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    Lucia Hussak van Velthem

    MPEG/SCUP Ministrio da Cincia, ecnologia e Inovao

    Serpentes de Arum.Fabricao e estticaentre os Wayana (Wajana1)na Amaznia Oriental

    RESUMO

    A categoria artesanal da cestaria constitui uma esfera do saber masculino, dotada de dimenses criativas e estticas entre osWayana, povo de lngua carib na Amaznia Oriental. O artigo enfoca dois artefatos tranados, conectados a um complexosistema representativo e conceitual, o tipiti e o cesto cargueiro pintado esto no centro da anlise. Nestes artefatos podeser percebido um duplo sentido: o de recriao, pois so fabricados, mas de acordo com os parmetros estabelecidos nostempos primordiais, e o de transposio e, portanto, so marcados com as pinturas corporais/estruturas epiteliais dasserpentes sobrenaturais das quais transmitem a essncia.

    Palavras-chave: Amaznia, Wayana (Wajana), cultura material, cestaria, esttica, cosmologia.

    ABSRAC

    Te basketry category represents a sphere of men knowledge, endowed with creative and aesthetic dimensions betweenthe Wayana, a Carib-speaking Amerindian of the Eastern Amazon. Tis paper focuses on two twisted artifacts twisted,connected to a representative and complex conceptual system: the tipiti and the painted carrying basket. Tese artifactscan be perceived in a double sense: that of recreation because they are manufactured, but according to the parameters setin primordial times; and that of transposition, because they are marked with body paint / epithelial structures of super-natural snakes of which these artifacts convey the essence.

    Keywords:Amaznia, Wayana (Wajana), material culture, basketry aesthetics, cosmology.

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    Introduo: a fabricao e os fabricados

    A paisagem amaznica composta de rio, floresta e devaneio percebida como dupla

    realidade: imediata e mediata, segundo o poeta paraense Paes Loureiro (2013, p. 140). A ime-diata tem funo material, lgica, objetiva, enquanto a mediata tem funo mgica, encantatria,esttica. Nesse contexto, os mltiplos usos e funes, as relaes que so desencadeadas, os sig-nificados representacionais, as intenes estticas constituem questes que permitem desvelaraspectos da paisagem de artefatos corriqueiramente encontrada nas aldeias indgenas na Ama-znia. Entretanto, como assinalou o poeta, igualmente relevante conhecer o material, a forma,a produo de um artefato, uma vez que se trata, tambm, de um elemento concreto, derivadode processos tcnicos de fabricao (GELL, 1992). Observa-se, assim, que um artefato criado

    por mos indgenas resulta de uma fabricao, a qual responde a uma inteno, a uma vontadede produzir efeitos de ordem tcnica e simblica.

    A fabricao constitui uma atividade repleta de significados para os povos indgenas amaz-nicos1, porquanto as habilidades tcnicas demandam uma questo de conhecimento que associadiferentes formas de aquisio e produo que conjugam a viso, o gesto e muitos outros fatores(GOW, 1999). A noo de fabricao no se resume aos elementos de cultura material, pois,para os Wayana, a gerao de descendentes constitui tambm um ato tecnolgico, uma vez querepresentam corpos que foram fabricados.

    Os Wayana (Wajana) pertencem famlia lingustica carib. Em diferentes publicaes sotambm referidos como Aiana, Ojana, Waiano e, nos relatos histricos, foram identificados,at meados do sculo XX, como Rocoyen, Rucuiana, Urukuyana. Segundo a tradio oral, ab-sorveram indivduos originrios de outros grupos indgenas de fala carib, como os Kukui, osOpagwana, os Upului, os Pupuriyana, os Arakapai, os Aparai, contra os quais fizeram incursesguerreiras no passado. Esses povos, assim como os Wayana, ocupavam diferentes bacias hidro-grficas que banham uma extensa regio compreendida pelo Brasil e por pases limtrofes daregio do Planalto da Guiana. Atualmente, no Brasil, as aldeias wayana esto estabelecidas no

    extremo norte do estado do Par, s margens do rio Paru de Leste. A rea habitada e exploradaest inserida na erra Indgena Parque umucumaque e na erra Indgena Rio Paru dEste2.

    1Este aspecto foi abordado por Guss (1989); Overing (1991); Velthem (1998, 2001, 2003) para os povos de lnguacarib, enfatizando a importncia da sua articulao com o cotidiano.2Arranjos matrimoniais, operados desde o sculo XIX, acarretam a lenta fuso dos Wayana com os Aparai, outropovo de lngua carib que compartilha o mesmo territrio.

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    Figura 1 O rio Paru de Leste e a aldeia Kurupohpano (Iori Linke, 2013).

    Para os homens e mulheres casados, a fabricao de filhos e de coisas constitui um impera-

    tivo, ao qual os Wayana no se furtam. Essas atividades esto intimamente conectadas noode que constituem fabricaes atuais, mas que obedecem a modelos criados pelos demiurgosnos tempos primordiais, quando os primeiros elementos a serem fabricados foram mulheres,modeladas a partir das matrias-primas disponveis: cera, argila e arum 3. Sucessivamente ex-perimentadas pelos seres demirgicos, essas matrias revelam um sentido de escalonamentona elaborao/aprendizado tcnico, tanto primordial como atual. Verifica-se, ento, que o usodesses insumos delimita domnios que opem a infncia vida adulta e os homens s mulheres,uma vez que as crianas modelam brinquedos de cera, as mulheres confeccionam vasilhas deargila e os homens empregam o arum nos trabalhos de cestaria.

    Nas fabricaes dos Wayana adultos, as matrias corporais, como sangue e smen, produ-zem filhos, e os materiais naturais, como folhas, pelos, penas, canios, cips, argila e madeiras,resultam em diferentes artefatos. Os filhos so produzidos em pequena escala4e seus corpos socaracterizados por possurem o mesmo sentido de humanidade dos seus criadores; os objetos,entretanto, so feitos em grande nmero e reproduzem corpos no necessariamente humanos,que podem ser parcelados ou integrais.

    A grande maioria dos artefatos produzidos constitui corpos que so parcelados, pois para

    a viabilidade da vida cotidiana esse desmembramento se impe. Assim, para que um tipiti noreviva sob a forma de voraz serpente, no so reproduzidas a cabea e a cauda dele. Por outro3O arum (Ischnosiphon,sp) uma planta silvestre, encontrada em terrenos midos da terra firme.4 Segundo o ltimo censo, realizado em 2012 pela Secretaria de Sade Indgena do Ministrio da Sade, osWayana e os Aparai somam, no Brasil, cerca de 900 pessoas.

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    lado, a concretizao integral de um corpo logra a revivescncia do ser reproduzido. Portanto,em uma mscara, a materializao dos elementos constitutivos do sobrenatural que ela encarnapossibilita a irrupo deste ser na aldeia, o que s desejvel durante os rituais de iniciao.

    O saber fazer: intenes e gestos

    No pensamento dos Wayana, os elementos materiais fabricados esto em conexo com oprodutor, com o indivduo que os materializou. Nas aldeias do rio Paru de Leste, a confecode artefatos constitui uma atividade cotidiana e pblica. Assim, a inteno do arteso quasesempre evidente, cabendo-lhe, contudo, definir a identidade de sua obra. Como as partes do

    corpo humano que no podem ser descritas sem pronome possessivo, as coisas, feitas por essemesmo corpo, enquadram-se nessa perspectiva. O vocbulo tipar, meus feitos, circunscrevea totalidade do que produzido por intermdio do trabalho manual individual, masculino oufeminino, segundo princpios que so eminentemente culturais.

    Os Wayana produzem no apenas canoas, cestos e vasilhas, adornos corporais, mscaras eoutros artefatos, mas tambm melodia vocal e instrumental, aldeias e casas, roados, beijus demandioca, bebidas fermentadas, frutas comestveis e os demais vegetais cultivados. ambmconstituem fabricaes os peixes que foram pescados, os animais que foram capturados e os

    inimigos que foram trucidados. As criaes e habilidades tcnicas de uma pessoa so considera-das fundamentais para a sua insero social, e seus efeitos contribuem para a harmonia da vidafamiliar e comunitria.

    O aprendizado tcnico, iniciado na infncia, amplia-se e aprofunda-se com a puberdade por-que visa ao casamento e gerao de filhos, mas na velhice essa prtica resulta em refinamentoe especializao. O conhecimento que permite produzir artefatos e tambm muitas outras coisasa partir dos insumos locais referido como tuwareh, saber/conhecer. Um cesteiro habilidoso um wama tuwaron, e um bom caador um thamo waron, pois sabe fazer carne comestvel. O

    saber humano representa o resultado de uma transmisso social, sexualmente diferenciada, cujabase pedaggica a visualizao de um modelo e o contnuo exerccio de reproduo.

    O sentido da viso fornece a chavepara a compreenso das concepes relacionadas aossaberes, porque representa o principal meio, ainda que no o nico, de aquisio de conheci-mentos, um aspecto compartilhado com outros povos amaznicos (GOW 1988, 1999; OVERING, 2006). Esse sentido deve ser compreendido no apenas como aquilo que captado pelosolhos, por intermdio dos quais se percebe a realidade, mas tambm como o saber ver, isto ,a compreenso das prescries sociais para a correta manufatura dos artefatos e a seu adequado

    emprego e acondicionamento.A sede do conhecimento so os olhos, os quais abrigam um dos componentes da pessoa, o

    wayanaman, como gente. rata-se das figuras invertidas que se apresentam nas pupilas e querepresentam os verdadeiros detentores dos conhecimentos e das habilidades de um wayana,

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    orientando-o na concretizao dos artefatos. Entre a viso e o gesto h um contnuo intercm-bio, pois os olhos guiam as mos de homens e mulheres, as quais, por sua vez, asseguram que osconhecimentos no se esvaiam. Para tanto, um cesteiro passa os dedos nas linhas de um grafismo

    recm-confeccionado para reter a sua conformao exata.A manuteno dos conhecimentos tecnolgicos est diretamente relacionada proteo

    das figuras contidas nas pupilas, que no devem ser expostas a perigos. Desta forma, homens emulheres evitam trabalhar noite, em execues que forcem a viso, pois a perda da acuidadevisual indica justamente o ataque de foras predatrias, associadas a um pequeno roedor. Osmoradores dos olhos tambm no devem ser requisitados para produes imprprias, o queocorre quando um homem busca executar uma manufatura feminina ou, ao contrrio, quandouma mulher se volta para a confeco de um cesto. Essas atividades geram um desregramento

    da relao viso/gesto, acelerando o envelhecimento do indivduo.

    Figura 2 A fabricao do tipiti (Iori Linke, 2012).

    A pessoa que possui todas as habilidades tecnolgicas apropriadas ao seu gnero e idade referida em certas circunstncias como etihwar, porque logra fazer [todo] o conhecimento.Consistindo no mais alto grau da hierarquia do saber, as pessoas que detm esse ttulo represen-tam um ideal a ser seguido e so constantemente consultadas para assuntos da vida cotidiana eritual5. Entre os Wayana, a maestria artesanal invariavelmente acompanhada de um profundoconhecimento das prticas rituais e das narrativas mticas, pois so domnios intimamente asso-ciados6. Os chefes de aldeia so geralmente dotados desse ttulo, pois deles se espera uma grandeproduo, um incansvel fazer, o que se traduz em muitos filhos e inmeros objetos, alimentos,bebidas...5Atualmente so amide consultados pelos pesquisadores indgenas sobre os mais diversos assuntos.6Como tambm constatou Guss (1989) para os Yekuana.

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    As serpentes de arum

    A arte de tranar fibras vegetais representa a mais diversificada das categorias artesanais

    indgenas, revelando adaptaes ecolgicas, habilidades tcnicas e expresses culturais distin-tas7.Nos estudos antropolgicos sobre a cestaria amerndia das terras baixas sul-americanas, saliente uma preocupao com os aspectos tcnicos, o que atraiu diferentes pesquisadores 8parao terreno da taxonomia e das perspectivas relacionadas com a produo e o uso, com a formae a funo. Paralelamente, recorrente a nfase atribuda aos grafismos que essa tcnica lograapresentar de forma to esplndida, uma vez que no seio dos grafismos que se alojaria o sim-bolismo agregado aos tranados. Deve ser ressaltado que o arcabouo conceitual e simblicoengloba igualmente as tcnicas de confeco, a estrutura formal e suas variantes.

    Os objetos tranados esto, portanto, estreitamente conectados a campos simblicos e es-tticos nas sociedades indgenas. Este fato permite articul-los a uma teoria do trabalho e dacriatividade em que o conhecimento considerado algo produtivo ou esttico porque permitea manuteno da comunidade e a prov da fora criativa para a sua continuidade (OVERING,1991). Esse papel plenamente identificado nas fabricaes dos Wayana, entre as quais a arteda cestaria reconhecidamente requintada, um aspecto compartilhado com outros grupos demesma filiao lingustica (YDE, 1965; FRIKEL, 1973; GUSS, 1987, 1989).

    A confeco de tranados emprega matrias-primas vegetais, silvestres e cultivadas9econs-titui uma atividade essencialmente masculina. Entre os Wayana, os objetos de cestaria so utili-zados na vida cotidiana e nas prticas rituais, constituindo ainda importantes bens de comrcioexterno10. Na dcada de 1990, o levantamento do acervo das aldeias detectou a produo devariados artefatos tranados: tipiti, peneiras, esteiras, abanos que eram empregados no proces-samento da mandioca brava; recipientes para o armazenamento de fusos, pelotas de algodo epara os adornos corporais feitos de miangas, de algodo ou de penas; cestos cargueiros paratransporte de produtos da roa; suportes para ornatos plumrios e estruturas para as mscaras.Atualmente, a presena dos componentes desse repertrio nuanada, variando de uma aldeia

    para outra, pois so numerosos os motivos da presena ou da ausncia de um artefato tranado.

    A cestaria, assim como outras categorias artesanais dos Wayana, referida e circunscrita apartir de uma trplice considerao, referente matria-prima empregada, forma de confecoe decorao. A primeira designao provm da prtica de se designar um objeto segundo onome do material constitutivo. Para os Wayana, a cestaria referida ento como wamaarum,e a escolha dessa matria-prima, entre as demais empregadas na produo de tranados, deve-se

    7 Cf. Ribeiro, 1980, 1985, 1986, 1988; Velthem, 1998, 2007; Ricardo, 2000 .8Cf. Velthem, 1998 e 2005, para o detalhamento dos autores relacionados com os estudos da cestaria.9 Cf. Velthem (1998, p. 197-245) para maiores detalhes.10Os Wayana comercializam seus artefatos desde a dcada de 1970. Inicialmente essa atividade era intermedia-da pela Artndia (Funai) e, mais recentemente, pela Associao dos Povos Indgenas Wayana e Aparai (Apiwa),instalada em Macap. Esse comrcio permanece pouco rentvel devido s grandes dificuldades de transporte dosobjetos das aldeias para a capital do estado do Amap.

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    ao complexo simbolismo que impregna esse vegetal, alm de suas qualidades de durabilidade, deleveza e de resultado esttico.

    A valorao deriva da capacidade do arum em produzir tranados tanto monocromticos,

    quando a casca mantida, como marchetados em cores contrastadas, quando algumas das tirasempregadas recebem tinturas vegetais negras ou vermelhas. Ao ser entranada, essa matria--prima reproduz as peles de seres sobrenaturais serpentiformes (okoiwuim)11. O sentido per-ceptivo destacado o de que o arum concretiza tanto a colorao, como os grafismos da pinturacorporal/estrutura epitelial de tais seres e, ainda, a sua caracterstica principal, o fato de ela serintrnseca e permanente. Consequentemente, na cestaria wayana, o tecido e o grafismo so umae mesma coisa, ao contrrio do que ocorre na cermica, em que os grafismos so aplicados.

    Encerrados em uma complexa rede de propsitos e de prticas, os tranados evocam sempre

    alguma coisa que est alm de sua funo e de seu aspecto formal. Assim, possuem e manifes-tam vrias objetivaes (JAMIM, 2004, p. 9), as quais podem exprimir diferentes realidadese concepes que se tornam claramente apreensveis com o detalhamento de dois importantesartefatos tranados, fabricados pelos homens wayana: o tipiti e o cesto cargueiro.

    O tipiti (tumki) inteiramente confeccionado com fasquias de arum com casca e, assim,apresenta um lustroso e avermelhado corpo cilndrico. Para um jovem, o aprendizado da con-feco do tipiti lento, pois se trata de um objeto difcil de ser fabricado, j que h o corpo a sertecido e duas complexas formas de arremate. A confeco deve principiar pelo centro do arte-

    fato, para que tanto a parte interna como a externa possam ser tecidas com esmero. Se as tirasde arum no forem colocadas de forma correta, o tipiti ficar desproporcional, e se no foremmuito bem ajustadas, o tranado ficar frouxo e deixar vazar a massa de mandioca ralada. Nume noutro caso fica comprometido o movimento constritor requerido desse artefato.

    O domnio da confeco do tipiti indica que o rapaz est apto a casar. Na realidade, essahabilidade representa, entre os Wayana, a condio necessria ao matrimnio. Os jovens quedesejam prolongar a despreocupada vida de solteiro retardam, portanto, o aprendizado dessamanufatura. al opo tem se acentuado, e recentemente muitos jovens se casam sem estar aptos

    a confeccionar um tipiti, fato que julgado reprovvel pelos mais velhos, porque essa carncia considerada o paradigma das unies desajustadas.

    Figura 3 Tipitis na aldeia Jolokoman (Iori Linke, 2012).

    Figura 4 Tranado karupiman no tipiti; representa a pele ventral de Kutupxi.

    Acervo MCTI/Museu Paraense Emlio Goeldi (Fabio Jacob, 2013).

    11 Os Wayana identificam trs categorias de seres sobrenaturais fundamentais: os okoiwuim(cobra-grande) soserpentiformes, os wayanaim (gente monstruosa) so antropomorfos, e osaulukim possuem a forma de larvasde borboleta. Essas categorias abrangentes so integradas por numerosos indivduos ou grupos de seres. odos sodescomunais e antropfagos, vivem nas profundezas das guas dos rios e lagos ou no alto de serras e de grandesrvores, como a sumaumeira.

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    Nas lides cotidianas, esse utenslio presta-se a uma nica funo, para a qual foi justamenteconfeccionado: espremer a massa de mandioca ralada, em movimentos em tudo similares a uma

    serpente constritora. O tipiti pode ser encontrado nas cozinhas das mulheres wayana, quer sejatencionado entre dois travesses ou acondicionado, suspenso a um canto.

    Nas cozinhas, casas do fogo (uapot pakoron), o tipiti se rene a outros objetos utilizados naproduo de alimentos: panelas, esptulas, peneiras, esteiras, torrador de beiju. Segundo as con-cepes dos Wayana, esses artefatos tambm reproduzem seres ou partes de seres que viveramnos tempos primordiais, tais como: a peneira circular, uma serpente enovelada; o torrador debeiju, um ninho de vespas; a esptula, o bico de um pato. Como descreve o mito de criao, esseselementos estavam presentes na cozinha de Pl,um sapo/demiurgo e guardi do fogo, que os

    percebia como artefatos12e assim os utilizava na preparao de alimentos. odavia, quando Plos acondicionava nos jiraus suas redes , logo adormeciam e se mantinham inertes.

    O aspecto formal do tipiti reproduz uma serpente sobrenatural, Kutupxi, muito emborano corresponda fielmente sua aparncia, pois lhe faltam as extremidades, a cabea e a cauda,como mencionado. O que propriamente associa o artefato ao sobrenatural a reproduo deseus movimentos constringentes e a apresentao de sua pintura corporal, ou melhor, de suaestrutura epitelial, o que possvel por meio das tcnicas de entranamento extensveis. Umadas tcnicas karupiman e descreve a pele ventral da serpente; a outra tpapoman e reproduz a

    dorsal. Este ltimo termo significa fieiras de penas indicando, desta forma, que Kutupxi tem odorso recoberto de penas, e assim seria uma serpente emplumada, o que refora seus atributossobrenaturais

    Os homens wayana fabricam vrios tipos de cestos cargueiros, genericamente designadoscomo katali. Alguns so rapidamente feitos com folhas de palmeiras e servem para o transportede frutos silvestres, de sementes, de caa esquartejada e so descartveis, abandonados no portoda aldeia. Porm o katali,que confeccionado com tiras de cip, permanente e permite que asmulheres transportem lenha, mandioca e outros produtos da roa durante alguns anos.

    Nenhum dos cestos mencionados se iguala ao katari anon, cesto cargueiro pintado oukatari tmirikik,cesto cargueiro com pintura corporal [de uma serpente sobrenatural]. Esteartefato considerado pelos Wayana como o mais laborioso objeto de seu repertrio de cestaria.O valor atribudo deriva da complexidade estrutural e material desse cesto, pois a sua fabricaorequer um acmulo de conhecimentos especializados: botnicos, tcnicos, estticos e simblicos,alcanados apenas na maturidade, quando um homem habilidoso se torna um especialista naarte de tranar.

    12 Consultar Viveiros de Castro (2002) para a discusso do perspectivismo indgena.

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    Figura 5 Cesto cargueiro pintado (vista interna). Acervo MCTI/Museu Paraense Emlio Go-eldi. (Fabio Jacob, 2013).

    A confeco desse artefato emprega seis espcies de matrias-primas silvestres para a es-trutura e para os acabamentos, duas fibras cultivadas para as amarraes13e ainda habilidade ecompetncia a respeito dos diferentes processamentos exigidos para o seu emprego adequado.Outras prticas especializadas referem-se s oito formas de tranado e arremates que so ne-cessrias, e ainda decorao do artefato que compreende a conjugao de formas decorativasdistintas.

    Quando recm-concludo, o cesto cargueiro pintado repousa no jirau das residncias e podeacondicionar beijus de mandioca brava. Sua principal funo o transporte de redes de dormir

    por ocasio de deslocamentos familiares sazonais, quando so realizadas visitas aos parentes emoutras aldeias14. Nessas viagens, possui outra atribuio, pois utilizado pela esposa do produtorpara colocar em evidncia o virtuosismo tcnico e esttico de seu marido. Isso ocorre quandotrafega, carregando-o s costas, do porto casa comunitria onde ficam alojados.

    O cesto cargueiro pintado no notvel apenas por testemunhar os conhecimentos e ha-bilidades manuais masculinos. rata-se de um artefato que desvenda complexos atributos sim-blicos, representacionais e estticos que no logram ser alcanados pelos Wayana em outrosartefatos de uso feminino e cotidiano. Assim, o cesto cargueiro propicia a visualizao das

    partes mais significativas da estrutura de determinado componente cosmolgico, denominadoTulupere15, cujo aspecto o de larva de borboleta/serpente. Esse ser est recoberto de grafismosem vermelho e negro, os quais correspondem sua pintura corporal e que foram vistos/copiadospelos Wayana em tempos imemoriais, como informa a narrativa mtica.

    O elenco das pinturas corporais de Tulupere reproduzido na ornamentao corporal hu-mana e em todas as categorias artesanais, masculinas e femininas. Dentre estas, a cestaria detmo maior nmero de grafismos16, e tal multiplicidade derivada do fato de serem os tranadosconcebidos como reprodues de diferentes partes do corpo do prprio ser sobrenatural, pois, ao

    retirarem os padres, os Wayana colheram igualmente os tranados, antes desconhecidos.

    13A maioria dos tranados wayana emprega trs matrias-primas diferentes. O detalhamento do cesto cargueiropintado encontra-se em Velthem, 1998 e 2002.14 O cesto cargueiro pintado foi visto em uso at meados da dcada de 1980. Entretanto, os conhecimentos sobre asua confeco, decorao, simbolismo permanecem vvidos para determinados homens, como pde ser constatadoem 1995 e como revelou um wayana que esteve em Belm (PA) em maio de 2000.15Sobre o sobrenatural Tulupere,consultar Velthem 1998, 2003 e Velthem e Linke, 2010.16Foram repertoriados 47, com nomenclatura diferenciada (Velthem, 2003; Velthem e Linke, 2010).

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    Figuras 6 e 7 Tranados no cesto cargueiro. esquerda, o externo; direita, o interno.O grafismo identificado como mamakterre, pinto do mato/serpente sobrenatural. Acervo

    MCTI/ Museu Paraense Emilio Goeldi (Fabio Jacob, 2013).

    A parcela da estrutura corporal de Tuluper que o cesto cargueiro reproduz a que corres-ponde a seu tronco. A parte inferior so as ndegas; as laterais so os flancos; a parte externacorresponde ao dorso do sobrenatural, e a interna corresponde ao ventre.

    Coroando esse detalhamento anatmico, destacam-se as mltiplas pinturas corporais daserpente, transpostas para o cesto cargueiro por meio de tcnicas de tranado que possuem apeculiaridade de formar grafismos que podem ser apreciados nas duas faces17. De acordo com osWayana, a pintura corporal de Tulupere tanto externa quanto interna na parte ventral, o que

    equivale a afirmar que o sobrenatural possui as entranhas igualmente pintadas.Segundo o pensamento dos Wayana, o que particularmente esttico provm da alterida-

    de, dos inimigos, dos sobrenaturais, dos que esto afastados do convvio social, atributo que seamplia na mesma medida em que aumenta o estranhamento e o poder predatrio original. Este o motivo pelo qual justamente no interior do corpo de Tuluperque so reunidos os maisapreciados e complexos grafismos do repertrio de suas pinturas corporais. H poucos lugaresmais belos e mais temidos do que o ventre desse ser antropofgico, visualizado apenas por guer-reiros18que com ele se defrontaram e que se encontram, agora, em suas entranhas, aps terem

    sido devorados...A descrio contida nas pginas precedentes enfocou a cestaria wayana e sublinhou como

    dois objetos especficos representam uma esfera significativa do saber masculino que indicauma dimenso criadora e criativa. Em cada artefato se destaca uma esttica que relevante evalorizada pelos prprios Wayana, traduzida por meio de um sofisticado sistema representativoe conceitual.

    No tipiti e no cesto cargueiro pode ser percebido um duplo sentido: o de recriao, pois essesobjetos so fabricados de acordo com os parmetros estabelecidos nos tempos primordiais; e

    o de transposio, j que esto marcados com as pinturas corporais/estruturas epiteliais dasserpentes sobrenaturais, das quais transmitem a essncia, e no apenas a aparncia19.

    As percepes aludidas esto intimamente relacionadas com duas faculdades essenciais: ogesto e a viso. O senso de humanidade conferido pelo trabalho manual, pelo gestual, social-mente transmitido por intermdio das geraes. O tipiti e o cesto cargueiro teriam, nessa acep-o, um estreito vnculo com as mos e o ser gente, ser wayana, pois apenas os humanos socapazes de produzir artefatos. Entretanto, o sentido que remete ao campo da alteridade resulta

    17 Ver figuras 6 e 7. Apenas quatro tranados apresentam essa forma decorativa, mas como nenhum tem asdimenses do cesto cargueiro, essa decorao considerada especfica desse artefato.18Segundo os Wayana, so os guerreiros, em suas incurses de guerra, os que mais percebem e se defrontam comos sobrenaturais.19Ver em Aroni, 2010, uma interessante apresentao desses conceitos em Vernant.

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    de uma apropriao visual, da paradoxal contemplao do que belo, porm aterrorizante. Nessaacepo, os objetos mencionados se associam ao olhar e a seu morador, semelhante gente, owayanaman, elemento que est apto a orientar a produo humana dos artefatos. A imbricao

    do que est separado, ou seja, a habilidade humana e a beleza dos sobrenaturais resultam na artedos Wayana, reconhecida como sua, pois apropriada para seu uso e compartilhamento.

    Referncias bibliogrficas

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