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    v.17, supl.2, dez. 2010, p.421-430 421

    Psicastenia

    Psicastenia

    Psychasthenia

    Rafaela Teixeira ZorzanelliPs-doutoranda do Instituto de Medicina Social/

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro,com apoio Faperj/Capes.

    Instituto de Medicina Social, UERJRua So Francisco Xavier, 52 4, pavilho Joo Lyra Filho , 7. a., bl. D e E

    20550-900 Rio de Janeiro RJ [email protected]

    Recebido para publicao em dezembro de 2009.

    Aprovado para publicao em setembro de 2010.

    ZORZANELLI, Rafaela Teixeira.Psicastenia.Histria, Cincias, Sade

    Manguinhos, Rio de Janeiro, v.17,supl. 2, dez. 2010, p.421-430.

    Resumo

    Analisa a categoria mdica dapsicastenia, utilizada no fim do sculoXIX e incio do sculo XX pelapsiquiatria francesa. So apresentadas ascaractersticas do quadro clnico bemcomo as principais hiptesesexplicativas para os sintomassustentadas por Pierre Janet, principalnome ligado sistematizao dessacategoria nosolgica. discutido aindao modo como esse diagnstico foiutilizado no Brasil, e as suas relaescom o quadro da neurastenia nocontexto da psiquiatria brasileira.

    Palavras-chave: psicastenia; Pierre Janet(1859-1947); psiquiatria; Brasil.

    Abs tract

    Thearticle analyzes the medical category of

    psychasthenia, used by French psychiatryfrom the late nineteenth through the early

    twentieth centuries. It describes the clinical

    profile of psychastheniaand the mainhypotheses meant to account for symptoms

    as defined and advanced by Pierre Janet, the

    central figure in systematization of this

    category. The article also looks at how this

    diagnosis was used in Brazil and how it

    related to the profile of neurasthenia within

    the context of Brazilian psychiatry.

    Keywords: psychasthenia; Pierre Janet(1859-1947); psychiatry; Brazil

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    Rafaela Teixeira Zorzanelli

    Apsicastenia foi um diagnstico cunhado pelo neurologista francs Pierre Janet (1859-

    1947), na obraLes obsessions et la psychastnie(As obsesses e a psicastenia; 1903), cujosegundo volume foi escrito em coautoria com seu conterrneo e tambm neurologista

    Fulgence Raymond (1844-1910). O diagnstico de psicastenia foi discutido de forma dispersa

    e recorrente em diversas obras de Janet, mas sobretudo em Les obsessions et la psychastnie

    (Janet, 1903; Janet, Raymond, 1903); e em Les nvroses(As neuroses; Janet, 1909), obra na

    qual o quadro psicastnico diferenciado em relao histeria.

    Pierre Janet pertence a uma gerao de nomes de destaque, como o socilogo francs

    mile Durkheim (1858-1917); o mentor dos testes de medida do coeficiente de inteligncia

    Alfred Binet (1857-1911); e o filsofo Henri Bergson (1859-1941). Alm disso, foi aluno de

    Thodule Ribot (1839-1916), cujas ideias sobre a vontade contriburam de forma significativa

    para o direcionamento dos interesses de Janet por uma psicologia dos processos superiorese da personalidade humana.

    Logo na introduo do primeiro volume de Les obsessions, Janet afirma que o livro

    uma aplicao do mtodo de Ribot, que consiste em unir medicina mental e psicologia,

    extraindo desta ltima esclarecimentos para a classificao e interpretao das tipologias

    mentais. Alm disso, caberia procurar nas alteraes mrbidas da mente observaes e

    experincias naturais que permitissem analisar o pensamento humano.

    Entre 1893 e 1902, Janet trabalhou em um laboratrio no Hospital de Salptrire, que

    lhe foi confiado pelo neurologista Jean Martin Charcot (1825-1893). Em 1902, Janet e

    Binet se candidataram ao posto deixado por Thodule Ribot no College de France, tendo

    a candidatura de Janet sido defendida por Henri Bergson. Os conceitos janetianos de

    tenso psicolgica (tension psychologique) e de funo do real (fonction du rel) tm estreitarelao com as teorizaes bergsonianas sobre a ateno vida (attention la vie), e

    apresentam pontos em comum com os temas tratados noEnsaio sobre os dados imediatos da

    conscincia, publicado em 1889 (Ellenberger, 1970). Uma vez tendo sido aceito no College

    de France, passou a lecionar sobre condies mentais mrbidas, tais como a histeria e a

    psicastenia, e tambm sobre temas como conscincia, psicoterapia e outros assuntos. Parte

    dessas aulas foram incorporadas aos volumes de Les obsessions et la psychastnie.

    Juntamente com a histeria e a neurastenia, a psicastenia compe o quadro mais amplo

    de condies neurticas do fim do sculo XIX e por isso esta ltima categoria se situa em

    obras mais dedicadas a esquematizar uma teoria da neurose. Um ponto em comum entre

    quaisquer quadros ditos neurticos naquele momento era o fato de no haver, para osmesmos, qualquer hiptese etiopatolgica suficientemente elucidativa. Como afirma Janet

    (1909, p.295): Infelizmente, incontestvel o fato de que hoje no podemos dar qualquer

    explicao anatmica ou fisiolgica para essas perturbaes curiosas.1Tendo em comum

    a classificao das neuroses, Janet preocupa-se em diferenciar essas condies umas das

    outras para conferir psicastenia uma caracterizao distinta. Se em relao histeria h

    diferenas dignas de nota, ao que ele dedica a totalidade da obra Les nvroses, em relao

    N.E. O presente artigo uma reflexo crtica baseada em texto de Henrique Roxo, Psicastenia,reproduzido neste nmero deHistria, Cincias, Sade Manguinhos.

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    neurastenia Janet supe que esta esteja subsumida ao quadro mais geral da psicastenia

    (Janet, 1903; Pitman, 1984).Os sintomas da psicastenia diziam respeito presena de ideias fixas, obsesses e impulsos,

    manias mentais, dvidas, tiques, neurastenias, sensaes de despersonalizao. Esse rol demanifestaes teria sido at ento descrito sob o nome de doena de Krishaber. Os doentes,por sua vez, j teriam tambm sido descritos com diferentes denominaes, tais comodelirantes, degenerados, neurastnicos e frenastnicos. Em se tratando de defini-los, Janetpreferia cham-los de escrupulosos, porque o escrpulo era a principal caracterstica depensamento desses indivduos.

    A despeito da grande diversidade dos sintomas, eles eram suficientemente relacionadosentre si para formarem um grande grupo neurtico, cuja caracterstica principal seria oenfraquecimento das funes psicolgicas. Compreender esse quadro significava, para seu

    principal autor, estudar as operaes psicolgicas que permitiam ao homem entrar emrelao com a realidade, agir sobre ela e alcanar o sentimento de certeza (Janet, 1903).

    Entre as caractersticas do quadro esto uma srie de alteraes psicolgicas, comosentimentos de incompletude, que abarcaria as operaes intelectuais (alteradas peladificuldade de sustentar a ateno e coordenar idias), as emoes (transformadas emruminaes, tiques e ansiedade) e a percepo (invadida por sensaes de despersonalizaoe desrealizao). Outra caracterstica eram os problemas na volio como indolncia,preguia e procastinao , os fisiolgicos, como dores de cabea e nas costas, e insnia. Demodo geral, essas insuficincias psicolgicas, como as denominava o autor, se mostravamtanto na fraqueza para a ao quanto na resistncia ao (Janet, 1903).

    O primeiro fenmeno que se destacava no curso do desenvolvimento da doena era oaparecimento de uma ideia, em geral, invasiva, sem a ao da vontade, que se reproduzia deforma contnua. Seu contedo, em geral, girava em torno das obsesses de sacrilgio, crime,vergonha de si, vergonha do corpo e obsesses de doena. Sua presena insidiosa fazia odoente perder o poder de critic-la e de resistir a essas obsesses, abandonando-se a elas.

    Os doentes eram tambm acometidos por sentimentos de lassido e devaneio, pordificuldades em manter a ateno e em permanecer em uma s atividade. Os acontecimentosrecentes no se fixavam em suas mentes, ocasionando amnsia intermitente. No caso docontrole dos impulsos, havia uma tendncia realizao de atos extravagantes e desar-razoados, cuja tentativa de inibio gerava grande aflio. Alm disso, os psicastnicoseram tomados por dvidas incessantes, que se apresentavam como manias de interrrogao

    e de preciso.Os sintomas eram distribudos em diferentes modalidades que Janet denominou

    agitaes foradas: as mentais, as motoras e as emocionais. As agitaes mentais eram asmanias e tiques intelectuais como as de interrogao, de deliberao e de excesso, entreoutras. No caso das agitaes motoras, tratava-se de tiques ou crises de agitao difusa. Asagitaes emocionais, por sua vez, eram divididas entre difusas a ansiedade e especficas as fobias. Este segundo grupo se dividiria, por sua vez, em fobias do prprio corpo, deobjetos externos, de situaes e de ideias.

    No campo da linguagem, apresentavam crises de tagarelice, tiques com palavras, paralisiasna fala por medo ou timidez. Alm disso, passavam a procurar algo que os pudesse retirar

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    desse estado, como excentricidades e formas de excitao fsica e moral (bebidas alcolicas,

    excesso de comida, saltos, gritos).Tambm como parte do quadro apareciam a emotividade patolgica, caracterizada

    pela amplitude exagerada das modificaes viscerais e circulatrias, e a paralela tendn-cia a sentir essas modificaes de modo muito drstico. No entanto, Janet (1903; 1909)chama a ateno para o fato de que, embora paream indivduos emotivos, os psicastnicosno sentiam nada vivamente, e a tal ponto eram indiferentes aos sentimentos novos quereproduziam com exagero automtico os sentimentos antigos. De forma geral, as funes(mentais, motoras e emocionais) eram modificadas ora por paralisias, ora por insuficincias:os pensamentos no chegavam a se estabilizar em crenas nem os atos alcanavam suaexecuo completa. No limite, o sujeito no conseguia agir, crer ou sentir, e sua mente seperdia em manias de preciso, tiques e angstias variadas. A ausncia de deciso, de resoluo

    voluntria, de crena e de ateno, a incapacidade de experimentar um sentimento exatoem relao ao presente lhe impediam de se envolver com a realidade. Tambm por isso, avivncia do tempo era mais uma das dificuldades do psicastnico: o presente no os absorviae, desse modo, o passado e o futuro adquiriam importncia descomunal, que consistiamais em uma negao do presente do que na aposta no futuro.

    No que se refere ao prognstico e as possibilidades de melhora, Janet enfatizava que ossintomas podiam ocorrer em perodos intermitentes da vida do sofredor, ficando restritosa perodos mais ou menos longos que, em geral, comeavam depois de uma doena orgnica,de um episdio de fadiga ou de certas emoes. As alteraes causadas pela doena noeram definitivas nem profundas, tampouco aboliam a possibilidade de que as funes

    voltassem ao normal. Transcorrido algum tempo, os psicastnicos retomavam suas atividadesnormalmente. No entanto, com frequncia havia recidivas do quadro.Janet (1903) assinalava o quanto grande parte dos psicastnicos se queixava de senti-

    mentos de incompletude, de inacabamento, de falta de finalizao nas operaes darealidade. Tratava-se, para o autor, de um mesmo fato: havia uma conservao das funespsicolgicas, mas uma perda do sentimento fundamental de pertencimento realidade eao mundo presente.

    Com o objetivo de compreender esses fenmenos, Janet empreendeu uma investigaosobre as funes da mente e o nvel de tenso necessrio para atingi-las. O estudo dapsicastenia marcou um estgio importante do desenvolvimento das ideias janetianas, noque se refere aos diferentes graus de atividade psicolgica. Les obsessions dedicado a fazer

    uma teoria da psicastenia segundo a qual o princpio da doena seria a hierarquia dosfenmenos psicolgicos. Essa hierarquia significava que as funes mentais iriam das maissimples e automticas at as mais complexas e integradas (Janet, 1903; 1909); e que tambm em processo crescente as mais simples requisitariam menos tenso psicolgicapara sua execuo e as mais complexas, mais.

    Janet (1903) faz uma importante distino entre fora e tenso psicolgica. A foraseria a quantidade de energia psquica disponvel para o indivduo, e existiria nas formaslatente e manifesta. A transformao da fora latente em forma manifesta seria o processode mobilizao de energia. A tenso psicolgica, por sua vez, dizia respeito capacidadeindividual para usar a energia psquica. Quanto maior o nvel de tenso psicolgica, mais

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    operaes mentais um indivduo seria capaz de realizar. Essas diferenas entre variaes

    individuais da fora e da tenso psicolgicas importavam observao clnica e teraputica.Pelo baixo suprimento de tenso psicolgica, os psicastnicos teriam dificuldades comnovas situaes de vida como casamento, promoo no trabalho e o aparecimento dossintomas diante dessas situaes significaria que so demandas excessivas s suas funesmentais.

    Como a teoria da hierarquia das funes psicolgicas se aplicava compreenso dapsicastenia? Supondo que as operaes mentais se realizassem com base em uma hierarquia,seus graus superiores seriam inacessveis aos psicastnicos, enquanto os nveis mais basaispermaneciam disposio. A operao mais difcil e no sem motivo, a que desaparecemais frequentemente seria exatamemente a apreenso da realidade, que permitia agirsobre os objetos exteriores e sobre o meio social. A queda do nvel de tenso psicolgica

    implicaria a diminuio da capacidade de perceber os detalhes da realidade, a reduo daautoconscincia dos sentimentos, a restrio de ideias e de comportamentos intencionais(Van den Hart, Freidman, 1989).

    O conhecimento das variaes da tenso se aplicava bem interpretao dos sintomaspsicastnicos, e permitia inferir o carter geral da doena: os estados mentais que envolviamenfrentamento e responsabilidade davam lugar a fobias e obsesses diversas, a agitaesmotoras e fantasias, que exigiam baixo grau de tenso psicolgica. Era em razo dapsicolepsia, isto , da queda da tenso psicolgica que as funes mais complexasdesapareciam na psicastenia. Ou nas palavras do autor: [a] psicastenia uma forma dadepresso mental caracterizada pela diminuio da tenso psicolgica, pela diminuio

    das funes que permitem agir sobre a realidade e peceber o real, pela substituio deoperaes inferiores e exageradas sob a forma de dvidas, agitaes e angstias, e pelasideias obsediantes (Janet, 1909, p.311).

    O interesse de Janet pelas formas mais elementares e simples da atividade humana j seapresentava desde suas primeiras obras dedicadas ao tema do automatismo psicolgico,no contexto das manifestaes de amnsia histrica e dos fenmenos de desdobramentoda personalidade: A atividade humana se apresenta s vezes sob formas anormais,movimentos incoerentes e convulsivos, atos inconscientes ignorados pela prpria pessoaque os realiza, desejos impulsivos contrrios vontade e aos quais o sujeito no poderesistir (Janet, 1889, p.22). No entanto, para o autor, esse automatismo dos atos maissimples do homem pressuporia a conscincia e a sensibilidade, de forma simultnea e

    indissocivel. tambm por esse motivo que Pereira (2008) observa que o conceito deautomatismo psicolgico em Janet diferia do de automatismo mental, definido maistardiamente por Gatan Gatian de Clrambault (1872-1934). Para o primeiro, tal fenmenose referia conscincia e histria pessoal e para o segundo tratar-se-ia de uma irrupoinesperada no campo do eu, ao qual o psiquismo deveria reagir ou adaptar-se.

    Mas quais seriam as funes mentais superiores? interessante notar que, em estudosobre o automatismo psicolgico, Janet (1889) definiu apenas dois nveis de funes mentais o de sntese e o das funes automticas. Com o desenvolvimento de sua obra, a hierarquiadas funes mentais se expandiu para cinco nveis, os trs primeiros sendo consideradosfunes superiores, que requereriam maior envolvimento com a realidade. O primeiro

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    deles seria a funo do real, relacionada ateno e percepo de elementos da realidade

    externa; o segundo seria a atividade desinteressada, as aes habituais e indiferentes; oterceiro, as funes da imaginao como o raciocnio abstrato, a fantasia, o devaneio e amemria representativa; o quarto, as reaes emocionais; o quinto envolveria os movimentosmusculares sem utilidade. Os sintomas da doena apontariam para uma perturbao dafuno do real, que alteraria o modo como o sujeito a apreendia, tanto no campo dapercepo quanto no da ao. Isso significa que a relao com a realidade constitua umafuno psicolgica deficiente nos psicastnicos.

    Duas caractersticas estariam presentes nos nveis mais altos da hierarquia psicolgica: asntese mental e a riqueza dos elementos da conscincia que nela aparecem. Uma alteraono primeiro nvel das funes superiores, ou seja, na funo do real, modificaria todas asoperaes seguintes (Pitman, 1984). Abaixo do nvel mais alto estariam operaes despojadas

    de perfeio, de acuidade e do sentimento de realidade. Tratar-se-ia de aes sem adaptaoaos fatos novos, das percepes vagas e sem fruio do presente. Seriam aes e percepesdesinteressadas, que trariam ideias, imagens, racioccios, representaes inteis do passado,devaneios. Em um nvel ainda mais abaixo de tenso psicolgica estariam as agitaesmotoras mal adaptadas e inteis, as reaes viscerais ou vasomotoras elementos primordiaisda emoo.

    Quanto etiologia da doena, Janet no hesitava em afirmar o papel determinante dahereditariedade na formao da patologia, muito embora no se pudesse determinarexatamente qual. Sua influncia se fazia ver nos estigmas de degenerescncia do paciente,nos sinais de sua organizao mental considerada incompleta ou defeituosa, tais como

    como a assimetria facial e a altura maior ou menor que a mdia (Janet, 1903). Ainda queressalte a importncia da ateno aos possveis estigmas, o autor no deixa de remarcarque, com significativa frequncia, eram encontrados doentes sem quaisquer dessas marcasde degenerescncia.

    No que se refere aos tratamentos, um de seus eixos era o campo somtico: nutrioadequada, boa qualidade de sono, ar fresco, evitao de fadiga. O outro era o moral,considerado mais importante do que o fsico, a tal ponto que, com frequncia, o tornavaintil (Janet, 1903). Alm disso, mais do que demandar ao crebro aquilo que ele no teriacondies de oferecer, era importante diminuir as demandas sobre ele, por meio de umasimplificao do estilo de vida. Para o autor, as ideias obsessivas eram uma expresso de umestado subjacente e o tratamento deveria ser dirigido para esse estado, envolvendo a

    reeducao da funo do real e o aumento da tenso nervosa. Como no se sabia comopromover esses processos diretamente, era necessrio recriar condies em que o nvel detenso mental crescesse. A estimulao da emoo podia ter um efeito benfico e os esforosmentais e fsicos diretamente aplicados realidade deviam ser encorajados.

    digno de nota que a abordagem da psicastenia sugerida pelo autor no pertenciainteiramente ao modelo organicista, tampouco s teorias psicognicas sobre a doenamental: Janet distinguiu, na psicastenia, tanto um processo psicogentico derivado doseventos da vida e das ideias fixas, quanto um substrato orgnico, que era a predisposioneurtica. No entanto, ainda que reconhecesse a importncia da hereditariedade e defatores orgnicos, o autor atribua papel determinante dinmica da energia psquica.

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    tambm por isso que os trabalhos de Janet so considerados contribuies decisivas para a

    constituio de um sistema de psiquiatria dinmica e para o desenvolvimento da psicoterapiacomo mtodo de tratamento de transtornos mentais (Ellenberger, 1970; Pitman, 1984).

    A utilizao da psicastenia como categoria diagnstica durou pouco, pela fora dasnovas classificaes psicanalticas ento em ascenso, sendo indiretamente substitudapelas neuroses obsessivas e fobias no decorrer das primeiras dcadas do sculo XX. Assim,muitos dos sintomas atribudos psicastenia seriam redescritos, depois do declnio dacategoria, pela psicanlise freudiana. Hoje, a psicastenia ainda mencionada na dcimaedio da Classificao Internacional das Doenas (OMS, 1993), sob a alcunha de outrostranstornos neurticos especificados, relacionados a transtornos de etiologia incerta, quemisturam comportamento, crenas e emoes ocorrentes em culturas particulares.

    No que se refere recepo desse diagnstico no Brasil, no perodo entre a metade do

    sculo XIX e metade do sculo XX, a psicastenia se encontrou muitas vezes misturada aoutras entidades nosolgicas que lhe eram contemporneas, como o caso da neurastenia.Apesar de serem diagnsticos comuns no fim do sculo XIX, neurastenia e psicasteniaprovieram de lugares e autores diferentes, a primeira ligada ao contexto norte-americano ea segunda, ao francs. Mas entre os mdicos brasileiros elas se encontravam frequentementereunidas, a ponto de a segunda ter sido compreendida como um subtipo da primeira,juntamente com o nervosismo (Roxo, 1916a).

    De fato, os sintomas da neurastenia eram to abrangentes que poderiam incluir tantoas manifestaes clssicas exausto e transtornos neuropsicolgicos quanto sintomaspsicastnicos ou de nervosismo, este ltimo centrado em manifestaes de ansiedade e

    perturbaes da cenestesia. Por isso, Roxo (1916a; 1916b) considera a psicastenia umamodalidade da neurastenia em que predominariam obsesses, fobias e compulses. Se emJanet (1903) a neurastenia estaria includa na psicastenia, em Roxo (1916a) trata-se docontrrio a psicastenia seria um subtipo da neurastenia.

    Alm da sintomatologia em comum, h outro ponto que tambm torna esses quadrosmais homogneos a etiologia. A explicao , como enfatiza Roxo (1916a), a fraquezairritvel do sistema nervoso em razo de uma constituio nevroptica. O indivduo comuma constituio frgil esgotar-se-ia com facilidade, principalmente se vulnerabilizadopor um abalo moral ou por uma infeco txica. Nesses casos, o sistema nervoso ficariamal nutrido e o organismo inteiro se ressentiria. Em ambos os casos, estaramos diante deum esgotamento nervoso originrio, que acompanharia o indivduo desde seu nascimento

    e seria acirrado pelos fatos da vida.No que concerne a esse ponto, Roxo (1916b) destaca o papel do aspecto moral na

    produo do quadro psicastnico. Em todos os casos por ele analisados houve um profundoesgotamento nervoso, em que o elemento emotivo representou papel preponderante. Se seobserva a gnese da doena, detecta-se quase sempre um forte abalo moral, e uma emoointerna e duradoura que perturbou o doente. nesse contexto que o autor afirma ser aemoo a causa fundamental do quadro psicastnico, embora admitisse a celeuma emtorno do poder (ou no) das emoes de gerarem, por si, quadros patolgicos. Nos doentesque atendia, Roxo observou organizaes emotivas que vinham sendo fatigadas econtrariadas. Mesmo quando havia um fator infeccioso, associava-se a ele o fator emotivo.

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    Desse modo, a patogenia da psicastenia diria respeito, para o autor, a dois fatores: o

    degenerativo-hereditrio e o emotivo, ao qual se somaria, em algumas vezes, o fator txico-infeccioso. Como observou o autor: Inibido na vontade ou indolente no seu desempenho,o psicastnico uma presa que no se libera facilmente das obsesses, fobias e impulses(Roxo, 1916b, p.198).

    Algumas concluses

    Rabinbach (1990) ressalta que a anlise que Thodule Ribot (1845-1893) empreende emLes maladies de la volont (As doenas da vontade; 1888), especificamente sobre a abulia,toca em um aspecto importante da compreenso da psicastenia. Para Ribot, a vontade erauma proteo contra as imagens e pensamentos destrutivos. O desejo representava a forma

    primitiva da vida afetiva, no se diferenciando dos movimentos reflexos complexos. Avontade, por sua vez, representava a mais elevada forma de poder material que contra-efetuava seus efeitos negativos. Ela era, assim, o mais alto estgio do desenvolvimentomoral e fisiolgico, enquanto o desejo, um estgio situado entre o reflexo e as aesvoluntrias. Atuava como um poder inibitrio agindo como uma supresso da excitaoou como um mecanismo de inibio. Para Ribot, as patologias da vontade no eramestados da conscincia, mas sim conscincia dos estados internos de esgotamento, nosquais se enquadravam o pessimismo, a falta de iniciativa, o medo da ao e a recusa de seenvolver em atividades produtivas. Em sua psicologia, a energia insuficiente era a substnciamaterial da patologia, que produzia representaes irracionais e dava origem a foras do

    cio e da lassido.Essas ideias esclarecem um dos principais pontos em jogo na psicastenia, que a fraquezada vontade e a entrega passiva do doente s expresses mais rudimentares de suas funesmentais. Como enfatiza Pereira (2008, p.305), trata-se de um mecanismo de base econmicasegundo o qual o enfraquecimento da capacidade de sntese expe o eu a ser passivamenteinvadido por elementos mentais que deveriam manter-se afastados e submetidos ao restantedo psiquismo. Em outras palavras, em decorrncia da escassez de energia volitiva, oindivduo no conseguia ter controle sobre as ideias obsessivas, sendo a desnutrio dosistema nervoso o fator produtor dessa falta de energia. O psicastnico, por isso, vivia merc de suas obsesses, fobias e impulsos, sem energia para refrear os contedos quetomavam conta de sua conscincia. Era a debilidade nervosa que o impossibilitava de

    desempenhar a vontade. Em algumas vezes, faltava-lhe o impulso inicial para agir. Emoutras, a ao falhava em sua plenitude.

    Diante desse quadro explicativo que sustentava a compreenso da doena, a principalinovao de Janet em relao ao conceito de psicastenia que os sintomas fsicos eramentendidos como uma sequela do estado psicolgico e no o contrrio (Shamdasani,2001). Essa ideia traz uma consequncia direta a suas proposies teraputicas. Pode-sedizer que, de modo geral, o tratamento dos psicastnicos consistia na reeducao da funodo real e em um aumento do nvel mental; em exerccios, passeios de bicicleta e ginstica.

    Alm dessas atividades, um dos modos pelos quais o nvel mental aumentava era tambmo encontro clnico, pelo prprio reconhecimento, por parte do mdico, do estado do

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    paciente como algo digno de cuidado e ateno. O tratamento proposto por Janet tinha,

    assim, uma clara direo moral, e isso no se deu sem motivo, j que o autor teve uma claradedicao ao tema da psicoterapia, como o caso emLa mdicine psychologique(A medicinapsicolgica; Janet, 1923), no qual defende essa prtica como uma forma particular demedicina. Na obra, Janet afirma que os esforos em transformar o comportamento humanono podem separar radicalmente o fsico do moral, j que as palavras contm fenmenosfsicos e a conduta humana contm movimentos e ideias. Todos os mtodos empregadosem sua poca, como as eletroterapias, a balneoterapia e a massoterapia, deveriam envolveruma mescla de fsico e moral.

    A psicoterapia, por exemplo, diria respeito a um conjunto de procedimentos fsico-morais aplicado a doenas, com essa mesma mistura etiolgica. Esses procedimentos seriamdeterminados pelo conhecimento de leis que regulariam o desenvolvimento dos fatos

    psicolgicos, de sua associao entre si e com os fatos fisiolgicos. Nesse panorama, Janetobservava, por exemplo, que frequentemente a presena de um amigo fazia cessar os sintomasde seus pacientes, cabendo tambm ao mdico cumprir essa funo moral e demonstrarinteresse pelo paciente.

    NOTAS

    1Nesta e na prxima citao de Pierre Janet, a traduo livre.

    REFERNCIAS

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