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MARCUS MAIA (ORGANIZADOR) PSICO LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

PSICO LINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO · No Brasil, havia, em 2013, mais de 62 milhões de alunos distribuídos entre Educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. No ensino

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MARCUS MAIA(ORGANIZADOR)

PSICOLINGUÍSTICA E EDUCAÇÃO

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

PsicolinguÍstica e educação / Marcus Maia, (organizador). –

Campinas, SP : Mercado de Letras, 2018.

Vários autores.

ISBN 978-85-7591-520-2

1. Aprendizagem 2. Educação 3. Leitura 4. Psicolinguística

I. Maia, Marcus.

18-15880 CDD-401.9

Índices para catálogo sistemático:

. Psicolinguística 401.9

: Vande Rotta Gomide

: Editora Mercado de Letras

dos autores

: Cibele Maria Dias – CRB-8/9427

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:

© MERCADO DE LETRAS®

VR GOMIDE ME

Rua João da Cruz e Souza, 53

Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116

Campinas SP Brasil

www.mercado-de-letras.com.br

[email protected]

1a edição

JUNHO / 2018

IMPRESSÃO DIGITAL

IMPRESSO NO BRASIL

Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.

É proibida sua reprodução parcial ou total

sem a autorização prévia do Editor. O infrator

estará sujeito às penalidades previstas na Lei.

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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 81

Capítulo IIIO PRObleMA dO AnAlfAbetISMO fUncIOnAl nO bRASIl SOb UMA AnÁlISe PSIcOlIngUíStIcA

Eduardo Kenedy

Introdução

O principal desafio contemporâneo das políticas

educacionais brasileiras é conseguir promover o alfabetismo

funcional pleno da população em idade escolar, conforme

preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais (confira Brasil

1997). Esse desígnio, infelizmente, permanece ainda muito

distante da realidade atual da grande massa de estudantes

brasileiros. Diversos instrumentos de avaliação da Educação

nacional – tais como o IDEB (Índice de Desenvolvimento da

Educação Básica), o ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização),

o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a Prova Brasil,

além de instrumentos específicos dos estados da União, como

o SAERJ (Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio

de Janeiro) e o IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação

Paulista) – vêm indicando que as habilidades de leitura e de

produção textuais são ainda muito precariamente desenvolvidas

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entre crianças, jovens e adultos deste país, sejam eles alunos

de escolas públicas ou privadas, oriundos dos centros urbanos

ou do interior. Instrumentos avaliativos internacionais, como o

PISA (sigla em inglês de Programme for International Student

Assessment – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes),

desenvolvido e coordenado pela Organização para a Cooperação

e Desenvolvimento Econômico (OCDE), têm confirmado essa

situação de subletramento dos estudantes brasileiros, que, ao

longo de muitos anos, vêm ocupando as últimas posições nos

rankings internacionais de mensuração da capacidade de leitura.

As razões para o fracasso escolar brasileiro são, segundo os

estudiosos do tema, múltiplas e complexas (confira dentre outros,

Maluf e Bardelli 2011; Zago 2011; Costa 2013; Angelucci et al.

2014). A insuficiência de investimentos públicos na Educação,

pelo menos quando se considera a média de investimentos

anuais por aluno, é certamente uma das mais notórias causas

do atraso da Educação no país. Não obstante, apesar da ênfase

conferida à variável econômica por parte de muitos educadores e

de consideráveis propostas políticas educacionais, investimentos

financeiros são apenas uma parte do problema. Como indicam

Roitman e Ramos (2011), as mazelas da Educação brasileira são

multifacetadas: desprestígio social da carreira do magistério,

falta de incentivos a professores e a estudantes de licenciatura

(bons salários, plano de carreira), degradação afetiva e social do

ambiente escolar (violência física e simbólica), obscurecimento da

função da escola numa cultura eminentemente oral e subletrada,

dentre outros fatores. O presente capítulo deste livro pretende

apresentar um fenômeno psicolinguístico que, provavelmente, se

encontra entre as diversas variáveis responsáveis pelo fracasso da

Educação popular no Brasil: o status cognitivo da diglossia entre o

vernáculo trazido à escola pelos alunos de origem social popular

e o sistema linguístico subjacente ao chamado português escrito

em padrão culto e formal.

É provável que uma entre as diversas razões para o fracasso

escolar dos brasileiros oriundos da classe trabalhadora decorra

da falta de domínio efetivo sobre os mecanismos linguísticos

necessários ao uso fluente para leitura e produção em escrita

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culta – a qual, logo após o período elementar da alfabetização,

se apresenta ao aluno simultaneamente como objeto de estudo e

como instrumento intelectual de acesso à cultura letrada. Conforme

se vem indicando na literatura especializada, as diferenças

lexicais, gramaticais e discursivas que separam, de um lado, o

vernáculo brasileiro – em todas as suas variedades regionais e

socioculturais – e, de outro, a escrita culta em seus diferentes

gêneros são tais que o aprendizado dessa última assume, para

maioria da população escolar, o status cognitivo de uma segunda

língua (confira Kato 2005). Nessa linha de argumentação, Kenedy

(2016) sustentou que as oposições linguísticas e sociointeracionais

entre as variedades vernaculares do português no Brasil e a escrita

padrão da língua caracterizam uma situação de diglossia. Segundo

o autor, as múltiplas variedades do português falado e escrito

no Brasil exemplificam perfeitamente a hipótese do Bilinguismo

Universal (Roeper 1999) e a Teoria das Múltiplas Gramáticas

(Amaral e Roeper 2014), já que os brasileiros letrados possuiriam

diferentes competências linguísticas em sua cognição que os

tornariam capazes de navegar pelas diversas situações de interação

sociocomunicativa por meio da fala e da escrita mais ou menos

formais e letradas. Considerando que, de acordo com pesquisas

recentes sobre capacidade de leitura (Brasil 2014; INAF 2016),

um grande contingente de estudantes brasileiros encontra-se na

situação do analfabetismo funcional, Kenedy (2016) asseverou que

esses cidadãos não teriam adquirido as representações linguísticas

necessárias para proficiência com o input escrito culto, uma vez

que o léxico, a gramática e os gêneros dessa modalidade da língua

são muito diferentes das características linguísticas e discursivas

adquiridas espontaneamente pelos brasileiros durante a fase de

aquisição da linguagem (formação mental do vernáculo).

Neste capítulo, lançaremos mão de noções psicolinguísticas

a fim de defender a hipótese de que a falta de pedagogias

adequadas ao status de língua estrangeira da escrita culta –

como ocorre quando, por exemplo, ela é considerada, ainda que

tacitamente, apenas a representação gráfica da língua nativa do

aluno – e o desconhecimento da situação diglóssica da maioria

das salas de aula e de programas didáticos no Brasil podem

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fazer com que a chamada escrita culta permaneça um objeto

estranho aos estudantes durante toda a sua vida escolar após a

alfabetização, prejudicando sobremaneira a sua inserção efetiva

na cultura letrada.

Educação popular no Brasil

Desde a independência e da abolição da escravatura, o

Brasil vem avançando em seu projeto de educar os estratos mais

pobres da população, que são historicamente a grande maioria

dos brasileiros. Ao longo dos últimos 120 anos, o número de

analfabetos absolutos no país foi reduzido de maneira expressiva

– de 83% da população, em 1890, para 8,5%, em 2014 (confira

Brasil 2014a) – e o acesso à Educação básica tornou-se pleno,

ao ponto de hoje mais 99% das crianças e adolescentes em idade

escolar encontrarem-se matriculadas em alguma instituição de

ensino brasileira (confira Brasil 2009). Não obstante, se, nos dias

atuais, alfabetização e universalização da escola básica deixaram

de ser os grandes problemas da Educação brasileira, a oferta de

ensino de boa qualidade ainda permanece o nosso maior fracasso.

Com efeito, tal como se estabelece no Plano Nacional de Educação

para o decênio em curso (PNE 2014-2024), o principal desafio das

políticas educacionais contemporâneas é transcender os limites

da alfabetização e da universalização do ensino obrigatório, de

modo a promover o efetivo letramento1 da população, tornando-a

preparada ao pleno exercício da cidadania em uma cultura letrada.

1. “Letramento” é aqui empregado para fazer referência ao conceito

psicolinguístico de “literacy” (em inglês) e “literacia” (em português

europeu). Tal termo foi consagrado pelo uso no Brasil e, embora

seja utilizado por diferentes correntes teóricas para denotar um enga-

jamento político e social durante o aprendizado escolar de maneira

global (confira Soares 1986), usamo-lo como referência à capacidade

específica de criar representações linguísticas a partir de textos escritos

de modo a desencadear outras representações cognitivas (inferência,

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Infelizmente, índices internacionais de desempenho na Educação

têm reiterado o fato de que o Brasil está muito longe de alcançar

esse objetivo.

No ranking internacional mais recente sobre desempenho

de estudantes, divulgado em 2016 pela OCDE, o Brasil ocupou

a 59ª posição num conjunto de 70 países. Nessa lista, diversos

fatores concorriam para a melhor ou pior colocação de uma dada

nação, tais como, entre outros itens, a performance de estudantes

em exames de leitura e de matemática (como o PISA) e as taxas de

evasão e de repetência registradas anualmente no respectivo país.

O Brasil obteve resultados muito ruins em todos esses quesitos. Na

verdade, o desempenho brasileiro só foi ligeiramente superior ao

de países mais pobres e menos evoluídos em termos econômicos e

de índice de desenvolvimento. Mesmo países com uma economia

menos complexa do que a brasileira e com menos investimentos

proporcionais em Educação obtiveram melhor desempenho no

ranking da OCDE.

Na tentativa de explicar a razão do fracasso educacional do

Brasil, a variável econômica é a mais apontada por estudiosos da

Educação e a mais explorada em programas políticos educacionais

diversos (confira Programas como Pátria Educadora, Rio Mais

Educação, entre outros). De acordo com esse ponto de vista, a

principal razão para o mau desempenho dos estudantes brasileiros

seria o baixo nível de investimento de recursos públicos em nosso

país. Os gastos com Educação no Brasil seriam, portanto, muito

inferiores ao que investem nessa área os países desenvolvidos

(Europa ocidental, EUA, Canadá e Japão), de cujo desempenho

em rankings internacionais desejamos nos aproximar. No entanto,

interpretações de natureza puramente econômicas parecem não

explicar com perfeição o que se passa com a Educação brasileira.

Senão, vejamos.

tomada de decisão, detecção de (in)congruência etc.) que orientam o

comportamento do indivíduo no mundo físico e social.

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Investimentos na Educação brasileira

A OCDE realizou, no ano de 2013, um estudo sobre os

investimentos com Educação em 44 países – 34 nações ricas e

10 em desenvolvimento, dentre essas últimas, figurava o Brasil.

No período estudado, o Brasil investiu 19% de seus recursos

públicos em Educação, ao passo que, no mesmo período, a média

dos investimentos entre as demais nações da OCDE foi de 13%.

Isso significa que, em média, o Brasil investiu quase 50% a mais

em Educação do que os demais países analisados pela OCDE,

incluindo as nações mais ricas do mundo. Mesmo se pusermos

esse percentual sob perspectiva, considerando uma medida

relativa como o Produto Interno Bruto (PIB) desses países, os

investimentos brasileiros permanecerão acima da medida mundial.

De fato, o Brasil investiu em Educação, no ano de 2013, 6,1%

de seu PIB, índice superior à média de investimento dos demais

países da OCDE, que foi de 5,6% do PIB médio. Em suma, entre

os 44 países estudados pela OCDE, o Brasil destacou-se como

o 4º que mais investe em Educação, considerando-se o total de

despesas públicas e o percentual do PIB investidos na área.

Com efeito, o estudo comparativo feito pela OCDE não

deixou de considerar uma variável fundamental para entendermos

que, no que pesem o total de gastos público e o percentual do

PIB acima da média mundial, os recursos brasileiros destinados

à Educação são ainda insuficientes: o nível de investimento per

capita. No Brasil, havia, em 2013, mais de 62 milhões de alunos

distribuídos entre Educação infantil, ensino fundamental e ensino

médio. No ensino superior, esse número é de cerca de 8 milhões.

Quando consideramos que o PIB brasileiro foi estimado, em 2013

(ano de referência), em U$ 2,3 trilhões, veremos que a distribuição

de 6,1% desse montante entre cerca de 70 milhões de estudantes

redundará numa proporção muito baixa de investimento por

aluno: apenas U$ 3 mil anuais. Para que se faça uma comparação,

devemos considerar que, no mesmo período, a média de

investimento per capita entre os demais países da OCDE foi de U$

9 mil, atingindo mais de U$ 20 mil entre as nações mais ricas. Ou

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seja, apesar de o Brasil ser o 4º colocado no ranking de volume

total do PIB destinado a investimentos em Educação, ocupamos

a 43ª posição na lista de investimentos anuais por aluno – isto

é, somos o segundo país com o pior índice de investimento per

capita em Educação entre as nações da OCDE.2

A desproporção entre, de um lado, os 19% de investimentos

públicos e os 6,1% do PIB destinados à Educação, e, de outro, o baixo

nível de investimento educacional per capita é desconcertante, uma

verdadeira charada para os economistas: o Brasil precisará triplicar

ou quadriplicar o seu PIB a ponto de assegurar investimentos em

Educação (per capita) proporcionais aos países mais desenvolvidos

da OCDE ou, alternativamente, terá de aumentar de maneira

dramática a fatia de seu PIB a ser destinada a investimentos

educacionais – imaginando-se que o PIB não decresça de um

ano para o outro. De qualquer forma, a explicação economicista

parece estar apenas parcialmente correta. Não existem evidências,

a partir dos dados de que dispomos hoje, de que a destinação

de, digamos, 15% do PIB brasileiro à Educação possa assegurar

uma melhoria significativa na qualidade de nosso ensino em médio

prazo. Afinal, conforme argumentamos, os investimentos públicos

são uma dentre diversas outras variáveis que concorrem para o

fracasso educacional de nosso país. As demais variáveis demandam,

da mesma forma, de especial atenção.

Analfabetismo funcional no Brasil

No ano de 2001, a Unesco (Organização das Nações Unidas

para a Educação, a Ciência e a Cultura) estabeleceu um conjunto

2. Além do baixo investimento per capita, a possibilidade de eventuais

desvios de recursos destinados à Educação, no quadro da corrupção

endêmica na administração pública brasileira, não deve ser desconsi-

derada. Não se sabe ao certo quanto a Educação brasileira perde em

função do fator corrupção, de modo que, na realidade, é difícil estimar

se os recursos que chegaram a ser efetivamente liquidados com inves-

timentos em Educação atingem 6,1% de nosso PIB.

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de critérios comportamentais afim de mensurar, em 3 níveis, o

grau de alfabetização funcional de um indivíduo. Tal proposta

vem se revelando um instrumento útil na tarefa de identificar a

efetividade dos processos de letramento entre estudantes, seja em

países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A medição inicia-

se quando uma pessoa já é considerada alfabetizada e, assim,

se habilita a fazer uso funcional relevante de diferentes gêneros

de língua escrita. Os exames de aferição do letramento simulam

situações da vida cotidiana em uma sociedade letrada, nas quais

a interpretação adequada de input escrito é uma condição

fundamental para que o cidadão seja capaz de correlacionar

informações socioculturais e, dessa forma, tome decisões

inteligentes no mundo concreto. De acordo com a Unesco,

sociedade e dirigentes políticos poderão, de posse do diagnóstico

de letramento de sua população, discutir eventuais estratégias de

intervenção e modificação de sua realidade educacional.

TABELA 1 – níveis de alfabetização funcional (confira Unesco 2001).

Nível 1Compreensão apenas de títulos de textos e de frases curtas; dificul-

dades em realizar operações aritméticas básicas.

Nível 2

Compreensão de textos curtos, limitada capacidade de extração de

informações e inabilidade de criar conclusões a respeito do que se

lê; realização de operações aritméticas básicas, mas persistentes

dificuldades com operações matemáticas mais complexas.

Nível 3Pleno domínio da leitura, da escrita, dos números e das operações

matemáticas (das mais básicas às mais complexas).

Nessa escala de alfabetização funcional, o nível 3 é o mais

avançado. Nele encontram-se os indivíduos plenamente letrados,

que são capazes de compreender o texto escrito a ponto de gerar

conclusões e inferências coerentes sobre o conteúdo do que leem.

Em termos psicolinguísticos, o que a Unesco estabelece é que

devem ser consideradas pessoas inteiramente letradas aquelas que

possuem a competência de construir representações linguísticas

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a partir do input escrito e utilizam tais representações para

derivar outras computações mentais não estritamente linguísticas

– como interpretação, ilação, busca de coerência, detecção de

(in)congruência, tomada de decisão, entre outras (confira Traxler

2012).

No nível 2, inicia-se a identificação de indivíduos

funcionalmente analfabetos, isto é, pessoas que, apesar de terem

aprendido a (de)codificar letras e, assim, conseguirem estabelecer

a relação grafema/fonema, são incapazes de fazer uso funcional

pleno dessa habilidade. Trata-se de indivíduos que compreendem

superficialmente textos curtos e estruturalmente simples –

podendo, por exemplo, parafraseá-los linguisticamente –, porém

apresentam limitada capacidade de extração de informações a

respeito do que leem, além de inabilidade em tirar conclusões

e fazer inferências a partir do lido. Diante de input escrito,

analfabetos funcionais do nível 2 se limitam à mera construção de

uma representação linguística, não sendo capazes de relacionar

tal representação com outros conteúdos mentais não linguísticos

(por exemplo, o conhecimento de mundo geral ou específico),

tampouco conseguindo produzir computações cognitivas para

além do conteúdo linguisticamente explícito no texto lido (por

exemplo, ativando pressuposições e acarretamentos, deduzindo

informações ou criando expectativas).

Na escala da Unesco, o nível 1 é o mais extremo do

analfabetismo funcional. Nessa categoria, encontram-se os

indivíduos que compreendem, ainda que com dificuldades,

apenas títulos de textos, como manchetes ou pequenas frases,

mas não conseguem produzir sentido a partir do que leem.

Em termos cognitivos, analfabetos funcionais de nível 1 sequer

conseguem construir representações linguísticas complexas,

como, por exemplo, parágrafos compostos por mais de um

período ou mesmo uma única sentença estruturada em termos

complexos, como orações subordinadas, intercalações e itens

lexicais não cotidianos. Em decorrência dessa severa limitação, um

analfabeto funcional extremo é incapaz de produzir computações

mentais complexas (por exemplo, correlação entre informações,

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identificação de premissas, argumentos e conclusões) a partir de

input escrito.3

Como já mencionado, pesquisas recentes estimam em

cerca 13 milhões o número de analfabetos absolutos no Brasil, o

que significa que 8,3% da população acima de 15 anos de idade

não é capaz de reconhecer as relações elementares entre grafemas

e fonemas (confira Brasil 2014a; INAF 2016). Qual seria, por sua

vez, a extensão do analfabetismo funcional entre os brasileiros?

O IBOPE identificou, em pesquisa de 2003, 68% de

analfabetismo funcional na população brasileira acima de 15

anos de idade – 30% no nível 1 e 38% no nível 2. Nese quadro,

possuiríamos hoje mais de 130 milhões de analfabetos funcionais.

Entretanto, outras pesquisas vêm revelando índices menores

de analfabetismo funcional, tanto no nível 1 quanto no nível 2.

Por exemplo, o IBGE identificou, em 2014, 27% de analfabetos

funcionais na população jovem e adulta. Tamanha disparidade

estatística certamente decorre de diferenças metodológicas na

condução da pesquisa e não de um súbito aumento extraordinário

do letramento da população em apenas uma década.

Diante de dados tão díspares e confusos, torna-se difícil

estimar o real tamanho do analfabetismo funcional no Brasil,

o que não nos impede, no entanto, de supor que a pesquisa

feita pelo IBOPE em 2003 seja a que mais corretamente tenha

se aproximado desse percentual real. Essa suposição é motivada

por pesquisas independentes, que revelam altíssimos níveis de

analfabetismo funcional mesmo entre a população universitária

3. As habilidades cognitivas aferidas nesses 3 níveis dizem respeito exclu-

sivamente ao processamento do input escrito, mas é possível que as

limitações dos analfabetos funcionais também se estendam a estímulos

orais derivados de gêneros da escrita formalizada, como telejornais,

discursos acadêmicos, entre outros. Pesquisas sobre letramento com

estímulos orais cultos formais ou semiformais são ainda uma lacuna

na literatura especializada. Além disso, os dados aqui apresentados se

referem somente à habilidade de compreensão textual. Consideramos

que a demanda cognitiva para a produção de textos imponha ainda

mais limitações aos analfabetos funcionais.

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brasileira. Por exemplo, a Universidade Católica de Brasília,

em pesquisa de desempenho em leitura realizada em 2014,

identificou a existência de 50% de analfabetos funcionais entre

os universitários daquela instituição de ensino (confira PUC-DF

2014). No mesmo ano, o IBGE estimou em 38% de analfabetos

funcionais entre os universitários de todo o território nacional.

Os dados de 2016 do Indicador de Alfabetismo Funcional (NAF)

apontaram que apenas 22% dos universitários brasileiros podem

ser considerados proficientes em habilidades de leitura textual –

o percentual global de proficiência leitora, considerando-se os

ensinos fundamental e médio, atinge apenas 8% da população

escolar.

Um caso de diglossia?

Se o pior cenário dessas estatísticas for a realidade, o

analfabetismo de qualquer grau (total, funcional de nível 1 e 2)

atingirá, no Brasil de hoje, 75% da população. Teríamos, portanto,

150 milhões de brasileiros incapazes de fazer uso social produtivo

de textos escritos. Ou seja, apenas um em cada quatro adolescentes

ou adultos deste país seria capaz de ler e compreender textos de

básica ou média complexidade. Para essa multidão em alguma

medida analfabeta, a escrita do padrão culto formal (ou mesmo a

oralidade culta do mundo letrado) provavelmente assume o caráter

cognitivo de segunda língua, uma verdadeira “língua estrangeira”

em termos lexicais e gramaticais, que precisa ser ensinada (e

aprendida), com uma metodologia adequada, na escola ou em

outras instituições sociais capazes de promover o letramento em

escrita formal padrão.

Conforme sustentaremos a seguir, as diferenças lexicais,

gramaticais e discursivas entre, de um lado, a escrita formal

padrão, em qualquer um de seus diversos gêneros, e, de outro

lado, o vernáculo brasileiro em suas diversas manifestações

socioculturais, fazem com que aprender a ler e a escrever seja

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muito mais do que apenas (de)codificar sua língua materna

usando o alfabeto. Trata-se, na verdade, de uma incursão num

mundo psicolinguístico completamente diferente, cujo domínio é

uma condição necessária ao pleno acesso à cultura letrada e, por

isso mesmo, ao pleno exercício da cidadania.

Uma mente, múltiplas gramáticas

A situação diglóssica entre as diversas modalidades do

vernáculo do PB e a escrita formal padrão da língua podem ser

perfeitamente analisadas a partir da hipótese do Bilinguismo

Universal e da Teoria das Múltiplas Gramáticas. Com efeito,

desde o final dos anos 90, Roeper (1999) vem chamando a

atenção de linguistas para o fato de que todos os falantes de uma

língua natural são, em alguma medida, bilíngues. Essa hipótese,

denominada pelo autor como Bilinguismo Universal, pretende

capturar a realidade de haver, em qualquer língua, conjuntos

de regras gramaticais que se aplicam, de maneira exclusiva,

em diferentes gêneros discursivos e em diferentes modalidades

socioculturais da língua (dialetos, socioletos e registros). Essas

regras, específicas de cada contexto de uso, são, muitas vezes,

excludentes, isto é, são computacionalmente incompatíveis entre

si. Como regras gramaticais incompatíveis não permitiriam a

aquisição de uma língua (imagine-se, por exemplo, como seria

formatado o parâmetro do sujeito nulo numa língua, caso uma

criança recebesse, simultaneamente, input em favor de [+ pro-

drop] e de [– pro-drop]), Roeper assume que a criança, durante

o período crítico em que constrói sua capacidade linguística,

desenvolverá conhecimento relativo a múltiplas gramáticas

paralelas e independentes, de acordo com as diferentes informações

gramaticais que se lhe apresentarem no input linguístico de seu

ambiente sociocultural.

A hipótese das Múltiplas Gramáticas (Roeper 1999; Amaral

e Roeper 2014) também se aplica ao caso do aprendizado de

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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 93

novos gêneros discursivos e de novas modalidades da língua

que são apresentados ao falante já no final da infância, durante a

adolescência ou ao longo de sua vida adulta. De acordo com os

autores, em grande medida, essas novas habilidades linguísticas

não são meramente uma ampliação dos contextos de uso do

vernáculo adquirido pelo indivíduo durante o período crítico.

Antes, trata-se de novos itens lexicais, novas regras gramaticais e

novos gêneros do discurso que devem ser aprendidos pelo falante

e adicionados, em paralelo, ao seu conhecimento linguístico

natural (vernáculo). O falante de uma língua específica, para ser

proficiente nas diversas modalidades socioculturais de seu idioma,

precisará, portanto, desenvolver, em sua competência linguística,

distintas minigramáticas (com regras computacionais exclusivas e

incompatíveis entre si), que serão necessárias para o desempenho

apropriado nos diferentes tipos de estruturas demandadas pelas

variadas modalidades da língua, tanto para a produção quanto

para a compreensão linguística.

As distintas modalidades do vernáculo do PB, em contraste

com os gêneros mais formais da escrita padrão, fazem do falante

letrado brasileiro um caso exemplar de bilinguismo universal

e de múltiplas gramáticas. Além da evidente densidade lexical

que separa falantes letrados de não letrados,4 o português escrito

padrão manifesta propriedades gramaticais incompatíveis e

opostas aos valores paramétricos e computacionais do vernáculo

brasileiro. Por exemplo, (i) o PB vernacular é uma língua orientada

para o discurso, com prominência de tópicos, ao passo que o

padrão escrito se caracteriza como um sistema orientado para

a sentença, com proeminência de sujeitos (confira Pontes 1987;

Negrão 1990.); (ii) o PB vernacular é uma língua pro-drop parcial,

em provável mudança em curso à direção de uma língua não pro-

drop, enquanto o padrão escrito da língua encerra uma língua pro-

drop plena (confira Duarte 1995; Kato 2005); (bi) o PB vernacular

4. De acordo com Gibson (1991), um falante plenamente letrado numa

das línguas europeias modernas pode chegar a dominar 50 mil itens

lexicais, por contraste a típicos 10 mil itens dominados por falantes de

culturas ágrafas e por indivíduos analfabetos.

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é uma língua de fraca concordância verbo-nominal, oposto ao

sistema de concordância forte presente na escrita padrão (confira

Scherre 1993, 1994); (ir) o PB vernacular utiliza pronomes tônicos

ou nulos em função acusativa de terceira pessoa, por contraste à

escrita mais formal, que lança mão de um sistema de clíticos para

tal função (confira Cyrino 1997); (v) o PB vernacular estrutura

o período por meio de relações sintáticas predominantemente

hipotáticas, diferentemente do sistema típico da escrita padrão

formal, que estrutura o período com orações subordinadas de

diversos tipos – substantivas, relativas e adverbiais, essas últimas

com um farto repertório de conectivos com diferentes funções

semânticas, (Oliveira 1998); (vi) o PB vernacular possui um

conjunto de gêneros informais eminentemente orais, enquanto

a escrita padrão é utilizada em diversos gêneros semiformais,

formais, orais ou escritos (confira Kenedy, 2009). Ora, tomadas

fora de contexto sócio-histórico, tais oposições gramaticais (ao

lado de outras não citadas acima) poderiam diferenciar duas

línguas independentes. Nesse caso, o falante que possuísse

competência linguística em ambas as línguas seria caracterizado,

conforme Amaral e Roeper (2014), como um caso de bilinguismo

stricto-sensu, ou bilinguismo clássico.

Se utilizássemos os termos de Chomsky (1986), diríamos

que um falante bilíngue desenvolveu, em sua mente, duas

Línguas-I independentes. Ao caracterizar uma Língua-I, Chomsky

(1986, 1998) assume a existência de um núcleo forte, em que se

encontram os parâmetros formatados, o conjunto de princípios

universais, o léxico e os traços fonológicos, formais e semânticos

que caracterizam a natureza de uma língua específica. Além

disso, Chomsky argumenta que uma Língua-I possui também

uma periferia marcada, em que certos resquícios linguísticos,

vestígios de mudança, variações não resolvidas, regras estilísticas

específicas, itens lexicais marcados, dentre outros fatores, são

armazenados. Nos casos de bilinguismo stricto-sensu, Amaral e

Roeper (2014) assumem que cada Língua-I preservará essa tensão

entre seu núcleo forte e sua periferia marcada.

No caso de indivíduos que se encontram na situação de

bilinguismo universal, ou seja, fora do caso stricto-sensu – que

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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 95

Amaral e Roeper (2014) denominam alternativamente como

Bilinguismo Teórico e Bilinguismo Latente –, isto é, no caso de

indivíduos que precisam lidar com diferentes gramáticas nos

limites do que se convenciona considerar uma mesma língua, o

que se considera é que essas pessoas possuiriam, em sua Língua-I,

uma periferia ampliada, dentro da qual um novo núcleo, na forma

de uma minigramática, seria desenvolvido (confira Kato 2005).

O núcleo desenvolvido dentro da periferia é criado para

dar conta de parâmetros e traços formais que são independentes

e incompatíveis com os valores marcados no núcleo forte. É a esse

núcleo expandido que Roeper (1999) e Amaral e Roeper (2014)

se referem ao usar o termo minigramática. É inclusive possível, de

acordo a proposta dos autores, que mais de uma minigramática

seja cultivada no interior da periferia de uma língua-I, o que

caracterizaria casos de mutilinguismo, em que diversas demandas

linguísticas socioculturais dariam à luz, cada qual, uma gramática

específica.

A partir da teoria das Múltiplas Gramáticas e de sua

articulação com o conceito chomskiano de Língua-I, assumimos

que o processo de letramento no Brasil deverá ser capaz de

ampliar grandemente a competência de um falante nativo de

uma das modalidades vernaculares brasileiras. Isso acontecerá

quando, no interior da periferia marcada em sua competência

linguística, milhares de novos itens lexicais e seus respectivos

traços fonológicos, formais e semânticos forem cultivados a tal

ponto que desencadeiem computações gramaticais e discursivas

inexistentes na gramática nuclear – como concordância, inversões,

sujeitos nulos, estruturação de períodos eminentemente por

subordinação, mecanismos de coesão textuais diversos etc.

Enfrentando o problema: uma proposta com base no modelo D.A.I.

No Grupo de Estudos e Laboratório de Psicolinguística

Experimental da Universidade Federal Fluminense (GEPEX),

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estamos desenvolvendo atualmente um projeto de pesquisa que

pretende investigar a diglossia entre os vernáculos do PB e a

escrita formal padrão em três etapas. Em primeiro lugar, fazemos,

no estágio atual do projeto, uma revisão da literatura acerca das

variedades vernaculares do PB em cotejo com a escrita culta

formal da língua. Nesse primeiro momento, procuramos identificar

os principais fenômenos lexicais, gramaticais e discursivos que

conferem à escrita culta o caráter psicolinguístico de segunda

língua na cognição dos estudantes brasileiros de origem popular.

Até o presente momento, nossos resultados parciais sugerem

que a estruturação do período parece ser a principal diferença

sintático-discursiva que opõe a produção de textos orais e escritos

no vernáculo de estudantes de origem popular e na escrita formal

do padrão culto. Com base na análise de redações do ENEM e

em entrevistas orais com alunos de escolas públicas de periferia

nas cidades de Niterói e São Gonçalo (RJ), nossos achados

preliminares vão ao encontro do que indica Maia (2018, neste

volume). Na produção linguística vernacular, estamos identificando

uma preferência pela parataxe na estruturação do período, com

informações dispostas em sequência linear temporal ou lógica,

conforme o conteúdo dos textos específicos produzidos, na forma

de orações independentes, com poucos casos de subordinação

entre orações. Maia (2018, neste volume) confirmou os achados

de Ribeiro (2017) e verificou que, durante a compreensão de

períodos, estudantes de nível fundamental tendem a realizar

uma leitura não hierárquica da sentença, indicando maior fixação

ocular na primeira oração do período, independente de seu

status informacional, demonstrando assim, em contraste com os

resultados de leitores universitários, dificuldades de identificar,

organizar e interpretar informações estruturadas na forma de

subordinação sintática.

Na segunda etapa do projeto, em parceria institucional com

o Laboratório de Psicolinguística Experimental da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (LAPEX), coordenado pelo prof. Marcus

Maia, pretendemos desenvolver um instrumento avaliativo capaz

de aferir objetivamente o nível de letramento dos estudantes

brasileiros. Isto é, objetivamos, nessa fase, a criação de um conjunto

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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 97

de tarefas de leitura e de produção textuais que serão executadas

em situação laboratorial controlada a fim de avaliar em que

medida o comportamento manifestado pelos estudantes (grupo

experimental) nessas atividades se assemelha ao que se espera

de um indivíduo plenamente letrado (grupo controle), de acordo

com os traços gramaticais e discursivos a serem estabelecidos

na primeira etapa da pesquisa. Com base nos dados a serem

obtidos nas primeira e segunda fases do projeto, será possível

desenvolver a terceira e última etapa da pesquisa: a formulação de

uma gramática pedagógica, cujo objetivo será orientar programas

de ensino de “língua materna”, professores e estudantes quanto ao

aprendizado dos traços linguísticos da língua alvo (escrita culta)

ausentes na língua de origem (vernáculo). Essa última etapa será

desenvolvida em parceria com o prof. Luiz Amaral, da University

of Massachussetts Amherst, que possui grande experiência na

elaboração de gramáticas pedagógicas e no estudo de bilinguismo

em situações diglóssicas.

No decurso de tal pesquisa, diferentes metodologias serão

empregadas. Ao longo das três etapas do trabalho, nosso projeto

será orientado pelo modelo D.A.I. (Description, Assessement and

Itervention – Descrição, Avaliação e Intervenção), que relaciona

descobertas da linguística descritiva e da pesquisa experimental

a programas de letramento para alunos em contextos diglóssicos

(confira Amaral 2016). De acordo com esse modelo, projetos de

ensino de língua estrangeira, inclusive nos casos de diglossia

sob uma mesma língua oficial, devem ser inseridos em uma

ou mais áreas de atuação (descrição, avaliação ou intervenção)

de modo que pesquisadores possam promover a integração de

dados gerados por diferentes abordagens metodológicas. No caso

de nossa pesquisa corrente, os métodos descritivo-etnográfico e

experimental são articulados da seguinte maneira, conforme as

etapas do modelo D.A.I.

1. Descrição (Description). Momento presente, em

que estão sendo elencadas as principais oposições

lexicais, gramaticais e discursivas entre as variedades

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98 edItORA MeRcAdO de letRAS

vernaculares do PB e escrita culta da língua

(sobretudo a escrita formal e a acadêmica, principal

objeto de estudo escolar). Essa etapa assume uma

natureza eminentemente bibliográfica, com consulta

às principais obras de referência sobre a situação de

diglossia brasileira.

2. Avaliação (Assessement). Segundo momento da

pesquisa, em que utilizaremos a técnica experimental

on-line do rastreamento ocular e diferentes paradigmas

de experimentos off-line, como preenchimento

de formulário e índice de acertos em atividades

de leitura (por exemplo, tese de Cloze, testes de

spam de memória a estímulos escritos). Com esta

metodologia experimental, será possível caracterizar o

comportamento do leitor plenamente letrado diante de

estímulos linguísticos escritos previamente controlados

(grupo controle), de tal forma que os dados extraídos

desses leitores possam servir de medida para a aferição

do progresso do letramento de estudantes (grupo

experimental). Uma evidência da utilidade desse tipo

de recurso experimental em projetos dedicadas à

psicolinguística translacional para a Educação pode ser

verificada em Maia (2018, neste volume).

3. Intervenção (Itervention). Terceira e última fase

da pesquisa, na qual formularemos uma gramática

pedagógica que se pretende funcionará como

referência a programas de ensino de língua materna

e seus agentes (escola, professores e estudantes)

a respeito dos aspectos lexicais, gramaticais e

discursivos da língua alvo (português escrito

culto) que assumiremos como fundamentais para

o desenvolvimento de um núcleo expandido na

periferia da Língua-I dos estudantes oriundos da

classe trabalhadora.

Considerando os interesses do presente capítulo e deste

livro em geral, a terceira etapa de desenvolvimento deste projeto

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PSIcOlIngUíStIcA e edUcAçãO 99

se mostra particularmente relevante. Naturalmente, uma gramática

pedagógica não se confunde com uma gramática escolar,

tampouco como uma gramática descritiva. Com efeito, gramáticas

pedagógicas contêm diretrizes para a formulação de materiais

didáticos e para a prática docente em sala de aula, com o objetivo

de promover o aprendizado de certos traços linguísticos da língua

alvo (confira Mesquita e Martos 2009). Elas pautam-se, por um

lado, na correlação entre funções e formas linguísticas, partindo-se

daquelas para chegar-se a estas, e, por outro lado, fundamentam-

se no aprendizado de língua por meio da imersão, conforme

proposta de VanPatten (2007a, 2007b). São precisamente esses

traços fundamentais que tornam tais gramaticais um instrumento

fundamental para o desenvolvimento do bilinguismo latente

necessário para ampliar a competência linguística dos estudantes

brasileiros afluentes das classes populares.

Considerações finais

Num país de proporções tão grandes como o Brasil, a

Educação é atualmente um fracasso apenas relativo, pois, para

50 milhões de brasileiros, o letramento pleno e o sucesso escolar,

seguidos de boas oportunidades na vida social, são garantidos.

Trata-se de um grande contingente de pessoas afortunadas –

número cinco vezes maior do que a população de Portugal e mil

vezes superior ao total populacional de Singapura, país em primeiro

lugar nos rankings mundiais de Educação. O grande desafio para as

políticas públicas e para os profissionais da Educação, no entanto, é

encontrar meios de promover o letramento do demais 150 milhões

de brasileiros. Como dissemos ao longo deste capítulo, são muitas

as causas do fracasso da Educação para a maioria da população

brasileira. Acreditamos que uma das variáveis desse problema tenha

a ver com o tratamento inadequado que é dispensado ao ensino

de língua portuguesa (escrita culta em padrão formal) nas escolas e

nos materiais didáticos nelas mais utilizados.

A elaboração de propostas pedagógicas detalhadas, que

apresentem atividades para a criação dos ambientes de imersão

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100 edItORA MeRcAdO de letRAS

necessários ao desenvolvimento do bilinguismo latente em nosso

país é um grande desafio de trabalho que vem sendo enfrentado

por pesquisadores-educadores do presente. Acreditamos que

essas propostas virão a caracterizar contribuições importantes que

a Psicolinguística tem a oferecer, na prática, à Educação brasileira.

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