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PRADO_AmoreArtedeViver_jul2010_préf

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Plínio W. PRADO Jr.Université de Paris 8 - Vincennes à Saint-DenisDépartement de PhilosophieWebsite: http://www.atelier-philosophie.org

A articulação do tema da infantia com a questão do amor se faz por si só. É que amor e infância são indissociáveis, como literatura e psicanálise mostram.Só há amor (no sentido forte : amor-paixão) na medida em que os adultos aceitam a infantia neles. (É o que Nina Berberova explica quando diz que os amorosos se encontram num no man’s land : uma região infantil, milagrosamente compartilhada, desconstruindo a distinção « interior/exterior ».) « O amor pleno é sempre o paraíso do qual a infância me deu a idéia fixa. » Como a infantia, quem ama é sem idade : ele/ela tem a « idade » da sua paixão, de suas transferências, de seus amores. O motivo do encontro – do acaso, do evento inesperado e prodigioso que ele é – constitui o elo (articulus), o ponto de junção por excelência entre amor e infância. O encontro amoroso (a fascinação : a Verliebtheit) supõe, como condição de sua possibilidade, a passibilidade infantil : uma disponibilidade afetiva inicial (ao initium), mais antiga do que toda linguagem articulada (adulta). Como mostram, cada uma segundo a sua língua e sua maneira, a literatura (Proust, referência exemplar), a psicanálise (Freud e Laplanche) e a filosofia (Benjamin, mas também Barthes e Lyotard).

E se é verdade, como sustenta Barthes, que a opinião contemporânea está discreditando o amor (ao proveito do sexo), isso corrobora ao mesmo tempo a idéia de que a infantia é esse elemento incômodo, « inútil », « infuncional », com o qual a sociedade liberal do padrão de desempenho não tem nada o que fazer, e do qual ela trabalha para se « liberar » por todos os meios.Num mundo onde o « valor » que conta é o valor de troca, o negócio, a infância amorosa – que lembra que nós não nascemos já permutáveis, prontos para a troca – não tem razão de ser nem direito à existência.

Eis porque é importante aqui empreender uma anamnese da questão da infantia – infância do amor incluída. Ela constitui a nossa linha de resistência hoje.

A arte de viver… à beira do abismo.

Na permissividade do mundo atual, o que é tido por obsceno não é mais o sexo, mas o

sentimento : amar, se apaixonar. « A opinião moderna está discreditando o amor. »

Essa condição « sentimental » não cessou de se agravar, mais de trinta anos após o

diagnóstico de Barthes. Nesta época de hegemonia do negócio, estendendo o seu cálculo

de interesses a tudo (saber, arte, corpos e afetos...), o amor encontra-se ameaçado por

todos os lados. Reduzido ao sexo, segundo as normas do hedonismo contemporâneo ;

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identificado ao contrato temporário entre dois supostos associados, visando garantir um

« amor sem transtornos » ; despojado, em suma, de sua dimensão de acaso, de risco, de

evento desestabilizante, traumático – a fascinação (Verliebtheit : a « enamoração ») –, sem

a qual o encontro amoroso, improgramável, não é possível.

À contracorrente da tendência de nosso tempo, tratar-se-á aqui de elaborar uma linha de

resistência : a do amor concebido como « escolha de vida », « tekhne ou arte de viver »

(Freud), cujos rudimentos são perfeitamente identificáveis nos discursos filosófico,

psicanalítico e literário contemporâneos. Uma tal « tekhne » não nega – ao contrário :

assume – que não há felicidade sem dor, nem paixão sem transtorno. Eis porque convém

completar a « arte de amar » (Ars amatoria) com uma « arte de desamar » (Remedia

amoris).

Enfim, nós descobriremos aqui, ao longo desse caminho, mais de uma convergência

inesperada da cultura européia com a filosofia romântica espontânea de uma sequência da

música popular brasileira e o que poderíamos chamar de sua matriz : o leitmotiv segundo

o qual « viver é amar e sofrer ».

As condições do discurso amoroso hoje.

D. Caymmi. — De amor, para entender, é preciso amar, e amar... só louco.

R. Barthes. — Mas o amoroso, justamente pelo fato de estar dentro, vê o amor como

existência, não como essência : ele se encontra no mau lugar do amor, o seu lugar mais

ofuscante : « O lugar o mais obscuro, diz um provérbio chinês, é sempre sob a lâmpada. »

Tendo em mente o projeto de elaborar a concepção do amor como « arte de viver », a

questão que guiará o presente trabalho será a de saber qual tipo ou gênero de discurso é

capaz de acolher o amoroso doravante – isto é, o « sujeito » que escolheu fazer hoje do

amor uma « arte de viver ».

Como o motivo da « arte de viver » vem originariamente da filosofia, poderia-se esperar

que é nela que devemos ir procurar ou forjar o discurso que buscamos. Todavia – como

iremos ver – a filosofia, ao menos a partir de sua inauguração socrática, não cessará de

advertir o seu público contra os logros e perigos da « paixão amorosa » (« ilusão »,

« energia desregrada », etc.). Desde o começo, os ditos « exercícios espirituais », as

práticas de si tendo em vista a « arte de viver » (tekhne tou biou), serão concebidas como

uma « terapêutica das paixões » visando liquidá-las. Mesmo quando a filosofia integra Eros

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no seu sistema discursivo, como no caso de Platão, ela o fará para melhor subordiná-lo a

um sentido ou finalidade superior : a Idéia de Belo ou de Bem (ao contrário do que diz

Freud, nós estamos aqui longe da « energia amorosa » ou « erótica » da psicanálise, a

libido).

O amor-paixão é inaceitável para o discurso filosófico, mesmo quando este se dedica a

fazer o « elogio do amor » ? Qual outro discurso então seria passível de acolhê-lo ?

Nós veremos que só uma prática da escritura, « literária » ou não (Nietzsche par exemple),

é suscetível de fazer jus ao amoroso e à sua paixão. De sorte que se há uma ascese, um

exercício ou trabalho sobre si que corresponde à concepção do amor como « arte de

viver », ele se situa aí. « Viver (e amar) segundo as nuances que a escritura me ensina. »

(Paris, juillet 2010.)

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