne me pût ôter

que trente ou quarante ans tout au plus, elle ne

saurait désormais me surprendre qu'elle ne

m'ôte l'espérance de plus d'un siècle. Car il me

semble voir très évidemment que, si nous nous

gardions seulement de certaines fautes que

nous avons coutume de commettre au régime

de notre vie nous pourrions sans autre

invention parvenir à une vieillesse beaucoup

plus longue et plus heureuse que nous ne

faisons; mais, parce que j’ai besoin de beau-

coup de temps et d'expériences pour examiner

tout ce qui sert à ce sujet, je travaille

maintenant à composer un Abrégé de

Médecine, que je tire en partie des livres et en

partie de mes raisonnements, et que j'espère

me pouvoir servir par provision à obtenir

quelque délai de la Nature, et à poursuivre

mieux ci-après en mon dessein”820.

“Descartes partilha, com muitos espíritos do seu tempo, a preocupação de prolongar a vida humana para além dos limites atuais. Corria até o boato, no séc. XVII, de que ele esperava encontrar o meio de tornar a sua vida igual à dos patriarcas e atingir quinhentos anos, seguindo um regime conforme a natureza. Na realidade, Descartes foi perdendo continuamente algumas das esperanças que o Discurso expressa; nos últimos anos de sua vida, verificando que tinha ficado muito mais satisfeito com a moral do que com a medicina, Descartes consolava-se por não ter encontrado o meio de conservar a vida, o que lhe permitiu, pelo menos, encontrar o de não temer a morte”. GILSON, E. Introdução e notas, In: DESCARTES, R. Discurso do Método, p.103, nota 10. 819 Há um desencontro na datação exata desta carta. Na edição de AT. esta carta é datada de 25 de janeiro de 1638; já na edição de Alquié, ela é datada de 4 de dezembro de 1637 820 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 818; AT., I, p. 507.

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Em resposta às críticas dirigidas à sua filosofia por Voetius, Descartes indica

em que sentido sua filosofia é, acima de qualquer coisa, uma filosófia prática,

que visa ser últil à vida, bem diferente daquela filosofia da Escola que, segundo

ele, é puramente especulativa, sem nenhuma utilidade prática à vida ordinária

dos homens821:

“la philosophie contre laquelle vous déclamez

avec tant de violence serait mauvaise, ce que

vous n’avez encore démontré nulle part, ce que

vous ne démontrerez jamais, peut-on supposer

qu'elle soit assez perverse et assez dangereuse

pour mériter à son auteur les plus atroces

injures? La philosophie que je recherche, ainsi

que tous ceux qui ont conçu pour elle une

noble passion, est la connaissance des vérités

qu'il nous est permis d'acquérir par les

lumières naturelles, et qui peuvent être utiles

au genre humain: il n'est pas d'étude plus belle,

plus digne de l'homme; il n'est point qui puisse

mieux servir notre bien-être icì-bas. La

philosophie dominante, au contraire, celle

que l'on enseigne dans les écoles et les

universités, n'est qu'un amas confus d’opinions,

pour la plupart douteuses, comme le prouvent

les discussions auxquelles elles donnent lieu

chaque jour, et entièrement inultiles, comme

821 “Um objeto do filosofar, portanto, intramundano, profano e laico, marca do rompimento e da radical inversão de rumos em relação à escolástica medieval”. STACCONE, G. Filosofia da religião, p. 71.

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une longue expérience ne l'a que trop

appris”822.

Este aspecto mundano da filosofia de Descartes espalha-se por todo o seu

pensamento filosófico, seja no campo da ciência, da metafísca ou da moral; é

essa filosofia prática que Descartes busca. Segundo Jaspers, mesmo quando

Descartes sai do plano da ciência física e vai para o plano da moral, espaço em

que a religião, através das Escrituras, constrói todos os seus fundamentos, não

é ao Deus do Evangelho que ele recorre como fonte de sua moral: “si para

Descartes la aceptación filosófica del orden mundial es más esencial que el

sentir de la voluntad de Dios Padre, si la confanza en sí mismo es tan

imperturbable que rechaza por inútiles los cargos de conciencia, si en él no hay

ninguna esperanza en la Gracia de Dios porque no necesita en absoluto una

esperanza así, entonces las fuentes de su moral son Séneca, Montaigne y

Charon y no el Evangelio”823. Não é nos Evangelhos que Descartes busca os

fundamentos de sua moral e muito menos ainda de sua ciência. Todo

fundamento moral cristão só se justifica não apenas se o crente acreditar

verdadeiramente em Deus, porque é dele que nascem as diretrizes que regulam

toda a ação moral do homem dotado de fé, mas se aceitar, no limite, como

princípio normativo de sua vida, As bem-aventuranças, O Sermão da

822 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 30. Trata-se de algo bastante generalizado na época, sendo no entanto, muito mais um ideal que uma realização. John Locke (1632 – 1704) podia escrever tranquilamente: “Tenho dois cavalos que há quinze dias não me prestam outro serviço senão exercer seus dentes. Como não é ser de grande utilidade, desejaria bem ver os Senhores Cartesianos inventar máquinas tais, que se pudesse montá-las a seu grado sem fazê-las comer nem feno nem aveia quando elas não fizessem nada. Mas estes filósofos estão sempre a falar de máquinas e não produzem jamais nada que sirva”. Apud, SCHULL, P.-M. Machinisme et Philosophie, Paris: P.U.F., 1947, p. 41-42, que ele mesmo remete para MARION, H. J. Locke, sa vie et son oeuvre d’après des documents nouveaux. Paris: s/ed., 1878, p. 52. 823 JASPERS, K. Op. Cit., p. 89.

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Montanha824. Para o homem que acredita em Deus e no Evangelho, toda sua

ação deve estar guiada e orientada pelos fundamentos de sua crença. Portanto,

para o cristão a certeza de que Deus existe, de que ele é a verdade e fala à

humanidade pelo antigo e novo testamentos, deve anteceder a todas as outras

certezas possíveis. Para o cristão o seu Deus deve ser a causa primeira, tanto de

sua existência, quanto de suas ações neste mundo. Essa certeza, que nasce da fé

no Deus uno e trino e tem, como consequência, a aceitação de suas leis morais,

dispensa a necessidade de qualquer prova racional sobre a existência de Deus.

Ao cristão, a fé basta para aceitar que Deus existe. A fé não exige explicações

racionais, ela é pura entrega, adesão, aceitação. Exigir provas para justificar ou

mesmo validar o conteúdo da fé, seria um pecado, uma blasfêmia, seria não

confiar suficientemente em Deus que é a própria verdade, fonte de toda outra

verdade. Portanto, a dúvida, a incerteza, a desconfiaça em relação a Deus, para

um cristão, é um pecado, uma falta. Ela denuncia que aquele que se diz cristão,

ainda não o é verdadeiramente, porque o verdadeiro cristão nunca duvida de

que Deus existe e de que ele é a verdade. Ora, a dúvida pode desaguar na

negação e até mesmo no ódio a Deus, o mais ímpio dos pecados. Portanto, o

verdadeiro cristão deve evitar a via da dúvida, ela só o leva a distanciar-se de

seu Deus e, como consequência, só o conduz ao pecado e à perdição das

incertezas. Se para o cristão a verdade é inquestionável, já que ela é a própria

prensença de Deus em seu espírito, para Descartes, ao contrário, para que algo

824 “Vendo ele as multidões, subiu ao monte. Ao sentar-se, aproximaram-se dele os seus discípulos. E pôs-se a falar e o ensinava, dizendo: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurado os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da injustiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós”. Mateus 5, 1-12.

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se apresente ao espírito como verdadeiro, tem que passar antes pelo crivo da

dúvida, pelo exame rigoroso do espírito crítico que torna-se o princípio de

validação de todas as verdades. Essa é a primeira Lei do racionalismo

cartesiano. Lei tão importante para sua filosofia que Descartes a converte em

primeiro artigo – base de sustentação de todos os outros quinhentos e quatro

artigos existentes em seu livro, Princípios da Filosofia: “Para examinar a

verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida, pôr todas as coisas em

dúvida, tanto quanto se puder”825. A dúvida é, assim, a manifestação ou a

expressão de uma razão emancipadora826. Ela é o caminho que leva à verdade

que brota do seu interior. Por isso, a dúvida torna-se o ponto de partida para a

obtenção de qualquer conhecimento verdadeiro, tornando-se método, caminho,

através do qual o conhecimento da verdade se efetiva. Para o cristão é

acreditando, tendo fé, que a verdade lhe é revelada; para o filósofo, é

duvidando, que a verdade é conquistada. Absolutamente tudo, seja o homem,

seja Deus, seja o mundo, antes de ser afirmado como verdadeiro, tem que estar

subordinado ao crivo da dúvida. Descartes, antes de asseverar o que quer que

seja sobre eles, coloca em dúvida até mesmo a própria existência destes. É do

reino da incerteza que nasce a primeira certeza. Se a dúvida, de início, deixa o

homem num caos inseguro e incerto, a superação desta, o instala no universo da

ciência. A posse de uma primeira verdade, firme como rocha, abre a

possíblidade de superação da dúvida cética e faz surgir, no homem, a esperança

de que, agindo no estrito limite do rigor do método, possa, qual novo

Arquimedes, mover a terra, ou melhor, tê-la sob o mais pleno domínio de sua

racionalidade. Ao instaurar a dúvida como o único caminho através do qual a

verdade pode ser conquistada, Descartes acaba por abandonar, de forma

825 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 1, p. 27. 826 Cf. ESTRADA, J. A. Op. Cit., p. 83.

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definitiva, aquela confiança, que a religião ensina, na existência de uma

verdade que pré-existe ao sujeito pensante, melhor, ao sujeito que duvida. Com

isso, desinstala o homem de seu lugar seguro, de sua verdade, e o instala na

crise de suas incertezas e de suas dúvidas. Agora o homem, que tinha tantas

certezas, que se sentia seguro e confortável no reino destas, não tem mais

nenhuma certeza, nem sequer de sua própria existência, da existência de Deus

ou da existência do mundo. Ao fazer isso, Descartes está, ao mesmo tempo,

tirando de Deus a posse da verdade e colocando nas mãos do homem, não a

verdade em si mesma, mas a possibilidade de sua conquista. Se antes, a verdade

era uma oferta generosa de Deus aos homens, com Descartes ela transformou-

se em uma conquista que cabe unicamente ao homem efetivar. Agora, conhecer

a verdade é uma questão de método: O Discurso do Método é o convite de

Descartes a todos os homens a tornarem-se, eles mesmos, senhores da verdade,

conquistadores do mundo. O homem é convidado a assumir o posto central que

lhe cabe. Assim fazendo, o homem assume o lugar de Deus, tornando-se, ele

mesmo, o inventor da verdade. Neste caso, no plano da ciência, qual é a função

de Deus? Nenhuma. Sobra-lhe o espaço da adoração, do culto, onde o homem

busca e encontra a trascendência absoluta, os fundamentos de seu viver e do

mundo, que dão sentido a ele próprio e ao mundo no qual vive. No campo da

ciência, não há espaço para a ação da teologia. Quando a teologia pretende

ultrapassar seus limites e alcançar as vedades que têm sua origem na razão

metodológica, só revela sua incapacidade para tal. Descartes salvaguarda o

domínio da “autoridade divina”, preferível a “nosso raciocínio”, mas, quanto ao

que “não é revelado”, o primado da razão é incontestável. Neste domínio só se

deve aceitar como verdadeiro aquilo que se apresenta à razão de forma clara e

distinta: nem mesmo os sentidos merecem confiança; preferi-los à razão seria

uma criancice; “relativamente às verdades em que a Teologia não interfere,

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parece inaceitável que um homem que queira ser filósofo tome por verdadeiro o

que não conheça como tal, preferindo fiar-se nos sentidos, isto é, nos juízos

inconsiderados da sua infância, e não no que a razão lhe dita, podendo, no

entanto, servir-se dela para se conduzir”827.

O homem tornou-se independente de Deus no domínio da ciência, que lhe é

próprio; virou-lhe as costas, não precisando mais dele; tornou-se, ele mesmo

senhor do mundo. Esse “novo” homem encontra-se sozinho, tornou-se

autárquico, pelo menos no que toca à razão. Tornou-se referência para o

pensamento do mundo. Esse EU penso acaba por desdobra-se no eu existo, eu

amo, eu faço, eu quero, eu posso, eu sou. Assim, o eu que encontra sua própria

identidade no exercício de seu pensamento, afirma-se, na sua absoluta

singularidade, como senhor de si e do mundo. Ao elevar-se à primeira

referência do saber, eleva-se, ao mesmo tempo, como primeira referência do

poder. A conseqüência imediata disso é que a elevação do sujeito a tal patamar

de referência, de saber-poder, impõe um declínio à idéia de Deus que ocupava

esse lugar. Talvez Descartes não suspeitasse que sua filosofia enfraqueceria de

tal forma a idéia de Deus, que o homem se sentiria forte o suficiente para

afirmar-se sobre ele, destronando-o e tomando posse de seu reino. Entretanto,

827 DESCARTES, R. Princípios da filosofia, I, art. 76, p. 57. O artigo, que assim termina, merece ser lido na íntegra: “Devemos considerar sobretudo como regra infalível que aquilo que Deus revelou é incomparavelmente mais certo do que o resto; e assim, se uma centelha de razão nos sugerir alguma coisa que lhe seja contrária, sempre podemos submeter o nosso juízo ao que vem da Sua parte. Porém, relativamente às verdades em que a Teologia não interfere, parece inaceitável que um homem que queira ser filósofo tome por verdadeiro o que não conheça como tal, preferindo fiar-se nos sentidos, isto é, nos juízos inconsiderados da sua infância, e não no que a razão lhe dita, podendo, no entanto, servir-se dela para se conduzir”. O texto do artigo 76 se apresenta de imediato como distinguindo três domínios: o da revelação, o da razão e o dos sentidos. O primeiro está acima da razão humana, o terceiro não merece confiança, restando apenas o segundo, onde a razão é a única a decidir. No entanto, talvez se possa formular a hipótese de que esse texto comporta um subtexto, que escapa ao claro e distinto. Neste subtexto, à sua revelia, como num lapso, Descartes insinuaria que o primeiro domínio tem uma semelhança com o terceiro.

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é, de fato, o que ocorre. Depois de Descartes, o Deus cristão perdeu o seu

antigo poder de, afirmando-se como o senhor absoluto da verdade, influenciar e

determinar a ordem do mundo espiritual e material, que detinha antes de

Descartes. Este acabou por estabelecer uma fronteira entre o homem e Deus,

pois, sobre o mundo de Deus, reconhece que a razão nada tem a dizer; sobre o

mundo do conhecimento humano, reconhece que Deus nada tem a dizer. Da

vitória da razão, nasce a derrota de Deus. O silêncio de Deus, efetivou as

condições necessárias para que a coruja de Minerva alçasse seu vôo e fizesse

falar o silêncio dos espaços infinitos, que tanto incomodava Pascal. Descartes

tornou-se, então, o filósofo que, depois de navegar em águas profundas e

turbulentas, avistou a terra firme da razão828 e convidou o homem a

desembarcar da nau das incertezas, das crenças fáceis e superficiais e

acompanhá-lo na empreitada da conquista do mundo que encontrava-se, por

inteiro, à disposição de um novo senhor, já que o seu antigo senhor fôra

destituído do poder. A filosofia de Descartes é um generoso convite para que

cada homem possa emancipar-se racionalmente, tornando-se, ele mesmo,

senhor absoluto de suas verdades. Essa é a ciência que Descartes pretende

ensinar ao homem, na esperança que, de posse dela, sem nenhum auxílio de

qualquer força estranha à ordem da razão natural, ele possa encontrar toda

ciência necessária à condução e orientação de sua vida. Se o homem pretende

conhecer a verdade, se pretende fazer desta a chave com a qual abre as portas

de todos os conhecimentos ao alcance da razão humana, só há um caminho:

aceitar, tomar como sua, a ciência que Descartes lhe oferece. Essa é a intenção

de Descartes, através de sua ciência, tornar o homem independente, dono dos

seus limites e de suas possibilidades, no limite, senhor de sua própria vida: “...

je me suis proposé d’enseigner [...] et de mettre en évidence les véritables 828 Cf. o que escreve Hegel sobre esse aspecto da filosofia de Descartes, nota 36

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richesses de nos âmes, ouvrant à un chacun les moyens de trouver en soi-

même, et sans rien emprunter d’autrui, toute la science qui lui est nécessaire à

la conduite de sa vie”829. Esse homem, que nasce da razão emancipada da

filosofia cartesiana, já não precisa de Deus, tornou-se responsável por si mesmo

e, consequentemente, capaz de se servir, já que conhece, ou pelo menos está no

limite de suas possibilidades conhecer, toda a engrenagem – externa e interna –

da grande máquina do mundo. “... j'étalerai ici les ouvrages des hommes

touchant les choses corporelles; et vous ayant fait admirer les plus puissantes

machines, les plus rares automates, les plus apparentes visions, et les plus

subtiles impostures, que l'artifice puisse inventer, je vous en découvrirai les

secrets, qui seront si simples et si innocents, que vous aurez sujet de n'admirer

plus rien du tout des oeuvres de nos mains”830.

O declínio de Deus no reino da racionalidade humana, expressa-se bem no

declínio das filosofias que lhes davam sustentação racional. Depois de

Descartes, estas filosofias minguaram; acabaram, por muito tempo, servido

unicamente àqueles que acreditavam, quase que por dever de ofício, no que elas

ensinavam. Entretanto, com excessões, não é possível dizer que tais filosofias

tenham encontrado qualquer espaço fora do estrito campo da religião831. Para

os defensores de uma filosofia que encontre em Deus sua causa original e final,

o racionalismo cartesiano, é mesmo um perigo ou, como afirma Maritain, um 829 DESCARTES, R. La recherche de la verité par la lumière naturelle, Alq., II, p. 1106; AT., X, p. 496. 830 Idem, Alq., II, p. 1114; AT., X, p. 505. 831 “A crise gerada pela revolução cosmológica é o que realmente inaugura a etapa ‘antimodernista’ do catolicismo, muito antes que se produza o confronto do século XIX entre a ‘modernidade’ e a Igreja. A teologia entra em uma grave crise e aparece como inconciliável com a filosofia e a ciência moderna, que questiona a suprema autoridade de Aristóteles e a cosmovisão ptolemaica e, com elas, a concepção do cosmo assumida pela Bíblia. A recepção dos mitos que rodeiam o povo hebreu e a progressiva historificação e dogmatização desses relatos, mostra aqui os custos e as consequências históricas imprevisíveis que leva consigo”. ESTRADA, J. A. Op. Cit., I, p. 100.

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grande pecado: “Comme la réforme luthérienne est le grand péché allemand,

j’ai dit que la réforme cartésienne est dans l’histoire de la pensée moderne le

grand péché français”832. Tal declaração de Maritain pode ser assumida pela

Igreja, que foi, ao fim e ao cabo, a grande perdedora do enfrentamento com as

idéias do século XVII, mas, principalmente, com as consequências, por ela não

esperadas, do cartesianismo sobre o pensamento europeu posterior. A Igreja,

adminstradora da verdade revelada, acaba vendo-se, depois de Descartes, diante

de uma situação em que a verdade assumida como a única verdade, não mais

existe ou pelo menos não conta, pois o que conta é a verdade conquistada por

cada sujeito, no limite de sua mais pura racionalidade. A Igreja perdendo o

domínio da verdade, perdeu também o domínio do mundo que encontrava-se

sob sua regência. A perda da Igreja não é apenas uma perda de referência

gnosiológica e filosófica, senão também uma perda política. Perda de domínio

sobre o mundo e sobre o homem que acreditava e subordinava-se às suas

orientações. Neste sentido, Descartes prestou, de fato, um desserviço à Igreja.

Ao dessacralizar a verdade, humanizando-a, Descartes resgatou o homem

terrestre que se encontrava prisioneiro de um mundo voltado prioritariamente

para o céu, sob domínio absoluto da Igreja católica833; dotou o homem de uma

racionalidade auto-suficiente e trasferiu para ele a responsabilidade de dotar o

mundo de sentido e significado. Este antropocentrismo, derivado do

racionalismo cartesiano, impõe, sobre o teocentrismo, uma derrota cujo alcance

vai muito além do imaginável. O Papa João Paulo II, na encíclica Fides et

Ratio, ao mesmo tempo que reafirma a posição da Igreja católica desde o

832 Trois réformateurs – Luther – Descartes – Rousseau, p. 123. 833 “Na Europa medieval dominava o Cristianismo. O que mais obsorvia os homens era a religião. Construíram-se catedrais com torres apontando para o alto. Na sociedade, a hierarquia eclesiástica ocupava o topo. A língua comum era o latim. Realizavam-se guerras (cruzadas, inquisição) por motivos religiosos. Toda a vida humana estava orientada para o além. Assim a religião gozava de um prestígio quase total”. ZILLES, U. Crer e compreender, p. 147.

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último quarto do século XIX834 de tomar Sto. Tomás de Aquino835 como

modelo na elaboração do conhecimento teológico, reconhece os prejuizos –

políticos e espírituais – que teve a Igreja com a predominância do

conhecimento racional separado e completamente independente da fé e da

teologia: “... tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha concebido e

atuado como uma unidade profunda, geradora de um conhecimento capaz de

chegar às formas mais altas da especulação, foi realmente destruído pelos

sistemas que abraçaram a causa de um conhecimento racional, separado e

alternativo da fé”836. A Igreja sai mortalmente ferida do confronto entre suas

834 Por diversas vezes a Igreja Católica, através dos seus documentos doutrinários, tinha assumido a filosofia de São Tomás de Aquino como Filosofia oficial. “Depois do Concílio Vaticano I, os papas fomentaram o Neo-tomismo através de encíclicas (como a Aeterni Patris, em 1879, de Leão XIII e a Pascendí) e do juramento antimodernista, no qual se professa que o homem não só pode conhecer a Deus com certeza, mas que pode ser demonstrado (adeoque demonstrari) por meio das coisas visíveis ‘como uma causa por seus efeitos’ e até existe uma disposição legal, no Código de Direito Canônico de 1917, segundo a qual a Filosofia e a Teologia devem ser expostas nos seminários ‘segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico’ (c. 1336, 2). Finalmente, em 1954, apareceu a encíclica Humani Generis do papa Pio XII com um novo Syllabus condenatório de ‘algumas concepções errôneas que ameaçam solapar os fundamentos da Igreja Católica’, uma vez que ‘põem em dúvida que a razão humana seja capaz de demonstrar a existência de Deus pessoal sem ajuda da revelação e da graça divina por argumentos deduzidos das coisas criadas’”. ZILLES, U. O problema do conhecimento de Deus, p. 35-36, (grifo nosso). 835 “Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial santo Tomás, não só pelo conteúdo da sua doutrina, mas também pelo diálogo que soube instaurar com o pensamento árabe e hebraico do seu tempo. Numa época em que os pensadores cristãos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga, e mais diretamente da filosofia aristotélica, ele teve o grande mérito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus: argumentava ele; por isso, não se podem contradizer entre si”. Continua o Papa, “... santo Tomás de Aquino foi sempre proposto pela Igreja como o mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer teologia”. João Paulo II, Fides et Ratio (Carta Encíclica), p. 60-61. 836 João Paulo II, Fides et Ratio (Carta Encíclica), p. 64. Continua João Paulo II interpretando, segundo uma exegese que, como não poderia deixar de ser, expressa o ponto de vista da Igreja católica, as conseqüências para a religião, em particular, e para a sociedade como um todo, da crise originária do racionalismo que nasceu ao apagar das luzes do século XVII. “As radicalizações mais influentes são bem conhecidas e visíveis, sobretudo na história do Ocidente. Não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revelação cristã até chegar explicitamente à contraposição. No século passado, esse movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuraram, de diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialéticas racionalmente compreensíveis. Mas a essa concepção, opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que apontaram a fé como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projetos que desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade. No âmbito da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer referimento ético, correm o risco de não manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais, alguns deles,

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idéias e o giro epistemológico provocado pelo movimento humanista, no

interior do qual nasce o pensamento de Copérnico, Galileu, Descartes, Kepler e

outros837. Apesar de todos os esforços dispendidos pela Igreja para fazer

prevalecer seu ponto de vista, mesmo ao preço da violência, não foi possível

silenciar a nova razão; depois de um longo tempo em que se considerou esta

ibernada, silenciada, ou mesmo amordaçada, ainda que contra a vontade da

Igreja cristã, ela desperta, eleva-se no horizonte e lança suas luzes por todos os

cantos do mundo, anunciando o nascimento de um novo tempo. Neste novo

mundo, pouco lugar resta para Deus. Perdendo o domínio sobre o “homem

dotado de bom senso” e sobre o mundo, não lhe restou outra alternativa a não

ser segregar-se no universo da religião, separado do universo da razão e da

ciência. O canto do Deus da fé e da revelação já não mais seduz ao homem de

razão que tornou-se, ele mesmo, seu senhor. Agora, sentado no trono que antes

pertencia a Deus, de posse de uma razão adulta e esclarecida, de posse de uma

técnica que opera, trasforma e subjuga a máquina do mundo, segundo seus

próprios critérios, interesses e desejos, o homem torna-se demiurgo: “resolvi-

me a deixar todo esse mundo às suas [dos doutos] disputas, e a falar somente do

que aconteceria num novo [mundo]”838. Ao seu bel-prazer Descartes inventa

um novo mundo, sobre o qual reinará o novo homem. “Et mon dessein n’est cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico, parecem ceder à lógica do mercado e ainda à tentação dum poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser humano. Como conseqüência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneo. Os seus seguidores defendem a pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem possibilidade alguma de alcançar a meta da verdade. Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e experiências em que o efêmero detém o primado. O niilismo está na origem duma mentalidade difusa, segundo a qual não se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo é fugaz e provisório”. Idem, p. 64-66. 837 “Para a Igreja católica houve três grandes catástrofe no campo da fé: o cisma entre Oriente e Ocidente (1054); a Reforma (século XVI) e a condenação de Galileu. Desde então aprofundou-se o abismo entre a Igreja e acultura moderna”. ZILLES, U. Filosofia da religião, p. 23. “Trata-se de uma revolução cultural e não somente científica, em que as grandes perdedoras são as Igrejas, que aparecem como causa de confrontos religiosos-políticos e como obstáculo para uma nova ordem criada e desenvolvida pelo individualismo gerado simultaneamente pela reforma protestante e pelo renascimento humanista”. ESTRADA, J. A. Op. Cit., I, p. 101. 838 DESCARTES, R. Discurso do método, p. 75; Cf., nota 199.

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pas d’expliquer, comme eux, les choses qui sont en effet dans le vrai monde,

mais suelement d’en feindre un à plaisir”839. Não se pode afirmar que esse

mundo que nasce como resultado da ciência-técnica que emergiu a partir do

século XVII seja o melhor dos mundos, essa não é a questão tratada aqui; o que

se quer identificar e demonstrar é que, a partir desse momento, a

resposabilidade do acerto ou do erro pertence por inteiro ao homem, este

afirma-se como o único responsável pela condução de si mesmo e do mundo.

O canto do homem anuncia o silêncio de Deus. No embate entre o homem e

Deus, o homem saiu vitorioso, tornado-se o senhor absoluto de um mundo

onde não há lugar para dois senhores.

Não é à toa que grande parte dos intérpretes de Descartes acabam por

reconhecer que sua filosofia, ao afirmar o Deus da razão e ao enfraquecer o

Deus da fé, acabou por instaurar, mesmo que não tenha sido essa a sua intenção

original, o ateísmo no mundo ocidental. “Descartes a donné à

l’anthropothéisme ses lettres de crédit philosophiques. C’est pourquoi nous lui

faisons la guerre. Toute l’énergie historique de l’anthropothéisme a passé

sucessivement dans les diverses métamorphoses que la pensée moderne a

subies depuis Descartes”840. Claude Tremontant, mesmo reconhecendo que

Descartes não foi ateu, credita a ele a responsabilidade de estar na origem de

uma parte do materialismo ateu dos séculos XVIII, XIX e XX841: “Descartes,

certes, n’était pas athée. [...] Et cependant, il est effectivement le père d’une

partie du matériaslisme athée du XVIII, XIX et même XX siècle, celle qu’on 839 Idem, Le Monde – ou Traité de la lumière, Alq., I, p. 348; AT., XI, p. 36. 840 MARITAIN, J. Le songe de Descartes, p. 286-287. 841 “L’anthropologie de Descartes a fourni une base à l’athéisme mécaniste du XVIII et du XIX siècle”. TRESMONTANT, C. Le problème de l’athéisme, p. 74.

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appelle mécaniste”842. Russell chama a atenção para um fato curioso: “C’est un

fait curieux que juste au moment où l’homme de la rue a commencé à croire

fermement à la science, l’homme de laboratoire a commencé à perdre sa foi”843.

Segundo Estrada, o positivismo da ciência que encontra no método toda sua

auto-suficiência para construir o saber verdadeiro sobre todas as coisas, gera

um novo mundo, que tem sua origem no renascimento, ou melhor, na

afirmação da ciência moderna e se dissemina por quase todos os recantos do

pensamento ocidental até os dias de hoje, onde Deus não é mais necessário,

onde pode-se postular, como de fato tem-se postulado, a morte de Deus. “Era

inevitável que este positivismo da ciência [que não encontra Deus nas leis e

experimentos] e o ateísmo metodológico [que proíbe à ciência de recorrer a

Deus como hipótese suplente que imanentemente não pode explicar-se] se

trasformasse em postulado da não-existência de Deus. Deus é desnecessário

para a ciência e não localizado no mundo, portanto, não existe”844. Na trilha

desse desvanecimento de Deus – dessa perda de representação sobre o espírito,

no sentido cartesiano, do homem que tornou-se, auto-suficiente, aprendeu a

pensar e a andar com as próprias pernas – veio a perda de fé do homem

ocidental, pelo menos daquele homem que, de alguma forma, direta ou

indiretamente, filiou-se à auto-suficiência do cogito cartesiano. O mundo-

máquina e o corpo-máquina exigem um domínio puramente técnico na sua

operacionalização. No reino da ciência mecanicista, a verdade foi deslocada

das mãos do Deus da religião, encontra-se agora, toda ela, nos limites do

método, da técnica e da matemática, expressão acabada da razão que alcançou

seu pleno desenvolvimento, sua plena maioridade. Descartes não se cansa de

afirmar que toda sua filosofia se encontra subordinada ao modelo matemático, 842 Idem, p. 71. 843 RUSSELL, B. L’esprit scientifique, p. 83. 844 ESTRADA, J. A. Op. Cit., I, p. 103.

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porque somente este pode garantir demonstrações rigorosas: “La philosophie

cartésienne se veut rigoureusement démonstrative. Son auteur ne cesse de

répéter qu’il suit l’ordre des géomètres, qu’il n’y a pas de bonne démonstration

en philosophie qui ne soit mathématique, que son oeuvre ne peut être saisie par

ceux qui n’ont pas l’esprit mathématique. Il tombe, par conséquent, sous le sens

qu’on doit s’efforcer de comprendre cette philosophie par ses démonstrations,

et ces démonstrations selon leur esprit mathématique”845. Não há, até por

absoluta incompatibilidade, no método cartesiano, nenhuma exigência que

esteja fora dos limites da matemática. Essa nova forma de filosofar acaba por

expulsar da ordem do saber todas as representações que não sejam claras e

distintas, tais como as derivadas da teologia: fé, dogma, revelação, iluminação,

milagre, mistérios, etc. Descartes, segundo Fraile, “con su método puramente

racional prepara no sólo la distinción entre la filosofía y la teología, sino la

separación y hasta una verdadera oposición entre el pensamiento racional y la

fe”846. As conseqüências dessa forma de filosofar são, segundo Taylon, uma

falta de fé generalizada que se espalha pelo mundo ocidental moderno. A

filosofia cartesiana, que construiu uma nova concepção de interioridade, uma

“interioridade de auto-suficiência, de capacidade autônoma de ordenamento

pela razão, também preparou o terreno para a falta de fé moderna. Pode até

parecer parte da explicação para esse fato notável da civilização ocidental

moderna em comparação com todas as outras, que é a falta generalizada de

fé”847.

845 GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, I, p. 12. 846 Op. Cit., p. 544. 847 TAYLOR, Ch. Op. Cit., p. 208.

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Alguns dos contemporâneos de Descartes o criticam por ter, segundo eles,

contruído uma filosofia que conduz ao ateísmo848. Mesmo tendo Descartes –

até por uma questão de auto-defesa, de evitar o risco de ser interpretado,

principalmente pelas autoridades religiosas, como responsável por ter

construído uma filosofia atéia, portanto, contra os interesses da religião –

buscado mostrar que sua filosofia não era atéia, mais ainda, que esta poderia

colocar-se a serviço da Igreja em sua luta contra os ateus849, isto não foi

suficiente para aplacar a fúria daqueles que viram no cartesianismo uma grande

ameaça à religião, mais ainda, viram, a preparação dos pressupostos filosóficos

para o anúncio da morte de Deus. A prova de como a Igreja e seus teóricos se

sentiram ameaçados pelas consequências do racionalismo cartesiano é que, não

demorou muito, seu pensamento foi censurado e suas obras colocada no Index

dos livros proibidos em 1663. A oposição ao cartesianismo ultrapassa as

fronteiras da Igreja católica, também os protestantes (principalmente

eclesiásticos), sobretudo nos Países Baixos, tornam-se seus opositores850. Esses

episódios não impediram que o racionalismo cartesiano se espalhasse por todos

os cantos, chegando a haver no tempo de Luís XIV (reinou de 1648 a 1715) um

848 “... já em vida Descartes foi acusado de ateísmo por Voetius...” ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 50. “Descartes, hipócrita y hereje. - Su ortodoxia y hasta su sinceridad religiosa fueron puestas en litigio por algunos contemporáneos protestantes (G. Voet) y católicos (P. Valois); después por los tradicionalistas, en el siglo XIX (Lammennais, Montalembert, Lacordaire, Gebert, que llegaron a calificarlo de ‘Lutero de la Filosofía); más tarde por los neotomistas (Gioberti, Liberatore), por A. Fouillée y, recentemente, por G. Contecor y Máximo Leroy”. FRAILE, G. Op. Cit., III, p. 544. 849 Descartes, defendendo-se da acusação de ter construído uma filosofia que conduz ao ateismo, dirigindo-se a Voetius, diz: “Vous concluez ensuite... ‘Ce n’est donc pas injustice de comparer René au défenseur le plus subtil de l’athéisme, César Vanini (Vanini, condamné pour athéisme, fut brûlé vif a Toulouse le 9 de février 1619); car il travaille par les mêmes moyens à élever, dans l’âme des ignorants, le trône de l’athéisme. Qui n’admirerait votre absurde imprudence? Quand il serait vrai, comme je le reconnais hardiment, que j’eusse écrit contre les athées, et que j'eusse vanté mes arguments comme les meilleurs; quand il serait vrai, ce que je nie positivement, que je rejetasse les arguments anciens et que les miens fussent trouvés sans force et sans valeur, il ne s'ensuivrait pas que je dusse être, je ne :dis pas accusé, mais soupçonné d’athéisme. Qu'un homme s'imaginant réfuter les athées propose des arguments insuffisants, l'accuserat-on d’athéisme? Non, mais de maladresse’”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., III, p. 31-32. De forma mais direta ainda, na carta prefácio das Meditações, Descartes diz o porque que sua filosofia pode servir aos interesses da igreja na luta contra os infiéis. Cf. Meditações, p. 105. 850 Sobre o mesmo assunto, ver 1º cap., p. 75-77.

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esnobismo cartesiano na sociedade francesa851. No que se refere à filosofia

depois de Descartes, querendo ou não, toda a razão ocidental tornou-se um

pouco cartesiana852. Tem razão Gueroult quando identifica em Descartes, mais

especificamente, no pequeno livro denso e lacônico das Meditações, a fonte

originária dos múltiplos canais da filosofia moderna. “Du petit livre dense et

laconique des Méditations, souvent mal compris en dépit - sinon à cause - de

l’amas des commentaires, est sorti le fleuve aux multiples canaux de la

philosophie moderne”853.

851 Segundo François Azouvi, em seu livro Descartes et la France - Histoire d’une passion nationale -, p 9, os fanceses, ao longo da história, acabaram por adquirir o espírito cartesiano: “Depuis bientôt deux cents ans, nul n’y peut, Descartes incarne la France. Selon une logique qui s’est constituée progressivement mais s’est imposée avec une rigueur de plus en plus souveraine, il sert aux Français à dire ce dont ils veulent pour leur pays ou ce qu’ils repoussent avec horreur. Car l’adjectif cartésien, après avoir suivi le cours normal d’un terme dérivé du nom d’un philosophe, a échappé - c’était au début du XIX siècle - à son registre d’origine et commencé d’acquérir des significations dérivées. Par une sorte d’extension généralisée, le philosophe français a conféré à nation tout entière certains traits attribués à sa philosophie: ainsi, la France est devenue ‘cartésienne’ et les Français ont acquis ‘l’esprit cartésien’”. p. 7. “On n’en finirait pas de citer ceux qui, depuis deux ou trois siècles, rapportent à Descartes ce qu’ils aiment en la France ou ce qu’ils détestent en elle. Singulier destin d’un philosophe que rien, semblait-il, ne prédisposait à incarner une nation. Qu’y avait-il dans sa philosophie qui pût donner lieu à tant d’imputations, qui pût ainsi servir de test projectif à tant d’hommes sur une si longue durée? Pourquoi Voltaire, Michelet, Péguy, mais aussi Balzac, George Sand, Jules Ferry, Jaurès, Claudel, Gide, pour ne citer qu’eux, se croirontils tenus de consacrer des pages à ce philosophe mort en 1650? Comment se peut-il faire que, en parlant de lui, tant d’auteurs, sur plus de trois siècles, aient eu le sentiment qu’ils parlaient de la France et de leur temps? Voilà l’énigme de Descartes, l’énigme du seul philosophe autour duquel se soit constitué un mythe national d’identité”. Idem, p. 9. 852 “Ainsi, Descartes, comme l’ont proclamé Fichte, Hegel et Husserl, apparaît bien comme la source première du courant de la philosophie transcendantale; ce qui ne l’empêche d’ailleurs pas d’avoir inspiré les grands cartésiens, d’être au principe de la philosophie réflexive et analytique francaise, qui, à travers Maleblanche, Condillac, les idéologues, aboutit à Maine de Biran; comme il est au principe des lumières anglaises et françaises, de l’encyclopédisme, du positivisme, de la philosophie de l’esprit scientifique, sous ses formes variées, depuis Fontenelle jusqu’à Léon Brunschvicg, en passant par Condorcet, Comte et Cournot”. GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, II, p. 305-306. 853 Idem, p. 306. Sobre a influência, a extensão e a importância de Descartes para o pensamento ocidental, diz Hall: “apesar de toda a vigorosa influência contrária de Newton, a luz lançada por Descartes iria estender-se até ao clarão mais vasto do Iluminismo setecentista e à Encyclopédie Diderot-Dalembert que constitui o seu principal monumento. Além disso, Descartes foi um matemático puro de gênio que também produziu trabalho de imortal valor na física matemática – se não tivesse sido filósofo continuaria a ter grande dignidade na história da ciência. Em todos os aspectos menos num, a investigação experimental sistemática, Descartes destacava-se por altura da sua morte, e posteriormente aos olhos de todos os que nessa época eram capazes de compeender os seus livros, como o grande luminar, o homem que abriria um vasto caminho à posteriadade”. HALL, A. R. Op. Cit., p. 248.

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Olhando o cartesianismo hoje, vendo os caminho que ele percorreu, as

correntes filosoficas que nele se inspiraram, não se pode negar que ele conduz a

uma certa indiferença em relação a Deus. Se essa indiferença não é suficiente

para identificar sua filosofia como uma filosofia atéia, pode-se afirmar com

segurança que, no mínimo depois de Descartes, sob a influência de sua

filosofia, com ou sem o beneplácito deste, instalou-se no mundo ocidental uma

independência da razão em relação a Deus, instalou-se, no limite, a morte de

Deus.

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CONCLUSÃO

Vi terras da minha terra. Por outras terras andei.

Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado,

Foram terras que inventei.

(Manuel Bandeira)

Moro em minha própria casa, Nada imitei de ninguém

E ainda ri de todo mestre, Que não riu de si também.

(Nietzsche)

Não é tarefa fácil, talvez mesmo impossível, identificar, nas mais diversas

denominações filosóficas do pensamento moderno, a presença e a retomada da

filosofia cartesiana. Entretanto, não é possível negar, não reconhecer, que, seja

por qual for a contribuição, a filosofia de Descartes acabou por disseminar-se

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nas mais diversas manifestações culturais do mundo Ocidental; quando não

determinando de forma direta sua direção, pelo menos indicando caminhos ou

abrindo veredas para o exercício da razão Ocidental. De Leibniz a Kant,

passando por Espinoza, alcançando Hegel, Marx, a fenomenologia de Husserl,

a filosofia da existência alemã ou francesa, a Escola de Frankfurt, entre tantas

outras correntes intelectuais do homem Ocidental, se não estão profundamente

marcadas pelo cogito cartesiano, ao menos giram na sua órbita. O Eu cartesiano

encontra-se na origem, como base de referência reflexiva, de todo pensamento

posterior ao século XVII. “Que há em comum nessas filosofias esparsas por

três séculos que agrupamos sob a insígnia da subjetividade? Há o Eu que

Montaigne amava acima de tudo, e que Pascal odiava, aquele de que

manteremos registro diário, de que anotamos as audácias, as fugas, as

intermitências, as voltas, que experimentamos ou testamos como um

desconhecido. Há o Eu que pensa de Descartes e de Pascal ainda, aquele que

alcançamos por um só instante, mas que é então tudo em sua aparência, é tudo

o que pensa ser e nada mais, aberto a tudo, jamais fixo, sem outro mistério além

dessa mesma transparência”854. Toda filosofia que busca contemplar o homem

como referência do conhecimento, que toma sua razão natural como ponto de

partida para o conhecimento da verdade, inclina-se naturalmente a reconhecer-

se como herdeira do cogito cartesiano. Sartre reconhece, de modo vigoroso e

contundente, que “não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão

esta: penso logo existo”855. É assim que, depois de Descartes, o Eu Penso

tornou-se referência paradigmática para todo conhecimento que busca ser

reconhecido como verdadeiro, que busca legitimar-se como ciência. Isso não

quer dizer, é claro, que a filosofia de Descartes seja aceita de forma consensual,

854 MERLEAU-PONTY, M. Signos, p. 166-167. 855 Cf. nota 646.

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que suas verdades, seja no campo da metafísica, no campo da ciência ou no

campo da moral, sejam aceitas e assumidas, pelas mais diferentes

denominações filosóficas modernas, como verdades insofismáveis. Assim

nunca foi. A filosofia de Descartes sempre foi alvo de críticas. Isso em nada

diminui sua importância no cenário filosófico do mundo Ocidental. Toda

crítica, de certa forma, é um reconhecimento ao criticado. Aqui caberia o

provérbio popular: “falem mal, mas falem de mim”. Talvez a força de

representação da filosofia cartesiana esteja mesmo em sua capacidade de gerar

polêmicas. Desde sua formulação até os dias atuais, mais de trezentos anos se

passaram e Descartes e sua filosofia continuam provocando o espírito do

homem, sendo motivo de amor e ódio, de aceitação plena, parcial ou rejeição

total. Seja, porém, qual for a reação que ela provoque, o que não se pode negar,

e a história o tem largamente atestado, é que diante de Descartes não é possível

ficar indiferente.

A filosofia de Descartes torna-se referência para a transição entre o mundo

antigo (aí incluído o mundo Medieval) e o mundo Moderno. Sua filosofia

inaugura o mundo moderno. Nenhuma novidade há nesta afirmação e, além

disso, tal tese quase não encontra oposição entre os historiadores da filosofia.

Entretanto, entre esses historiadores, não há consenso em identificar qual a

verdadeira referência filosófica que Descartes assume para, através dela, fundar

as bases de sustentação do novo mundo. Para uns é a ciência, para outros a

metafísica, ou ainda para outros uma ciência-metafísica. Se se quiser ser mais

preciso ainda, poder-se-ia indicar que a controvérsia maior é saber se é sobre

Deus ou sobre o homem que se ergue o racionalismo cartesiano. Identificando

essa base de sustentação, é possível percorrer a construção que nela se apoia e

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ver naquela o núcleo em torno do qual o homem moderno, aquele homem que

nasce entre o século XV e XVII, se forma. O espírito que perpassa esses

trezentos anos de burburinho cultural é o espírito da reforma. Todos querem,

como escreve Moutaux856, emendar, melhorar, aliviar, mas retomando os

fundamentos, voltando aos princípios, querem re-formar, re-fazer, re-fundar.

Este espírito de reforma, que se espalha por todos os cantos, influenciando

quase todas as manifestações intelectuais do homem renascentista, não é

estranho a Descartes. O Meditador, entendendo o seu tempo, assume o espírito

da reforma, e, como um velho e experiente timoneiro, re-direciona a nau do

conhecimento humano, indicando o novo caminho que a razão deve tomar em

busca do porto seguro do conhecimento das idéias claras e distintas.

Antes de Descartes, a base de sustentação do conhecimento são as

representações físicas do mundo; seja na filosofia grega, nas suas mais diversas

escolas, seja no pensamento medieval – que, depois de cristianizar os

fundamentos da filosofia helênica, principalmente a filosofia de Platão e

Aristóteles, subordinando-a aos ditames de uma teologia que assume o Deus

cristão como causa originária da verdade e legitimador de todo conhecimento,

tornando, desta forma, a razão serva da teologia. A Descartes caberá a

responsabilidade de construir uma filosofia que esteja livre das determinações

imediatas do mundo físico, bem como, livre de qualquer forma de pensamento

que seja portador de uma verdade que não tenha a razão natural como sua

causa originária. Neste sentido, a filosofia cartesiana busca, por um lado,

libertar o homem da prisão dos sentidos e, por outro, libertá-lo de um Deus que

se apresenta como o Senhor absoluto da verdade. Descartes reconquista a 856 Cf. nota 32.

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autonomia da razão no processo do conhecimento da verdade. A posse da razão

possibilita ao homem o domínio absoluto do mundo. O racionalismo cartesiano

indica que nenhuma verdade pode anteceder ao homem; o homem torna-se a

referência legitimadora da verdade. Ao afirmar o homem como centro de

referência para a construção da verdade, Descartes caba por impor uma

dessacralização do mundo, instaurando o homem como senhor e possuidor da

natureza. O Mundo torna-se, não mais o espaço onde Deus realiza suas

intenções e finalidades, mas o lugar onde o homem vivo, real e concreto, pode,

através do domínio da técnica, buscar e encontrar o prazer e sua mais plena

felicidade. É neste sentido que a filosofia de Descartes pode ser traduzida como

uma filosofia que se encontra, toda ela, a serviço do homem. Com Descartes o

teocentrismo começa a declinar, sendo a dessacralização do mundo uma

conseqüência imediata da afirmação do homem como o novo centro em torno

do qual o mundo e o próprio homem adquirem sentido e significado. É um

humanismo pleno e maduro, com todas as conseqüências dele derivadas, que

brota das entranhas do racionalismo cartesiano. O fato de Descartes ter tomado

o homem como centro gravitacional de sua filosofia não quer dizer o meditador

excluiu Deus como uma referência fundamental do discurso filosófico.

Entretanto, aqui a questão tornar-se mais complexa, justificando um olhar mais

cuidadoso, justificando toda a reflexão desenvolvida neste trabalho. Como foi

pontuado na introdução, a intenção deste trabalho é identificar as possibilidades

e os limites da metafísica cartesiana. Não há como navegar nos mares desta

metafísica sem contemplar Deus como referência central de reflexão. Assim,

este trabalho assumiu como foco principal, não o único, responder a seguinte

questão: a presença de Deus na filosofia cartesiana compromete ou não a

autonomia da razão que busca ser a causa originária da verdade?

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Se Deus, por toda a Idade Média, sob a orientação do cristianismo, reinou de

forma absoluta, tanto no mundo material como no mundo espiritual, não há

como não reconhecer que a partir do século XVII, esse Deus cristão começa a

perder o controle sobre os dois mundos que antes se encontravam sob seu

domínio absoluto. Sobre a razão, Deus nada mais tem a dizer, pois a afirmação

do homem como referência originadora de todo conhecimento verdadeiro não

se encontra mais sob sua competência, o cogito cartesiano impõe-lhe o silêncio.

Não tendo nada mais a dizer sobre o conhecimento verdadeiro das coisas, sobre

o conhecimento que se institui como ciência e que se encontra, todo ele, sob

domínio da razão natural, silencia-se, recolhe-se e exila-se no território

subjetivo da fé, da crença, talvez das superstições, que dizem respeito ao

mistério, onde encontra, no espaço da religião, o lugar adequado para o

exercício de seu reinado. Com Descartes, Deus perde o domínio sobre o reino

da razão e, ao longo da história, depois do século XVII, tal domínio não mais

lhe será restituído.

Esse decréscimo de Deus, essa sua perda de domínio sobre o território da razão

se estenderá, de forma quase generalizada, pelas mais diversas manifestações

culturais, filosóficas ou não. Dois momentos, entre tantos outros, podem ser

identificados como exemplos reveladores dessa nova atitude do homem em

relação a Deus. Primeiro, Kant exclui Deus do território da ciência, dos limites

da Razão Pura, identificando-o como um postulado da Moral, um postulado da

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Razão Prática857; segundo, Nietzsche anuncia, de forma mais direta e sem

nenhum rodeio, “a morte de Deus”858. Parece estranho assumir como

verdadeiro o postulado que identifica e anuncia a morte de Deus, até porque, o

que mais se ouve nos tempos atuais é a afirmação da presença de Deus

influenciando as ações dos homens. Entretanto, não se pode negar que a

afirmação da morte de Deus é verdadeira. Não é mais possível identificar a

presença de Deus, ou mesmo sua influência, nas mais diversas formas de

pensamentos que buscam no livre juízo da razão a base de sustentação de suas

verdades. A razão tornou-se livre, de sua liberdade nasceu a ciência moderna

que, por sua vez, possibilitou e orientou o fazer dos tempos atuais. Pode-se

dizer que a ciência moderna conquistou o território que pertencia a Deus,

colocou o homem no trono no qual Deus reinou por mais de mil anos. O

nascimento do Homem implica na morte de Deus. Melhor dizendo: o re-

nascimento do homem, porque é o homem construído na argila do mundo

helênico, o homem que sem nenhum auxílio dos deuses, contando com a ordem

natural da razão e o mundo físico que se lhe apresentava aos sentidos, que

renasce no entardecer do século XVII. As mais diversas manifestações culturais

que se apresentam entre o século XV e o século XVII, são como que 857 “O que é mais significativo (...) é o fato de certos conhecimentos saírem do campo de todas as experiências possíveis e, mediante conceitos, aos quais a experiência não pode apresentar objeto correspondente, aparentarem estender os nossos juízos para além de todos os limites da experiência. (...) Estes problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, a liberdade, e a imortalidade e a ciência que, com todos os seus requisitos, tem por verdadeira finalidade a resolução destes problemas chama-se metafísica. O seu proceder metódico é, de início, dogmático, isto é, aborda confiadamente a realização de tão magna empresa, sem previamente examinar a sua capacidade ou incapacidade”. KANT, E. Op. Cit., p. 40. 858“O maior acontecimento recente – o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. (...) e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda nossa moral européia, por exemplo. (...) nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim nosso horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida a toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’”. NIETZSCHE, F. A gaia ciência, p. 233

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preparações para a construção do homem que deseja transformar-se, ele

mesmo, em senhor absoluto do reino do mundo. É neste sentido que é possível

denominar um certo período da história Ocidental como o período do

humanismo, que engloba grandes manifestações como tentativas, as mais

diversas, de substituir o velho mundo, de construir um novo mundo no qual o

homem se tornasse o ator principal. Se esse novo homem, livre de Deus, pode

ser localizado nas mais diversas manifestações culturais do humanismo

renascentista, não se pode deixar de reconhecer que é na filosofia de Descartes

que ele encontra sua forma mais plena de expressão. Com Descartes o homem

moderno encontra o seu norte, sua identidade, as bases ontológicas e

gnosiológicas de sua existência. O cogito cartesiano inventa o homem

moderno. É neste sentido que é possível dizer que o sujeito, enquanto sujeito

que tem na autonomia do seu próprio pensamento sua identidade substancial e

existencial, só aparecer muito recentemente na cultura ocidental, mais

precisamente, ele aparece no apagar das luzes do século XVII. Mesmo

reconhecendo a contribuição de diversos pensadores desse período, não é

possível negar que esse sujeito – o sujeito moderno – é pensado, rascunhado e

construído na carpintaria da metafísica cartesiana. Ao afirmar que é na

filosofia de Descartes que nasce, de forma plena, o homem moderno, parece

que se faz necessário reconhecer que é nesta mesma filosofia que Deus começa

a perder o poder de ser aquele através do qual todo ser e toda verdade se

legitimam. A afirmação do homem implica na negação de Deus. A afirmação

de Deus implica na negação do homem. No reino do conhecimento, no reino

das ciências, não há lugar para dois senhores. O grande esforço de Descartes é

exatamente encontrar uma forma de evitar, no plano do conhecimento, este

confronto épico entre o homem e Deus. Assim, a filosofia cartesiana torna-se o

palco no qual esses dois atores desempenham o seu papel. A questão, no

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entanto, é saber se Descartes conseguiu conciliar, no plano do conhecimento,

esses dois senhores. Ou melhor: seria tal conciliação possível? Descartes,

buscando encontrar um lugar adequado para Deus em sua filosofia, sem

comprometer a autonomia racional do homem, não teria acabado por lançar

Deus para fora do alcance da razão e, conseqüentemente, para sua própria

consumação?

Se a idéia da “morte de Deus” se dissemina por grande parte das manifestações

culturais do mundo contemporâneo, em que momento essa idéia começa a se

fazer presente no Ocidente? Onde se encontra sua nascente? Em que momento,

na história da filosofia Ocidental, formaram-se as condições filosóficas para

que se possa afirmar a morte de Deus? Com certeza Descartes não se sentiria

muito confortável em ser identificado e responsabilizado por esse momento.

Uma vez formuladas as idéias adquirem tal autonomia que, não raro são as

vezes, elas acabam por afirmar aquilo que, a princípio, não era vontade ou

intenção do autor. Descartes foi homem fiel a Deus, será que sua filosofia

acompanhou sua fé? Seria possível localizar na filosofia cartesiana o momento

inaugural da morte de Deus no pensamento Ocidental? Foi em função dessa

pergunta que se percorreu, neste trabalho, a obra de Desacates, inclusive sua

correspondência. O resultado a que se chegou talvez não seja consenso entre os

estudiosos e, talvez, nem o próprio Descartes, enquanto cristão que foi,

concordaria com ele. No entanto, o que se buscou foi mostrar que a lógica

interna da filosofia cartesiana conduz para o enfraquecimento da idéia de que

há um Deus e que este é o responsável por todas as coisas, inclusive pelo que se

pensa sobre elas. Como conseqüência, buscou-se mostrar que se a idéia da

morte de Deus é verdadeira, que se de fato Deus morreu, o início de sua morte,

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a preparação para sua consumação, deu-se no território da metafísica

cartesiana.

Se a verdade, seja na filosofia helênica, seja na filosofia medieval, antecede ao

sujeito, cabendo a este o papel de descobri-la, desvelá-la, desocultá-la, em

Descartes, ao contrário, a verdade é uma construção de natureza toda ela

humana; é o homem o autor, o construtor da verdade, é através dele que ela

aparece pela primeira vez no mundo. Nenhuma verdade é anterior ao homem,

este torna-se, a partir de Descartes, quem inventa a ciência. Já não são mais

precisas bases ou forças além do espírito humano como fundamentos do

conhecimento verdadeiro sobre todas as coisas. É neste sentido que é possível

afirmar que, num primeiro momento, o meditador constrói uma ciência sem

metafísica, onde a presença de Deus não se faz necessária. Na ciência

cartesiana, Deus só se faz necessário como inventor do mundo e como o

responsável por estabelecer e manter, na ordem do tempo, a regularidade das

leis do universo; depois deste primeiro momento, para o qual se requer uma

metafísica mínima, Deus se torna, de fato, desnecessário. De forma mais direta,

é possível dizer que Descartes expulsa Deus de sua ciência. Em nenhum

momento a ciência cartesiana recorre a Deus para encontrar nele fundamentos

ou princípios legitimadores de sua ordem de verdade. Toda a estrutura lógica e

gnosiológica da ciência cartesiana encontra-se subordinada à ordem do método

que, por sua vez, encontra-se subordinado às leis que regem as matemáticas.

Ao assumir a ciência, isto é, a nova filosofia da natureza, como referência da

ciência verdadeira, ao assumir o mecanicismo como a ciência que melhor

incorpora a nova linguagem do novo mundo, Descartes rompe com a tradição

filosófica e inaugura uma visão técnica de interpretação do mundo. O mundo é

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uma grande máquina; cabe à ciência conhecer e dar conta, justificar o

funcionamento desta máquina. Com a ciência cartesiana, o homem perde seu

olhar ingênuo sobre o mundo, aquele olhar que contempla e extasia-se diante

de um mundo criado por Deus com a finalidade de atender aos desejos e aos

interesses de suas criaturas. Esse mundo cheio de finalidades, já não existe na

ciência cartesiana. Esse Deus, cheio de intenções e gerenciador de finalidades,

encontra-se completamente ausente da filosofia cartesiana. Diante da máquina

do mundo, o homem substitui Deus, torna-se, ele próprio, senão o engenheiro

do universo, construtor da máquina, o arquiteto do mundo, pelo menos seu

administrador. Não encontrando em Deus mais nenhuma serventia que posa

ajudar no processo do conhecimento da grande máquina do universo, o homem

vira-lhe as costas, dele se distancia e segue em frente, guiando-se e orientando

seus caminhos pela razão-matemática, expressão acabada de um espírito adulto

que pode compreender e fazer funcionar a máquina do mundo. Num mundo

onde matéria é apenas matéria submetida a leis mecânica, como é o caso do

mundo da ciência cartesiana, não há mais lugar para Deus. Nesse mundo só há

lugar para o cálculo, só há lugar para a matemática. A matemática torna-se a

gramática do mundo, o método torna-se o caminho correto para a interpretação

deste. À revelia de Deus, de posse da matemática e do método, Descartes indica

os caminhos através dos quais o homem pode conquistar o mundo e, como

conseqüência, tornar-se seu único senhor. Em substituição ao

cosmocentrismo dos gregos e ao teocentrismo dos medievais, Descartes

apresenta ao mundo o antropocentrismo gnosiológico. O cogito – conquista

suprema da ciência cartesiana, sem nenhuma assistência estranha ao livre

exercício da razão natural – afirma e confirma o homem como o único

responsável por este mundo-máquina. Portanto, em relação à ciência cartesiana,

no primeiro momento, o Deus da fé, aquele Deus que os cristãos cultuam e

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tomam como a expressão mais plena da verdade, não mais encontra

justificativa para afirmar sua existência. A ciência cartesiana prepara as

condições gnosiológicas para que a razão possa afirmar: Deus morreu.

Entretanto, essa ciência que, num primeiro momento, é construída no solo da

razão natural, desprovida de qualquer metafísica, num segundo momento, é na

metafísica que irá encontrar os seus primeiros fundamentos. A metafísica

impõe então os primeiros princípios que constituem os fundamentos, até as

últimas conseqüências, da ciência cartesiana. Das Seis Meditações, cinco delas

apresentam o solo metafísico da ciência. A Sexta Meditação, a ciência

cartesiana, encontra nas Cinco Meditações que a antecedem, seu solo

metafísico. O próprio Descartes declara que suas Seis Meditações constituem

todo o fundamento de sua física. Portanto, segundo o meditador, é na

metafísica que a física encontra seus fundamentos. É neste sentido que a física

cartesiana busca Deus para, firmada nessas raízes, erguer-se como tronco do

qual brotam os mais diversos ramos do conhecimento humano. Mas, mesmo na

metafísica cartesiana, onde, sem o conhecimento de Deus, nenhum

conhecimento pode ser afirmado como verdadeiro, a razão natural não se

encontra abalada, não perde a sua autonomia como centro, referência

legitimadora de todo o conhecimento humano. O cogito, referência de todo

conhecimento verdadeiro, inclusive da metafísica, não é comprometido, em sua

estrutura lógica, pela presença de Deus na metafísica cartesiana. Seja na

perspectiva gnosiológica, seja na perspectiva ontológica, a presença de Deus

não compromete a autonomia da razão natural, que se afirma como a única

referência verdadeira para a construção de um conhecimento que quer e deseja

ser reconhecido como ciência. A verdade, seja na ciência, seja na metafísica

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cartesiana, é uma conquista única e exclusiva do homem, no limite da razão

que lhe é própria. De fato, Descartes encontra em sua metafísica um lugar onde

Deus possa habitar, isto lhe possibilita duas conquistas: primeiro, encontra um

fundamento metafísico para a ciência mecanicista; segundo, acalma os

espíritos defensores da ciência aristotélica, paladinos da fé ou legitimadores

da filosofia que não reconhece validade em nenhum conhecimento que não

tenha em Deus sua causa originária. Neste sentido, é possível afirmar que a

metafísica cartesiana atende a duas demandas: uma de ordem metodológica;

outra de ordem política. Seja qual for a demanda, o Deus que sobrevive na

metafísica cartesiana já não é o mesmo Deus que a religião ensina e que se

revela aos homens através dos Livros Sagrados. Todo o esforço de Descartes

para salvar, justificar e encontrar um lugar seguro para Deus em sua filosofia,

acaba, mesmo que essa não tenha sido sua intenção originária, por subordinar

Deus a uma ordem puramente racional, acaba por submetê-lo a uma armadura

estritamente lógica, levando-o a perder, por completo, aquelas qualidades que a

religião lhe atribui e através das quais ele pode ser o que verdadeiramente é:

mistério. O Deus que se manifesta através das provas metafísicas que Descartes

apresenta não é mais o Deus mistério, aquele que enviou seu filho ao mundo

para redimir os homens dos seus pecados, mas sim um Deus que é puro

fundamento lógico e racional; uma causa lógica que a razão estabelece para

garantir toda ordem de verdade das causas subseqüentes à primeira causa. Não

há comunicação entre o Deus que Descartes apresenta em sua filosofia e aquele

Deus que, através dos Livros Sagrados, as religiões monoteístas anunciam ao

mundo. A própria inacessibilidade racional do homem ao Deus da religião já

evidencia a incompatibilidade entre o Deus da religião e aquele Deus originário

da metafísica cartesiana, de natureza puramente metodológica, estritamente

matemática. A verdade que o Deus da metafísica cartesiana anuncia ao mundo

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só adquire legitimidade quando validada pela autoridade das leis do método.

Fora do método, não há verdade. Fora do método, fora dos limites da razão

natural, o Deus da metafísica cartesiana não é portador de nenhuma verdade,

não se comunica com o homem, pelo menos com o homem dotado de bom

senso.

A metafísica cartesiana demonstra que, de fato, há um Deus, mas essa

afirmação só pode ser reconhecida quando a razão é capaz de provar, quando as

leis do método são capazes de estabelecer, as possibilidades e os limites de tal

existência. Se há um Deus, só o homem, nos limites de sua razão natural,

portanto, nos limites de sua natureza, pode demonstrar. Só há Deus porque o

homem existe e pode dizer e provar que ele é. Se para a religião tal afirmação

pode ser reconhecida como a mais ímpia das blasfêmias, para a metafísica

cartesiana tal afirmação é lei, é fundamento de todo conhecimento humano,

pelo menos daquele que busca ser reconhecido e legitimado como ciência. Se

para a religião há um Deus e este é a condição de existência tanto do homem

quanto do mundo, para Descartes o homem é a condição da afirmação tanto de

Deus quanto do mundo. Na metafísica cartesiana, essa é a ordem das razões:

Eu, Deus e o Mundo. Antes da afirmação do cogito não é possível ao homem

afirmar que há Deus ou que existe o mundo. Deus é a primeira verdade que

aparece no mundo, depois da verdade do cogito. Portanto, qualquer que seja o

caminho percorrido na metafísica cartesiana, sempre se chegará ao cogito como

a verdade inaugural de todo conhecimento verdadeiro, inclusive do

conhecimento verdadeiro sobre Deus. Ao tornar a razão independente de Deus,

ao construir uma ordem de conhecimento onde a metafísica do método é

suficiente para garantir a construção do conhecimento verdadeiro sobre todas as

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coisas, Descartes acaba também subordinando Deus a uma ordem puramente

racional, destituindo-o, pelo menos no plano da ciência, do trono supremo de

Ser o senhor da verdade. Não teria Descartes, também com sua metafísica,

criado as condições gnosiológicas para que filosofias futuras pudessem afirmar

a morte de Deus? Não teria sido Descartes o autor que, a seu modo, pela

primeira vez na história da filosofia Ocidental, anunciou ao mundo a morte de

Deus?

Ao concluir este trabalho, vale uma última observação. Parece estranho

finalizá-lo não com uma afirmação do tipo: Descartes é o responsável pela

morte de Deus, mas como uma interrogação do tipo: não teria sido Descartes o

autor responsável pela morte de Deus? Não é sem intenção que tal escolha foi

feita. De fato, a questão deve permanecer em aberto, a convidar outros olhares,

outras interpretações possíveis sobre o tema tratado. Neste sentido a conclusão

torna-se um ponto de partida, um convite para que o tema torne-se objeto de

outras reflexões, de outras provocações filosóficas. Durante todo o percurso

deste trabalho buscou-se afirmar não uma verdade exclusiva, mas, compatível

com outras, que eventualmente a circunstanciem, completem ou infirmem.

Todo trabalho visa a verdade. O presente trabalho não pode, pois, encontrar-se

desprovido de tal intencionalidade; embora a verdade seja como a proverbial

porta em que não é possível não acertar859. Sua apreensão adequada supõe a

colaboração de muitos. Assim, é preciso mostrar reconhecimento tanto àqueles

que acertaram como aos que erraram. Uns e outros contribuíram com alguma

coisa para o progresso da ciência e, como conseqüência, para o progresso do

conhecimento humano. 859 Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, liv. II, 993a30-993b19.

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ANEXO

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DOCUMENTI DEL PROCESSO GALILEIANO ESISTENTI

NELL'ARCHIVIO DEL S. UFFIZIO E NELL'ARCHIVIO SEGRETO

VATICANO

Sentenza ed abiura

Roma, 22 giugno 1633.

Arch. di Stato in Modena. Inquisizione. Processi 1632-1633. - Copia del tempo.

Sentenza.

Noi Gasparo del tit. di S. Croce in Gerusalemme Bergia;

Fra Felice Centino del tit. di S. Anastasio, detto d'Ascoli;

Guido del tit. di S. Maria del Popolo Bentivoglio;

Fra Desiderio Scaglia del tit. di S. Carlo, detto di Cremona;

Fra Ant.° Barberino, detto di S. Onofrio;

Laudivio Zacchia del tit. di S. Pietro in Vincoli, detto di S. Sisto;

Berlingero del tit. di S. Agostino Gesso;

Fabricio del tit. di S. Lorenzo in Pane e Perna Verospio, chiamati Preti;

Francesco del tit. di S. Lorenzo in Damaso Barberino; et

Martio di S.ta Maria Nova Ginetto, Diaconi;

per la misericordia di Dio, della S.ta Romana Chiesa Cardinali, in tutta la

Republica Christiana contro l' heretica pravità Inquisitori generali dalla S. Sede

Apostolica specialmente deputati;

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Essendo che tu, Galileo fig.lo del q.m Vinc.° Galilei, Fiorentino, dell' età tua

d'anni 70, fosti denuntiato del 1615 in questo S.° Off.°, che tenevi come vera la

falsa dottrina, da alcuni insegnata, ch' il sole sia centro del mondo et imobile, e

che la terra si muova anco di moto diurno; ch' havevi discepoli, a' quali

insegnavi la medesima dottrina; che circa l' istessa tenevi corrispondenza con

alcuni mattematici di Germania; che tu havevi dato alle stampe alcune lettere

intitolate Delle macchie solari, nelle quali spiegavi l' istessa dottrina come vera;

che all' obbiettioni che alle volte ti venivano fatte, tolte dalla Sacra Scrittura,

rispondevi glosando detta Scrittura conforme al tuo senso; e successivamente fu

presentata copia d' una scrittura, sotto forma di lettera, quale si diceva esser

stata scritta da te ad un tale già tuo discepolo, et in essa, seguendo la positione

del Copernico, si contengono varie propositioni contro il vero senso et auttorità

della Sacra Scrittura;

Volendo per ciò questo S.cro Tribunale provedere al disordine et al danno che

di qui proveniva et andava crescendosi con pregiuditio della S.ta Fede, d' or-

dine di N. S.ra e degl' Eminen.mi et Rev.mi SS.ri Card.' di questa Suprema et

Universale Inq.ne, furono dalli Qualificatori Teologi qualificate le due

propositioni della stabilità dei sole et del moto della terra, cioè:

Che il sole sia centro del mondo et imobile di moto locale, è propositione

assurda e falsa in filosofia, e formalmente heretica, per essere espressamente

contraria alla Sacra Scrittura;

Che la terra non sia centro del mondo nè imobile, ma che si muova etiandio di

moto diurno, è parimente propositione assurda e falsa nella filosofia, e

considerata in teologia ad minus erronea in Fide.

Ma volendosi per allora procedere teco con benignità, fu decretato nella Sacra

Congre.ne tenuta avanti N. S. a' 25 di Febr.° 1616, che l'Emin.mo S. Card.

Bellarmino ti ordinasse che tu dovessi omninamente lasciar detta opinione

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falsa, e ricusando tu di ciò fare, che dal Comissario del S. Off.° ti dovesse esser

fatto precetto di lasciar la detta dotrina, e che non potessi insegnarla ad altri nè

di-fenderla nè trattarne, al quale precetto non acquietandoti, dovessi esser

carce-rato; et in essecutione dell' istesso decreto, il giorno seguente, nel palazzo

et alla presenza del sodetto Eminen.mo S.r Card. Bellarmino, dopo esser stato

dall'istesso S.r Card. benignamente avvisato et amonito, ti fu dal P. Comissario

del S. Off.°

di quel tempo fatto precetto, con notaro e testimoni, che omninamente dovessi

lasciar la detta falsa opinione, e che nell' avvenire tu non la potessi tenere nè

difendere nè insegnar in qualsivoglia modo, nè in voce nè in scritto: et havendo

tu promesso d' obedire, fosti licentiato.

Et acciò che si togliesse affatto cosi perniciosa dottrina, e non andasse più oltre

serpendo in grave pregiuditio della Cattolica verità, usci decreto della Sacra

Congr.ne dell' Indice, col quale furno prohibiti li libri che trattano di tal

dottrina, et essa dichiarata falsa et omninamente contraria alla Sacra et divina

Scrittura.

Et essendo ultimamente comparso qua un libro, stampato in Fiorenza l' anno

pross.to (sic), la cui inscrittione mostrava che tu ne fosse 1'autore, dicendo il

titolo Dialogo di Galileo Galilei delli due Massimi Sistemi del mondo,

Tolemaico e Copernicano; et informata appresso la Sacra Congre.ne che con l'

impressione di detto libro ogni giorno più prendeva piede e si disseminava la

falsa opinione del moto della terra e stabilità dei sole; fu il detto libro

diligentemente considerato, et in esso trovata espressamente la transgressione

del predetto precetto che ti fu fatto, havendo tu nel medesimo libro difesa la

detta opinione già dannata et in faccia tua per tale dichiarata, avvenga che tu in

detto libro con varii ragiri ti studii di persuadere che tu la lasci come indecisa et

espressamente probabile, il che pur è errore gravissimo, non potendo in niun

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modo esser probabile un' opinione dichiarata e difinita per contraria alla

Scrittura divina.

Che perciò d' ordine nostro fosti chiamato a questo S. Off.°, nel quale col tuo

giuramento, essaminato, riconoscesti il libro come da te composto e dato alle

stampe. Confessasti che, diece o dodici anni sono incirca, dopo esserti fatto il

precetto come sopra, cominciasti a scriver detto libro; che chiedesti la facoltà di

stamparlo, senza però significare a quelli che ti diedero simile la facoltà, che tu

havevi precetto di non tenere, difendere nè insegnare in qualsivoglia modo tal

dottrina.

Confessasti parimente che la scrittura di detto libro è in più luoghi distesa in tal

forma, ch' il lettore potrebbe formar concetto che gl' argomenti portati per la

parte falsa fossero in tal guisa pronuntiati, che più tosto per la loro efficacia

fossero potenti a stringer che facili ad esser sciolti; scusandoti d' esser incorso

in error tanto alieno, come dicesti, dalla tua intentione, per haver scritto in

dialogo, e per la natural compiacenza che ciascuno ha delle proprie sottigliezze

e del mostrarsi più arguto del comune de gl' huomini in trovar, anco per le

propositioni false, ingegnosi et apparenti discorsi di probabilità.

Et essendoti stato assignato termine conveniente a far le tue difese, producesti

una fede scritta di mano dell'Emin.mo S.r Card.le Bellarmino, da te procurata,

come dicesti, per difenderti dalle calunnie de' tuoi nemici, da' quali ti veniva

opposto che havessi abiurato e fossi stato penitentiato dal S.to Off.°, nella qual

fede si dice che tu non havevi abiurato, nè meno eri stato penitentiato, ma cho ti

era solo stata denuntiata la dichiaratione fatta da N. S.e e publicata dalla Sacra

Congre.n9 dell' Indice, nella quale si contiene che la dottrina del moto della

terra e della stabilità del sole sia contraria alle Sacre Scritture, e però non si

possa difendere nè tenere; e che perciò, non si facendo mentione in detta fede

delle due particole del precetto, cioè decere et quovis modo, si deve credere che

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nel corso di 14 o 16 anni n' havevi perso ogni memoria, e che per questa stessa

cagione havevi taciuto il precetto quando chiedesti licenza di poter dare il libro

alle stampe, e che tutto questo dicevi non per scusar l' errore, ma perchè, sia

attribuito non a malitia ma a vana ambittione. Ma da detta fede, prodotta da te

in tua difesa, restasti magiormente aggravato, mentre, dicendosi in essa che

detta opinione è contraria alla Sacra Scrittura, hai non di meno ardito di

trattarne, di difenderla e persuaderla probabile; nè ti suffraga la licenza da te

artefitiosamente e calidamente estorta, non havendo notificato il precetto

ch'havevi.

E parendo a noi che tu non havessi detto intieramente la verità circa la tua

intentione, giudicassimo esser necessario venir contro di te al rigoroso essame;

nel quale, senza però pregiuditio alcuno delle cose da te confessate e contro di

te dedotte come di sopra circa la detta tua intentione, rispondesti

cattolicamente.

Pertanto, visti e maturamente considerati i meriti di questa tua causa, con le

sodette tue confessioni e scuse e quanto di ragione si doveva vedere e

considerare, siamo venuti contro di te alla infrascritta diffinitiva sentenza.

Invocato dunque il S.mo nome di N. S.re Gesù Christo e della sua gloriosissima

Madre sempre Vergine Maria; per questa nostra diffinitiva sentenza, qual

sedendo pro tribunali, di consiglio e parere de' RR. Maestri di Sacra Teologia e

Dottori dell' una e dell' altra legge, nostri consultori, proferimo in questi scritti

nella causa e cause vertenti avanti di noi tra il M.co Carlo Sinceri, dell' una e

dell' altra legge Dottore, Procuratore fiscale di questo S.° Off.°, per una parte, e

te Galileo Galilei antedetto, reo qua presente, inquisito, processato e confesso

come sopra, dall' altra;

Diciamo, pronuntiamo, sententiamo e dichiaramo che tu, Galileo sudetto, per le

cose dedotte in processo e da te confessate come sopra, ti sei reso a questo S.

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Off.° vehementemente sospetto d' heresia, cioè d' haver tenuto e creduto

dottrina falsa e contraria alle Sacre e divine Scritture, ch' il sole sia centro della

terra e che non si muova da oriente ad occidente, e che la terra si muova e non

sia centro del mondo. e che si possa tener e difendere per probabile un'opinione

dopo esser stata dichiarata e diffinita per contraria alla Sacra Scrittura; e

conseguentemente sei incorso in tutte le censure e pene dai sacri canoni et altre

constitutioni generali e particolari contro simili delinquenti imposte e

promulgate. Dalle quali siamo contenti sii assoluto, pur che prima, con cuor

sincero e fede non finta, avanti di noi abiuri, maledichi e detesti li sudetti errori

et heresie et qualunque altro errore et heresia contraria alla Cattolica ed

Apostolica Chiesa, nel modo e forma che da noi ti sarà data.

Et acciocchè questo tuo grave e pernicioso errore e transgressione non resti del

tutto impunito, et sii più cauto nell' avvenire et essempio all' altri che si

astenghino da simili delitti, ordiniamo che per publico editto sia prohibito il

libro de' Dialoghi di Galileo Galilei.

Ti condaniamo al carcere formale in questo S.° Off.° ad arbitrio nostro; e per

penitenze salutari t'imponiamo che per tre anni a venire dichi una volta la

settimana li sette Salmi penitentiali: riservando a noi facoltà di moderare,

mutare, o levar in tutto o parte, le sodette pene e penitenze.

Et cosi diciamo, pronuntiamo, sententiamo, dichiariamo, ordiniamo e reser-

vamo in questo et in ogni altro meglior modo e forma che di ragione potemo

e dovemo.

lta pronum.mus nos Cardinales infrascripti:

F. Cardinalis de Asculo.

G. Cardinalis Bentivolus.

Fr. D. Cardinalis de Cremona.

Fr. Ant.s Cardinalis S. Honuphrii.

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B. Cardinalis Gipsius.

F. Cardinalis Verospius.

M. Cardinalis Ginettus.

Io Galileo, fig. del q. Vinc.° Galileo di Fiorenza, dell' età mia d' anni 70,

constituto personalmente in giuditio, et inginocchiato avanti di voi Emin. et

Rev.mi Cardinali, in tutta la Republica Christiana contro l' heretica pravità

gene-rali Inquisitori; havendo davanti gl'occhi miei li sacrosanti Vangeli, quali,

tocco con le proprie mani, giuro che sempre ho creduto, credo adesso, e con

l'aiutodi Dio crederò per l' avvenire, tutto quello che tiene, predica et insegna la

S.a Cattolica et Apostolica Chiesa. Ma perchè da questo S. Off.°, per haver io,

dopo d' es-sermi stato con precetto dall' istesso giuridicamente intimato che

omninamente dovessi lasciar la falsa opinione che il sole sia centro del mondo

e che non si muova e che la terra non sia centro del mondo e che si muova, e

che non potessi tenere, difendere nè insegnare in qualsivoglia modo, nè in voce

nè in scritto, la detta falsa dottrina, e dopo d'essermi notificato che detta

dottrina è con- traria alla Sacra Scrittura, scritto e dato alle stampe un libro nel

quale tratto l' istessa dottrina già dannata et apporto ragioni con molta efficacia

a favor di essa, senza apportar alcuna solutione, sono stato giudicato

vehementemente so-spetto d' heresia, cioè d'haver tenuto e creduto che il sole

sia centro del mondo et imobile e che la terra non sia centro e che si muova;

Pertanto, volendo io levar dalla mente delle Eminenze V.ro e d' ogni fedel

Christiano questa vehemente sospitione, giustamente di me conceputa. con cuor

sincero e fede non finta abiuro, maledico e detesto li sudetti errori et heresie, e

generalmente ogni et qualunque altro errore, heresia e setta contraria alla S.ta

Chiesa; e giuro che per l' avvenire non dirò mai più nè asserirò, in voce o in

scritto, cose tali per le quali si possa haver di me simil sospitione; ma se

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conoscerò alcun herético o che sia sospetto d' heresia, lo denontiarò a questo S.

Offitio, o vero all' Inquisitore o Ordinario del luogo dove mi trovarò.

Giuro anco e prometto d' adempire et osservare intieramente tutte le penitenze

che mi sono state o mi saranno da questo S. Off.° imposte; e contravenendo ad

alcuna delle dette mie promesse e giuramenti, il che Dio non voglia, mi

sottometto a tutte le pene e castighi che sono da' sacri canoni et altre

constitutioni generali e particolari contro simili delinquenti imposte e

promulgate. Cosi Dio m' aiuti e questi suoi santi Vangeli, che tocco con le

proprie mani.

Io Galileo Galilei sodetto ho abiurato, giurato, promesso e mi sono obligato

come sopra; et in fede del vero, di mia propria mano ho sottoscritta la presente

cedola di mia abiuratione et recitatala di parola in parola, in Roma, nel

convento della Minerva, questo di 22 Giugno 1633.

Io Galileo Galilei ho abiurato come di sopra, mano própria.

Bibl. Naz. Fir. MSS. Gal., P. I, T. III, car. 12-14. - Copia sincrona, con

correzioni di mano di Giov-FRANCESCO BUONAMICI di alcuni materiali

errori di penna dell' amanuense. Registriamo appiè di pagina le più notevoli

differenze d'un'altra rodazione di questa scrittura, la quale è, di mano del sec.

XVIII, nello stesso tomo dei MSS. Gal., a car. 15-18.

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