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A condessa, o marquês e "o primo de toda a gente" 4 Joana de Siqueira deAthayde é professora e cantora no Coro da Gulbenkian. A condessa de São Martinho herdou do avô a paixão pela música.

Press Review page - ULisboa | Universidade de Lisboa...A dada altura, o rei fartou-se e me-teu-lhe uma carruagem à porta, para ele passar a ir às assembleias. Mas ele conti-nuava

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A condessa,o marquêse "o primo detoda agente"

4 Joana deSiqueiradeAthaydeé professora ecantora noCoro daGulbenkian.A condessa deSão Martinhoherdou do avôa paixão pelamúsica.

Noblesse oblige.Mas no século XXI, emPortugal, obriga a quê?Estes são os retratosdos "novos nobres",que carregam nosnomes a história,o legado e a cultura,mas deixaram para trásmuitas tradições.

PATRÍCIA TADEIA (Texto)ORLANDO ALMEIDA (Fotografias)

'i^fl^k meu avô era um grande cantor deB^B ópera e excelente pintor. DiziamI los meus tios que a voz dele seI I comparava à dos maiores baríto-I I nos verdianos. Mas, naquela altu-I I ra, não podia ser cantor de profis-B^B são. Era o 5.° conde de São Marti-

nho e tinha nascido para cantar.Conta-se que era muito teatral. Disfarçava--se e entrava pela casa dos amigos a cantar.Era excêntrico, um artista de alma", recordaJoana antes de se sentar ao piano do avô

que agora tem em casa, no Monte Estoril.A condessa de São Martinho herdou de

D. Ascenso Inácio de Siqueira Freire o títuloe a paixão pela música. Joana de Siqueira deAthayde é professora e cantora lírica noCoro da Fundação Calouste Gulbenkian.Quando olha para o passado, confessa: "Te-nho pena de nunca ter conhecido o meuavô. Teria sido uma ligação especial. Ele fi-

caria satisfeito de saber que pude exercercomo profissão o que ele nunca conseguiu."

Mas o legado ficou, e foi o tio [também]Ascenso - maestro no Teatro São Carlos- quem acabou por dar um empurrão a umdestino que já estaria traçado. "O meu tiolevou-me a uma ópera no São Carlos. Seiexatamente onde estava sentada. Fiqueimaravilhada, colada à cadeira. A ópera cha-mava-se AForça do Destino e, naquele mo-mento, eu percebi o meu. O palco, os basti-dores, os cheiros... tudo me fascinava."

Começou a ter aulas de piano, fez o Conser-vatório, frequentou a Escola Superior de Can-to em Madrid, mas também se licenciou emGestão eAdministração Pública. "Os meuspais ficaram perplexos quando perceberamque era uma vocação. Ainda resistiram até

aceitarem", recorda Joana, que ao título de

condessa de São Martinho junta outro: o seunono avô era o conde de Azambuja, um títuloatribuído pelo rei D. José no século XVTfI.

"O meu pai dizia que ter um título impli-cava a noção de dever e serviço e não só di-reitos e privilégios. No caso dele, que era di-plomata, servir o país com excelência erauma forma de honrar os antepassados. Eleachava que a vocação da nobreza era estarnos vários setores da sociedade. Considero

que a arte é um serviço que se presta, à bele-za e à estética", acrescenta enquanto o gatoFaialvai pedindo festas. "É importante sa-ber-se de onde se vem, mas isso deve servirde suporte para se saber para onde se vai."

Mas como é que sociedade olha, hoje,para a nobreza? "Uns verão com curiosida-de, outros com confusão (confundirãocom o chamado jet sei), outros com fascí-nio, outros com indiferença, porque nãose interessam ou porque não perceberam averdadeira essência", conclui.

Essência que, quando falamos do mar-quês de Abrantes, passa por uma enormepaixão pelo desenho. É no centro de Lis-boa, entre pincéis, aguarelas e lápis de cor,que nos fala de uma paixão que já dura hámais de 50 anos. "Há relatos de eu ter umfascínio por BD com 2 anos. O meu pai jágostava muito e eu tinha acesso a livros erevistas. Havia uma certa graça de ver umfilho pequenino gostar tanto de desenhar.Claro que, mais tarde, quando se começa apensar numa realização profissional, jánão acharam assim tanta graça", conta Joséde Lencastre e Távora, conhecido no meiocomo José Abrantes. Aos 57 anos, contamais de 30 livros publicados e desenhosem vários jornais, entre os quais o DN. "Co-mecei a publicar e a ser pago com 15 ou 16anos. Eram coisas horríveis, até tenho ver-gonha de olhar para aquilo. Mas para aépoca não era mal pago. Recebia 500 escu-dos por desenho. Chegou para comprar aroupa para uma rentrée. E chegava paracomprar outros livros de BD além dos tra-dicionais do meu pai. Às vezes autores quenão eram bem-vindos lá em casa."

Mas a paixão pelo desenho é bem maisantiga. O título data de 1718, quando D. JoãoVo atribuiu a D. Rodrigo Anes de Sá Almeidae Meneses: "Há um quadro do D. Rodrigoque se atribui ao pintor Vieira Lusitano. Diz--se que seria seu mecenas." Quanto a patri-mónio, recorda a Casa de Abrantes, atualEmbaixada de França, ou o Palácio das Gal-veias. "Foi tudo vendido. Chegou a ser a fa-mília mais rica do país. Mas o meu avô eramuito generoso, dava tudo aos amigos."

José tem dois filhos. O Frederico tem 16

anos e é "ótimo a Ciências". Já a Leonor tem19 e quer ser atriz. Com dois projetos emmãos no momento da nossa conversa, dei-xamos José acompanhado dos seus dese-nhos. Há timingspam cumprir. Nunca pen-sou ter outra profissão. Nem médico nemengenheiro. "O fascínio pelo desenho foitão grande, que só queria desenhar." E é as-sim que passa os dias no ateliê. Já poucoslhe chamam Marquês. "Só de vez em quan-do, quando lêem estes artigos. É simpáticoe lisonjeiro, mas não encorajo", conclui.

Passam incólumes, sem se dar por eles.São os nobres de hoje. "É um grupo peque-no, como sempre foi, que tem obrigaçõessem direitos, inerentes ao estatuto históri-co que herdou. Ser nobre ou fidalgo não seescolhe. Acontece a pessoas concretas.Aceitar o estatuto e os deveres que acarretaé uma opção individual. Desonrá-lo ou ig-norá-lo também é. Acrescentá-lo na conti-nuidade com méritos pessoais é legitimara herança. As novas gerações têm demons-trado inesperadas recuperações no senti-do de honrar o estatuto herdado. Nemtudo está perdido", defende António deSousa Lara, catedrático do ISCSP e presi-dente da Academia de Letras e Artes.

Há um sentimento de legado que é res-peitado. Assim o faz Diogo de Noronha,bisneto de D. Pedro da Cunha, 4.° marquêsde Olhão. O bisavô, obstetra que fundou aCasa de Santo António, trouxe-o à vida."Foi ele que me fez nascer. Lembro-medele, tinha uma maneira de estar um pou-co austera. Mas o maior legado dele foi terdeixado uma casa de apoio a mães soltei-ras", conta o chefde cozinha, enquanto nosrecebe no restaurante Pesca, que abriu em2017 perto do Príncipe Real.

"Não vejo o título como responsabilida-de. Não me lembro disso no meu dia-a-dia.Sempre foi uma realidade vivida com mui-ta naturalidade. Nunca nos achámos supe-riores, sempre me incutiram isso. E o meubisavô nunca viveu encostado a um título.Fundou uma casa que ainda está de pé e

que tem familiares envolvidos", recorda.Das memórias de infância constam os

natais no Palácio emXabregas: "Todo o pa-trimónio histórico, os azulejos do séculoX11... O meu bisavô era um bon vivant. Te-nho ótimas memórias gastronómicas decasa da minha avó materna, comia-semuito bem todos os dias", recorda o chefde38 anos que até se licenciou em Comunica-ção Social mas cedo percebeu que o seucaminho era outro.

"Aos 17 anos fiz uma mudança radical.Tornei-me vegan. Na altura não era umadieta muito conhecida. Andava de skate, ia

a concertos punk, seguia movimentosmais alternativos. Erareacionário, adoles-cente... Comecei a praticar ioga e medita-ção. E tive de começar a cozinhar paramim. Já gostava de cozinhar, mas nadacom este foco. Ou que tivesse de dependerde mim para me poder alimentar", atira.

Seguiram-se viagens para a índia e o Ne-pal, o curso no Natural Gourmet Institutefor Health and Culinary Arts, em Nova lor-que, e a passagem por restaurantes como oPuré Food and Wine, o Per Se*** de ThomasKeller, ou o Moo* em Barcelona. "A decisão

que tomei aos 17 anos acabou por ser a es-pinha dorsal do que sou hoje como cozi-nheiro. Do que é o caminho do Pesca. O ca-minho da sustentabilidade é exatamenteisso, um caminho. Mas é o caminho queme faz sentido, a minha verdade", conclui.» continuação da página anterior

Para Maria João Bahia, o caminho quesempre fez sentido foi o da joalharia. Filhado escultor João Charters de Almeida, her-dou da família o gosto pela arte. "Lembro--me de ir, desde pequenina, para o ateliêdo meu pai quando ele trabalhava em bar-ro. Já o meu avô era maestro e compositor.Escreveu vários fados de Coimbra, tinhauma orquestra que recebeu imensos pré-mios", começa por contar a filha do 4.° con-de da Bahia. O título remonta a 1833, quan-do D. Miguel I o atribuiu a D. Manuel daPiedade Coutinho Pereira de Seabra.

A nobreza sempre pesou na família, ad-mite, mas de "uma forma inconsciente"."Não se falava disso, mas existiam regras,princípios e responsabilidades que, deuma forma subtil, nos eram incutidas. Nãoadianta nada ter quatro ou cinco títulos se

não se fizer nada na vida. Se não se forcompetente, responsável. Sempre foi umacarga acrescida. Eu senti essa responsabili-dade", confessa a empresária que desde ce-do começou a criar jóias. "Aos 17 anos faziaimensos colares que vendia nas lojas. Eramemlatão, com missangas, conchas..." re-corda ao DN na sua loja à porta fechada naAvenida da Liberdade.

Depois da faculdade, percebeu que que-ria era praticar. "O que gosto é de estar naoficina a trabalhar, a fazer o trabalho comas mãos. Ter a bata vestida. É a primeiracoisa que faço quando chego aqui."

Maria João, que é casada com o 13.° con-de de Sabugosa, ganhou visibilidade quan-do foi convidada para fazer os primeirosGlobos de Ouro. Desenhou jóias, peças decristal, carteiras, terços para a seleção na-cional e inclusive um relicário para o Papa

Bento XVI, quando da sua passagem porLisboa, e um resplendor para o Papa Fran-cisco. Mais recentemente fez uma jóia deouro para Jane Fonda.

"A educação da nobreza foi mudandoconsoante a sua época e as exigências quelhe eram apresentadas. Atualmente a aris-tocracia não tem deveres feudais, nemmesmo papel político. O ofício da nobrezaé o seu testemunho histórico e cultural.A única regra que tem nesta época é a mes-ma que sempre teve, manter a humildade erespeitar as origens, seja em que ocasiãofor", acrescenta o historiador Francisco Te-les da Gama, que tem centrado a sua inves-tigação principalmente na cavalaria me-dieval portuguesa e no seu testemunhopoético no cancioneiro nacional.

Um respeito pelas origens que se traduzem histórias contadas geração após gera-

ção. Em 1841 nascia Cipriano Jardim. O tí-tulo de visconde de Monte São herdou-odo pai, Manuel dos Santos Pereira Jardim.O professor catedrático e escritor ficou co-nhecido como o inventor do primeiro ba-lão dirigível. "A minha avó contava-me tan-tas histórias do meu bisavô. Inclusive deele andar a desafiar o Camilo Castelo Bran-co para duelos [risos] ", começa por contarJoão Jardim Aranha, presidente da Federa-ção Portuguesa de Surf (FPS) . E continua:"Ele era ministro do rei, mas não punha láos pés. A dada altura, o rei fartou-se e me-teu-lhe uma carruagem à porta, para ele

passar a ir às assembleias. Mas ele conti-nuava a não ir. Então o rei lá o encostou à

parede e ele justificou-se dizendo que nãoestava bem de finanças e, como não conse-guia dar uma gorjeta ao cocheiro, não ia."

T Há ainda quem o trate pormarquês de Abrantes. José édesenhador há mais de 40 anos.

? A paixão pela joalharia é antiga.Maria João Bahia já fez peçaspara o Papa Bento XVI e para o

Papa Francisco.

? Bisneto do4.° marquêsdeOlhão, ochefDiogodeNoronha abriuo restaurantePesca em 2017O bisavô eraobstetra efundou a Casade SantoAntónio, queapoia mãessolteiras.

'A minha mãe fala-mesempre de o meu tio

ser conde. Se umamigo meu vai lá acasa, ela conta ashistórias todas."

As histórias sempre foram contadas pelaavó Aurora, "escritora, poetisa e jornalistano JN". Era também ela que mantinha viva amemória da bisavó Ann Marie Marck, a se-

gunda mulher de Cipriano Jardim. E porisso lá por casa aprender francês era quaseobrigatório. Tal como era usar o anel de bra-são de Nuno Álvares Pereira que os homensda família recebiam quando faziam 18 anos.

"Ser nobre não faz as pessoas melhoresou piores. Quando a minha avó me deu oanel de brasão dizia que os pergaminhosnão se comem, ou seja, queria que eu mefizesse à vida e trabalhasse", explica no es-critório com vista para o mar em Carcave-los. E assim foi, depois do curso de Gestãode Empresas e mestrado em Engenhariado Ambiente no ISCTE fundou, com umamigo, a primeira empresa de reciclagemem 1993. 0 surftmha surgido cedo, aos 1 1

anos, na Costa de Caparica. Hoje, quarentaanos depois, é uma profissão. Pelo meio,João esteve em missões humanitárias naGuiné, no Ruanda e no Sri Lanka, traba-lhou em produção musical e esteve nacriação do Outjazz. Está na FPS desde2013, tendo assumido o cargo a tempo in-teiro três anos depois. Agora leva a seleçãonacional a brilhar lá fora, como quandoPortugal foi campeão europeu e vice-cam-peão do mundo três vezes consecutivas.

Com os olhos na taça de campeão esteve

sempre António Félix da Costa. O pilotoportuguês de 27 anos, que venceu recente-mente a primeira etapa do Mundial de Fór-mula E na Arábia Saudita, é também sobri-nho do 5.° conde de Mafra. O título foi cria-do por D. Maria II de Portugal, em 1836, emfavor de D. Lourenço José Xavier de Lima.Hoje é Francisco de Mello Breyner quem o

"carrega", ao mesmo tempo que "carrega"um grande orgulho pelo sobrinho. "O meutio é o meu maior fã, liga-me sempre antes

e depois de todas as corridas", confessa o

jovem piloto cuja vida mudou quando, aos6 anos, se sentou num kart.

"Tive sempre o apoio da minha família.A minha mãe também fazia provas a cavaloquando era nova, os meus tios [Pedro, Ma-nuel e Tomaz Mello Breyner] fizeram as 24Horas de Le Mans íem 19971 . Os meus ir-mãos também competem. Há uma grandecultura de corridas na família", diz. Masserá que o facto de descender da nobrezainfluenciou a educação? "Fui educado por

uma família com bons valores. A minhamãe fala- me sempre de o meu tio ser con-de. Se um amigo meu vai lá a casa, ela con-ta as histórias todas. E arranja uma formade eu ser primo de toda gente [ risos] ."

A competir atualmente pela BMW naFórmula E, circuito mundial de carros elé-tricos, António já esteve à porta da Fórmula1 . Esteve na equipa júnior e foi piloto de tes-tes e reserva da Infiniti Red Buli Racing. Masquando chegou a hora de se tornar pilotoprincipal, em2013, apolítica falou maisalto e o seu lugar foi para um piloto russo.

Hoje, brilha na Fórmula E, mas quandoestá fora da pista confessa que já não é umacelera. "Já passei essa fase. Quando tiramosa carta achamos que somos os melhores pi-lotos do mundo. Ando em carros de corridatodas as semanas. Sempre que me sentonum, há a pressão de 50 engenheiros e deuma marca para andar o mais depressa pos-sível. Por isso, quando chego à estrada, o

que mais quero é conduzir tranquilo, à mi-nha velocidade, a ouvir a minha música."

Quando vem a Portugal, onde passacada vez menos tempo, a paragem noGuincho é obrigatória. Sempre que hátempo, pratica surfe boxe. E confessa serum sortudo: "Faço o que gosto. Nunca meimaginei a ter de ir para um escritório das09.00 às 17.00. Seria muito infeliz", conclui.