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Psicologia Transpessoal Dr. Louis Ricci Psicologia Transpessoal é uma área de estudo, pesquisa e prática na psicologia que envolve uma visão integrada do ser humano e suas potencialidades. O ser humano é visto como um ser multidimensional e a consideração de todas essas dimensões e suas interações é importante para a compreensão do ser humano e para facilitar seus processos de crescimento psicológico e de saúde e cura. A Psicologia Transpessoal respeita e aproveita do conhecimento derivado de todas as outras linhas de psicologia e expande esse conhecimento para incluir a compreensão das mais altas potencialidades do ser humano. Suas áreas de estudo e intervenção podem ser organizadas em três temas principais: 1) a evolução de consciência, 2) a transcendência de egoísmo e 3) espiritualidade. A Visão Integrada e Multidimensional A psicologia, como uma ciência e uma área de intervenção, é vista na sua totalidade como um conjunto de abordagens e linhas teóricas que geralmente são pouco integradas entre si. Proponentes dessas linhas, como, por exemplo, psicanálise, behaviorismo, humanismo, existencialismo, cognitivismo, dentre outras, frequentemente insistem na importância de sua própria perspectiva e menosprezam as outras. Na melhor das propostas, uma pessoa de uma linha reconhece a existência das outras perspectivas, mas não faz nenhum esforço para considerar os conceitos das outras linhas e integrá-los com sua maneira de ver o mundo psicológico. Mais tipicamente, o psicólogo identificado com sua própria linha, ativamente se coloca contra a possibilidade de haver integração entre as linhas psicológicas. Ele afirma, às vezes, a “impossibilidade” de sintetizar as perspectivas, alegando que elas derivam de bases epistemológicas diferentes. O aluno de psicologia é encorajado a escolher entre as linhas e, depois de fazer essa escolha, a se manter dentro da perspectiva sem considerar as possibilidades de diálogo profundo entre as linhas teóricas. A perspectiva integrativa, ou eclética, é considerada inferior por representar uma visão generalista que não permite o aprofundamento de nenhuma teoria, resultando num ponto de vista superficial sobre a psicologia do ser humano. Essa situação é uma conseqüência da fase atual do desenvolvimento da psicologia como uma ciência. É difícil identificar algum conceito sobre a psicologia do ser humano que seja compartilhado por todos os psicólogos. Isso é diferente de ciências como física, química, biologia, onde a maioria dos conceitos é compartilhada entre todos os cientistas da mesma profissão e as discordâncias que existem se encontram nas fronteiras do conhecimento da determinada área. Assim, a psicologia, como uma ciência, está numa fase pré-paradigmática. Não existe, no contexto da prática mais típica da psicologia, nenhum paradigma que unifique suas diversas áreas e linhas teóricas. Um paradigma psicológico unificador é uma das contribuições importantes da Psicologia Transpessoal. O ser humano é visto com um ser multidimensional. Todas suas dimensões são importantes e, nos níveis mais profundos, aspectos da mesma realidade. Pensando nessa forma, a integração entre as dimensões não somente é possível, é uma conseqüência da verdadeira natureza da realidade. Não precisamos fazer esforço para integrar as dimensões porque elas já são, na realidade, integradas. O que importa é nossa motivação e intenção para perceber a unidade entre essas dimensões. A aplicação dessa perspectiva para a diversidade de linhas teóricas na psicologia é libertadora, no sentido de superar as fronteiras que foram criadas para insistir na separação e brigas entre perspectivas. Na perspectiva transpessoal, não há nenhuma dificuldade em respeitar as diversas linhas e transitar entre elas. O psicólogo transpessoal verdadeiro entende que o ser humano, por exemplo, possui aspectos inconscientes, mecanismos de defesa e é motivado pelas pulsões de sexo/vida e agressão/morte (conceitos psicanalíticos), é um produto

Psicologia Transpessoal - Louis Ricci

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Psicologia Transpessoal

Dr. Louis Ricci

Psicologia Transpessoal é uma área de estudo, pesquisa e prática na psicologia que envolve uma visão integrada do ser humano e suas potencialidades. O ser humano é visto como um ser multidimensional e a consideração de todas essas dimensões e suas interações é importante para a compreensão do ser humano e para facilitar seus processos de crescimento psicológico e de saúde e cura.

A Psicologia Transpessoal respeita e aproveita do conhecimento derivado de todas as outras linhas de psicologia e expande esse conhecimento para incluir a compreensão das mais altas potencialidades do ser humano. Suas áreas de estudo e intervenção podem ser organizadas em três temas principais: 1) a evolução de consciência, 2) a transcendência de egoísmo e 3) espiritualidade.

A Visão Integrada e Multidimensional

A psicologia, como uma ciência e uma área de intervenção, é vista na sua totalidade como um conjunto de abordagens e linhas teóricas que geralmente são pouco integradas entre si. Proponentes dessas linhas, como, por exemplo, psicanálise, behaviorismo, humanismo, existencialismo, cognitivismo, dentre outras, frequentemente insistem na importância de sua própria perspectiva e menosprezam as outras. Na melhor das propostas, uma pessoa de uma linha reconhece a existência das outras perspectivas, mas não faz nenhum esforço para considerar os conceitos das outras linhas e integrá-los com sua maneira de ver o mundo psicológico.

Mais tipicamente, o psicólogo identificado com sua própria linha, ativamente se coloca contra a possibilidade de haver integração entre as linhas psicológicas. Ele afirma, às vezes, a “impossibilidade” de sintetizar as perspectivas, alegando que elas derivam de bases epistemológicas diferentes. O aluno de psicologia é encorajado a escolher entre as linhas e, depois de fazer essa escolha, a se manter dentro da perspectiva sem considerar as possibilidades de diálogo profundo entre as linhas teóricas. A perspectiva integrativa, ou eclética, é considerada inferior por representar uma visão generalista que não permite o aprofundamento de nenhuma teoria, resultando num ponto de vista superficial sobre a psicologia do ser humano.

Essa situação é uma conseqüência da fase atual do desenvolvimento da psicologia como uma ciência. É difícil identificar algum conceito sobre a psicologia do ser humano que seja compartilhado por todos os psicólogos. Isso é diferente de ciências como física, química, biologia, onde a maioria dos conceitos é compartilhada entre todos os cientistas da mesma profissão e as discordâncias que existem se encontram nas fronteiras do conhecimento da determinada área. Assim, a psicologia, como uma ciência, está numa fase pré-paradigmática. Não existe, no contexto da prática mais típica da psicologia, nenhum paradigma que unifique suas diversas áreas e linhas teóricas.

Um paradigma psicológico unificador é uma das contribuições importantes da Psicologia Transpessoal. O ser humano é visto com um ser multidimensional. Todas suas dimensões são importantes e, nos níveis mais profundos, aspectos da mesma realidade. Pensando nessa forma, a integração entre as dimensões não somente é possível, é uma conseqüência da verdadeira natureza da realidade. Não precisamos fazer esforço para integrar as dimensões porque elas já são, na realidade, integradas. O que importa é nossa motivação e intenção para perceber a unidade entre essas dimensões.

A aplicação dessa perspectiva para a diversidade de linhas teóricas na psicologia é libertadora, no sentido de superar as fronteiras que foram criadas para insistir na separação e brigas entre perspectivas. Na perspectiva transpessoal, não há nenhuma dificuldade em respeitar as diversas linhas e transitar entre elas. O psicólogo transpessoal verdadeiro entende que o ser humano, por exemplo, possui aspectos inconscientes, mecanismos de defesa e é motivado pelas pulsões de sexo/vida e agressão/morte (conceitos psicanalíticos), é um produto

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dos condicionamentos respondente e operante (conceitos behavioristas), é motivado pela realização do sentido da vida (conceito existencialista) e pela auto-realização (conceito humanista). Os níveis biológicos, emocionais e cognitivos são todos aspectos do ser humano e assim, todos importantes.

Para entender o ser humano, é essencial considerar todos esses níveis (e outros) em sua interação, justamente porque todos esses níveis existem e têm sua importância. A insistência de “encaixar” o ser humano em somente um nível ou linha teórica é vista, da perspectiva transpessoal, como algo que dificulta a compreensão em sua totalidade. O psicólogo transpessoal que entenda esta visão integrada, no sentido de ajudar seu cliente, realiza suas intervenções nos níveis que são necessários para facilitar o crescimento da pessoa. Tendo amplo conhecimento sobre as teorias e práticas associadas com as diversas linhas, ele as aplica baseado nas necessidades do cliente.

Na visão multidimensional inerente à perspectiva transpessoal, os níveis ou dimensões considerados são mais amplos que os níveis contemplados pelo conjunto de linhas teóricas tradicionalmente associadas à psicologia. O prefixo, “trans”, na palavra “transpessoal”, significa que esta abordagem trata de assuntos psicológicos que se estendem além das considerações “pessoais” que formam a unidade de análise básica em psicologia: a pessoa é geralmente definida pelos limites físicos do seu corpo e/ou os limites conceituais da sua personalidade. A Psicologia Transpessoal, com sua consideração das possibilidades da evolução de consciência para níveis que transcendem o egoísmo, abraça a questão de espiritualidade e assim, as possibilidades energéticas e espirituais que implicam na expansão das fronteiras do indivíduo para se identificar com instâncias coletivas cada vez mais amplas e, em última instância, com a totalidade da existência.

As conceituações sobre a visão multidimensional, dos pensadores que podem ser considerados transpessoais, variam em seus detalhes, mas se resumem à consideração do ser humano em termos de cinco níveis, “corpos” ou dimensões. Essas dimensões coexistem e têm níveis de freqüência diferentes.

A dimensão com nível de freqüência mais baixo é a dimensão física que inclui o corpo material do ser humano. A próxima dimensão, com nível de freqüência mais alto, é o corpo energético. Este é o corpo descrito na Medicina Chinesa Tradicional através do sistema de meridianos e no sistema de ioga através dos sete principais centros de energia ou chacras e os outros canais de energia: o ida, pingala, sushuma e os nadis. O próximo nível de freqüência é o campo ou corpo emocional ou astral, seguido pelo campo ou corpo mental (pensamentos), e nos níveis mais altos de freqüência, os campos ou corpos espirituais.

A compreensão do ser humano na Psicologia Transpessoal em sua totalidade envolve o entendimento de todos esses níveis e suas interações. Raízes

As raízes mais profundas da Psicologia Transpessoal se encontram nos grandes caminhos de consciência milenares que enfatizam as práticas importantes para a experiência espiritual. Esses caminhos podem ser considerados “místicos”, por enfatizarem a experiência subjetiva e assim diferentes de religiões que enfatizam o seguimento de doutrinas. O grande mestre espiritual cristão, Stylianos Atteshlis, comparou a experiência mística de espiritualidade com a tentativa de descrever o gosto de sal para alguém. È impossível descrever o gosto de sal para alguém – uma pessoa conhece tal gosto somente através da experiência de colocar o sal em sua língua. A verdadeira espiritualidade é também assim: é a experiência que importa e não a repetição de doutrina. O processo de se abrir para essa experiência é um processo interno e necessariamente psicológico e os caminhos de consciência desenvolveram filosofias e técnicas para facilitar esse processo.

Nos Vedas, os textos antigos do Hinduismo, alguns escritos quatro mil anos antes de Jesus Cristo, encontramos uma profunda psicologia que inclui o inconsciente (e os acadêmicos ocidentais afirmam que Sigmund Freud “descobriu” o inconsciente!) e a superconsciência, ou

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seja, as possibilidades de estados avançados de consciência. Nesses textos, também são descritos métodos sofisticados para fazer o trabalho interno psicológico necessário para atingir esses estados. Durante os últimos cinco mil anos na Índia, inúmeros mestres espirituais (gurus) e “escolas” continuam a elaborar os conceitos e a tecnologia envolvida com a evolução de consciência, a transcendência de egoísmo e a espiritualidade. Uma das ramificações mais psicológicas da ioga, por exemplo, a Raja Ioga, descreve uma sequência de oito passos, envolvendo comportamentos, atitudes, postura física, respiração, atenção interna, concentração e meditação para alcançar os estados de iluminação (samadhi).

Na prática profunda do budismo, por exemplo, nos caminhos tibetano e zen, observamos, de novo, uma profunda psicologia de como fazer o trabalho interior necessário para evoluir aos estados mais profundos de consciência. A própria vida de Gautama, o Buda, é um grande exemplo das atitudes e processos meditativos que facilitam os estados avançados de consciência. Na ala mística do islamismo, o sufismo, observamos também profundas tecnologias para facilitar a experiência espiritual.

Encontramos no cristianismo, caminhos místicos ou esotéricos que não enfatizam o seguimento de doutrinas e sim o processo de transformação psicológico para se abrir à experiência espiritual. De forma semelhante, em muitas tradições indígenas e xamanistas, encontramos profundas metodologias para facilitar outros estados de consciência e a evolução espiritual em geral.

Esses exemplos ilustram alguns caminhos de consciência que podem ser considerados como as raízes profundas da Psicologia Transpessoal. Nesta, observamos o encontro entre a sabedoria milenar associada a esses caminhos e à psicologia moderna.

Influências dentro da Psicologia

Na psicologia ocidental, antes do uso do termo Psicologia Transpessoal, houve várias pessoas cujas abordagens trataram de assuntos transpessoais. O psiquiatra progressivo canadense, Richard Bucke, teve uma experiência mística de consciência avançada, que mudou sua vida, em 1872. Ele se dedicou ao estudo desses estados, que ele chamou de consciência cósmica e, em 1901, publicou um livro famoso, Consciência Cósmica: um Estudo na Evolução da Mente, no qual descreveu sua experiência de consciência cósmica, assim como as de várias outras pessoas famosas e não famosas e apresentou sua teoria sobre a evolução de consciência.

O psicólogo pragmático norte-americano, William James, estudou as experiências místicas durante sua vida, até pessoalmente experimentando o uso de peyote e outras substâncias psicoativas e enfatizava a importância das experiências “religiosas” e místicas para entender a psicologia do ser humano e suas possibilidades de consciência. No seu livro, As Variedades de Experiências Religiosas: Um Estudo Sobre a Natureza Humana, publicado em 1902, ele analisou essas experiências e chamou atenção à importância do seu estudo científico.

O psiquiatra italiano, Roberto Assagioli, que era um discípulo de Freud, criou uma abordagem, Psicosíntese, que integrou a espiritualidade com uma visão total da psique humana. Sua teoria apresenta uma espécie de mapa sobre as características de consciência importantes para a síntese de um ser humano completo, incluindo as possibilidades de consciência mais avançadas como o inconsciente superior, o eu superior e o inconsciente coletivo.

A Psicologia Analítica, inicialmente criada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, enfatiza a importância, dentre outras coisas, do estudo de religião e mitologia para aprofundar a natureza da psique. Suas áreas de estudo incluíam as filosofias orientais, a alquimia e a astrologia. Seus conceitos do Self, arquétipos, inconsciente coletivo e sincronicidade expandiram a visão sobre as fronteiras que supostamente delimitam a pessoa e abordam questões transpessoais, assim construindo uma ponte importante para a atual Psicologia Transpessoal.

O termo, Psicologia Transpessoal, surgiu no final da década de 1960. A primeira pessoa que formalmente usou este termo foi o psicólogo Abraham Maslow, uma das duas figuras principais, junto com Carl Rogers, associados historicamente ao desenvolvimento da Psicologia

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Humanista. A Psicologia Humanista enfatiza o processo de auto-atualização como a força motivadora principal do ser humano. Auto-atualização se refere ao impulso para se realizar ao máximo, ou seja, crescer no sentido de plenamente realizar todas as suas potencialidades. Na busca do autoconhecimento necessário para auto-atualizar, é natural encontrar o que Maslow chamava das “mais altas possibilidades da natureza humana” e assim abordar os temas de evolução de consciência, transcendência de egoísmo e espiritualidade que são os temas principais da Psicologia Transpessoal. Observamos a mesma evolução de pensamento com Carl Rogers, que no seu crescimento pessoal, progressivamente enfatizava conceitos transpessoais em seu trabalho e nas suas obras.

O Contexto Cultural e a Mudança de Paradigma

O movimento de Psicologia Transpessoal, como uma área formalmente definida dentro da psicologia, começou no final da década de 1960 que, de certa forma, refletiu certas tendências no sentido de questionar as conseqüências sociais do egoísmo e abrir para caminhos mais humanos, amorosos e espirituais. A década de 1960 evidenciou uma explosão de interesse sobre as possibilidades de consciência.

Primeiro, observamos um salto quântico no interesse sobre as filosofias espirituais orientais e xamânicas. A diáspora de mestres do budismo tibetano, provocada pelo massacre dos tibetanos pelos chineses na década de 1950, junto com o aumento da presença de outros gurus e mestres orientais no ocidente, estimulou o interesse inédito pelas práticas e filosofias sobre a que tratavam da evolução de consciência e espiritualidade.

O uso de maconha e de drogas psicodélicas, em relativamente grande escala, indicava para muitas pessoas que existiam outras possibilidades de consciência que envolviam uma visão mais ampla e mais amorosa do ser humano e seu mundo. O estudo formal, acadêmico e científico dos estados de consciência provocados pelas drogas psicodélicas, pelos psicólogos Timothy Leary e Richard Alpert na Universidade de Harvard e pelo psiquiatra checo, Stanislav Grof, foram as primeiras pesquisas formais na área. Essas pesquisas funcionaram como pontes para as subseqüentes, que investigarm as possibilidades de consciência observadas em pessoas sem o uso de drogas e, muitas vezes, associadas com as práticas e técnicas de evolução de consciência que foram derivadas dos caminhos de consciência que podem ser consideradas as raízes da Psicologia Transpessoal. Assim nos deparamos hoje com um grande volume de pesquisas sobre os efeitos de meditação e ioga, as características fisiológicas e psicológicas de pessoas consideradas com consciência avançada, as características dos estados avançados e as possibilidades associadas com as características não locais da mente que estão envolvidas com os fenômenos parapsicológicos.

Os avanços na área da física quântica no último século estão contribuindo ao processo de mudança do paradigma científico que está acontecendo, aos poucos, em muitas áreas de estudo, incluindo a psicologia. Como o físico indiano, Amit Goswani, demonstra em suas várias obras, diversas descobertas na física quântica sustentam a formulação teórica e filosófica encontrada nos ensinamentos de vários caminhos de consciência milenares, no que diz respeito à relação entre consciência e o mundo físico. A descoberta que a luz tem uma natureza dual é um exemplo. No seu nível mais básico, a luz às vezes demonstra características consistentes com sua natureza como onda e, outras vezes, comporta-se como se fosse constituída por partículas. Ela nunca demonstra esses dois tipos de características ao mesmo momento de observação e a natureza observada depende da maneira de que a observação é feita, ou, nas palavras de Goswami, depende da consciência do observador.

Albert Einstein fez a descoberta matemática sobre a transferência intercambiável entre massa e energia, expressa em sua famosa equação, E = mc2, que indica que a quantidade de energia contida num determinado objeto físico é igual à massa do objeto multiplicada pela velocidade de luz ao quadrado. As outras descobertas no último século que elaboraram essa noção indicam que uma partícula no mundo subatômico, quando não observada, não existe de forma física, mas existe como um padrão de probabilidade de energia ou ondas. No momento exato da observação, esse padrão energético ou onda se desfaz e a partícula aparece num lugar

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imprevisível. De novo, é o processo de fazer a observação, ou a consciência, que determina a realidade no mundo físico.

Em 1986, o físico francês, Alain Aspect, fez um experimento que comprovou o teorema matemático de Bell, sobre um fenômeno conhecido como não localidade. Existem certos tipos de partículas sub-nucleares que existem em duplo, com características emparelhadas: quando muda a característica de uma, por exemplo, o ângulo do seu eixo, a característica muda da mesma forma na outra partícula do duplo. O teorema de Bell afirma, e o experimento de Aspect comprovou, que esse emparelhamento não depende da distância que separa as partículas e que a influência de uma sobre a outra é instantânea, ou seja, mais rápida que a velocidade de luz. Os resultados do experimento de Aspect já foram replicados em vários outros laboratórios.

Os fatos que demonstram a influência de observações e da consciência na realidade física do mundo subatômico e a existência de fenômenos não locais, mostram os problemas do paradigma científico ainda vigente que, devido às influências de Renee Descartes e Isaac Newton, é frequentemente conhecido como o Paradigma Cartesiano-Newtoniano. Esse paradigma se baseia no conceito que o mundo e o ser humano devem ser estudados como máquinas: para entender o mundo, é necessário separá-lo em seus componentes. Qualquer compreensão das totalidades dos objetos de estudo científico acontece somente através da percepção das relações lógicas entre os fragmentos que os compõem. Junto com o mecanicismo, fragmentação e racionalidade envolvidos nessa visão sobre a realidade e sobre a ciência, encontra-se um forte empirismo, ou seja, a insistência que a única realidade verdadeira é aquela que pode ser percebida pelos cinco sentidos típicos, às vezes estendidos pelo uso de instrumentos e aparelhos.

A física quântica nos mostra que a realidade observada não pode ser explicada somente através de relações racionais entre componentes observáveis e através de percepções no nível dos cinco sentidos. As partículas observadas nem existem antes que se façam as observações. Suas posições e velocidades não podem ser determinadas e previstas simultaneamente – algo contrário à física clássica de Newton, que se baseia nas previsões exatas e racionais de movimento que podem ser feitas quando se sabe as massas e as velocidades dos objetos – o que nos mostra as falhas da perspectiva mecanicista. O fato da não localidade também indica que há interligações entre objetos e eventos que não são perceptíveis.

A mudança paradigmática também está acontecendo em outras áreas científicas, como medicina, biologia e economia. A mais clara manifestação desse novo paradigma em psicologia se encontra na área da Psicologia Transpessoal, onde as conseqüências do estudo das possibilidades de consciência e a abertura à consideração de questões espirituais naturalmente evocam uma ampliação de pensamento além das limitações do paradigma cartesiano/newtoniano. È importante ressaltar que, numa mudança paradigmática como esta, o novo paradigma não rejeita o antigo, mas o amplia Em física, por exemplo, o novo paradigma não rejeita e sim inclui as leis da física clássica (Newton) que explicam bem o movimento de objetos de certos tamanhos. Em psicologia, o novo paradigma também não rejeita as linhas tradicionais de pensamento psicológico, mas possibilita uma expansão para uma visão que possibilita a compreensão de assuntos que são tipicamente excluídos por causa das restrições do paradigma antigo.

Paralela e juntamente a essa mudança paradigmática, observamos, em psicologia, a partir da década de 1950, um aumento no pensamento sistêmico, refletido primeiro pelo movimento de terapia de família e depois pelo movimento de Psicologia Comunitária que começou na década de 1960. Na perspectiva sistêmica, é importante entender sistemas como totalidades e não simplesmente como a soma de suas partes componentes. Nessa perspectiva, os problemas de um indivíduo não podem ser entendidos somente em relação a seus processos internos psicológicos, mas, para ter uma compreensão mais ampla, precisam ser entendidos no contexto dos sistemas nos quais ele faz parte. Assim, problemas e “patologias” individuais podem ser vistos como sintomas de problemas no sistema maior, seja ele a família, a comunidade, a cultura ou a sociedade. A perspectiva sistêmica não nega os processos internos

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dos indivíduos e expande a compreensão para entender o indivíduo no contexto dos seus sistemas que têm seus próprios processos, dinâmicas e padrões.

A perspectiva sistêmica aplicada às questões de saúde, doença e cura é conhecida como a perspectiva holística. Na perspectiva holística em medicina, a ênfase não está no ataque e na eliminação dos sintomas, mas na compreensão da totalidade do corpo como um sistema no contexto de outros sistemas. O sintoma é visto como uma conseqüência de desequilíbrios nos padrões do funcionamento das interações de todos os órgãos e sistemas do corpo. Para tratar o sintoma mais profundamente, é importante ajudar o corpo inteiro a voltar para o estado de saúde e não simplesmente aliviar o sintoma com medicamento, cirurgia ou irradiação, como é típico na medicina alopática. O alívio do sintoma sem abordar as desarmonias sistêmicas que o produzem não resultará na sua eliminação permanente, e caso o sintoma específico seja eliminado, o desequilíbrio pode continuar a se manifestar como sintomas em outras partes do corpo.

A perspectiva ecológica é a aplicação da perspectiva sistêmica às questões sociais e ambientais. A segunda metade do século vinte trouxe um aumento de consciência sobre o que pode ser considerado como uma crise mundial. Observamos o progressivo gasto dos recursos naturais do planeta e o aumento constante dos níveis de poluição em nosso ar, nossa água, nossos rios, oceanos e na terra. Temos níveis inéditos de injustiça social, com o poder e riqueza concentrado mais e mais nas mãos de menos e menos pessoas. Os níveis de violência estão aumentando como resultado não somente da injustiça social, mas também de nossas identificações como países, religiões ou grupo étnicos percebidos como separados. Na perspectiva ecológica, esses problemas nunca serão resolvidos com o mesmo tipo de pensamento fragmentado e individualista que os criam. É importante uma visão que respeite a totalidade das interações entre todos os sistemas humanos e não humanos do planeta e até do universo.

Assim, a Psicologia Transpessoal cresceu como uma alternativa integrativa dentro da psicologia e cresceu paralelamente a várias tendências sociais paradigmáticas que enfatizam a compreensão não fragmentada do ser humano em seu contexto e em todos os níveis ou dimensões.

Evolução de Consciência

Um dos temas principais na Psicologia Transpessoal é o estudo das possibilidades envolvidas com a evolução de consciência e dos processos que podem facilitar essa evolução. Um dos primeiros psicólogos que aprofundou essa área de estudo foi o psicólogo humanista, Abraham Maslow. Ele reclamou que a psicologia típica era baseada no estudo de patologias (psicanálise) ou animais (behaviorismo) e afirmava a necessidade de uma psicologia que estudasse as mais altas potencialidades do ser humano. No estudo de pessoas que ele considerou como “auto-atualizadas”, observou que todas elas tinham experiências de estados exaltados de consciência, os quais ele chamava de experiências culminantes (peak experiences).

Os psicólogos Timothy Leary e Richard Alpert e também o psiquiatra Stanislav Grof se interresavam pelo estudo desses estados alterados de consciência através de pesquisas sobre as modificações de consciência provocadas pelo uso de drogas psicodélicas. Ambos Alpert e Grof abandonaram o uso dessas drogas em seus estudos, quando descobriram que esses estados avançados de consciência podiam ser facilitados por processos naturais. Alpert foi para Índia e se envolveu com ioga e meditação e Grof desenvolveu um processo que integra relaxamento com exercícios de respiração, chamado a respiração holotrópica.

O interesse inicial nesses estados transitórios de consciência avançada expandiu-se para considerar as possibilidades de desenvolvimento psicológico no sentido de evoluir para níveis de consciência não transitórios, ou seja, permanentes ou duradouros. Essa consideração foi energizada pelo estudo dos caminhos de consciência do oriente, do cristianismo místico e das linhas xamânicas, onde os mestres, gurus e xamãs atingem níveis de evolução de consciência que são muito diferentes e considerados muito mais amplos ou avançados do que nosso estado de consciência ordinária.

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Esses níveis de consciência são caracterizados pela experiência de expansão do senso de nossas fronteiras, além de nossa identificação com nossos corpos físicos ou com nossas personalidades. A expansão das fronteiras leva a pessoa à experiência com um progressivo senso de unidade com tudo que existe. Junto com essa unidade, a pessoa não somente sente muito amor, como sente que sua natureza profunda é amor puro. A mudança de fronteiras acontece também em relação ao tempo: a percepção de tempo muda da concepção típica de linearidade, como a seqüência de passado, presente e futuro, para uma experiência não linear com o passado e o futuro incluídos no momento presente.

A experiência nesses níveis avançados de consciência é acompanhada pelo profundo senso de harmonia entre todos os seres e todas as coisas do universo e uma clareza firme sobre o sentido de todos os eventos e situações da vida. A pessoa que atinge esses níveis de consciência lida com os desafios da vida com eficácia, sabedoria e compaixão por todos – até para as pessoas que desejam machucá-la ou atrapalhar sua vida. Essas pessoas dedicam suas vidas para o bem-estar e para a evolução de consciência de todos os seres.

Frequentemente, esses estados de consciência envolvem capacidades telepáticas tanto de perceber os pensamentos, emoções e intenções alheios, como de influenciar os pensamentos e a experiência interna das outras pessoas e até influenciar o movimento de objetos físicos. Capacidades para facilitar e, às vezes, realizar curas nos outros são notadas frequentemente. A percepção sobre o que acontecerá no futuro é comum, bem como a capacidade de perceber clarividentemente o que aconteceu no passado.

Um crescente volume de pesquisas está sendo realizado em institutos internacionais, verificando a existência dessas capacidades. A maioria dos pesquisadores nessas áreas já considera a quantidade e qualidade dessas pesquisas suficientes para comprovar a existência desses fenômenos e capacidades. O esforço científico atual está orientado não à sua comprovação, mas às questões relacionadas ao estudo de como esses fenômenos funcionam. É importante ressaltar que as pessoas consideradas como mestres espirituais verdadeiros não enfatizam essas capacidades ou “poderes” que são incidentais ao processo de evolução de consciência, e sim a característica principal desta: a transcendência do egoísmo. Às vezes, pessoas no caminho da evolução de consciência, depois de conseguirem algumas dessas capacidades, ficam viciadas nos poderes e nos seus efeitos de uma maneira egoísta e se desviam do caminho de evolução mais profunda.

Na prática da Psicologia Transpessoal, o objetivo principal das intervenções psicológicas é facilitar o processo de evolução de consciência. Essa evolução acontece na medida em que nos identificamos com nossa natureza verdadeira mais profunda e paramos de nos identificar, exclusivamente, com nossos corpos físicos e com nossas personalidades (os corpos ou dimensões físicas, mentais e emocionais). Esse alinhamento com nossa essência, ou alma e espírito é a fonte de todo processo de cura. Encontramos as técnicas e práticas mais profundas, orientadas a facilitar esse processo de evolução de consciência, nos grandes caminhos de consciência, cujas práticas estão baseadas em milhares de anos de experiência e estudo disciplinado. O Psicólogo Transpessoal tem experiência pessoal com essas práticas e procura integrá-las, não somente em sua vida, mas com seu conhecimento sobre as outras linhas de psicologia e com sua prática de psicologia, em geral.

Fundamental a todas essas práticas é o processo meditativo, que é a base de todas as tecnologias associadas com os caminhos de consciência milenares. O processo meditativo envolve a intenção de testemunhar nossos processos internos, cada vez mais profundamente, sem nenhum julgamento. Entendendo que nossos auto-julgamentos dificultam o processo de perceber nossas características que consideramos negativas, a suspensão de nossos julgamentos é essencial para os processos de auto-observação e autoconhecimento. Quando observamos o fluxo de nossos processos psicológicos – os pensamentos e emoções que passam pelo nosso campo de consciência – aprendemos a nos identificar com um “lugar” mais profundo, dentro de nós, de onde podemos observá-los. Assim, acontece uma mudança em nossas identificações e em nossa auto--percepção. Aprendemos que não somos nossos pensamentos e emoções e desidentificados com eles, conseguimos ser menos controlados por eles e nossa capacidade de escolher outras

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atitudes e posturas emocionais aumenta. Também compreendemos que somos “algo” mais profundo que os pensamentos e emoções que compõem nossas personalidades e aprofundamos a busca de nossa essência, assim progredindo no caminho de evolução de consciência.

Transcendência de Egoísmo

A marca principal do todos os grandes caminhos de consciência que trabalham a evolução de consciência é a abertura para a experiência de verdadeira espiritualidade (e não somente religiosidade) é a apreciação da importância do processo da transcendência do egoísmo. Sem transcender o egoísmo, é impossível progredir até os níveis mais avançados de consciência e sem transcender o egoísmo, é impossível expandir as fronteiras de nossa auto-identificação e sentir nossa unidade com toda a existência. Assim, a auto-transcendência, imprescindível para a expansão de consciência e a evolução de espiritualidade, é um dos temas principais que guia a prática de Psicologia Transpessoal.

Na psicologia ocidental, a questão do ego é muito discutida, principalmente nas várias versões da linha psicanalítica. Em termos gerais, o ego é o mediador entre os impulsos instituais do id e os demandas e normas culturais, que são internalizadas no superego. As pessoas com os impulsos do id descontrolados seriam consideradas patológicas, bem como as pessoas com energia instintual totalmente dominada pelas normas culturais, representadas pelo superego. Por causa de sua importância em equilibrar esses dois extremos, a psicologia ocidental, de uma maneira ou outra, dependendo da linha teórica, procura, com suas intervenções, fortalecer e aperfeiçoar o ego.

Os caminhos de consciência e a Psicologia Transpessoal não negam a importância de um ego com capacidades para lidar eficiente e criativamente com os desafios da vida, mas admitem as possibilidades de estados de consciência nos quais a pessoa transcende totalmente seus interesses pessoais e sua auto-importância e dedica todos os seus pensamentos, comunicações e comportamentos para maximizar o bem-estar de todos. Para a maioria de nós, isso é um conceito estranho porque vemos o individualismo ou coletivismo de uma maneira dualista. Parece, de nosso estado de consciência ordinária, que nossos interesses individualistas estão necessariamente em conflito com o bem-estar do coletivo.

Com a ampliação das fronteiras de nossa consciência, mudamos nossa identificação para incluir instâncias cada vez mais amplas e, em última instância, para sentir nossa unidade com a totalidade. Na perspectiva desse estado de consciência, não existe mais o dualismo: nossos interesses pessoais são totalmente alinhados com o bem-estar da totalidade. Isso é a marca de todos os caminhos de consciência verdadeiros e da espiritualidade profundamente verdadeira: as pessoas visam transcender seu egoísmo.

A Psicologia Transpessoal estuda os processos psicológicos envolvidos no processo de transcender o egoísmo e as práticas e intervenções que possam facilitar esse processo. O processo de superar nosso egoísmo é um processo psicológico profundo que envolve verdadeira transformação. Nessa perspectiva, não é suficiente enfatizar que a preocupação com o bem-estar da outra é uma obrigação moral, como fazem as pessoas que se acham religiosas. Precisamos entender como o individualismo e o egoísmo são construídos historicamente, socialmente, culturalmente e economicamente e como esses processos são internalizados psicologicamente. Estudando e entendendo assim as bases psicológicas do egoísmo, podemos também estudar como interferir nesses processos e como intervir para ajudar o ser humano a expandir sua consciência além de sua auto-identificação, auto-importância e egoísmo e realmente se dedicar para o bem-estar da totalidade.

Assim, contrário a algumas representações sobre Psicologia Transpessoal como uma abordagem individualista, orientada à “contemplação de umbigos”, ela é profundamente preocupada com as questões sociais e procura estudar e facilitar processos individuais, familiares, grupais, educacionais, comunitários, organizacionais, culturais, econômicos e sociais que promovam a evolução de consciência. Essa evolução acontece no sentido de uma profunda identificação com o universo inteiro e, consequentemente, a dedicação de nossas vidas, não

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somente para alcançar a realização de nossos desejos pessoais, mas no sentido do alinhamento desses com o coletivo, para facilitar o bem-estar de todos os seres.

Como o bodhisatva no budismo tibetano, que faz um voto para continuar a reencarnar, depois de ser iluminado, até todos os seres estejam iluminados, o psicólogo transpessoal entende que a evolução da consciência pessoal e a transformação social são dois aspectos essenciais do mesmo processo e o conceito que facilita a compreensão dessa unidade é a transcendência do egoísmo. O trabalho com a transformação social conjuntamente com as questões da evolução de consciência é a ênfase da emergente área de Psicologia Social Transpessoal.

Espiritualidade

Freqüentemente pergunto para os alunos nas minhas aulas, no curso de psicologia, se eles acreditam em alguma forma de “Deus”. Geralmente, noventa e cinco por cento das turmas respondem na afirmativa. Em seguida, pergunto se esse “Deus” tem importância e fortes influências sobre suas vidas e seus comportamentos, atitudes, pensamentos e emoções (os objetos de estudo da psicologia). Todo mundo que respondeu afirmativamente em relação à primeira pergunta também afirma essas fortes influências. Assim, chegamos à terceira pergunta: “Por que a questão de ‘Deus’ e suas influências são tipicamente excluídas de nossos estudos de psicologia acadêmica?”

Podemos entender como o “divórcio” que aconteceu entre ciência e espiritualidade era historicamente necessário no ocidente quando as autoridades religiosas rigidamente controlavam a prática de ciência, como quando a Igreja Católica assassinava cientistas cujas descobertas e teorias discordavam de suas doutrinas. Para preservar a integridade e até as vidas dos cientistas, era importante separar, claramente, as questões científicas das questões espirituais: os cientistas e acadêmicos ficaram com os problemas que poderiam ser abordados de uma maneira supostamente objetiva e a subjetividade espiritual ficou sob o domínio dos padres e, em última instância, da hierarquia da Igreja Católica. Quando as várias versões de protestantismo se proliferaram, essa separação de “conteúdo” se manteve entre os cientistas e os sacerdotes.

Essa separação nunca aconteceu nas culturas antigas orientais, onde a experiência da espiritualidade sempre era valorizada. Diferente das religiões ocidentais, onde “Deus” é tipicamente visto como uma espécie de pessoa que podemos agradar ou não, dependendo se nos comportarmos ou não dentro de certos parâmetros geralmente interpretados e prescritos pelos sacerdotes, nas versões mais profundas das religiões orientais, o processo de conhecer “Deus” e sua “vontade” é um processo de busca interior. Essa busca interior é um processo de autoconhecimento e assim, um processo psicológico, cujos elementos podem ser estudados, compreendidos e facilitados. Isso é a essência da Psicologia Transpessoal.

A Psicologia Transpessoal, diferente das linhas de psicologia que estudam religiosidade somente como uma experiência subjetiva cujas dimensões psicológicas podem ser entendidas em termos, por exemplo, de desejos, mecanismos de defesa ou atitudes condicionadas, admite a consideração da espiritualidade, não somente como estados e experiências verdadeiros e viáveis em si, mas como aspectos da realização de nossas potencialidades mais avançadas. Respeitando os relatos sobre a espiritualidade e sobre os estados de consciência dos místicos, mestres, santos, gurus e outras pessoas consideradas “iluminadas”, que descrevem a abertura para a experiência de espiritualidade, a Psicologia Transpessoal procura estudar essas possibilidades de uma maneira clara, científica e não preconceituosa.

É importante destacar a diferença entre espiritualidade e religiosidade. Usando a palavra “espiritualidade”, estamos nos referindo a uma certa qualidade de nossa experiência e às características psicológicas (pensamentos, emoções, atitudes e comportamentos) que facilitam essa experiência. Essa experiência naturalmente acontece na medida em que nossa consciência evolui. Abrimos para a percepção de dimensões do universo e sobre nós, que vão além da identificação exclusiva com os aspectos físicos da existência. Essas dimensões podem ser consideradas “espirituais” e envolvem, em primeiro lugar, a abertura para perceber e sentir o

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mundo de maneira a permitir a liberdade dos padrões habituais de pensamento, emoção e percepção que estruturam nossos preconceitos sobre o que é a realidade.

Geralmente, essas possibilidades de experiência e consciência são diferentes do que observamos na religiosidade típica, principalmente no ocidente. A pessoa tipicamente religiosa enfatiza a importância de seguir as doutrinas religiosas sem necessariamente fazer o trabalho psicológico interior necessário para abrir suas capacidades para transcender seu egoísmo e experienciar “Deus” e as dimensões espirituais de existência. Isso não quer dizer que é impossível encontrar a verdadeira espiritualidade dentro das religiões. Sempre, em cada religião, existe uma minoria de pessoas que pode ser considerada “mística”, que abre sua consciência além da repetição automática e frequentemente medrosa do dogma, permitindo as mais altas possibilidades da experiência espiritual.

Assim, a Psicologia Transpessoal não se afilia com nenhuma religião (apesar do fato que o psicólogo transpessoal específico pode ter sua própria religião) e não é um caminho religioso. Ela respeita as mais altas possibilidades inerentes em cada religião e procura entender os elementos comuns a todas as religiões, principalmente no estudo de como facilitar a experiência de verdadeira e profunda espiritualidade. Ela integra esses conhecimentos com os avanços em ciência, como na física quântica, com os conhecimentos da outras linhas de psicologia e com o crescente volume de pesquisa empírica sobre espiritualidade e as possibilidades de consciência além dos limites da matéria e do tempo.

Podemos considerar a espiritualidade como relacionada a certas atitudes, ou qualidades do espírito do ser humano, como amor, compaixão, sabedoria, força interior, entrega, capacidade de perdoar, contentamento, responsabilidade à coletividade e harmonia. Na Psicologia Transpessoal, estudamos os processos psicológicos envolvidos como essas qualidades e os condicionamentos históricos e sociais que as dificultam e os tipos de práticas psicológicas que facilitam sua realização.

Nas palavras do Dalai Lama, a verdadeira espiritualidade sempre envolve o processo de transformação interior. Espiritualidade não é uma crença ou uma decisão de adotar um sistema de crenças. È o encontro com os aspectos mais profundos de nosso ser, com nossa essência. É o encontro com os níveis de nossa natureza que estão além de nossas personalidades. Para encontrar esses níveis, é importante, em primeiro lugar, entender sobre sua existência e ter a intenção de olhar para dentro e querer encontrá-las.

O processo de profundo autoconhecimento exige dedicação e coragem porque, no processo de olhar para dentro, necessariamente abrimos para a percepção de aspectos de nossa personalidade (nossa “sombra”) que julgamos como negativos e consequentemente, não queremos ver. A evolução de consciência que acompanha o encontro como nossa espiritualidade envolve a integração de todos os aspectos de nosso ser e a possibilidade de observar nossas personalidades de um “lugar” mais profundo, dentro de nós, da perspectiva da qual a personalidade possa ser observada. É a identificação com nossa essência mais profunda e a desidentificação com os hábitos da personalidade que possibilitam a evolução de nossa consciência e o encontro com a experiência de nossa espiritualidade.

No encontro com nossa essência mais profunda, descobrimos que nossa natureza não é exclusivamente individualista e material. Percebemos que a insistência em nossa identificação como seres separados (dos outros e de todas as coisas do universo) é ilusório. Sentimos nossa unidade, nos níveis espirituais, com toda a existência e, transcendendo nosso egoísmo, conseguimos sentir o alinhamento de nossa consciência e nossa intenção com uma “força maior” e dedicamos nossas vidas para ser instrumentos dessa força e para o bem comum. No nível de nossa experiência, realizamos a promessa transformativa da Oração de São Francisco, e nos tornamos instrumentos de paz, amor, sabedoria e da força unificada e curadora do universo. A realização dessa promessa é a esperança para sermos co-criadores de um mundo justo, respeitoso e amoroso. Isso é também a promessa da Psicologia Transpessoal.