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Preconceitos - ranços sociais embebidos às páginas de ... · PRECONCEITOS - ranços sociais embebidos às páginas de Clara dos Anjos de Lima Barreto Autora: Emanuela Trindade

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PRECONCEITOS - ranços sociais embebidos às páginas de Clara dos Anjos

de Lima Barreto

Autora: Emanuela Trindade Munis Barbosa1

Orientador: Wilson Rodrigues de Moura2

Resumo

O presente artigo consiste no relato de uma experiência de trabalho com o texto literário mediante utilização da Metodologia da Mediação Dialética aliada à proposta de níveis de leitura de Platão e Fiorin. A oficina foi realizada em uma turma do 3º ano do Ensino Médio de um Colégio Estadual de Campo Mourão - PR, com a intenção de propiciar aos alunos o trabalho em equipes, a reflexão e, consequentemente, a expectativa de contribuir para uma aprendizagem mais significativa, por meio do trabalho com textos literários. O relato foi feito a partir das atividades produzidas no desenrolar das 3 unidades temáticas (Fábula, Conto e Romance) e das observações da professora/pesquisadora sobre o desenrolar dessas unidades após terem sido oferecidas aos alunos. Houve melhoria na participação das atividades, culminando com a leitura de Clara dos Anjos de Lima Barreto, e mudanças em relação à leitura do texto literário.

Palavras Chave: Literatura e Ensino. Mediação Dialética. Romance.

1 Considerações iniciais

Este trabalho constitui parte do Programa de Desenvolvimento Educacional

(PDE), destinado aos professores da Educação Básica das Escolas Públicas do

Paraná, com o intuito de propiciar a estes docentes subsídios teórico-metodológicos

para o desenvolvimento de ações educacionais sistematizadas que resultem em

1 Especialista em Língua Portuguesa e Literatura (Fafijan), Graduada em Letras Anglo-Portuguesas

(Fecilcam) e professora da Rede Estadual de Educação do Estado do Paraná, no CE Darcy José Costa em Campo Mourão. 2 Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista – UNESP e professor titular da

FECILCAM – Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão.

redimensionamento de sua prática, mediante a tutoria de um dos profissionais do

Ensino Superior.

Em linhas gerais, o Plano de Trabalho do programa prevê uma proposta de

intervenção na realidade escolar a partir de três grandes eixos: a proposta de

estudo; elaboração de material didático para uso nas escolas e a orientação de

Grupo de Trabalho em Rede (GTR), envolvendo os professores da rede pública

estadual. Por razões de tempo e espaço, apenas os dois primeiros eixos serão

abordados neste texto.

Além disso, é importante ressaltar que a proposta de um trabalho

diferenciado envolvendo a leitura do texto literário nas aulas de Língua Portuguesa

no Ensino Médio, no Colégio Estadual Prof. Darcy José Costa EFM, de Campo

Mourão, surgiu a partir da reflexão sobre os questionamentos que alunos fazem a

respeito da relevância do estudo da Literatura. Não é raro o descaso de discentes

com relação aos conteúdos referentes à leitura literária em oposição ao fascínio

causado pelas diversas mídias a que estamos expostos: seja pelo acesso quase

maciço à televisão, seja pela popularização do acesso aos computadores (e à

internet, por extensão), e principalmente pela utilização das múltiplas mídias

disponibilizadas pelos aparelhos celulares, os quais, muitas vezes, são trazidos para

a sala de aula.

A esse respeito, Rocco (1991) e Fantinati (1996) alertam que a escola tem

demorado a perceber que, com os meios de comunicação de massa e com o mundo

urbano industrial, a literatura erudita passa a competir com outras modalidades de

literatura, textos verbais e não verbais que também satisfazem à necessidade de

ficção e fantasia.

Tudo isso justificou a escolha do tema, bem como a necessidade de mostrar,

para além das abordagens propostas pelos livros didáticos, a leitura do texto literário

como ferramenta importante à contemporaneidade por possibilitar a reflexão sobre o

mundo que nos cerca. Além disso, como professora de Língua Portuguesa no

Ensino Médio do referido colégio, não deixamos de nos preocupar, por um lado, com

as questões referentes aos meios mais adequados de abordagem dos textos

literários, (principalmente os romances, que são rotulados pelos alunos como

distantes de sua realidade, de modo a serem ignorados ou lidos apenas em forma

de fragmentos trazidos pelos livros didáticos, ou ainda em forma de resumos, com

vistas ao vestibular), por outro lado, com as diretrizes oficiais e as orientações de

pesquisadores da área, que vão desde a indicação de se ressaltar o prazer estético

do texto literário, até o estudo visando à “construção de sentidos” ou à interação

entre texto/autor/leitor.

A proposta de intervenção pedagógica, tomando esse norte, buscou juntar

essas duas preocupações, bem como a necessidade de se efetuar a leitura de

textos clássicos, e, mediante a leitura de “Clara dos Anjos”, possibilitou a 27 alunos

de 3ºano do Ensino Médio o contato com textos escritos em outras épocas, em

outras formações sociais, mas que ao mesmo tempo, ao contrário do que pudesse

parecer à primeira vista, dizem muito daquilo que se vive na atualidade.

Porém, antes de apresentar e discutir as três unidades produzidas e

desenvolvidas pelos alunos (a fim de propiciar: a análise dos níveis de leitura de

textos literários, mais especificamente, fábula, conto e romance; a reflexão sobre as

possibilidades de uso da leitura como forma de garantia da cidadania; a ampliação

da proficiência dos alunos para a leitura de textos mais longos, ou de maior

complexidade, atribuindo-lhes sentidos adequados; e a compreensão do romance

como produção estética situada no tempo e no espaço), torna-se imprescindível

discutir os embasamentos teóricos sobre leitura, literatura e Metodologia da

Mediação Dialética.

2 A questão da leitura

Ler não é decodificar palavras, mas depreender significações num todo

escrito ou lido. É um ato imprescindível ao ser humano que convive em sociedades

letradas como a nossa, pois é através da leitura que o sujeito mostrará seu

posicionamento frente às situações. A verdadeira leitura se dá, então, quando o

leitor, adicionando leitura de mundo, constrói sentidos ao que lê, vê ou escreve.

Nas palavras de Freire (1988 p.11), A leitura do mundo precede a leitura da

palavra; uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação

pura da palavra escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo.

Ou ainda, como afirma Magda Soares (1998), Ler é mais do que decifrar o código de

uma língua (alfabetizar-se), pois o “letramento” implica numa forma de inserção

social (linguística, cognitiva, econômica,...) do indivíduo de acordo com o uso

competente que ele pode fazer da leitura e da escrita.

É nessa direção que, antes de se fazer um resgate histórico da disciplina

“Língua Portuguesa”, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua

Portuguesa (de agora em diante DCE-LP) admitem ainda haver uma dívida da

escola pública para com o povo brasileiro, pois falta

(...) ensinar a ler e a escrever com a proficiência necessária e de direito àqueles que nasceram no universo da Língua Portuguesa falada no Brasil e necessitam dela como um instrumento legítimo de luta e posicionamento, para que, de posse desse instrumento, possam assumir uma postura de cidadãos ativos na sociedade brasileira (PARANÁ, 2008, p. 39).

Assim, as DCE-LP concebem a leitura como um ato dialógico, interlocutivo,

que envolve demandas sociais, históricas, políticas, econômicas, pedagógicas e

ideológicas de determinado momento (PARANÁ, 2008, p. 56). Durante a leitura,

portanto, o indivíduo aciona suas experiências, seus conhecimentos prévios, suas

formações familiares, religiosas, culturais, enfim, as várias vozes que o constituem

(idem, ibdem).

Silva (1991, p. 75), ao defender tanto a importância da memória, dentre as

capacidades da consciência humana, quanto a compreensão da história, individual

ou social, mediante a recuperação de fatos passados para que sejam refletidos no

presente, define leitura como:

(...) um processo ou prática social que permite à pessoa compreender a sua razão de ser no mundo, buscando incessantemente, mais conhecimento sobre sua realidade, seja observando a concretude do real, seja dando vida aos registros da cultura, expressos por diferentes linguagens. Mais especificamente, ler e compreender os objetos e/ou as palavras é sempre uma tentativa de se compreender como um ser situado na história.

Concordamos, então, que o leitor, ao entrar em contato com a escrita,

mobiliza os conhecimentos que possui para somá-los às informações trazidas pelo

texto, de modo a atribuir sentido(s) a ele, pois o texto é uma máquina preguiçosa

que pede ao leitor para fazer parte de seu trabalho (ECO, 1983, p. 55)

Entretanto, é importante destacar que Eco (1983) se refere, especificamente,

ao texto literário e, por isso, além dos processos neurofisiológico (relativo à

movimentação dos olhos e ao funcionamento da memória) e cognitivo (o leitor deve

possuir um saber mínimo para que possa prosseguir a leitura) é preciso considerar

também outras três dimensões que Gilles Thérien (1990, p. 1-4, apud JOUVE, 2002)

apresenta como constitutivas do processo de leitura: o processo afetivo – afinal, as

emoções estão de fato na base do princípio de identificação, motor essencial da

leitura de ficção (JOUVE, 2002, p. 19) –, o processo argumentativo (o texto é uma

interpelação ao leitor, um questionamento constante sobre o sentido que este lhe

concebe) e, por fim, o processo simbólico – porque toda leitura interage com a

cultura e os esquemas dominantes de um meio ou de uma época (JOUVE, 2002, p.

22).

Isso nos leva a admitir também que o texto, em sua própria estrutura, já

prevê o leitor-modelo (uma espécie de tipo ideal que, segundo Eco, o texto não só

prevê como colaborador, mas ainda procura criar), pois fornece as pistas para que o

leitor, ao entrar em contato com ele, seja capaz de preencher suas lacunas. Nesse

aspecto, a concepção de leitor-modelo de Eco (1983, p. 15) se aproxima da

definição de leitor implícito de Iser (1996), para quem:

(...) o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece como condição de recepção, a seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. Se daí inferimos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa que as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permitem construir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção de leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor (ISER, 1996, p. 73).

Eco e Iser, portanto, deixam claro dois aspectos: que o leitor já é previsto na

estrutura do texto e que o texto literário (ficcional), por possibilitar um contato

singular do leitor com a escrita, pode propiciar de modo mais efetivo a formação do

leitor, uma vez que exige daquele que lê um trabalho de re-construção do texto no

momento da interação (leitor-texto). Assim, torna-se necessário definir o que

entendemos por literatura.

3 A questão da literatura

Na atualidade, há certo consenso sobre a concepção de literatura como

manifestação artístico-cultural firmada no pressuposto da liberdade, fruto da

imaginação e fim em si mesma. Mas, como nos lembra Batista (2004, p.19) ao citar

Eagleton (2000 [1983]), as variáveis históricas, os juízos de valor e, principalmente,

as ideologias interferem na concepção do termo literatura em diferentes épocas, o

que justificaria o fato de que antes da metade do século XVIII a palavra tenha

mantido o sentido de “técnicas de ler e escrever à cultura do homem letrado”, como

sugere o termo latino litteratura, e depois desse período tenha sido compreendido

como “fenômeno estético”, “arte expressa por meio de palavras” e o “conjunto de

obras advindo dessa arte”.

A esse respeito, as DCE-LP definem que

A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a economia, entre outros. (PARANÁ, 2008, p. 57)

Partindo dessa perspectiva social da literatura, as DEC-LP citam Candido

(1972), para quem a literatura, arte que transforma/humaniza o homem/a sociedade,

tem três funções: a psicológica (por permitir ao homem a fuga da realidade,

mergulhando num mundo de fantasias, o que lhe possibilita momentos de reflexão,

identificação e catarse); a formadora (pois a literatura por si só faz parte da

formação do sujeito, atuando como instrumento de educação ao retratar realidades

não reveladas pela ideologia dominante - mas não somente conforme a pedagogia

deseja) e a social (pois a arte é autônoma, mas não se desliga da fonte de

inspiração, ou seja, é uma representação social e humana).

Depois de explicitar essa perspectiva social, as DEC-LP também citam

Eagleton (1983) para falar da dificuldade em se definir literatura e para justificar a

sugestão de que o trabalho com o texto literário tenha como foco na interação com

vistas à dimensão estética.

Eagleton (1983) comenta sobre a dificuldade em definir literatura, uma vez que depende da maneira como cada um atribui o significado a uma obra literária, tendo em vista que esta se concretiza na recepção. Segundo esse teórico (1983, p. 105), “Sem essa constante participação ativa do leitor, não haveria obra literária”. Sob esse enfoque sugere-se, nestas Diretrizes, que o ensino da literatura seja pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, visto que essas teorias buscam formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio de uma interação que está presente na prática de leitura. A escola, portanto, deve trabalhar a literatura em sua dimensão estética. Trata-se, de fato, da relação entre o leitor e a obra, e nela a representação de mundo do autor que se confronta com a representação de mundo do leitor, no ato ao mesmo tempo solitário e dialógico da leitura. Aquele que lê amplia seu universo, mas amplia também o universo da obra a partir da sua experiência cultural. (PARANÁ, 2008, p. 58) (grifos nossos).

A importância do leitor no processo de atualização das obras literárias

aparece, portanto, como uma resposta às críticas sobre práticas anteriormente

adotadas pelo sistema de ensino, tanto daquelas propostas do início século XX,

quando o principal instrumento do trabalho pedagógico eram as antologias literárias,

com base nos cânones com o objetivo de transmitir a norma culta da língua, com

base em exercícios gramaticais e estratégias para incutir valores religiosos, morais e

cívicos; quanto daquelas propostas que, a partir dos anos 70, restringiam-se a

abordagens estruturalistas e/ou historiográficas do texto literário, em que o professor

do antigo colegial/segundo grau conduzia a análise estrutural do texto, cabendo aos

estudantes apenas a condição de meros ouvintes; ou ainda das propostas

ancoradas na historiografia literária, que ainda hoje resiste em algumas salas de

aula, de modo a referendar as interpretações dos professores e/ou dos livros

didáticos - nas respostas aos questionários que acompanham os fragmentos das

obras -, desconsiderando o papel ativo do aluno no processo de leitura (cf.

PARANÁ, 2008, p. 45)

Além disso, a ênfase na recepção é o reconhecimento de que:

O texto literário permite múltiplas interpretações, uma vez que é na recepção que ele significa. No entanto, não está aberto a qualquer interpretação. O texto é carregado de pistas/estruturas de apelo, as quais direcionam o leitor, orientando-o para uma leitura coerente. Além disso, o texto traz lacunas, vazios, que serão preenchidos conforme o conhecimento de mundo, as experiências de vida, as ideologias, as crenças, os valores, etc., que o leitor carrega consigo. (PARANÁ, 2008, p. 59) (grifos nossos).

Assim, as indicações de que, por um lado, o texto necessita da colaboração

do leitor, e de que, por outro lado, o texto não está aberto a qualquer interpretação,

parecem apontar para um aspecto a que nós, professores de Língua Portuguesa,

em especial os que atuam no ensino médio, devemos nos atentar: o tratamento

metodológico ao se trabalhar com o texto literário.

4 A Metodologia da Mediação Dialética

A forma como o texto é abordado em sala de aula é uma das preocupações

correntes nos trabalhos de João Wanderley Geraldi desde a década de 1980. De

modo semelhante, Aguiar e Bourdini (1993[1988]), focando especificamente o

trabalho com o texto literário, apresentam alternativas metodológicas para a

formação do leitor.

Embora não cite esses autores, Bender (2007), em sua dissertação de

mestrado pela PUC-RS, argumenta sobre o poder que o texto literário pode exercer

na formação do sujeito, dependendo da metodologia que for adotada. Segundo ela,

a entrada do texto literário na sala de aula não significa a perda ou desmerecimento

de seu caráter artístico, pois Não há mais como se pensar a literatura fora da escola.

A prova disso é a própria disciplina de Literatura no Ensino Médio (BENDER, 2007,

p. 20).

Ao consideramos a literatura no ambiente escolar, principalmente nos três

anos do Ensino Médio, não podemos ignorar a ação da prática educativa (a relação

entre o ensino e a apropriação do conteúdo escolar pelo aluno, mediante o trabalho

pedagógico desempenhado pelo professor) sobre ela. A mediação pedagógica,

desse modo, é imprescindível para que essa prática possa transformar as

informações em aprendizagem e o conhecimento cientificamente produzido em

conteúdo escolar (de ensino).

Com base nisso, Arnoni (2008a e 2008b) apresenta a Metodologia da

Mediação Dialética (daqui em diante M.M.D.) – uma proposição metodológica que

operacionaliza o método dialético e a concepção de mundo (via mediação), com

base na Dialética e Ontologia do Ser Social – que:

(...) permite compreender os processos de ensino, de aprendizagem e a organização metodológica dos conceitos, bem como a relação de tensão dialética que existe entre eles. (...) trata-se da adequada relação entre método, metodologia e lógica. A metodologia de ensino permite ao professor articular aula e visão de mundo, como possibilidade de discutir o trabalho docente. (2008b, p. 01)

A autora, ao alicerçar sua metodologia na consideração do humano em sua

dimensão histórica, defende ser possível ensinar os conhecimentos produzidos pela

humanidade de modo que o aluno, sujeito da aprendizagem, possa ter uma

concepção mais articulada e menos imediata do ambiente natural e social, o que lhe

possibilitaria agir mais criticamente sobre o mundo.

Entretanto, ela chama a atenção para o fato de que os “conhecimentos

científicos” produzidos não podem ser transportados in natura para a sala de aula,

sem antes ter um tratamento pedagógico, como podemos notar em:

Os termos comunicação científica e aula expressam diferentes naturezas do tratamento do conceito científico produzido pela pesquisa. No primeiro, o conceito científico é apresentado in natura, preservando a forma original em que foi produzido pelas diferentes áreas do conhecimento e no segundo, o conceito produzido pela pesquisa deve ser transformado em conceito para o ensino deste. Assim, têm-se o conceito produzido pela pesquisa e o conceito produzido para o ensino da pesquisa (ARNONI, 2008b, p. 6).

Tomando o alerta de Warde (1991) como contraponto, Arnoni (2008b)

argumenta que sua pesquisa se propõe a desvincular a lógica de aquisição “do

conceito” da lógica de produção “do conceito”, em todas as etapas da Educação

Escolar. Desse modo,

(...) a compreensão de Ambiente natural e humano-social, como totalidade concreta, justifica a asserção da M.M.D. que explicita a valorização dos conceitos científicos, oriundos das pesquisas das diferentes áreas do conhecimento, visto, serem eles transformados em conceitos para o ensino destas, o conteúdo de ensino. Para a pesquisa produzir conceitos científicos é necessário que, inicialmente, o mundo natural e humano-social seja, pela reflexão e abstração, investigado nas diferentes áreas do conhecimento, pautadas na Lógica Formal. Disto resulta a produção do conhecimento, expresso pelos conceitos científicos, que na Educação Escolar é denominado de Ciências de Referência (ARNONI, 2008b, p. 6).

Assim, para Arnoni (2008b, p.7), cabe ao professor a tarefa de buscar a

compreensão do “conceito científico” selecionado para a aula em sua

processualidade, estudando-o na perspectiva da Lógica Dialética e investigando seu

desenvolvimento histórico, por intermédio das relações entre os planos que

sustentam a sociedade.

Considerando tudo isso, a autora explicita que a M.M.D. foca na

problematização de situações capazes de gerar contradições entre o ponto de

partida (o imediato; o quotidiano dos alunos) e o de chegada (mediato; o

conhecimento produzido historicamente pela humanidade) do processo educativo.

Segundo ela, é por intermédio dessa problematização que se provoca a superação

do imediato no mediato pretendido, o que possibilita a elaboração de sínteses pelo

aluno (saber aprendido). Em outras palavras:

A proposição teórico-metodológica da "Metodologia da Mediação Dialética" é uma totalidade que envolve a operacionalização/aplicação do método dialético, a transformação do conceito científico em conceito para o ensino (conteúdo de ensino), a explicação dos processos de ensino e de aprendizagem e as relações entre ambos, em uma aula. A M.M.D. é um todo (totalidade mais abrangente) formado de etapas (totalidade menos abrangente), partes que se articulam entre si e com o todo: o Resgatando, o Problematizando, o Sistematizando e o Produzindo (ARNONI, 2008a, p. 11).

O primeiro momento, Resgatando/Registrando, consiste em, por meio da

utilização de diferentes linguagens, buscar um mesmo ponto de partida, ainda que

momentâneo e provisório, para o processo de ensino e de aprendizagem. As

atividades sugeridas pelo professor possibilitam aos alunos representarem suas

ideias iniciais sobre o conteúdo a ser trabalhado (plano do imediato – conhecimento

que os alunos têm sobre o assunto). De posse dessas informações, o professor

compara aquilo que os alunos sabem com aquilo que ele estudou sobre o assunto

(na totalidade, com seus nexos internos e externos – plano mediato), depreende daí

a tensão entre ambos e elabora a problematização.

O segundo momento, Problematizando, busca colocar os alunos frente a

uma situação desafiadora de ensino, no intuito de que eles percebam as

divergências entre seu saber imediato em oposição ao saber mediato trabalhado

pelo processo de ensino. A tensão que se tem aí os leva a perceber que seus

conhecimentos ainda não são suficientes para responder à questão com

propriedade, o que gera motivação para buscar novas investigações e relações.

O terceiro momento, Sistematizando, objetiva que os alunos compreendam

os nexos e as relações do conceito como totalidade. Nessa etapa da M.M.D.,

portanto, cabe ao professor propiciar aos alunos situações de ensino mediante as

quais eles compreendam as relações de sentido entre aspectos do seu

conhecimento imediato e elementos do conhecimento mediato pretendido. Esse

diálogo (entre o imediato e o mediato), promovido pelo professor, possibilita a

explicitação dos aspectos da problematização, a discussão do conhecimento

científico a eles relacionado, potencializando a superação do imediato no mediato e

a elaboração de sínteses.

Por fim, o Produzindo, consiste no desenvolvimento de atividades que o

professor oferece para os alunos expressarem as sínteses cognitivas elaboradas no

decorrer das etapas da M.M.D. (ideias re-elaboradas; conceitos). É o ponto de

chegada do processo de ensino, um conhecimento provisório que se torna

imediatamente novo ponto de partida, constituindo-se em etapa imprescindível para

avaliar o referido processo.

A M.M.D. apresenta-se como uma possibilidade de que a aula seja

efetivamente um espaço de interação e construção de conhecimento. Espaço em

que, via mediação pedagógica, por um lado, as representações do saber imediato

dos alunos podem alcançar os patamares do saber mediato, e por outro lado,

valoriza o papel do professor nesse processo.

5 Tecendo fios: da estratégia de ação à apresentação das atividades e seus

resultados

A proposta de intervenção pedagógica intitulada Preconceitos – ranços

sociais embebidos às páginas de Clara dos Anjos de Lima Barreto foi

desenvolvida em uma turma de alunos do 3º ano do Ensino Médio, do Colégio

Estadual Professor Darcy José Costa E.F.M., Asa Leste de Campo Mourão.

Antes da concepção do projeto, foi realizada uma pesquisa exploratória a fim

de traçar o perfil socioeconômico dos alunos e verificar quais eram seus principais

desejos e opiniões com relação ao trabalho com a literatura no ambiente escolar.

Não foi de estranhar que os alunos revelassem a preferência por textos mais curtos,

a opção de assistirem a filmes ou a lerem resumos, em vez da leitura de romances.

Exploramos os seguintes aspectos: bairro onde reside, idade, quem seria o

responsável por sua educação, qual o nível socioeconômico familiar, quantas

pessoas compõem sua família, se é leitor e quais textos faz parte de sua rotina e de

seus familiares, qual o grau de criticidade lançada sobre as leituras feitas, como

avalia os conhecimentos formais proporcionados pela escola, a que religião

pertence, qual contribuição pode dar à sociedade enquanto sujeito social, se a

família tem preocupação com a saúde, com o lazer e em dialogar sobre o orçamento

familiar, bem como os veículos de comunicação diária usados por esta família e

quais perspectivas dos pais com relação ao futuro dos filhos. Em sua maioria, são

jovens entre 16 e 17 anos, somente 1 com maioridade, os menores têm os pais

como seus responsáveis, são leitores de gibis, revistas, livros de auto-ajuda,

culinária, outdoors, catálogos de mercado, leituras televisivas, radiofônicas e

disponíveis na internet. Apenas 8 afirmam apreciar textos literários, de forma lida ou

assistida, e que eles fazem parte de suas vidas, assim como lançam

posicionamentos sobre eles. Os demais alunos e familiares lançam pouca ou

nenhuma criticidade sobre as leituras feitas. Todos se preocupam com a saúde,

embora, com relação ao lazer, apenas 12 julgam-no essencial. O diálogo acerca de

orçamentos e outros assuntos é feito apenas pela família de 10 pesquisados. O

futuro numa universidade foi a resposta de 9 pais e da aluna responsável por si,

deste total, 6 já ingressaram nas faculdades/universidade em 2012, já os que não

sonhavam com o ensino superior pretendiam terminar o ensino médio e arrumar um

bom emprego. Com base nestes relatos pudemos detectar que é muito difícil propor

a um grupo com tão pouca expectativa futura, um mundo de leitura literária, pois

despertar o gosto é muito mais que fornecer textos; é necessário alicerçar aos

poucos, de modo que com o tempo, venham por si só romper com as expectativas,

associar e quebrar paradigmas, tornarem-se sujeitos com papéis reais na sociedade

onde estão inseridos. Foi a partir desse panorama inicial que se deu a elaboração do

material didático, em formato de Caderno Pedagógico, composto por textos e

sugestões de atividades.

Já na preparação do material levamos em consideração a ideia de

ampliação dos horizontes de expectativas de Jauss, ou seja, partir daquilo que era

mais familiar aos alunos para chegar ao que pensávamos lhes ser mais complexo.

Apesar disso, não colocamos em prática o Método Recepcional (Bordini e Aguiar)

por compreendermos não ser possível a realização de todos os passos necessários

ao efeito de espiral que o método propõe. Pensamos na ampliação a partir do

oferecimento de textos mais curtos para chegarmos aos mais longos, mantendo a

unidade temática “Preconceito” (discriminação), mas por meio da Metodologia da

Mediação Dialética. Dessa forma, nossa opção foi começar pelo trabalho com a

fábula (Unidade 1), depois o conto (Unidade 2), para chegarmos à leitura do

romance (Unidade 3).

Convém destacar que para a leitura dos textos literários, nas três unidades,

levamos em consideração a proposta de Platão e Fiorin (1991, p. 37) ao defenderem

que a unidade de sentido pode ser alcançada a partir de atividades que conduzam o

aluno a perpassar os três níveis essenciais à leitura, a saber:

1º - O nível no plano superficial, onde afloram os significados mais concretos e diversificados. É nesse nível que se instalam no texto o narrador, os personagens, os cenários, o tempo e as ações concretas; 2º - Uma estrutura intermediária, onde se define basicamente os valores com que os diferentes sujeitos entram em acordo ou desacordo; 3º - Uma estrutura profunda, onde ocorrem os significados mais abstratos e mais simples. É nesse nível que se podem postular dois significados abstratos que se opõem entre si e garantem a unidade do texto inteiro.

Com essas indicações, os autores defendem ser possível ao professor levar

o aluno a perceber que para analisar, compreender e interpretar um texto, no caso

uma narrativa, mesmo em verso, é preciso levar em consideração a sua estrutura e

o seu discurso. Na análise estrutural, são enfocados o enredo (introdução, conflito,

clímax e desfecho), as personagens (principais e secundárias), o espaço (lugar onde

acontecem as ações, inseridas com características sociais, culturais, econômicas,

morais e psicológicas), o tempo (época em que ocorre a narrativa, podendo ser atual

ou antiga, seja marcado pelo tempo cronológico -noite, tarde, manhã, um dia,

naquele tempo - ou psicológico - tempo subjetivo, marcado pelas sensações ou

pensamento dos personagens). Já na análise discursiva, a atenção recai na

Decodificação (o que o texto diz = Plano superficial); na Associação (o que o texto

faz lembrar = estrutura intermediária) e na Análise e Interpretação (o que o texto diz;

como o texto diz o que diz = estrutura profunda).

5.1 Unidade 1: Fábula

A primeira unidade focou o trabalho com fábulas por serem textos que

cativam o ouvinte/leitor. Ao atribuir ações humanas a animais, a fábula enlaça de

maneira lúdica o sujeito, facilitando a compreensão textual e conduzindo-o a

apreciar a leitura. Além disso, por ter a intenção de transmitir ensinamentos sobre a

vida, uma “lição de moral” que vem, geralmente, ao final do texto, serve para chamar

a atenção para situações cotidianas vividas e que merecem ser repensadas/

revistas.

Os mais famosos fabulistas foram Esopo (Grécia, 600 a.C.) e La Fontaine

(França, século XVIII). No Brasil, temos ainda na memória Monteiro Lobato (século

XX), que reescreveu fábulas de ambos os escritores; e, na atualidade, Millôr

Fernandes, que usa seus textos para incentivar os homens a serem sujeitos de suas

ações. Desde Esopo, portanto, usa-se a personificação de animais para escrever

sobre pessoas e acontecimentos da época, de modo a dizer algumas verdades sem

usar nomes ou o cargo das pessoas envolvidas. Um meio eficiente de representar

os defeitos e as virtudes humanas, como por exemplo, utilizar o leão como

personagem para representar o poder absoluto do rei; o cordeiro para simbolizar a

mansidão, a pureza, a ingenuidade; a raposa, a astúcia; a formiga, o trabalho; entre

outros.

A fábula selecionada para o trabalho foi O lobo e o cordeiro de La Fontaine.

O primeiro nível de leitura (decodificação) foi percebido pelos 27 alunos da turma

que destacaram o jeito matreiro do lobo, que argumenta com autoridade, em

oposição à ingenuidade e aceitação passiva do cordeiro, que permite ao lobo

ostentar seu poder. Entretanto, a partir do segundo nível (Associação), os alunos

tiveram dificuldades relacionar pessoas aos animais, tampouco às ações praticadas,

ainda que estas parecessem estar bem explícitas. Só após buscarmos juntos um

entendimento, é que conseguimos nos revolver para a análise, evidenciando não

apenas que “A fábula é sempre uma história de homens, mesmo quando os

personagens são animais”, (PLATÃO, FIORIN, 2000, p. 398), mas principalmente

que

(...) se lermos a fábula como um estudo a respeito dos engodos que os homens praticam com a linguagem, esse tipo de narrativa ganha um novo significado e representa um dos mais belos esforços do homem no sentido de conhecer esse poderoso instrumento, que serve para enganar e oprimir, mas também para revelar verdades e libertar. (Id. Ib., p.399).

Com uma leitura um pouco mais apurada, conseguimos focar o olhar para o

panorama político, cultural, econômico, social e ideológico, característico do terceiro

nível (Análise e Interpretação). Nesse ponto, ficou mais evidente que a

“discriminação” pode ser sofrida por gerações mediante argumentos que a tornam

um processo natural e aceitável (lobos devoram carneiros). Aliás, ainda que a fábula

se estruture em 1 estrofe com 28 versos, sendo os dois primeiros a moral da história

e o motivo de sua atribuição por um narrador onisciente intruso, e que as

personagens estejam relativamente estáticas, é nos argumentos que o conflito se

desenvolve. É a argumentação que nos permite caracterizar nas personagens do

lobo e do cordeiro a representação de “exploradores” e “explorados” em nosso

contexto social.

As atividades propostas para a unidade contemplaram o trabalho em equipe,

focando a oposição de valores expressos no texto, o papel da adjetivação na

construção dos sentidos e a necessidade de comparar tais valores e adjetivação

com os aceitos na sociedade atual, na qual os princípios republicanos e

democráticos pressupõem que o Estado aja a fim de garantir o equilíbrio entre

“dominador” e “dominado”, uma vez que a igualdade de direitos se dá nos embates

sociais, através de lutas, de movimentos, de constatação e requerimentos de

direitos. Essa perspectiva pode ser notada, mais marcadamente, nas atividades do

Caderno Pedagógico (p. 15-17), como:

II- c) [em equipe] Contrapor com uma fábula em que o dominador aja de forma diferente. III- Em equipe, construa um quadro apontando valores que, na opinião de vocês, são aceitos pela sociedade, em oposição aos que são repudiados. V- (Indo além do texto. Atividade individual) a) Seria possível ao cordeiro convencer o lobo que não estava numa prática ilícita naquele local? Como isso se daria? b) Transportando o personagem “cordeiro” para a classe operária. Como convencer o “lobo” de que ambos podem viver no mesmo espaço usando sempre alternativas que beneficiem aos dois? c) La Fontaine, escritor do século XVII explicita que “A razão do mais forte é a que vence no final”, nós, leitores do mesmo texto no século XXI, embasados em nosso contexto podemos afirmar que esta visão ainda prevalece? Justifique.

A resolução das atividades e as discussões geradas a partir delas

evidenciaram a necessidade de observar o aspecto ideológico em cada texto, bem

como a possibilidade de aprofundar o estudo sobre a temática “preconceito”

/discriminação.

5.2 Unidade 2: Conto

Nossa segunda unidade centrou-se no conto, uma narrativa curta em forma

de prosa caracterizada pela concisão, precisão, densidade e unidade de efeito. Tal

brevidade não apenas o opõe à novela e ao romance, como também implica, em

sua estrutura, num reduzido número de personagens, na concentração do tempo e

do espaço, logo, na linearidade da ação (GANCHO, 1998).

O texto selecionado para o trabalho foi Negrinha de Monteiro Lobato.

Publicado originalmente em 1920 no livro homônimo, o conto retrata a população

brasileira das décadas iniciais do século XX e a mentalidade escravocrata que ainda

persistia muito depois da abolição. Ainda que o Brasil vivesse os efeitos da transição

da Monarquia para a República, do trabalho escravo para o trabalho livre, da

estrutura socioeconômica baseada no meio rural e dependente da mão de obra

escrava para um processo crescente de urbanização e de industrialização que

começa a se desenvolver, o preconceito racial contra aqueles que tinham a pele

negra ou parda, ex-escravos e seus descendentes, permanecia o mesmo.

No tocante à leitura do texto pelos alunos, constatamos que os níveis de

Decodificação e Associação foram realizados de maneira mais rápida em relação à

unidade anterior. Identificaram Dona Inácia como representante genuína da

aristocracia agrária, determinada pela ideologia escravagista e Negrinha, a órfã de

uma escrava da fazenda, vista como “personagem coisificada”, passivamente

marcada pelos pejorativos atribuídos por sua “dona” (Decodificação). A ex-senhora

de escravos não conseguiu abolir de si, os costumes culturais que lhes estavam

entranhados. Em sua visão eurocêntrica, negros e mulatos eram apenas “coisas”,

estavam em segundo plano, relegados à própria sorte. Por isso, manifestava seu

repúdio à nova sociedade que estava “brotando” e à ideia de negros serem iguais a

brancos. Negrinha, em contrapartida, representa a multidão de libertos no papel (os

economicamente desfavorecidos), tem como lugar disponível na sociedade “as

cozinhas dos antigos senhores” (subempregos) ou as margens sociais para se

alicerçarem. Sem vez ou voz, marcada pelas cicatrizes que contam sua história,

sofre passiva aos deleites da “senhora” (elite), o que marca o abismo econômico e

ideológico entre ambas (Associação).

As atividades propostas, de modo sintético, focaram sete aspectos, a saber:

I. a análise dos elementos da narrativa, tais como: (a) características

físicas e psicológicas das duas personagens centrais; (b) as duas faces de Dª Inácia;

(c) as marcas temporais; (d) o tempo psicológico na vida de Negrinha; (e) a

caracterização do cenário;

II. os tipos de discurso e os efeitos de sentido que provocaram no texto;

III. as figuras de linguagem;

IV. (Para além do texto) O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): a

necessidade da Lei; a importância do lúdico na infância;

V. (Produção escrita) Relacionar Negrinha com crianças da atualidade; as

políticas afirmativas; a exploração dos mais fracos e desprotegidos.

VI. Produção de um conto com a temática infância.

O desenrolar das atividades possibilitou tanto a análise dos níveis de leitura

quanto a materialização dos passos MMD, pois fez com que os alunos buscassem

refletir sobre os direitos adquiridos pela criança no decorrer dos anos. Assim, após a

leitura do conto foi possível registrar as ideias iniciais dos estudantes

(Resgatando/registrando) e questionar, graças a verossimilhança, a postura das

personagens (Problematização). Depois disso, as pesquisas realizadas sobre o

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei 8.069/90) e sobre as Leis

10.639/03(Ensino da História e da Cultura Afro-brasileira e Africana) e 1.390/51

(Afonso Arinos) contribuíram para se entender melhor a necessidade de organização

social para a garantia do cumprimento de direitos constitucionais (Sistematizando) e

foram cruciais para gerar o debate sobre os interesses sociais em cada época,

fortalecendo a necessidade se sempre situar o homem em seu tempo e espaço

(Produzindo). Embora apenas 21 dos alunos tenham participado dessa fase do

projeto, é necessário registrar que ocorreu uma evolução na turma, pois a princípio

estava apática, pouco participativa, havendo sempre a nomeação de quem falaria

pelo grupo. Houve participação geral, uns validando os direitos expostos no ECA,

outros se posicionando desfavoráveis a alguns pontos. Deram exemplos de crianças

e adolescentes que praticavam atos ilegais, mas mesmo assim eram defendidos

pela Lei e de outros em que a Lei não agia a favor deles.

A nova postura dos alunos também contribuiu de maneira mais efetiva para

a realização do último nível de leitura (Análise e interpretação), afinal o narrador em

3ª pessoa adentra a casa pela cozinha, onde a protagonista passa a maior parte da

vida, e começa a descrevê-la: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?

Não, fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.” Tal é sua

relevância que em momento algum do texto lhe é atribuído um nome, apenas

apelidos que denigrem sua imagem “Pestinha”, “diabo”, “coruja”, “barata

descascada”, “bruxa” ... Era o “objeto” para espantar os desagravos de Dª Inácia,

pois “O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes e vergões”, embora a

senhora, aos olhos alheios, fosse considerada bondosa por criar a pobre órfã,

nascida de mãe escrava.

A chegada das sobrinhas de Dª Inácia marca o despertar da consciência de

ser menina: “Era de êxtase os olhos de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem

sequer sabia o nome desse brinquedo”, “Boneca? - repetiu Negrinha. Chama-se

boneca?”. E, quando questionada acerca de seu nome, responde: “Negrinha”. Sem

muito que falar de si, pois até então só tinha sido silenciada (com beliscões, cocres,

surra, ovo quente na boca), mas agora estava ali, com a boneca no colo, num

enlevo espiritual “fora de si, literalmente”, “brincara ao sol”, “acalentara dias seguidos

a boneca loura...”. Parece que ao ver a boneca, Negrinha se veja sendo amada,

cuidada, querida. Com a partida das meninas, acabam-se os dias de criança e

Negrinha volta ao seu “doloroso inferno”. Antes, sua diversão era ver um relógio-

cuco em seu movimento habitual e naqueles poucos dias pode descobrir-se “gente”

e agora, na cozinha, em sua esteira, definha num delírio doloroso “o delírio rodeou-a

de bonecas, todas louras de olhos azuis. E de anjos...” E neste delírio, a

protagonista transcende da morte viva para a vida eterna, sem dona, sem dor e sem

saudades... À antagonista, no entanto, resta a saudade “ - Como era boa para um

cocre!...”

Além da evidente caracterização das personagens, da ambientação do

cenário e da marcação do tempo, a leitura do conto possibilitou aos alunos refletir

sobre a importância de se ter a experiência única com o texto, algo bem diferente se

tivessem lido apenas ao resumo do conto, por exemplo. Foi a partir da leitura que

perceberam o caráter humanizador de que trata Candido (1972), ao expressarem

sua revolta contra as maldades de Dª Inácia ou ao se apiedarem dos sofrimentos de

Negrinha.

5.3 Unidade 3: Romance

A terceira das unidades focou o romance, narrativa longa organizada com

vários conflitos que se dão em diferentes espaços e tempos, envolvendo diversos

personagens (tudo mais dilatado em comparação à novela e ao conto).

Para Gancho (1998), ainda que os primeiros romances tenham sua aparição

no século XVI (como Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes), este

estilo de narrativa ganha corpo a partir do romantismo, quando sociedade burguesa

do ocidente lança interesse sobre essa forma de literatura como forma de erudição.

O texto selecionado para esta seção, Clara dos Anjos de Lima Barreto, é

classificado pela crítica literária como pertencente ao Pré-modernismo, período em

que as obras já abordavam temas que denunciavam a existência de um Brasil

periférico (como o sertão nordestino, o interior paulista, o subúrbio carioca, por

exemplo), dando destaque a personagens anteriormente marginalizados (os

sertanejos, os caipiras, os mulatos e libertos, os funcionários públicos, ...) em

oposição ao Brasil oficial (organizado e em busca do progresso, o que “respeita

seus iguais”), que de certa forma é o exposto a outras nações.

A leitura propriamente dita de Clara dos Anjos havia sido solicitada desde a

apresentação do projeto aos alunos, tendo em vista as quase cem páginas de texto.

Assim, ao término da primeira unidade, apenas 3 estudantes informaram ter lido a

obra e, ao finalizar o tempo proposto, dos 27 alunos, somente 5 não haviam lido na

íntegra, embora efetivamente apenas 12 alunos tenham realizado as últimas

atividades (9 à 15).

As atividades com o romance iniciaram-se com uma discussão sobre o livro:

se havia algo parecido com outras leituras feitas por eles; se conseguiram identificar

os níveis de leitura e correlacionar fatos e personagens da obra com o contexto

atual.

No nível da Decodificação, Clara dos Anjos representa a típica mulata

brasileira da época: moça linda, pobre e ingênua que vê no amor a descoberta de

sua “triste condição social”; com pouca instrução e superprotegida pela família,

contenta-se com o mínimo que a vida oferece. Já Cassi Jones, “um rapaz de pouco

menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo;” de

família menos humilde do que a de Clara, fanfarrão, músico medíocre, oportunista e

fascinado por dinheiro, teve na bela Clara mais uma “vítima” de seu golpe de amor.

Quanto à Associação, a protagonista Clara é a imagem de muitas jovens

que são relegadas à triste sorte de serem “mães precoces” por acreditarem que o

primeiro amor é eterno e verdadeiro. E Cassi, a representação de rapazes que

vivem os momentos felizes, porém em tempo algum se sentem responsáveis por

eles, vindo a assumir seus atos perante a sociedade mediante o uso da “Lei”.

Para o antagonista Cassi, a família não representa aconchego, por isso não

pensa em formar uma; a relação com o pai é inexistente e com a mãe é apenas para

proteção diante de suas falcatruas, assim como muitas famílias se mantém por

aparência ou interesses em comum. O mesmo ocorre com a família de Clara ao

superprotegê-la, não dialogando ou impedindo-a de perceber as ciladas das quais

poderia ser vítima. Algo que ainda ocorre na atualidade, pois muitas vezes os filhos

aprendem com o mundo ou com suas próprias experiências.

É visível na personagem Clara a discriminação social, racial e de gênero,

pois sua gravidez não foi aceita pela mãe e irmãs de Cassi, uma vez que de negros

e/ou mulatos pobres só poderia nascer novos mulatos ou com características

marcantes a negros, logo tidos como seres inferiores e pouco capazes numa

sociedade capitalista e eurocêntrica; ainda hoje esta é a realidade, os valores

lançados às pessoas limitam à sua condição social (moradia, ocupação, renda

familiar,...) e também a sua origem racial, pois ao não branco precisam provar serem

capazes intelectualmente, profissionalmente.

Clara não só representa mulheres que são inferiorizadas a cada dia (pela cor

da pele, profissão, situação financeira,...), mas também a todos que só após

sofrerem “amargas experiências” se descobrem “ninguém”, mesmo tendo vida e há

anos fazendo parte da sociedade.

No tocante à Análise e Interpretação, a resolução das atividades propostas

no Caderno Pedagógico foi crucial para o resumo oral e coletivo da obra (Atividade

1), bem como na identificação, com comprovação no texto, dos elementos da

estrutura da narrativa (Atividade 2, em grupos) e na depreensão da crítica mordaz

que a obra traz e na necessidade de se conhecer aspectos da vida do autor.

(Atividade 3).

Há destaque, portanto, para o narrador observador, minucioso em suas

descrições do Rio de Janeiro no final do século XIX, o panorama político-econômico

e social da cidade, com os resquícios da escravatura, a chegada de imigrantes e o

advento da República. Conhecedor dos contrastes, ele adentra o subúrbio carioca

tomando por pano de fundo a história de amor mal sucedida entre Clara e Cassi

Jones, seja descrevendo detalhadamente cada um de seus personagens para

marcar traços físicos e perfil psicológico, seja caracterizando e lançando um juízo de

valor sobre o cenário: “... Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive

uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os

olhos, embora lhe cobre atrozes impostos empregados em obras inúteis e

suntuárias, noutros pontos do Rio de Janeiro”.

Além da utilização de linguagem coloquial, que rompe com o estilo

acadêmico da época, a preferência pela temática e por personagens até então

marginalizados reforçam o tom de denúncia contra o “preconceito social/racial”,

especialmente na síntese final, quando, em tom de desespero, Clara conclui: “-

[Mamãe! Mamãe!] Nós não somos nada nesta vida”.

E assim é para muitos brasileiros que dormem e acordam sem perspectiva

alguma de mudanças, vendo o detentor do poder se estabelecer; observando em

todas as áreas, o sexo feminino inferiorizado, detectando que o mestiço/mulato fica

à margem da sociedade. Por fim, a obra de Lima Barreto possibilita ao leitor atual

refletir sobre a condição social da mulher, do negro e dos menos favorecidos em

nosso País.

Na tentativa de ampliar essas discussões e atender aos passos da MMD

(Problematizando), as atividades de 4 a 8 (Atrelando Conhecimentos) focaram a

análise de trechos da obra, culminando com uma pesquisa sobre a adolescência. As

próximas 4 atividades (Tecendo Conhecimentos - Sistematizando) buscaram,

primeiramente, a partir de fragmentos da obra, (9) refletir sobre o papel dos pais na

criação dos filhos, a influência do trabalho nessa criação e o papel da instituição

escolar. Depois, (10) analisar as ideologias presentes em fragmentos descrevendo

as prendas domésticas de Engrácia, os anseios de Catarina e Irene, filhas de Dª

Salustiana, em comparação com um trecho do primeiro discurso proferido por

Marina Silva como candidata oficial à Presidência da República, em 10/06/2010.

Além do paralelo entre mulheres dos dois inícios de século (XX e XXI), comparou-se

também a postura de Clara e Cassi com os adolescentes da atualidade (11) e

questões sobre a gravidez na adolescência (12).

Por fim (Produzindo), houve a organização de painel abordando atitudes

para mudar a realidade da adolescência no Brasil (atividade 13): programas sociais

que retomem a infância como foco; programas educativos na TV que sejam de

acesso geral à população; investimento maior na educação; comprometimento

familiar; palestras a pais adolescentes; incentivo às atividades artesanais. Depois

disso, dentre 4 possibilidades de escrita de texto argumentativo, escolheram: “O

analfabetismo ideológico proporciona escravidão do ser humano” e “A política é o

caminho para a organização social” (Atividade 14, realizada por 12 alunos). E, por

último, leram os textos produzidos e organizaram o roteiro para o sarau (atividade

15), evento tradicional do colégio em que há apresentação de paródias, jograis,

poesia, teatro e danças, focando o papel da mulher no cenário brasileiro, a 4 turmas

da escola.

6 Considerações finais

A ideia inicial de nossa proposta visou refletir sobre como os alunos do

Ensino Médio se relacionam com o texto literário no intuito de, mais pontualmente,

incentivar a leitura do romance Clara dos Anjos de Lima Barreto, ancorados na

análise dos níveis de leitura (Platão e Fiorin) e nos passos da Metodologia da

Mediação Dialética (MMD).

Para isso, agimos em duas frentes: ao professor, foi necessário o

embasamento teórico (compreender a MMD; conceituar Leitura, Leitor e Literatura;

conhecer melhor as diretrizes para o ensino) para a preparação do Caderno

Pedagógico contendo 3 unidades de ensino (Fábula, Conto e Romance); ao aluno, a

participação ativa - primeiro, na pesquisa exploratória que definiu as unidades

produzidas e - na resolução das atividades, acionando os seus conhecimentos para

atualizar os textos que lia, preenchendo as lacunas que os textos têm.

Por meio da MMD e da análise dos níveis de leitura, os alunos foram

encorajados a expressar suas ideias, a trabalhar em grupo, a explorar a relação

entre textos para ampliar, gradativamente, o conhecimento e o horizonte de

expectativas.

Como em toda proposta, tivemos pontos positivos e negativos na execução.

Assim, em sua completude é possível afirmar todos os objetivos só foram atingidos

por no máximo 12 alunos, pois foram estes que validaram o projeto do início ao fim.

A maioria disse ter lido o romance, no entanto, atividades que desenrolariam a

leitura não aconteceram por parte de todos e de maneira linear, permitindo chegar a

tal conclusão. Não se pode negar que houve mudança da turma com relação à

leitura (16 deles disseram ter mudado seu estilo de leitura, ainda que com vistas ao

vestibular); a turma, que era apática inicialmente, melhorou a participação de 30 a

40%, em algumas aulas 100%. Isso minimizou a falta de compromisso com o tempo

determinado para a realização das atividades, a resistência em não autorizar a

divulgação de fotos, restringindo a mostra do projeto apenas à escola e comunidade

local, e não em rede.

O mais importante foi constatarmos que, apesar da descrença inicial, é

possível fazer diferença.

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