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CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL SUMÁRIO • 1. Introdução – 2. Princípio do Desenvolvimento Sustentável: 2.1. Antropocentrismo ou ecocentrismo?; 2.2. O desenvolvimento sustentável na Constituição de 1988 – 3. Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como di- reito fundamental da pessoa humana – 4. Princípios da prevenção e da precaução: 4.1. Quadro comparativo; 5. Princípio do poluidor-pagador – 6. Princípio do usuário-pagador – 7. Princípio da obrigatoriedade de atuação (intervenção) estatal/ princípio da natureza pública da proteção ambiental – 8. Princípio da participação comunitária (popular)/princípio de- mocrático – 9. Princípio da informação – 10. Princípio da educação ambiental – 11. Princípio da função socioambiental da propriedade – 12. Princípio da cooperação entre os povos – 13. Princípio do controle do poluidor pelo Poder Público/ princípio do limite – 14. Princípio da vedação do retrocesso ecológico/Efeito cliquet ambiental – 15. Princípio do protetor- -recebedor 16. Quadro sinótico – 17. Jurisprudência – 18. Questões de concursos públicos. 1. INTRODUÇÃO O direito ambiental, ciência dotada de autonomia científica, apesar de apresentar caráter interdisciplinar, obedece a princípios específicos, pois, de outra forma, dificilmente se obteria a proteção eficaz pretendida sobre o meio ambiente. Nesse sentido, seus princípios caracte- rizadores têm como escopo fundamental orientar o desenvolvimento e a aplicação de polí- ticas públicas que servem como instrumento fundamental de proteção ao meio ambiente e, consequentemente, à vida humana. Sobre a importância dos princípios, doutrina Celso Antônio Bandeira de Mello: 1 Princípio, já averbamos alhures, é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Os princípios, cuja função sistematizadora do ordenamento jurídico é evidente, exercem primazia formal e material sobre as regras jurídicas, impondo padrões e limites à ordem jurídica vigente. Importante destacar ainda sua função normogenética na medida em que atuam na elaboração das regras jurídicas. De acordo com o Supremo Tribunal Federal, [...] a superação de antagonismos existentes entre princípios e valores constitucionais há de resultar da utilização de critérios que permitam ao Poder Público (e, portanto, aos magistrados e Tribunais), ponderar e avaliar, hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, consi- 1. MELLO, 1993, p. 408-409. Manuais p Conc-Thome-Manual de Dir Ambiental-10ed.indb 55 Manuais p Conc-Thome-Manual de Dir Ambiental-10ed.indb 55 04/02/2020 12:18:17 04/02/2020 12:18:17

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CAPÍTULO 2

PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL

SUMÁRIO • 1. Introdução – 2. Princípio do Desenvolvimento Sustentável: 2.1. Antropocentrismo ou ecocentrismo?; 2.2. O desenvolvimento sustentável na Constituição de 1988 – 3. Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como di-reito fundamental da pessoa humana – 4. Princípios da prevenção e da precaução: 4.1. Quadro comparativo; 5. Princípio do poluidor-pagador – 6. Princípio do usuário-pagador – 7. Princípio da obrigatoriedade de atuação (intervenção) estatal/princípio da natureza pública da proteção ambiental – 8. Princípio da participação comunitária (popular)/princípio de-mocrático – 9. Princípio da informação – 10. Princípio da educação ambiental – 11. Princípio da função socioambiental da propriedade – 12. Princípio da cooperação entre os povos – 13. Princípio do controle do poluidor pelo Poder Público/princípio do limite – 14. Princípio da vedação do retrocesso ecológico/Efeito cliquet ambiental – 15. Princípio do protetor--recebedor 16. Quadro sinótico – 17. Jurisprudência – 18. Questões de concursos públicos.

1. INTRODUÇÃO

O direito ambiental, ciência dotada de autonomia científica, apesar de apresentar caráter interdisciplinar, obedece a princípios específicos, pois, de outra forma, dificilmente se obteria a proteção eficaz pretendida sobre o meio ambiente. Nesse sentido, seus princípios caracte-rizadores têm como escopo fundamental orientar o desenvolvimento e a aplicação de polí-ticas públicas que servem como instrumento fundamental de proteção ao meio ambiente e, consequentemente, à vida humana.

Sobre a importância dos princípios, doutrina Celso Antônio Bandeira de Mello:1

Princípio, já averbamos alhures, é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Os princípios, cuja função sistematizadora do ordenamento jurídico é evidente, exercem primazia formal e material sobre as regras jurídicas, impondo padrões e limites à ordem jurídica vigente. Importante destacar ainda sua função normogenética na medida em que atuam na elaboração das regras jurídicas. De acordo com o Supremo Tribunal Federal,

[...] a superação de antagonismos existentes entre princípios e valores constitucionais há de resultar da utilização de critérios que permitam ao Poder Público (e, portanto, aos magistrados e Tribunais), ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, consi-

1. MELLO, 1993, p. 408-409.

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derada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, (...) a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, dentre os quais avulta, por sua significativa importância, o direito à preservação do meio ambiente. (ADI 3540 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, 1º.9.2005).

De uma maneira geral, não há consenso na doutrina sobre os princípios de direito ambiental. Neste trabalho, com o escopo de apresentar uma visão geral dos princípios tratados pela doutrina e pela jurisprudência, optamos por apontá-los de forma abrangente.2

2. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Considerado o “prima principium” do Direito Ambiental,3 o desenvolvimento sustentável tem como pilar a harmonização das seguintes vertentes:

• Crescimento econômico;

• Preservação ambiental; e

• Equidade social.

Importa frisar que o desenvolvimento somente pode ser considerado sustentável quando as três vertentes acima relacionadas sejam efetivamente respeitadas de forma simultânea. Ausente qualquer um desses elementos, não tratar-se-á de desenvolvimento sustentável.

A ideia de desenvolvimento socioeconômico em harmonia com a preservação ambiental emergiu da Conferência de Estocolmo, em 1972, marco histórico na discussão dos problemas ambientais. Designado à época como “abordagem do ecodesenvolvimento” e posteriormente renomeado “desenvolvimento sustentável”, o conceito vem sendo continuamente aprimorado.4

Desenvolvimento sustentável, segundo a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (World Commission on Environment and Development) significa “um desenvolvimento que faz face às necessidades das gerações presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras na satisfação de suas próprias necessidades”. As gera-ções presentes devem buscar o seu bem-estar através do crescimento econômico e social, mas sem comprometer os recursos naturais fundamentais para a qualidade de vida das gerações subsequentes.

Os dois mais sérios problemas do modelo de desenvolvimento atual são: a pobreza e os crescentes impactos ambientais. Um dos maiores estudiosos sobre o desenvolvimento sustentável, Ignacy Sachs, afirma que a saída do “duplo nó” (pobreza e destruição do meio ambiente) exige um período relativamente longo de crescimento econômico nos países do

2. Algumas normas de Direito Ambiental, tradicionalmente tratadas como princípios pela doutrina pátria, talvez sejam mais bem classificadas como regras. Podemos citar, a título exemplificativo, o denominado "princípio da educação ambiental”. Trata-se de regra prevista no inciso VI do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição de 1988 e não, efetivamente, de um princípio. Entretanto, consideramos mais adequado desenvolver tal debate em outra oportunidade.

3. SAMPAIO, 2003, p. 474. A expressão ecodesenvolvimento continua a ser bastante usada em diversos países europeus, latino-americanos

e asiáticos. O presidente do Equador proclamou os anos 90 como a "Década do Ecodesenvolvimento”.

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hemisfério sul e no leste europeu. Os mais importantes documentos produzidos sobre meio ambiente têm enfatizado a necessidade de mais crescimento econômico, mas com formas, conteúdos e usos sociais completamente modificados, com uma orientação no sentido das necessidades das pessoas, da distribuição equitativa de renda e de técnicas de produção adequadas à preservação dos recursos.

Maurice Strong, secretário geral da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, alertava:

Perdemos a inocência. Hoje sabemos que nossa civilização e até mesmo a vida em nosso planeta estarão condenadas, a menos que nos voltemos para o único caminho viável, tanto para os ricos quanto para os pobres. Para isso, é preciso que o norte diminua seu consumo de recursos e o sul escape da pobreza. O desenvolvimento e o meio ambiente estão indis-soluvelmente vinculados e devem ser tratados mediante a mudança do conteúdo, das moda-lidades e das utilizações do crescimento. Três critérios fundamentais devem ser obedecidos simultaneamente: equidade social, prudência ecológica e eficiência econômica.5

De acordo com o princípio quatro da Declaração da Rio 92, “para se alcançar o desen-volvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente em relação a ele”.

Já o princípio cinco da Declaração da Rio 92 dispõe claramente sobre a vertente social do desenvolvimento sustentável ao afirmar que “todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável, devem cooperar na tarefa essencial de erradicar a pobreza, de forma a reduzir as disparidades nos padrões de vida e melhor atender às necessidades da maioria da população do mundo.”

Vários países já adotaram, no âmbito de sua legislação nacional, o princípio do desen-volvimento sustentável. A título de exemplo, a Charte de l’environnement francesa de 2004, modelo de Carta Ambiental contemporânea, determina que as políticas públicas promovam o desenvolvimento sustentável conciliando a proteção do meio ambiente, o desenvolvimento econômico e o progresso social:

Article 6 – Les politiques publiques doivent promouvoir un développement durable. A cet effet, elles concilient la protection et la mise en valeur de l’environnement, le développement économique et le progrès social.

2.1. Antropocentrismo ou ecocentrismo?

Na relação homem-natureza existem dois principais dilemas éticos: o antropocentrismo e o ecocentrismo.

A visão antropocêntrica6 tradicional caracteriza-se claramente pela preocupação única e exclusiva com o bem-estar do ser humano. Antropocêntrico é um adjetivo que pode ser definido como aquele “que considera o homem como centro ou a medida do universo, sendo--lhe por isso destinadas todas as coisas”.7 Para o antropocentrismo, a natureza é um bem

5. STRONG apud SACHS, 1993, p. 7.6. Do grego anthropos (o homem). Do latim centrum (o centro).7. FERREIRA, 1994, p. 48.

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coletivo essencial que deve ser preservado como garantia de sobrevivência e bem-estar do homem. Impõe-se, por conseguinte, o equilíbrio entre as atividades humanas e os processos ecológicos fundamentais.8 O mundo natural tem valor apenas enquanto atende aos interesses da espécie humana.9 Explica Milaré que “antropocentrismo é uma concepção genérica que, em síntese, faz do Homem o centro do Universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores (verdade, bem, destino último, norma última e definitiva etc), de modo que ao redor desse “centro” gravitem todos os demais seres por força de um determinismo fatal.”10

Já a corrente ecocêntrica (ou biocêntrica) considera o ser humano como mais um inte-grante do ecossistema, do todo, onde a fauna, a flora e a biodiversidade são merecedores de especial proteção e devem ter direitos semelhantes aos dos seres humanos.

A diversidade de concepções sobre a sustentabilidade pode ser resumida através de três distintas configurações/correntes trazidas por Renn:11

a) Antropocêntrica utilitarista: considera a natureza como principal fonte de recurso para atender as necessidades do ser humano;

b) Antropocêntrica protecionista: tem a natureza como um bem coletivo essencial que deve ser preservado como garantia de sobrevivência e bem-estar do homem. Impõe-se, por conseguinte, equilíbrio entre as atividades humanas e os processos ecológicos essenciais;

c) Ecocêntrica: entende que a natureza pertence a todos os seres vivos, e não apenas ao homem, exigindo uma conduta de extrema cautela em relação à proteção dos recursos naturais, com clara orientação holística.

A Carta Magna de 1988 e a grande maioria das normas ambientais nacionais e inter-nacionais são inequivocamente direcionadas pela visão antropocêntrica do meio ambiente, mais especificamente pelo antropocentrismo protecionista.12 Cabe lembrar que o Direito só recentemente, nas últimas décadas, passou a abordar concepções ambientais. O paradigma observado, sobretudo a partir da Revolução Industrial, era notadamente o antropocêntrico utilitarista, quando os recursos naturais eram explorados intensamente para satisfazer as necessidades industriais/econômicas do homem, sem qualquer tipo de preocupação com sua preservação. Todavia, a partir de 1950, tragédias ambientais e descobertas científicas foram importantes estopins para a mudança de concepção em relação ao meio ambiente. O cres-cimento econômico passava a ser condicionado pela preservação ambiental e pela equidade social. O homem continuava sendo o centro das atenções e preocupações, mas agora o intuito era alcançar maior equilíbrio na utilização dos recursos naturais. O novo paradigma passa a ser então aquele observado até os dias atuais: antropocentrismo protecionista.

As normas ambientais, tanto as nacionais quanto as internacionais, são claramente antropo-cêntricas, no sentido de proteger o meio ambiente em função dos interesses do ser humano. A título de exemplo podemos citar a Carta do Rio que, em seu princípio 1, dispõe que “os seres

8. SAMPAIO, 2003.9. MILARÉ, 2009, p. 116.10. 2009, p. 100.11. In: SAMPAIO, 2003, p. 50.12. Nesse sentido: MORATO LEITE, 2007, p. 140.

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humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável” e, no princípio 4, determina que “a proteção do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente”.

A Constituição de 1988, ao dispor no caput do artigo 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, adota a concepção antropocêntrica protecionista na medida em que o meio ambiente saudável só pode ser preservado quando o ser humano utiliza os recursos naturais de maneira racional, preservando-os, tanto para as presentes quanto para as futuras gerações. A Carta Magna prevê a exploração da propriedade privada, a utilização dos recursos naturais, a obtenção de lucro, mas desde que seja respeitada a função social da propriedade, a preservação dos recursos naturais e da legislação trabalhista.

Por fim, observa-se que a corrente ecocêntrica ainda é de difícil aplicação nos dias atuais em decorrência de sua posição extremada e da inegável necessidade humana de utilizar (racionalmente) os recursos naturais. Entretanto, é interessante ressaltar a tendência de ampliação da proteção dos recursos ambientais nas normas nacionais e internacionais. Para alguns doutrinadores já é possível, inclusive, identificar traços biocêntricos e ecocên-tricos em normas de proteção ambiental vigentes. Para Antônio Herman Benjamin13 “a Constituição, exatamente por inserir-se em época de superação de paradigmas, apóia-se, de uma só vez, em padrões antropocêntricos, biocêntricos e até ecocêntricos (...). O (miti-gado) antropocentrismo constitucional de 1988, que convive com expressões de inequívoco biocentrismo e ecocentrismo, traz o símbolo da equidade ou solidariedade intergeracional, ligada, de modo umbilical, ao que Konder Comparato apelida de ‘civilização comunitária’ (...). O hibridismo constitucional, mais do que acidental, até poderia ter sido intencional. Pretendeu o legislador fazer uma ponte entre o ‘buraco negro’ constitucional anterior e um modelo futuro, hoje só aventado, onde a natureza assumisse, por inteiro, seu merecido papel central no ordenamento jurídico?”

Duas Constituições contemporâneas se destacam por apresentarem proposta biocêntrica: a do Equador de 2008 e a da Bolívia de 2009. Ambas foram influenciadas pelo denominado “constitucionalismo andino”, que resgata valores e tradições dos povos ancestrais, especial-mente no que tange à relação do ser humano com o seu entorno. Seus Preâmbulos celebram a Pachamama,14 divindade relacionada à terra e à fertilidade, e seus artigos a reconhecem como um novo sujeito de direito.

A Constituição do Equador incentiva uma nova forma de convivência cidadã, em “armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir”. A ideia de bem-viver distancia-se substancial-mente da ideia de viver bem e da concepção antropocêntrica de desenvolvimento econômico. A filosofia do buen vivir origina-se das palavras indígenas Sumak Kawsay, do dialeto Quichua, e significa vida em plenitude, em harmonia e equilíbrio com a natureza e em comunidade, e por isso é também conhecida como buen convivir, ou bem-conviver.

Entretanto, “para muitos autores, é cedo falar ainda de um novo ciclo constitucional. Os dois textos discutidos [do Equador e da Bolívia] seriam marcados por uma ambivalência no

13. BENJAMIN, 2007, p. 110.14. Para saber mais sobre a Pachamama, indicamos a leitura de: a) OLIVEIRA; TOLENTINO, 2015 ; b) THOMÉ; MENDES, 2019.

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tratamento dispensado à natureza, pois tanto a trata como sujeito de direitos quanto como objeto de apropriação e exploração”, observa Sampaio.15

A Constituição do Brasil de 1988 adota, por sua vez, o antropocentrismo protecionista, ou para alguns doutrinadores, o antropocentrismo alargado, não se restringindo o ambiente a mera concepção econômica ou de subalternalidade direta a interesses humanos. Há a proteção de uma certa autonomia do ambiente no texto constitucional, mas longe daquela defendida pela corrente ecocêntrica.16

2.2. O desenvolvimento sustentável na Constituição de 1988

A necessidade do equilíbrio entre “crescimento econômico”, “preservação ambiental” e “equidade social” está expressa na Constituição Federal de 1988. Inicialmente pode-se destacar seu artigo 170, que enumera os fundamentos e princípios da ordem econômica:

Art. 170 da CRFB/1988: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Relevante destacar a defesa do meio ambiente (inciso VI) como princípio da ordem econômica, clara indicação constitucional da necessidade de harmonização entre atividade econômica e preservação ambiental.

Já o princípio da propriedade privada, disposto no inciso II, do artigo 170, é um valor constitu-tivo da sociedade brasileira, fundada no modo capitalista de produção17 e corolário da livre iniciativa, representando claramente o incentivo ao crescimento econômico consagrado constitucionalmente.

Todavia, para evitar abusos na utilização da propriedade em prejuízo da coletividade, a Constituição da República prevê mecanismos como a aplicação do princípio da função social da propriedade (art. 170, III), que representa o incentivo constitucional à preservação ambiental

15 SAMPAIO, 2016, p. 94.16. Nesse sentido: MORATO LEITE, 2007, p. 141.17. DERANI, 2008, p. 238.

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(como a proteção de áreas com vegetação nativa) e ao respeito às questões sociais (como a observância da legislação trabalhista), em consonância com o artigo 186 da Constituição de 1988, que estabelece os requisitos para que uma propriedade rural cumpra sua função social.

Assim, resta inequívoco o princípio do desenvolvimento sustentável a partir de análise conjunta dos incisos II e III, do artigo 170, da Constituição: de um lado, o incentivo ao cres-cimento econômico representado pelo princípio da propriedade privada; de outro, a proteção ambiental e a equidade social representadas pelo princípio da função social da propriedade.

Por fim, estabelece o inciso VII do artigo 170, como princípio da ordem econômica, a redução das desigualdades regionais e sociais. Ora, como alcançar a meta constitucional de eliminação da pobreza e redução das desigualdades sociais sem crescimento econômico? Seria praticamente impossível. Constata-se que é imperioso o desenvolvimento econômico das nações atrelado à melhor distribuição de renda para a erradicação dos problemas sociais. Mais uma vez estamos nos refe-rindo a pilares do desenvolvimento sustentável presentes no artigo 170, da Constituição de 1988: crescimento econômico e equidade social (obviamente conciliados com a preservação ambiental).

Além do artigo 170, também o caput do artigo 225 da Constituição da República prevê o princípio do desenvolvimento sustentável.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

A Constituição estabelece ao Poder Público e à coletividade o dever de preservação dos recursos naturais em benefício não apenas das gerações presentes mas, inclusive, das gerações futuras, o que para alguns autores configura o princípio da equidade intergeracional18 ou solidariedade intergeracional. O professor Paulo Affonso Leme Machado19, ao comentar o tema, afirma que “até o advento do conceito de desenvolvimento sustentável, o planejamento econômico, mesmo quando observava uma vertente ambiental, circunscrevia-se a planejar o cronograma – curto, médio e longo prazos – com olhos na geração presente, isto é, na geração que imediatamente iria fruir o desenvolvimento planejado. Para que as gerações futuras possam encontrar recursos ambientais utilizáveis, que não tenham sido esgotados, corrompidos ou poluídos pelas gerações presentes, novos mecanismos de controle ambiental foram concebidos e estão sendo introduzidos nas legislações.” Decorre daí a ideia de solidariedade intergera-cional, princípio relevante do Direito Ambiental contemporâneo, que pressupõe a ampliação do conceito de “proteção da vida” como base para a garantia de novos direitos. Nesse contexto, a norma constitucional não está a proteger apenas a vida atual, nem somente a vida humana, mas sim os direitos das presentes e vindouras gerações e todas as espécies vivas no planeta.

Dessa forma, a Constituição de 1988, que prevê o modo de produção capitalista e incentiva o crescimento econômico, também determina seja observada, simultaneamente, a função social da propriedade e a preservação dos recursos naturais, para que haja condições dignas de vida também para as próximas gerações. Neste mesmo sentido decisão do Supremo Tribunal Federal:

18. Vide SAMPAIO, 2003, p.53.19. MACHADO, 1995, p. 74.

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A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CRFB/1988, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CRFB/1988, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.

– O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminente-mente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigên-cias da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.” (ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03/02/06)

É preciso impor limites à utilização dos bens naturais pelas gerações presentes, pois não restam dúvidas de que a liberdade de ação de cada geração deve ser condicionada pelas necessidades das gerações futuras.20

3. PRINCÍPIO DO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA

O meio ambiente equilibrado foi reconhecido como direito humano pela Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de 1972, segundo a qual “o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade, e ao desfrute de adequadas condições de vida em um meio cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras”. A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 reafirmou a jusfun-damentalidade desse direito,21 ou a sua qualidade de direito humano que se irradia para os sistemas nacionais como um dever proteção jusfundamental.22

Na Constituição de 1988, o direito ao meio ambiente equilibrado está expresso no artigo 225, cujo caput prevê que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A sua fundamentalidade, embora ainda discutível em outros lugares, não padece de dúvidas no Brasil. O fato de não compor o título próprio dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, englobante dos artigos 5o ao 17, não lhe retira substância nem formalidade, uma vez que o catá-logo sob aquele título não é exauriente das situações objetivas e subjetivas relacionadas a posições

20. Vide Carta da Terra, princípio 4.21. Princípio I: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm

direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.”22. A Carta da Terra, resultado do evento conhecido como "Fórum Rio +5”, realizado no Rio de Janeiro com o

objetivo de avaliar o resultado da Política Ambiental nos cincos anos seguintes à ECO 92, também destaca a fundamentalidade do meio ambiente equilibrado em seu Princípio 4, que dispõe: “ Estabelecer justiça e defender sem discriminação o direito de todas as pessoas à vida, à liberdade e à segurança dentro de um ambiente adequado à saúde humana e ao bem-estar espiritual”.

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do Direito Ambiental no Século XXI. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 144). (STF. Recurso Extraordinário 627.189/SP. Relator: Dias Toffoli. Diário da Justiça, Brasília, 08 junho 2016).

Diante de tais constatações, é possível delinear uma nítida diferença entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução. O princípio da prevenção é aplicado quando são conhecidos os males provocados ao meio ambiente decorrentes da atividade potencialmente predadora ou poluidora, possuindo elementos seguros para afirmar se a atividade é efetiva-mente perigosa (atividades sabidamente perigosas). Como exemplo, temos as atividades de mineração, seara na qual os impactos sobre o meio ambiente são notórios. Por outro lado, quando não se conhece o impacto de atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental, deve se aplicar o princípio da precaução, ou seja, como não se tem certeza quanto aos possíveis efeitos negativos, por precaução, impõem-se restrições ou impede-se a intervenção no meio ambiente até que se comprove que a atividade não acarreta efeitos adversos ao meio ambiente. Podemos citar como exemplo as discussões sobre os impactos, ainda desconhecidos, dos alimentos transgênicos (OGM-Organismos Geneticamente Modificados) e da radiofre-quência das antenas de telefonia celular ao meio ambiente e à saúde humana.53-54

Segundo o TRF da 1ª Região,[...] a tutela constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CRFB/1988, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa ativi-dade possa ser danosa, ela deve ser evitada) e a consequente precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação), exigindo-se, assim, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade (CRFB/1988, art. 225, § 1º, IV).55

4.1. Quadro comparativo

PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

De acordo com o princípio da prevenção, é preciso tomar as medidas necessárias para evitar o dano ambiental porque as consequências de se iniciar determinado ato, prosseguir com ele ou suprimi-lo são conhecidas de plano. O nexo causal é cientificamente comprovado.

De acordo com o princípio da precaução, é preciso tomar as medidas necessárias para se evitar o dano ambiental por não se conhecer as consequências ou reflexos que deter-minado ato, ou empreendimento, ou aplicação científica causarão ao meio ambiente no espaço e/ou no tempo. Há incerteza científica não dirimida quanto ao impacto ambiental de determinada atividade.

53. Com relação à aplicação do princípio da precaução é interessante citar a decisão da OMC no caso da “carne com hormônios"; e a decisão do “Conseil d'État français" relativo à comercialização do milho geneticamente modificado. (CHAZOURNES, Boisson de. 1999. p. 65).

54. Embora pesquisas realizadas desde a década de 40 viessem demonstrando que a exposição humana à frequência de ondas de rádio não causavam danos à saúde, alguns dados eram pouco claros, outros, ainda controversos. Havia registros epidemiológicos de alguns efeitos biológicos – inclusive cancerígenos – produzidos pela exposição do homem a emissões de radiofrequência mesmo em baixo nível. A dúvida fez com que Itália e Suíça tomassem o cuidado de restringir a instalação de estações de base de celulares, por emitirem ondas de radiofrequência acima de um determinado patamar. O padrão exigido, por cautela, ficara muito abaixo dos índices internacionalmente admitidos, sobretudo no caso suíço, em áreas residenciais e hospitalares. (SAMPAIO, 2003, p. 68).

55. TRF 1ª Região, AI 200301000096950, Rel. Des. Federal Souza Prudente, DJ 1/2/2005.

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16. QUADRO SINÓTICO

CAPÍTULO 2 – PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL

Desenvolvimento sustentável

Trata-se do desenvolvimento que faz face às necessidades das gerações presentes sem com-prometer a capacidade das gerações futuras na satisfação de suas próprias necessidades. Tem como pilar a harmonização do crescimento econômico, da preservação ambiental e da equidade social. Na constituição de 1988 aparece de maneira clara no artigo 170, VI; e no artigo 225, caput. Está relacionado ao princípio da solidariedade intergeracional.

Princípio do ambiente

ecologicamente equilibrado

como direito fundamental da pessoa humana

A defesa do meio ambiente equilibrado está intimamente ligada ao direito fundamental à vida e à proteção da dignidade da vida humana, garantindo condições adequadas de qualidade de vida, protegendo a todos contra os abusos ambientais de qualquer natureza. Para alguns doutrinadores está diretamente ligado ao princípio do mínimo existencial ecológico.

PrevençãoO objetivo final do princípio da prevenção é evitar que o dano possa chegar a produzir-se. Para tanto, necessário se faz adotar medidas preventivas. O princípio da prevenção se apoia na certeza científica do impacto ambiental de determinada atividade.

Precaução

O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. A ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para postergar a adoção de medidas efetivas de modo a evitar a degradação ambiental. Vale dizer, a incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não são perigosas e/ou poluentes.

O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem su-postamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva.(*)

A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental (Súmula 618 do STJ).

Poluidor-pagador

O poluidor deve suportar as despesas de prevenção, reparação e repressão dos danos am-bientais. Assim, além do dever de reparar o dano ambiental causado, a orientação do princípio poluidor-pagador é pela internalização das externalidades ambientais negativas das atividades potencialmente poluidoras, buscando evitar a socialização dos prejuízos decorrentes da po-luição ambiental.

Usuário-pagador

Este princípio estabelece que o usuário de recursos naturais deve pagar por sua utilização. Assim, os recursos naturais devem estar sujeitos à aplicação de instrumentos econômicos para que o seu uso e aproveitamento se processem em benefício da coletividade. Não se trata de uma punição, mas sim de cobrança pela utilização de recursos naturais, muitas vezes escassos, como a água.

Obrigatoriedade de atuação

(intervenção) estatal

Cabe ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput, CRFB/1988). Decorre da natureza indisponível do direito ao meio ambiente saudável.

Princípio democrático

É dever também da coletividade defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput, CRFB/1988). A iniciativa popular nos procedimentos legislativos, as discussões por meio de audiência pública, a ação popular ambiental e a ação civil pública são exemplos de instrumentos relevantes de participação popular na proteção do meio ambiente.

Informação

Todos devem ter acesso às informações relacionadas ao meio ambiente, direito difuso e de interesse de toda a coletividade. O direito à participação pressupõe o direito de infor-mação. Há uma interdependência lógica entre eles: só haverá participação popular caso haja acesso às informações ambientais. Decorre de previsão expressa na Constituição de 1988: art. 5, XXXIII.

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CAPÍTULO 2 – PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL

Educação ambiental

Está positivado no art. 225, § 1º, inc. VI, da CRFB/1988, segundo o qual incumbe ao Poder Pú-blico “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.” É fundamental à efetiva participação dos cidadãos no controle do Estado e da iniciativa privada com vistas à preservação do meio ambiente.

Função socioambiental da

propriedade

O direito de propriedade está condicionado à sua função social, de sorte que, não cumprida a função social ambiental, o proprietário se vê impedido do livre exercício de sua propriedade (art. 5º, XXII e XXIII; art. 170, II e III; art. 186, todos da Constituição de 1988). Impõe ao proprietário comportamentos positivos (de fazer) e negativos (de não fazer).

Cooperação entre os povos

Fenômenos poluidores geralmente ultrapassam a fronteira de uma nação, atingindo outro território. Deve haver ampla cooperação entre as nações no sentido de possibilitar a rápida e eficaz proteção dos recursos ambientais como, por exemplo, através do repasse dos conheci-mentos de tecnologia obtidos pelos países mais avançados e que têm possibilidade econômica de investir e obter resultados nas pesquisas ambientais.

Princípio do limite

É incumbência do Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (art. 225, § 1º , V, CRFB/1988). No Brasil, o princípio encontra respaldo ainda em vários pontos da lei ordinária (v.g., art. 5º, § 6º, da Lei 7.347/85).

Vedação do retrocesso

ecológico (ou efeito cliquet

ambiental)

As garantias de proteção ambiental, uma vez conquistadas, não podem retroagir. É inadmissível o recuo da salvaguarda ambiental para níveis de proteção inferiores aos já consagrados, a não ser que as circunstâncias de fato sejam significativamente alteradas.

Protetor-recebedor

Tem como objetivo compensar condutas ambientalmente relevantes. Aquele que protege o meio ambiente é premiado com benefícios econômicos, como o recebimento de valores em espécie, proporcionais aos serviços ambientais prestados à sociedade.

(*) Jurisprudência em teses. STJ, março de 2015, n. 30.

17. JURISPRUDÊNCIA

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E CAMPO ELETROMAGNÉTICO

No atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da expo-sição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), conforme estabelece a Lei 11.934/2009. Essa a tese que, por maioria, o Plenário fixou para efeito de repercussão geral ao dar provimento, por maioria, a recurso extraordinário para julgar improcedentes pedidos formulados em ações civis públicas. Essas ações debate-ram o direito fundamental à distribuição de energia elétrica, ao mercado consumidor, de um lado, e o direito à saúde daqueles que residem em locais próximos às linhas pelas quais se efetua a transmissão, de outro. Na espécie, acórdão de tribunal de justiça estadual impusera obrigação de fazer a concessionária de serviço público no sentido de observar padrão internacional de segurança e, em consequência, reduzir campo ele-tromagnético em suas linhas de transmissão de energia elétrica. A decisão recorrida fundamentara-se no princípio da precaução e no direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida. O Plenário reafirmou que a proteção do meio ambiente e da saúde pública com desen-volvimento sustentável seria obrigação constitucional comum a todos os entes da Federação. Para tanto, a Constituição confere ao Poder Público todos os meios necessários à consecução de tais fins, incumbindo-o, inclusive, da competência para definir, em todas as unidades da Federação, os espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos. Salientou que essa obrigação não seria apenas do Poder Público, mas também daqueles que exercem atividade econômica e que prestam serviços públicos, como é o caso das companhias de distribuição de energia elétrica. Destacou que essas empresas, por executarem ser-

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AMBIENTAL. 1. Lei municipal é a via própria para alteração do regime de ocupação do solo. 2. Juízo político que, salvo manifesta irrazoabilidade, não deve ser revisto pelo Poder Judiciário. 3. Agravo regi-mental conhecido, mas desprovido.

O princípio da precaução pode ser satisfeito com o controle concreto dos licenciamentos ambientais (...) a existência de dois estudos técnicos conflitantes (...) justificaria a solução mais favorável ao meio ambiente, em decorrência do princípio da precaução (...) a ausência de certeza científica não exige que a defesa ambiental assuma a forma de um espaço territorial especialmente protegido, insuprimível até mesmo por lei. Os riscos potenciais apontados em tese podem ser mitigados ou até mesmo eliminados por meio de medidas concretas a serem exigidas no licenciamento de cada empreendimento (...) a defesa do meio ambiente é um dos princípios da ordem econômica, mas não é o único (...) o mero risco potencial de danos ambientais, em regra, não serve, por si só, para impedir completamente o desempenho de atividades eco-nômicas (...). Por relevante que seja, a defesa do meio ambiente é apenas um dos vetores constitucionais, que precisa ser conciliado com muitos outros. Dentre estes outros valores igualmente destacáveis, situa-se o desenvolvimento nacional, elevado à categoria de princípio fundamental da ordem constitucional brasileira. (...) Disto resulta que o constituinte admitiu a hipótese de que certas atividades econômicas, ainda quando lesivas ao meio ambiente, deveriam ser exploradas. (...) Desta forma, ainda que a autonomia municipal não seja irrestrita e que o Ministério Público possa provocar o controle de constitucionalidade das leis perante o Poder Judiciário, conclui-se que, no caso em questão, não há motivos suficientes para invalidar, em tese, o resultado da deliberação legislativa, sem prejuízo da fiscalização ambiental a ser exercida concretamente quando da ocupação da área. (STF. RE 519778 AgR/RN. Rel.: Min. Roberto Barroso. Julgamento: 24.06.2014).

18. QUESTÕES DE CONCURSOS PÚBLICOS

Seção 1 – Questões Magistratura Federal e Estadual

1.01. (Magistratura Federal – TRF 4ª Região – 2006 – CESPE) “O princípio do poluidor-pagador, ampla-mente reconhecido no direito ambiental, está, única e exclusivamente, direcionado para a reparação do dano ambiental.”

1.02. (Magistratura Estadual PA 2007 – FGV) “A orientação do princípio poluidor-pagador é pela inter-nalização das externalidades ambientais negativas das atividades potencialmente poluidoras, buscando evitar a socialização dos ônus e a privatização dos bônus."

1.03. (Magistratura Estadual PA 2009- FGV) A Constituição Federal de 1988 assevera que “Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (...)”. A esse respeito, é correto inferir que a concep-ção constitucional sobre meio ambiente é:(A) holística.(B) panteísta.(C) pragmática.(D) antropocêntrica.(E) criacionista.

1.04. (Magistratura Estadual SC 2007) “A função socioambiental da propriedade não constitui um sim-ples limite ao exercício do direito de propriedade, por meio da qual se permite ao proprietário, no exer-cício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente; ela vai além disso, pois autoriza até mesmo que se imponham ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente conforme-se à preservação do meio ambiente.”

1.05. (Magistratura Estadual SC 2007) “A função socioambiental da propriedade impõe ao proprietário que, no exercício do seu direito, apenas se abstenha de praticar atos lesivos aos interesses coletivos, pau-tando a exploração econômica da propriedade rural pelo princípio da precaução.”

1.06. (Magistratura Federal - TRF 2ª Região – 2011 – CESPE) “O direito ambiental e o direito econômico são áreas do direito que se inter-relacionam, estando ambas voltadas para a melhoria do bem-estar das pessoas e para a estabilidade do processo produtivo.”

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Cap. 2 • PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL 109

GABARITO

Questão Resposta Comentários

SEÇÃO 1 – QUESTÕES MAGISTRATURA FEDERAL E ESTADUAL

1.01 F O poluidor deve também suportar as despesas necessárias à prevenção e à repressão dos danos ambientais.

1.02 V

Comentário da questão pela FGV: “A orientação do princípio poluidor-pagador é pela inter-nalização das externalidades ambientais negativas das atividades potencialmente poluidoras, buscando evitar a socialização dos ônus e a privatização dos bônus". Ao promover a inter-nalização das externalidades ambientais negativas, o princípio do poluidor-pagador objetiva imputar ao poluidor – ou potencial poluidor – o custo social da poluição por ele gerada – ou que possa ser por ele gerada. Sempre que os custos sociais externos (de prevenção, reparação e/ou repressão) que acompanham os processos produtivos (externalidades negativas) não são arcados pelos agentes econômicos ("privatização de lucros”), eles são suportados pela coletividade ("socialização de perdas”).”

1.03 D

A teoria holística é aquela que vê o mundo como um todo integrado, como um organismo. O panteísmo é uma crença que identifica o universo (grego: pan) com Deus (theos). Já o pragmatismo constitui uma escola da filosofia caracterizada pela descrença no fatalismo e pela certeza de que só a ação humana, baseada na inteligência, pode alterar os limites da condição humana. A teoria criacionista é fundada na crença religiosa de que a humanidade, a vida, a Terra e o universo são criação de um agente sobrenatural. Estabelecem contraste com as teorias científicas, como a da evolução. Como vimos no item 2.1 do presente Capítulo, a CRFB/1988 está calcada na teoria antropocêntrica protecionista.

1.04 V Como analisado no presente Capítulo.

1.05 F A função socioambiental da propriedade pressupõe obrigações positivas (de fazer) e negativas (de não fazer) ao proprietário.

1.06 VA proteção do meio ambiente e a economia, assim como o Direito Ambiental e o Direito Econômico, estão diretamente relacionados. Os valores intrínsecos ao princípio do desen-volvimento sustentável demonstram claramente tal relação.

1.07 FComo analisado no item 2.1, a Carta Magna de 1988 e a grande maioria das normas ambien-tais nacionais e internacionais são inequivocamente direcionadas pela visão antropocêntrica do meio ambiente.

1.08 E Como analisado no presente Capítulo.

1.09 C Nos termos do artigo 225, § 3º da CRFB/1988.

1.10 D Como analisado no presente Capítulo.

1.11 D

A primeira alternativa é verdadeira. O Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA (artigo 225, § 1º, IV, da CRFB/1988), instrumento que tem como objetivo principal subsidiar o procedimento de licenciamento ambiental de atividades consideradas efetiva ou potencialmente causado-ras de significativa degradação do meio ambiente, está calcado no princípio da prevenção.A alternativa dois, por sua vez, é falsa. Nos termos do artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, "é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente claramente determina a aplicação da responsabilidade objetiva como forma de potencializar a tutela do meio ambiente.

1.12 E Nos termos do artigo 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002.

1.13 A

O princípio do usuário-pagador estabelece que o usuário de recursos naturais deve pagar por sua utilização. Tal princípio está expresso na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) no artigo. 4º, VII, que impõe ao usuário "contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos."

1.14 C Como analisado no presente Capítulo.

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