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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO … · Marcos Antonio Witt..... 175 13 A Inversão da Imagem da Coluna Prestes na Imprensa: de revoltosos para heróis ... livro

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

Chanceler

Dom Dadeus Grings

Reitor Norberto Francisco Rauch

Vice-Reitor Joaquim Clotet

Conselho Editorial Antoninho Muza Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone

Helena Noronha Cury Jayme Paviani

Jussara Maria Rosa Mendes Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva

Marília Gerhardt de Oliveira Mirian Oliveira

Urbano Zilles (Presidente)

Diretor da EDIPUCRS Antoninho Muza Naime

ELVO CLEMEMTE ORGANIZADOR

Porto Alegre

2004

EDIPUCRS, 2004 Capa:

AGEXPPUCRS Preparação dos originais:

Ir. Elvo Clemente Revisão de normas:

Anaí Zubik Camargo de Souza Revisão:

Elvo Clemente Editoração: Supernova

Impressão e acabamento: EPECÊ

Coleção CONESUL – 4 Coordenação da Coleção:

Elvo Clemente

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

161 Integração: história, cultura e ciência: 2003 / Elvo Clemente, Organizador. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 189 p. il. – (Coleção CONESUL; 4) ISBN 85-7430-475-1 1. História – Cone Sul. 2. Cultura – Cone Sul.

3. Ciência – Cone Sul. 4. Integração Regional – Cone Sul. I. Clemente, Elvo, Irmão. II. Série.

CDD 301.2098 980

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS.

EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33

Caixa Postal 1429 CEP 90619-900 Porto Alegre, RS – BRASIL

Fone/Fax: (51) 3320-3523 E-mail: [email protected]

www.pucrs.br/edipucrs Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora.

SUMÁRIO ___________________

1 Introdução − O tema e a força da integração

Elvo Clemente .................................................................................................... 7 2 Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués

Elvo Clemente .................................................................................................... 9 3 Ciudades Invisibles: su función narratológica

Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués.................................................... 15 4 República Rio-grandense e as fronteiras Platinas

Moacyr Flores................................................................................................... 41 5 Brasil e Uruguai: a “fronteira viva” como estopim

para a eclosão da Guerra do Paraguai Carla Ferrer ...................................................................................................... 56

6 Duas Visões do Rio Pardo da Prata: Expedição de

Pero Lopes de Sousa (1531) e Expedição de Alvar Nunez Cabeza de Vaca (1541) Harry Rodrigues Bellomo ................................................................................. 67

7 Jesuíta Gaúcho se Doutora em Buenos Aires

Luiz Osvaldo Leite............................................................................................ 94 8 Itália Solta a Garganta

Décio Andriotti ................................................................................................ 103 9 O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil

Geraldo Rodolfo Hoffmann ............................................................................ 123 10 Sociedade Oitocentista II

Hilda Agnes Hübner Flores ............................................................................ 148 11 Arquitetura e Escultura Barroca no Brasil e no Rio Grande do Sul

Thiago Nicolau de Araújo............................................................................... 162

12 As Colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS): um estudo comparativo Marcos Antonio Witt ....................................................................................... 175

13 A Inversão da Imagem da Coluna Prestes na Imprensa: de revoltosos para

heróis Júlia Matos ..................................................................................................... 184

14 Conflitos e Identidades: a ação marista nos núcleos teutos do Rio Grande

do Sul Kate Fabiani Rigo........................................................................................... 194

1 INTRODUÇÃO

___________________

Elvo Clemente

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS

O tema e a força da integração

Os sócios do Círculo de Pesquisas Literárias (CIPEL) em seus

quarenta anos de investigações literárias, históricas, filosóficas e políticas

trazem para esta coletânea temas e ilustrações da realidade que se acentua

cada dia no Cone Sul da América, na região rio-pratense. É a vastidão das

águas que se encontra com a imensidão do pampa na contemplação dos

alcantilados contrafortes dos Andes. Aí vive um povo de nacionalidades

distintas, de línguas aparentemente diversas mas unido nos ideais do

progresso, nas conquistas da liberdade regida pelo decálogo do amor.

Procurou-se apresentar os textos de acordo com os temas afins:

• PETRONA DOMÍNGUEZ DE RODRÍGUEZ PASQUÉS – força e

exemplo de integração – Elvo Clemente;

• CIUDADES INVISIBLES: SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA – a ficção

representa a realidade – Petrona Domínguez de Rodríguez Pasqués;

• REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E AS FRONTEIRAS PLATINAS –

espaço de conflitos e de colaboração – Moacyr Flores;

• BRASIL E URUGUAI: “A FRONTEIRA VIVA” COMO ESTOPIM

PARA A ECLOSÃO DA GUERRA DO PARAGUAI – fato doloroso de

sangue e heroísmo – Carla Ferrer;

7

• DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA – EXPEDIÇÃO DE

PERO LOPES DE SOUSA (1531) E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNES

CABEZA DE VACA (1541) – aproximações e fontes de discórdias –

Harry Rodrigues Bellomo;

• JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA EM BUENOS AIRES – cultura

não tem fronteira, confraterniza – Luiz Osvaldo Leite;

• ITÁLIA SOLTA A GARGANTA – ópera e música unem as pátrias –

Décio Andriotti;

• PANORAMA CELESTE DA BANDEIRA DO BRASIL – o céu austral

é de paz e de harmonia nas alturas e entre os povos – Geraldo

Rodolfo Hoffmann;

• SOCIEDADE OITOCENTISTA II – a vida, o comportamento e

dificuldades da mulher nesse século – Hilda Agnes Hübner Flores;

• ARQUITETURA E ESCULTURA BARROCA NO BRASIL E NO RIO

GRANDE DO SUL – as construções revelam as idiossincrasias dos

povos – Thiago Nicolau Araújo;

• AS COLONIAS DE NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS):

ESTUDO COMPARATIVO – as variações dos usos e costumes

ensinam – Marcos Antonio Witt;

• A INVERSÃO DA IMAGEM DA COLUNA PRESTES NA IMPRENSA:

DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS – a mente humana e a opinião

pública são mutáveis – Júlia Matos;

• CONFLITOS E IDENTIDADE: A AÇÃO MARISTA NOS NÚCLEOS

TEUTOS DO RIO GRANDE DO SUL – a história dos educadores maristas

uniu povos diferentes marcando o Cone Sul – Kate Fabiani Rigo.

Nas diferenças ou semelhanças entre os capítulos percorre a força

misteriosa e eficiente da inteligência que une, que integra os povos e

as idades na civilização do Amor.

8

2 PETRONA DOMÍNGUEZ DE

RODRÍGUEZ PASQUÉS – Força Integradora – ___________________

Elvo Clemente

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS

Introdução

Quis a benevolência da estimada Diretora da Faculdade de Letras,

Dra. Regina Zilberman cometer-me a honrosa tarefa de saudar a Dra. Petrona

Domínguez de Rodríguez Pasqués na ocasião em que o Reitor, Prof. Ir.

Norberto Francisco Rauch, cumprindo a resolução do colendo Conselho

Universitário lhe outorga o título de Professor Honoris Causa.

A solenidade e adereços acadêmicos desta hora não tolhem a

manifestação de sentimentos e de caras reminiscências.

Corria o frio mês de julho de 1962, o saudoso Irmão Faustino João

convidou-me a acompanhá-lo a uma viagem à Argentina e ao Uruguai por

ocasião da celebração do Congresso de Pax Romana, em Montevidéu. Em

Buenos Aires em rápida permanência de três dias tivemos o convite da família

Domínguez. Encontramos as três irmãs Clarita, Cristina e Petrona (Mignon)

recentemente diplomada em Letras. Nunca mais esquecemos o encontro e a

amabilidade das três irmãs.

Em nossas palavras apresentaremos os seguintes aspectos da

homenageada desta tarde: a aluna de Letras; a professora e pesquisadora; a

escritora; a integradora do Cone Sul.

9

Estudante exemplar

Nos idos de 1960 a Universidade de Buenos Aires florescia com bons

programas de estudos, com excelente corpo docente e brilhante alunado.

A jovem Mignon, que adotava este nome desde os artigos e crônicas

publicados em La Prensa, desde os 15 anos. Lembramos os professores que

marcaram época na Argentina e alhures: Angel Battistessa, exímio crítico

literário; Raul Castagnino, o mestre da Teoria da Literatura; Enrique Anderson

Imbert, o contista e o mestre da historiografia e da crítica, Amado Alonso, da

Real Academia, iniciador da Estilística.

A estudante Mignon encontrava o que seus sonhos procuravam, cada

lição dos mestres era mais luz para seu caminho de professora de Letras. A

conclusão do curso teve Diploma de Honor. Após o casamento com o jovem

colega de atividades na Ação Católica, Rafael Rodríguez Pasqués, a

estudante continuou a estudar conquistando, em 1966 o Máster of Science of

Language na Georgetown University, Washington, com a dissertação:

Morfologia y sintaxis del adverbio enmente, na língua castelhana.

Continuando nos Estados Unidos, graças aos Cursos de Rafael e de bolsas

renovadas, empreendeu o doutoramento, na The Catholic University of

América, na Capital americana. Defendeu a tese – El discurso indirecto libre

en la novela argentina. O título de Doutora en Lenguas Romances y Literatura

(PhD) lhe sorria triunfante em 1968. O grande mestre que lhe acompanhara

os passos era o saudoso Dr. Hastfedt, da Estilística.

Os estudos e investigações lingüístico-literárias continuaram em pós-

doutorados realizados: em seminário de Narratología del discurso pela Prof.

Dra. Elsa Dehemin de Galle, na Université Libre de Bruxelles, em 1988.

A Teoria da recepção foi-lhe ministrada no Romanisches Seminar der

Universität Heildelberg, Alemanha em 1972 e 1974 com os mestres Gadamer

e Jauss. Estudante soube manter-se atualizada nas teorias da literatura, nos

métodos e na historiografia: estudante de vida inteira, pesquisadora em todas

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as horas e em todos os ambientes, onde pudesse encontrar mais luzes, mais

saber da arte e da ciência da literatura.

Professora e pesquisadora

Durante o curso universitário praticava sua vocação de professora na

escola secundária, ensinando Língua Espanhola e Literatura hispano-americana.

Ao realizar seu doutoramento em Washington foi professora

assistente na Georgetown University de 1966-1970.

Em 1972 era professora visitante da Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul. Por seis anos lecionou no Curso de Pós-Graduação de

Letras: Teoria da Literatura; Literatura hispano-americana: crítica literária

estilística; crítica genética e estudo especial sobre Jorge Luís Borges. Nos

cursos regulares e nos especiais de janeiro e julho a doutora Petrona

lecionava a grande número de professores de universidades brasileiras

federais e particulares do Norte, Nordeste e Centro-oeste e do Rio Grande do

Sul. Os seus ensinamentos caíram em terra boa e frutificaram pelo Brasil a

fora. Quantos recordam a professora Petrona em suas aulas e na orientação

de dissertações e teses! A vida e o florescimento do Programa de Pós-

Graduação de Letras muito devem às aulas, ao entusiasmo e à visão

humanista e cristã da doutora Petrona. De 1981 a 1996 foi professora

associada de Literatura Brasileira e Portuguesa na UBA. Já alcançara o título

de professora titular por concurso na UBA. Em 1971 consagrou-se professora

titular de História da Cultura na Universidad Tecnologica Nacional. Exerceu as

funções de Diretor de área de lntegración Cultural na mesma Universidade.

Deu sua brilhante contribuição na Universidad del Salvador e na

Universidad Nacional de La Pampa. Manteve a cátedra na UBA, até sua

aposentadoria em 1996, como professora titular de Seminarios de

lnvestigación em Teoría Literária y Literatura Iberoamericana.

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Atualmente mantém-se como professora titular de Ingeniería y

Sociedad na Universidad Tecnologica Nacional, UTN. O que faz Mignon no

reino da Tecnologia? É professora de humanismo entre os colegas e alunos

que aspiram algo mais acima dos sucessos da Tecnologia. É o espírito novo

da provecta professora que sabe que os valores do espírito e da eternidade

se sobrelevam aos milagres e misteres da tecnologia.

A escritora

O uso da pena e da máquina de escrever estiveram presentes desde

cedo na família Domínguez – o pai dirigia EI Mundo, jornalista robusto e de

grandes horizontes, a filha Mignon ensaiara desde cedo as manhas da

crônica literária, do conto e dos comentários críticos. Lamentável é a ausência

do álbum de crônicas daqueles tempos...

Em 1995 lançava o livro El pacará de los tucos de la pátria vieja,

Buenos Aires: Colombo, 1955.

Em 1958, apareciam 16 Cuentos Argentinos que comemoram,

hoje, 17ª edição.

Em 1968 recebia o Premio da Sociedad de Escritoras Católicas pelo

livro Tucma; diálogos con Las tierras del Norte.

EI discurso indirecto libre en la novela Argentina, tese do

doutoramento, era publicado pelo editorial da PUCRS, em 1975.

Com excelente estudo introdutório e comentários críticos de Petrona,

publicava-se em 1980, a Antologia de Cuentos fantásticos hispanoamericanos.

Há numerosos capítulos seus em livros coletivos tais como Borges,

em 1991; Estádios de Narratología, 1991; Cartas desconocicias de Julio

Cortazar, 1992 e 2ª ed. 1994; Historia, ficción y metaficción en Ia novela

latinoamericana contemporanea, em 1996; La función narrativa y sus nuevas

dimensiones, Centro de Estúdios Narratológicos, 2001; Nuevas tendências y

perspectivas contemporaneas en la narrativa, em 2001. Numerosos são os

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artigos seus em revistas argentinas e de outros países como o Brasil,

Espanha, Estados Unidos, França e Portugal. Mignon é escritora, ensaísta e

beletrista nos contos e crônicas.

Força integradora

A professora doutora Petrona por suas atividades de escritora, de

professora e de pesquisadora tornou-se há meio século uma força integradora

de culturas e de povos pelo culto e cultivo das Letras. A integração realiza-se

pela presença em cursos, em congressos e em seminários. Em sua força

juvenil passou dez anos em Washington realizando cursos e ministrando

aulas sobre temas latino-americanos. Durante 50 horas, na Universidade de

Salamanca assistiu e colaborou no curso extraordinário “La Literatura

Iberoamericana en el 2000, Balance y Perspectivas”. Ainda no mesmo ano,

ministrou o curso de especialização em “Medios de Comunicación Social y

Valores”, no Centro de Investigaciones de Ética Social. Tudo encaminha

integração de pessoas, de atividades para o bem das pessoas e da

sociedade. A sua ação integradora é manifesta em sua colaboração decisiva

nos Cursos ministrados durante um lustro no Programa de Pós-Graduação de

Letras nesta Universidade.

Outra manifestação de sua força integradora são as associações e

instituições que a tem como sócia: Asociación Internacional de Hispanistas,

membro de número do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana;

membro da Associação Internacional de Lusitanistas: membro da Sociedad

Argentina de Escritores e do Pen Club Argentino; membro da Modern

Language Association.

A sua força integradora tem seu ápice no Centro de Estúdios de

Narratologia, de Buenos, de que é a fundadora, a presidente e alma das

reuniões e dos simpósios bienais. Fato exemplar foi a I Jornada Internacional

de Narratologia realizada nesta Universidade em 2001 junto com os

Seminários de Crítica Literária.

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Professora Petrona em sua abertura ao estudo e à investigação

literários por suas conferências em congressos na Argentina, na França, nos

Estados Unidos da América, no Brasil, revela-se como força de aproximação

de culturas e de pessoas que se transformam em energia propulsora de união

e de confraternização entre pessoas de línguas e povos diferentes. Tudo se

une, se irmaniza pelas Letras, na exposição e discussão do fato literário.

Recordando o velho e sempre novo Cícero direi: Mignon Domínguez é a

mensageira que traz a novidade perene das Letras que humanizam sempre mais

o peregrino por estes caminhos tateantes de nossa civilização até encontrar o

conforto aos pés do Mestre que integrou, reuniu a família humana no seu abraço

do alto do Gólgota e que mostrou nova vida em sua Ressurreição, verdadeira

evocação das Letras que unem no tempo e na eternidade.

A vida e a obra da Professora Doutora Petrona Domínguez de

Rodríguez Pasqués estão a nos apontar o caminho de aproximação e de

fraternidade a começar no Cone Sul e abraçar todos os povos no milagre da

verdadeira arte de Amar.

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3 CIUDADES INVISIBLES:

SU FUNCIÓN NARRATOLÓGICA ____________________

Petrona D. de Rodríguez Pasqués

Universidad Tecnológica Nacional – Argentina

La crítica holandesa Elrud Ibsch ha señalado que en literatura la

ciudad, que no está hecha ni con ladrillos ni con piedras sino con palabras,

tiene tres funciones: Ia primera una función documental: una ciudad

geográficamente identificable es un elemento factual, el efecto de lo real

evocando ciertas expectativas en el lector. La segunda función es la

narratológica que tiene en literatura un elemento estructural que contribuye a

la articulación de acontecimientos en el texto. En tercer término la ciudad en

literatura tiene una función modelizadora: por concentración en ciertos

aspectos semánticos – mientras se descuidan otros – la representación de

una específica ciudad constituye un “modelo”, un esquema cognitivo de la

difusa realidad urbana1. Demás está decir que la interdependencia y la

interacción entre las funciones documental, narratológica y modelizante se

dan en primer plano dentro de la literatura.

Antes de entrar en nuestro tema conviene partir de Aristóteles quien

al hablar de la polis y el régimen ideal de la ciudad en la Política creía que el

N.A. Los números de las páginas de texto se consignan entre paréntesis. Las traducciones del português, inglés y francés que figuran en las citas son nuestras. 1 Cfr. Erud lbsch. “The representation of the city in modernist and postmodernist literature”, CÂNONES & CONTEXTOS, 5 ABRALIC. Anais... Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. v. I, p. 177.

15

ser humano era por naturaleza, no tanto un animal “político” sino en realidad

cívico o ciudadano (zoon politikón) o sea miembro de una ciudad2.

Convengamos en que este ciudadano no tiene que ser entendido

necesariamente en términos de participación política sino en términos de

alguien que pertenece a una ciudad.

Vivimos por naturaleza en una ciudad y así Rafael Gutiérrez Girardot

recuerda que “toda literatura es urbana”3.

Italo Calvino en su libro Las ciudades invisibles (1972) propone una

suerte de reescritura entre alegórica y poética del Libro de Ias maravillas de

Marco Polo. El autor veneciano se esforzó por hacer creíbles sus afirmaciones

acerca de las maravillas vistas en su viaje por Asia4. Pero esos relatos no

convencieron a sus contemporáneos debido a las circunstancias en que se

escribieron: el Libro de Ias maravillas fue dictado por Marco Polo en la cárcel a

Rusticello de Pisa, autor de libros de caballería del ciclo del rey Arturo.

Calvino logra en Las ciudades invisibles una estrategia narrativa

borgesiana: finge que su libro fue escrito por un autor de otra época.

Marco Polo es el narrador y el venerable Kublai su oyente. Las

historias tienen una o dos páginas. Son historias breves a la manera de

Borges o de Kafka en las que Calvino recupera un relato antiguo para un

texto de ficción contemporánea.

2 Aristóteles. Política (VIl. 5, 1277). 2. ed. Trad. Julián Marías. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,1970. p. 120. 3 R. Guitiérrez Girardot. “La transformación de la literatura por la ciuad”. La ville et la littérature. Marche Romane, Liège XLIII, 1993. p. 1-4, p. 121-131. El autor comienza su ensayo con estas palabras “Es el principio eran las ciudades. Con ellas nace el intelectual en el Occidente medieval” escribió Jacques Le Goff. Y agrega Rodríguez Girardot “Toda literatura es urbana, y al menos según eI concepto secular de literatura no hay una literatura catupesina Como literatura urbana se considera la que tiene a la ciudad como tema central” (121) 4 Marco Polo. Libro de las maravillas. Madrid: Anaya, 1983. Paul Pelliot y C. Moule publicaron en 1938 la primera edición completa reconstituida. Véase Víctor Chlovski Le voyage de Marco Polo. Paris: Payot, 1993.

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Estas ciudades de Marco Polo nunca existieron ni pueden existir y

sin embargo la mayoría de los lectores – según Harold Bloom5 – iría

allí si fuese posible.

Las ciudades de Calvino aparecen en once grupos dispersos: Las

ciudades y la memoria, Las ciudades y el deseo, Las ciudades y los signos,

Las ciudades y los cambios, Las ciudades tenues, Las ciudades y los ojos,

Las ciudades y el nombre, Las ciudades y los muertos, Las ciudades

continuas, Las ciudades y el cielo, para concluir con las ciudades ocultas.

“Aunque uno puede marearse teniéndolas a todas en la mente, no ayuda

nada decir que cada una de esas ciudades es en realidad el mismo lugar”6.

Todas las ciudades invisibles tienen nombre de mujer pero esto no

significa que todas las mujeres sean una.

Kublai Kan escucha los relatos de Marco Polo sobre remotas

ciudades. Cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que

desarrolla una variable de la ciudad única “que todos llevamos dentro”

dice Calvino.

Fernando Ainsa en excelente ensayo7 señala la obra de Calvino

como “un apasionante catálogo de variantes caleidoscópicas. “En las

ciudades que dan forma a los deseos o en aquéllas en que “los deseos o bien

logran borrar la ciudad o son borrados por elIa, se dan las tenues diferencias

entre ciudades felices e infelices” (Zenobia)8.

En cuanto al libro de Marco Polo, pertenece a esa categoría de textos

que al decir de Calvino “se esconden en los pliegues de la memoria

mimetizándose con el inconciente colectivo o individual y nos Ilegan trayendo

5 Harold Bloom. How to read and why. New York: Scribner, 2000. p. 62. 6 Harold Bloom. Ibidem. 7 Fernando Ainsa. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco Polo”. Cuadernos Hispanoamericanos, n. 553/554, p. 105-119, jul/ago. 1996. 8 Idem, p.113.

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impresa la huella de las lecturas que han precedido a la nuestra y tras de sí la

huella que han dejado en la cultura o en las culturas que han atravesado”9.

Pero Fernando Ainsa hace esta observación: “A diferencia de Marco

Polo que trató de convencer a sus contemporáneos de la veracidad de su

relato sobre las maravillas vistas y oídas en el curso de su viaje por Asia.

Calvino prefiere recuperar en el relato del veneciano “la invención” imaginativa

a la que la descripción de ciudades exóticas invita, es decir, la condición de

crónica increíbIe...”10.

El Libro de las maravillas (1938) tuvo un destino aciago porque su

autor quedó vinculado con fantasías y fábulas. No obstante el libro de Marco

Polo constituye el núcleo generador y además representa un arquetipo

narrativo como es el del topos del viaje en función del horizonte cultural

contemporáneo. Pero la función narratológica implícita en la continuidad del

viaje en el Libro de las maravillas es sustituida en Calvino por un curso

discontinuo generado por un procedimiento combinatorio la “contrainte” es el

nuevo itinerario propuesto por Calvino en el espacio del texto.

Según el crítico Andrea Martines la imagen en forma de red

reproduce el orden combinatorio de la obra11.

Así la ciudad denominada Zora es como una red en cuyas casillas

cada uno puede disponer las cosas que quiere recordar. Zora, ciudad que

quien Ia ha visto una vez no puede olvidarla más.

Ottavia (Ciudades tenues, p. 87) es una ciudad telaraña suspendida

en el abismo: “Hay un precipicio entre dos montañas abruptas; Ia ciudad está

en el vacío atada a las dos crestas con cuerdas, cadenas y pasarelas”.

En Las ciudades y los cambios, Ersilia, se rehace continuamente; los

habitantes tienden hilos para establecer las relaciones, hilos blancos o negros

9 Italo Calvino. Por qué leer los clásicos. Barcelona: Tusquets, 1992. p. 17 10 Fernando Ainsa, idem, p. 106. 11 Veáse la tesis doctoral de Andrea Martínes La Ietteratura combinatoria, Roma: Universita degli Studi di Roma, 1997. El autor realiza un excelente análisis de Las ciudades invisibles.

18

o grises según indiquen parentesco, autoridad o intercambio. Cuando los hilos

son muchos y no se pueden pasar, los habitantes se van, después de haber

desmontado sus casas y vuelven a edificar a Ersilia en otra parte (p. 88).

Pero sobre todas Smeraldina (Las ciudades y los cambios) la ciudad

acuática, responde a Ia estructura de red, “una red de canales y una red de

calles se superponen y se entrecruzan” (p. 100).

A la imagen reticular Calvino inserta en otras ciudades invisibles la

reelaboración combinatoria del topos del viaje con la búsqueda de la clave

interpretativa por deducción. Laudomia en Las ciudades y los muertos (p. 152)

tiene a su lado otra ciudad con los mismo nombres de sus habitantes: es la

ciudad de los muertos. Pero a su vez comprende una tercera Laudomia que

es la de los no nacidos y para sentirse segura la Laudomia viviente necesita

buscar en la Laudomia de los muertos la explicación de si misma.

La Laudomia de los recién nacidos no trasmite seguridad, sino sólo

zozobra a los habitantes, como la de los muertos.

Como otro recurso narratológico además de la estructura reticular

y del “topos” del viaje y la búsqueda de las claves interpretativas del

imperio por deducción. Calvino reitera diversos modelos miméticos del

procedimiento combinatorio.

Las relaciones entre los habitantes de Cloe (p. 63) son sólo

hipotéticas, imaginadas combinatoriamente casi como los habitantes de

Eutropia. En Cloe, gran ciudad, “las personas que pasan por las calles no

se conocen”. Pero nadie saluda a nadie, las miradas se cruzan un

segundo y después huyen, buscan otras miradas, no se detienen (Las

ciudades y los cambios).

En cambio en Valdrada (p. 65) perteneciente a la clasificación Las

ciudades y los ojos los antiguos la construyeron a orillas de un lago con casas

todas de galerías una sobre otra y calles altas que asoman al agua sus

19

balaustradas. Así el viajero ve al llegar dos ciudades: una directa sobre el lato

y otra de reflejo, invertida.

Llegamos al fin a Las ciudades ocultas y una de ellas es Berenice (p.

172) “la ciudad injusta” que tiene una ciudad justa dentro de ella y “en la

semilla de la ciudad de los justos está oculta a su vez una simiente maligna: la

certeza y el orgullo de estar en lo justo — y al estarlo más que tantos otros

que se dicen justos — fermentan en rencores, rivalidades, despechos y el

natural deseo de desquite sobre los injustos, se tiñe de manía de ocupar su

sitio haciendo lo mismo que ellos”. O sea otra ciudad injusta va excavando su

sitio. Berenice es entonces una secuencia de ciudades justas e injustas pero

“todas las Berenices futuras están ya presentes en este instante, envueltas

una dentro de la otra, estrechas, apretadas inextricables”.

Marco Polo ha terminado. No hay entonces más ciudades invisibles.

Sólo queda un diálogo final entre Kublai Kan, el emperador, y Marco Polo. El

Gran Kan tiene un Atlas con ciudades visitadas con el pensamiento pero

todavía no descubiertas o fundadas: la Nueva Atlántida, Utopía, la Ciudad del

Sol, Icaria, Armonía.

Kublai Kan pregunta a Marco Polo: “Tú que exploras en torno y ves

los signos sabrás decirme hacia cuál de estos futuros nos impulsan los

vientos propicios”. Marco Polo responde que para esos puertos no sabría

trazar la ruta en el mapa ni fijar la fecha de llegada (p. 174).

La ciudad a la cual tiende su viaje es discontinua en el espacio y en el

tiempo. Entonces el Gran Kan repasa en su atlas las ciudades de pesadillas y

de maldición: Enoch, Babilonia, Yahoo... Desesperado declara su nihilismo:

La corriente lleva al infierno de los vivos, pero Calvino coloca las últimas

palabras en boca de Marco Polo para encender la esperanza en el lector: “El

infierno de los vivos no es algo que será; es aquel que existe ya aquí, el

infierno que habitamos todos los días que formamos estando juntos. Hay dos

maneras de no sufrirlo: hay que aceptarlo y volverse parte de él hasta no verlo

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más”. Pero hay un mejor camino — y aquí reconocemos la sabiduría de Ítalo

Calvino — “buscar y saber reconocer quién y qué en medio del infierno no es

infierno y entonces hacerlo durar y darle espacio” (p. 175).

Calvino nos aconseja cómo vigilar, captar y reconocer la posibilldad

de lo bueno, ayudar a que permanezca, darle espacio en nuestra vida.

Santiago Kovadloff sostiene que hay “una paradoja resultante del

hecho de que la literatura brasileña es entendida independientemente de la

hispano-americana y ésta a su vez enfocada como un corpus indiferenciado y

uniforme por acción de la lengua española sin que se tenga en cuenta que la

ficción brasileña está más cerca de la argentina que de la boliviana. Brasil no

encontró todavía — agrega el crítico — en América Latina los lectores

hispanoamericanos que precisa porque éstos no encontraron los recursos que

favorezcan su comprensión de la literatura brasileña como una dimensión

más de su identidad”12 .

Kovadloff emitió este juicio hace ya algunos años. En cierto aspecto

— salvo excepciones — su visión se mantiene, pero creemos que en las dos

literaturas perdura su acento y su mensaje propios.

Si cada ciudad invisible se presenta como un fragmento que

desarrolla una variable de la ciudad única que “todos llevamos dentro”

examinemos de cerca, algunos ejemplos en la narrativa argentina

y en la brasileña.

Calvino en Las ciudades invisibles (1974) fue influido notoriamente

por Borges. Ahora para hablar de Borges partimos de la creación de Calvino,

del acierto de sumergirse en las ciudades invisibies, imagen que nunca

concretó Borges, pero a Ia que recurrió con singular maestría.

12 Santiago Kovadloff. “La literatura brasileña en el exterior”, Brasil Cultura, año V, n. 46, dic. 1980. (Sector Cultural de la Embajada del Brasil en Buenos Aires).

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Buenos Aires está en Borges y Borges está consustanciado con

Buenos Aires. Veamos ante todo un punto de convergencia con Calvino, o

mejor vayamos al intertexto de Calvino.

Borges, en una página de Otras inquisiciones (1960) titulada “El

sueño de Coleridge” ya había abordado un episodio en la vida del poeta y La

génesis del fragmento lírico Kublai Khan que fue soñado por Coleridge en

1797. Este escribió que había tomado un sedante y se sumergió en un sueño

después de una lectura que refería la edificación de un palacio por Kublai

Khan, el emperador famoso por los relatos de Marco Polo. En el sueño de

Coleridge aquel texto previamente leído fue cobrando forma y se multiplicó a

punto de que el sofiador pudo ver una serie de imágenes visuales y de

palabras que las explicaban. Cuando se despertó tuvo la certidumbre de

haber compuesto o recibido un poema de 300 versos. Lo recordaba fielmente

y así transcribió el fragmento Kublai Khan.

Coleridge soñó el poema en el siglo XVIII pero en el siglo XIII Kublai

Khan erigió un palacio según un plano que había visto en un sueño.

La ciudad de Buenos Aires asoma en Borges desde los albores del

siglo XX; puede remontarse a época anterior por la mención de los mayores o

el testimonio escrito de otros; puede asumir nombres o lugares geográficos

diferentes: siempre será Buenos Aires. Su primer libro Fervor de Buenos Aires

(1923) se abre con estos versos que señalan el dualismo: visible-invisible:

Las calles de Buenos Aires

ya son mi entraña.

No las ávidas calles

incómodas de turba y de ajetreo

sino las calles desganadas del barrio

casi invisibles de habituales,

enternecidas de penumbra y de ocaso...

(Calles de Buenos Aires)

22

“Fundación mítica de Buenos Aires” auna las dos ciudades: la Buenos

Aires visible y la invisible. Imagina una fundación que saltea el tiempo y el

espacio avalada por el adjetivo “mítica”.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa

durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,

pero son embelecos fraguados en la Boca.

Fue una manzana entera y en mi barrio: Palermo.

Una manzana entera pero en mitá del campo

expuesta a Ias auroras y lluvias y suestadas,

La manzana pareja que persiste en mi barrio

Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga.

(Cuaderno San Martín, 1929)

El poeta vislumbra la fundación de la ciudad de Buenos Aires y la

ubica en la manzana de un barrio con almacén rosado, un organito y una

cigarrería sahumada como una rosa. Allí alienta una ciudad visible pero a la

vez invisible porque es trascendente:

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires

La juzgo tan eterna como el agua y el aire.

Hasta ahora hemos espigado en sus primeras manifestaciones

poéticas. Examinemos brevemente sus cuentos.

Borges recorre en ellos los barrios con pinceladas realistas. En “La

muerte y la brújula” (Ficciones, 1956) Borges revela en el prólogo a la

Colección que la ciudad de su cuento es Buenos Aires: “Pese a los nombre

alemanes o escandinavos ocurre en un Buenos Aires de sueños: la

torcida rue de Toulon es el Paseo de Julio; Triste Le Roy, el hotel donde

23

Herbert Ashe recibió y tal vez no leyó el tomo 11 de una enciclopedia

ilusoria” (Ficciones, p. 115).

En “El jardín de senderos que se bifurcan” (Ficciones) no obstante su

corte policial hay un elemento fascinante en el escamoteo de una ciudad que

en la mente del espía del Imperio Alemán sólo se revela al final. Así todo el

relato se construye sobre el enigma de una ciudad invisible.

“Fundar Iiterariamente una ciudad puede ser también construir la idea

de la misma: algunas urbes son la idea que de ellas ha construido la

literatura”. Tales expresiones pertenecen a José Carlos Rovira13. Rovira se

pregunta si narrativamente no es “El jardín de los senderos que se bifurcan” el

primer texto en que Borges funda una ciudad en la literatura... porque el

jardín, siendo sobre todo esa “red creciente de tiempos divergentes,

convergentes y paralelos que se cruzan, es también la fundación de una

ciudad que se llama Albert para indicar a los alemanes que la bombardeen”.

El diario del protagonista-espía Yu Tsun nos cuenta que no ha encontrado

mejor forma de hacerlo que asesinar el sinólogo llamado Stephen Abert.

Todos los cuentos de Borges exigen mucha sabiduría y lecturas.

“Un cuento está metido dentro de otro y el mismo esquema se repite

o se invierte”14.

La mente poderosa de Borges ha fundado un canto único a la belleza

de la vida argentina que él ha descubierto en las casas, los patios y las calles

de Buenos Aires. La conciencia de su originalidad no le ha permitido ser un

escritor popular.

El cuento “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” ha inquietado a la crítica por su

complejidad. En el Prólogo a Ficciones su autor confiesa que es “un desvarío

laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros... Mejor procedimiento

13 José Carlos Rovira. “Borges, Calvino y la fundación literaria de ciudades”, Borges, Calvino, Ia literatura. Madrid: Fundamentos, 1986, v. lI, p. 89. 14 Enrique Anderson Imbert. Historia de Ia literatura hispanoamericana. México: Fondo de Cultura Económica, 1966, 5. ed. v. II, p. 286.

24

es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen”. Pero él ha

preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios y entre ellos menciona

a “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”.

Jaime Alazraki considera el cuento como una “alquimia” que consiste

en mostrarnos nuestra realidad transfigurada en un sueño, en una

fantasmagoría más del espíritu que nada o muy poco tiene que ver con este

mundo real que se propone penetrar15.

“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” presenta un mundo fantástico que a su

vez incluye un segundo mundo fantástico y éste contiene un tercero. Está

estructurado al modo de las “muñecas rusas” o “cajas chinas”.

Este recurso aparece en varios cuentos de Borges: recordemos El

Aleph. “El jardín de senderos que se bifurcan”, “Las ruínas circulares”. La

estructura interna, el andamiaje consiste en tres dimensiones de fantasía que

Echavarría Ferrari llama tres parámetros de referentes lingüísticos16.

Si hay entre los cuentos de Borges uno que puede aproximarse más

a los que aparecen en Las ciudades invisibles de Calvino indudablemente es

éste. Pero difiere notablemente en su extensión y en su complejidad aunque

se asemeja en la estructura circular.

“Borges nos ha hecho creer en un mundo imaginario urdido por

hombres, capaz de invadir un mundo real y hacerlo desaparecer” 17.

Estructuralmente tanto Las ciudades invisibles como Tlön responden

a las mismas motivaciones, según José Luis de la Fuente. “En Tlön por la

sinuosidad del tiempo y el abigarrado pormenor de datos. También del espejo

15 J. AIazraki “Tlön y Asterion: anverso y reverso de una epistemología”. Nueva narrativa hispanoamericana, org. J. Laforgue, v. I, sept. 1971. 16 Arturo Echavarría Ferrari. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Creación de un lenguaje y crítica del lenguaje”. Revista Iberoamericana, n. 100/101, p. 401, jul.-dic. 1977. 17 Idem, 412. La prirnera dimensión de la fantasía reside en la literatura de Uqbar que es de carácter fantástico. La segunda dimensión es una región imaginaria de un país imaginario: Tlön, la tercera es una Enciclopedia que se llamará Orbis Tertius.

25

como metáfora estructural sobre la que se construye el texto pues ambas

realidades responden a una peculiar visión del mundo”18..

En su libro Seis propuestas para el próximo milenio (1985) Calvino

otorga a Borges tres de las cualidades válidas para el siglo XXI. Rapidez,

exactitud, y multiplicidad. Saúl Yurkievich en “El cristal y la llama” ha

declarado que Calvino al caracterizar a Borges se autocaracteriza y agrega:

“Borges va a contracorriente de nuestra época... La literatura contemporánea

persigue en lenguaje locuaz la suma magmática de la existencia... Borges

encarna la revancha del orden mental contra el caos del mundo”19.

En esa prosa condensada la ciudad es el más complejo de los

laberintos construidos por el hombre.

Si hablamos de la ciudad no podemos dejar a un escritor argentino

que desde París habló siempre de Buenos aires. Su obra Rayuela (1963)

obedeció a un impulso de realizar una obra que tuviera “el gesto amplio de la

novela (en oposición al cuento) pero que rompiera con Ias convenciones del

lenguaje y del género...”20.

Hay allí un continuo desdoblamiento entre dos mundos: el de aça y el

de allá; entre dos ciudades: París y Buenos Aires, expresiones de la situación

de exiliado en un ámbito diferente.

El protagonista se mueve entre los dos espacios urbanos pero desde

el ángulo narratológico se observa que “los movimientos superficiales de los

personajes de una ciudad a otra, son en realidad la cara visible de un

verdadero sistema de desplazamientos en cuyo origen se encuentra el ritmo

como generador”21.

18 José Luis de Ia Fuente. “Las ciudades invisibles de Tlön”. Borges, Calvino, Ia literatura, op. cit., vol. 2, p. 117. 19 Saúl Yurkievich. “El cristal y la Ilama”. Borges, Calvino, la literatura. Op. cit., v. 1, p. 37. 20 Ana María Barrenechea. “Génesis y circunstancias”. Julio Cortázar, Rayuela. (Ed. crítica), Madrid: Archivos, 1991, p. 552. 21 Gerardo Goloboff. Julio Cortázar. La biografia. Buenos Aires: Seix Barral, 1998, p. 140.

26

La novela se abre con una pregunta: “Encontraría a la Maga? Y así se

descorre el telón de París:

“Tantas veces me había bastado asomarme, viniendo por la rue de

Seine, al arco que da al Quai de Conti, y apenas la luz de ceniza y olivo que

flota sobre el río, me dejaba distinguir las formas, ya su silueta delgada se

inscribía en el Pont des Arts ...” “Pero ella no estaría ahora en el puente. Su

fina cara de traslúcida piel se asomaría a viejos portales en el ghetto del

Marais, quizá estuviera charlando con una vendedora de papas fritas o

comiendo una salchicha caliente en el boulevard de Sebastopol.” Todo lo

denominado “Del lado de allá” es un recorrido y descripción de París. En

cambio “Del lado de acá” está enfocado desde los diálogos, los fragmentos de

tango y el mate elementos todos, junto con el nombre de algunas calles y de

algún barrio que dan el clima del ambiente porteño.

La idea y el título de 62, Modelo para armar (1968) provienen del

capítulo 62 de Rayuela. Cortázar explicó posteriormente que los

personajes están motivado por fuerzas ocultas más bien que por las

usuales fuerzas psicológicas22.

Tiempo y espacio están constantemente violados. La perspectiva

narrativa cambia con frecuencia y los motivos se ven dificultados por la

presencia de paredros y eI dominio de la ciudad. La palabra “paredros” se

refiere según Cortázar al doble de una divinidad egipcia y está usada en

la novela para indicar otro personaje con el cual el personaje narrador

siente afinidad.

“Del mismo modo la ciudad no es un lugar fijo o un lugar real; existe

en la mente de los personajes como un sueño de centro urbano que todos

ellos han visitado una u otra vez y a la cual muchos retornan; aunque como

en las ciudades reales Londres, París, Viena, en la ciudad invisible ellos

22 Omar Prego Gadea. Julio Cortázar Ia fascinación de las palabras. Buenos Aires: Alfaguara, 1997.

27

tienen dificultad de encontrarse unos con otros”. La ciudad invisible de

Cortázar que nos muestra 62, Modelo para armar (1968), es el producto de un

sueño en él cual él fue en busca de algo o de alguien23.

Dentro del texto de la novela aparece un poema titulado “La

ciudad” señal de la ansiedad lírica de Cortázar. No es un trabajo poético

independiente sino que está inserto en la masa de una novela y es el

poema de la novela.

“Entro de noche a mi ciudad, yo bajo a mi ciudad donde me esperan o me eluden, donde tengo que huir de alguna abominable cita, de lo que ya no tiene nombre, una cita con dedos, con pedazos de carne en un armario, con una ducha que no encuentro, en mi ciudad hay duchas, hay un canal que corta por el medio mi ciudad y navíos enorme sin mástiles, pasan en un silencio intolerable hacia un destino que conozco pero que olvido al regresar, hacia un destino que niega mi ciudad donde nadie se embarca, donde se está para quedarse aunque los barcos pasen y desde el liso puente alguno esté mirando mi ciudad24.

Antes de entrar a Ia consideración de las ciudades brasileñas y su

condición de invisibles recordemos unos conceptos de Calvino: “Cada pessoa

tem en mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade

sem figuras e sem forma preenchida pelas cidades particulares” (Zoe, p. 44).

Los escritores brasileños han recorrido a lo largo de su literatura una

serie de variables en el abordaje de sus ciudades que van de la continuidad

a la discontinuidad.

Las estrategias constructivas del imaginario literario logran un

aprovechamiento fecundo de recursos lingüísticos y además una renovación

de las tradiciones.

23 Véase Terry J. Peavler. Julio Cortázar. Boston: Twayne Publishers, 1990, p. 108. 24 Julio Cortázar 62, Modelo para armar. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana Planeta, 1968, p. 32.

28

Sólo la aplicación de las tres funciones señaladas al principio:

documental, narratológica y modelizante en la obra del inigualable Machado

de Assis sería ejemplo suficiente.

El poeta Augusto dos Anjos (1884-1914) esbozó en sus poemas

fragmentos de una ciudad que bien podríamos aproximar a alguna de “Las

ciudades y los muertos” de Calvino. No es precisamente Rio de Janeiro sino

una ciudad anónima donde se encuentran calles y puentes, reflejos de

inmundicia y miseria, Augusto dos Anjos “expone públicamente lo que la

ciudad escondió u olvidó haciendo diseminar por los aires parisienses de la

ciudad carioca los efluvios miasmáticos de la descomposición” (Maciel,

1997)25. La ciudad negra está representada como un cuerpo enfermo y a

veces como un cuerpo muerto. La influencia de Baudelaire es innegable.

En esa “ciudad negra todo se deshace y se desmorona al punto de

apartarse del mundo:

“Súbito surge como un catafalco Uma cidade ao mapamundi estranha”

(Insônia)

Dedos denunciadores escreviam Na lúgubre extensao da rua preta todo o destino negro do planeta”

(Noite do visionario)

Hay dos ciudades en Gabriela Clavo y Canela, de Jorge Amado

(1912-2001), la Ilhéus geográfica plena de ritmo y color. La otra: la invisible,

que ubicamos en “las ciudades y los cambios” de Calvino. Así Ilhéus se

compone de dos medias ciudades: una, la de calma provinciana; la otra en

ebullición. La primera, como sucede en las pequeñas ciudades del interior del

25 María Esther Maciel. “Metrópole/Necrópole A cidade alegórica de Augusto dos Anjos. Perspectivas literarias desde el fin del siglo. Buenos Aires, UBA, Sección Literaturas en Lenguas Extranjeras, 1997, p. 164-167.

29

Brasil sumergidas en un tiempo detenido para siempre y en una rutina espesa

que tan bien escribió Massaud Moisés26. Hay que recordar que la novela trae

como subtítulo Crónica de una ciudad del interior. El núcleo de Ia obra, es la

del idilio amoroso de la mulata.

Gabriela y el árabe Nacib; pero sin duda esos amores cobran

importancia en la realidad social del Ilhéus. De allí la extensión panorámica

hecha de la historia y de la vida de la pequera ciudad en la que se mueven los

dos personajes. La protagonista oculta es la ciudad tenue de Ilhéus. Desde

las primeras páginas el asesinato de dos amantes “consiguió que la ciudad

olvidara los restantes asuntos” (p. 9). “Ilhéus se transformaba” (p. 10): nuevas

casas se levantaban para Ias familias, lujosos moblajes serían encargados

directamente a Río; llegarían pianos de cola para aristocratizar las salas... el

progreso en fin (p. 15).

El mismo Jorge Amado afirma la importancia del amor de Gabriela y

Nacib para la ciudad. En la segunda parte de la novela se afirma el valor de

Ilhéus con las continuas digresiones, estructuración y desestructuración de

escenas y diálogos; el novelista se evade de la intriga central y vuelve con

maestría a encontrarse en ese escenario único que es la ciudad de Ilhéus:

visible sin discusión pero invisible en el mensaje social para un mundo en

crisis. Jorge Amado funda literariamente la ciudad de Ilhéus. Lo visible en elIa

es un reflejo de lo invisible.

Una de las primeras obras de Erico Veríssimo (1905-1975) fue la

breve novela titulada Sonata, un verdadero poema en prosa, admirable por su

concisión donde se puede apreciar el problema relativo a la temporalidad,

idea que preocupó siempre al renombrado escritor27.

26 Massaud Moisés. A criação literária. 7ª ed. São Paulo: Melhoramento, Ed. de la Universidad de São Paulo, 1975, p. 210. 27 Erico Verissimo. “Sonata”. O Ataque. Rio de Janeiro: Globo, 1959 (Coleção Catavento, 1).

30

En Sonata el protagonista es un músico solitario a quien Ia gente de

la pensión donde vive mira “con extrañeza y alarma”. El relato asume la forma

de un fragmento autobiográfico, escrito en primera persona.

Este profesor de piano, tímido y solitario, un día de abril deambula por

las calles de la ciudad; se mueve como sonámbulo, con la impresión de que el

otoño es un ópalo en el cual está encerrada la ciudad con su gente, sus

casas, calles y monumentos, tal como aparecen los barcos dentro de una

botella, esos que construyen los presidiarios.

En su deambular concibe la idea de componer una sonata y

ensimismado con los acordes de la misma se salva de ser atropellado por un

ómnibus gracias al auxilio de un transeunte. Aturdido, se refugia en la

Biblioteca y en su indecisión pide un diario de 1912 por ser ese el año de su

nacimiento. Desde allí, en plena irrealidad, el tiempo se detiene. Un aviso del

viejo diario solicita un profesor de piano para una joven y el protagonista se

dirige a la rúa de Salgueiro n° 25 − calle que por supuesto ha cambiado de

nombre en la realidad. Por los detalles el lector advierte que se trata de Porto

Alegre en las primeras décadas del siglo pasado.

Las imágenes opalescentes envuelven las escenas de esa ciudad

antigua. Todo el relato está en consonancia con la composición de la

Sonata en Re Menor, paralela a las lecciones que el profesor imparte a

una joven delicada.

Hay dos ciudades en esta obrita de Erico Veríssimo: una, la real; otra,

la invisible, representada dentro de un ópalo. La mirada recorre sus calles

como si fueran las notas de una Sonata. Calvino la hubiera ubicado en su

libro, clasificada en eI rubro de “ciudad oculta”.

El punto más alto de la fama de Erico Verissimo fue alcanzado por su

trilogía O tempo e o vento, 1961. Dividida en tres partes y a su vez — a

manera de rizoma — ampliada en capítulos con el personaje central, la obra

31

se proyecta como Ia saga de una familia y de una ciudad de Rio Grande do

Sul desde sus orígenes a mediados del siglo XVIII hasta el siglo XX.

Podría pensarse que existen semejanzas entre O tempo e o vento y

Antares. Ambas novelas enfocan momentos brasileños muy parecidos,

presentan representantes de la oligarquía rural ambiciosos de mantener el

poder, además de ofrecer la saga familiar de quienes poblaron Rio Grande do

Sul28. Pero aunque Erico descubre en las dos obras la corrupción y la

injusticia la trilogía termina en 1945, en tanto que incidente en Antares avanza

en la situación de Ia ciudad hasta 1970.

La novela tiene dos partes; en toda la acción está el conflicto de dos

familias por el poder. En Antares hay una ascensión continua de autoritarismo

que va desde el caudilismo hasta un régimen de opresión y de tortura.

En la segunda parte se desenvuelve la acción principal de la

trama: la fuerza opuesta a ese estado de cosas, que no está del lado de la

vida sino de la muerte implicados en ésta Ia desaparición de las

posibilidades de transformación de la sociedad. Incidentes en Antares,

según María da Glória Bordini potencializa su efecto chocante y su

esfuerzo crítico al establishment brasileño: pone la muerte a enseñar a la

vida pero la muestra como inocua pues los vivos no cambian. Si la vida es

movimiento, devenir, conciencia en expansión Antares, el microcosmos de

Brasil, no remite a nada sino a inmovilidad, estancamiento y ceguera:

muerte en vida de las élites y ei pueblo”29.

Queda sólo el acto de denuncia, reverberando en la plaza. Hay una

nota del autor al abrirse la novela, que está aclarando la inclusión de la ciudad

de Antares en la galería de las “ciudades invisibles”. “Neste romance — dice

Erico — as personagens e localidades imaginárias aparecen disfarçadas. Sob

28 Cfr. Márcia I, de Lima e Silva. “O processo criativo em Incidente em Antares: uma análise genética.” Perspectivas literarias desde el fin del Siglo. Buenos Aires: UBA, Sección de Literatura en Lenguas Extranjeras, 1997. p. 231-234. 29 María da Glória Bordini, prefacio a la 2ª edición de Incidente em Antares, São Paulo: Globo, 2002. p. 12-13.

32

nomes ficticios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade

existen ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros”.

La ciudad de Antares es el centro del dramático “Incidente” del 13 de

diciembre de 1963: la huelga de los sepultureros (coveiros). Éstos se niegan a

enterrar a los muertos ese día y estos insepultos vuelven a la vida y pasan a

intimar con amigos y parientes y a descubrir la podredumbre moral de

Antares. Erico Veríssimo reaiza en esta novela-río de más de 400 páginas un

desafío a la corrupción y a la hipocresía. Antares es como Eusapia de “Las

ciudades y los muertos”. Para que ei salto de ia vida a la muerte sea menos

brusco - declara Calvino — los habitantes han construido una copia idéntica

de su ciudad bajo tierra. “Dicen que en las dos ciudades gemelas no hay ya

modo de saber cuáles son los vivos y cuáles los muertos”30.

Las dificultades de la vida urbana se mostraron desde el siglo XIX en

la literatura brasileña. Ejemplo de ello en el siglo XX fueron, entre otros, Lima

Barreto, Fernando Sabino y Dalton Trevisan, en la generación de posguerra.

Pero nadie se compara con la aspereza y la acidez satírica de Rubem

Fonseca (1925). Las cincuenta y tantas historias de Fonseca demuestran, de

acuerdo con Malcolm Silverman31 “notable coherencia y se conjugan en un

vacío asociado a la vida urbana moderna”.

Las inter-relaciones están sintetizadas por Fábio Lucas: “Junta los

diversos segmentos dramáticos, los contrapone en conflictos, explora las

contradicciones. Casi nunca se resuelven en una función catártica sino que

producen una sensación de vacío y náusea”32. Rubem Fonseca satiriza, se diría con placer, los abusos de la

burguesía. En “Paseo nocturno” retrata a los ricos como locos y pinta su

consumismo con negras tintas. El protagonista es un asesino que no teme

30 Las ciudades invisibles, op. cit., p. 122 31 Véase Malcolm Silverman. Moderna Ficção Brasileira 2. Trad. João G. Linke. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 263 32 Fábio Lucas. Fronteiras imaginárias. Rio de Janeiro: Cátedra, 1971. p. 116

33

atropellar con su auto a los peatones. La hipocresía social está en el fondo de

la ciudad carioca y está evidente en todos sus cuentos calcados en los

abusos de la burguesía. Río de Janeiro aparece en su literatura como la

ciudad oculta que él revela si piedad por medio de un lenguaje a veces

macabro, otras brutal, y frecuentemente deshumanizado. Wilson Martins llegó

a considerarlo un renovador del cuento brasileño “en la totalidad de su

universo propio”33. EI universo es el que encierra la alienación del hombre de

la ciudad en la hipótesis de Fonseca.

En estos breves ejemplos sobre escritores brasileños la figura de

Clarice Llspector (1920-1977) representa un emblema pues ia presencia de la

ciudad de Río de Janeiro en sus múltiples aspectos, aparte de ser frecuente

en sus novelas y cuentos, domina en esta obra con claros trazos. De su

abundante producción seleccionamos A cidade sittiada (1949), obra que

mereció del crítico y escritor Assis Brasil vazios estudios.

Assis Brasil ha señalado una particularidad renovadora en la

narrativa de Clarice: concibe sus trabajos de dentro para afuera o mejor a

partir del personaje34.

De ese modo el mundo narrativo se encuentra conducido por el

personaje y así desaparece el narrador omnisciente. Y lo que más nos

interesa, Assis Brasil considera A cidade sittiada como libro de la escritora

mejor realizado.

En esta tercera novela presenta en Lucrécia Neves — la protagonista

— el reverso de sus dos heroínas anteriores Joana y Virginia. Como muy

acertadamente apunta Olga de Sá “el universo ficcional de Clarice es en ese

texto “una ciudad sitiada”35 porque el personaje es mirado a la distancia y el

lenguaje adquiere un tono crítico. Esta novela de espacio determinado

33 Wilson Martins. “A escada da glória”. O Estado de São Pauto, 19-3-1976 34 Luiz Antonio de Assis Brasil. Clarice Lispector: ensaio. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1969. p. 23. 35 Olga de Sá. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis, ed. Vozes, en coedición con PUC-São Paulo, 1933. p. 244

34

transcurre en São Geraldo por los años veinte. La transformación de barrio en

ciudad mata todos los símbolos e imágenes y con ellos los presagios y las

señales. Los caballos y la moza provinciana son todavía los últimos vestigios

de São Geraldo, que en breve cambiará de nombre36.

Hay un paralelismo entre el destino del barrio São Geraldo (RJ) y el

de la protagonista Lucrecia. “Tanto ella como el caballo representaban los

constructores que iniciaron la futura metrópolis; ambos podían servir de armas

para su escudo. La última función de La joven en su época era una función

arcaica que renace cada vez que se forma una villa. No se podría saber qué

reinado representaba ella Junto a la nueva colônia...”37. Hay una suerte de

parodia de visión, la incapacidad de ver constituyen el “estado de sitio” de São

Geraldo y el de la propia Lucrecia.

Curiosa la observación de Clarice en relación a la perspectiva, pues

Lucrecia ve las cosas como un caballo, separadas, porque éste tiene un ojo

de un lado y de otro de Ia cara. Y de allí la imagen de la protagonista como

emblema de la ciudad, como emblema del espíritu suburbano, de la

incapacidad de ver y la imposibilidad de tener una voz... “La realidad de

Lucrecia se disloca... a partir de la marcación espacial alegórica como bien

observó Benedito Nunes. Se trata del suburbio de São Geraldo en los años

20, del cual se procura un centro, un punto que parece estar siempre más allá

de él, metáfora de la realidad de Lucrecia... que se disloca para afuera de São

Geraldo y que al final parte en busca de su propio ser (o su retrato, guardado

por la madre)...38

La ciudad sittiada fue publicada en 1949. Las ciudades invisibles en

1972. Evidentemente puede haber un parentesco entre las dos obras. Ambas

tienen una forma estética autónoma. Ambas convergen en una experiencia

36 Op. cit., p. 245. 37 Veáse A cidade sitiada. 1. ed. Rio de Janeiro: A. Noite, 1949, Rio de Janeiro: Ed. Alfaro, p. 22. 38 Véase Olga de Sã, op. cit., p. 62.

35

estructural curiosa. En ambas hay una respuesta a una indagación vital: “es

una vuelta a los orígenes, una meditación sobre la condición del hombre”39.

La función narratológica se cumple en el paralelismo: ciudad-Lucrecia.

Conclusión

En el universo infinito de la literatura siempre se abren nuevos

caminos. A veces — como es nuestro caso — la meta propuesta no deja de

ser un “Jardín de senderos que se bifurcan” en medio de “ciudades invisibles”.

Algunos senderos han quedado sin explorar en esta conferencia: son

las ciudades que imaginaron excelsos escritores no sólo de la rica literatura

brasileña, sino especialmente de la Argentina ya que sólo presenté a dos.

Quedaron atrás Eduardo Mallea con La ciudad junto al río inmóvil, el gran

Leopoldo Marechal y su Adán de Buenos Ayres. Ernesto Sábato y El túnel,

Manuel Mújica Láinez con Misteriosa Buenos Aires, Ricardo Piglia y La ciudad

ausente y el último libro de Juan José Sebreli Buenos Aires, vida cotidiana y

alienación con su visión actual Buenos Aires, ciudad en crisis (2003).

He procurado explicar para mí misma y para ustedes, ese misterio de

las ciudades invisibles y la hondura del pensamiento de su autor.

Es notable cómo es misterio lo devela el propio Calvino quien en su

libro póstumo Seis propuestas para el próximo milenio (1985) deja esta suerte

de testamento: “Mi fe en el futuro de Ia literatura consiste en saber que hay

cosas que sólo la literatura con sus medios específicos puede dar”.

Referencias

39 Cfr. también Nádia Battella GotIib, “Um fio de voz: história de Clarice”. Clarice Lispector. A paixão segundo GH. (Ed. crítica, coord. Benedito Nunes). Florianópolis: Ed. da UFSC, 1988, p. 167-168.

36

AINSA, Fernando. “Los sueños de Borges y Calvino revisitados por Marco

PoIo”. Cuadernos Hispanoamericanos, n. 553/554, p. 105-119,jul./ago. 1996.

ALAZRAKI, Jaime. Tlön y Asterion: anverso y reverso de una epistemologia.

Nueva Narrativa Hispanoamericana, Buenos Alres, v.I, sept. 1971.

AMADO, Jorge. Gabriela, Clavo y Canela: Crónica de una ciudad del interior.

Buenos Aires: Losada, 1969.

ANDERSON IMBERT, Enrique. Historia de la literatura hispano-americana. 5.

ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1966. v. II.

ARISTÓTELES. Política (VII. 5, 1277). 2. ed. Trad. Julián Marías. Madrid:

Centro de Estudios Constitucionales, 1970.

ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Clarice Lispector: ensaio. Rio de Janeiro:

Organização Simões, 1969.

BARRENECHEA, Ana María. Génesis y circunstancias. In: Julio Cortázar.

Rayuela. (Ed. crítica). Madrid: Archivos, 1991.

BATTELLA GOTLIB, Nádia. Um fio de voz: história de Clarice. In: Clarice

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40

4 REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E AS

FRONTEIRAS PLATINAS _____________________

Moacyr Flores∗

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS

No imaginário sul-rio-grandense, durante a Guerra Civil dos Farrapos,

1835-45, a linha de fronteira não constituía uma barreira ou sinal de ruptura

entre dois povos, descendentes de portugueses ou descendentes de

espanhóis. Casamentos, revoluções e contrabando uniram as famílias em

ambos os lados da fronteira, mesclando idiomas, costumes e tradições. Não

poderia ser diferente com a República Rio-grandense, que perdeu o porto de

Rio Grande e necessitava um porto de entrada e saída não só de gêneros

alimentícios, mas também de armas e munições. Desde o início da formação

do Rio Grande do Sul, era mais fácil ir a Montevidéu em busca de

mercadorias, tratamento médico e de novidades, do que viajar até o distante

Rio de Janeiro. As relações da República Rio-Grandense com o espaço

externo platino realizaram-se principalmente em nível de proteção aos

exilados políticos e de comércio de gado em troca de armas e munições.

As fronteiras do Império do Brasil com a República da Argentina e com

a República Oriental do Uruguai, continuaram sendo as mesmas da República

Rio-grandense com os dois Estados platinos. Em nenhum momento os

republicanos rio-grandenses discutiram a questão de limites com o Uruguai,

pois estavam preocupados em ampliar seu domínio no território brasileiro.

∗ Professor Doutor de História do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. E-mail: [email protected]

41

Desde o início do século XIX surgiu uma malha de trilhas de carretas

e de tropas de mulas que partiam de São Borja, Alegrete, São Gabriel,

Encruzilhada, através da fronteira com Santana do Livramento, Bagé,

Jaguarão e Chuí, confluindo para Montevidéu.

Inicialmente os farroupilhas rio-grandenses conseguiram armas e

munições quando invadiram Porto Alegre e encontraram o Trem de Guerra

(Arsenal) intacto, apesar das ordens do presidente da província Antônio

Rodrigues Fernandes Braga de destruir o material bélico. Outras fontes de

aprovisionamento foram os barcos norte-americano e hamburguês que

aguardavam no porto a invasão de Porto Alegre, no dia 21 de setembro de

1835, para entregarem armas e munições aos rebeldes, que foram

encomendadas na Europa.

A República Oriental do Uruguai fornecia à República Rio-Grandense

homens, cavalos e armamento. Em agosto de 1836, a brigada do general

Antônio de Souza Neto foi reforçada com 130 homens vindos do outro lado da

fronteira, trazendo 800 cavalos gordos (CV 203)1.

Na mesma ocasião, Paulino da Fontoura passou o rio Uruguai com

mais de 300 entrerrianos e correntinos com ordem de reuni-los na força do

general Neto (CV 203).

O jornal O Artilheiro, de Porto Alegre, noticiou que os farroupilhas

recebiam armamento de Santa Catarina, contando com a conivência do

presidente catarinense Machado de Oliveira. Com o gado pilhado nas

estâncias dos legalistas, os rebeldes compravam material bélico na República

Oriental do Uruguai (O Artilheiro, 22.7.1837, p. 1).

Durante o governo de Frutuoso Rivera, em 1838, o porto de

Montevidéu conservou-se livre aos farrapos. O governo uruguaio permitia

inclusive a venda de tropas de gado e de couro, bem como o emprego de

1 CV significa Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e a numeração corresponde ao documento da referida coleção.

42

escravos de proprietários rio-grandenses nos saladeros nas proximidades de

Montevidéu. Em 25 de maio de 1838, o capitão Luís Schuz comprou, para a

República Rio-Grandense, 11 mil libras de pólvora, cornetas de música para a

tropa, engajando um médico francês e um oficial estrangeiro de artilharia. O

capitão Schuz esperou durante oito dias pela carta topográfica da barra do

Rio Grande, que não foi remetida de Buenos Aires. Só restou ao capitão

Schuz subir o rio Uruguai de barco até o Passo de Santana, atual cidade de

Uruguaiana, onde era esperado por carretas carregadas de couro para o

pagamento dos artigos comprados ao capitão do barco (CV 2827).

O comércio envolvia também o ministro da Guerra. Em 17 de junho

de 1838, o ministro republicano José da Silva Brandão ordenou ao cel. João

Antônio da Silveira que arrebanhasse couros do Estado e mesmo de

particulares, levando-os para o Passo de Santana, providenciando o

transporte e proteção da pólvora. O chefe de polícia de Alegrete deveria

auxiliar o cel. João Antônio (CV 2836).

Havia ao longo do rio Uruguai três pontos de entrada no Rio Grande

do Sul: os Passos de Santana, Itaqui e São Borja. Referindo ao passo de São

Borja, Nicolau Dreys escreveu:

Para essa parte que se dirigem todas as pessoas que querem embarcar-se nesse rio ou atravessá-lo a fim de passarem para o país de Entre Rios ou dali seguirem para o Paraguai (Dreys, 1990, p. 72).

Em abril de 1839, o vice-presidente da República Riograndense, José

Mariano de Matos, foi enviado a Montevidéu para comprar espadas e

clavinas, remetidas em carretas acompanhadas pelo ten. Pedro Alves. O cel.

João Antônio da Silveira enviou para a República do Uruguai jornais com a

notícia sobre o movimento republicano de Lajes, para convencer as

autoridades e comerciantes de Montevidéu que a República Rio-Grandense

estava aumentando seu espaço territorial (CV 2932).

43

Devido à situação de guerra, nem sempre os comerciantes de

Montevidéu entregavam a mercadoria que fora encomendada, trocando-a por

outra. O cel. João Antônio da Silveira requisitou 100 espadas e 50 clavinas

para a cavalaria republicana, só então descobriu que vieram de Montevidéu

armas de infantaria e 50 espadas, remetidas em uma carreta. O ministro

da Guerra avisou ao cel. Silveira que havia lanças para suprir a falta de

clavinas (CV 2938).

Mas não eram só os comerciantes que não cumpriam os acordos

comerciais. O vice-presidente da República Rio Grandense, José Mariano de

Matos, teve que ir a Montevidéu, em janeiro de 1839, a fim de embargar a

tropa de gado destinada ao comerciante Antônio Casas, para entregá-la ao

português Costa Guimarães, procurador do legalista marechal Sebastião

Barreto Pereira Pinto. A tropa chegou sem formalidades, parecendo tropa de

gado roubada, sem que as autoridades uruguaias a embargassem. Mariano

de Matos informou que havia um clamor geral do comércio de Montevidéu

contra o governo da República Rio-grandense por falta de comprimento de

seus tratos em negócios.

Em 6.3.1839 Dom Frutuoso Rivera estabeleceu um acordo por escrito

com D. Antônio Casas, com o aval do vice-presidente José Mariano de Matos,

para que o comerciante entregasse em 15 de abril do mesmo ano, mil

novilhos de quatro anos, na fronteira com a República do Uruguai, pelo preço

de quatro pesos e dois reales por cabeça (CV 298).

A República devia 1.000 pesos ao comerciante Gaspar Russo, que

tentou negociar o título com o legalista Pedro Gonçalves Chaves, mas o gen.

Frutuoso Rivera meteu-se no negócio e entregou o título a José Mariano de

Matos. Relata ainda que o argentino Marins, com contrato de 60 mil pesos

com os republicanos, levou gêneros no valor de 17.500 pesos, mas teve de

retornar depois de dois meses, com prejuízo de dois mil pesos. Mariano de

Matos advertiu na carta que:

44

Seria melhor que não entrassem para o Trem tantos gêneros de luxo e nos limitássemos aos indispensáveis ao Exército (CV 2922).

Os líderes da República estavam aproveitando os negócios do Estado

para abastecerem suas residências. No mesmo momento, os monarquistas

cel. Medeiros, José Rodrigues, Olivério Ortiz, cel. Bonifácio Izás Canderón,

Felipe Néri e o ten. cel. Pereira encontravam-se em Montevidéu com dinheiro

para realizarem negócios políticos com o presidente Frutuoso Rivera. Mariano

de Matos denuncia que a conduta do presidente Rivera era bastante

equívoca, alimentando a um e outro partido, mas a quem atraiçoaria,

republicanos ou imperiais? Mariano de Matos refere-se que uma coisa é

certa: o presidente uruguaio adorava ouro (CV 2922).

Na luta com os republicanos, os imperiais também buscavam

recursos no espaço exterior. O ofício do cel. Bonifácio Izás Calderón ao

presidente provincial Antônio Elzeário de Miranda e Brito, em 26 de junho de

1939, dá uma idéia das relações dúbias de Frutuoso Rivera, que ao mesmo

tempo tratava com os republicanos e imperiais em busca de vantagens.

Durante nove meses o cel. Calderón esteve na República do Uruguai

refazendo a cavalhada, recolhendo desertores, comprando armas, e só em 7

de março de 1839 atravessou o rio Uruguai na altura do arroio Mocoretán,

onde encontrou o governador da província de Corrientes, que lhe franqueou

todos os tipos de auxílio (CV 2922).

Calderón entrou na província do Rio Grande do Sul pelo passo de

Santana do Uruguai, seguiu para Etaqui e São Borja, sempre reunindo

emigrados. Enviou partidas sob o comando de Chara, Catalã e Bugreiro, que

foram batidas pelos rebeldes no passo de Santa Maria do Uruguai, a 20 de

abril de 1839. Os legalistas se precipitaram para atravessar o rio Uruguai,

abandonando armas, cavalos e vestuários nas mãos dos rebeldes que

perseguiram os imperiais na outra margem. Os imperiais foram salvos com a

aproximação do major João André de Almeida, que protegeu os fugitivos até

45

repassarem no passo de São Borja. Calderón fez grandes despesas para

suprir os refugiados de cavalos, lombilhos, caronas, cinchas, estribos, xergas,

freios, fumo, sabão, erva-mate, baeta para ponchos e chiripás, algodão para

camisas e ceroulas. Entregou também algum dinheiro aos refugiados.

Restava agora armar a tropa, para isto Calderón atravessou o rio

Uruguai, indo a uma ferraria no Povo de La Cruz, onde comprou ferro e

tesouras de tosquiar para fazer ponta de lanças. Mas o governo entrerriano

mandou uma tropa desarmar os soldados imperiais, obrigando Calderón a

abandonar a ferraria e comprar facas para fixar nas pontas das lanças.

Patrulhas farrapas vigiavam o rio Uruguai, impedindo a passagem dos

soldados imperiais para o território rio-grandense. Enquanto esteve no Povo

de La Cruz, Calderón foi auxiliado por vários emigrados brasileiros, com

dinheiro, cavalos e roupas. O civil Belisário dos Santos Loureiro atravessou a

tropa legalista por um vau no rio Uruguai, junto ao rio Butuí, numa região

cerrada por mato, sendo necessário abrir uma picada para escapar da

perseguição de tropa farrapa comandada por José Ribeiro (CV 3112).

Por esse ofício nota-se que existiam brasileiros legalistas emigrados no

Povo de La Cruz e em Itapua, no Paraguai, que auxiliavam e serviam de

intermediários com as autoridades locais. Os comerciantes de Itapua fizeram

subscrição para a compra de lanças e gado de munício para mais de 50

extraviados da tropa do major João Guilherme Catalán, mas a falta de

suprimentos obrigou-os a procurar se reunir com Calderón que também estava

passando necessidades e sem cavalhada. Buscando cavalos para invernar e

tentando comprar armas, Calderón atravessou o Quaraí e acampou no rincão de

Sopas, pedindo auxílio ao encarregado dos Negócios do Império, em

Montevidéu. Com o auxílio recebido, Calderón seguiu para a vila de S. Frutuoso,

onde reuniu emigrados e amigos, comprou 200 espadas e 200 pistolas, negócio

intermediado pelo dúbio presidente Frutuoso Rivera (CV 3108).

46

Fazendo jogo duplo, Frutuoso Rivera consentiu que as forças de

Calderón permanecessem em S. Frutuoso, no território uruguaio. Os

legalistas encontraram dificuldades para comprar cavalos e mulas por causa

da luta que os uruguaios sustentavam com a província argentina de Entre-

Rios. Os comerciantes só aceitavam dinheiro à vista. Em junho de 1839,

Calderón distribuiu a seus soldados 100 clavinas, 100 espadas, 100 boldriés

de sola, 100 cananas de sola, tudo novo, e 200 cavalos reiúnos gordos que

recebeu de Frutuoso Rivera. Conseguiu ainda mais 200 lanças que cidadãos

legalistas emigrados mandaram fazer e deram gratuitamente, exceto os cabos

e bandeirolas. Calderón encontrou alguns desertores do Exército imperial e

como não podia prendê-los em território estrangeiro, tratou de incorporá-los à

tropa (CV 3111).

Na exploração das informações fragmentadas sobre as relações com

o espaço externo da República Rio-grandense, encontrei a entrada, em 21 de

fevereiro de 1842, de um tenente, um alferes e três soldados com trinta e

tantos cavalos vindos da República do Uruguai, entrando pelo Pai Passo,

prontos para prestar serviço à República Rio-grandense, que foram

imediatamente incorporados às tropas de João Antônio da Silveira (CV 4354).

Do espaço externo também vieram ofertas de mudanças, com valores

da civilização francesa, por ser a nação mais polida, a mais franca, a mais

desinteressada e amiga da liberdade: o negociador ocultou-se com o nome de

Camilo d’Erval, propondo um plano mirabolante de trazer mercenários

franceses em 1841 ou 1842, pois o documento não está datado (CV 4307).

É interessante a introdução do referido documento, pela análise da

situação da República Rio-grandense que se empenhava em buscar sua

independência e liberdade. Conforme o documento, há três anos a República

declinava, com as finanças em triste estado, sem crédito, com Exército

menor, com recursos de cavalos e de objetos cada vez mais difíceis de

conseguir e com a província se despovoando. Só o comércio de Montevidéu

47

enriquecia. O tempo era aliado do Brasil, que iria cada vez mais reduzindo o

território da República Rio-grandense. O Brasil não podia conceder a

independência porque outras províncias brasileiras também tentariam se

desmembrar do Império.

As propostas de Camilo d’Erval são capciosas: pretendia engajar 200

artilheiros e 1.800 fuzileiros franceses que já lutaram em Argel. O governo

francês facilitaria a formação destes corpos e também forneceria armas e

munição, tudo dentro do maior sigilo porque a França não pretendia entrar em

guerra com o Brasil. O plano de ataque era singelo: os franceses tomariam

Rio Grande, São José do Norte e Porto Alegre, enquanto as tropas de Bento

Gonçalves da Silva desviariam o Exército imperial para a zona da Campanha.

Depois a cavalaria rio-grandense e as tropas francesas invadiriam Santa

Catarina, proclamando novamente uma república.

Em troca, o negociador Camilo seria o comandante das tropas

francesas e o encarregado de plenos poderes para negociações. Por cinco

anos os navios franceses não pagariam taxas de alfândega e por 15 anos a

França seria mais favorecida e por último, queria a fabulosa quantia de

42.000 patacões, paga antecipadamente, querendo ainda um prazo

satisfatório para o restante. Os soldados seriam mais tarde transformados em

industriosos colonos.

Como não podia dar garantias, convidava o filho do presidente Bento

Gonçalves da Silva para acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, onde obteria

passaporte para a França. O negociador comparava-se a La Fayette lutando

com seus franceses na revolução de independência dos Estados Unidos, a

Bento Gonçalves da Silva e a George Washington (CV 4307).

O esperto negociador não dava nenhuma garantia, possivelmente

sumiria no Rio de Janeiro, denunciando o filho do presidente republicano às

autoridades imperiais. Seria mais fácil sair por Montevidéu, onde os

48

republicanos tinham livre trânsito. Na correspondência de Bento Gonçalves da

Silva não há referências a esta ingênua proposta.

Em janeiro de 1843 os emigrados correntinos e orientais foram

reunidos em Inhandui sob a tutela de Jacinto Guedes da Luz. Os imperiais

apoiavam os partidários de Manuel Oribe, que hostilizavam os republicanos

rio-grandenses.

Em abril de 1843, o ministro da Guerra da República Rio-grandense

Luís José Ribeiro Barreto ordenava que os emigrados orientais com conduta

irregular, em Bagé, deveriam ser chamados à ordem pelo chefe de polícia

pois, embora o governo republicano prestasse benigna hospitalidade aos

asilados estrangeiros não permitia que as leis fossem menosprezadas. O ten.-

cel. Manuel Lucas de Oliveira prestaria auxílio para expulsar do país àqueles

que praticavam crimes (CV 2569).

Em maio de 1843, o ministro Barreto ordenou ao ten.-cel. Manuel

Lucas de Oliveira que comprasse os cavalos dos emigrados orientais, de que

tanto carecia o Exército republicano (CV 2574).

O governador e capitão-general da província de Corrientes, Rafael

Atienza, reclamou contra o asilo dado às forças de Frutuoso Rivera, um

anarquista e inimigo da federação Argentina, que se refugiou em Alegrete,

junto ao seu compadre e amigo Bento Manuel Ribeiro. O protesto foi dirigido

ao cel. João Antônio da Silva, comandante da fronteira República

Riograndense, sediada em Alegrete (CV 2394).

Os desertores imperiais também buscavam refúgio no território

uruguaio. Em 28 de outubro de 1838, o capitão da Guarda Nacional Florisbelo

Antônio de Ávila comunicou a João da Silva Tavares que o sargento Serafim

conduzia 170 cavalos reiúnos do Uruguai e que também enviou um cabo para

buscar os desertores (CV 2397 e CV 2398).

Em 28.1.1841 o ministro da Fazenda Domingos José de Almeida

enviou instruções ao comerciante lrineu Rieth de la Rocha para que procurasse

49

o gado de Caverá e não desprezasse o negócio de Tacuarembó, no Uruguai.

Em Montevidéu deveria procurar o presidente Frutuoso Rivera para que este

entregasse “o restante da importância da tropa embargada” (CV 1365).

O governo rio-grandense preparou uma tropa de gado para abastecer

os saladeiros e fazendas de criar no Uruguai, com remessa de rebanhos para

Montevidéu e Paissandu, sob as ordens de João da Cunha Peçanha, parente

do ministro Domingos José de Almeida. O ministro republicano, em

28.2.1841, rogou proteção ao presidente Frutuoso Rivera para que o gado

pudesse passar por Tacuarembó, Quaraí e Santana do Livramento. O gado

fora confiscado de fazendas de dissidentes (CV 1554).

A República Rio-Grandense confiscou fazendas, gado e escravos dos

imperiais, chamados de dissidentes, arrendando as propriedades a

republicanos. O gado deveria ser levado a Joaquim Barcelos, cunhado do

ministro Almeida, que aguardava o rebanho em Montevidéu. O dinheiro da

venda dos animais e mais a importância tomada emprestada aos

comerciantes de Montevidéu José Victorica e Joaquim Francisco Muñoz,

estavam destinados à compra de panos próprios para fardamentos e

ponches, baeta, algodão para camisas e ceroulas, brins para calças, belbutina

para meias, retrós, linhas e botões. O ministro instruía que deveria ser dada

ao seu cunhado Peçanha a comissão de 12% em todas as compras

realizadas no comércio de Montevidéu (CV 1555).

Como se vê, era uma grande negociata que envolvia o presidente

Rivera e os cunhados do ministro Almeida com os comerciantes

de Montevidéu, sem que houvesse pagamento de imposto à República

Rio-Grandense.

Quando o Estado Oriental do Uruguai pretendeu libertar os escravos,

em março de 1841, o ministro Almeida mandou buscar seus escravos que

estavam alugados a José Victorica, em Montevidéu (CV 1571 a 1573).

50

O ministro Almeida manteve transações comerciais com Montevidéu,

que muitas vezes incluía material bélico. Em 15.3.1841, Almeida reclamou

que ainda não lhe foram entregues mercadorias compradas em Montevidéu,

em 1839: duas dúzias de meias de lã preta, quatro gravatas de seda, duas

escovas de dentes, quatro potes de rapé, seis varas de renda fina, um par de

meias de seda e um par de luvas de seda (CV 1581).

Também o mercenário José Garibaldi acertou as contas com a

República Rio-Grandense quando se retirou da luta e seguiu para

Montevidéu, ganhando como indenização, por ter sido contratado como

corsário, a tropa de mil cabeças de gado. Almeida avisa ao presidente

Frutuoso Rivera que José Garibaldi seguiu com uma tropa para os saladeiros

uruguaios (CV 1598).

Frutuoso Rivera continuou remetendo gêneros em carretas até a

fronteira com a República Rio-Grandense, durante o ano de 1841 (CV

1817 e 2011).

Mas não era só gado que passava para o outro lado da fronteira,

também desertores farroupilhas e imperiais buscavam abrigo em território

uruguaio. Em 21.10.1841, Domingos José de Almeida solicitou ao presidente

Frutuoso Rivera que remetesse 100 desertores da infantaria republicana que

se refugiaram em Cerro Largo, conforme o artigo 4° da Convenção secreta

celebrada em 5 de julho daquele ano.

Durante a Revolução Farroupilha, 1835-45, os revolucionários rio-

grandenses organizaram a República e realizaram tratados internacionais, com a

República do Uruguai e com a província de Corrientes, da República Argentina.

Em 21 de agosto de 1838, a República Rio-Grandense assinou o

tratado de Canguê com Dom Frutuoso Rivera, reconhecendo-o como único

presidente da República Oriental do Uruguai e este reconhecia a

independência da República proclamada pelo general Antônio de Souza Neto,

em 11 de setembro de 1836. No Tratado, Rivera se comprometia a expulsar

51

do Uruguai as tropas imperiais, entregando suas armas e munições aos rio-

grandenses. Os entendimentos sobre as linhas demarcatórias de fronteira

foram postergados para o futuro. Outro item importante é a concessão de

anistia aos uruguaios que lutavam no exército rio-grandense e também aos

rio-grandenses que estavam no exército oriental. A convenção nunca foi

executada, pois a finalidade principal do Tratado era reconhecer a presidência

de Frutuoso Rivera e aos rio-grandenses interessava o caminho livre até o

porto de Montevidéu. O governo da República Rio-Grandense comprometia-

se também a entregar três mil cavalos em troca do auxílio de tropas militares

que seriam enviadas ao caudilho oriental. Rivera fez jogo duplo, pois recebia

dinheiro do Império do Brasil e fingia apoiar os republicanos rio-grandenses

(Flores, 1996, p. 81-82).

Em 28 de dezembro de 1841, o ministro Domingos José de Almeida,

representando a República Rio-grandense, e José Luís de Bustamonte,

representante do Uruguai, assinaram Tratado S. Frutuoso, formando uma

aliança para invadir a província de Entre-Rios. A República Rio-Grandense

forneceria um contingente de 500 homens de infantaria e 200 de cavalaria

para depor o presidente de Entre-Rios, retornando ao território rio-

grandense após a operação militar. Frutuoso Rivera deveria fornecer mil

cavalos aos rio-grandenses.

Rivera não enviou os cavalos e os rio-grandenses, desconfiando que

o presidente uruguaio pretendia estabelecer o Quadrilátero, formado pelo

Uruguai, Rio Grande do Sul, Corrientes e Entre-Rios, sonhado por José

Artigas, não prepararam a tropa invasora. Desta maneira a Convenção de

São Frutuoso nunca foi executada (Flores, 1996, p. 82).

O ministro José Pinheiro de Ulhoa Cintra, em 1842, foi

credenciado pela República Rio-Grandense como ministro plenipotenciário

para celebrar tratados com as províncias de Entre-Rios, Santa Fé e com a

República do Paraguai.

52

Em 29 de janeiro de 1842, José Pinheiro de Ulhoa Cintra, delegado

da República Rio-Grandense, assinou com Manoel Leivas, representante do

general Pedro Ferre, presidente de Corrientes que lutava contra o ditador

Juan Manoel de Rosas, a Convenção de Corrientes, na qual tratavam de

amizade de comércio. Estabeleceram também repressão a qualquer

intromissão clandestina nas propriedades, garantindo bens e pessoas rio-

grandenses, residentes em Corrientes. No Item 8° se comprometeram a

manter perfeita neutralidade nas lutas políticas regionais. Combinaram

também o desarmamento de grupos que invadissem ambos os territórios e

que fossem contrários às causas que defendiam, comprometendo-se a

estipularem uma aliança ofensiva e defensiva contra os governos

perturbadores da paz e da tranqüilidade dos países contratantes. O governo

de Corrientes se comprometia a empregar sua influência para que os

governos de Entre-Rios e Santa Fé celebrassem igual convenção com os rio-

grandenses e que tudo faria para que a República Rio-Grandense fosse

reconhecida pelo governo argentino, em seguida ao triunfo contra o ditador

Rosas, prestando os correntinos aos farroupilhas “todos os auxílios e

elementos de guerra necessários para terminar a luta contra o Império do

Brasil” (Flores, 1996, p. 83).

Quando a Guerra Civil dos Farrapos já declinava, José Maria Vida,

representante de Frutuoso Rivera, e Daniel Gomes de Freitas, delegado

da República Rio-Grandense, assinaram, em 6 de março de 1844, uma

convenção nas pontas do rio Quaraí, com a finalidade de terminar com “as

dissensões desastrosas que afligiam ambos os países”. As operações

militares deveriam se limitar às guerras de recurso e só em caso extremo

se reuniriam às forças convenientes de ambos os exércitos. Os delegados

cogitaram da necessidade de entrarem em entendimento com o governo

de Corrientes no sentido de celebrarem uma convenção recíproca.

Estipularam que a paz com o inimigo dos contratantes, isto é, o Império do

53

Brasil, não poderia ser feita sem o consentimento e aprovação de ambos

os governos. O caudilho Frutuoso Rivera tentava ser o mediador da paz

entre a República Rio-Grandense e o Império. No entanto, o barão de

Caxias não aceitou a mediação de Rivera, tratando diretamente com os

revolucionários os termos de concessão de anistia para pacificar a

província (Flores, 1996, p. 84).

Em nenhum de seus tratados a República Rio-Grandense cogitou

em formar o sonhado quadrilátero de José Artigas, um novo país com os

territórios do Uruguai, Rio Grande do Sul, realizaram-se apenas

convenções de auxílio mútuo e de garantia para que o porto de

Montevidéu continuasse a abastecer os rio-grandenses com armas,

munições, roupas e alimentos.

As relações do caudilho Dom Frutuoso Rivera com os revolucionários

republicanos eram facilitadas pelo fato dele ter sido oficial do exército de

Lecór, durante a ocupação de Montevidéu, e compadre do general Bento

Manoel Ribeiro, que ora lutou ao lado dos republicanos, ora do lado dos

imperiais. No imaginário popular firmou-se o ideal de pequena pátria, livre e

independente. Ainda hoje há pessoas que lembram o separatismo do Rio

Grande do Sul como uma forma de chamar a atenção política.

O processo histórico marca profundamente a integração da região

denominada fronteira, local de intercâmbio comercial e de refúgio aos

perseguidos políticos.

Fontes

Documentos da Coleção Alfredo Varela (CV) do Arquivo Histórico do Rio

Grande do Sul.

O Artilheiro, Jornal de Porto Alegre, coleção do Museu de Comunicação

Social Hipólito José da Costa.

54

Referências

DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro

do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão/PUCRS, 1990.

FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado

Aberto, 1996.

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre:

ERUS, 1987.

55

5 BRASIL E URUGUAI:

A “FRONTEIRA VIVA” COMO ESTOPIM PARA A ECLOSÃO DA

GUERRA DO PARAGUAI ______________________

Carla Ferrer∗

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS

A principio, a defesa do território conquistado ao índio e ao espanhol invasor foi sua flama. Depois na grande Revolução condensaram-se todas as suas ânsias libertárias. Mais tarde, nos campos de Lomas Valentinas, em Humaitá e no Passo da Pátria, o gaúcho sopitou as suas dissensões com o Império do Brasil para servir à unidade nacional representada nas espadas de Caxias e Osório.

JOSÉ SALGADO MARTINS

Com o intuito de apontar os antecedentes da Guerra do Paraguai,

apresentaremos neste artigo, uma breve discussão a respeito das relações

fronteiriças entre o Brasil e o Uruguai e suas tensas relações diplomáticas, na

segunda metade do século XIX.

Ao longo do século XIX, as relações entre o Brasil e os Estados do

Prata foram marcadas por profundos momentos de tensão, principalmente

com o Estado Oriental do Uruguai, que se tornou o mais delicado e

perigoso problema de nossa política externa1, naquele período. Portanto,

a política internacional do Brasil, naquela época vigente, primava em

∗ Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do CIPEL, Círculo de Pesquisas Literárias. E-mali: [email protected] 1 LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes da guerra contra o Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana. 1953. p. 139.

56

manter a independência do Uruguai, bem como, manter sua fronteira

sossegada e segura.

Segundo André Lamas, agente diplomático uruguaio, todos os

estadistas brasileiros tinham o interesse da pacificação do Estado Oriental2.

Entretanto, esta suposta pacificação almejada pelo Império não se

concretizou, devido as instabilidades enraizadas na “fronteira viva”3 entre o

Brasil e o Uruguai, cujas relações intrínsecas de cunho econômico e político

envolviam a elite agrária do sul do Brasil4.

Sendo assim, as relações fronteiriças entre o Rio Grande do Sul e o

Estado Oriental do Uruguai tinham suas peculiaridades, devido a grande

aproximação destes povos. Tal aproximação facilitava as relações políticas e

econômicas dos grandes estancieiros sul-rio-grandenses, que do outro lado

da fronteira, possuíam grandes propriedades, onde “mantinham campos de

criação de engorda de gado. Desde o Chuy ao Cuareím, com cerca de 428

estâncias, que abrangiam a superfície de 1.728 léguas quadradas, o

equivalente a 30% do território do Uruguai”5.

Na segunda metade do século XIX, a população brasileira neste

Estado Oriental, representava segundo Moniz Bandeira, cerca de 40 mil

rio-grandenses, ou seja, o equivalente a 20% do total da população do

Estado Oriental. Desta forma, podemos compreender as relações

intrínsecas existentes entre os grandes proprietários de terras brasileiros e

2 Jornal do Comércio, 22 set. 1852. 3 Segundo a tese de Backheuser, Fronteira viva, em essência, é uma região, através da qual, mais dia menos dia, surgem, ou se agravam conflitos internacionais, políticos, ou de ordem fiscal administrativa, ensejando demonstrações de força militar. 4 As relações na fronteira viva da Província sul-rio-grandense, sempre estiveram presentes, desde sua formação. Discorre do período da doação das Sesmarias, fato em que passaram a ser formadas grandes estâncias, nas quais estas lutavam para manter sua principal fonte econômica, o gado. Em certos momentos, estes, pastavam do lado do Rio Grande e em outros momentos, do lado dos campos gordos” da Cisplatina. Desta forma, a luta pelo gado e pelas pastagens ocorre desde a formação desta Província sul-rio-grandense. 5 BANDEIRA. L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata – Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. São Paulo; Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasilia, 1995. p. 114

57

os uruguaios, em relação aos aspectos políticos e econômicos, que

envolviam o Estado Oriental.

Podemos inferir, assim, que realmente existia uma “fronteira viva”

entre estes dois países, coexistindo uma troca de relações e experiências

sociais, políticas, econômicas e militares. Devido esta inter-relação

proporcionada pelo convívio intenso na fronteira sul do País entre rio-

grandenses e uruguaios, grande parte dos distúrbios políticos no Estado

Oriental envolviam diretamente a elite sul-rio-grandense, possuidora de

fortunas neste Estado supramencionado.

Após analisarmos esta ligação fronteiriça, podemos compreender a

participação dos rio-grandenses nos conflitos armados existentes no Uruguai,

entre os Partidos Blanco e Colorado6, pois estes brasileiros necessitavam

garantir a segurança de suas propriedades e interesses particulares,

localizados naquele país.

A posição do governo central brasileiro em relação a este

envolvimento dos rio-grandenses na política uruguaia era negativa, pois o

Império não apoiava a atitude militar de seus compatriotas em movimentos

armados nos países do Prata. Dentro desta perspectiva, a política imperial

pretendia manter a paz na região platina e não se envolver em problemas

diplomáticos e militares contra países daquela região.

Em 1863, ao explodir a revolução chefiada por Venâncio Flores,

adepto ao Partido Colorado uruguaio, o governo brasileiro procurou manter

sua política de neutralidade. Neste sentido, o império recomendou às

autoridades do Rio Grande do Sul as devidas condutas, que deveriam ser

acatadas pelos rio-grandenses, a fim de evitar comprometimentos da política

imperial, perante ao Estado Oriental do Uruguai. 6 Segundo Alberto Zun Felde, o Partido Blanco era arraigado no meio rural e fiel à tradição hispânica, o qual encarava a defesa dos interesses americanos e orientais. O Partido Colorado localizava-se, principalmente, na cidade de Montevidéo e oferecia a imagem mais urbanizada. Desta forma, este Partido aceitava as correntes liberais européias e se identificava com os imigrantes.

58

Conforme o Relatório da Secretária de Estrangeiros de 1863,

podemos entender estas condutas imperiais:

Nenhuma proteção e auxílio devia prestar-se à causa da rebelião. As forças rebeldes que se asilassem na Província, deviam ser colocadas em uma posição inteiramente inofensiva. As autoridades que deslizassem de seus deveres, não guardando ou não fazendo respeitar a mais perfeita e absoluta neutralidade por parte do Império, deviam ser severamente punidas7.

Como podemos observar era obrigação do Presidente da Província

do Rio Grande do Sul procurar persuadir seus concidadãos a ignorar

completamente à luta do outro lado da fronteira, para, segundo o Império,

“pouparem a si e ao seu país perigos e dificuldades muito graves”8.

Este mandato imperial ao Presidente de Província do Rio Grande

do Sul era insensato, não havendo nenhuma condição de ser cumprido,

todavia, o Rio de Janeiro ou “ignorava” a situação da fronteira, onde

grandes estancieiros mantinham boa parte de sua economia, ou

subestimava a ação guerreira que estes brasileiros do sul do País tinham

em suas raízes. Enfim todo o cavalheirismo e melindre do Brasil em

relação ao Estado Oriental não foram correspondidos, pois os brasileiros

residentes no Uruguai, assim como, suas estâncias foram extremamente

desrespeitadas pelo governo Blanco, no Uruguai.

O partido Blanco passou a não cumprir os contratos internacionais,

negando-se a renovar com o Brasil o tratado de Comércio e Navegação,

passando assim, a instituir o imposto sobre as exportações de gado em pé

para o Rio Grande do Sul. Desta forma, a política uruguaia entrou em

confronto direto com os interesses dos estancieiros, os quais utilizavam

escravos como peões, em suas propriedades, em ambos os lados da

fronteira. Estes peões eram os responsáveis pelo “transporte” das reses

7 Relatório da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863. 8 DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919.

59

criadas no Uruguai para as charqueadas no Brasil, que consumiam cerca de

75% destas reses vindas do Estado Oriental9.

Ao governo imperial chegavam, também, diversas reclamações em

relação às violências e arbitrariedades sofridas por brasileiros, residentes no

Uruguai ou em linhas de fronteira com este Estado. Estas barbáries eram

praticadas por particulares, autoridades civis e militares uruguaios, resultantes

da agitação política e social. Devido a estas instabilidades ocorreram diversas

atrocidades como: assassinatos, roubos de gado vacum e cavalar nas

propriedades particulares dos rio-grandenses e ainda, o recrutamento forçado

de peões brasileiros para o serviço militar uruguaio.

Estes supramencionados acontecimentos estavam agitando a

sociedade brasileira e fomentando as discussões parlamentares. Sendo

assim, o Sr. Luís Alves Leite de Oliveira Bello e Felippe B. de Oliveira Nery,

indignados com a situação sofrida pelos brasileiros nesta fronteira, expunham

seus pensamentos em relação aos crimes, que ocorriam contra seus

compatriotas e suas respectivas impunidades, os quais eram corriqueiros. O

Sr. Nery em um de seus discursos, exige justiça:

Abusos dessa ordem, meus Srs., a intervenção indébita desses agentes, a perturbação que eles têm levado ao seio de muitas famílias, a incerteza que fazem pairar sobre grande número de interesses brasileiros, necessitam de uma repressão enérgica10.

Foram realizados diversos pedidos em relação a condutas enérgicas

contra o Uruguai, pois a situação agravava-se e tornava-se mais tensa

naquela região. A opinião pública rio-grandense estava excitada e desejosa

por uma ação do governo, que não se manifestava e levava a situação da

fronteira com o Estado uruguaio em “Banho-Maria”.

9 BANDEIRA, L. Moniz. Op. cit, 1995. p. 166-167. 10 BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira e NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de 09.11.1859. In: Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

60

A presença do farroupilha General Antônio de Souza Neto, na Corte

mudou esta situação aos olhos do Império. O General Neto foi ao Rio de

Janeiro, com o intuito de falar em nome de quarenta mil brasileiros, que

estavam sendo perseguidos pelos uruguaios e pedir justiça às impunidades,

as quais estavam afetando a vida de seus compatriotas, que viviam no Estado

Oriental. Contudo, a presença de um General farroupilha, no Rio de Janeiro,

causou grande impacto, pois o governo central passou a temer que os

estancieiros rio-grandenses afeiçoados aos Colorados e sentindo-se

desamparados pelo Império pudessem tomar a iniciativa de resolver a

situação supramencionada através da força, sem o consentimento do governo

Central11, e deste modo, reavivar os sentimentos separatistas, que eram

lembranças, ainda, muito presentes no cotidiano dos rio-grandenses.

Segundo Fernando Luiz Osório, “A fronteira do Rio Grande, não é só

fronteira da província, é fronteira do Império. A tranqüilidade e a ordem na

província, importam a ordem, a tranqüilidade da Nação”12.

Tendo em vista, a delicada situação na fronteira rio-grandense, o

Governo imperial resolveu enviar à República do Uruguai, uma missão

especial, em 6 de maio de 1864, comandada pelo Conselheiro José Antônio

Saraiva, que tinha por objetivo resolver diplomaticamente todas as

irregularidades pertinentes, que ofendiam e prejudicavam os brasileiros, “sem

embargo da urgência das circunstâncias e ainda do estado de excitação do

espírito público brasileiro, o governo imperial preferia tentar um último apelo

aos meios amigáveis, na confiança de que surtiria efeito em ambos os

países”13. Expedindo o seguinte conjunto de exigências a serem cumpridas,

Governo de Atanásio Aguirre, do Partido Blanco:

11 DORATIOTO, Francisco, op. cit, 2002. p. 51 12 Fernando Luís Osório. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia Legislativa da Província do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura, 2ª Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, códice AL4.004. 13 Aviso contendo as instruções da Missão Especial confiada em 1864 ao Conselheiro Saraiva. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. 59, tomo I, 1896.

61

1º O devido castigo, senão a todos, ao menos daqueles dos criminosos reconhecidos que passeiam impunes, ocupando alguns deles postos no exército oriental, ou excedendo cargos civis do estado.

2° A imediata destituídos e responsabilizados os agentes de polícia, que têm abusado da autoridade, de que se acham revestidos.

3° A indenização contentemente a propriedade, que sob qualquer pretexto tenha sido extorquida aos brasileiros, pelas autoridades militares ou civis da república.

4° Que fossem postos em plena liberdade todos os brasileiros, que houveram sido constrangidos ao serviço das armas da República14.

Entretanto, após a apresentação das exigências do Império ao

Uruguai e seu não-comprometimento imediato, Saraiva apresentou no dia 6

de agosto de 1864, o Ultimatum, estipulando o prazo de seis dias, para o

cumprimento de todas as referidas exigências brasileiras. O Conselheiro

esclareceu que o não-cumprimento das exigências preestabelecidas

acarretariam na imposição da força militar em território oriental, para se fazer

cumprir todas as determinações exigidas pelo Imperador.

Neste mesmo período, Aguirre procurando aliados contra o Império,

busca aliança com o Paraguai, que o apoia politicamente e militarmente, o

qual envia ao Brasil um Ultimatum, em 30 de agosto de 1864 contra a

ocupação do território Uruguaio pelas forças militares brasileiras. O Brasil

desprezou e subestimou a ofensiva diplomática e militar do Paraguai, pois no

Brasil, os soldados paraguaios eram vistos com desprezo 15, por serem

considerados um “povo bárbaro”.

Com o auxílio de tropas terrestres de Flores (do Partido Colorado, da

República uruguaia), o Brasil interveio militarmente, tendo como principal

objetivo: ataques bélicos às cidades de Salto, Paisandú e Cerro Largo.

14 DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria Americana, 1919. p. 30. 15 DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 60.

62

A tomada de Paisandú foi praticamente o fim desta intervenção militar

contra o Uruguai. O Estado Oriental perdeu a guerra e teve a cidade de

Paisandú arrasada16 pelo bombardeio marítimo (Figs. 1 e 2), realizado por

Tamandaré e sob a infantaria brasileira de Venâncio Flores.

Fig. 1. Paisandú depois do bombardeio. Ruínas do Forte.

16 CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta. 2000. p. 16

63

Fig. 2. Inspeção realizada após o ataque à Paisandú17 pelo chefe das forças de defesa, Leandro Gómez (à esquerda).

Após o ataque ao Uruguai, López, presidente do Paraguai, viu em

suas mãos a possibilidade em declarar guerra ao Brasil. Desta forma, em 11

de novembro de 1864, o Governo de Assunção capturou o Navio Mercante

Marquês de Olinda18, que levava o novo Presidente da Província de Mato

Grosso, Coronel Carneiro de Campos e alguns oficiais.

Este aprisionamento foi considerado pelos brasileiros como um ato

traiçoeiro de “pirataria”. Isto posto, o Império pediu explicações ao Paraguai

17 CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000. p. 17. 18 Segundo Virgílio Corrêa Filho este navio brasileiro pertencia à Companhia de Navegação por Vapor do Alto Paraguai, esta companhia era subsidiada pelo Império para manter linha regular ligando Montevidéo a Cuiabá.

64

pelo seu ato traiçoeiro. Em resposta, o governo paraguaio enviou nota

dizendo, que estava proibido a navegação de navios brasileiros no rio

Paraguai. Solano López, considerando que já estava em Estado de Guerra

contra o Império brasileiro, decidiu invadir, no dia 15 de novembro de 1864, a

Província do Mato Grosso e posteriormente, invadiria a Província do Rio

Grande do Sul. Então com esta invasão bélica ao Mato Grosso, o Brasil,

realmente, entrou em Guerra contra o Paraguai19.

Podemos constatar que ao investigarmos as questões explicitadas

neste sucinto artigo, podemos compreender a importância das relações

existentes na fronteira do Brasil com o Uruguai, o qual ocasionou o

“desabrochar” da Guerra do Paraguai. Portanto, fica claro que este

trabalho buscou analisar os antecedentes da Grande Guerra, travada na

América Latina, no século XIX, e não aprofundar as problemáticas desta

referida Guerra.

Referências

AVISO contendo as instruções da Missão Especial Confiada em 1864 ao

Conselheiro Saraiva. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v.

59, tomo I, 1896.

BANDEIRA, L. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados

na Bacia do Prata — Argentina, Uruguai e Paraguai: da colonização à Guerra

da Tríplice Aliança. São Paulo; Brasília, DF: Editora da Universidade de

Brasília, 1995.

BELLO, Luís Alves Leite de Oliveira; NERY, Felipe B. de Oliveira. Sessão de

09.11.1859. In: Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

CUARTEROLO, Miguel Ángel. Soldados de la memoria, imágenes y hombres

de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 2000. 19 DORATIOTO, Francisco, op. cit., 2002. p. 67.

65

DOCCA, Souza. Causas da guerra com o Paraguay. Porto Alegre: Livraria

Americana, 1919.

DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra, nova história da Guerra do Paraguai.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Jornal do Comércio, 22 set. 1852.

LORETO, Aliatar. Capítulos de história militar do Brasil, os antecedentes

da guerra contra o Paraguai. Rio de Janeiro: Companhia Editora

Americana, 1953.

OSÓRIO, Fernando Luís. Sessão de 24.03.1876. In: Anais da Assembléia

Legislativa da Província do Rio Grande do Sul. Décima Sexta Legislatura. 2ª

Sessão, 1876, p. 16. Acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul,

códice AL4.004.

RELATÓRIO da Secretaria de Estrangeiros. 12 de novembro de 1863.

ZUN FELDE, Alberto. Processo histórico del Uruguay. Montevideo: Biblioteca

de Autores Uruguayos, 1967.

66

6 DUAS VISÕES DO RIO PARDO DA PRATA:

EXPEDIÇÃO DE PERO LOPES DE SOUSA (1531) E EXPEDIÇÃO DE ALVAR NUNEZ

CABEZA DE VACA (1541) __________________________

Harry Rodrigues Bellomo∗

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS

1 Expedição de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa Em dezembro de 1530, Pero Lopes de Sousa partiu em direção ao

Brasil na expedição do seu irmão, Martin Afonso, com o objetivo de explorar e

colonizar o Brasil.

Durante o ano de 1531, explorou a costa brasileira, chegando ao rio

da Prata em novembro.

Martin Afonso resolveu retornar para o norte, enquanto Pero Lopes

continuava a explorar o rio da Prata, chegando em dezembro de 1531 até a

foz do rio Paraná.

Após ajudar na fundação de São Vicente (1532), Pero Lopes voltou a

Portugal com o galeão São Vicente e a nau Nossa Senhora das Candeias.

No caminho apresou naus francesas e destruiu um fortim francês,

enforcando os seus defensores.

No final de 1532 ou janeiro de 1533, finalmente atracou em Fato

(Sul de Portugal).

Decidido a acelerar o povoamento do Brasil Dom João III criou, entre

1534 e 36, 14 capitanias hereditárias, cabendo a Pero Lopes a capitania de

Santo Amaro, com 10 léguas de costa; a de Santana com 40 léguas, a última

∗ Mestre em História. Professor da PUCRS.

67

da costa brasileira; e a capitania de Itamaracá, entre Rio Grande e

Pernambuco. Pero Lopes de Sousa não mais retornou ao Brasil, tendo

morrido em um naufrágio na costa africana.

Assim, as suas capitanias foram administradas por sua viúva, Isabel,

e, mais tarde, pelos filhos e filha, Jeronima.

Itamaraca foi, das três capitanias de Pero Lopes, a que mais

prosperou graças a sua união com a economia açucareira de Pernambuco.

Santo Amaro partilhou o destino de São Vicente, doada a Martin

Afonso, e a de Santana ficou abandonada.

1.1 Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa

Francisco Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, o maior historiador

brasileiro do século XIX, foi o descobridor deste diário nos documentos da

Biblioteca da Ajuda, quando tinha 20 anos de idade, a mesma de Pero Lopes.

A primeira edição foi em 1839, e a segunda em 1847, sendo a

terceira feita pelo Instituto Histórico em 1861. O texto apresentado é de

edição de 1979, pela Editora Parma.

Transcrição do Diário de Navegação

“Sabado 23 do mes de novembro de 1531 estando o sol em 11 graos

e 35 meudos de sagitario, e a lua 27 graos de tauro, parti do Rio dos

Bengoais, que jaz aloeste do cabo de Santa Maria 11 leguas, e levava

hum bargantim com 30 hômes tudo bem em ordem de guerra: e fiz

meu caminho ao longo da costa, que se corre aloeste. 2 leguas do

dito rio, donde parti, ha hûa ilha pequena1 toda de pedras, e della a

terra firme ha hûa legua: derrador da ilha tem bom surgidouro de

fundo de 5 braças de vasa molle. Indo assi pegado com a costa, a

1 Ilha dos Lobos (V.).

68

qual he toda limpa, per fundo de 5,6 braças, ao meo dia houve vista

de hûa ilha ao mar2, que me demorava ao sulsudoeste; e della a

terra ha 3 leguas: da banda de este tem hûa restinga de area

comprida, que lança ao nordeste. Passando ávante da ilha descobri

hum alto monte, ao qual puz nome — monte de Sam Pedro3 — e

morava-me aloeste e a quarta do noroeste. Este dia fui dormir ao pé

do dito monte de Sam Pedro. Desde a dita ilha atraz até este monte,

a costa he toda suja de pedra, e ruins baxos: a terra he toda rasa

até este monte muito fermosa. Ao pé deste monte ha 2 portos; hum

da banda d’aloeste, e outro da banda de leste: nam sam senam para

navios pequenos.

Domingo 24 do dito mês, ante manhãa, me fiz á vela com o vento

nornordeste. Deste monte de Sam Pedro se começa a costa a

loesnoroeste, indo assi no golfo de hûa enseada, que se faz grande

como o dito monte de Sam Pedro, demora a leste e a quarta de

sueste, fui dar em fundo de 2 braças e mea, hûa legua de terra4: e me

acalmou o vento que levava: e me deu trovoada do Su, com muito

vento; e fiz-me no bordo do monte de Sam Pedro, para me meter no

porto onde estivera de noite. O vento rodou logo a sueste; e tornei-me

a fazer na volta d’aloeste, para fazer meu caminho. Aqui comecei a

achar agua doce, e muito pescado morto. Da ponta5 desta enseada

da banda d’aloeste lança hûa restinga ao mar hûa legua: o mais baxo

della he braça e mea, e o mais alto 4 braças. Como pessei a dita

restinga me acalmou o vento; e afuzilava muito a sudoeste e ao

noroeste, que nesta costa sam sinaes certos de grandes temporaes: e

com este receo me acheguei a terra, para ver se achava porto onde

2 Ilha das Flores (V.). 3 Cerro de Montevidéo (V.). 4 Foz do Rio Santa Luzia (V.). 5 Punta del Espinillo.

69

me metesse. Bem pegado com terra me tornou a ventar o vento

nordeste, e fui ao longo da costa, a qual se corre a loesnoroestem per

fundo de 4,5 braças d’arca limpa. Indo sempre hum tiro de bésta de

terra tornou-me a acalmar o vento bem tarde, e os sinaes do temporal

cresciam; determinei de varar o bargantim em terra até passar a noite;

e mandei varar em hûa arca, a tirar o fato todo em terra; e fazer hum

repairo de terra; e puzemos a artelheria em ordem. E eu fui com 10

homês pela terra ver se achava rasto de gente: nam achei nada;

senam rasto de muitas alimarias, e muitas perdizes e codornizes, e

outra muita caça. A terra he mais fermosa e aprasivel que eu já mais

cuidei de ver: nam havia homem que se fartasse d’olhar os campos e

a fermosura delles. Aqui achei hum rio grande; ao longo delle tudo

aboredo o mais fermoso que nunca ví: e antes que chegasse ao mar

hum tiro de bésta se sumia. E tomamos muita caça e tornamosnos ao

bargantim. Ao pôr do sol veo hûa trovoada do noroeste, com tanta

força de vento e pedra, que nam ravia homem, que se tivesse em pé:

e de supito saltou ao sudoeste com muita chuva, relampados, e

sempre cuidei de perder o bargantim, segundo o mar era grande.

Toda esta noite corremos tanta fortuna, quanta hômes nunca

passaram. A agua que choveo me molhou o mantimento todo, que

mais nam prestou.

Segunda-feira 25 do dito mês pela menhãa alimpou o tempo e veo

sol, com que nos enxugamos. Daqui me quizera tornar, por nam

termos mantimento; depois pareceo-me que nos podiamos manter

com o mantimento, que na terra havia: e com o pescado o mais

fermoso e saboroso, que nunca vi. A água já aqui era toda doce; mas

o mar era tam grande que me nam podia parecer que era rio: na terra

havia muitos veados e caça, que tomavamos, e ovos de emas, e

emas pequeninas, que eram muito saborosas; na terra ha muito mel e

70

muito bom: e achavamos tanto que o nam queriamos: e ha cardos,

que he mui bom mantimento, e que a gente folgava de comer. E com

nos parecer a todos, que nos podiamos soster, determinei de ir

ávante, e o vento era sueste, e o tempo estava bom, e de noite havia

lua. Parti bem tarde; — duas de sol, com tençam de andar a noite

toda; indo ao longo da costa, por fundo de 6 braças d’area limpa.

Sendo 2 leguoas dond’e partira, saíram da terra e mim 4 almadias,

com muita gente: como as vi puz-me á corda com o bargatim para

esperar por dias: remavam-se tanto, que parecia que voavam. Foram

logo comigo todos; traziam arcos e frechas e azagaias de pao

tostado, e elles com muitos penachos todos pintados de mil cores: e

chegaram logo sem mostrarem que havia medo: senam com muito

prazer abraçando-nos a todos: a falta sua não entendiamos; nem era

como a do Brasil; falavam do papo como mouros: as suas almadias

eram de 10, 12 braças de comprimento e mea braça de largo: o pao

dellas era cedro, mui bem lavradas: remavam-nas com hûas pás mui

compridas; no cabo das pás penachos e borlas de penas; e remavam

cada almadia 40 homês todos em pé: e por se vir a noite nam fui ás

suas tendas, que pareciam em hûa praia defronte donde estava; e

pareciam outras muitas almadias varadas em terra; e elles

acenavam que fosse lá; que me dariam muita caça; e quando viram

que nem queria ir, mandaram hûa almadia por pescado: e foi e veo

em tamanha brevidade, que todos ficamos espantados: e deramnos

muito pescado: e eu mandeilhes dar muitos cascaveis e christallinas

e contas: ficaram tão contentes e mostravam tamanho prazer, que

parecia que queriam saír fóra o seu siso: e assi me despedi delles.

Quasi noite fez-seme o vente nornordeste por riba da terra: e com

êlle fazia o caminho ao longo da costa, por fundo de 5,6 braças:

como passou mea noite comecei a achar baxos de pedras, a

71

alargueime mais da terra, e tirei a moneta, e fui com pouca vela,

com a sonda na mão.

Terca-feira 26 de novembro pela manhãa me achei pegado com hûa

ponta6, e fui para dobrar; e a costa voltava ao noroeste e tomaa do

norte; e ventava tanto vento noroeste, que nos houvera de soçobrar.

Mandei amainar a vela; e fui surgir na ponta da banda de leste, que

abrigava do vento: e saí a terra a ver se podiamos tomar algûa caça.

E de hûas grandes arbores, em que me fui pôr, para divisar a outra

costa da banda do noroeste da ponta, houve vista de muitas ilhas7

todas cheas d’arboredo, hûa legua da terra; e parecia cá que havia

abrigo entre ellas. E assi me tornei para o bargantim com muita caça

e mel. E á tarde acalmou o vento; e mandei meter os remos; e fui-me

ás ilhas: corri-as todas; e nunca achei porto nem abrigo, em que me

meter: na mais pequena achei repairo; mas do vento sueste era

desabrigada. Aqui estive toda a noite fazendo pescaria.

Quarta-feira 27 de novembro mandei concertar a padesada do

bargantim, e pôr a artelharia em ordem, e irmos concertados para

pelejar; porque na terra viamos muitos fumos, que he sinal e

ajuntamento de gente. E ao meo dia parti destas ilhas, as quaes são

sete, todas cheas de arboredo: as tres dellas sam grandes, e as

quatro pequenas. Com o vento lesnordeste fazia o caminho ao longo

da costa, a qual se corre ao noroeste e toma da quarta do norte. Duas

leguas das sete ilhas há um rio8 que traz muita agua: fui para entrar

nelle; e a entrada era roim de muitos baxos; e passei por longo da

costa per fundo de 7,8 braças; e a terra he toda chãa: quanto mais

6 A em quem se fundou a Colônia do Sacramento. (V.) A respeito ver Relação do Sítio da Nova Colônia do sacramento, de Silvestre Ferreira da Silva e Notícia e Justificação do Título e Boa Fé com que se Obrou a Colônia do Sacramento, trabalhos cujas primeiras edições datam de 1748 e 1681, respectivamente. Reedição fac-similar (Coleção da revista de História, v. LXVIII), com prefácio de Brasil Bandecchi. (P.B.B.) 7 llhas de San Gabriel (V.). 8 Rio San Juan(V.).

72

ávante ía tanto melhor me parecia: e á pustura do sol fui surgir a hûa

ilha grande, redonda, toda chea d’arboredo, á qual puz o nome de

— Santa Anna9 —.

Aqui estive toda a noite; onde matei muito pescado de muitas

maneiras: nenhum era de maneira como o de Portugal: tomavamos

peixes d’altura de hum homem, amarelos e outros pretos com pintas

vermelhas, os mais saborosos do mundo.

Quinta-feira 28 novembro saí e terra; nesta ilha achei muitas aves

as mais fermosas, que nunca vi. Aqui vi falcões como os de

Portugal. O vento saltou ao sul: puz-me da banda norte da Ilha:

estive surto com muita tempestade, que se me desabrigára, achára

de todo nos perderamos.

Sesta-feira 29 de novembro pela menhão abonançou o tempo, e fui á

ilha: mandei pôr fogo em três partes della; para ver se nos acudia

gente: e nam vimos senam fumos, que me demoravam a oessudoeste

e nam viamos terra: mandei subir dous homês sobre hûas arbores

grandes, que estavam na ilha, para ver se viam terra onde nos faziam

os fumos, e viram arboredo, cousa que parecia terra alagadiça.

Sabado 30 de novembro á tarde me fiz á vela com o vento

lesnordeste, e fui a hûas ilhas, que me demoravam ao nornoroeste.

Desta ilha de Santa Anna ás sete ilhas ha 4 leguas; e corre-se com

ellas leste-oeste, e á terra ha duas leguas10: e estas duas ilhas, a que

puz nome de — Sant’André11 —, por ser hoje o seu dia, ha duas

leguas da dita ilha de Santa Anna; e estam da terra mea legua: a

achei nellas hum bom repairo, onde estive a noite toda.

9 Ilha de Martin Garcia (V.). 10 Orientação e distância mal calculadas: das ilhas de San Gabriel (7 ilhas de Pero Lopes) à de Martin Garcia (Santa Ana) a 26 milhas ou cerca de 7 léguas ao noroeste, anota Eugênio de Castro com sua indiscutível autoridade (P.B.B.) 11 Dos Hermanas (V.).

73

Domingo 1º de dezembro me fiz á vela pela manhãa, com o vento

nordeste: e mandei governar a loessueste: fazia mui gram nevoa, que

nam viamos nada, e fui assim até o meo dia pelo dito rumo; e indo por

5 braças de fundo fui de supito dar em 2 braças: e mais ávante dei em

seco: — e mandei me por onde viera. Como alimpou a nevoa, me

achei hûa legua de hûa terra mui baxa, chea d’arboredo e muitos

baxos e vi estar hûa boca grande, que me demorava ao noroeste; e

fui a demandar por fundo de 2 braças, e ás vezes dando em seco, até

que dei em hum canal de sete braças, que ía dar na dita boca: e

entrei para dentro: e achei hum rio12 de mea legua de largo, e de hûa

banda e d’outra tudo cheo de arboredo. A agua corria mui tesa para

baxo: havia de fundo 10, 12 braças de lama molle. O rio faz a entrada

leste-oeste: da banda do sul na boca delle ha hum esteiro pequeno de

6 braças de largo: e índo mais por o rio arriba, da banda do sul achei

outro braço de outra mea legua de largo que ía ao sudoeste, e mais

acima achei outro braço, que vinha do noroeste: trazia muita agua, e

era quasi hûa legua de largo. Entam vi que tudo eram braços e ilhas,

antre que andavamos. As ilhas todas sam cheas d’arboredo; dellas

sam alagadiças.

Segunda-feira 2 dias de dezembro, como foi menhãa, mandei remar

pelo rio arriba: eram tantas as bocas dos rios, que nem sabia por

onde ía: sernam ía pela agua arriba; e fez-se-me noite a par de 2 ilhas

pequenas onde surgi. Estive a noite toda com muito vento noroeste.

Quinta-feira 12 de dezembro á boca deste esteiro dos Carandins puz

dous padrões de armas d’elrei nosso senhor, e tomei posse da terra

para me tornar d’aqui: por que via que nam podia tomar pratica da

gente da terra; e havia muito que era partido donde Martin Afonso

estava: e fiquei de ír e vir em 20 dias: e deste esteiro ao rio dos

12 Boca do Paranaguazu (V.), em terra Argentina (P.B.B.).

74

Beguoais13, donde parti, me fazia 105 leguas. Aqui tomei altura do sil

em 33 graos e 3 quartos.

Esta terra dos Carandins he alta ao longo do rio; e no sartam he toda

chãa, coberta de feno, que comque hum homem como 10 livras de

pexe, em nas emas, e perdizes e cordonizes: he a mais fermosa terra

e mais aprazivel, que pode ser. Eu trazia comigo alemães e italianos,

e homês que foram á India e francezes, — todos eram espantados da

fermosura desta terra: e andavamos todos pasmados que nos nam

lembrava tornar. Aqui neste esteiro tomámos muito pescado de

muitas maneiras: morre tanto neste rio e tam bom, que só com o

pescado, sem oútra cousa, se podiam manter; ainda que hum home

coma 10 livras de pexe, em nas acabando de comer, parece que nam

comeu nada; e tornára a comer outras tantas. O ar deste rio he tam

bom que nenhûa carne, nem pescado apodrace; e era na força do

verão que matavamos veados, e trazíamos a carne 10, 12 dias sem

sal, e nam fedia. A agua do rio he mui saborosa; pela menhãa he

quente, e ao meo dia he muito fria; quanta o homem mais bebe,

quanto melhor se acha. Nam se podem dizer nem escrever as cousas

deste rio, e as bondades delle e da terra.

Sesta-feira 13 de dezembro parti deste erteiro dos Carandins para me

tornar por donde viera. Com o vento noroeste fazia o meu camiho á

popa14, que ia tam teso, que cada hora, 3, 4 leguas. Sendo a par

donde viera. Sendo a par das ilhas dos corvos15, d’antre hum

arboredo ouvimos grandes brados, e fomos demandar onde

bradavam: e saío a nós hum homem, á borda do rio, coberto com

13 Este rio é o atual Solis Grande, conforme Eugênio de Castro (P.B.B.). 14 Varnhagen anota: “Note-se bem: Ao descer o rio ia à popa com vento N.O.: segue para S.E.:, o que não poderia suceder se tivesse subido o Paraná”. Eugênio de Castro corrige: “Ao descer o rio veio tocado com corrente e vento noroeste, pela popa; navegou pois, ao sueste, ao Paranaguazu, e não como quer Varnhagen” (P.B.B.). 15 Estas duas ilhas que no registro do dia 8, Pero Lopes e Sousa as denomina de llhas os Corvos, Eugênio de Castro admite serem as atuais Dourado, no Rio Paranaguazu (P.B.B.)

75

peles, com arco e frechas na mão; e fallou-nos 2 ou 3 palavras

guaranís, e entenderam-as os linguas que levava; tornaram-lhe a falar

na mesma lingua, nam entendeu; senam disse-nos que era beguoaa

chanaa16 e que se chamava ynhandú. E chegámos com o bargantim

a terra, e logo vieram mais 3 homês e hûa molher, todos cobertos

com pelles: a molher era mui fermosa; trazia os cabellos compridos e

castanhos: tinha hûs ferretes que lhe tomavam as olheiras: elles

traziam na cabeça hûs barretes das pelles das cabeças das onças,

com os dentes e om tudo. Por acenos lhe entendemos que estava

hum homem com outra geraçam, que chamavam chanás, e que sabia

falar muitas linguas; e que o queria ír a chamar, e estava la diante

pelo rio arriba; e que elles íriam e viriam em 6 dias. Entam lhes dei

muitas cristalinas e contas e cascaveis, de que foram mui contentes,

e a cada hum delles seu barrete vermelho; e á molher hûa camisa: e

como lhes isto dei, foram a hûs juncais, e tiraram duas almadias

pequenas, e trouxeram-me ao bargatim pescado e taçalhos de veado,

e hûa posperna d’ovelha17; mas nam ousavam de entrar dentro do

bargantim, nem seguravam comnosco. E assi se foram, dizendo que

haviam de vir dahia a 5 dias, e os esperassem nas ditas ilhas dos

corvos. Aqui estive 6 dias esperando, nos quaes tomei multa caça e

muito pescado, e muitos veados, tamanhos como bois, os quaes

faziamos em taçalhos, para levar ás naos. Como vi que nam vinham,

ao cabo de 6 dias me parti.”

16 Begoás e chanás eram nomes de tribos de índios (V.). 17 Provavelmente de paca, anta ou capivara (V.).

76

Fig. 1. Rotas das Expedições de Martin Afonso de Sousa e de Pero Lopes de Sousa.

2 Narrativa de Alvar Nunes Cabeza de Vaca

Nascido em 1492, ano da descoberta do novo mundo, Nunez Cabeza

de Vaca, descendente de um camponês enobrecido em 1212, viveu empolgado

pela visão de explorar e conquistar este estranho e fascinante mundo.

77

Em 1527 participou da expedição de Novaez que atravessou os

EEUU da Flórida até o Novo México, e apenas quatro sobreviventes

chegaram a Cidade do México.

Em 1540 foi nomeado adelantado do rio da Prata.

Em 1540 Cabeza de Vaca partiu de Cadiz para o rio da Prata.

Em 1541 chegou a ilha de Santa Catarina, no Sul do Brasil. Dalí

remou para Assunção começando sua política de pacificação dos índios.

Quando tudo parecia em paz, partiu em busca do mítico rei branco da Serra

de Prata. A expedição voltou dizimada e Cabeza de Vaca foi preso e

destituído do governo.

Julgado na Espanha foi condenado ao exílio e a pagar uma

grande multa.

A origem da sua desdita está na política de tolerância com os

índios e sua recusa de usar a força e a escravização dos índios como

método de conquista.

Sua narrativa das expedições que participou são clássicos. Para nós,

é de suma importância a parte em que conta sua viagem de Santa Catarina

até Assunção, fazendo o caminho inverso ao do alemão Schimidel.

Suas descrições da bacia do Prata e das tribos indígenas são fontes

primordiais para o estudo desta região.

A fixação nas riquezas da América do Sul e os mitos dos reinos de

Prata e de ouro, aparecem com clareza, sendo uma fonte importante para

vermos o imaginário do século XVI.

A desilusão dos espanhóis, ao perceber que o reino da Prata era o

Peru, lançou a bacia platina em um relativo abandono.

78

Transcrição da Narrativa de Cabeza de Vaca

“Desembarque no Brasil

Ao chegar na ilha de Santa Catarina18, o governador mandou

desembarcar toda a gente que conseguiu levar e os vinte e seis

cavalos que conseguiram sobreviver ao mar, dos quarenta e seis

que saíram da Espanha. O governador procurou saber, dos

índios naturais daquela terra19 se porventura poderiam informar

sobre o estado da gente espanhola que ia socorrer na província

do rio da Prata. Deu a entender aos índios que seguia por

mandado de Sua Majestade para prestar socorro e também

tomou posse daquela terra. Durante todo o tempo em que esteve

na ilha20, o governador dispensou muito bom tratamento aos

nativos daquela ilha e de outras partes da costa do Brasil

(vassalos de Sua Majestade) e obteve deles a informação de que,

a quatorze léguas da ilha, num local chamado Biaza21, estavam

dois frades franciscanos chamados frei Bernaldo de Armenta,

natural de Córdoba, e frei Alonso Lebrón, natural da Grand

Canária. Em poucos dias esses dois frades vieram até onde

estava o governador, muito atemorizados porque os índios

daquelas terras queriam matá-los. Isso porque os cristãos que lá

estavam haviam queimado algumas casas de índios e estes já

18 Cabeza de Vaca aportou na baía norte da ilha de Santa Catarina, que chamou de baía de Ramos (N. do E.). 19 A ilha de Santa Catarina, bem como todo o resto do litoral sul do Brasil, de Cananéia ao norte do Rio Grande do Sul, era habitada pelos carijós, do grupo étnico tupi-guarani (N. do E.). 20 Durante o tempo em que permaneceu na ilha de Santa Catarina, Cabeza de Vaca acampou nas praias da baía norte. Logo em seguida, porém, transferiu-se para o local que os índios chamavam de Yurú-mirim (“passagem pequena"), no atual Estreito. Batizou o local com o nome de porto de Vera (N. do E.). 21 Biaza, lbiaça ou Viaça, atual Massiambu, no continente, ao sul da ilha de Santa Catarina. A lagoa de lmaruí era chamada também de lagoa de Biaza.

79

haviam matados dois cristãos. Informado sobre o ocorrido, o

governador procurou pacificar aqueles índios e removeu os frades

para aquela ilha, a fim de catequizar os índios que ali viviam.

As condições da terra

Daquele rio chamado Iguaçu, o governador seguiu adiante com sua

gente e aos três dias do mês de dezembro chegaram a um outro rio

que os índios chamam Tibagi, que era todo ladrilhado, com lajes

grandes e tão bem formadas como se ali tivessem sido colocadas

pelo homem22. Tivemos grande trabalho para atravessar aquele rio,

pois tanto os cavalos como as pessoas resvalavam muito e, além

disso, a correnteza era muito forte. A solução foi todos atravessarem

abraçados. A duas léguas dali outros índios vieram receber o

governador e sua gente, trazendo mais mantimentos, o que passou a

ser uma constante, de modo que nunca faltava o que comer. Por isso,

o governador dava muitos presentes aos índios, especialmente aos

principais, dispensando-lhes um tratamento muito cordial. A notícia

sobre esse tratamento corria por toda a parte, de modo que os índios

vinham trazer o que possuíam e eram pagos por isso.

Nesse mesmo dia, estando o governador próximo de um outro

povoado de índios, cujo principal se chamava Tapapiraçu23, chegou

um índio natural da costa do Brasil, que já havia se convertido ao

cristianismo e recebido o nome de Miguel. Vinha da cidade de

Ascensión, onde residiam os espanhóis que se ia salvar. O fato

alegrou muito o governador, pois o mesmo pôde inteirar-se da

22 No curso superior do Tibagi, a oeste da atual cidade de Lagos, a oeste da atual cidade de Lagos, nas proximidades de Ponta Grossa (N. do E.). 23 Era o grande aldeamento chamado Abapany, por onde cruzava o caminho transcontinental “Peabiru” ou “Peá-byiu” (o “caminho cujo percurso se iniciou”), que unia a costa do Brasil meridional com os Andes (N. do E.).

80

situação daquela província e dos muitos perigos pelos quais haviam

passado os espanhóis desde a morte de Juan de Ayolas. Depois de

fazer o relato, por sua própria vontade, o índio quis retornar com o

governador para guiá-lo até a cidade de Ascensión. A partir dali, o

governador mandou dispensar e fazer retornar os índios que saíram

em sua companhia da ilha de Santa Catarina, aos quais deu muitos

presentes e agradecimentos pelos bons serviços que prestaram.

Como a gente que levava consigo era muito inexperiente no trato com

os índios, o governador determinou que não fizessem nenhum

contato com os mesmos e não fossem às suas casas, pois a mínima

coisa poderia ser uma ofensa para eles, colocando-os em estado de

guerra. Assim, os contatos só deveriam ser feitos por aqueles que

entendiam os índios, que faziam os negócios, comprando os

mantimentos de que todos necessitavam e cuja distribuição era feita

pelo próprio governador, sem cobrança alguma.

Era impressionante ver o medo que aqueles índios tinham dos

cavalos. Para que os cristãos a cavalo não os ameaçassem, eles logo

procuravam dar-lhes galinha, mel e outras coisas de comer. Porém,

para evitar a exploração, o governador procurava assentar o

acampamento afastado dos povoados e, ao mesmo tempo, punia

aqueles que fizessem qualquer agravo aos índios. Percebendo isso,

os índios vinham muito seguros, trazendo suas mulheres e filhos,

além de muitos mantimentos, só para verem os cristãos e os cavalos,

que eram personagens estranhos por aquelas terras.

Seguindo seu trajeto por aquelas terras, o governador e sua gente

chegaram a um povoado dos guaranis, cujo senhor principal,

chamado Pupebaje, saiu a caminho para recebê-los, muito alegre e

trazendo mel, patos, galinhas, milho, farinha e outras coisas. Através

do intérprete, o governador lhe agradeceu a acolhida, fez-lhe o

81

pagamento e ainda deu para o principal muitos presentes, entre eles

tesouras e facas. Deixou os índios desse povoado tão alegres e

contentes, que pulavam, dançavam e cantavam de prazer.

Aos sete dias do mês de dezembro chegaram a um rio que os índios

chamam Taquari24, com boa quantidade de água e uma boa

correnteza, e em cuja ribeira está assentado um povoado de índios

cujo principal se chama Abangobi. Todos os do povoado, inclusive as

mulheres e as crianças, saíram pra receber a comitiva do governador,

mostrando grande prazer com a sua chegada. Como os demais,

trouxeram mantimentos e foram pagos por isso, indo aos outros

povoados para contar o que se passava e mostrar o que haviam

ganho. De modo que o governador já podia encontrar muito alegres e

pacíficos todos os povos com os quais haveria de cruzar. Aos

quatorze dias do mês de dezembro, encontraram um outro povoado

guarani, onde o principal se chamava Tocangucir. Aí descansaram

um dia para se recuperarem da fadiga, tendo os pilotos aproveitado

para medir a localização. O caminho por onde seguiam era a oeste-

noroeste e quarto-noroeste, estando aquele lugar a vinte e quatro

graus e meio, afastado um grau do trópico. Por todo caminho que se

andou depois, viram-se muitas povoações, sendo terra muito alegre,

de muitas campinas, muitas árvores, muitos rios e arroios de água

muito cristalina, toda a terra muito própria para lavrar e criar.

Trabalhos por que passou o governador

Do povoado de Tugui o governador seguiu caminhando com sua

gente até os dezenove dias do mês de dezembro sem encontrar

nenhum outro povoado, passando grande trabalho para atravessar os

muitos rios e más passagens que havia. Houve dias que tiveram de 24 Hoje, rio lvaí, que De Vaca transpôs acima do Salto de Ubá (N. do E.).

82

fazer até dezoito pontes para cruzar com os cavalos e mantimentos.

Também tiveram de cruzar serras e montanhas cobertas com árvores

muito fechadas, que não permitiam que se visse o céu. Era tão

fechada a mata que sempre que iam vinte homens na frente para

abrir o caminho. Finalmente, naquele dia 19, chegaram a um povoado

de índios guaranis, que vieram recebê-los muito contentes, trazendo

suas mulheres e filhos, além de muitos mantimentos, como galinha,

batata, pato, mel, farinha de milho e farinha de pinheiro, que

produzem em grande quantidade, porque há pinheiros tão grandes

por ali que quatro homens com os braços estendidos não conseguem

abraçar um25. São muito bons para a construção de carracas e de

mastros de navios. As pinhas deles são enormes e a casca

semelhante à da castanha. Os índios as colhem e fazem grande

quantidade de farinha para a sua manutenção. Por aquelas terras há

muitos porcos montanheses26 e macacos que comem aqueles

pinhões. Os macacos costumam subir nos pinheiros e derrubar tantas

pinhas quanto conseguem, para depois descerem e comê-las junto ao

solo. Muitas vezes acontece que os porcos montanheses ficam

aguardando os macacos derrubar as pinhas para então irem comê-las

afugentando os macacos. Assim, enquanto os porcos montanheses

ficavam comendo, os gatos27 ficavam dando gritos trepados nas

árvores. Também há muitas frutas, de diversas qualidades, que dão

duas vezes ao ano. O governador se deteve nesse povoado de Tugui

durante o Natal, tanto em respeito à data como para que sua gente

25 Evidentemente trata-se da Araucária brasiliensis, o pinheiro brasileiro por excelência (N. do E.). 26 São pecaris (Dicotyles labiatus) (N. do E.). 27 Muitas vezes os conquistadores chamavam macacos de gatos. O próprio Gonzalo de Oviedo os chama de “gatos macaquinhos” em sua monumental História General y Natural de las Índias (N. do E.).

83

descansasse28. Os espanhóis festejaram alegremente o Natal, pois

os índios lhes traziam toda espécie de comida que conheciam. Como

todos estavam sem se exercitar, a comida em excesso chegava a

causar mal-estar em alguns. Aliás, sempre que comiam muito o

governador procurava empreender longas caminhadas. Muitos

reclamavam, achando que ele queria castigá-los, mas a experiência

acabou comprovando que era a melhor coisa que podiam fazer para

não caírem doentes.

A fome volta a atacar

Aos vinte e oito dias do mês de dezembro o governador e sua gente

deixaram a localidade de Tugui, ficando os índios muito contentes.

Caminharam por terra todo o dia sem encontrar povoação alguma,

até que chegaram a um rio muito caudaloso e largo, com grandes

correntes, tendo em sua margem muitas árvores, ciprestres e

cedros29. Foram necessários quatro dias de gigante trabalho para

atravessar aquele rio. Depois disso, passaram por cinco povoados

de índios guaranis, onde foram recebidos da mesma forma que nas

ocasiões anteriores, ou seja, os índios vieram com suas mulheres e

filhos e trouxeram muitos mantimentos, sendo bem recompensados

pelo governador. Como nos demais povoados, os índios semeiam

mandioca, milho e batata, sendo que esta produzem de três tipos,

branca, amarela e rosa. Criam patos e galinhas e extraem mel do

oco das árvores.

No dia 1° de janeiro do ano do Senhor de 1542, o governador partiu

com sua gente daqueles povoados índios, embrenhando-se por

28 Esse povoado ficava nas nascentes do rio Cantu. A tropa de Cabeza de Vaca, após cruzar o Ivaí venceu com grandes dificuldades a escarpa do planalto paranaense pelo vale do rio Pedra Preta (N. do E.). 29 O alto Pequiri (N. do E)

84

montanhas e canaviais muito espessos, passando grande trabalho,

porque até o dia 5 não encontraram povoado algum. Durante esse

período também passaram muita fome. A única salvação eram os

gusanos brancos e grandes, da grossura de um dedo, que tiravam do

meio das canas e fritavam para comer. Consideravam aquilo uma

comia muito boa. De um outro tipo de cana extraíam água, que

também diziam ser muito boa. Nesse caminho, passaram por dois rios

grandes e muito caudalosos. No dia 6 de janeiro, caminhando terra

adentro sem achar povoado algum, vieram a dormir na ribeira de

outro rio muito caudaloso30, de fortes correntes e de muitos canaviais

em suas proximidades, de onde o pessoal tirava os gusanos para se

alimentar. No outro dia, seguiram por terra muito boa, de boa água,

de muita caça. Foram apanhados muitos porcos montanheses e

veados, que foram repartidos entre todos. Graça a Deus, durante

esse tempo não adoeceu nenhum cristão, e todos continuaram

caminhando muito dispostos, com a esperança de logo chegarem à

cidade de Ascensión.

De 6 a 10 de janeiro foram cruzados muitos povoados de índios

guaranis, sempre acontecendo o mesmo tratamento. O que passou a

acontecer de diferente, no entanto, era que os padres Bernaldo de

Armenta e Alonso Lebrón passaram a ir na frente para receber os

mantimentos, fazendo com que, quando o governador chegava, os

índios não tivessem mais nada para entregar-lhe, com o que ficavam

muito frustrados. Diante das freqüêntes queixas que começaram

acontecer, o governador os advertiu para que não fizessem mais isso,

tampouco continuassem a carregar índios inúteis, conforme vinham

fazendo. Apesar das advertências, eles continuaram com o mesmo

procedimento e o governador só não os expulsou por causa do

30 O rio Cobre (N. do E.).

85

serviço que prestavam a Deus e a Sua Majestade. Mesmo assim,

voltou a adverti-los, o que fez com que decidissem abandonar a

comitiva e seguir por outro caminho, através de outros povoados. O

governador, no entanto, mandou buscá-los de volta, o que foi a

salvação dos mesmos, pois certamente não conseguiriam sobreviver

sozinhos por onde haviam se metido.

Chegada ao rio Iguaçu

O governador e sua gente seguiram caminhando por entre os

povoados de índios guaranis, sendo sempre muito bem recebidos.

Toda essa gente anda desnuda, tanto homens como mulheres, e têm

muito temor aos cavalos. Rogavam ao governador que dissesse aos

cavalos que eles não iriam molestá-los e procuravam sempre trazer

comida para os animais, para não serem maltratados por eles. Assim,

seguindo por esses camihos, aos quatorze dias do mês de janeiro,

chegaram a um rio muito largo e caudaloso que se chamava Iguaçu31.

É um rio muito bom, de bastante pescado e de muitas árvores na

ribeira. Ali também existia um outro povoado de guaranis, que

igualmente dispensaram o mesmo tratamento cordial. Naquele local

também existem muitos pinheiros. Esse rio Iguaçu é tão largo quanto

o Guadalquivir e está situado a vinte e cinco graus. É muito povoado

em toda sua ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas

terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e

pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados,

antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da

mandioca, milho e batata, figura também o amendoim. Também

colhem muitas frutas e mel.

31 Dessa vez, os espanhóis atravessaram o rio Iguaçu próximo à foz do rio Cotegipe (N. do E.).

86

Estando nesses povoados, o governador decidiu escrever para os

que estavam em Ascensión, para comunicar-lhes como, em nome

de Sua Majestade, iria socorrê-los, e enviou a carta através de dois

índios nativos daquelas terras. Nesse meio tempo, um dos cristãos

que acompanhavam o governador, chamado Francisco Orejón, foi

mordido por um cachorro e caiu doente. Também adoeceram outros

quatorze espanhóis, fatigados pela longa caminhada. O governador

os deixou aos cuidados dos índios de um povoado situado junto ao

rio Piqueri, tendo dado muitos presentes aos nativos para que

cuidassem bem deles até que se restabelecessem e depois os

ajudassem a seguir adiante. Esse caminho por onde seguia o

governador possui grandes campinas, excelentes rios e arroios,

muitas árvores e muita sombra, sendo a terra mais fértil do mundo,

estando pronta para semear a pastagem. É também terra de muita

caça e própria para a colocação de engenhos de açúcar. Toda a sua

gente é muito amiga e com muito pouco trabalho poderão ser

trazidos para a nossa santa fé católica.

Chegada à cidade de Ascensión

Tendo tomado conhecimento da morte de Juan de Ayolas32, de outros

massacres que os índios haviam realizado contra os espanhóis em

Ascensión e do despovoamento do porto de Buenos Aires — para

onde mandara suas naus que estavam na ilha de Santa Catarina com

140 homens —, o governador pôde perceber a necessidade em que

se encontrava aquela gente que ia socorrer. Assim, apressou sua

32 Juan de Ayolas (1493-1538) era o substituto do Adiantado Pedro de Mendoza. Quando Cabeza de Vaca foi enviado ao rio da Prata, deveria submeter-se ao comando de Ayolas, caso este estivesse vivo. Só com a morte de Ayolas, De Vaca poderia assumir o cargo de Adiantado. Ayolas, no entanto, já estava morto dois anos antes de Cabeza de Vaca partir da Europa, sem que ninguém soubesse com certeza (N. do E.).

87

caminhada e, à medida que avançava, era cada vez maior a acolhida

que recebia por parte dos índios guaranis, pois corria de boca em

boca o bom tratamento que a todos o governador dispensava e as

muitas dádivas que a todos concedia. Era comum, portanto, os índios

irem à frente abrindo caminho e, à medida que a comitiva se

aproximava de Ascensión, era comum virem até o governador índios

que falavam a nossa língua castelhana, dizendo que estava chegando

em boa hora. Quanto mais perto chegava tanto maior era a recepção,

com mulheres e crianças se colocando em fila para oferecer vinho de

milho, pão, pescado, batata, galinha, mel, veado e muitas outras

coisas, que repartiam graciosamente e, depois, em sinal de paz e

amor, levantavam as mãos para o céu.

Caminhando dessa maneira (segundo é dito) foi Nosso Senhor

servido de que às nove horas da manhã de um sábado, aos onze dias

do mês de março do ano de 154233, o governador e sua gente

chegassem à cidade de Ascensión que está assentada na ribeira do

rio Paraguai, a vinte e cinco graus da banda sul. Quando chegaram

nas cercanias da cidade, os capitães e outras pessoas já saíram para

recebê-los, demonstrando uma alegria indescritível e dizendo que

jamais acreditaram que pudessem ser socorridos, pois não se tinha

qualquer notícia de outro caminho que não fosse aquele através do

porto de Buenos Aires. Como o haviam despovoado, não lhes restava

esperança alguma de receberem ajuda. Sabendo disso, os índios

haviam se acometido de grande ousadia e atrevimento para atacá-los

e matá-los, pois viram também que se passara muito tempo sem que

ninguém chegasse à província. De sua parte, o governador também

ficou muito alegre em poder ajudá-los, tendo-lhes comunicado que

33 Tendo saído da ilha de Santa Catarina em 18 de outubro de 1541. Cabeza de Vaca levou, portanto, cinco meses para chegar a Assunção (N. do E.).

88

chegava ali por mandato de Sua Majestade e logo apresentou ante

Domingo de Irala, tenente e governador daquela província, a provisão

que trazia, mostrando-a também aos outros oficiais: Alonso de

Cabrera, inspetor; Felipe de Cáceres, contador, natural de Madri;

Pedro Dorantes, feitor, natural de Béjar; e ante outros capitães e

gente que ali residiam. Em vista disso, deram obediência ao

governador como capitão-geral da província por mandato de Sua

Majestade, entregando-lhe as varas da justiça, que, em nome de Sua

Majestade, ele distribuiu novamente a outras pessoas, para que

administrassem a justiça civil e criminal naquela província.

Chegada dos doentes que ficaram no rio Piqueri

Trinta dias após a chegada do governador à cidade de Ascensión,

chegaram as balsas com os enfermos, que vieram do rio Paraná.

Apesar de doentes e fatigados, todos chegaram, com exceção de um

que foi morto por um tigre. Contaram que durante muito tempo foram

seguidos e atacados pelos índios que vivem na margem daquele rio.

Estes os seguiram rio abaixo em suas canoas, fazendo grande gritaria

e lançando suas flechas. Durante quatorze dias foram seguidos por

até duzentas canoas que não lhes davam sossego, ferindo levemente

cerca de vinte espanhóis, o que não impediu que seguissem sua

viagem rio abaixo. Como se não bastasse o ataque dos índios, o rio,

com suas correnteza forte e redemoinhos, também era outro desafio a

ser enfrentado. Não fosse a habilidade dos pilotos, sua sorte teria sido

outra, pois ou naufragariam ou seriam alcançados pelos índios.

Sofreram assim essa pressão por quatorze dias consecutivos, até que

chegaram ao local onde morava o índio Francisco, que os amparou,

levando-os para uma ilha próxima de seu próprio povo. Ali puderam

amenizar a grande fome que vinham sentindo, bem como tratar dos

89

ferimentos e descansar um pouco, pois os índios que os vinham se

guindo desistiram de atacá-los, retornando aos seus povoados. Nesse

meio tempo chegaram os dois bergantins que haviam saído de

Ascensión para apanhar os feridos.

O governador manda repovoar Buenos Aires

Com todo o cuidado, o governador mandou preparar dois bergantins,

carregados de mantimentos e outras coisas necessárias, para serem

enviados a Buenos Aires. Reuniu também gente experiente na

navegação pelo rio Paraná, para que socorressem os 140 espanhóis

que ele havia enviado desde a ilha de Santa Catarina e que, por

certo, iriam passar grande necessidade em vista das informações que

recebera de que o porto de Buenos Aires estava despovoado.

Mandou que se tratasse logo de povoar novamente aquele porto, pois

ele era de fundamental importância para toda aquela gente que

residiam em Ascensión. Ali deveriam ser feitos os bergantins para

subirem as 350 léguas rio acima, trazendo as pessoas e artigos que

chegassem pelas naus vindas da Espanha.

Os dois bergantins partiram aos dezesseis dias do mês de abril

daquele dito ano e em seguida o governador mandou construir outros

dois para serem enviados posteriormente. Aos capitães que enviou

nos dois primeiros bergantins, ordenou que procurassem dar um bom

tratamento aos índios do rio Paraná, buscando atraí-los para a paz e

para a obediência a Sua Majestade. Pediu-lhes que relacionassem

tudo que ocorresse para que depois fosse relatado a Sua Majestade.

Para melhor servir a Deus e a Sua Majestade, o governador mandou

chamar alguns sacerdotes que residiam em Ascensión e outros que

trazia consigo, tendo reunido também os capitães e toda a gente que

iria viajar em mandado que lessem certos capítulos de uma carta a

90

Sua Majestade que falam sobre o tratamento que deve ser

dispensado aos índios. Pediu aos sacerdotes que tivessem especial

cuidado para que os índios não fossem maltratados e que lhe

avisassem sobre tudo que ocorresse ao contrário do que fora

determinado. Avisou-lhes que proveria todo o necessário para tão

santa obra, pois queria que fossem ministrados os sacramentos nas

igrejas e mosteiros. Assim, eles foram também providos de vinho e de

farinha, e dos ornamentos para os atos litúrgicos.

Índios matam e comem seus inimigos

Logo que chegou à cidade de Ascensión, o governador mandou juntar

todos os índios vassalos de Sua Majestade e, em presença dos

clérigos, explicou-lhes que Sua Majestade o enviara para demonstrar-

lhes como deveriam vir ao encontro dos conhecimentos cristãos,

através da doutrina e do ensinamento dos religiosos que ali estavam.

Que, se procedessem dessa maneira, sendo bons vassalos e fiéis

seguidores de Deus e da Igreja católica, seriam muito bem

recompensados. Ao mesmo tempo, advertiu-os de que não poderiam

mais comer carne humana, pelo grave pecado e ofensa que isso

representava contra Deus. E, para estimulá-los, repartiu muitos

presentes, como camisas, bonés e outras coisas mais, o que os

deixou muito contentes.

Essa nação dos guaranis fala uma linguagem que é entendida por

todas as outras castas da província34 e comem carne humana de

todas as outras nações que têm por inimigas. Quando capturam um

inimigo na guerra, trazem-no para seu povoado e fazem com ele

grandes festas e regozijos, dançando e cantando, o que dura até que

ele esteja gordo, no ponto de ser abatido. Porém, enquanto está 34 A língua guarani era, por isso, chamada de “língua geral” (N. do E.).

91

cativo, dão a ele tudo o que quer comer lhe entregam suas próprias

mulheres ou filhas para que faça com elas os seus prazeres. São

essas mesmas mulheres que se encarregam de tratá-lo e de

ornamentá-lo com muitas plumas e muitos colares que fazem de

ossos e de pedras brancas. Quando está gordo, as festividades são

ainda maiores. Os índios se reúnern e adereçam três meninos de seis

ou sete anos de idade e colocam-lhes nas mãos umas machadinhas

de cobre. Chamam então um índio que é tido como o mais valente

entre eles, colocam-lhe uma espada de madeira nas mãos, que

chamam de macana, e o conduzem até uma praça onde o fazem

dançar durante uma hora. Terminada a dança, dirige-se para o

prisioneiro e começa a golpeá-lo pelos ombros, segurando o pau com

as duas mãos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis

golpes na cabeça, o que ainda não é suficiente para derrubá-lo, pois é

impressionante a resistência que eles possuem, especialmente na

cabeça. Somente depois de muito bater com aquela espada, que é

feita de uma madeira negra muito resistente, é que consegue

derrubar o prisioneiro e inimigo. Aí então chegam os meninos com as

machadinhas, e o maior deles, ou filho do principal, é o primeiro a

golpeá-lo com a machadinha na cabeça até fazer correr o sangue. Em

seguida, os outros também começam a golpear e, enquanto estão

batendo, os índios que estão em volta gritam e incentivam para que

sejam valentes, para que tenham ânimo para enfrentar as guerras e

para matar seus inimigos; que se recordem que aquele que ali está já

matou sua gente. Quando terminam de matá-lo, aquele índio que o

matou toma o seu nome, passando assim a chamar-se como sinal de

valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a

despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas. Depois repartem entre

92

si, sendo considerado algo muito bom de comer, e voltam às suas

danças e cantos por mais alguns dias, como forma de regozijo35.”

Referências

CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1999.

MENDES Jr. et al. Brasil História: colônia. São Paulo: Brasiliense,1977.

PRADO Jr. Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1942.

S. CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959.

SOUSA, Pero Lopes. Diário de navegação. Cadernos de História. São Paulo:

Parma, 1979.

VIANA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972.

35 Hans Staden, aventureiro alemão que foi durante alguns anos prisioneiro dos tupiniquins, em Ubatuba, São Paulo, descreve o ritual antropofágico de maneira muito semelhante (N. do E.).

93

7 JESUÍTA GAÚCHO SE DOUTORA

EM BUENOS AIRES __________________

Luiz Osvaldo Leite∗

Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS

O intercâmbio entre jesuítas argentinos e brasileiros do Sul não foi, ao

longo dos tempos, freqüente. Em quase duzentos anos, desde 1814, data da

restauração da Ordem (supressa em 1773) por Pio VII, os contatos foram

raros. Mas, alguns brasileiros estudaram Teologia em Buenos Aires e alguns

argentinos fizeram a última etapa de sua formação em Pareci Novo, RS, tal

como Agato Pucheta, Alexandre del Corro, Atanásio Sierra, Hector Grandinetti

e Otmar Wiedmann. E os Padres Carlos Teschauer e Arnaldo Bruxel

pesquisaram história nos arquivos platinos.

Ora, nesse trabalho, queremos registrar um fato raro: o doutoramento

do Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ, na Argentina. Tratou-se do primeiro

Doutor em Filosofia nascido no Rio Grande do Sul.

Pe. Steffen foi destinado a Roma para doutorar-se em Filosofia na

Pontifícia Universidade Gregoriana, onde permaneceu em 1939 e 1940,

residindo no Colégio Pio Brasileiro. A situação romana, como, aliás, de toda

Europa, com a II Guerra Mundial se tornara dramática, com dificuldade,

inclusive, para a alimentação. Pe. Steffen, que aprontara tese sob a

orientação do Pe. Naber, SJ, sentiu que não poderia defendê-la na Cidade

Eterna. O boletim da Província Sul-Brasileira da Companhia de Jesus, Pela

∗ Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pesquisador do Pensamento Sul-rio-grandense. Av. Ganzo, 385/706, CEP 90150-071, Porto Alegre, RS, Brasil.

94

Província, em sua edição de julho-agosto de 1940, página 02, noticia

laconicamente: “Do Rio de Janeiro veio a notícia que o Pe. Steffen embarcou

em Gênova, no vapor Almirante Alexandrino do Lloyd Brasileiro”. Assim, no

Pio Brasileiro só restavam 26 alunos. Em outubro do mesmo ano, Pela

Província, página 02, registra: “Pe. Steffen tendo feito seu retiro na Casa da

Gávea e os últimos votos em Nova Friburgo, RJ, gentilmente recebido e

festejado pelos membros daquela comunidade, encontrou-se com o R. Pe.

Provincial, Pe. Walter Hofer, SJ, em Florianópolis, e continuou viagem para

São Leopoldo, onde se prepara para uma cadeira de Filosofia”.

Mas, um problema continuava no ar: como ficava a situação

acadêmica do Pe. Steffen? Com tese pronta em Roma, quando e onde

defenderia seu trabalho?

Depois de reflexões e contatos, ficou decidido que Pe. Steffen

defenderia sua tese na Faculdade São Miguel de Buenos Aires, Argentina.

O boletim Pela Província, em maio de 1941, página 04, detalha o

acontecimento: “O Pe. Antônio Steffen viajou de vapor, em um dia, até

Pelotas, em outro carro-motor até Montevidéu e de lá até Buenos Aires de

ônibus e vapor. Embora chegasse sempre a desoras, foi recebido com muita

caridade pelos nossos Padres da Província irmã. No dia 31 de março chegou

ao Colégio Máximo em São Miguel, sendo o dia 05 de abril escolhido para a

defesa da tese. O tema, combinado há mais de ano, com o Pe. Naber

professor da Gregoriana, é o seguinte: “Die Erkenntnissicherung bei Nicolai

Hartmann”. Este filósofo é professor da Universidade de Berlim e foi o autor

acatólico que mais se afastou do idealismo kantiano e mais se aproximou do

realismo neo-escolástico. Fora do original alemão, o doutorando elaborou

ampla edição latina e, a pedido do R. Pe. Reitor Pita, fará outra portuguesa

que será traduzida ao castelhano e publicada pela Faculdade de São Miguel.

Deram parecer sobre a tese o R. Pe. Henrique Pita e o R. Pe. Ismael Quiles.

Fizeram parte da banca examinadora na ocasião da defesa da tese, fora os

95

dois citados, os Padres João Bussolini, Antônio Ennis e Tomaz Mahon.

Esteve presente todo o corpo docente e discente do Colégio Máximo. O

resultado “magna cum laude” alegra a província não menos que ao Pe.

Steffen. Voltou na sexta-feira santa e já leciona “Introductio in Philosophiam”.

Os textos alemão e latino da tese ainda não foram publicados,

permanecendo inéditos. Mas a versão castelhana está publicada na revista

argentina Ciencia y Fe.

Pe. Steffen é citado como destaque neo-escolástico da Faculdade

São Miguel em obra de Luis Farre, onde equivocadamente é apresentado

como pensador estrangeiro.

Mas quem foi Pe. Henrique Antônio Steffen, SJ? É o que tentaremos

responder, logo a seguir. Os dados, aqui registrados, foram extraídos dos

Catálogos das Províncias Jesuítas, das folhas noticiosas Pela Província e

Informativo da Província Sul-Brasileira e, dos Necrológios publicados.

Formação Religiosa e Acadêmica

Pe. Steffen nasceu aos 27.01.1906, em São Benedito, Tupandi, RS.

Faleceu em São Leopoldo, aos 05.05.1993.

Ingressou na Companhia de Jesus aos 02.03.1923, no Colégio São

José, de Pareci Novo, RS. Durante dois anos, fez seu Noviciado, tendo como

mestre de noviços o Pe. Leonardo Arntzen, SJ (1879-1965), destacado

jesuíta, provincial do sul do Brasil por duas vezes: de 1931 a 1940 e de 1946

a 1952. Foram colegas de Pe. Steffen o Pe. Balduíno Rambo, SJ (1905-

1961), cientista e catedrático fundador da Faculdade de Filosofia da

Universidade de Porto Alegre, mais tarde URGS e UFRGS; Pe. Bertoldo

Braun, SJ (1901-1964), destacado educador e diretor do Colégio Catarinense

de Florianópolis; o brilhante e discutido Huberto Rohden (1893-1981), autor

de extensa obra filosófica e teológica, ainda hoje difundida, que ingressou na

96

Ordem já sacerdote. Os primeiros votos perpétuos de Pe. Steffen foram

pronunciados em março de 1925.

Em 1925 e 1926, Pe. Steffen completou Curso de Retórica e

Humanidades no mesmo Colégio São José, ocasião em que conseguiu

aprofundar seus estudos de Grego, Latim, Alemão, Português e História. Seu

grande mestre, nesta fase, foi o Pe. Henrique Lanz, SJ (1870-1942), exímio

conhecedor das humanidades greco-romanas.

De 1927 a 1929, cursou Filosofia no Seminário Central, de São

Leopoldo, RS. Foram seus professores principais — leitores como eram

denominados — da Filosofia Neo-Escolástica o Pe. Leonardo Mueller, SJ

(1884-1945), Pe. João Rick, SJ (1869-1946) e o Pe. Eduardo Gierster, SJ

(1870-1940). Em disciplinas complementares ouviu preleções do Pe. Luis

Angerpointner, SJ (1887-1966) em História da Filosofia, do Pe. Jacó Racke,

SJ (1884-1968) em Questões Conexas de Filosofia com Física, Química e

Matemática e, do Pe. Júlio Poether, SJ (1869-1939) em Questões Conexas

de Filosofia com Biologia e Fisiologia.

O curso de Teologia desenvolveu-se de 1934 a 1937 no Seminário

Central de São Leopoldo, RS. Figura eminente do curso foi o Pe. José Mors,

SJ (1887-1960), responsável pelas disciplinas Teologia Fundamental e

Teologia Dogmática. Pe. Mors é autor de memorável obra, em oito volumes,

cuja primeira edição sob o título Institutiones Theologiae Dogmaticae (6

volumes) e Institutiones Theologiae Fundamentalis (2 volumes) foi publicada

pela Editora Vozes de Petrópolis, RJ, de 1937 a 1943, e cuja segunda edição

sob o título Theologia Fundamentalis (2 volumes) e Theologia Dogmatica (6

volumes) foi publicada pela Editorial Guadalupe de Buenos Aires, de 1950 a

1955. Teve como colaborador o Pe. Godofredo Kessler, SJ (1899-1967),

brilhante, mas socrático professor, que não nos deixou obra escrita, uma vez

que destruía todos os seus apontamentos no final de seus cursos. Também

lecionaram no curso o Pe. João Baptista Reus, SJ (1868-1947), autor do livro

97

Curso de Liturgia (Vozes, 1939): Liturgia; Pe. Cândido Santini, SJ (1899-

1977), autor de Summula luris Publici Ecclesiastici (Seminário Central de São

Leopoldo, 1948, 4ª edição): Teologia Moral e Direito Canônico; Pe. Henrique

Liese, SJ (1861-1941): Exegese do Velho e do Novo Testamento; Pe.

Eduardo Gierster, SJ: Teologia Fundamental.

Em 1938, Pe. Steffen completou sua formação jesuítica com a

chamada Terceira Provação, no seu conhecido Pareci Novo. Seu Instrutor foi

o suíço Pe. Ludovico Zuber, SJ (1878-1961). Foram seus colegas, nesta

etapa, Pe. Francisco Bragança, SJ (1907-1993), fundador e primeiro reitor da

hoje UNICAP, de Recife; Pe. Roberto Sabóia de Medeiros, SJ (1905-1955),

apóstolo da ação social e fundador da FEl, de São Paulo; Pe. Felix de

Almeida, SJ (1908-2002); Pe. Afonso Rodrigues, SJ (1904-2002); Pe. Afonso

Hansen, SJ (1906-1984) e Pe. Balduíno Rambo, SJ.

Em 1939 e 1940 fez biênio de Filosofia como acima referíamos.

Atividade Docente

De 1930 a 1933, Pe. Steffen lecionou Religião, Português, Latim e,

principalmente, Inglês no Colégio Anchieta, de Porto Alegre, RS. O Anchieta

vivia um dos seus mais significativos momentos. Pe. Steffen conviveu com

mestres destacados, entre os quais cabe destacar: o Pe. Werner von und zur

Mühlen, SJ (1874-1939), professor de Filosofia e apóstolo da inteligência

gaúcha; Pe. Henrique Koehler, SJ (1869-1947), latinista exímio e autor de

conhecidos dicionários latinos editados pela Livraria do Globo; Pe. Luís

Gonzaga Jaeger, SJ (1889-1963), membro do Instituto Histórico e Geográfico

do Rio Grande do Sul e autor de Os Três Mártires Ro-Grandenses; Pe.

Maximiliano Krause, SJ (1869-1952), professor de Física e Química; Pe.

Adalberto Heeb, SJ (1861-1941), editor de obras didáticas para o ensino do

Inglês como Made Easy e English Primer; Pe. Leonardo Fritzen, SJ (1885-

1965), professor de Português e responsável pela famosa polêmica com Erico

98

Verissimo; Pe. Lourenço Schneider, SJ (1876-1960), professor de Latim e

Matemática; Pe. Pio Buck, SJ (1883-1972), cientista e naturalista; Pe. Max

Schneller, SJ (1883-1939); Pe. Jorge Sedelmayer, SJ (1876-1949) e Pe.

Carlos Souza Gomes, SJ (1879-1936), o inesquecível Tio Quincas. Foi seu

Reitor o Pe. Henrique Book, SJ (1872-1946), eminente figura de educador,

profundo conhecedor da legislação de ensino e convicto humanista, autor do

ensaio Latim, Base do Ensino Secundário, publicado no Relatório do Colégio

Anchieta de 1944.

Mas a precípua atividade do Pe. Steffen foi o magistério superior de

Filosofia, exercido ininterruptamente por 28 anos, de 1941-1969, em São

Leopoldo, no Seminário Central, na Faculdade de Filosofia do Colégio

Máximo Cristo Rei e nas Faculdades de São Leopoldo, hoje UNISINOS, onde

lecionou Introdução à Filosofia, Lógica Formal e Dialética, Crítica (Teoria do

Conhecimento), Ontologia, História da Filosofia, Textos de Aristóteles e de

Santo Tomás de Aquino.

Nestes anos foi colega de eminentes professores e pensadores como

Pe. Ernesto Rueppel. SJ (1902-1993), Pe. Pedro Zahnen, SJ (1897-1952),

Pe. João Nepomuceno Haas, SJ (1912-1993), Pe. UrbanoThiesen, SJ (1909-

1970), Pe. Mathias Schmitz, SJ (1916-1975), Pe. Jacó Racke, SJ (1884-

1968), Pe. Luis Mueller, SJ (1894-1987), Pe. Antônio Loebmann, SJ (1899-

1980), Pe. Otmar Mörschächer, SJ (1909-1998), Pe. Pedro Calderan Beltrão,

SJ (1923-1992), Pe. José Soder, SJ (1920-1998), Pe. Edmundo Dreher

(1909-2002), Pe. Arthur Bohnen, SJ (1917-2003), Pe. Walter Hofer, SJ (1897-

1961), Pe. Godofredo Schmider, SJ (1906-1971), Pe. Odilon Jaeger, SJ

(1922-1980), Pe. José Hauser, SJ (1920-2004), Pe. João Ruff, SJ (1915), Pe.

João Oscar Nedel, SJ (1921), Pe. L. B. Puntel, SJ (1935), Harry Schwengber

(1915) e Carlos Roberto Cirne Lima (1931).

Pe. Steffen viveu a evolução do Ensino Superior em São Leopoldo.

Foi aluno e professor do Seminário Central. Construído o Colégio Cristo Rei

99

(1942) lá residiu e lecionou. Vivenciou a criação do curso oficial da Faculdade

de Filosofia, Ciências e Letras Cristo Rei (1953), da qual se tornou professor

fundador, e a sua abertura para alunos leigos, isto é, não-eclesiásticos (1968).

Contrariado, assistiu a transferência dos estudantes filósofos jesuítas da

Faculdade Cristo Rei para a Faculdade Nossa Senhora Medianeira, de Nova

Friburgo, RJ (1965 e 1966). Em 1969, presenciou a concretização do sonho

do fundador do Ensino Superior oficial de São Leopoldo, Pe. Urbano Thiesen,

SJ: a criação da Universidade, hoje denominada UNISINOS.

Domínio Lingüístico

Pe. Steffen dominava várias línguas: Hebraico, Grego, Latim, Alemão,

Inglês, Francês, Italiano, Espanhol e Português. Depois do Vaticano II, ao surgir

a possibilidade de se rezar a Liturgia das Horas em língua diferente do Latim,

pediu aos superiores a faculdade de poder rezar os Salmos em Hebraico. “Sei

muitos de cor nessa língua, vendo e sentindo que a melhor tradução nunca

deixa de ser apenas tradução”, escreveu ele. Até o fim da vida conservou

consigo diversas edições bíblicas em Hebraico. Suas aulas, nas faculdades

eclesiásticas onde lecionou eram ministradas em perfeito Latim.

Ao deixar o magistério, destacou-se em traduções, tanto de línguas

estrangeiras para o Português, como deste para outros idiomas. Traduziu

obras de Filosofia, Teologia, Biologia, Botânica, História, Artes e Ascética.

Merecem destaque:

Do Alemão para o Português:

− J. B. Lotz. Ontico-ontológico: a tensão fundamental da Filosofia,

particularmente hoje. Estudos, abr./jun. 1957.

− J. B. Lotz. O existencialismo à luz da Encíclica Humani Generis,

− Hans Pfeil. Introdução à Filosofia. Editora Presença.

100

− Constantino Koser. Origens e espírito primitivo da Ordem

Franciscana. Vozes.

− Jörg Splett. O homem na sua liberdade. Editora Loyola.

− Paul Erbrich. Biologia molecular e evolução. Polígrafo da UNISINOS.

− Karl Hermann Schelkle. Introdução ao Novo Testamento. Editora Loyola.

− Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 1. A criação.

Editora Loyola.

− Karl Hermann Schelkle. Teologia do Novo Testamento. 2. Deus

estava em Cristo. Editora Loyola.

− Wolfgang Kayser. Das Groteske. Editora Perspectiva.

− Pe. Reus. Diário. Notícias para os nossos Amigos e Livro da Família.

− Heinrich Wöfflin. Renascença e Barroco. Editora Perspectiva.

Do Italiano para o Português:

− Projeto das novas Constituições das Irmãs Missionárias de S.

Carlos Borromeo. Edição Geral Especial.

− Dois artigos sobre as Missões das revistas Popoli e Missioni.

Do Latim para o Português:

− Martius. Descrição de plantas.

− José De Vries. Ontologla. São Leopoldo.

Do Inglês para o Alemão:

− Descrição de plantas.

Do Português para o Alemão:

− Pater Reus, SJ. Einer neuer grosser Halfer. Verlag S.

Grignionhaus. Alötting.

− Material para a Associação Comercial de São Leopoldo.

101

− Trabalhos sobre oligoquetos.

Do Português para o Inglês:

− Material para a Associação Comercial de São Leopoldo.

− Trabalhos sobre oligoquetos.

Além das traduções acima referidas Pe. Steffen fez adaptações didáticas

de obras, merecendo referência as do Latim para o próprio Latim:

− J. B. Lotz. Theses ex Ontologia. Seminário Central, São Leopoldo,

1941 (mimeografada).

− J. De Vries. Ontologia. São Leopoldo, s.d. (mimeografada).

− J. De Vries. Crittica: in compendium redacta. São Leopoldo, 1951

(mimeografada).

Trabalhos publicados

− O antiintelectualismo de Bérgson. Anuário do Seminário Central e

Colégio Cristo Rei, São Leopoldo, 1941.

− Inteligência e vontade. Revista Estudos, Porto Alegre, n. 15 (1943).

− O princípio de causalidade é analítico ou não? Revista O Seminário,

São Leopoldo, n. 20 (1945).

− El problema de la certeza de conocimiento en Nicolás Hartmann.

Revista Ciencia y Fe, Buenos Aires, n. 2(1945).

− No limiar da crítica. Revista O Seminário, São Leopoldo,

n. 21(1946).

− Logica formalis. Canoas: Ed. La Salle, 1949 (em Latim).

− Demonstração e caráter lógico dos princípios de causalidade.

Revista Organon, Porto Alegre, n. 1(1956).

− Kierkegaard e a religião. Revista Estudos, Porto Alegre.

jan./mar. (1958).

102

8 ITÁLIA SOLTA A GARGANTA

_________________

Décio Andriotti∗

O gosto pela ópera, que dinamizou liricamente o Rio Grande do Sul,

nada tem a ver com as colônias italianas e alemãs. Até pelo contrário. Porto

Alegre e a metade sul do Estado é que plantaram na alma de boa parte da

população gaúcha — do século XIX e primeiras décadas do XX — a paixão

pela ópera, principalmente a italiana. Antes mesmo da implantação das

colônias italianas. A grande contribuição musical dos imigrantes foi feita por

outras vias. Apesar do excelente desenvolvimento socioeconômico das

nossas regiões alemãs e italianas, elas não tiveram concomitantemente a

sensibilidade de construir teatros específicos. A igreja era prioridade quase

absoluta. Enquanto isso a metade sul luso-espanhola além das igrejas erguia

teatros que tinham a ópera como principal escopo. Companhia lírica havia

que até dedicava espetáculos no teatro em benefício da construção da igreja

local, como foi o caso de Bagé. Dezenas desses teatros nasciam fácil do chão

gaúcho luso-espanhol, como já advertimos citando-os no primeiro volume da

série Integração1.

Focalizaremos agora com detalhes importantes para este tema —

e não abordados antes — o que significaram os italianos (da Itália!) na

integração lírica Argentina-Brasil-Uruguai, particularizando o Rio Grande

do Sul. A população da nossa região luso-espanhola fazia intercâmbio

musical significativo com os países platinas e europeus. Importava ∗ Professor e historiador. Pesquisa a história da música erudita no Rio Grande do Sul. Praça Mal. Deodoro, 170/103. CEP 90010-300, Porto Alegre, RS, Brasil. 1 ANDRIOTTI, Décio. A ópera na integração. In: CLEMENTE, Elvo (Org.). Integração: artes, letras e história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 19-48

103

instrumentos de tal modo que rara era a família de classe média que não

possuísse algum, principalmente o piano. Avé-Lallemant assim relatou

sobre São Gabriel de 1858 “chamou-me a atenção ouvir piano em não sei

quantos lugares”2. E Hörnmeyer em 1850 escrevia que dentre os

profissionais liberais mais bem pagos no Rio Grande do Sul estavam

professores de desenho, canto e piano3. Existiam até professores

itinerantes — quando não daqui — que vinham do Uruguai e da Argentina.

Freqüentemente filhos iam a Montevidéu e Buenos Aires (bem mais que

para a Europa) para aprendizagem ou aperfeiçoamento.

Fundamentado numa feliz conjunção econômica e cultural, criou-

se um contexto musical que seguiu em gosto o rastro operístico traçado

perto de nós pelos países do Prata. A nossa maior influência nascia dali e

não do centro do País. O Prata, por sua vez, era alimentado por cantores,

músicos e dançarinos que vinham do Velho Mundo; da Itália na maior

parte. Geralmente organizavam-se em grupos (empresas) chamadas

quase sempre de Companhia Lírica Italiana ou, pomposamente de Grande

Companhia Lírica Italiana. Os melhores vinham já organizados da Itália; e

as óperas cantadas invariavelmente em língua italiana, mesmo as alemãs

e francesas como as de Wagner, Bizet ou Gounod, incluindo as operetas

de Strauss, Lehár, Offenbach, etc.

Por isso que o primeiro Wagner encenado no Rio Grande do Sul

(Lohengrin, 1928) foi cantado em italiano tendo, no elenco, famosos como

Carlo Tagliablue. Aliás, Carmen, só a conhecíamos em italiano. Pablo

Komlos, com a OSPA, foi quem nos deu a primeira Carmen inteira

em francês, o mesmo ocorrendo nos primeiros Wagner em alemão

(Tanhäuser e Lohengrin).

2 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). São Paulo: ltatiaia, 1980. p. 326. 3 HÖRNMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850. Porto Alegre: EDUNI-SUL, 1986. p. 100.

104

Vieram contudo para a América do Sul algumas raras companhias

líricas francesas e alemãs cantando tudo em francês e alemão,

respectivamente, mas sem receber o mesmo agrado do público em geral.

Houve uma inglesa que só cantava em inglês, mesmo as óperas italianas:

The barber of Seville (Rossini), The daughter of the regiment (Donizetti), ...

Aliás foi uma temeridade desde a saída da Inglaterra em 1915 quando o navio

escapou por pouco de ser afundado por um submarino alemão que o

perseguia. Depois de apenas duas récitas no Teatro Coliseo de Buenos Aires,

a companhia foi suspensa por falta de público. Os cantores ficaram em tal

miserabilidade que artistas que estavam se apresentando no Colón, entre

eles Galli-Curci, deram concerto em benefício dos desafortunados4.

Casos semelhantes ocorreram com companhias italianas tanto na

Argentina como no Brasil e no Uruguai, embora por outros motivos. Na

integração também se contabilizam fracassos. Mas o sacrifício, o entusiasmo

e o valor humano dessa gente se irmanaram para fundamentar nesses

países, algo que permanece em parte até hoje.

Repetindo, veio da Itália o maior número de grupos detentores da

melhor qualidade. O incremento dessa migração ocorreu na segunda metade

do século XIX coincidindo (e em conseqüência) na construção de teatros nos

principais centros dos três países citados. O apogeu situa-se entre 1890 e

1930 porque os teatros, que já faziam realizações independentes das

companhias líricas, passaram cada vez mais a organizar suas próprias

temporadas, assumindo a escolha do repertório e partindo para contratações

individualizadas através dos empresários de cada artista. Tanto nas

representações líricas quanto nos recitais e concertos sinfônicos. Tudo

acelerado pela facilidade dos meios de transportes e das comunicações.

4 DILLON, Cesar A. e SALA, Juan A. El teatro musical en Buenos Aires II. Buenos Aires: Ediciones de Arte Gaglianone,1999. Dillon e Sala fizeram e editaram pesquisas aprofundadas da ópera em Buenos Aires. Edições indispensáveis ao cultor do género.

105

A integração advém de outra forma: adaptando-se à realidade. Co-

produções e tráfico de informações sobre cantores, músicos, diretores,

cenógrafos. etc., até aprimoram certo intercâmbio. Foi o que viabilizou, por

exemplo, montagens no Centro de Cultura Musical da PUCRS de Porto

Alegre e no Teatro da OSPA. Ultimamente porém, o Teatro do SESI

promoveu duas co-produções significativas: Turandot de Puccini (1997) e A

Flauta Mágica de Mozart(1998).

O melhor exemplo de co-produção foi Turandot porque teve orquestra

da OSPA, maestro de Porto Alegre, coro da Argentina, coro do Uruguai, coro

de Porto Alegre (UFRGS), direção cênica de uma irlandesa radicada na Itália,

vestuário do Teatro Colón de Buenos Aires e, no naipe principal de cantores,

cinco uruguaios, dois argentinos, um chileno e dois brasileiros. Turandot —

que nunca fora encenada em Porto Alegre — chegou aqui através de um dos

mais completos exemplos de produção integrada do Cone Sul. Nem mesmo A

Flauta Mágica do Teatro do SESI, talvez a mais bela e criativa apresentação

lírica da nossa cidade nas últimas décadas e com elenco e encenação

internacionais teve, como integração a que nos referimos, a abrangência

daquela Turandot.

***

Retornemos ao passado. Das companhias líricas italianas, das quais

saímos beneficiados direta ou indiretamente, somos devedores de créditos

não só aos grupos organizados mas particularmente aos empresários

organizadores. Na sua maioria eram italianos natos com experiência de reunir

cantores e músicos já no Velho Continente. E o principal dentre eles, o maior

nome indiscutivelmente, foi Walter Mocchi (1870-1955). Trouxe ou contratou

para a América do Sul cantores extraordinários. Citaremos apenas alguns:

Galli-Curci, Muzio, Dalia Rizza, Elvira De Hidalgo, Giacomucci, Emma Carelli

106

(sua primeira esposa5), Rosa Raisa, Toti dal Monte, Bidu Sayão (sua segunda

esposa6), Storchio, a gaúcha Zola Amaro, Agostinelli, Besanzoni, etc.,

Caruso, Gigli, Schipa, Lázaro, Fleta, Lauri-Volpi, de Muro, Tedeschi, Pertile,

De Lucca, Tita Ruffo, Stracciari, Berardi, Danise, Dentale, o brasileiro Mário

Pinheiro, Segura Tallien, Damiani, Nazareno De Angelis, Carlo Galeffi, Apollo

Granforte, etc., maestros como Gino Marinuzzi, Felix Weingartner, Arturo

Padovani, Pietro Mascagni, Teófilo De Angelis, Edoardo Vitale, o brasileiro

Alberto Nepomuceno, etc., dançarinas corno Ana Pavlova, Maria Oleneva, ...

etc., etc., etc.7, (Incrível! Mas quem foi este cara?)

O entusiasmo, o tino, o dinamismo, o conhecimento das expectativas

do público, o senso para perceber valores emergentes, a coragem para

investir na arregimentação dos melhores artistas para conseguir formar

sempre a melhor companhia lírica fizeram dele o maior expoente empresarial

da ópera em todos os tempos. O Rio Grande do Sul deve-lhe gratidão; entre

outros benefícios, projetou profissionalmente a pelotense Zola Amaro e

oportunizou a estréia mundial da ópera O Rei Galaor do porto-alegrense

Araújo Viana, em 29.09.1922 sob a direção de Francisco Braga no Teatro

Municipal do Rio de Janeiro.

Importante seguir a trajetória dele até chegar ao cume. Antes de

empresário foi socialista radical. Aos trinta anos era proprietário e redator-mor

de um dos principais jornais do socialismo italiano, L’Avanguarda Socialista,

que tinha posição mais à esquerda da esquerda. Lutou e conseguiu levar os

trabalhadores de Milão para uma greve geral em setembro de 1904. Durante

cinco dias paralisou a cidade. Pode-se imaginar as antipatias que carreou 5 Emma Carelli (1877-1928) casou com Mocchi em 1898. Muito jovem já cantava Desdemona no Scala com Tamagno ou Bohème com Caruso e Chaliapin. Organizou com o marido turnês pela América do Sul. Admirada por Toscanini, Mascagni e Leoncavallo. Morreu num acidente de automóvel. 6 Bidu Sayão (1902-1999) era 32 anos mais moça. Separou-se dele em 1947 e casou com o barítono Giuseppe Danise (1883-1963). Ambos muito favorecidos por Walter Mocchi. 7 Tentou levar Vicente Celestino de 19 anos para Milão; com tudo pago para que tivesse a melhor formação. Percebeu que o garoto possuía muito para tomar-se um grande barítono ou tenor dramático. Vicente Celestino não aceitou a oferta.

107

para si e para a esposa porque Emma Carelli, embora não posicionada como

o marido, era abertamente simpatizante da classe operária. Embora

primadona reconhecida do Scala, passando pelas ruas de Milão ouvia com

freqüência ci ritroveremo al lírico (nos encontramos na ópera). Clara ameaça

de vaias8. No ano seguinte ele até poderia chegar ao legislativo porque fora

indicado por sete colégios eleitorais.

Passados esses anos de vivência política, Walter Mocchi, foi se

convertendo cada vez mais num empresário lírico, evidentemente influenciado

pela carreira da esposa. Pensava e falava bastante sobre Brasil e Argentina.

Antevisão de que Itália, Argentina e Brasil acabariam sendo seus países

irmanados através da ópera. O primeiro grande passo foi o de ser empresário

do Teatro Adriano. Em seguida tornou-se nada menos que o arrendatário do

Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, fazendo de Emma Carelli a

Diretora do Teatro.

O Teatro Costanzi transfigurou-se e durante os anos seguintes

revelou-se o grande rival do Teatro alla Scala. Rival mas não adversário

porque Mocchi conseguiu que os dois teatros tivessem um intercâmbio tal que

se homogeneizasse pelo alto a qualidade dos espetáculos. Assim que

Toscanini, Serafin, Vitale, De Angelis, Pietro Mascagni e Richard Strauss

foram maestros agenciados também por ele, além de ajudar a projetar jovens

como Vittorio Gui.

Não esquecendo totalmente o passado socialista criou os primeiros

sindicatos de agentes teatrais, Sin, Stia e La Teatral, enfrentando deboches

da imprensa9.

A partir de então, Mocchi e Carelli fizeram do Costanzi o grande

distribuidor lírico para Argentina, Brasil e Uruguai. Com as inaugurações do

8 CARELLI, Augusto. Emma Carelli: trent’anni di vita del teatro lírico. Roma: Casa Libraria Editrice, 1932. 9 Gazzeta dei Teatri de Milão (10.05.1923) criticava dizendo que era o “esordio” de um novo gênero.

108

novo Colón (1908) e do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1909), a

perspectiva multiplicou-se geometricamente. E a Empresa La Teatral de

Mocchi foi a primeira a se apresentar com temporada de ópera no Municipal

(de 20.07 a 08.08.910)10.

Eis o seu manifesto:

Congreguemos todos esses teatros sul-americanos em um ‘trust’, chefiados por uma só associação tendo por base o teatro italiano, para que se possa organizar temporadas operísticas de primeira grandeza. Será fácil recolher a fina flor da arte lírica italiana porque a perspectiva de um trabalho estável, duradouro e bem remunerado, atrairá para nós um grande número de artistas. Do lado empresarial a expansão da idéia não deixará de crescer e sendo assim ficam anuladas todas as concorrências na América11.

A única idéia com conotação negativa para os dias de hoje seria a de

“trust”. Não o era para a época e nem para o socialismo que sempre admitiu-a

como controle estatal. Mocchi originariamente um nacionalista, mutou para

ítalo-platino-brasileiro e até casou mais tarde com a brasileira Bidu Sayão.

Importante que como empresário nem falava de lucros nesse manifesto mas

preocupa-se com a boa remuneração dos artistas. Por outro lado fica bem

clara a intenção de conseguir o máximo de qualidade para os espetáculos dos

teatros sul-americanos, anulando também a concorrência das muitas

companhias líricas mal organizadas, em constantes lutas prejudiciais entre

elas, com pouca qualidade e que, com o nome de Companhia Lírica Italiana,

prejudicavam a imagem tradicional da cultura peninsular.

10 Com elencos sempre renovados voltará a se apresentar várias vezes até 1926. Semelhante ocorrendo com o Colón e o Coliseo de Buenos Aires. Com isso o Coliseo elevou-se ao mais alto nível de sua história. 11 CARELLI, 1932

109

Fez um contrato com o duque Uberto Visconti di Modrone12,

presidente da sociedade mantenedora e diretiva do Scala para que esse

teatro participasse com o Costanzi e assim ripetere al Brasile e in Argentina

quanto di più sontuoso Scala e Costanzi avevan rivelato nelle loro grandi

stagioni italiane (repetir no Brasil e na Argentina o quanto de mais belo e de

mais majestoso Scala e Costanzi tinham mostrado nas suas grandes

temporadas italianas)13.

Isto foi feito superando as expectativas pelo que se observa lendo os

jornais, revistas e outras publicações da época. Acontece que, ao passar das

temporadas, Mocchi foi derrubando fronteiras políticas e organizando grupos

numa ampla integração internacional, para maior receptividade de brasileiros,

argentinos e uruguaios. Recebeu criticas e novamente da Gazzetta dei Teatri

de Milão comentando a formação do próximo grupo que viria para cá: “O

elenco de artistas compõe-se de vinte e nove participantes: sete alemães,

cinco franceses, cinco argentinos, dois espanhóis e dez italianos. Fechando a

conta: dezenove estrangeiros e dez dos nossos. E a respeito dos maestros:

dois italianos e um alemão” (o alemão era “Riccardo Strauss”).

Mocchi tinha um bom relacionamento com os elencos e com a

imprensa. Mas ao mesmo tempo era exigente e político com os cantores.

Sabia perfeitamente que um mesmo cantor na mesma ópera se uma noite

cantava bem na outra poderia ser diferente. Necessitava de alternâncias para

rotação. Em 1915 levou no grupo quatro tenores de primeira linha para o

Colón: Caruso, Lázaro, De Muro e Tedeschi14. Caruso era tradicionalmente

um Radamés incomparável e parecia insubstituível. Aconteceu que

justamente numa Aida ele esteve mal e a crítica não perdoou. Aida seria

12 Tio do cineasta Luchino Visconti. O pai de Luchino, Giuseppe, também pertenceu à sociedade fundada pelo avô Guido, juntamente com Arrigo Boito e Arturo Toscanini. Ver La Scala Racconta de Giuseppe Barigazzi. Milão: BUR, 1991. 13 CARELLI, 1932 14 Alfredo Tedeschi (Alfio Tedesco) cantou mais vezes no Metropolitan (N. York) do que Caruso, Gigli, Lázaro, Del Monaco, Schipa, Björling, Corelli ou Kraus. Ver Annals of the Metropolitan Opera. New York: The Metropolitan Opera Guild, Inc., 1989.

110

repetida em seguida, no domingo. Mocchi substituiu Caruso por De Muro. De

Muro soube pelos jornais de manhã que seria ele quem cantaria Aida. Correu

para falar com Mocchi e encontrou-o com Caruso. Cumprimentou Caruso

“como estás?”. Caruso: “não leste os jornais?” De Muro virou-se então para

Mocchi: “que jogo é este?” Mocchi: “jogo? Esta é a tua sorte. Se cantares

como em Roma, terás tudo a ganhar15. Foi um sucesso de De Muro, mas

Caruso voltou em outra noite e aí público e crítica viram e ouviram novamente

aquele gênio consagrado.

Todo este relato tem como finalidade mostrar a autoridade e a

compreensão de um empresário especial que sabia substituir no momento

oportuno. Como um grande técnico de futebol o faz ao substituir corretamente

a estrela que não está bem. Preservar o patrimônio humano e sem

desintegrar o grupo.

***

15 DEFRAIA, Antonino. Bernardo de Muro. Bolonha: Bongiovanni Editore, 1995.

111

Fig. 1. O esbelto Theatro Carlos Gomes de Uruguaiana.

Infelizmente sacrificado em sinistros.

112

Fig. 2. O Theatro Sete de Abril de Pelotas já nos anos quarenta.

Possivelmente seja o mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo. A data da inauguração (1834) está no alto, à esquerda.

Ali se apresentou a Companhia Galli-Curci-Lázaro em 1915.

113

Fig. 3. Walter Mocchi (1870-1955).

Nenhum outro empresário conseguiu

tanto na história da ópera. Foi o grande integrador lírico da

América do Sul. Projetou a pelotense

Zola Amaro e oportunizou a estréia

mundial da ópera. O Rei Galaor do porto-alegrense

Araújo Viana.

Fig. 4. Tito Schipa (1888-1965). Walter Mocchi foi seu principal empresário. Esteve algumas vezes no Rio Grande do Sul cantando em teatros e cinemas. Ele e Gigli patrocinaram os mais famosos falsetes do século.

114

Fig. 5. Bidu Sayão (1902-1999) em Gilda no Rigoletto. Segunda esposa de Walter Mocchi e contratada por ele. Cantou em várias cidades gaúchas, inclusive São Gabriel. Memorável atuação na temporada lírica do Centenário Farroupilha 1935) no Theatro São Pedro.

Fig. 6. Amelita Galli-Curci

(1882-1963) A mais bela voz de

soprano lírico-ligeiro com coloratura,

do século XX. Os Estados Unidos da

América a conheceram e se extasiaram. Mas só depois

de Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande e Bagé.

115

Fig. 7. Hipólito Lázaro (1887-1974).

Tenor de excepcional registro e belíssimo

timbre. Foi o predileto de Mascagni, e Puccini chegou a considerá-lo

o melhor tenor da época.

Fig. 8. Pôster do Coliseu Bagéense sobre as apresentações em Bagé (1915).

116

Terminada a temporada no Colón, Walter Mocchi levou suas estrelas

com algumas modificações para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro16.

Foram dadas 17 récitas de 3 a 19 de setembro. Passaram para São Paulo e

lá, após encerrada a temporada, dissolveu-se o grupo conforme o previsto

pela agenda empresarial.

Amelita Galli-Curci e Hipólito Lázaro formaram então uma outra

companhia, Galli-Curci-Lázaro, conservando a maioria dos cantores e o

maestro Ricardo Dellera. Estréia no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro em

06.10.1915 com Sonambula de Bellini. Já pela qualidade já pelos preços

populares o sucesso das apresentações foi tanto que resolveram repetir em

São Paulo. Vitoriosos resultados. Tiveram então a feliz idéia da vinda ao Rio

Grande do Sul para grande gáudio dos pampas, embora naquele momento os

pampas não pudessem ponderar ainda o quão significativo era esse porvir.

Mesmo com as modificações (pequenas) feitas por Walter Mocchi, do

Colón ao Municipal do Rio e as feitas por GaIli-Curci-Lázaro do Municipal ao

São Pedro do Rio e dali ao São Pedro de Porto Alegre, o resultado

desembarcado em Porto Alegre trazia nitidamente — embora em grau um

pouco menor — o padrão Walter Mocchi. Vejamos os dois quadros:

16 Integrou-se ao grupo o tenor gaúcho de Livramento José Martins Pavão com formação européia. Mas Caruso só cantaria no Municipal em 1917, levado por Mocchi.

117

Dos 16 componentes básicos (porque certos co-primários eram

contratados nas próprias cidades onde se apresentavam) que vieram a Porto

Alegre, sete eram estrelas de Mocchi no Colón e cinco (também dele) no

Municipal. Apenas quatro eram de Galli-Curci-Lázaro. Aristide Anceschi já era

conhecido em Buenos Aires desde 1902. Não foi contratado para o Colón em

1915 porque possivelmente já tinha compromisso. Em junho e julho, por

exemplo, cantava no Coliseo pela Cia. Caracciolo-Gubellini. Maria Viscardi,

nascida na Umbria e perto de Roma, tinha elogiável registro de lírico spinto.

Destacou-se em Aida, Tosca, Cavalleria, Gioconda e outros assemelhados.

Contracenou com Anceschi ou Pinheiro várias vezes fora do Brasil. No ano de

sua morte (1966) até saiu em Roma a obra biográfica Maria Viscardi, una vita

118

per il canto17. Recém terminara um contrato quando GaIli-Curci chamou-a

daqui para cantar Tosca e Cavalleria. Mario Pinheiro ainda jovem tornou-se o

maior expoente dos baixos brasileiros (provavelmente fosse um baixo-

barítono). Apareceria elogiado em atuações na Itália. Criou o papel de O Rei

Galaor no Rio em 1922. Aida Poggetti, porto-alegrense, foi aluna do maestro

Mário La Mura quando ele morava aqui e trazia companhias líricas. No ano

anterior estreara no Theatro São Pedro, na ópera La Bohème, cantando na

presença do Presidente do Estado Borges de Medeiros. Galli-Curci convidou-

a para fazer Musetta e saiu-se bem. Sua contratação foi também um gesto de

interação da companhia com a Cidade.

*** Fica evidente que tal companhia, a mais qualificada que passou

por aqui, foi subproduto do dinamismo e das exigências qualitativas de

Walter Mocchi. Embarcou no porto de Santos vindo no navio Itapuca

expressamente fretado para esse fim. A Federação e Correio do Povo de

Porto Alegre, Echo do Sul de Rio Grande e Diário Popular de Pelotas

demonstravam ufana expectativa. Não escondiam o orgulho de que um

tenor gaúcho pertencia à companhia.

“Ouviremos nos Pagliacci o tenor brasileiro José Martins, rio-grandense, que há tempos viveu em nosso meio estudando medicina e cujos estudos abandonou para dedicar-se ao canto. Depois de um curso de quatro anos no conservatório, debutou em Milão com a referida ópera: tendo já cantado nos teatros municipais do Rio e São Paulo, recebendo consagração unânime da imprensa, conforme já publicamos. As localidades acham-se desde já à venda em a Livraria Americana...”18

Homenagens, recepções calorosas, festejos, elogios, muitos elogios

após cada performance. No dia 18, Amelita Galli-Curi completou 33 anos; até

17 DILLON, César A. e SALA, Juan. El teatro musical en Buenos Aires I. Buenos Aires: Ediciones de Arte Caglianone, 1997. 18 A Federação, 04.11.1915, p. 3.

119

jóias recebeu entre os presentes dados por fãs entusiasmados. Antes porém,

no dia 8, foi recebida juntamente com o esposo por Pinheiro Machado, então

vice-presidente do Estado. No dia seguinte foi a vez do Presidente Borges de

Medeiros recepcioná-los no Palácio Piratini. Parece que naquela época, ópera

e governo estavam mais integrados.

A seqüência dos espetáculos em novembro foi assim: Rigoletto (6),

Bohème (7), Lucia (8), Barbeiro (10), reprise de Bohème (11), Traviata (13),

Os Puritanos (14), Tosca (16), Cavalheria e Palhaços (17), Sonambula (19).

Eduardo Hirtz, proprietário e programador do Cine-Teatro Apoio, convidou a

companhia para mais três espetáculos a preços populares, já que a lotação —

que se esgotou era mais que o dobro da do Theatro São Pedro. No sábado

(20) foi Tosca. No domingo (21) à tarde, Rigoletto (com a dupla Galli-Curci-

Lázaro) e, à noite, Cavalheiria e Palhaços, finalizando com Galli-Curci

cantando a Ária da Loucura da Lucia, levando aquele povaréu “à loucura”.

Muitas cadeiras extras tiveram que ser colocadas para esses espetáculos.

Nos jornais saiu depois uma certa notícia curta, seca e significativa.

“A cia. lírica que há pouco trabalhou no São Pedro, obteve em 12 récitas

50:055$000. Nos 3 espetáculos que realizou no Apollo a receita foi de

13:600$000, perfazendo o total de 66:355$000, ou seja, 4:423$000 por

espetáculo”. Tempos transparentes!

*** Pelo navio Javary foram para Pelotas. Parte do grupo hospedou-se

no Hotel Aliança. Eram esperados ansiosamente e repetiu-se boa parcela do

ocorrido em Porto Alegre: homenagens, recepções, carinhos, festejos, etc.

Quatro foram as apresentações por assinatura19: Lucia, La Bohème,

Rigoletto e Traviata; realizadas no Teatro Sete de Abril que possuía

camarotes, cadeiras de platéia, balcões, galeria numerada e galeria sem

19 O Diário Popular de Pelotas noticiara diferentes programações de óperas durante os dias que antecederam a estréia. Significa que houve demora para optarem.

120

número (o tradicional “ poleiro”). A intenção inicial era que depois de Pelotas a

companhia voltaria para o Rio. Razões desconhecidas mudaram a idéia

anterior; para alegrias maiores nossas. Com isso foram dadas duas

apresentações em Rio Grande e três em Bagé.

No dia seguinte da Traviata de Pelotas o grupo foi de trem para Rio

Grande e apresentou Traviata numa noite e Rigoletto na outra. Ambas no

Polytheama que tinha melhores condições do que o Sete de Setembro20.

Coincidentemente o Polytheama apresentara recentemente o filme mudo A

Dama das Camélias de Giuseppe De Liguoro com Francesca Bertini e

Gustavo Serena. A orquestra do teatro tocava Traviata durante toda a sessão.

É de estranhar os constantes deslocamentos que na época faziam as

companhias líricas, empregando pouco tempo para arrumar e desarrumar. Na

época o público pouco se importava com cenários corretos ou guarda-roupa

valioso e muito menos com idéias de marcação cênica. O que facilitava ainda

mais deslocamentos e arrumações. As vozes é que faziam a alegria e o

entusiasmo do ouvinte e também que os cantores ficassem quase todo o

tempo com a cara virada para ele. Tal comportamento era comum na maioria

dos teatros do mundo de então.

De Rio Grande a companhia, também de trem, foi para Bagé. A

imprensa local descreveu a festiva chegada dos artistas na estação. Por

muito povo soltando vivas foram conduzidos aos alojamentos. Na praça, Galli-

Curci deu amostra do que faria no Coliseu Bagéense (seria algum trecho da

Lucia ou do Rigoletto?). No dia primeiro de dezembro foi Traviata com

Giacomucci e Lázaro. No dia 2, Lucia com Galli-Curci e Tedeschi. Na última

récita (3), Rigoletto cantado por Galli-Curci e Hipólito Lázaro. Esta récita foi

em benefício da Cruz Vermelha Italiana e com pensamento na distante Itália

sangrando pela guerra.

20 O Echo do Sul de Rio Grande só confirmou a vinda no próprio dia da estréia porque nada estava decidido. A companhia pensava voltar para o Rio, após Pelotas.

121

Numa avaliação comparativa hoje as apresentações em Porto Alegre,

Pelotas, Rio Grande e Bagé estariam assim: Plácido Domingo e Angela

Gheorghiou numa noite, em outra José Cura e Edita Gruberova, na seguinte

Cura e Gheorghiou e noutra Domingo e Gruberova.

Dormíamos de olhos abertos ou parece que a tradição insiste em

sonhar esses fatos reais como se fossem lendas?

*** Para este trabalho contribuiu principalmente parte das pesquisas

feitas pessoalmente e in loco nos acervos do Teatro alla Scala de Milão, do

Teatro Costanzi (Teatro dell’Opera) de Roma, do Teatro Colón de Buenos

Aires, do Teatro Municipal de Santiago, do Teatro Municipal do Rio de

Janeiro, da Biblioteca Nacional de Madri, da Biblioteca de Florença

(documentação sobre o Teatro Verdi), da Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro, da Biblioteca Rio-Grandense da cidade de Rio Grande, da Biblioteca

Municipal de Pelotas, da Biblioteca Pública de Porto Alegre, do Museu Don

Diogo de Souza de Bagé, do Museu Hipólito da Costa de Porto Alegre, do

jornal Correio do Povo de Porto Alegre e da Memória RBS de Porto Alegre.

In memoriam dos criadores e descritos em:

• Palco, Salão e Picadeiro (Editora Globo, 1956)

• O Teatro São Pedro na vida cultural do Rio Grande do Sul (DAC-

SEC/RS, 1975).

122

9 O PANORAMA CELESTE DA

BANDEIRA DO BRASIL ___________________

Geraldo Rodolfo Hoffmann∗

∗ Doutor em História Natural, Livre Docente em Geologia. Ex-Docente de Geologia e Paleontologia na PUCRS e UNISINOS. Av. General Barreto Viana, 599, CEP 91330-630, Porto Alegre, RS, Brasil.

123

O Panorama Celeste da Bandeira do Brasil: um posicionamento temático

Os eventos sul-americanos, sejam quais forem suas naturezas,

transcorrem sobre um substrato físico que é o próprio complexo geológico

continental (vide Hoffmann, G. R., Origem e evolução da América do Sul. in:

Integração 2002, Coleção Conesul 3).

Mas acima dos habitantes deste continente descortina-se, à noite,

um outro mundo peculiar: o exuberante panorama celeste austral. E

justamente este panorama é representado, em parte, no campo circular da

Bandeira Brasileira.

Assim a presente abordagem entretece a configuração estelar e

constelacional real com sua versão gráfica, tal como é efetivamente mostrada

na Bandeira Nacional do Brasil.

Bandeiras e sua diversidade

Compondo as idéias, tanto convergentes como divergentes, dos

conceitos constantes em dicionários e outras fontes, pode ser obtido um

consenso que, em termos gerais, seria o seguinte: bandeira é uma peça de

tecido (atualmente costuma ser empregado poliéster), geralmente retangular,

de uma ou mais cores, podendo portar emblemas, símbolos ou legendas. Tal

peça, que é presa à parte superior de uma haste de modo que possa

desenrolar-se e flutuar, serve de emblema ou distintivo de uma nação,

corporação, sociedade, partido ou congregação.

O termo lábaro, embora freqüentemente empregado como sinônimo

de bandeira, designa efetivamente, e numa conotação histórica restrita, o

estandarte dos exércitos romanos (LABARUM era o estandarte imperial).

A palavra flâmula, um diminutivo de flama e portanto com a

conotação de pequena chama, designa genericamente bandeiras de formato

124

triangular, sobretudo pequenas. Costuma ser definida como urna bandeirola

longa e estreita, terminada em bico ou farpada.

Na presente abordagem, contudo, o enfoque é direcionado às

bandeiras de nações, com a devida ênfase à Bandeira Brasileira. Em termos

mundiais estariam em cogitação tanto as bandeiras de nações atuais como

algumas de nações mais antigas que sofreram desmembramentos com

movimentos de independência.

Usualmente suas formas são retangulares, com as mais variadas

proporções das duas medidas fundamentais. Neste caso, considerando a

bandeira hasteada, a medida horizontal representa o comprimento e a medida

vertical sua largura.

Só raramente, como nos casos específicos da Suíça e do Vaticano,

as bandeiras são quadradas. Também igualmente raras são as bandeiras

recortadas, como no caso da Groenlândia (retangular com uma reentrância

triangular na extremidade livre) e do Nepal (a dupla flama).

No que diz respeito às cores, a bandeira pode mostrar um campo

monocromático sem qualquer adorno, como por exemplo a de Fujaira, ou

com eventuais figuras incorporadas. O mesmo é válido para bandeiras com

campos pluricromáticos. Portanto as bandeiras podem apresentar campos

de uma ou mais cores sem ornamentações, ou com tais campos

constituindo substratos para outros elementos. No caso de ocorrerem duas

ou mais cores, as zonas cromáticas podem ser separadas por linhas retas,

curvas, sinuosas ou denteadas, gerando campos secundários circulares,

quadrados, retangulares, triangulares ou de outros formatos; e isto nas mais

variadas combinações.

Na Bandeira Brasileira, a título de exemplificação, ocorrem três

configurações geométricas concêntricas: a interna circular, a intermediária

losangular e a externa retangular; de colorações respectivamente azul,

amarela e verde. Embora o verde e o amarelo do retângulo e do losango, já

125

constantes no desenho original de Jean Baptiste Debret para a primeira

Bandeira (concretizada logo após a Independência) tenham a conotação

tradicional “das matas e do ouro”, como riquezas naturais do Brasil, sua

origem remonta à permanência das cores das casas de “Lorena” (a família

Habsburgo de Dona Leopoldina) e “Bragança” (Dom Pedro).

Convém lembrar que de 1640 a 1683 estava em uso a Bandeira do

Principado do Brasil, portando a grande esfera armilar da coroa portuguesa.

Esta esfera armilar foi rein corporada à Bandeira Imperial do Brasil no período

de 1822 a 1889. Posteriormente, com a consolidação da República, as armas

imperiais, conservando a Cruz de Cristo e a esfera armilar com as estrelas

representativas das províncias, deram lugar ao atual círculo da Bandeira.

Embora nas bandeiras portadoras de estrelas a ocorrência destas

seja predominantemente unitária, sendo poucos os casos de duas ou mais, o

limite está praticamente em uma dezena.

Assim muitas bandeiras (mais de duas dezenas) apresentam, em

sua ornamentação, uma estrela de cinco pontas: Camarões, Chile, Coréia

do Norte, Cuba, Gana, Guiné-Bissau, Ilhas Marianas do Norte, Libéria,

Porto Rico, Senegal, Somália e Togo, bem como as repúblicas Árabe do

lemen, Benin, Centro-Africana, lemen do Sul, Djibouti, Timor Oriental e

Vietnã: em especial. Estrelas de cinco pontas com bordos marginados são

constatadas na bandeira da Iugoslávia (duas concêntricas) e do Marrocos

(com barras trançadas).

Já a bandeira de Israel, ostentando a estrela de Davi com suas seis

pontas, foge aos padrões usuais. Algo similar ocorre na bandeira de Burundi

com suas três estrelas de seis pontas. Igualmente raros são os casos de

estrelas com sete (Jordânia) ou mais pontas. Mas também não podem ser ignoradas as estrelas multirradiadas por

excelência, já com uma nítida conotação solar (Argentina, China Nacionalista,

Formosa (Taiwan), llhas Marshall, Nauru, Uruguai).

126

Nas bandeiras do Panamá, da República Democrática de São Tomé

e Príncipe, e da Síria, ocorrem duas estrelas, enquanto nas do Iraque e da

Micronésia constam, respectivamente, três e quatro estrelas. Nas bandeiras

de Honduras, Novas Hébridas e Ilhas Salomão estão presentes cinco

estrelas. Na de Niue e na da República Popular da China também ocorrem

cinco estrelas, sendo uma grande e quatro pequenas. A bandeira das Antilhas

Holandesas possui seis estrelas, enquanto as da Venezuela e de Grenada

contam com sete cada uma. As bandeiras de Tuválu e Dominica ostentam

nove e dez estrelas respectivamente.

Em termos de bandeiras nacionais atuais não ocorrem casos de oito

estrelas. Contudo uma curiosidade, que merece menção, é a da bandeira do

Alasca (um dos estados norte-americanos). Nela constam oito estrelas que

serão comentadas, comparativamente com a brasileira, no final do tópico

O Céu Austral.

Enquanto na maioria dos casos tais estrelas sejam os únicos

elementos presentes, sobre um fundo usualmente homogêneo, por vezes

estão conjugadas com outras figuras, tais como um arco lunar (crescente ou

minguante), uma foice e um martelo ou tantas outras.

Assim algumas variantes combinam estrelas com a Lua ou o Sol.

Uma estrela acompanhada pela Lua constitui um par constatável em

bandeiras como as da Argélia, da Mauritânia, do Paquistão, de Umn Al-

Qaiwain, da Turquia e da Tunísia. Já a Lua acompanhada por quatro

estrelas pode ser vista na bandeira da República de Comores, e por cinco

estrelas na de Cingapura. A bandeira das llhas Maldivas só apresenta a

Lua, ao passo que a da Malásia mostra a Lua e o Sol. Malavi e Antígua

incluem, nas suas bandeiras, meio Sol cada uma. No caso do Nepal ocorre

o Sol e um conjunto Lua-Sol.

Em certas bandeiras as estrelas são acompanhadas por outros

elementos, usualmente simbólicos. Uma estrela com uma foice ornamenta a

127

bandeira da República Popular do Congo, enquanto uma estrela

acompanhada pelo conjunto da foice e do martelo consta das bandeiras da

Ucrânia, da Bielorrússia e da extinta U.R.S.S. Na bandeira das Filipinas

ocorrem três estrelas juntamente com uma “roseta”.

Embora a temática fundamental desta abordagem seja a presença

de estrelas nas bandeiras, é apropriado ressaltar outros tipos de inclusões

ornamentais, responsáveis pelo aumento da complexidade nos desenhos

das bandeiras.

Dentro desta diversidade podem ser encontradas lanças, chaves,

brasões, escudos, letras e inclusive mensagens em forma de textos. Até

estilizações exóticas das mais diversas, como as três pernas radiadas (na

realidade coxas e pernas em ângulos) da Ilha de Man.

Finalmente temos os casos de animais típicos (“normais”),

estilizados e míticos. No primeiro caso predominam as águias, embora

possam ocorrer outras aves, além de leões e elefantes. Na categoria de

animais estilizados temos as típicas águias duplas e as águias de duas

cabeças e, no âmbito mítico, os dragões. Também vegetais, ou partes dos

mesmos, são representados em bandeiras (folhas, ramos, palmeiras e

árvores tradicionais). Como exemplos podem ser citadas as águias das

bandeiras equatoriana, espanhola e mexicana, bem como o quetzal (uma

das mais belas aves centro-americanas) na bandeira da Guatemala. A

bandeira da Albânia mostra uma águia bicéfala, acompanhada por uma

estrela. Em termos de mamíferos podem ser considerados os elefantes da

antiga bandeira do Laos e o Leão da Etiópia. Na bandeira do Butão está

um dragão. No âmbito botânico devem ser ressaltados o cedro da

bandeira do Líbano e a folha de bôrdo da bandeira canadense.

Um primeiro passo para representações constelacionais pode ser

constatado nas bandeiras da Samoa ocidental e de Papua — Nova Guiné,

ambas ostentando o Cruzeiro do Sul clássico, isto é, com suas cinco estrelas

128

fundamentais. A da Nova Zelândia, contudo, só apresenta as quatro mais

luminosas. A bandeira da Austrália também mostra o Cruzeiro do Sul (quatro

estrelas com sete pontas e a Intrometida com cinco) além de uma estrela

adicional de sete pontas; embora na transição histórica da evolução desta

bandeira tenha havido estrelas com oito pontas.

Grande número de estrelas, acima de uma dezena, ocorre somente

em quatro bandeiras: na da Birmânia, na das Ilhas Cook, na dos Estados

Unidos da América do Norte e na do Brasil. Nos dois primeiros casos as

bandeiras apresentam anéis constituídos por estrelas de cinco pontas: 14 no

caso da Birmânia (Burma) e 15 no das llhas Cook. As outras duas

ultrapassam bastante aqueles números (27 estrelas no caso do Brasil e 50 no

dos Estados Unidos). Uma peculiaridade, no caso da bandeira da Birmânia, é

que a versão mais antiga dispunha de um curioso desenho com apenas seis

estrelas de cinco pontas, sendo uma central grande e cinco pequenas

posicionadas entre as pontas da maior.

As estrelas da bandeira norte-americana (a clássica Stars & Stripes

Flag) estão perfiladas em alinhamentos geométricos lineares, segundo uma

rede regular formada por cinco linhas de seis estrelas entremeadas por quatro

linhas de cinco estrelas. Todas elas são de cinco pontas e de mesmo

tamanho, independendo portanto de qualquer representação constelacional;

constituindo assim um simples simbolismo numérico dos estados. Convém

ressaltar que nesta bandeira atual as estrelas são brancas e estão

concentradas num espaço retangular azul que ocupa uma posição esquerda

superior. O restante do campo da bandeira é ocupado pelas faixas horizontais

(listas) brancas e vermelhas alternadas. Na bandeira original (a primeira)

havia as mesmas 13 faixas, que foram conservadas, e apenas 13 estrelas

dispostas na forma de um anel (representando os estados originais).

Posteriormente, com o aumento do número de estados, só foram alteradas a

quantidade das estrelas e a sua disposição.

129

A Bandeira constelacionada

A única bandeira detentora da representação de uma “paisagem

celeste” é a brasileira, fato que, naturalmente, já determina a maior

complexidade do seu desenho.

Mas o que ela efetivamente mostra em seu campo estelar, o círculo

que representa a configuração estilizada de uma esfera armilar? A

representação é sobretudo simbólica, constituindo uma espécie de “licença

poética gráfica” e não um mapa celeste com seu devido rigor científico.

Como o campo estelar em questão está superimposto ao resto da

Bandeira, é requerido um esclarecimento da associação.

O delineamento básico da Bandeira obedece a um padrão geométrico

modular (vide Prancha I), definido pela legislação brasileira, sendo o campo

fundamental um retângulo modulado em 20 x 14. Portanto o módulo

referencial (arbitrário) é empregado para definir um comprimento de 20 M (M

por módulo) e uma largura de 14 M. O desdobramento deste campo

fundamental, mediante duas medianas perpendiculares, define quatro

retângulos menores e iguais que favorecem a seqüência do traçado.

Pontos marcados num afastamento de 1,7 M das margens, sobre os

extremos de cada mediana, permitem o traçado do campo losangular.

Finalmente é traçada uma circunferência com raio 3,5 M, centrada no

cruzamento das medianas. Tal linha (a circunferência) delimita o círculo da

Bandeira. O bálteo, a faixa oblíqüa que representa uma fração da Eclíptica

sobre o círculo, é obtido com o traçado de dois arcos paralelos, de raios 8 M e

8,5 M. Estes arcos são centrados num ponto situado na margem inferior da

bandeira, num afastamento de 2 M à esquerda da mediana vertical.

A palavra bálteo, embora esteja em desuso, corresponde à primitiva

designação de faixa branca da Bandeira, pois cinge o círculo à semelhança

da cinta do boldriê, isto é, uma correia a tiracolo (do latim balteurn: cinta,

cinturão ou talabarte). Eclíptica, o plano orbital terrestre, também designa a

130

linha gerada pela projeção celeste do perímetro deste mesmo plano. Como o

plano orbital da Lua possui uma inclinação de cinco graus e oito minutos de

arco, em relação ao plano da órbita da Terra, a posição do nosso planeta

irmão (denominado satélite por tradição) pode alcançar tal amplitude angular

de ambos os lados da linha da eclíptica. Estes limites, ao norte e ao sul da

linha, definem a faixa da eclíptica. Como sobre ela estão posicionadas

(embora parcialmente) cada uma das 12 constelações conhecidas como

zodiacais, também é conhecida como faixa do Zodíaco.

Enfim são delineadas as estrelas, sobre uma grade quadriculada

inscrita no círculo. A grade em questão tem malhas de um décimo do raio do

referido círculo. As estrelas (sempre brancas e de cinco pontas) obedecem

igualmente a uma construção modular, sendo empregadas cinco categorias

dimensionais representando estrelas de primeira a quinta grandezas, inscritas

em círculos de módulos 0,30 M, 0,25 M, 0,20 M, 0,14 M e 0,10 M.

Também as letras da citação ORDEM E PROGRESSO (advinda do

positivismo de Augusto Comte) seguem padrões modulares: 0,33 M de altura

por 0,30 M de largura para as letras das duas palavras e 0,30 M de altura por

0,25 M de largura para a conjunção E. Dentre tais letras, oficialmente de cor

verde, o P está posicionado sobre a mediana vertical.

O Céu Austral

Os panoramas celestes (estelares e constelacionais) devem ser

analisados sob dois aspectos fundamentais, ambos do ponto de vista de um

observador posicionado no Sul do Brasil e latitudes adjacentes. Um dos

aspectos é invariável e o outro variável.

A invariabilidade é determinada pela localização geográfica, isto é,

estrelas posicionadas entre 60°N e o Pólo Norte Celeste (boreais extremas)

nunca serão vistas por um observador no Rio Grande do Sul; estarão sempre

abaixo do seu horizonte.

131

No segundo aspecto estão enquadradas as estrelas posicionadas

entre a declinação boreal de 600 (correspondente à latitude 60°N) e o Pólo

Celeste Sul. A observação delas implica numa variabilidade parcial. Estrelas

entre 60°S e o Pólo Celeste Sul (austrais extremas) estarão acima do

horizonte durante toda a observação noturna, em qualquer época do ano. Já

as demais (entre as declinações 60°S e 60°N) estarão em parte acima e em

parte abaixo do horizonte. Quais delas serão visíveis dependerá do horário de

observação e da época do ano em que a mesma for efetuada.

O mais importante, diante destas circunstâncias, é que o observador

voltado para o Sul pode ver, olhando também para cima (o zênite), para a

esquerda (Leste) e para a direita (Oeste) — e inclusive forçando a cabeça um

pouco além destas orientações — as estrelas austrais por excelência

(aquelas posicionadas entre o Equador e o Pólo Celeste Sul). As principais

constelações que podem ser vistas por um observador diretamente voltado

para o Sul, estão representadas na Prancha II.

Virando-se em seguida para o Norte, e tendo agora o Leste à direita e

o Oeste à esquerda, poderá ver as demais estrelas até o limite latitudinal da

declinação celeste 60°N.

Dentro desse âmbito, que na realidade abrange a maior parte da

assim chamada esfera celeste, está a maioria das constelações mais

notáveis, incluindo as 12 zodiacais. Destas últimas sobressaem

particularmente oito: Áries, Touro, Gêmeos, Leão, Virgem, Escorpião,

Sagitário e Capricórnio. As constelações de Câncer, Libra, Aquário e

Peixes, cujas estrelas são menos chamativas, despertam menos a

atenção do observador.

Algumas dentre as não-zodiacais, posicionadas ao sul da faixa do

Zodíaco, são sobremodo atraentes, dada a grande luminosidade de suas

principais estrelas. No caso podem ser ressaltadas constelações como o

Cruzeiro do Sul, o Centauro, o Lobo, o Triângulo Austral, o Pavão, o Grou, a

132

Fênix, o caçador Órion, o Peixe Austral, o Cão Maior, o Cão Menor, o Corvo,

a Lebre e, naturalmente, o complexo da nau dos argonautas (Argo) com seus

três componentes principais: a Quilha, a Vela e a Popa.

Três constelações imensas (pois ocupam uma grande extensão no

céu), a Hidra, a Baleia e o Rio Erídano, são medianamente notáveis: com

exceção da última, cuja foz é simbolizada pela brilhante estrela Achernar.

Curiosamente esta estrela está posicionada tão meridionalmente quanto o

próprio Cruzeiro do Sul. Na Hidra igualmente sobressai uma estrela bastante

luminosa: Alphard, também citada como Alfard.

Dentre as boreais visíveis também podem ser referidas algumas

belíssimas constelações, tais como o Cisne, a Águia, a Lira, o Boiadeiro

(Boieiro), o Cocheiro, a Coroa Boreal e o par Pégaso-Andrômeda;

secundados por Hércules e Perseu. A famosa e bela constelação da Ursa

Maior, contudo, só é parcialmente visível das latitudes gaúchas.

Convém ressaltar que nenhuma das constelações boreais

posicionadas ao norte da faixa zodiacal (e portanto nenhuma das estrelas que

as integram) participam da amostragem estelar da Bandeira Brasileira.

Também convém esclarecer que apenas uma das estrelas de nossa

Bandeira é boreal: Procyon do Cão Menor. Ela está ao norte do Equador, mas

ainda assim ao sul da Eclíptica (metade da linha da Eclíptica fica ao norte e a

outra metade ao sul do Equador).

Na definição do panorama celeste representado na Bandeira

Brasileira participam estrelas de nove constelações, sendo duas delas

(Virgem e Escorpião) zodiacais. Da constelação de Virgem só é considerada

uma estrela, sua alfa conhecida pelo nome de Spica. De parte do Escorpião

temos a presença de oito estrelas.

Dentre as não-zodiacais, tanto a constelação do Cruzeiro do Sul

como a do Cão Maior contribuem com cinco estrelas cada uma. O Triângulo

Austral participa com suas três estrelas fundamentais e a Hidra (mais

133

precisamente Hidra Fêmea) com duas. Do Cão Menor só consta sua alfa, a

estrela Procyon. Da “super-constelação” Argo, a nau dos argonautas, apenas

está inscrita na bandeira a Alfa da Quilha, de nome Canopus. Curiosamente a

Sigma do Oitante é uma das estrelas menos luminosas desta constelação de

difícil identificação. A importância desta estrela é sobretudo simbólica.

Conhecida como Estrela Polar Sul (em contrapartida a Polaris que é a Estrela

Polar do Hemisfério Norte), ela simboliza o Distrito Federal.

Cinco das bandeiras inicialmente referidas (Bandeiras e sua

diversidade) mostram, cada uma, uma constelação. Nas da Austrália, Nova

Zelândia, Papua-Nova Guiné e Samoa trata-se do Cruzeiro do Sul; na do

Alasca da Ursa Maior. Mas a bandeira do Alasca possui oito estrelas, das

quais apenas sete compõem a constelação da Ursa Maior. A oitava

representa Polaris, a brilhante estrela polar boreal. Portanto duas bandeiras

ostentam estrelas polares: a do estado norte-americano do Alasca (Polaris) e

a brasileira (Sigma do Oitante).

O Cruzeiro do Sul e sua translação

O quadro constelacional, visível no céu noturno, varia com o horário e

com a época do ano em que são feitas as observações.

O Cruzeiro do Sul, por exemplo, é visível posicionado verticalmente,

acima do horizonte Sul, no início da noite na transição de maio a junho. Tal

posição também é constatada em março, mas por volta da meia-noite, e em

janeiro antes de amanhecer.

Se no primeiro caso (maio-junho) a observação do Cruzeiro do Sul for

efetuada à meia-noite, ele estará “deitado” acima do horizonte Sul-Sudoeste.

Pouco antes de amanhecer, estará fortemente inclinado (de “cabeça para

baixo”) descendo junto ao horizonte. Contudo na mesma ocasião, na latitude

da cidade do Rio de Janeiro que é adjacente ao Trópico de Capricórnio, o

Cruzeiro do Sul já estará praticamente abaixo da linha do horizonte. Esta

134

referência é oportuna pois o Rio de Janeiro, na qualidade de antigo Distrito

Federal, é a cidade referencial do quadro estelar da Bandeira (vide adiante,

no tópico O Céu efetivo da Bandeira, as leis pertinentes).

A representação geral da Prancha III mostra o Cruzeiro do Sul

posicionado horizontalmente acima do horizonte Sul-Sudeste, no início da

noite, nos primeiros dias de março. Por volta da meia-noite já ocupará um

posicionamento vertical e estará deitado acima do horizonte Sul-Sudoeste

antes do amanhecer.

Este movimento translacional (que no presente exemplo ocorre em

sentido horário para o observador) decorre do movimento de rotação da

Terra para Leste (no caso em sentido anti-horário). Tal deslocamento do

Cruzeiro do Sul, mostrado em detalhe na mesma prancha, é acompanhado

pelas demais constelações pois a rotação terrestre (fenômeno real) sugere

ao observador a idéia do giro de toda a abóbada celeste (movimento

aparente conseqüente).

É apropriado recordar que, convencionalmente, as estrelas de uma

constelação são designadas mediante letras gregas minúsculas, em ordem

decrescente de brilho (salvo exceções). No caso do Cruzeiro do Sul isto é

válido para as cinco estrelas principais, quatro das quais ainda recebem

denominações próprias, populares e consagradas. Assim a Alfa é também

Acrux ou Estrela de Magalhães, a Beta é Mimosa e a Gama tem a designação

de Rúbia. A menos brilhante das cinco (Epsilon), excêntrica em relação ao

ponto de cruzamento dos braços que são desiguais e um pouco inclinados, é

conhecida por Intrometida.

O problema da especularidade

A especularidade, também designada enantiomorfia, representa a

condição da imagem de um corpo formada num espelho, constituindo assim o

inverso da forma real.

135

Já a igualdade, geometricamente, indica que duas figuras

seriam superponíveis.

A distinção pode ser facilmente reconhecida se considerarmos as

mãos como elementos de comparação. As duas mãos só seriam iguais se

suas formas, igualmente orientadas (palmas voltadas para o mesmo lado),

fossem superponíveis, o que não ocorre na realidade. A forma da mão

esquerda corresponde à imagem da outra (a direita) formada num espelho.

Por esta razão as duas mãos não são iguais, mas sim especulares (=

simétricas = enantiomorfas). A Figura 1 da Prancha IV demonstra,

comparativamente, as condições de igualdade e de simetria.

As representações constelacionais e estelares da Bandeira são

efetivadas em condição de especularidade. Assim o Cruzeiro do Sul,

mostrado na Bandeira, representa o inverso (imagem simétrica) da

constelação tal como é vista no céu.

Consideremos, para tanto, o aspecto do Cruzeiro do Sul visto através

do vidro de uma janela; vidro no qual suas estrelas fundamentais poderiam

ser desenhadas.

É importante lembrar que o brilho das estrelas, tais como as

vemos, é relativo; dependendo dos brilhos reais e das distâncias. Assim

como uma lâmpada muito luminosa parece fraca, se sua distância for

grande, as estrelas também estão sujeitas ao mesmo efeito. A segunda

estrela do Cruzeiro do Sul (Mimosa), na realidade muito mais luminosa do

que a primeira (Acrux), parece um pouco menos brilhante para o

observador por estar muito afastada. A segunda figura da Prancha IV

mostra a relação entre as estrelas, com seus brilhos e afastamentos

relativos efetivos, e a figura sugerida ao observador.

Mas se olharmos o desenho das cinco estrelas fundamentais, feito no

vidro da janela, pelo outro lado (de fora), teremos sua imagem invertida. É

esta figura, em condição simétrica, que está representada na Bandeira. O

136

mesmo ocorre com as oito estrelas da constelação do Escorpião escolhidas

para nela constarem. Para tanto a figura real da constelação é rebatida,

gerando a imagem invertida que constitui sua representação simétrica

(Prancha IV, Figura 3).

O céu efetivo da Bandeira

Em conformidade com a legislação brasileira o campo celeste

mostrado na Bandeira corresponde aquele que seria visível no período

matutino do dia quinze de novembro do ano de 1889, se naquele horário o

céu estivesse escuro. Afinal isto representaria, convencionalmente, o céu na

ocasião da proclamação. Desse campo celeste foram selecionadas 27

estrelas, ressaltadas diante da exclusão das demais.

Originalmente havia 21 estrelas, mas o acréscimo posterior de outras

seis totalizou as atuais 27.

Para melhor compreensão da figuração atual convém serem

lembradas as leis n° 5.700 de 01.09.1971 (editada no governo Médici), em

seu parágrafo único do artigo terceiro, e nº 8.421 de 11.05.1992 (editada

no governo Collor) que, no seu parágrafo primeiro do artigo terceiro,

altera a anterior.

Seus enunciados são, respectivamente:

Na Bandeira Nacional está representado, em lavor artístico, um aspecto do céu do Rio de Janeiro, com a constelação do ‘Cruzeiro do Sul’ no meridiano, idealizado como visto por um observador situado na vertical que contém o zênite daquela cidade, numa esfera exterior à que se vê na Bandeira.

As constelações que figuram na Bandeira Nacional correspondem ao aspecto do céu, na cidade do Rio de Janeiro, às oito horas e trinta minutos do dia 15 de novembro de 1889

137

(doze horas siderais) e devem ser consideradas como vistas por um observador situado fora da esfera celeste.

É também esta última lei, no apêndice 1 do seu anexo n° 2, que

define o total atual das 27 estrelas e a correspondência das mesmas aos

estados da União.

Justamente neste ponto devem ser ressaltadas as discrepâncias

entre a representação estelar da Bandeira e a configuração real, tal como

vista no céu ou num mapa celeste.

A configuração mostrada na Bandeira foi efetivada com modificações

da realidade, objetivando um enfoque mais estético do ponto de vista da

composição gráfica.

O primeiro passo da transformação foi uma inversão de imagem, em

caráter especular. Portanto a representação estelar mostrada na Bandeira

equivale à das esferas armilares dos antigos astrônomos e astrólogos. As

constelações, e suas estrelas constituintes, são mostradas como se fossem

projetadas na superfície do globo terrestre e observadas de fora.

A seguir foi procedida uma estilização do conjunto de estrelas

envolvendo, inclusive, duas alterações de posições estelares em relação à

Eclíptica, simbolizada pelo bálteo da Bandeira. Trata-se de Spica, a Alfa da

constelação de Virgem, e de uma das estrelas do Escorpião. Spica, que é

austral relativamente à Eclíptica, passou a ocupar uma posição boreal. Com a

estrela Beta (Akrab) do Escorpião ocorreu o inverso.

Outras alterações, quando ocorrem, são de posicionamentos relativos

das constelações e seus componentes.

Examinando, comparativamente, a disposição espacial efetiva das 27

estrelas escolhidas com as do campo estelar definitivo da Bandeira (vide

figuras correspondentes na Prancha V), podem ser facilmente constatadas as

alterações mencionadas.

138

A estilização final, que visa concentrar as estrelas num espaço restrito

corresponde, aproximadamente, a uma fotografia distorcida na periferia,

obtida com uma câmara dotada de objetiva com sistema de lentes do tipo

“Olho de Peixe”, focada no Cruzeiro do Sul.

Também é oportuno salientar que os tradicionais globos celestes

disponíveis no comércio (geralmente do mesmo porte dos globos terrestres e

usados como eles principalmente para fins decorativos e eventualmente

didáticos) mostram as constelações na condição em que constavam nas

esferas armilares e nas clássicas esferas celestes, isto é, “vistas de fora”. Um

dos exemplos mais antigos destas esferas celestes é a escultura do Atlas

Farnésio, onde é mostrada sustentada pelo titã Atlas. Para maiores

esclarecimentos sobre tais representações consulte os textos Resgatando a

Uranogeoscopia e Uma Ave Celeste sobrevoa Porto Alegre (vide referências:

Hoffmann, G. R.).

E é justamente a representação plana de uma face de um globo

celeste, embora estilizada, que encontramos no círculo da Bandeira. Não se

trata, portanto, de um traçado incorreto, mas sim de uma representação

clássica e consagrada. Só que, deve ser novamente lembrado, não serve de

guia para a observação direta das constelações e estrelas no céu por consistir

numa imagem invertida das mesmas.

Nos casos já referidos das bandeiras da Austrália, da Nova Zelândia,

de Papua-Nova Guiné, de Samoa e do Alasca as representações

constelacionais são diretas, isto é, as figuras das constelações são mostradas

tais como visíveis no céu.

Portanto a Bandeira do Brasil não é única apenas por ter um

quadro constelacional múltiplo, mas também pela representação estelar

em caráter especular.

139

As Estrelas da Bandeira e os Estados Brasileiros

A Lei n° 8.421, através do primeiro apêndice ao seu segundo anexo,

relaciona os Estados simbolizados pelas estrelas da Bandeira. Assim o que

antes era informal foi efetivamente formalizado. A Prancha VI mostra a

correspondência oficial.

Contudo uma das publicações destinadas ao melhor conhecimento

das bandeiras históricas do Brasil, e também de seus Estados, Brasil: Hinos &

Bandeiras Nacionais & Estaduais (vide referências: Rodrigues, Bellomo e

outros), requer o doloroso dever de um comentário crítico. Embora muito

elucidativa, sobretudo na abordagem dos “rituais” pertinentes à Bandeira,

apresenta duas falhas bastante graves nas páginas 61 e 79. Uma é referir a

estrela Sigma do Oitante (a constelação) como Sigma do Oriente e a outra é

uma lamentável confusão na identificação de estrelas. Quase todas as

estrelas da metade esquerda do círculo (inclusive a Delta e a Epsilon do

Cruzeiro do Sul) estão trocadas. Somente duas (Canopus e a Beta do Cão

Maior) não foram confundidas.

Este fato traz à tona uma outra questão problemática. Conforme a

redação inicial do artigo 39 da Lei n° 5.700 de 01.09.1971 são obrigatórios

tanto o ensino do desenho e significado da Bandeira Nacional, como o ensino

do Hino Nacional.

Mas será que isto é realmente cumprido? Numa interpretação pessoal

posso afirmar que sou pessimista.

A temática da Bandeira envolve sobretudo dois campos de caráter

técnico-científico: o desenho e a abordagem astronômica. A formação de

professores aos quais compete (pela natureza das disciplinas) a

propagação de conhecimentos relativos à Bandeira é de orientação

humanística, o que gera um conflito óbvio. Geralmente incapazes de

identificar no céu o Cão Maior, o Escorpião e o próprio Cruzeiro do Sul, as

constelações mais destacadas da Bandeira, e manusear um compasso

140

para explicar o desenho da mesma, tendem a ignorar tais aspectos

atendo-se aos tratamentos devidos à Bandeira.

Nestas circunstâncias, possivelmente, o objetivo maior do tema aqui

concluído é o de contribuir para a superação das dificuldades encontradas,

por muitos, na interpretação da faceta astronômica da Bandeira do Brasil.

Referências

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DUNLOP, S. (Ed.). Atlas of the night sky. England: Newness Books, 1994.

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BAKOS, M. M.; CASTRO, I. B.; PIRES, L. A. (Orgs.). Origens do Ensino.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 63-100.

___. Resgatando a uranogeoscopia. In: FLORES, H. A. H. (Org.). RS: século

XX em retrospectiva. Porto Alegre: Ediplat, 2001. p. 165-202.

___. Uma ave celeste sobrevoa Porto Alegre. In: FLORES. H. A. H. (Org.).

RS: história, cultura e Ciência. Porto Alegre: Evangraf, 2002. p. 11-40.

___. Origem e evolução da América do Sul. In: FLORES, H. A. H. (Org.).

Integração 2002. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 9-31.

PAUVELS, P. G. J. Atlas Geográfico Melhoramentos. São Paulo: Edições

Melhoramentos, 1954, 1980 e 1989 (ed. 12, 41 e 52).

RODRIGUES, J. P. (Org.); BELLOMO, H. R. (Col.) et al. Brasil: Hinos &

Bandeiras Nacionais & Estaduais. Porto Alegre: Magister. 2001.

SIMIELLI, M. E. Geoatlas. São Paulo: Ática, 1988.

The eyewitness Atlas of the World. London: Dorling Kindersley, 1990.

Observações:

I. Fontes primárias das leis e decretos pertinentes: Diário Oficial e

republicações nos Anuários LEX.

141

II. Fonte adicional: Título FLAGS. In: Encyclopaedia Britannica.

142

143

144

145

146

147

10 SOCIEDADE OITOCENTISTA II

________________________

Hilda Agnes Hübner Flores∗

Abordamos em volume anterior da coleção Integração, as “Mulheres

e mujeres que construíram a história”, e em 2002 analisamos as ainda

grotescas condições de vida dessas mulheres e do povo em geral que viveu

na primeira metade do século XIX, fase que o historiador uruguaio José Pedro

Barran denomina de “bárbara”, ainda carente de regramentos modeladores da

sociedade organizada: higiene, medidas sanitárias, educação, recreação...

O altíssimo índice de mortalidade levou o povo a banalizar a morte,

encarando-a como algo corriqueiro, agente de entretenimento. A criança

falecida era vista não como uma perda, mas como um anjinho que precede os

pais ao paraíso e, em torno do minúsculo corpo, colocado no centro da sala,

se bailava e se bebia, comemorando o evento. Esses “festejos da morte”,

irregulares mas freqüentes, somados aos feriados religiosos e cívicos,

atingiam a elevada soma de 80 feriados anuais no Uruguai — uma forma de

driblar o enorme ócio gerado pela superabundância de gado, cuja carne

alimentava todas as camadas da população. Bastavam três dias de trabalho

semanal para se viver, até mesmo na camada pobre da população, receptora

das sobras da abundância.

A “barbárie” aos poucos foi absorvida pelo “disciplinamento”, no

segundo meado oitocentista, quando a sociedade dos países do Mercosul se

modernizou, por efeito de inventos científicos que transformaram para melhor

as condições materiais e espirituais do povo: ferrovia, navegação a vapor,

∗ Historiadora. Presidente da Academia Literária Feminina do RS. Rua Aurélio Bitencourt, 219/401, CEP 90430-080, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mali: [email protected]

148

saneamento com instalação gradativa de redes de esgoto e pluvial... É a fase

que enfocamos aqui.

Renovação

Com os avanços das ciências e as decorrentes mudanças de hábitos,

a vida privada, até então impregnada de violência e assassinatos,

desnudando sem pudor sentimentos primitivos, passou a um tom

paulatinamente mais “civilizado”, face a novas regras tendentes a regular o

viver em sociedade.

A mudança foi um trabalho lento, de equipe. A Igreja teve papel

importante. Em vez de padres adeptos de vida fácil, cuidando de enriquecer

em vez de zelar pela salvação dos fiéis, surgem no Uruguai expoentes

clericais com liderança positiva. Além dos curas nos confessionários e

púlpitos, concorreram também os mestres nas escolas, os médicos nos

consultórios, os pais de família investidos de autoridade perante mulher e

filhos, o governo através da Polícia e os políticos no parlamento ou através da

imprensa (Barran, 1991, p. 34).

Regulamentando a morte

Igreja e governo buscaram domínio sobre o ritual “bárbaro” da morte,

visando coibir a exibição desbragada dos sentimentos. Os enterros não mais

seriam no interior das igrejas, mas no cemitério ao lado, sendo que no Brasil

havia separação entre pessoas livres e escravos. Anúncios fúnebres

uruguaios passaram a estampar o emblema da cruz em lugar de imagens

macabras. Em 1861 a Igreja de Montevidéu proibiu missas de corpo presente

e a condução de cadáveres a descoberto; em 1886 foi vedada a venda de

bebida alcoólica, a 2 de novembro, na frente dos cemitérios. Escolares não

mais afluíam aos enterros de crianças, reduzindo a freqüente suspensão de

149

aulas e preservando-os do mau exemplo de atitudes liberais por parte da

população adulta. A Igreja generalizou o uso da água benta, sem se dar conta

do aspecto de falta de higiene que representa (Barran, 1991, p. 12, 13 e 49).

Moral

Para sanear os costumes, a Igreja antepôs o conceito de família

estável à concepção de amor livre do período “bárbaro”. Reforçou-se o

conceito de amor e respeito mútuo. Era conceito ideal de família, segundo o

periódico montevideano Lucha Obrera, em 1884: Atraídos por um profundo e

recíproco afeto, os dois seres se unem para passar toda a sua vida juntos (...)

para elevar os filhos no seu amor (Barran, 1991, p. 30).

O bispo Jacinto de Vera (1860-81) trabalhou em comunhão com a

polícia pela implantação do “puritanismo” sexual, impondo com rigor a

separação de sexo nos banhos de mar. À mulher católica cabia ser modesta

no vestir, guardando o pudor no traje e gastando com parcimônia o dinheiro

ganho pelo trabalho do marido (Barran, 1991, p. 12 e 25).

A antiga “barbárie” passa a ser encarada como pecado e, como tal,

precisava ser controlada. Crianças, jovens, mulheres e setores populares

passam a ter “proteção” oficial, como a parte fraca da sociedade que

encarnam (Barran, 1991, p. 26).

Adultério

A moral distinguia entre os sexos, com larga vantagem para o

homem, detentor de mais liberalidade que a mulher, dentro da máxima

pregada desde o séc. XVII pelo moralista luso, Pe. Antônio Vieira: Os

pecados contra a castidade são igualmente graves perante Deus, para

homens e mulheres, mas nas mulheres, ainda que veniais, tiram a honra e

nos homens não, ainda que mortais (Flores, 1999, p. 1164; Vieira, 1951, v. 9,

150

p. 18-20). Dois séculos mais tarde, o deputado argentino Enrique Perod,

preocupado em preservar o bom nome das famílias, continua reforçando o

duplo aspecto da moral: a mulher com limites restritos ao lar, pois seus

filhos, mesmo os ilegítimos, nascem sempre dentro do espaço doméstico, o

que não acontece com os filhos ilegítimos do homem. Por isso, em 1880,

Perod repete as palavras de Vieira: EI adultério de la mujer es más grave

que el del hombre. En efecto, el deshonor de la mujer repercute en la familia

(Barran, 1991, p. 72).

O adultério feminino, principalmente o da mulher burguesa, encontrou

dupla repressão: pelos valores morais do cristianismo e como forma de

controlar e fortalecer as fortunas, sustentáculo da burguesia. Os Estados

platinos, bem como o Brasil, criam toda uma legislação referente à herança,

que excluía e discriminava os filhos ilegítimos.

Isto deu sustentáculo a que durante séculos muito assassinato de

esposa fosse cometido em nome da “legítima defesa da honra”, argumento

machista acolhido pelos tribunais, que absolviam sistematicamente o marido

assassino. Esse hábito continuou a vingar entre nós séc. XX adentro, até que

a Constituição de 1988 modificasse oficialmente esse quadro no Brasil, dando

iguais direitos a homens e mulheres perante o Código Penal.

Confissão

No século XIX sobreviviam resquícios dos tempos coloniais, quando a

confissão teve o efeito de permitir à mulher, habitualmente reclusa, de sair do

espaço doméstico para se dirigir à igreja. Por outro lado, a confissão tornava-

se momento de conflito de sentimentos adormecidos, notadamente quando el

confessor con suas preguntas inquisitoriales sobre la matéria delicadísima de

la sexualidad, alertaba, enardecía e pervertia a la esposa e hijas (Barran,

1991, p. 63). No Brasil se registraram algumas dezenas de casos de padres

151

pouco criteriosos nos confessionários, que acabaram caindo nas malhas da

Inquisição que da Metrópole estendeu seus tentáculos à Colônia.

Contra a “liberdade exagerada” da mulher zelava o bispo do Pará, D.

Francisco Manuel de Melo: ... os contatos com o confessor, as idas à igreja ou

a participação em festas devem ser dosadas pelo marido, investido de

autoridade paratal (Algranti, 1993, p. 116).

Recreação

A polícia uruguaia combatia costumes “bárbaros” que insistiam em

perdurar, como a longa duração e os excessos do carnaval, tradicional feriado

nacional de festejos e desatinos populares. Em 1873 proibiu o jogo da água,

que renasceu com intensidade nos anos 90, quando a população, inclusive

mulheres, eram saudadas com baldes de água, bombas tremendas, ovos

naturais e artificiais e tomates... O controle mais efetivo dos excessos

carnavalescos foi processo moroso (Barran, 1991, p. 12 e 31).

O baile era outra das poucas formas de recreação do século XIX. A

presença do rapaz precisava ter o aval do chefe da casa, como candidato

nato a genro que era. Nas danças houve avanços ousados, com polcas e

valsas que permitiam escandalosa aproximação, o rapaz enlaçando

ousadamente a cintura da moça. A bebida era vinho ou cachaça, pois ainda

não havia refrigerantes.

Positivismo

No Rio Grande do Sul houve um grande reforço aos princípios

moralistas da Igreja e também da maçonaria, com o positivismo comtiano.

Júlio de Castilhos, seu propagador-mor, quando assumiu o governo do

Estado em 1893, implantou a industrialização como meta de progresso, por

152

mãos masculinas. À mulher delegou a tarefa de guardiã da moral.

Confinando-a ao espaço doméstico na condição de “rainha do lar”, devia

cuidar do marido, educar os filhos homens para futuros soldados da pátria e

mantenedores do lar, e as filhas, como continuadoras de sua obra doméstica,

abrigadas das tentações que o mundo exterior oferece.

O jornal Corimbo de Rio Grande, em junho de 1901 estampa o artigo

“Original contrato de casamento” no qual o noivo Ferdinando Martino, de Bagé,

RS, exigia que sua noiva assinasse unilateralmente um contrato que deveria

regular a vida do casal. O art. 9° detalha as atribuições cotidianas da rainha do

lar: Serei a primeira a erguer-me do leito ao despertar do dia, para aprontar o

café, arrumar a casa, dar ordens à criada, observar o asseio da cozinha, dos

pratos, panelas, xícaras, talheres; limpeza dos aposentos e do pátio, assim

como determinar o preciso para o almoço e o jantar, e não consentirei que

criadas levem trouxinhas para casa (Flores, 1994, p. 53). O jornal informa ainda

sobre o malogro da noiva que se recusou a assinar o contrato.

Estudo

O Uruguai em 1877 tornou obrigatório o ensino primário, tirando das

ruas e do ócio crianças de ambos os sexos (Barran, 1991, p. 12). No Rio

Grande do Sul, quando Júlio de Castilhos propôs a meta de industrialização, a

quota de 74% de analfabetismo não coadunava com o progresso a ser

atingido. Era precisa alfabetizar. O salário tradicionalmente precário, afastou

os homens do magistério, de sorte que coube à “rainha do lar” somar tarefas,

cumprindo com os filhos alheios a mesma missão educadora que exercia com

os seus, com a vantagem de trazer alguma remuneração para casa, fato bem

aceito pelos abalizados chefes de família, mantenedores do lar.

Estabeleceu-se correlação entre ensino e moral, orientação seguida

pelos livros didáticos portenhos: “Da, oh Dios, a las fuentes água (...) Da la

153

salud al enfermo, pan al mísero mendigo (...) Haz que mis padres e hermanos

(...) tengan salud y fortuna y estén contentos conmigo” (Barran, 1991, p. 47).

O procedimento e as diversões das crianças eram controladas, valorizando-se

a aplicação ao estudo. A Igreja abalizou esta medida. As Congregações

religiosas, dedicadas ao magistério, aplicavam vastamente o ensino moralista.

Alfabetizavam-se as meninas e se lhes ensinava prendas domésticas.

Em Porto Alegre, as Escolas Técnicas Ernesto Dornelles e Darcy Vargas,

ambas estaduais, adentraram século XX nesta modalidade de ensino. Às

meninas uruguaias ensinava-se princípios de limpeza no arranjo da casa, da

roupa e dos alimentos. Emma Catalá de Princivalle, em seu manual “Lições

de Economia Doméstica”, prescreve a limpeza quinzenal da casa e da

cozinha a cada semana, devendo-se sacudir, barrer, lavar, fregar y limpiar

todo cuidadosamente, no dejando un solo objeto ni un solo rincón sin haber

recebido la benéfica caricia de la escoba, el cepillo, el água, la lejía o el jabón

(Barran, 1991, p. 48).

As exceções

Algumas raras mulheres entre nós tiveram acesso à cultura desde as

primeiras décadas oitocentistas, como Ana de Barandas com seu aspecto

reivindicativo, já citada em trabaIho anterior. Em 1869 iniciou em Porto Alegre

a Escola Normal, atual Instituto de Educação Gen. Flores da Cunha,

preparando professorado. Sobressaiu na primeira turma a enjeitada Luciana

de Abreu, professora bem-sucedida com uma centena de alunos em sua

escola particular e que brilhou na tribuna da douta Sociedade Partenon

Literário ao pregar a igual capacidade intelectual entre meninos e meninas,

que necessitam apenas de iguais chances para se desenvolver.

Apesar dessas vozes isoladas, o estudo das meninas continuava

direcionado para as funções do lar, de esposa e mãe. Só ao final do século

154

XIX fala-se em capacitação profissional, caminho para a autodeterminação. O

clamor parte de mulheres feministas, raras no começo, como a argentina

Joana Manso (1819-1875), exilada da política de Urquiza, que levou sua

experiência aos países do Conesul: no Uruguai fundou o Álbum de Señoritas,

de reivindicação de direitos femininos; em Pelotas, RS, foi redatora do jornal

A Imprensa e no Rio de Janeiro fundou o Jornal das Senhoras (1852-55), no

qual defende a educação feminina como forma de emancipação do marasmo

e subserviência em que jazia a mulher. Em Buenos Aires, para onde

regressou já separada do marido e com duas filhas, em 1853, fundou um

colégio para meninas e batalhou por bibliotecas escolares. Em 1864 fundou e

redigiu o La Siempre Viva, jornal que lutou pela emancipação feminina, mérito

que lhe deu ingresso na Sociedad Estímulo Literário. Sua luta prosseguiu nas

páginas de La Flor del Aire (Auza, 1988, p. 17, 33, 64 e 196).

Entre nós, a rio-pardense Ana Aurora do Amaral Lisboa (1860-

1951), dramaturga, jornalista e política, reagiu à prisão dos irmãos, a

mando de Castilhos no início da Revolução Federalista. Punida com

remoção do colégio público onde ingressara por concurso, demitiu-se e

abriu educandário particular para melhor defender direitos de liberdade, de

ensino para meninas e a abolição da escravatura, que não coadunava com

seus ideais de educadora. Defendeu também o direito de voto feminino e,

coerente com a posição maragata que assumiu, exaltava em versos os

chefes revolucionários de 1893.

As irmãs Revocata de Mello (1853-1944) e Julieta de Mello Monteiro

(1860-1928), poetisas e dramaturgas, mantiveram na cidade portuária de Rio

Grande o jornal Corimbo, que espelhou os avanços e recuos da sociedade e

da jornada evolutiva da mulher. Foram 60 anos de depoimentos (1883-1943)

que pedem reedição a bem da memória cultural do Rio Grande do Sul e do

país — tarefa afeta aos órgãos públicos, que a podem viabilizar através de

incentivos fiscais.

155

Sufragistas

A par das feministas surge, originário da Europa, e se intensifica, um novo aspecto reivindicatório: o clamor das sufragistas, que viram no

direito de voto para escolha dos dirigentes do país uma maneira de

alcançar o equacionamento das questões sociais básicas. Congressos

sufragistas lutam por esta nova meta, com manifestações radicais, como

sói acontecer em todo início de reivindicação. Enfrentando o

conservadorismo masculino, reivindicam direito ao trabalho remunerado,

fonte da verdadeira emancipação social.

Em Montevidéu a reação foi forte. Em 1911 o conservadorismo

masculino e o medo de mudanças produziu afirmações como esta: o

sufragismo não interessa às mulheres daqui, porque vivem todas elas muito à

vontade no seio de sua família, cuidando dos filhos e acariciando ilusões

sobre o porvir. As que, em diferentes nações européias têm abraçado com

frenesi o sufragismo, são em sua totalidade mulheres que suportam as

terríveis conseqüências de uma péssima eleição conjugal e que não

esperavam nada dos afetos de uma família, nem das delícias do amor

(Barran, 1991, p. 30). No Brasil tiveram êxito com a aprovação do voto

feminino, em 1932.

Condições sanitárias

A descoberta bacteriana na base das infecções, a pasteurização e a

invenção da vacina datam de 1860-90, mas esses avanços científicos só se

propagaram efetivamente a partir da II Guerra Mundial. Crianças continuavam

morrendo às centenas e o aborto foi encontrado como forma “civilizada” para

controle dos inúmeros nascimentos (Barran, 1991, p. 14). A Igreja não o

endossou, porém, a prática se vulgarizou.

156

Igreja e médicos associavam o excesso sexual à tuberculose. O

deputado médico uruguaio, Jacinto de Leon, sustentava em 1885 que os

adolescentes que se entregam aos prazeres sexuais facilmente contraíam a

tísica. O sexo extenua e os jovens necessitam de freqüentes tônicos, assim

como as “senhoras delicadas” e os idosos debilitados, todos alvo fácil da

tísica. O Nuevo Catecismo de Montevidéu, 1893, valorizou o casamento —

civil e religioso, ambos indissolúveis — e combateu o “pecado desonesto”,

que embota as faculdades intelectuais, mina a saúde física e antecipa a

morte. A mulher, movida pelos sentimentos e frágil ante a paixão, continuava

carecendo de vigilância permanente, quando menos para garantir a

legitimidade da prole (Barran, 1991, p. 69-72).

No Brasil o manual Saúde das creanças, do jesuíta Sebastião Kneipp,

publicado em Porto Alegre, 1898, assevera rigorosa vigilância dos pais sobre

os filhos adolescentes, controlando seus movimentos e suas saídas de casa.

Más companhias induzem ao pecado, assim como a masturbação, que deixa

o rapaz pálido e com olhar lânguido, andar indolente e movimentos

efeminados, voz rouca e hálito fétido... Para evitar a tentação do pecado, o

adolescente não deve andar de mãos nos bolsos nem escorregar no corrimão

de escada. Dê-se-lhe ocupação constante, intercalando esforço intelectual

com trabalho físico, de maneira que à noite cala exausto na cama e durma.

Ao acordar, não deve permanecer na cama, porque induz a maus

pensamentos.

Higiene

Kneipp, introdutor da “cura pela água”, atual SPA, Saúde per aquam,

usual na Alemanha de nossos dias, direcionou seu manual à mulher,

responsável pela aplicação da medicina caseira. Nele apregoa a necessidade

diária de lavar cabeça, rosto e mãos e receita o banho sob três modalidades:

157

o de regador, do joelho para baixo; o banho de imersão “até o sovaco” e o de

imersão total. O banho é sempre frio porque o calor efemina e enfraquece

corpo e alma.

A escritora uruguaia Emma Princivalle reforça em 1905 a necessidade

de se superar os longos séculos em que se conviveu com odores inmorales y

asqueantes exalados pela sujeira do corpo. Reforça a necessidade de asseio

escrupuloso en la boca, Ia cabeça, las manos, los pies, el cuerpo todo.

Aconselha o banho inteiro, em água pura, diário no verão e semanal no

inverno Barran, 1991, p. 48).

Ainda no raiar do século XX, pequenos anúncios no centenário jornal

Correio do Povo de Porto Alegre, dão conta de doenças endêmicas por

debelar: Rio, 21: O governo publicou decreto considerando sujo o porto de

Buenos Aires e suspeitos os portos do Paraná e os argentinos do rio da Prata,

por motivo da peste bubônica (23.4.1902).

Em 6.9.1903, a Diretoria de Higiene informa o estado sanitário da

quinzena anterior: 13 moléstias transmissíveis: 7 de tuberculose, 8 de difteria,

2 de septicemia e 1 de febre tifóide. Em Montevidéu a influenza grassava com

intensidade, com cerca de 10 mil pessoas acometidas na Capital e 50 mil no

território uruguaio, e no Rio de Janeiro grassava a varíola e recrudesciam os

óbitos por peste bubônica (23.8.1903).

Na imprensa eram comuns reclames de tônicos e fortificantes

capazes de combater anemias e dar vigor ao corpo, para enfrentar o

fantasma da tuberculose ou males como a pobreza do sangue, o raquitismo,

constituições linfáticas débeis... Surgem cuidados com a beleza feminina,

como cremes, ondulação de cabelo a vapor... Aqui como nos países do Prata,

o corpo feminino modelo devia ser rechonchudo desde criança, corpo de

respeitável matrona, pois, la falta de carne significa falta defuerzas (Barran,

1991, p. 51).

158

Na virada do séculos XIX e XX surgem nas residências opulentas as

primeiras banheiras com torneira de água corrente, sem que se fizesse dela o

devido uso, por desconhecimento e crendices, sendo voz corrente que o

banho de imersão podia provocar esterilidade. Ilustração dessa época mostra

a empregada esfregando as costas da mocinha em pé, do lado de fora da

banheira, usada como mera bacia gigante!

Contudo, apesar da onda de limpeza e higiene apregoadas, das

melhorias sanitárias e dos inventos científicos de natureza vária, continuavam

proliferando microorganismos e pragas de insetos como percevejos, bichos-

de-pé, piolhos e outros, mostrando que muito estava por fazer. Enfermidades

como tuberculose, sífilis e gonorréia persistiram século XX afora, molestando

e ceifando vidas.

Ao ócio, jogo e sexualidade, opôs-se o trabalho (apresentado como

virtude e não mais como desprazer), disciplina, pontualidade e higiene do

corpo. A pobreza passou a ser vista como fruto da ociosidade do indivíduo e a

esmola perdeu seu aspecto de obrigatoriedade religiosa. A Casa dos

Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre é exemplo disso. Se

antes padrinhos e madrinhas acorriam prestativos ao ato de batismo e

endossavam o dever moral de auxiliar na criação do afilhado, ao final do

século XIX essa obrigatoriedade tornou-se preceito vago e a Santa Casa teve

de apelar para seus funcionários para batizar os menores abandonados,

conforme evidenciou levantamento procedido nos Livros de Registro dos

Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

Mulher

No início do período aqui enfocado, condenava-se o luxo e gastos

fáceis, pois competia à mulher virtuosa ser econômica e ordeira, não

esbanjando o dinheiro do marido. A uruguaia Adela Correge, em sua novela

de 1885, Tula y Elena o sea el orgullo y la modéstia, considerava o luxo como

159

verdadeiro corruptor da sociedade. Economizar tostões em guloseimas ou

adornos equivalia a juntar reais, pela poupança continuada, na visão de

Monsenhor Mariano Soler, que em carta pastoral sobre o matrimônio, em

1890, afirma: A economia é a fonte da opulência, da verdadeira generosidade

e da fortaleza da alma, enquanto o gasto fácil conduz ao servilismo e à

baixeza (Barran, 1991, p. 43-44).

Mas, ao final do século XIX, muito por conta do positivismo castilhista

que implantou a alfabetização no Rio Grande do Sul por conta do magistério

feminino, o trabalho remunerado tornara-se já tímida realidade.

Excepcionalmente alguma mulher exercia profissão técnica, como a médica

Maria Generoso Estrella, primeira médica formada no Brasil e que praticava

ginecologia em seu Estado, o Rio Grande do Sul.

A remuneração assegurava independência e autodeterminação à

mulher, se comparado à total dependência de séculos anteriores. As duas

guerras mundiais, no séc. XX trariam poderoso reforço neste sentido,

impulsionando a mulher às fábricas para suprir a produção européia afetada

pela guerra. Ao mesmo tempo, a partir da década de 1940, começam a surgir

Faculdades freqüentadas por um número majoritário de mulheres, a maioria

de feição humanista. O ingresso no campo técnico seguiria. Mas esta é nova

fase, a da conquista da tecnologia.

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160

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161

11 ARQUITETURA E ESCULTURA BARROCA NO BRASIL E NO

RIO GRANDE DO SUL ____________________

Thiago Nicolau de Araújo∗

O contexto socioeconômico do Brasil colonial foi propício ao

desenvolvimento do barroco, essencialmente ligado à religião católica. Além

das igrejas, vemos diversas construções civis com as características do

barroco1, mas as edificações religiosas constituem a maior parte das

manifestações deste estilo artístico.

O Brasil por ser uma colônia riquíssima na cultura e comércio do

açúcar e pela mineração, deveria produzir um barroco rico em sua

ornamentação, como vemos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia.

Mas nem sempre a arte foi assim representada, pois houve regiões onde as

condições socioeconômicas determinaram outros tipos de construções, com

expressões artísticas mais modestas. Com isso percebemos dois pólos do

barroco no Brasil, um rico e ornamentado e outro mais pobre e modesto.

As regiões auríferas do Brasil provocaram a primeira corrida do ouro

no mundo ocidental, seguida mais tarde pelos Estados Unidos e no Século

XIX na África do Sul e Alasca. Esse ouro foi o primeiro grande fluxo que a

Europa recebeu. Com isso surge espetaculares construções nos locais de

extração aurífera, como Minas Gerais, que tornou-se o principal foco do

barroco no Brasil.

∗ Licenciado e Bacharel em História pela PUCRS. Professor do Ensino Médio. Mestrando em História pela PUCRS. 1 Para aprofundar o assunto, ver: BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, s/d.

162

Mas como o das demais partes da América colonial, o ouro brasileiro

foi de aluvião e por isso se esgotou com relativa rapidez. Esse ouro não

acabou de repente, foi escasseando aos poucos e como conseqüência, se

incrementavam as técnicas de extração que perduraram entre o século XVIII

e XIX, até meados de 18202. Com a vinda da família real para o Brasil em

1808, os recursos voltam-se para o Rio de Janeiro, capital na época. Com

isso estabelece-se aos poucos a decadência econômica e social dos centros

de mineração. Com a República, acentua-se essa situação, e o barroco perde

sua condição socioeconômica de desenvolvimento.

A Companhia de Jesus foi a primeira a empregar a arquitetura do

barroco, lançando-se na luta pela catequese indígena. Seus membros

estavam entre os primeiros a chegar no Brasil Colônia. Algumas de suas

construções datam do Século XVII.

Das obras de arte realizadas no início do século XVI, nada restou,

porque Portugal só se preocupou realmente com o território descoberto na

segunda metade do século, quando então se pensou seriamente numa

organização central da colônia e só então começou a surgir um movimento

cultural e artístico, sendo essencialmente introduzido pelas ordens religiosas.

A Igreja utiliza o barroco a partir da contra-reforma, e, ao contrário do

que os protestantes condenavam e aboliram, o lado católico exaltou. Os

protestantes negavam a santidade da Virgem Maria e dos santos, e

apresentavam simplicidade nos templos. Os católicos reagiram, reforçando o

conceito da Imaculada Conceição e enalteceu o papel dos seus santos e

mártires, além de promover a pompa nas cerimônias religiosas, com templos

suntuosos, para exaltação de Deus e dos santos. Isso deu ao barroco um

campo imenso e fértil, onde proliferou e dominou totalmente. Temos como

exemplo a Basílica de São Pedro, em Roma.

2 PRADO JUNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins Editora, 1942. p. 168.

163

O Brasil colônia foi uma imagem refletida da metrópole (Portugal),

apenas reproduzindo seus usos e costumes. Com a mesma religião

controladora administrada pelas ordens religiosas, jesuítas, franciscanos e

beneditinos usaram a arma da excomunhão para controlar a população e

mesmo a coroa. A interferência era tanta que vemos referências

testamentárias incluírem sempre “às justiças reais e eclesiásticas”3.

Os membros das ordens eram constantemente removidos da

metrópole para a colônia e vice-versa. Nestas ordens haviam professores de

vários países, em geral muitos deles artistas ou bons artesãos. Desse modo,

inseriram no Brasil as técnicas aprendidas na Europa.

Os jesuítas tinham como principal preocupação a catequização,

usando para isso o discurso, sermões e autos teatrais e neste contexto a

construção de igrejas foi parte desta prática. Já a ordem beneditina produziu

templos caracterizados pela monumentalidade e pela suntuosidade barrocas,

além de esculpir as imagens no Brasil, sendo que a grande maioria vinha

ainda da Europa. Os franciscanos tiveram suas manifestações artísticas

restritas ao interior de seus conventos, que tinham como característica os

frontispícos decorados, a cruz de pedra no adro, e usavam geralmente a

pedra e cal, como por exemplo, o Convento de São Francisco, em São Paulo.

No princípio, as construções foram provisórias e precárias, muitas

feitas já com o propósito de serem reconstruídas por outra maior, como por

exemplo, a Igreja matriz de N. Sra. da Conceição, em Viamão, RS. Usava-se

a taipa de pilão e adobe, e nas construções em orla marítima, utilizava-se a

pedra e a cal. Por isso, muitas edificações tiveram uma vida limitada, logo

ruindo, verificando-se isso principalmente nas missões do RS.

Com o esgotamento do ouro no Brasil, as construções barrocas

acabaram, muito pela falta de condições financeiras para sustentar o

3 ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. p. 44.

164

esplendor das igrejas, mas também pela implantação do neoclássico, onde se

retoma os atributos artísticos clássicos e renascentistas, além de não

necessitar de grande ornamentação decorativa.

Desse modo, muita coisa caiu em ruínas pelo abandono e muito mais

foi destruído por conta do falso conceito contra o barroco na época. As

exigências da urbanização e a valorização territorial das cidades contribuíram

para o desaparecimento desse estilo, sendo que, o que restou, deve-se ao

interior do pais, pois com o abandono da população que foi para cidade,

muitas regiões não se desenvolveram, e assim todo acervo artístico acabou

se autopreservando.

O barroco colonial evidenciou-se primoroso nos trabalhos em canto

(pedra lavrada) e talha (madeira esculpida). Decorava-se relativamente pouco

o exterior nas partes relativas à fachada, padieiras (molduras que envolviam

as janelas) e portadas.

A arte colonial brasileira é essencialmente religiosa e a arquitetura é a

sua maior manifestação, estando ligados a ela a talha, a pintura, a ourivesaria

e a azulejaria.

Os mais antigos materiais usados na construção de igrejas foram

pedra, cal e taipa-de-pilão (argila amassada entre tábuas). Os retábulos

tinham decorações enquadradas dentro de molduras simétricas, ainda com

influências clássicas e renascentistas.

As primeiras manifestações arquitetônicas começam durante o

governo de Tomé de Souza, em 1549, e se estende até meados do século

XVII. A primeira igreja construída em Salvador era recoberta com folhas de

palmeira. Somente em 1561 surge a primeira igreja construída inteiramente

de pedra e cal, a atual catedral de Salvador.

A tradição arquitetônica brasileira está ligada à evolução da

arquitetura portuguesa, sendo que as primeiras construções não são nada

mais que uma extensão do modelo português.

165

Aos poucos, no entanto, foram surgindo diferenças entre o Reino e

a Colônia, diferenciando no uso de materiais próprios, técnicas mais

simples aprendidas com o contato com os índios, além de dificuldades

locais que os arquitetos tinham que solucionar, dessa forma criando uma

arquitetura luso-brasileira.

Apenas no século XVIII aparece realmente uma arquitetura colonial

brasileira, a chamada escola mineira, em especial, nas obras de um mestiço

nascido em Vila Rica, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Esse mestre

do barroco brasileiro consegue dominar a arte dos mestres toreutas, baianos

e pernambucanos, renovando-as e apurando-as. Educado na arte da

torêutica por seu pai e por outros mestres, tornou-se mais célebre que seus

mestres. Como entalhador, enriqueceu os interiores e frontispícios de igrejas

com numerosos trabalhos de talha, tanto em madeira como em pedra; como

escultor, foi criador das decorações ornamentais das fachadas, o estatuário

das três figuras centrais nos Passos do Santuário de Congonhas, que são

obras de arte esculpidas em pedra sabão4.

O último período da arquitetura colonial brasileira, o que se inicia na

metade do século XVIII e começo do século XIX, demonstra um crescimento

da escola mineira. Salvador, capital do Vice-Reino, tornou-se o centro de

grandes edificações inspiradas nos modelos da Metrópole.

A riqueza das minas de ouro descobertas pelos bandeirantes no fim

do século XVII, fizeram de Ouro Preto um dos lugares mais ricos do mundo,

produzindo no espaço de um século, uma série de monumentos que mostram

toda a evolução da arquitetura colonial brasileira, mostrando um típico

exemplo do barroco nacionalizado.

O estilo barroco, prevalecente nas igrejas coloniais, pretendia

induzir o crente a um êxtase celestial, como se o paraíso estivesse sendo

4 AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1971. p. 447.

166

recriado no interior do templo. Ao mesmo tempo, o fiel deveria sentir-se

empolgado, extasiado, humilhado e oprimido diante daquela manifestação

de poder e magnificência.

Neste sentido, as igrejas eram pontos de convergência do povo e

todos seus elementos tinham significância. O púlpito era importante, visto que

o sermão se constituía num elemento de mobilização da opinião pública.

Embora ainda muito rígidas na fachada, as primitivas igrejas já eram bem

decoradas no interior.

Dentro das igrejas, houve os espaços necessários para a

imaginação do artista colonial, mesmo quando muito já vinha pronto de

Portugal. Proliferaram azulejos, volutas e espirais. O decorativismo

assumiu um caráter minucioso e requintado, fundindo-se arquitetura,

escultura e pintura para oferecer um efeito global. A santuária5 legou

obras de inestimável valor para a cultura brasileira e a torêutica6 teve

grande importância na decoração e os nichos, lugar onde se colocavam as

imagens sobre os altares, eram envolvidas pelos retábulos, molduras

muitas vezes suntuosamente decoradas.

A escultura no Brasil desenvolveu-se segundo o modelo português,

tendo como característica mais original os interiores decorados com talha

dourada e policromada, ocupando todos os espaços interiores das igrejas.

A igreja dourada foi a maior inovação do barroco português, onde a

talha dourada recobria toda igreja. Esses interiores irão influenciar as colônias

na Índia e no Brasil.

Os primeiros artistas são jesuítas ou beneditinos formados nos

próprios conventos, ou artesãos educados pela ordem. Os primeiros centros

de arte estão localizados perto da costa, em Pernambuco e Bahia, Rio de

5 Santuária é o conjunto de ornamentos que compõe a decoração de uma Igreja, incluindo imagens, pinturas, etc. 6 Torêutica significa a arte de gravar, cinzelar e esculpir em metais, marfim e madeira.

167

Janeiro e só mais tarde chega para o centro em São Paulo e por último no Rio

Grande do Sul.

As esculturas quando começaram a ser feitas no Brasil, assumiram

um caráter realista, tornaram-se policromadas, com articulações e cabelos

humanos. A função didático-pedagógica levou à exploração das expressões

faciais e dos gestos, enfatizando-se a dor e morte e criando-se uma

encenação densa e teatral, conforme a tendência barroca de valorizar ao

máximo a retórica visual.

Unindo as pessoas através de uma combinação de emoção e

piedade, a estatuária barroca veio a ser um compromisso de fé, um

instrumento de coesão social e, estimulando a devoção, teve uma função

mais catequizadora do que estética7.

Enfim, tudo convergia para fazer do catolicismo um espetáculo e

uma encenação, incluindo procissões, música, novena e sermões. Nesse

processo, cabia ao artista plástico fornecer o cenário adequado à

cerimônia, reforçando a ideologia vigente com toda a carga de solenidade,

magia e sedução.

O barroco no Brasil sobreviveu por mais de 60 anos ao europeu, pois

Aleijadinho continuou trabalhando neste estilo em suas geniais produções até

o ano de sua morte, em 1814. Muitas igrejas só foram terminadas durante o

início da República. Em conseqüência disso surge o termo barroco tardio.

No Rio Grande do Sul o barroco em geral possui uma simplicidade

na fachada e suntuosidade no seu interior. Isso se explica pelas

dificuldades encontradas na obtenção de recursos para a ornamentação

das fachadas e exteriores das igrejas, pois não se contava com recursos

humanos e materiais, sobretudo a pedra. No entanto havia facilidades

7 LOPEZ, Luis Roberto. Cultura brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1988. p. 47.

168

para a decoração do interior, pela abundância de madeiras próprias para a

talha e de ouro para a sua douração8.

A pedra era escassa no interior da Colônia. além de ter seu transporte

muito dificultado pela falta de condições estruturais (estradas, meios de

transporte, etc.). Em Minas Gerais empregou-se a pedra sabão e o

itacolomito, no fim do século XVIII, sendo estes tipos fáceis de esculpir e

abundantes nesta região.

Essa diferença de contraste entre o exterior e o interior das igrejas

também tem outras explicações. Uma delas é a força que manteve a tradição

da arquitetura românica em Portugal, com suas estruturas sólidas, sóbrias e

maciças. Outra é a austeridade do exterior de nossas igrejas enquanto

expressão de uma sociedade local mais rústica e menos refinada que suas

semelhantes européias9.

Durante o governo de D. José, surge no cenário político da Europa o

marquês de Pombal, que exerce a função de Ministro do Estado do Reino.

Em relação à colônia, Pombal declarou a liberdade dos índios e sua

emancipação da tutoria jesuítica, levantando contra si os protestos da

Companhia de Jesus, que passa a criticá-lo. Começa então uma luta entre o

marquês e os padres, que o acusavam de ser contrário à religião cristã. Em

1773 Pombal consegue fechar a ordem.

Esse anticlericalismo se reflete na colônia pela proibição da

construção de seminários e conventos, sendo mais um fator para explicar a

simplicidade das construções barrocas10. Por isso, salvo exceções, o aspecto

externo das igrejas coloniais do Rio Grande do Sul é simples e sem enfeites

decorativos, caracterizando o nosso barroco como pobre no exterior, e em

contraste, rico no interior das igrejas.

8 ETZEL, Eduardo, op. cit., p. 45. 9 LOPEZ, Luis Roberto, op, cit., p. 42. 10 FLORES, Moacyr, op. cit., p. 66.

169

Pela carência de recursos amplos, decorria largo espaço de tempo

entre o início da obra e seu acabamento final, sendo que as condições

econômicas de cada região sofriam alterações que levavam a acelerar ou

retardar sua edificação.

Como o Brasil sempre foi rico na madeira, o que faltou para o exterior

sobrou para o interior, a partir das monumentais portas esculpidas. Vê-se no

interior das igrejas a abundância de talha em cedro recamada de folhas de

ouro, o que é característico do barroco brasileiro.

Por essa dificuldade na obtenção de recursos destinados às

construções, houve um largo espaço de tempo entre o início e o fim de uma

obra, sendo que muitas vezes se iniciava com uma simples capela, que logo

ruía ou se desgastava, sendo substituída por outras reconstruções, e a data

de construção inicial acaba ficando como data da atual.

Portanto a maioria das igrejas no RS iniciava suas construções no

apogeu do barroco europeu, mas terminavam já no período neoclássico,

dessa forma aplicando-se bem o termo barroco tardio.

170

Fig. 1 Igreja N. Sra. da Conceição – Porto Alegre, RS.

Fig. 2. Porta

de entrada.

171

Fig. 3. Escultura em madeira do teto e arco do cruzeiro.

Fig. 4. Altar esculpido em madeira

172

Fig. 5. Igreja Matriz de Viamão, RS.

Referências

ALVIM, Sandra. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN, 1999. v. II.

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos/Ed.

da Universidade de São Paulo. 1971.

173

BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, [s.d.].

ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São

Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São

Paulo: Melhoramentos/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova

Dimensão, 1993.

GUIDO, Ângelo. Conceito do Barroco, In: Aspectos do Barroco I. Porto Alegre:

Ed. da Universidade. [s.d.].

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins

Fontes, 1994.

LOPEZ, Luis Roberto. Cultura Brasileira: das origens a 1808. Porto Alegre:

Ed. da Universidade, 1988.

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo:

Martins, 1942.

WÔLFLLIN, Heirich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo

barroco e sua origem na Itália. São Paulo: Perspectiva, 1989.

174

12 AS COLÔNIAS DE

NOVA FRIBURGO (RJ) E TORRES (RS): UM ESTUDO COMPARATIVO _______________________

Marcos Antonio Witt∗

O presente texto tem como objeto de estudo a comparação entre

as colônias de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e a de Torres, no Rio

Grande do Sul1. Os referenciais que servem de base para esta análise são

o artigo de Maria José Carneiro e as pesquisas que o autor vem

desenvolvendo desde a sua graduação em História. Ambas as análises

são complementadas pela historiografia da imigração alemã e por estudos

específicos pertinentes ao tema.

O texto de Carneiro faz uma varredura na história dos suíços e

alemães instalados em Nova Friburgo a partir de 1818. De maneira sintética,

pode-se dizer que a autora verifica a passagem dos descendentes destes

indivíduos de “colonos” a “jardineiros da natureza”, como consta no título de

seu artigo2. Embora a colônia alemã das Torres ainda não tenha atingido tal

processo, ou seja, os lotes coloniais na sua maioria continuam com a sua

função original — a produção de gêneros agrícolas —, o fracionamento das

∗ Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos — UNISINOS. São Leopoldo/RS. Av. Henrique Bier, 2307, São Leopoldo/RS, CEP 93135-000. E-mail: [email protected]. 1 As colônias de Nova Friburgo (RJ) e Torres (RS) foram instaladas a partir de 1818 e 1826, respectivamente. Ambas as colonizações integravam o projeto imperial de distribuir colônias estrangeiras em pontos estratégicos do litoral do Brasil com o objetivo de povoar o território, produzir alimentos e fornecer soldados para as tropas imperiais. Ver: LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma colônia alemã para a Ponta das Torres. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós Graduação em História, UNISINOS. São Leopoldo, 1998. 2 CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova Friburgo: de “Colonos” a “Jardineiros da Natureza”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). História de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65.

175

propriedades agrícolas e a conseqüente dispersão dos descendentes destes

colonos são semelhanças encontradas nas duas colônias.

Pesquisando os Registros Paroquias da Lei de Terras (1850) e os

Livros de Tabelionato, foi possível constatar o que já se evidenciava em

pesquisas e estudos anteriores: desde a sua instalação, os colonos

começaram a vender, trocar e fracionar os seus lotes agrícolas. Além disso,

com um alto índice demográfico, rapidamente as terras tornaram-se

insuficientes para tantos filhos e para as gerações subseqüentes. Foi assim

que, num primeiro momento, os descendentes dos colonos de São Pedro de

Alcântara e Três Forquilhas3 espalharam-se pelo restante do Litoral Norte do

Rio Grande do Sul (LNRS) e, também, pelos Campos de Cima da Serra (hoje

São Francisco de Paula, Lagoa Vermelha, Bom Jesus, Vacaria...).

Este mesmo fracionamento das propriedades agrícolas ocorreu em

Nova Friburgo, também ocasionado pelo grande número de filhos de cada

família, obrigando a busca por novos locais de moradia e de empregos

alternativos, quase sempre externos ao núcleo colonial. Tão importantes

quanto este são os outros motivos enumerados por Carneiro, os quais

colaboraram para o quadro degenerativo da colônia: o número de imigrantes

superior ao acordado, a topografia muito acidentada (região serrana), a

deficiência das acomodações para os colonos, a fragilidade dos meios de

comunicação com os centros urbanos e a ausência de uma administração

eficaz por parte do governo imperial, fatos que permitiram, desde logo, as

primeiras crises entre os colonos e as autoridades responsáveis pela

distribuição das terras (Carneiro, 2000, p. 45). Realidade idêntica à que os

colonos do LNRS viram-se confrontados. 3 A antiga Colônia Alemã das Torres foi dividida em dois núcleos: em São Pedro de Alcântara ficaram os católicos, e em Três Forquilhas, os evangélicos. Cabe ressaltar que os motivos de tal divisão foram o número excessivo de colonos remetidos à região e as cheias do rio Mampituba (o qual separa os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina), que obrigaram o Tenente Coronel Francisco de Paula Soares a buscar novas áreas para o assentamento dos colonos. Ver: RUSCHEL, Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos religiosos? In: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. Porto Alegre: EST, 2000. p. 38-41

176

Os aspectos acima remetem ao questionamento principal que

permeia este texto: até que ponto o fracionamento das propriedades agrícolas

e a dispersão dos descendentes dos colonos contribuíram para uma ausência

de identidade social e uma memória genealógica curta — nas palavras de

Carneiro —, levando-se em conta que a “relação... do camponês com a terra

era um elemento fundamental para a criação de espaços de sociabilidade que

alimentam laços de solidariedade, definindo alianças e contribuindo para a

elaboração de identidades sociais” (Carneiro, 2000, p. 47 e 49).

O que Carneiro diz em relação a dois distritos de Nova Friburgo

equivale para São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas:

Tendo sua origem na primeira experiência oficial de colonização de população européia no Brasil, os moradores dos distritos de Lumiar e São Pedro da Serra guardam poucos registros dessa história, a tal ponto que tratá-los, hoje, como ‘descendentes de imigrantes’ é algo que soa um tanto distante e estranho a seus próprios ouvidos. Apesar da pele clara, dos olhos azuis, dos cabelos alourados e dos nomes de família, poucos são os que se reconhecem como diferentes dos demais brasileiros que compartilham com eles a ocupação desse território (Carneiro, 2000, p. 44).

Vamos por parte. Em 1996, um grupo de pesquisadores, professores

e outros interessados promoveu uma festa alusiva aos 170 Anos da Imigração

Alemã no Vale do Três Forquilhas4. Pode-se afirmar, com certeza absoluta,

que 95% das pessoas que assistiram às comemorações e participaram do

domingo festivo eram “de fora” do núcleo colonial, isto é, descendentes vindos

de outras cidades para rever a terra de origem, visitar parentes ou

simplesmente fazer um passeio de fim de semana. A população colonial

praticamente esquivou-se das festividades, uns entendendo a festa como um

evento da Igreja Luterana (IECLB), pois foi usada a sede desta instituição

4 Este evento foi fruto de um trabalho de equipe, cuja organização esteve aos cuidados da historiadora Nilza Huyer Ely e dele resultou o livro ELY, Nilza Huyer & BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Imigração alemã: 170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996.

177

tanto para o culto quanto para o almoço; uns achando que o evento estava

sendo motivado por interesses político-partidários — e quem era contrário ao

partido o qual estava no poder deixou de comparecer —; e outros que não

captaram o sentido, o propósito daquela comemoração, ora porque não os

tocou, ora porque os promotores pareciam estar intrometendo-se no seio da

comunidade: eram “pessoas de fora”. Todavia há um aspecto importante no

final da citação de Carneiro o qual vale ser destacado. Ao contrário dos

descendentes de Nova Friburgo, muitos dos colonos do LNRS perderam o

fenótipo apresentado pela autora: “pele clara, ... olhos azuis, ... cabelos

alourados e ... nomes de família..”.. (Carneiro, 2000, p. 44). Sobre as

características físicas, desde o início da colonização, os alemães viram-se

confrontados com a população nacional que já ocupava os campos existentes

entre a serra geral e o mar. Deste contato, originaram-se casamentos

interétnicos e, quanto aos sobrenomes, com o passar dos anos, vários deles

sofreram alterações na forma escrita, a tal ponto que existem, hoje,

descendentes destes imigrantes desconhecedores da origem da sua família.

É preciso considerar ainda a mobilidade espacial associada à

instabilidade crônica das condições de produção agrícola (Carneiro, 2000, p.

44) do século XIX, sobretudo numa região que estava distante de mercados

centrais como Porto Alegre ou Rio Grande. A mobilidade — leia-se o ir e vir

dos colonos — deve ser entendida como uma busca de alternativas para a

sobrevivência e não como um ato impensado ou a sujeição destes colonos

aos seus caprichos e desejos. Zarth alerta para a situação do mercado

agrícola do Rio Grande do Sul no século XIX, mostrando o fato de a situação

de instabilidade e as dificuldades de comunicação e transporte serem comuns

e tremendas em todo o território rio-grandense, o que emperrava o

desenvolvimento econômico e cultural de diversas regiões, quer coloniais ou

178

não5. Percebe-se, deste modo, que o “discurso da lamentação” em razão das

dificuldades de transporte e comércio é insuficiente para explicar o pouco

desenvolvimento do LNRS em praticamente todas as suas áreas6.

De acordo com a idéia de Carneiro sobre a mobilidade espacial

associada ao quadro normalmente instável do comércio agrícola, os

descendentes dos colonos de Nova Friburgo foram obrigados a buscar

alternativas para o trabalho, a renda e a sustentação de suas famílias.

Adotamos essa idéia como uma hipótese plausível para São Pedro de

Alcântara e Três Forquilhas, baseados numa breve pesquisa realizada com

os descendentes que residem e trabalham atualmente em Canoas, Porto

Alegre e São Leopoldo (cidades do RS) e Foz do Iguaçu (PR). As declarações

dos entrevistados são unânimes: todos saíram para buscar emprego já que

não havia terras para o plantio, quer pelo fracionamento das propriedades ou

pela falta de dinheiro para adquirir um pedaço de chão. A partir da década de

1950, intensificou-se esse processo migratório em direção aos centros

urbanos, de certa forma repetindo as atitudes dos primeiros colonos, quando,

nos anos iniciais da colonização, alguns deles deixaram, trocaram, venderam

ou fracionaram os seus lotes agrícolas. Isso gerou um certo distanciamento

entre a célula-mãe — a colônia — e os que dela se retiraram, separação que

acabou refletindo na manutenção da própria história da colonização daquele

local, quer entre indivíduos ou mesmo entre famílias agora segregadas por

dezenas ou centenas de quilômetros.

5 ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul rural do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994. 6 Em pesquisa anterior, tentei elucidar um pouco esta prática da “lamentação” e constatei que o fato do LNRS estar fora do eixo central da política e da economia rio-grandense do século XIX, pode ter despertado nos políticos litorâneos a artimanha da “lamentação” com o objetivo de receber, ao menos, as migalhas que caíam da mesa do poder provincial. Ver: WITT, Marcos Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a participação de nacionais e de colonos alemães — 1840/1889. Dissertação (Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001.

179

Neste momento, deve-se ressaltar a divisão dos colonos de São

Pedro de Alcântara e Três Forquilhas em dois grupos: a grande maioria, a

qual continuou ligada à agricultura, e uma minoria que se sobressaiu devido,

principalmente, a sua inserção no mundo do comércio e da política. Os

colonos e seus descendentes que se diferenciaram da maioria — os

exponenciais — deram um salto quantitativo (econômico) e qualitativo

(cultural) se comparado aos que deles dependiam tanto para conseguir

mercadorias e produtos não existentes naquele local, quanto para solicitar um

favor. Parte desta diferenciação social pode estar na origem profissional dos

imigrantes, uma vez que não somente agricultores, mas também artesãos

foram trazidos para o Brasil com o objetivo de dinamizarem o mercado

artesanal/fabril. As mesmas considerações apresentadas por Carneiro para

Nova Friburgo em relação à dicotomia agricultor/artesão são válidas para as

colônias do Rio Grande do Sul (Carneiro, 2000, p. 46-47). Saliente-se que

muitos destes exponenciais compraram e utilizaram mão-de-obra escrava em

suas lavouras e no comércio, como os Voges, em Três Forquilhas, e os

Raupp, em Torres, o que parece ser um sinal evidente da necessidade de

inserirem-se no meio da liderança nacional onde estavam vivendo. Carneiro

localiza esta mesma situação em Nova Friburgo, afirmando que:

Nessa época, os descendentes dos primeiros imigrantes suíços e alemães já se diferenciavam em dois grupos. Os de maior sorte e de maior poder aquisitivo que conseguiram se estabelecer em terras menos acidentadas e mais férteis, principalmente nas regiões de Cantagalo e Macaé, desenvolveram uma agricultura comercial baseada em áreas mais extensas e, até, na utilização de mão-de-obra escrava. Os demais, que se instalaram em lotes menores e de pior qualidade, centraram a sua reprodução social na agricultura de alimentos voltada para o autoconsumo, com base no trabalho familiar e em baixos níveis técnicos, combinada à lavoura mercantil mais rentável: o café (Carneiro, 2000. p. 50).

Cabe ressaltar o caráter específico destas duas colonizações — Nova

Friburgo e Torres — se comparado ao desenvolvimento alcançado por São

180

Leopoldo, tão louvado na historiografia clássica da imigração alemã7. Sobre a

Colônia Alemã das Torres, estudos recentes têm apontado para as suas

especificidades, como o estabelecimento de rotas comerciais via tropeiros e a

ligação deste espaço com os Campos de Cima da Serra e a província de

Santa Catarina. Registre-se um outro desenvolvimento para o LNRS que foge

ao enquadramento das teorias desenvolvimentista e germanista. Como São

Pedro de Alcântara e Três Forquilhas estavam impossibilitadas de agigantar o

seu comércio com Porto Alegre ou Rio Grande (como fez São Leopoldo) e por

“perderem” suas qualidades germânicas, afirmação que pode ser encontrada

nos relatórios de presidentes da província8 e na historiografia clássica da

imigração alemã, autores e pesquisadores passaram a olhar para estes

núcleos como uma espécie de mancha negra na história da Imigração alemã

no RS. Passaram despercebidas para eles as especificidades da história e as

contradições da dinâmica que estes grupos estabeleceram com os nacionais.

Assim como em Nova Friburgo, a produção e o mercado instável dos

gêneros agrícolas e o sistema de herança, o qual partilhava a terra entre

todos os herdeiros, foram motivos para gerar dispersão entre os

descendentes dos primeiros colonos e criar uma certa caducidade quanto à

manutenção dos elos da história da imigração alemã no LNRS. Conforme

Carneiro, a dispersão constante impediu a formação de núcleos sociais mais

estáveis, o que, certamente, contribuiu para destruir as condições necessárias

à reprodução e transmissão da memória sobre a cultura originária. Nesses

7 Por historiografia clássica da imigração entendemos aquela de louvação étnica, na qual as características de um grupo, neste caso os alemães, se sobrepõem aos demais componentes da sua história. É de fundamental importância para esta historiografia destacar os termos “civilizado” e “trabalhador”, dentre outros, e suprimir tudo aquilo que poderia denegrir a imagem dos imigrantes e seus descendentes. 8 Os relatórios encontram-se no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e refletem, entre outros temas, o posicionamento das autoridades sobre a colonização estrangeira no Rio Grande do Sul. A título de exemplo, ver: AHRS — Documentação dos Governantes — Relatórios e Falas dos Presidentes da Província — A7.03 — Relatório do Presidente da Província João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú — outubro/1853 e A7.03 — Relatório do Presidente da Província Jeronymo Francisco Coelho — dezembro/1856 e A7.06 — Relatório do Conselheiro Joaquim Antão Fernandes Leão — 1859.

181

termos, é possível sugerir que a perda de referências espaciais e pessoais,

principalmente da família, seja uma explicação para a ausência da construção

e manutenção de uma identidade sustentada na origem étnica (Carneiro,

2000. p. 49, 55-56).

Em síntese, buscou-se, através desta análise, comparar dois

núcleos de imigração européia (Nova Friburgo, no RJ, e Colônia Alemã

das Torres, no RS), verificando possíveis aspectos que tenham “barrado”

a formação de uma etnicidade mais permanente e visível. Não se delineou

um aprofundamento sobre os conceitos de grupos étnicos e etnicidade

porque este exercício mereceria um acréscimo de páginas ou mesmo

transformaria este texto em outro. Sem querer fazer uso da “futurologia”, a

última reflexão: Se São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas transformar-

se-ão em sítios de lazer, ou se os colonos deixarão de ser “colonos” para

assumirem a nova profissão de “jardineiros da natureza”, somente as

futuras políticas sociais poderão responder9.

Referências

CARNEIRO, Maria José. Descendentes de suíços e alemães de Nova

Friburgo: de “colonos” a “jardineiros da natureza”. In: GOMES, Angela de

Castro (Org.). História de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 44-65.

ELY, Nilza Huyer; BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Imigração alemã:

170 anos. Vale do Três Forquilhas. Porto Alegre: EST, 1996.

9 O fato de a antiga colônia de Três Forquilhas (hoje, os municípios de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas) ser cortada pela Rota do Sol; a proximidade dos vários núcleos coloniais do LNRS com a praia; e o lento mas gradual incremento do turismo nesta região são variáveis que suscitaram as indagações acima.

182

LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho projeto com novos rostos: uma

colônia alemã para a Ponta das Torres. Dissertação (Mestrado em História da

América Latina) — Programa de Pós-Graduação em História, UNISINOS,

São Leopoldo, 1998.

RUSCHEL. Ruy Ruben. Por que foram os colonos separados por motivos

religiosos? In.: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo.

Porto Alegre: EST. 2000. p. 38-41.

WITT, Marcos Antonio. Política no Litoral Norte do Rio Grande do Sul: a

participação de nacionais e de colonos alemães — 1840/1889. Dissertação

(Mestrado em História da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em

História, UNISINOS, São Leopoldo, 2001.

ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio

Grande do Sul rural do século XIX. Tese (Doutorado) — Programa de Pós-

Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

183

13 A INVERSÃO DA IMAGEM DA

COLUNA PRESTES NA IMPRENSA: DE REVOLTOSOS PARA HERÓIS

________________________

Júlia Matos∗

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS

“O heroísmo dos revoltosos abalou, realmente, o povo brasileiro e deu a medida do extremo a que chegara a paixão pela causa que defendiam.”

NÉLSON WERNECK SODRÉ

Por compreender que os meios de comunicação de massa,

especialmente os jornais, possuem desde suas primeiras aparições na

história um papel central na formação ideológica da sociedade, este artigo

propõe uma análise sobre a utilização da imagem, construída pela imprensa,

da Coluna Prestes, pelo O Jornal, veículo pertencente aos Diários e

Associados, durante os primeiros meses de campanha eleitoral, ou seja de

agosto a novembro de 1929 e janeiro/fevereiro de 1930. Pretendemos, desta

forma, demonstrar como o O Jornal se posicionou ao lado da Aliança Liberal e

quais artifícios jornalísticos utilizou para legitimar a campanha de seus

candidatos à presidência da República, chegando até a antecipadamente

propor uma revolução para garantir a posse de Getúlio Vargas e João

Pessoa. Este artigo pretende apresentar uma breve análise de como a

imprensa constrói ou desconstrói a imagem do fato, do evento.

∗ Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS e membro efetivo do Circulo de Pesquisas Literárias — CIPEL.

184

Para a melhor compreensão do leitor faremos agora uma breve

contextualização. O movimento chamado Tenentismo que deu origem à

Coluna Prestes marcou a história nacional como a soma de surtos

revolucionários liderados por jovens militares: estes insatisfeitos com os

rumos políticos da nação deram início a diversas revoltas no Rio de Janeiro e

em outros estados, como protesto em defesa da dignidade ofendida, devido

ao caso das Cartas Falsas1. O movimento marcado com o incidente chamado

o 18 do Forte foi sufocado em 1922, pelo então presidente da República

Epitácio Pessoa. No entanto, alguns dos militares revoltosos continuaram

conspirando contra o governo.

Em 1923, no Rio Grande do Sul, por causa da vitória eleitoral

considerada fraudulenta de Borges de Medeiros, a oposição se levantou em

armas com o apoio de diversos chefes militares que esperavam a intervenção

federal. Um dos líderes da revolução era Assis Brasil que havia concorrido

com Borges de Medeiros nas eleições do Estado. Assis Brasil apoiara Arthur

Bernardes nas eleições presidenciais enquanto Medeiros apoiara Nilo

Peçanha. Por isso, Assis Brasil e os revolucionários acreditavam que o

governo Federal interviria a seu favor, o que não ocorreu. O Governo da

República interveio, mas a favor de Borges de Medeiros e o movimento foi

sufocado. Esta rebelião a primeiro momento de âmbito regional, contra o

Governo de Borges de Medeiros, tornou-se nacional, devido ao

posicionamento do Presidente da República, Arthur Bernardes, ao lado do

Presidente do Estado Borges de Medeiros.

Os militares não haviam esquecido ainda o caso das Cartas Falsas e

assim, rapidamente os ânimos entre os militares revoltosos se exaltaram

novamente. Eclodiu então em 5 de julho de 1924, em São Paulo, mais uma

rebelião para depor o Presidente da República Arthur Bernardes. Diversas

1 Episódio que marcou o governo de Arthur Bernardes, as cartas falsas consideradas de sua autoria, ofendiam o Mal. Hermes da Fonseca e somente muito depois do início das revoltas foram desmentidas, o que não arrefeçou os conflitos.

185

unidades militares aderiram à rebelião e os revoltosos gaúchos levantaram-

se, sob o comando do Capitão Luís Carlos Prestes, e reiniciaram o levante

armado. Posteriormente, em dezembro de 1924, o grupo militar rio-grandense

liderado por Prestes uniu-se aos paulistas em Foz de Iguaçu, pois, esta

cidade era propícia para a fuga ao exílio, por estabelecer fronteira entre três

países, Brasil, Paraguai e Argentina. No entanto, Prestes e seu grupo

optaram pela continuidade da luta armada, criando assim a Coluna Prestes.

Prestes acreditava que era preciso “... organizar uma coluna que fosse dotada

de capacidade de deslocamento rápido e que percorresse o interior do país,

entrando por Mato Grosso e rumando para São Paulo quando adesões

significativas ou novas condições o permitissem”2. Os homens que

participaram da Coluna ao lado de seu líder Luís Carlos Prestes, partindo do

Rio Grande do Sul, fizeram das fronteiras, com Uruguai e Argentina, muitas

vezes sua liberdade.

O movimento tenentista e a Coluna Prestes declaradamente lutavam

por maior participação no Governo, voto secreto e o fim das oligarquias. Sua

bandeira foi muito bem explorada pelos opositores do governo de Arthur

Bernardes. Segundo Boris Fausto “Durante os anos vinte, tornou-se, para

todas as camadas intermediárias e populares da sociedade, o grande

depositário das esperanças de uma alteração da ordem vigente”3. Mas, como

os ideais dos revoltosos da Coluna Prestes podiam ser conhecidos se esta

não fazia campanha? Pelo que sabemos um de seus objetivos era depor o

governo e para isso precisava de estratégias de guerra e não de campanha

para disseminar seus ideais.

Em 1925, Assis Chateaubriand opositor declarado do governo de

Arthur Bernardes, insistindo nas reportagens, enviou seu primo Rafael Correa

de Oliveira para seguir a Coluna Prestes. “... pela primeira vez o público lê na

2 WERNEK, Nelson Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 32. 3 FAUSTO, Boris. Sociedade e Instituições. In: História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977. Tomo III, v. 2, p. 409.

186

grande imprensa algo que até então só aparecia em panfletos políticos:

entrevistas em que os chefes rebeldes descrevem suas refregas contra as

forças regulares do governo federal”4. Seu jornal colocado há muito em

campanha contra o Presidente Bernardes investiu na imagem romântica e

aventuresca da Coluna Prestes, sempre exaltando os feitos do Capitão

Gaúcho, “... sabendo que a divulgação dos movimentos da Coluna era mais

uma maneira de azucrinar o presidente da República (...)5.

O Jornal já era um veículo de imprensa de grande sucesso em 1925,

contava com uma venda de 40 mil exemplares dia e “... certamente começava

a cair no gosto da população”6. A imprensa oficial se esforçava por comparar

as atividades da Coluna Prestes às do bandido cangaceiro Lampião, o que

muito indignava Chateaubriand. Em artigo, publicado na capa do O Jornal,

Chateaubriand revidou as acusações da imprensa oficial:

O ministro da Justiça, que tanto se preocupa em censurar, não devia permitir a ignomínia dessa comparação. Lampião é bandido, um salteador vulgar, um miseráel que assassina para roubar, um degenerado que se fez cangaceiro a fim de dilapidar os bens e tirar a vida de seus semelhantes. O capitão Prestes é um revolucionário, e, enquanto não for julgado por um juiz civil ou um concelho de guerra, faz parte do Exército brasileiro. O raid do capitão Prestes valerá pela tenacidade e pelo arrojo do soldado-menino de 26 anos, bravo, ardente, pugnaz, como decerto o Brasil não tinha visto nada comparável 7.

Através desta citação vemos a imagem de Prestes que O Jornal fazia

questão de divulgar e defender. A campanha em prol da imagem heróica dos

revoltosos da Coluna Prestes, liderada pelo O Jornal ganhou novos adeptos

em fins de 1925, como os jornais A Noite e o Correio da Manhã. Estes, unidos

4 MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p 150. 5 MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 150. 6 Ibidem. p. 151. 7 CHATEAUBRIAND, Assis. In:_____O Jornal, 1925. p. 01.

187

lançaram uma subscrição pública destinada a coletar dinheiro dos leitores

para ajudar os rebeldes. A importância em dinheiro levantada foi entregue a

Prestes por Oswaldo Chateaubriand, Irmão de Assis. A entrega do dinheiro e

a quantia arrecadada foram amplamente divulgadas pela imprensa, como

forma de demonstração do apoio popular à causa revolucionária, “... porque

foi uma manifestação inequívoca de que o povo brasileiro aplaudia a

campanha que empreenderâmos na defesa de suas liberdades mais caras”8.

Chateaubriand insistia em promover Prestes e defender com entusiasmo a

anistia dos revoltosos da Coluna.

A Coluna passou então a gozar de uma imagem positiva, inversa a

imagem de guerrilheiros pilhadores divulgada pela imprensa oficial. A

positividade da imagem da Coluna para com a população era tanta que o O

Jornal, veículo que apoiava declaradamente a campanha da Aliança Liberal,

continuou exaltando em inúmeros artigos, reportagens e entrevistas a ação da

Coluna Prestes, realizando uma associação desta aos candidatos à

presidência da República, Getúlio Vargas e João Pessoa em fins de 1929.

Mesmo com os revoltosos da Coluna Prestes exilados na Bolívia

desde 1927, durante a campanha eleitoral de Getúlio Vargas o O Jornal

entrevistou Luís Carlos. Esta entrevista, visto sua importância para o

momento político eleitoral, ganhou destaque na primeira página do jornal,

como podemos ver na manchete do dia 16.09.1929 (Fig. 1). A frase

destacada nesta manchete deu margem para a possibilidade de apoio dos

revolucionários a campanha oposicionista de Getúlio Vargas.

8 Anotação do diário do historiador oficial que acompanhou toda a trajetória da Coluna, Lourenço Moreira Lima.

188

Fig. 1. Entrevista com Prestes ganha manchete no O Jornal

em 16.09.1929. (Fonte: Arquivo Museu Hlpólito José da Costa)

Devida a imensa popularidade dos revolucionários e sua imagem

nacionalista criada pela própria imprensa, o tema da anistia se tornou muito

popular e explorado durante a campanha getulista. Neste período uma forte

campanha em prol da anistia aos exilados políticos foi lançada pelo O Jornal

(Fig. 2). Podemos observar isto através da freqüência de artigos e

reportagens que tratavam do assunto.

Fig. 2. Campanha em prol da anistia aos exilados políticos tomou força pelo O Jornal.

(Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa)

Neste artigo de 16 de agosto, assinado por Assis Chateaubriand, o

assunto é tratado com ironia. Chatô fez elogios irônicos ao então Presidente

Sr. Washington Luís e satirizou dizendo anistiá-lo todas as manhãs ao

acordar ou sempre ao saber de mais algum de seus “atos descabidos”.

Por isso, mesmo sem o apoio de Prestes, O Jornal não deixou de

fazer associações dos revolucionários aos candidatos à Presidência,

189

exaltando assim suas posturas nacionalistas. A anistia aos exilados,

principalmente aos participantes das revoltas tenentistas, foi o tema da

campanha aliancista, é o que podemos ver no discurso veiculado pelo O

Jornal, com destaque de página inteira, no dia 07.09.1929 (Fig. 3).

Outro fato importante para compreendermos o alcance da campanha,

empenhada pelo dono do O Jornal, de exaltação nacionalista da imagem dos

revoltosos da Coluna Prestes, é o número de Jornais adquiridos por

Chateaubriand durante os anos de 1924 e 1930. Durante estes anos Assis

Chateaubriand adquiriu cinco jornais e duas revistas, todos colocados a

serviço da campanha aliancista. A compra dos jornais Diário de Notícias do

Rio Grande do Sul, Diário da Noite do Rio de Janeiro e o Estado de Minas de

Minas Gerais, ocorreu durante a campanha eleitoral com o auxílio, inclusive

financeiro, da Aliança Liberal.

190

Fig. 3. Discurso aliancista ganha destaque de

página inteira no O Jornal de 07.09.1929. (Fonte: Arquivo Museu Hipólito José da Costa).

Como sabemos o Brasil diante de sua imensidade territorial sempre

teve dificuldades de integração cultural entre seus estados, no entanto, vemos

que a rede de jornais criada na segunda metade dos anos 20 por

Chateaubriand atuou como disseminadora dos ideais revolucionários. Desta

forma, vemos a importância da imprensa na construção romantizada da

191

imagem da Coluna Prestes e do Movimento Tenentista, que tem perpassado

a história até hoje.

Entendemos que esta primeira atuação do Diários e Associados na

divulgação e defesa dos ideais revolucionários da Coluna Prestes, de certa

forma, prepararam os ânimos brasileiros para a posterior Revolução de 1930,

que colocou Getúlio Vargas no poder. Isto porque defendia pontos que foram

assimilados nas propostas de governo da Aliança Liberal. Os líderes da

Coluna não apoiaram a Revolução de 1930, como já não haviam apoiado a

campanha de Vargas, por defenderem ideais para a nação e oporem-se a

intervenção partidária na causa, o que não invalidou sua ação como

precursora e divulgadora dos ideais de anistia, voto secreto e reforma política.

Entretanto, sua imagem nacionalista construída pela O Jornal, foi

muito explorada durante a campanha eleitoral, com inúmeras associações

entre os “heróis nacionalistas gaúchos” da Coluna Prestes e os candidatos à

presidência da República, homens de “... coragem e da bravura dos seus

conterrâneos (...)” e depois que “têm demonstrado as qualidades que se

exigem aos homens de ação realizadora”9.

Desta forma, vemos que “A palavra carrega a prática social da

sociedade, enfeixa os valores de um determinado momento histórico”10. As

reportagens e entrevistas veiculadas pelo O Jornal elucidam um momento

histórico e nos auxiliam a compreender como se deu a construção da imagem

de um evento histórico. Entendemos com estes textos que “Os sistemas de

valores não são construções particulares de um indivíduo; são, antes, o

resultado de todo um contexto socio-histórico que determina as condições de

produção do discurso11. Sendo assim, o O Jornal e sua obra são frutos de

seu tempo e devem ser analisados como tal.

9 Coluna “A Successão Presidencial” de 07 de agosto de 1929, p. 01. 10 CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São Paulo, Polis, 2002, p. 11. 11 Idem

192

Fontes

Arquivo Museu Hipólito José da Costa.

O Jornal, ago./dez. 1925.

O Jornal, ago/dez. 1929.

O Jornal, jan/fev. 1930.

Referências

CINTRA, Ana Maria. Para entender as linguagens documentárias. 2. ed. São

Paulo: Polis, 2002.

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930. In: FAUSTO, Boris; MOTA, Carlos G.

(Orgs). Brasil em perspectiva. 10. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978.

___. Sociedade e instituições. In: ___. História geral da civilização brasileira,

Rio de Janeiro: DIFEL, 1977. Tomo III. v. 2.

FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. 6. ed. Porto Alegre: Nova

Dimensão, 1996.

LIMA, Lourenço Moreira. Diário do historiador oficial que acompanhou toda a

trajetória da Coluna.

MORAIS, Fernando. Chatô: o Rei do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das

Letras. 1994.

WERNEK, Nelson Sodré. O Tenentismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

WILMSEN, Ana P. A argumentatividade e a heterogeneidade enunciativa de

textos jornalísticos. In: BORSTEL, Clarice von. III Caderno de Língua e

Literatura. Cascavel: EDUNIOESTE, 2001.

ZICMAN, Renneè Barata. História através da Imprensa — algumas

considerações metodológicas. In: Projeto História SP, Revista do Programa

de Estudos Pós-Graduados em História, Departamento de História, PUCRS,

n. 4. jun. 1985.

193

14 CONFLITOS E IDENTIDADES:

A AÇÃO MARISTA NOS NÚCLEOS TEUTOS DO RIO GRANDE DO SUL

_________________________________

Kate Fabiani Rigo∗

O artigo é apenas um recorte da minha dissertação de mestrado

sobre a Congregação Marista nos núcleos teutos do RS. A idéia de montar

um trabalho sobre os irmãos maristas e sua atuação nas colônias teutas veio

a partir da necessidade de sanar uma lacuna historiográfica existente sobre

os mesmos no Rio Grande do Sul.

Durante a revisão bibliográfica feita sobre os maristas nas colônias

alemãs, foi constatado que os fatos apresentados pelos autores deste

assunto estão descritos de forma isolada e a sua contextualização é mínima e

até mesmo subjetiva. Quanto à questão dos irmãos maristas franceses no

período de propagação da germanidade nas colônias de origem teuta, aqui no

Estado, esta quando trabalhada é posta de forma superficial.

Segundo o autor Riolando Azzi, “falta ainda um estudo mais profundo

que analise as vinculações do clero católico com a germanidade”. Esta frase

nos fez perceber que o desenvolvimento da pesquisa era válido, na medida

em que analisamos os reflexos da germanidade nas escolas coloniais e como

a Congregação Marista, de origem francesa, conseguiu realizar o seu projeto

educacional nos redutos teutos durante as primeiras décadas do século XX.

A Congregação Marista surgiu na França após a Revolução

Francesa, onde foi percebida a necessidade de oferecer à Juventude

francesa, das zonas rurais, um ensino voltado para a formação religiosa, ∗ Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

194

intelectual e esportiva de seus alunos. Estas características fizeram com que

as escolas, fundadas por Marcelino Champagnat, se destacassem e se

espalhassem pelo interior da França.

Durante o século XIX e início do século XX, a Congregação e as demais

Ordens religiosas, que estavam envolvidas em atividades educacionais, sofreram

com a inserção das idéias iluministas, que visavam a gradual laicização das

escolas francesas. A Congregação, em especial, sofreu o maior golpe em 1903,

com a instalação da Lei de Combes1, nesta foi decretado o fechamento de 400

escolas maristas e o exílio dos irmãos. A partir de então, a Congregação Marista

espalhou-se por diversas partes do mundo.

Já a vinda da Congregação para o Rio Grande do Sul, está

relacionada à exigência das colônias teutas de instalarem escolas em suas

comunidades mais afastadas. Os padres jesuítas, que eram os detentores do

poder educacional desde a segunda metade do século XIX, sentiram a

necessidade de pedir auxílio aos irmãos maristas franceses, já que estes

eram conhecidos por atenderem as comunidades rurais, no interior da França.

A instalação da Congregação aqui no Rio Grande do Sul, provocou

um acelerado processo expansionista da mesma, devido à nova

pedagogia de ensino integral aplicada pelos irmãos e devido à

precariedade do ensino gaúcho, principalmente nas regiões coloniais mais

afastadas2. Após o sucesso obtido pelos maristas, no início do século XX, os

primeiros empecilhos propiciados causados pelas diferenças culturais com as

comunidades teutas começaram a surgir, em especial no período de 1910-1922.

Esta delimitação temporal foi definida a partir das situações de conflito

1 O criador da Lei de Combes foi Émile Combes (1835-1921), antigo seminarista e político francés, fazia parte do governo anticlerical de Léon Bourgeois e depois fez parte do mandato de René Waldeck-Rousseau, como Primeiro Ministro do Interior e da Religião. A lei de Combes foi instaurada em 1903 onde as Associações religiosas precisavam da autorização legal do Estado para funcionar. 2 Para saber mais sobre o histórico da Congregação Marista no Rio Grande do Sul, recomendamos a leitura dos estudos de Ir. Eugênio Damião, Ir. Nadir Bonini Rodrigues e de Riolando Azzi. A referência completa encontra-se na bibliografia.

195

existentes entre os irmãos maristas e as comissões escolares que controlavam o

desenvolvimento da educação nas colônias de origem teutocatólicas.

A questão de preservação da identidade germânica está intimamente

ligada ao exarcebado patriotismo implantado pela monarquia Hohenzollern,

após a Guerra Franco-Prussiana (1871). Neste período a monarquia assumiu

o controle das escolas, promovendo a construção do espírito alemão e a

concepção de uma Alemanha suprema, superior a tudo que jamais existiria,

ou seja, uma nação divina.

Sobre a construção deste espírito alemão através da educação, H.G.

Wells apresenta os deveres do professor durante a dinastia Hohenzollern:

O mestre, o professor que não ensinasse e pregasse, com oportunidade e fora de oportunidade, a superioridade racial, moral, intelectual e física dos germanos sobre todos os outros povos, a sua extraordinária devoção à guerra e à sua dinastia e o seu inevitável destino à direção do mundo sob a égide dessa dinastia, era homem marcado, fadado ao desastre e a obscuridade (Wells, 1939, p. 306).

Durante este período, o ensino de história na Alemanha, se

transformou numa grande manipulação forjada pelos interesses do governo

Hohenzollern. Quanto às demais nações, estas eram vistas como incapazes

ou decadentes; e os prussianos seriam os condutores e os regeneradores da

humanidade (Wells, 1939, p. 306). Sabemos que muitos imigrantes teutos

vieram para o sul do Brasil com esse sentimento patriótico exarcebado

imbuído em sua bagagem cultural. Esta era uma característica,

principalmente, dos teutos oriundos dos redutos urbanos, que devido ao

contato com outras culturas (lusa, italiana, polonesa...) viam a sua integridade

cultural germânica ameaçada. Aqui no sul, a difusão da germanidade foi

orientada por intelectuais que possuíam acesso às escolas e à imprensa,

sendo que através destes meios, lutavam pela preservação da identidade

teuta através da língua alemã.

196

Com esta breve caracterização do espírito alemão e sua ligação

direta com as escolas e o ensino, fizemos o seguinte questionamento: Sendo

os maristas oriundos de uma congregação francesa, qual foi o impacto de sua

atuação nas colônias alemãs, durante a difusão do germanismo no Rio

Grande do Sul?

A partir desta problemática percebemos que a vinculação existente

entre a fé católica (jesuítas) e a germanidade impedia que se visse com bons

olhos qualquer interferência de religiosos oriundos de outra nação para dentro

de uma zona caracteristicamente alemã. Especialmente quando estes

religiosos eram de origem francesa, devido às tensões históricas existentes

entre França e a Alemanha. Tensões estas que estão relacionadas à situação

de fronteiras que se agravaram no decorrer da Primeira e Segunda

Guerra Mundial.

Segundo Eugênio Damião, a questão da germanidade foi um dos

principais motivos para que surgissem atritos entre os maristas e as

comissões patrocinadoras escolares. Esta questão é ressaltada no Histórico

da Província do Brasil Meridional:

Decepcionou, de certo modo, aos homens de influência o fato dos Irmãos Maristas serem franceses, embora vindo da Lorena... Quando notaram que os religiosos ensinavam, no colégio, além do alemão e do português, ainda o francês, ficaram por assim dizer mais atentos à sua ação. De fato, os irmãos ensinaram o português desde o início, mesmo na escola paroquial, ainda que o programa não exigisse (Damião, 1950, p. 136).

As divergências estavam relacionadas às matérias lecionadas, pois

achavam que não estavam dando atenção suficiente à língua e à cultura

germânica. Segundo Azzi, no ano de 1907 os irmãos maristas se propuseram

a comprar o prédio do colégio de Bom Princípio, mas o jornal Deutsches

Volksblatt lançou um apelo para que de maneira alguma o educandário de

Bom Princípio fosse vendido aos irmãos, alegando que estes haviam

197

desvirtuado os objetivos fundamentais da germanidade traçados inicialmente

para a escola complementar.

Em 1918, os maristas foram afastados da direção da Escola de Bom

Princípio, pois pretendiam dar feriados aos alunos em datas brasileiras, o que

contrariava o desejo da Comissão Paroquial. Após esta decisão e depois de

outros atritos ocorridos em escolas alemãs e os religiosos maristas, estes

resolveram sair do reduto cultural dos imigrantes alemães, partindo para

atender as solicitações dos colonos italianos.

Acreditamos que a defesa da germanidade e a reação frente à

pedagogia francesa aplicada pelos irmãos estavam associadas à perda do

monopólio cultural e educacional dos jesuítas. De forma que estes se

utilizaram os princípios de preservação da integridade cultural alemã para

que a expansão educacional marista fosse freada nas comunidades de

origem teuta.

Considerando o fato de que a pesquisa atinge duas etnias distintas —

a alemã com os teuto-brasileiros e os jesuítas e a francesa com os irmãos

maristas — utilizamos o estudo de Norbert Elias para entendermos que as

auto-imagens nacionais representadas através de conceitos como

“Civilização” e “Kultur” assumem formas distintas. Por mais divergentes que

seja a auto-imagem dos alemães, que falam com orgulho de sua “Kultur”, e a

de franceses, que se envaidecem com a sua “civilização”; todos consideram

esta a maneira como o mundo dos homens como um todo, quer ser visto e

julgado (Elias, 1996, p. 25).

Deste modo compreendemos que o imigrante alemão, aqui no Rio

Grande do Sul, aplicou a manutenção do “Kultur” através de suas escolas,

sociedades e pela preservação de seu idioma materno. Quanto à chegada

dos irmãos maristas nas escolas teutas, que tiveram toda a sua base

pedagógica francesa, o termo “Civilização” pode ser encontrado na idéia de

expansão, ou seja, de levar o conhecimento a todos e de fazer com que seus

198

alunos estudassem além do idioma alemão, o português e também o francês.

Este espírito de “civilizar” francês foi um dos fatores que propiciaram o rápido

avanço que a Congregação Marista teve pelo mundo após a sua saída da

França com a chamada “Lei de Combes” no ano de 1903.

Como mencionamos anteriormente, a nossa hipótese de que a

manutenção da identidade cultural teuta tenha sido utilizada pelos padres

jesuítas como uma forma de deter o avanço educacional marista nos núcleos

de origem alemã está calcada na teoria de dominação simbólica, onde por

meio do imaginário coletivo o imigrante pode ser atingido. Segundo Baczko,

em seu texto “Imaginação Social” (1985, p. 332), qualquer coletividade produz

um sistema simbólico que compreende os imaginários sociais, e que para a

garantia desta difusão é necessário controlar instrumentos relacionados à

persuasão, pressão e inserção de valores e crenças. Assim a defesa pela

integridade cultural teuta se difundiu através da imprensa (persuasão), da

religião (pressão) e das escolas (inserção de valores e crenças), formando

uma rede que através desta a construção do imaginário se dividiu e montou

seus próprios objetivos (preservação da integridade cultural). Para Baczko, a

construção desta coletividade:

...designa sua identidade, elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais, é produzido, em especial, uma representação global e totalizante da sociedade como uma ‘ordem’ em que cada elemento encontro o seu ‘lugar’, a sua identidade e a sua razão de ser (Baczko, 1985, p. 309).

Com a definição de que os jesuítas tenham controlado a expansão

educacional marista a partir do imaginário coletivo e de que sua

propagação esteve diretamente ligada a redes de controle coletivo como:

Imprensa, Igreja e Escola. Consideramos de suma importância destacar a

participação destes elementos na manutenção do “Kultur” e também na

propagação do germanismo.

199

Esta atribuição a Ordem Jesuítica está relacionada a sua influência,

na época, em todos os elementos da rede simbólica. Podemos citar como

exemplo a sua participação na imprensa através do Deutsches Volksblatt e no

Lehrerzeitung; na religião por serem os responsáveis pelas paróquias das

comunidades teutas e por fim na escola por serem os responsáveis pela

formação de escolas paroquiais nas colônias de origem alemã do Estado.

Com todas estas informações, é possível que o leitor faça o seguinte

questionamento: “Já que o ideal jesuíta era o de preservar a integridade

cultural teuta às futuras gerações, por que então foi chamado o auxílio de

uma congregação de outra etnia?”

A resposta está ligada ao objetivo a um projeto maior, de maneira que

a vinda da congregação não estava associada somente à falta de professores

na região alemã, mas também estava ligada a um projeto católico que visava

evitar a propagação de escolas leigas por um lado e de luteranas por outro.

Esta breve caracterização é válida no sentido de entendermos o sentido no

qual padres jesuítas alemães convidaram professores de uma congregação

francesa para auxiliá-los no seu projeto educativo.

De início as primeiras ações maristas nas escolas paroquiais teutas

foram aprovadas pelos padres jesuítas, no entanto, com o passar das

fundações maristas, os jesuítas deixaram de ver os irmãos como aliados e sim

como concorrentes. Já que toda a estrutura educacional das comunidades

teuto-católicas era supervisionada e administrada pelos jesuítas. Com a

chegada dos maristas esta estrutura monopolista foi quebrada, o que gerou o

desencadeamento de atritos entre jesuítas e maristas.

É importante lembrarmos que estamos falando de duas instituições

católicas que estão marcadas não só por suas diferenças estruturais como

também por suas diferenças identitárias, onde uma preserva o “Kultur”

(jesuítas alemães) e a outra leva a todos a sua civilização (maristas).

200

Para que possamos compreender estas divergências estruturais e

identitárias selecionamos alguns pontos de discordância entre as

duas instituições:

• Os jesuítas alemães possuíam um projeto educativo baseado na

manutenção da integridade cultural e identitária do teuto-brasileiro.

Os maristas vieram para cá com o espírito universalista fazendo

com que seus alunos expandissem seus conhecimentos através de

uma pedagogia integral.

• Os jesuítas alemães possuíam um sistema de ensino mais rígido,

onde a relação entre professor e aluno era extremamente

distante e a disciplina era bastante rigorosa. Os maristas

trouxeram uma pedagogia mais flexível em relação aos jesuítas,

considerando a relação do professor-aluno mais próxima e o

sistema disciplinar era mais flexível, esta característica está

associada à pedagogia de presença.

• Os jesuítas utilizavam a cultura local para difundir os valores

católicos. Os maristas utilizaram a pedagogia para a difusão destes

mesmos valores.

Sabemos que existem outras diferenças entre as duas instituições, no

entanto, selecionamos apenas estas por terem sido as principais motivadoras

das desavenças. Os confrontos muitas vezes podem ser marcados também

pela igualdade de objetivos, como no caso dos jesuítas e maristas, ambos

possuíam o espírito educacional expansionista e catequizador. O caso do Rio

Grande do Sul é um bom exemplo deste ideal catequizador das instituições,

onde estas buscam o controle educacional do território rio-grandense

promovendo uma verdadeira disputa pelo espaço cultural do Estado.

Para exemplificarmos a nossa afirmação selecionamos duas citações,

uma apresentando a idéia dos jesuítas de não perderem o seu domínio

201

cultural na região teuta e outra que ressalta o projeto educacional

expansionista marista:

Para aliviar a nossa sociedade do peso do magistério, foram chamados os irmãos das escolas, denominados maristas. Principiaram esta tarefa e, 1° de janeiro de 1903. Os edifícios, contudo, os móveis da escola, assim como a administração e a direção permanecem em nossas mãos (Azzi, 1997, p. 256 apud Líber generallis residentiae S. Crucis. S.J., 1903).

A citação apresenta claramente o intuito dos jesuítas de terem os

irmãos apenas na docência da escola, não dando abertura para uma possível

ascensão. Outro ponto observado se refere à necessidade de mostrar os

maristas como subordinados ao domínio administrativo dos Jesuítas.

Podemos associar a idéia de domínio e subordinação ao imaginário que

cercava o teuto, no caso os jesuítas alemães, que ele representava um

modelo de superioridade em relação às demais nações, principalmente em

casos relativos aos franceses (maristas), já que suas rivalidades ocupam o

campo histórico e cultural.

A próxima citação está associada ao interesse da Congregação

Marista de expandir o seu projeto educacional, esta foi um trecho extraído da

carta enviada pelo Ir. Weibert ao Superior Geral Marista:

Eu acabo de apresentar meus títulos franceses a fim de ser nomeado para a escola oficial (...). Eu me comprometi de apresentar em dos meus professores aos exames de dezembro de 1901 para a obtenção do diploma; se o bom Deus me der saúde e um pouco de tempo, eu mesmo me prepararei a estes exames cujo programa é muito pesado (é o diploma superior francês). Se como eu espero a coisa saia bem, será um precedente; e nós poderemos desta maneira ter muitos estabelecimentos no Estado do Rio Grande do Sul (Rodrigues, 2000, p. 59).

O trecho final destaca a possibilidade e o desejo do Ir. Weibert de

instalar uma Província Marista aqui no Rio Grande do Sul. Este projeto

202

educacional expansionista se relaciona com a definição do “Civilizar” para o

francês, onde este se julga preparado para difundir o conhecimento a todas

as partes do mundo, já que o mesmo se denomina civilizado.

A idéia de “civilizar” está associada a um sentimento de superioridade

em relação a uma outra nação menos “civilizada”. Este é mais um fator de

igualdade entre os maristas, que difundem pelo mundo sua pedagogia

humanista com base francesa e os jesuítas alemães que vieram para as

terras do Rio Grande do Sul com um forte sentimento de superioridade

adquirido principalmente no período de Bismarck na Alemanha.

A contribuição dos irmãos nestas colônias foi indiscutível, já que

os mesmos complementaram e aperfeiçoaram o trabalho já desenvolvido

pelos padres jesuítas aqui no Rio Grande do Sul, mais especificamente

nas colônias teutas. Mesmo com os desentendimentos com as comissões

escolares, os irmãos maristas conseguiram implantar um sistema

educacional tão eficaz que quanto mais se conheciam, mais solicitações

eram recebidas, gerando um grande descontentamento por parte da

Ordem Jesuítica, aqui implantada.

Por fim, evidenciamos que as divergências entre os maristas

franceses e os jesuítas alemães estão relacionadas aos termos “Kultur” e

“Civilização”, onde o jesuíta utilizava a educação como um meio de preservar

ao máximo a sua identidade cultural de seus educandos através do “Kultur”, já

o marista utilizava a educação como um meio de expandir e de levar a todos

a sua “Civilização”. Consideramos de suma importância ressaltar que esta

mistura entre alemães e franceses no processo de formação das escolas nos

núcleos teutos do Rio Grande do Sul trouxeram para as suas comunidades

uma espécie de equilíbrio, já que o jesuíta fez com que a comunidade não

perdesse por completo a sua identidade cultural e o marista mostrou para a

mesma que é possível preservar esta identidade através do conhecimento de

outras identidades culturais.

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