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Psicologia Transpessoal Livro Texto 2010

Psicologia Transpessoal - Livro Texto

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Trabalho Monográfico

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  • Psicologia Transpessoal

    Livro Texto

    2010

  • 2

    Capa e Diagramao: Cludio Azevedo

    Arte-finalizao da Capa:

    Reviso e Edio: Cludio Azevedo e Marlos Alves

    R:

    Cludio Azevedo

    Copyright 2008

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    A994 Alves, Marlos

    )

    ISBN: 8560091???

    1. Vednta. 2. Filosofia hindu. 3. Hindusmo

    I. Ttulo.

    CDU 294.527

    Capa:

    Contato com os organizadores e pedidos por reembolso postal

    E-mail: [email protected] ou [email protected]

    Visite: http://www.editoraorion.com.br

  • 3

    Psicologia Transpessoal

    Livro Texto

    Alves, Marlos; Azevedo, Cludio; Tavares, Ftima

    Organizadores

    2010

  • 4

    Conselho Editorial

    Alexandre Simo de Freitas (Programa de Ps-Graduao em Educao UFPE-BRA)

    David Lukoff USA

    Edgard Carvalho (PUC-SP)

    Esdras Vanconcelos Guerreiro (USP - PUC)

    Gergia Sibele Nogueira da Silva (DEPSI-UFRN-BRA)

    Harbans Lal Arora (ndia)

    Jean Yves Leloup UNIPAZ (FRA)

    Jean-Claude Regnier - Universit de Lyon - Universit Lumire Lyon2 (FRA)

    Jos Policarpo Jnior (Programa de Ps-Graduao em Educao UFPE-BRA)

    Jos Ramos Coelho (DEPFIL-UFRN-BRA)

    Nadja Maria Acioly-Rgnier - Institut Universitaire de Formation Des Maitres (FRA)

    Stanislav Grof (USA)

  • 5

    AUTORES

    Andr Feitosa de Sousa Psiclogo (CRP-11/05064), com formao na Abordagem Centrada na Pessoa e no Mtodo (Con)texto de Letramentos Mltiplos, desenvolvendo trabalhos nas reas da Psicoterapia, da Psicoeducao (Salutognese) e da Psicologia do Traba-lho. Professor no curso de Psicologia das Faculdades Nordeste (FANOR), pesquisador associado Rede Lusfona de Estudos da Felicidade (RELUS), colaborador na Liga Maria Villas-Bas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa. Scio efetivo da World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy e da Associao Pau-lista da Abordagem Centrada na Pessoa; membro da Nordic Pragmatism Network e da Red Iberoamericana de Centrada em las Personas. Integrante da equipe gestora do Projeto Social O Outro Brasil que Vm A: Comunidades em Transio para uma Sociedade Ps-Carbono, formador e supervisor vinculado Confraria de Estudos Avanados em Carl Rogers e na Abordagem Centrada na Pessoa (CearACP). Co-organizador do livro Humanismo de Funcionamento Pleno (2008, Editora Alinea), dentre outras publicaes cientficas. Contato: [email protected]

    Francisco Di Biase, Grand PhD Neurocirurgio e pesquisador da conscincia; Grand PhD, PhD and Full Professor, Acadmie Europenne DInformatisation e World Information Distributed University - Blgica; Professor Honorrio da Albert Schweitzer International University - Suia.

    Francisco Silva Cavalcante Junior, Ph.D. Psiclogo (CRP-11/0746), Professor adjunto no setor de Psicologia da Educao na Faculdade de Educao da Universi-dade Federal do Cear (UFC). Formador da Abordagem Centrada na Pessoa, M.Ed. e Ph.D. pela University of New Hamp-shire (EUA), coordenador da Rede Lusfona de Estudos da Felicidade (RELUS), idealizador da CearACP e do Projeto Florescer (Projeto Integrado de Ensino-Pesquisa-Extenso nas reas da Clnica-Educacional-Organizacional, no SPA/NAMI/UNIFOR). De 1998 a 2009 foi professor titular do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Contato: [email protected]

    Julio Francisco Dantas de Rezende, MS presidente do Instituto de Inovao e Sustentabilidade, Vice-diretor de ensino da FACEN e INAES, professor da UERN e FACEX, assessor da Secretaria de Estado da Administrao e dos Recursos Humanos (SEARH), administrador, psiclogo, mestre e doutorando em administrao pela UFRN. autor dos livros "Matrix e a Administrao Transpessoal", "Crnicas da Virtualidade" e "Transpersonal Management: Lessons from The Matrix trilogy". Atualmente prepara novos livros e realiza palestras sobre inovao, sustentabilidade e psicologia. O contato com o professor Julio Rezende pode ser feito diretamen-te atravs do e-mail: [email protected] ou pelo telefone: 84 9981-8160. Blog: www.juliorezende.blogspot.com.

    Paulo Coelho Castelo Branco Psiclogo (CRP-11/05321), Mestrando em Psicologia UFC com bolsa pela CAPES, Psicoterapeuta sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa, membro do Crculo de Pesquisas em Lgica e Epistemologias das Psicologias da Univer-sidade Federal do Cear (CPLEP/UFC). Colaborador na Liga Maria Villas-Bas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa. Scio efetivo da World Association for Person-Centered Approach and Experiential Psychotherapy e da Associ-ao Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa. Contato: [email protected]

    Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, Dr. Graduado em Cincias Sociais e em Psicologia, Professor da Graduao e da Ps-Graduao em Psicologia da Universi-dade Federal do Cear (UFC), Mestre em Psicanlise pela Universit de Paris VIII e Doutor em Psicologia pela Universit de Paris XIII. Coordenador do Crculo de Pesquisas sobre Lgica e Epistemologia das Psicologias (CPLEP/UFC). Contato: [email protected]

    Yuri de Nbrega Sales Psiclogo (CRP-11/05070), Mestrando em Psicologia UNIFOR, com formao em Abordagem Centrada na Pessoa, Psi-coterapeuta sob o referencial desta mesma abordagem. Visiting Scholar, Centre for Urban Health Initiatives/University of Toronto Programme des Futurs Leaders dans les Amriques 2009 (PFLA Canad). Colaborador na Liga Maria Villas-Bas de Estudos em Abordagem Centrada na Pessoa, Integrante da equipe gestora do Projeto Social O Outro Brasil que Vm A: Comunidades em Transio para uma Sociedade Ps-Carbono. Contato: [email protected]

  • 6

  • 7

    Sumrio

    PREFCIO ........................................................................................................................... 11

    INTRODUO...................................................................................................................... 13

    APRESENTAO ................................................................................................................ 15

    PARTE I ................................................................................................................................ 17

    FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ...................................................... 17

    Matrizes Conceituais ............................................................................................................ 19

    1. Transcendncia ............................................................................................................ 19

    2. Espiritualidade: um olhar psicolgico ........................................................................... 23

    3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano ....................................... 36

    4. Tradies de Sabedoria do Oriente ............................................................................. 46

    Histrico ................................................................................................................................ 62

    REDIMENSIONANDO OS CONCEITOS E OS TERRITRIOS CONTEMPORNEOS

    ENTRE DUAS FORAS DA PSICOLOGIA ...................................................................................... 63

    NO CENTRO E NAS FRONTEIRAS DO HUMANO E SUAS PSICOLOGIAS ................ 63

    TRANS-FORMAES HUMANISTAS: H TERRAS PARA ALM DOS HORIZONTES

    HUMANOS? .................................................................................................................................. 70

    SOBRE UMA MESMA SEMENTE GERMINADA EM SOLOS DIVERSOS: A

    EXPERINCIA DO HUMANO E DO TRANSHUMANO? ......................................................... 75

    Mtodo .................................................................................................................................. 91

    Pesquisas em Conscincia .................................................................................................. 92

    PARTE II ............................................................................................................................... 93

    CONCEITOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................................ 93

    Transdisciplinaridade ............................................................................................................ 94

    Espiritualidade ...................................................................................................................... 95

    Unidade ................................................................................................................................ 96

    I ......................................................................................................................................... 96

    II ...................................................................................................................................... 103

  • 8

    III ..................................................................................................................................... 108

    IV .................................................................................................................................... 109

    V ..................................................................................................................................... 112

    VI .................................................................................................................................... 114

    VII ................................................................................................................................... 117

    VIII .................................................................................................................................. 120

    IX .................................................................................................................................... 122

    Referncias:.................................................................................................................... 122

    O Ser Quntico ................................................................................................................... 124

    Conscincia ........................................................................................................................ 125

    Conscincia Transpessoal ................................................................................................. 126

    O Cdigo Csmico ......................................................................................................... 127

    O Reencontro da Cincia com a Conscincia ................................................................ 128

    O Modelo Holoinformacional da Conscincia ................................................................ 129

    O universo hologrfico .................................................................................................... 133

    A Dinmica Quntica Cerebral ...................................................................................... 134

    Bioftons, Microtbulos e Superradincia ...................................................................... 135

    Os correlatos neurais da conscincia ............................................................................ 138

    Vida e Morte ....................................................................................................................... 146

    PARTE III ............................................................................................................................ 147

    PRTICAS CLNICAS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL ............................................ 147

    Terapia de Memria Profunda ............................................................................................ 148

    Respirao Holotrpica ...................................................................................................... 149

    Morte e Renascimento Psicolgico .................................................................................... 150

    A Dinmica Energtica do Psiquismo ................................................................................ 151

    PARTE IV ........................................................................................................................... 152

    EXTENSES EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL .......................................................... 152

    Um Abrao Integral ............................................................................................................. 153

  • 9

    Modelo de desenvolvimento da conscincia .................................................................. 153

    Sade nos quatro quadrantes do Kosmos ..................................................................... 159

    Educao para a Paz ......................................................................................................... 166

    Psiquiatria Transpessoal .................................................................................................... 167

    Teorias Sistmicas em Famlia (Constelaes familiares) ................................................ 168

    Psicologia Social Transpessoal .......................................................................................... 169

    Abordagem Organizacional Transpessoal ......................................................................... 170

    Introduo ....................................................................................................................... 170

    A psicologia transpessoal: uma base para um novo modelo gerencial ......................... 170

    Conscincia: um primeiro objeto da psicologia transpessoal e uma possvel

    aplicabilidade administrao .................................................................................................... 172

    Transcendncia: um segundo objeto da psicologia transpessoal .................................. 174

    Desafios da gesto transpessoal ................................................................................... 175

    Aspectos metodolgicos ................................................................................................. 177

    A prtica da gesto transpessoal ................................................................................... 178

    A busca por uma suprema satisfao dos clientes ........................................................ 180

    A conscincia dos arqutipos no contexto organizacional ............................................. 180

    Motivao: a alma da organizao ................................................................................. 181

    A espiritualidade no trabalho .......................................................................................... 181

    Criando um espao psicolgico saudvel ...................................................................... 183

    Integrao com a totalidade e o desenvolvimento da responsabilidade universal e a

    sustentabilidade........................................................................................................................... 186

    Consideraes finais ...................................................................................................... 189

    A Temporalidade no Existir Subjetivo ................................................................................ 192

    Trabalho Transpessoal com Crianas ................................................................................ 193

    Trabalho com a Morte ........................................................................................................ 194

    Cosmoeducao ................................................................................................................. 195

    APNDICE ......................................................................................................................... 196

  • 10

    CARTA AOS TERAPEUTAS .......................................................................................... 196

  • 11

    PREFCIO

    Roberto Crema

  • 12

  • 13

    INTRODUO

    Marlos Alves e Cludio Azevedo

  • 14

  • 15

    APRESENTAO

    Mrcia Tabone

  • 16

  • 17

    PARTE I

    FUNDAMENTOS EM PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

  • 18

  • 19

    Captulo 1

    Matrizes Conceituais

    Transcendncia, Espiritualidade e Tradies de Sabedoria no Oriente

    1. Transcendncia

    Em seu sentido original o trans foi agregado ao pessoal na palavra transpessoal para s i-

    tuar uma ampla gama de pesquisas que indicavam a dimenso de transcendncia humana ou o

    principio da transcendncia 1. Contudo, assim como a palavra transcendncia est carregada de

    mltiplos sentidos, o prefixo trans tem incorporado esta diversidade, requerendo uma explicitao

    que nos ajude a melhor definir em que sentido est sendo utilizado, pois de acordo com o seu uso

    poder conduzir-nos a sentidos diversos, com implicaes diretas para a Psicologia Transpessoal.

    A interpretao mais antiga dada ao conceito transcendncia deriva da relao dos ho-

    mens com a idia de divindade, em um sentido teolgico. Assim, se considera o divino como ina-

    cessvel s coisas terrenas, pois seriam esferas totalmente distintas, manifestando uma relao

    dialtica permanente.

    As definies do transpessoal que usam este referencial de transcendncia, geralmente

    so as vises de senso comum ou tentativas de desqualificar a abordagem com no cientifica, pois

    colocam o trans como um alm de trancendental, incapaz de incluir os aspectos imanentes do

    ser. Tal viso se ope claramente as idias dos principais fundadores da psicologia transpessoal,

    como podemos perceber na colocao de Sutich (apud WEIL, 1978, p. 29):

    Entretanto, as diferenas eram to significativas que levaram inevita-

    velmente concluso de que uma rea nova e de caractersticas prprias da

    pesquisa psicolgica estava se manifestando. Era uma rea de pesquisa pes-

    soal, mas que ia alm dos limites usuais da investigao cientfica. Alm disso,

    a nova rea diferia de maneira significativa do trans-humanismo (Huxley, 1957)

    pelo fato de enfatizar principalmente o indivduo experienciador mais do que a

    raa humana como um todo. Por isso foi bastante natural que [...] a nova rea

    recebesse o ttulo de Psicologia Transpessoal.

    1 O principio da transcendncia indicaria um impulso em direo ao despertar espiritual que perpassa a humanidade do

    ser, a prpria pulso de vida, morte e para alm delas. O principio da transcendncia envolve a natureza psicolgica,

    descrita por Freud, ampliada por Maslow e por Weil. (SALDANHA, 2006, p. 109)

  • 20

    Outro sentido de transcendncia se refere aos conceitos aristotlicos, difundidos na idade

    mdia por So Toms de Aquino, que definiam como transcendente tudo que se enquadra nas

    categorias de unidade, verdade e bondade. O trans, neste sentido, pe-se como uma essncia

    permanentemente fixa e imutvel quer seja ela platnica, kantiana, hegeliana ou husserliana, ex-

    cluindo assim, a possibilidade para emergncia de novas dimenses do ser.

    O conceito de transpessoal que emerge desta definio permanece preso na armadilha da

    idia da essncia imutvel da metafsica, perdendo o trans a sua historicidade como um dos mo-

    dos de interpretar a realidade. Assim se quisermos alcanar um status ps-metafsico ser neces-

    srio percebermos que o trans no pode ser concebido como uma categoria que dada eterna-

    mente ele no um arqutipo, nem idias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas fora

    da histria, nem imagens eidticas atemporais. O trans deve ser concebido como uma forma que

    se desenvolveu com o tempo, com a evoluo e com a histria.

    Para Hume e Kant, transcendental tudo aquilo que nossa mente constitui a priori, antes

    mesmo de qualquer experimentao, havendo assim uma complexa interconexo entre a capaci-

    dade de estar consciente de certo conceito e a habilidade de experimentar-se o universo das coi-

    sas.

    O transcendente estaria fora de ns, mas acessvel pela capacidade intelectual em captar

    sua essncia. Hegel combateu, em parte, este conceito kantiano, pois argumentava que preciso

    ultrapassar a fronteira entre o conceitual e o experimental para sabermos ao certo onde este limite

    se encontra, e assim, logicamente, j se constitui uma transcendncia o fato de deter o conheci-

    mento, independentemente de qualquer ao posterior.

    O conceito de transcendncia na transpessoal se aproxima mais do pensamento hegelia-

    no, contudo permanece irremediavelmente ligado ao ser par irmo, a imanncia. Assim, temos

    transcendncia e imanncia como fenmenos que se do a perceber ao ser, num jogo dialgico

    que avana em complexidade at alcanar uma dimenso translgica.

    O aspecto integrativo do transcendente/imanente do prefixo trans apontado por Wilber

    (1996, p. xviii) para marcar uma compreenso total do ser humano, de forma que este termo no

    se refere apenas ao ir alm, mas, tambm, ao tornar-se MAIS PESSOA, assumindo-se radical-

    mente toda a abertura e amplitude do Ser Humano.

    O hiato entre transcendncia e imanncia, assim como, as diversas divises tomadas pelo

    senso comum como auto-existentes, so profundamente questionadas pela psicologia transpesso-

    al. Nesta concebe-se a possibilidade de um entre-deux nestes aspectos, bem como nas mltiplas

  • 21

    interfaces humana 2, sem, no entanto, bipartir a concepo de existncia. Para o filsofo francs

    Merleau-Ponty, a identificao desse crculo abriu um espao entre o homem e o mundo, entre o

    interno e o externo. Esse espao no era um abismo ou divisor: ele englobava a distino entre

    homem e mundo e, ainda, provia a continuidade entre eles. Sua abertura revela-se como um cami-

    nho do meio, um entre-deux. Assim, no prefcio de sua Fenomenologia da Percepo, ele escreve:

    Comecei a refletir, minha reflexo sobre um irrefletido; ela no pode

    ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma

    verdadeira criao, como uma mudana de estrutura da conscincia, e cabe-lhe

    reconhecer aqum de suas prprias operaes, o mundo que dado ao sujeito,

    porque o sujeito dado a si mesmo... A percepo no uma cincia do mundo,

    no nem mesmo um ato, uma tomada de posio deliberada; ela o fundo so-

    bre o qual todos os atos se destacam e ela pressuposta por eles. O mundo no

    um objeto do qual possuo comigo a lei de constituio; ele o meio natural e o

    campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepes expl-

    citas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5-6).

    Mais adiante, no final dessa mesma obra, ele acrescenta:

    O mundo inseparvel do sujeito, mas de um sujeito que no seno

    projeto do mundo, e o sujeito inseparvel do mundo, mas de um mundo que

    ele mesmo projeta. 3

    Esta viso de um sujeito inseparvel do mundo, que, neste trabalho denominamos de

    trancendente/imanente, foi desenvolvida e integrada pelas tradies no-duais do oriente, como

    tambm marco do referencial terico da fenomenologia e da abordagem transpessoal, e defen-

    dem a tese de que a dualidade mente/corpo surgiu da ignorncia sobre a natureza das relaes do

    organismo humano com o ambiente; no havendo sustentao para a tese cartesiana que postula

    um corpo que pura matria extensa e nem se cogita uma mente que mera substncia pensan-

    te.

    Para psicologia transpessoal essa forma de refletir marca radicalmente a virada do pensa-

    mento fenomenolgico como uma busca de retorno ao mundo existencial, sendo um golpe nas

    idias do trans como um simples alm de abstrato e teolgico, pois o mundo preexistente

    reflexo mas no separado de ns, conforme destacado por Varela, Thompson e Rosch (2003, p.

    21):

    2 Wilber (2000, p. 27) destaca cinco dimenses bsicas: matria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nvel emo-

    cional-sexual), mente (incluindo imaginao, concepes e lgica), alma (a fonte da identidade supra-individual) e esprito

    (tanto o fundamento sem forma como a unio no-dual de todos os outros nveis).

    3 Merleau-Ponty (1999, p. 576).

  • 22

    [...] as mentes despertam em um mundo. No projetamos nosso mundo.

    Ns simplesmente nos descobrimos com ele; ns despertamos tanto para ns

    mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre esse mun-

    do medida que crescemos e vivemos. Ns refletimos sobre um mundo que no

    feito, mas encontrado, e tambm nossa estrutura que nos possibilita refletir

    sobre esse mundo. Ento, ao refletirmos, ns nos encontramos em um crculo:

    estamos em um mundo que parece que j existia antes da reflexo ter-se inicia-

    do, mas esse mundo no separado de ns.

    A transcendncia posta como um convite permanente para olharmos de maneira interde-

    pendente o aqui-e-agora do mundo vivido, desafiando-nos a percebermos este mundo vivido como

    solo primeiro dos meus sentidos, incluindo nossa abertura para o mundo e desafiando a idia de

    que a verdade habita apenas o homem interior, ou antes no h homem interior, o homem est

    no mundo e no mundo que ele se conhece 4. O trans mais pessoal trata a transcendncia co-

    mo a possibilidade de Ser expressa no mundo, mas que conserva sua abertura, sua impossibilida-

    de de fechar-se, seu ir alm.

    A psicologia transpessoal como um estilo de pensamento que revela o mistrio do inaca-

    bamento do humano, assume a sua prpria incapacidade de dizer tudo o que h para ser dito,

    aproximando-se do pensamento de Merleau-Ponty (1999, p.20) quando afirma:

    Ser preciso que a fenomenologia dirija a si mesma a interrogao que

    dirige a todos os conhecimentos; ela se desdobrar ento indefinidamente, ela

    ser, como diz Husserl, um dilogo ou uma meditao infinita, e, na medida em

    que permanecer fiel sua inteno, no saber onde vai. O inacabamento da

    fenomenologia e o seu andar incoativo no so signo de um fracasso, eles eram

    inevitveis porque a fenomenologia tem como tarefa revelar o mistrio do mundo

    e o mistrio da razo.

    Assim, como um pensamento aberto interrogao permanente e que trabalha para no

    se fechar nos dogmatismos e absolutismos, que se caracteriza a psicologia transpessoal; sendo a

    transcendncia reveladora de um projeto de formao humana que no cessa de ampliar, pois

    revela o inacabamento do humano.

    Referncias bibliogrficas

    MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    SALDANHA, V. P. Didtica transpessoal: perspectivas inovadoras para uma educao integral.

    Campinas, SP: [s/n]. Tese (Doutorado em Educao), Ps-graduao em Educao, 2006.

    4 Ibid., loc. cit.

  • 23

    WEIL, P. A medida da conscincia csmica. Petrpolis: Ed. Vozes. 1978

    VARELA, J. F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. Mente incorporada. So Paulo: Artes Mdicas,

    2003.

    WILBER, K. Foreword. In: SCOTTON, B.W.; CHINEN, A. B.; BATTISTA, J. R. (Eds). Textbook of

    transpersonal psychiatry and psychology. New York: BasicBooks, 1996.

    ______. Integral psychology: consciousness, spirit, psychology, therapy. Boston: Shambhala

    Publications, 2000.

    2. Espiritualidade: um olhar psicolgico

    A resistncia a introduo da dimenso espiritual no campo acadmico da psicologia deve-

    se, em parte, ao rano adquirido, em nossa cultura, contra a religio desde o iluminismo. A era

    das trevas medieval acionou um intenso mecanismo de resistncia a tudo que pudesse relacionar-

    se com o religioso, mstico ou mtico, sendo a espiritualidade humana includa nesta categoria, e

    portando descartada. Todavia, desde os trabalhos pioneiros de James (1890, 1902), Kohlberg

    (1992) e Fowler (1992) as diferenciaes entre religio e espiritualidade, no campo psicolgico,

    tem sido melhor estabelecidas, contribuindo para a superao deste complexo de excluso.

    Fawler, por exemplo, em seu trabalho sobre Os estgios da f", coloca a religio como

    uma tradio cumulativa, marcada por textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos

    de revelaes, smbolos visuais, tradies orais, msica, dana, ensinamentos ticos, teologias,

    credos, ritos, liturgias, arquitetura. Enquanto a f (espiritualidade) mais profunda e pessoal, sen-

    do a forma como a pessoa ou o grupo responde ao valor transcendente.

    Seguindo esta linha de raciocnio, Koenig et al.(2001) definem religio como um sistema

    organizado de crenas, prticas, rituais e smbolos delineados para facilitar a proximidade com o

    sagrado e o transcendente e espiritualidade como a busca pessoal por respostas compreensveis

    para questes existenciais sobre a vida, seu significado e a relao com o sagrado ou transcen-

    dente, podendo ou no estar atrelada a rituais religiosos ou a uma comunidade.

    As pesquisas na rea da espiritualidade e psicologia ampliaram-se nos ltimos anos, Koe-

    nig (2007, p. 5-6) destaca que:

    De fato, uma pesquisa on-line na PsycINFO (uma base de dados que

    contm 2,3 milhes de pesquisas e artigos acadmicos de 49 pases em 27 idi-

    omas), usando as palavras-chave religion, religiosity, religious beliefs e spi-

    rituality, revela algumas tendncias interessantes. Quando restringi os anos da

    busca de 1971 a 1975, foram identificados 1.113 artigos, mas ao repetir a pes-

    quisa restringindo-a aos anos entre 2001 e 2005, obtive 6.437 artigos, havendo

    um aumento de mais de 600% em 30 anos. Assim, parece ocorrer um rpido in-

    cremento na pesquisa e discusso acadmicas relacionadas relao entre reli-

  • 24

    gio, spiritualidade e sade mental. Dado que religio importante para a maio-

    ria dos brasileiros e outros sul-americanos, no causa surpresa que haja interes-

    se na ligao entre envolvimento religioso e sade mental. Dos 6.437 artigos so-

    bre religio/espiritualidade publicados entre 2001 e 2005, 20 envolveram artigos

    sobre religio, espiritualidade e sade de brasileiros. Seis desses 20 artigos rela-

    tavam resultados de estudos quantitativos e quatro dessas pesquisas eram fo-

    cadas em sade mental.

    A idia da dimenso espiritual como um dos aspectos constitutivos do

    humano est presente na forma da Grande Cadeia do Ser5 desde as culturas

    xamnicas (TRUNGPA, 1992) at o seu pice com a cultura Grega (Plotino),

    mas foi praticamente excluda com o advento do cientificismo da modernidade.

    Refletindo sobre as idias centrais da Grande Cadeia do Ser, Rhr (2006, p.

    15-16) destaca cinco dimenses bsicas do humano, sintetizando e atualizando

    os conhecimentos produzidos nesta rea. Estas dimenses so a dimenso fsi-

    ca, emocional, mental e espiritual, esta ltima alvo da nossa reflexo, e definida

    como,

    [...] a dimenso espiritual. No se confunde essa dimenso com a re-

    ligiosa, que em parte pode incluir a espiritual, mas que contm algumas caracte-

    rsticas como as da revelao como interveno direta de Deus e de um tipo de

    organizao social que dessa forma so estranhas ou no necessrias dimen-

    so espiritual. Podemos nos aproximar dimenso espiritual identificando uma

    insuficincia das outras dimenses em relao ao homem nas suas possibilida-

    des humanas. Posso viver nas demais dimenses sem ser comprometido com

    nenhum aspecto delas. Entro na dimenso espiritual no momento em que me i-

    dentifico com algo, em que eu sinto que esse se torna apelo incondicional para

    mim. Identificamos, por exemplo, fenmenos humanos, freqentemente pouco

    refletidos, mas onipresentes na nossa vida como a liberdade e a crena no sen-

    tido da vida como elementos da dimenso espiritual, e de fato eles s existem na

    medida em que me comprometo com eles. Podemos incluir na dimenso espiri-

    tual todos os princpios ticos e filosficos que precisam, para se tornarem ver-

    dadeiros, da minha identificao com eles. No se trata na dimenso espiritual

    de uma identificao somente ao nvel do pensamento e do discurso. Trata-se

    de uma identificao na totalidade, incluindo necessariamente um agir corres-

    pondente. Um saber que no se expressa na minha vida prtica, seja ela pblica

    ou particular, no alcanou ainda a dimenso espiritual. Uma convico com que

    5 Wilber (2000, p. 27), destaca que a Grande Cadeia do Ser reflete a espinha dorsal da filosofia perene e apresenta uma

    sntese de concordncia quase unnime e intercultural quanto s dimenses gerais bsicas do ser, assim expressas: mat-

    ria, corpo (no sentido de corpos vivos e vitais, o nvel emocional-sexual), mente (incluindo imaginao, concepes e lgi-

    ca), alma (a fonte da identidade supra-individual) e esprito (tanto o fundamento sem forma como a unio no-dual de todos

    os outros nveis).

  • 25

    no me identifico por inteiro serve para camuflar lados de mim que no consigo

    ou no quero enxergar, e leva fatalmente a desequilbrios internos e externos.

    As

    certezas sobre a prpria identidade no so de natureza racional, mas intuitiva.

    Por isso chamo essa dimenso tambm de intuitivo-espiritual.

    Em uma viso fenomenolgica essas cinco dimenses apresentadas por Rhr, no consti-

    tuem realidades ontolgicas distintas e separadas, mas sim planos de significao ou formas de

    unidade, nas quais matria, vida, esprito no poderiam ser definidos como trs ordens de realida-

    des ou trs espcies de ser, mas como trs planos de significaes ou trs formas de unidades

    (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 14).

    Essas dimenses ou estruturas bsicas so percebidas como hlons potenciais e no co-

    mo essncias permanentemente fixas e imutveis quer sejam elas platnicas, kantianas, hegelia-

    nas ou husserlianas. Assim, abre-se a possibilidade para emergncia de novas dimenses no futu-

    ro. Wilber (2006) destaca que essa viso da Grande Cadeia do Ser um dos modos de interpre-

    tar a realidade, contudo para que alcance um status ps-metafsico necessrio realizar algumas

    revises e acrscimos, tais como:

    compreenso de que essas dimenses no so estruturas preexistentes, mas em

    parte estruturas de conscincia humana;

    os mtodos de verificao de existncia dessas estruturas de conscincia no

    mais envolvem a mera afirmao de sua existncia apenas porque a tradio as-

    sim o quer, nem baseiam sua existncia apenas na introspeco ou na meditao

    (ou outras asseres e alegaes que, supostamente, transcendem a cultura). No

    mnimo, eles envolvero alguma verso tanto da exigncia da modernidade por in-

    dcios objetivos quanto da exigncia da ps-modernidade por embasamento inter-

    subjetivo (WILBER, 2006, p. 292);

    Essas estruturas de conscincia no podem ser concebidas como as que so dadas eter-

    namente elas no so arqutipos, nem idias eternas na mente de Deus, nem formas coletivas

    fora da histria, nem imagens eidticas atemporais. [...] teriam de ser concebidos como formas que

    se desenvolveram com o tempo, com a evoluo e com a histria (WILBER, 2006, p. 293).

    A espiritualidade nos domnios do saber psicolgico

    Se retornarmos brevemente a histria do movimento das abordagens teraputicas em psi-

    cologia, perceberemos como a dimenso espiritual foi foco da ateno dos pesquisadores das

    quatro principais foras do movimento psi, nem que fosse operando por contra-ponto. Utilizare-

    mos a idia de foras (MASLOW, 1962) para situar as abordagens teraputicas e suas reflexes

    sobre espiritualidade.

  • 26

    Primeira Fora Behaviorismo

    A primeira grande fora do movimento psicolgico foi o Behaviorismo que se organizou nos

    EUA a partir do incio do sculo XX e conjugou vrias tradies filosficas e cientficas que se opu-

    nham a qualquer idia de subjetividade ou interioridade.

    Nesta fora merece destaque o Behaviorismo Metodolgico de Watson, que se apoiando

    no positivismo e no pragmatismo, atacou a introspeco e tudo no humano que sugerisse uma

    vida interior, pondo o comportamento do organismo como um todo como objeto de estudo (FI-

    GUEIREDO, 1991, p. 82).

    Outra grande influencia neste movimento foi bahaviorismo radical de Skinner que dom i-

    nou durante muitos anos o cenrio do mundo psicolgico, por atender ao ideal de cincia positivis-

    ta e mecanicista da poca. O trabalho de Skinner foi considerado um avano em relao ao beha-

    viorismo de Watson, por no negar a existncia dos estados internos, contudo permanece fiel ao

    ideal de que o comportamento observvel deve ser o objeto de estudo da psicologia, no sendo

    dado nenhum interesse a significados ou simbolos, mas as variveis que afetam o comportamento.

    Poderamos dividir o behaviorismo em trs grandes movimentos:

    O primeiro foi a Psicologia Comportamental clssica, representada pela Anlise

    Experimental do Comportamento de B. F. Skinner, que focava-se exclusivamente

    no condicionamento e alterao de comportamentos indesejveis;

    O segundo movimento foi encampado pela Psicologia Cognitivo-Comportamental,

    sendo destaque a Psicologia Cognitiva de Aaron Beck, considerado o pai desta

    abordagem, que mantm o foco em alterar comportamentos indesejveis, mas d

    maior enfoque para mudar pensamentos prejudiciais, ao contrrio do movimento

    anterior, que considerava que pensamentos e emoes no afetavam os compor-

    tamentos externos;

    O terceiro movimento, representada pela Terapia de Compromisso pela Aceitao

    (ACT) de Steven Hayes, um psiclogo da Universidade de Nevada em Reno, que

    ampliou o leque de tcnicas j desenvolvidas nos movimentos anteriores, sendo

    destaque o uso da meditao da plena ateno do Budismo (Mindfulness) como

    prtica teraputica.

    No trabalho de Steven Haynes temos uma aproximao da primeira fora com a espiritua-

    lidade atravs do uso da meditao. Na dcada de setenta, Pierre Weil em seu livro Mstica e

    cincia j antevia esta aproximao, quando sugere que estudos na rea do behaviorismo pode-

    riam trazer grandes contribuies para o desenvolvimento da psicologia transpessoal, pois a partir

    do estudo do controle de funes orgnicas involuntrias, tais como circulao sangnea e ondas

  • 27

    eletroencefalogrficas, realizado em iogues ou meditantes treinados poderamos ter acesso a uma

    melhor compreenso de fenmenos estudados na transpessoal.

    O trabalho pioneiro de Fracine Shapiro (2007, p.43) com EMDR6 faz uso regular da medi-

    tao e segundo sua autora , com certeza, coerente com as conjeturas de Maslow [...]. David

    Grand, um dos principais representantes do EMDR, em palestra em 2008 sobre A essncia do

    EMDR destaca o seu aspecto espiritual.

    No meio transpessoal, os trabalhos pioneiros de C. A. Tart (1972, 2000) foram uma das

    primeiras tentativas bem sucedidas de estudo dos estados alterados de conscincia usando o ar-

    senal metodolgico comportamental, sendo seu trabalho referncia nos estudos nesta rea.

    Segunda Fora Psicanlise e derivadas

    O mundo da Salptrire, na Frana, rendia-se ao rei das histricas, Jean-Martin Charcot,

    que com suas impressionantes demonstraes hipnticas (meio clnicas, meio circenses) liberava,

    por sugesto, os pacientes de seus sintomas. Este rei atraiu para a corte parisiense outro grande

    pesquisador, Freud, que juntamente com Breuer, desenvolveu o mtodo catrtico, a partir de

    exaustivo estudo sobre histeria. Freud veio a aperfeio-lo, nascendo da a livre associao.

    O mtodo da livre associao permitiu a Freud a construo de sua metapsicologia, com

    suas tpicas (1a. Tpica: consciente, pr-consciente, inconsciente; 2

    a. Tpica: id, ego e superego),

    oferecendo assim uma teoria acerca do inconsciente e sua dinmica, bem como do papel da sexu-

    alidade na etiologia das neuroses.

    Apesar de ter o dualismo como marca fundante (spaltung) e no ter dado a ateno devida

    ao fenmeno de conscincia csmica, denominado na poca de sentimento ocenico7, a psican-

    lise resguardou para si um estatuto metapsicolgico.

    Rodrigu (1995) destaca a relao entre Freud, o animal humano e seu amigo ocen i-

    co, Romain Rolland - idelogo, pacifista, ganhador do Prmio Nobel da Paz e autor de Ghandi-

    como uma das possveis causas para o sentimento ocenico ter ganho um espao na teoria freu-

    diana.

    Depois de ler O futuro de uma iluso, Romain Rolland censura Freud

    por no ter colocado na base do sentimento religioso aquilo que ele denomina

    sentimento ocenico, termo tomado de emprstimo dos msticos hindus. Esse

    sentimento , para ele, completamente independente de todo dogma, de todo

    credo, de toda igreja constituda, de todo livro santo, de toda esperana de so-

    brevida pessoal etc. Trata-se da sensao simples e direta do Eterno (...). Freud

    no se sente vontade nessa frente. Ele escrever em O mal-estar na cultura:

    6 Dessensibilizao e Reprocessamento Atravs de Movimentos Oculares 7 Conscincia csmica ou mais modernamente conscincia transpessoal.

  • 28

    As opinies expressas por um amigo muito admirado (...) causaram-me muita

    dificuldades. No consigo descobrir em mim esse sentimento ocenico. No

    fcil lidar cientificamente com sentimentos (...) Podemos considerar o primeiro

    captulo de o mal-estar uma carta aberta a seu amigo francs. Se ele no expe-

    rimentou o sentimento ocenico, pode, pelo menos, outorgar-lhe, um estatuto

    metapsicolgico. Trata-se do retorno ao estado de fuso do ego primitivo do be-

    b a uma simbiose primordial com a me. (RODRIGU, 1995, vol.03, p. 162)

    Destacaremos a seguir alguns dos pioneiros do estudo do psiquismo e seus interesses por

    alguns tpicos que esto na meta de pesquisa da Psicologia Transpessoal. Daremos um destaque

    especial a Carl Jung por ser considerado um de seus precursores.

    Sigmund Freud

    Quando buscamos, no Professor de Bergasse, referncias acerca de fenmenos que se

    aproximem da espiritualidade, deparamo-nos com dois momentos: o primeiro do Jovem Freud,

    com seus pensamentos voltados para a cincia e a medicina e o segundo o do Velho Freud, mais

    maduro, interessado em problemas culturais e humanos amplamente concebidos, e em assuntos

    relativos alma.

    Bettelheim (1982, p.86), escreveu que Freud por vrias vezes falou sobre a alma, mas es-

    tas referncias foram retiradas da traduo inglesa que se centralizou no jovem Freud. Para

    Freud a alma se referia psique como um todo, apesar de em muitos momentos ter usado estes

    termos indistintamente, como se v a seguir:

    Psique uma palavra grega, e a traduo para ela alma. O trata-

    mento psquico significa, pois, o tratamento da alma. Uma pessoa poderia, as-

    sim, pensar que o sentido disso : tratamento dos fenmenos mrbidos da vida

    da alma. Mas tal no o sentido desse termo. O tratamento psicolgico pretende

    ter um significado muito maior; a saber, o tratamento que tem origem na alma, o

    tratamento dos distrbios psquicos ou corporais - em graus que influenciam so-

    bretudo e , de modo imediato, a alma do homem.

    Alm de seu interesse por temas como alma, pode-se ressaltar estudos de Freud (1963)

    sobre telepatia e parapsicologia, bem como seu vnculo com a Sociedade de Estudos Psquicos,

    instituio de pesquisa de temas parapsicolgicos e ocultos. Sendo relevante pontuar o conflito

    com Romain Rolland acerca do sentimento ocenico.

    Epstein, M., apud Scotton, B.W.; Chinen, A.B. e Battista, J.R. (1996), identifica trs grandes

    contribuies do pensamento freudiano para a Psicologia Transpessoal:

    a descrio do sentimento ocenico como a apoteose da experincia religiosa. A-

    pesar da interpretao limitada deste fenmeno como uma regresso unio fusi-

    onal com a me ter influenciado uma imensa gama de pesquisas reducionistas,

  • 29

    Freud oferece-lhe um estatuto metapsicolgico, o que segundo Rodrigu (1995,

    vol.03, p.162), no pouco para algum que no havia experimentado este fen-

    meno;

    suas experincias com manejo da ateno, primeiramente com a hipnose, depois

    com a associao livre e por fim, com a ateno flutuante. A ateno flutuante se

    aproxima a estados descritos a partir dos treinamentos em meditao propostos

    pela transpessoal;

    a noo de alm do princpio do prazer e a tentativa de rompimento do sofrimento

    neurtico a partir da sublimao.

    O desencontro de Freud com fenmenos que fugiam ao paradigma dominante sua poca

    foi expresso no seu lapso de memria, assim apontado por Rodrigu (1995 vol 02, p.162, grifo

    nosso):

    Numa manh de dezembro de 1910, Freud partiu, vamos supor, sigilo-

    samente, para se encontrar com Jung e Bleuler em Munique. Motivo da expedi-

    o? Visitar Frau Arnold, uma renomada astrloga. Mas a visita no teve lugar

    porque Freud - conta-nos Jones - no conseguiu lembrar o nome da astrloga.

    O lapso freudiano marca um tempo, uma forma de pensar, expressando a ambivalncia vi-

    vida no meio cientfico em relao a fenmenos que ainda no podiam ser explicados. Ao mesmo

    tempo traz a marca antecipadora de todo visionrio, ou grande gnio, pois antecipa os interesses

    de pesquisadores futuros, indicando uma imensa gama de possibilidades de investigao.

    Sandor Ferenczi

    A psicanlise durante um longo perodo ocupou um lugar de destaque nas pesquisas vol-

    tadas ao psiquismo humano, por isso buscamos entre antigos mestres referncias a uma dimen-

    so alm do pessoal. Nesta busca deparamo-nos com Ferenczi, o vizir da psicanlise, o Herclito

    da psiquiatria hngura, o interlocutor de Freud em Siracusa, nas palavras de Rodrigu (1995, vol

    02, p. XXXI).

    Nascido em Budapeste, em 1873, o oitavo de uma famlia de onze filhos, sua genialidade

    no passou despercebida para Freud, de quem se tornou discpulo fiel, talvez um dos poucos das

    primeiras geraes de grandes analistas a no romper com o professor.

    Suas contribuies teoria psicanaltica so inmeras; aqui registramos o Ferenczi Astr-

    logo da Corte dos Psicanalistas. (Ibid., p.162, vol.2)

    Segundo Rodrigu (1995), Ferenczi publicou em 1898, na revista Gygiszat, editada por

    Miksa Schacter, grande figura paterna de sua vida, o ensaio intitulado Espiritismo, no qual o autor

  • 30

    narra um episdio que merece destaque, haja vista envolver um dos focos de pesquisa da Psicolo-

    gia Transpessoal que so os estados alterados de conscincia. Vejamo-lo:

    Certo dia, ele participou de uma reunio medinica organizada por um

    velho amigo esprita. Na sesso, Ferenczi perguntou: Em quem estou pensando

    neste momento?. A mdium respondeu: A pessoa na qual voc est pensando,

    acaba de levantar-se da cama para logo pedir um copo de gua e cair morta.

    Ferenczi, na hora, lembrou que tinha marcado uma consulta mdica. Foi s

    pressas casa do paciente onde pde constatar a veracidade do que a mdium

    dissera. (, Ibid, Vol 02, p.160)

    No que diz respeito telepatia, transferncia de pensamento na linguagem freudiana, Fe-

    renczi procurou em Berlim a mdium e clarividente famosa, Sra. Seidler. De posse de uma carta de

    Freud, entusiasma-se com revelaes da mdium sobre a pessoa do professor. Ferenczi em

    carta revela ao professor:

    Admitindo que ela possui capacidades realmente fora do comum, talvez

    elas se devam a uma espcie de leitura de pensamento, isto , leitura de meus

    pensamentos. A auto-anlise profunda que realizei depois da sesso, levou-me

    dita hiptese. A maioria das declaraes a respeito do senhor correspondem a

    processos mentais que eu realmente tive, mas tambm a processos mentais que

    posso ter recalcado... Alm da teoria da induo psquica, podemos contemplar

    a possibilidade de uma hiperestesia exttica .

    O discpulo, contudo, mostra-se cauteloso:

    Quero assegurar-lhe que no h perigo de que eu sucumba ao ocultis-

    mo, devido a esta experincia, ainda obscura. (Ibid, vol.2, p.162)

    Embora seja pouco provvel que conforme pontua Rodrigu o tema do oculto e das cin-

    cias parapsicolgicas, em geral, ocupasse pouco espao nos encontros das quartas-feiras do gru-

    po freudiano, o assunto operava como contra-ponto. Nessa procura pelo espiritual, Ferenczi es-

    tava frente de Jung, embora se mostrasse mais reticente.

    Otto Rank

    Ainda no meio psicanaltico, temos o O Trauma de Nascimento de Otto Rank, surgido no

    ano de 1923, entre as marcas do cncer de Freud. O escrito rankiano despertou no meio analtico,

    inicialmente, uma reao de franca e quase total aceitao. Afirma-se que Freud teria comentado

    com Ferenczi:

    No sei se 66% ou 33% do livro verdadeiro mas, em qualquer caso,

    o mais importante progresso desde a descoberta da psicanlise. O que no

    pouco na boca de Freud (RODRIGU,1995, p.88. vol.3)

  • 31

    Alm de considerar o nascimento como um dos eventos importantes na vida do indivduo

    em "A Interpretao dos Sonhos"8 (segunda edio), Freud assinalou que o ato de nascimento a

    primeira experincia de ansiedade e, assim, passa a ser a fonte e o prottipo do entendimento da

    ansiedade - o trauma de nascimento despertou uma verdadeira guerra no meio psicanalitico, bem

    como abriu margens para que pesquisadores desenvolvessem uma teoria mais ampla a partir des-

    te fato, como o caso das matrizes perinatais de Grof (1988, 2000).

    Freud enviou uma circular aos membros do Comit com o objetivo de aplacar os nimos

    acirrados. A citao de trechos desta circular depe acerca da maturidade do velho Freud, atingi-

    do pelo cncer. Como se pode conferir em citao de Rodrigu (1995, vol.3, p. 89-91) a seguir

    transcrita:

    [...] incomparavelmente mais interessante. O trauma do nascimento de

    Rank. No hesito em dizer que considero essa obra altamente significativa, que

    ela me deu muito o que pensar e que ainda no cheguei a ter um juzo significa-

    tivo sobre ela. H muito estamos familiarizados com fantasias relativas ao tero

    e reconhecemos sua importncia, mas devido ao realce que Rank lhes deu, elas

    alcanaram uma significao muito maior e revelam de imediato o fundo biolgi-

    co do Complexo de dipo. Repito em minha prpria linguagem: o trauma de

    nascimento deve estar associado a alguma pulso que visa a felicidade, com-

    preendendo-se a que o conceito de felicidade usado, sobretudo, em sentido

    ertico. Rank, ento, vai alm da psciopatologia e mostra como os homens alte-

    ram o mundo externo a servio desse instinto, ao passo que os neurticos pou-

    pam-se desse problemas ao tomar o caminho mais curto de fantasiar o retorno

    ao tero. Se concepo de Rank acrescentarmos a de Ferenczi - a de que o

    homem pode ser representado por seus genitais - ento pela primeira vez temos

    uma derivao do instinto sexual normal em que se encaixa nossa concepo do

    mundo.

    Naturalmente, bem mais poderia ser dito sobre isso e espero que os

    pensamentos despertados por Rank tornem-se objeto de muitas discusses frut-

    feras. Deparamo-nos aqui no com uma revolta, uma revoluo, uma contradi-

    o de nosso conhecimento assegurado, mas com um interessante acrscimo

    que ns e outros analistas temos de reconhecer.

    As reaes a esta circular foram exacerbadas, Ernest Jones afirma que Freud foi por de-

    mais tolerante. O clima estava alterado e Freud nesta altura da vida reflete: Meus discpulos so

    mais ortodoxos do que eu (ibid, p. 91). Poder-se-ia arriscar a hiptese de que ele estivesse preste

    a continuar seu relacionamento com Rank, mas o movimento psicanaltico talvez pela inrcia ine-

    rente s instituies no lhe permitiu outra escolha seno o caminho da separao.

    8 Nota de rodap da 2

    a Edio

  • 32

    Assim O Trauma do Nascimento, que distanciou discpulo e mestre, levou Freud a revisar

    sua teoria referindo-se a posio de Rank que originariamente era a minha - de que o afeto da

    angustia conseqncia do ato do nascimento e uma repetio da experincia original, forou-me,

    uma vez mais, a revisar o problema da angstia. (Ibid., vol.3, p.102)

    Ora, isso significa que Freud admite o mrito de Rank quanto a travessia traumtica do feto

    pelo canal estreito da bacia, referindo-se ao evento como prottipo de angstia primeva para o

    indivduo medida que se constitui em inevitvel situao de ameaa vida e ao mesmo tempo

    um caminho nico a ser percorrido. Para alm dessa situao inicial de perigo, frente a outras fon-

    tes geradoras de traumas, somando um total de quatro situaes de perda a serem iniciadas pela

    chamada perda do nirvana intra-uterino, temos na seqncia (ameaa de): perda da simbiose

    materna, perda do pnis e perda do amor do superego.

    Desse modo, as contribuies de Rank acerca do trauma de nascimento o colocam entre

    os precursores da Psicologia Transpessoal, talvez um dos primeiros a indicar uma amplitude da

    conscincia para alm dos limites impostos pela teoria psicanaltica dominante. Sua teoria indica-

    nos a possibilidade de mergulharmos em nveis mais profundos da psique.

    Grof (1988) destaca o intenso trabalho de Rank, construindo a partir do mesmo um arca-

    bouo terico para dar conta das experincias que envolvem a gravidez e o nascimento. Este autor

    elabora a teoria das matrizes perinatais e, em homenagem a Rank, denomina de nvel rankiano do

    processo teraputico a fase da terapia na qual emergem contedos perinatais de forma mais con-

    densada.

    Carl Jung

    Carl Gustav Jung, descendente do mtico Sigmund Jung, alquimista de Mainz9, nasceu em

    26 de julho de 1875 em Kesswil, pequeno povoado beira do lago Constanza, no canto de Thur-

    govia. O interesse por fenmenos que estavam fora do mbito de estudo da psiquiatria de sua

    poca, bem como suas ricas contribuies ao desenvolvimento de uma psicologia do sagrado,

    pem este autor como um dos precursores da Psicologia Transpessoal.

    A famlia de Jung parece ter estimulado amplamente seu mundo imaginrio. Durante a sua

    infncia experincias transpessoais podem ser assinaladas, como por exemplo: sendo solicitado a

    produzir um ensaio, Jung ficou bastante sobrecitado (estado alterado de conscincia). Neste esta-

    do produziu um excelente ensaio e foi acusado de plgio pelo professor. Sem conseguir convenc-

    lo, e sofrendo por alguns dias, Jung escreveu acerca do contato com um ser invisvel que o teria

    ajudado a fazer o texto.

    9 Ancestral de Carl Gustav, ativo na primeira metade do sculo XVII, conhecedor de Paracelso.

  • 33

    Na escola Mdica de Zurich, Jung escreveu sua tese sobre transe e estados dissociativos,

    a partir das experincias com sua prima e mdium Helene Preiswerk. Depois de sua graduao

    trabalhou com Eugen Bleuler, um dos maiores mestres da psiquiatria, no Hospital de Burgholzh em

    Zurique, o que lhe deu uma vasta experincia com psicticos e colocou-o em contato com o campo

    do simbolismo tendo-se, por exemplo um dos seus casos em que um paciente falou de um sol

    flico, figura posteriormente encontrada por Jung na cultura egpcia.

    O encontro de Freud e Jung propiciou ao primeiro um suporte acerca da viso psicanaltica

    do inconsciente. No entanto as divergncias entre ambos no tardariam em aparecer. Em Viena,

    Freud e Jung discutiram sobre fenmenos parapsicolgicos, quando ocorreu um barulho na estan-

    te de livros do escritrio de Freud. Jung disse que tal fenmeno refletia um dos tpicos que esta-

    vam discutindo e predisse um novo barulho. Freud discordou desta possibilidade, mas um segundo

    barulho ocorreu. Freud depois escreveu para Jung dizendo que aps sua partida os barulhos con-

    tinuaram, porm os considerava sem importncia. (Memrias, Sonhos e Reflexes).

    Uma das possveis causas para o rompimento entre Freud e Jung deveu-se ao fato de este

    ltimo insistir em destacar temas espirituais em seu foco de pesquisa.

    Pode-se considerar as contribuies de Jung para Psicologia Transpessoal em quatro pon-

    tos:

    a noo que desenvolvimento psicolgico poderia incluir o crescimento de altos n-

    veis de conscincia e continuar ao longo da vida;

    o conceito de transcendncia til para cada indivduo;

    a prontido para explorar vises de outras culturas multicentenrias bem como de

    levantar insights dentro da cultura ocidental mostraram-se relevantes para o traba-

    lho clnico atual;

    o reconhecimento de que cura e crescimento freqentemente resulta de experin-

    cias simblicas ou de estados alterados de conscincia, os quais no podem ser

    reduzidos racionalizao.

    Estas contribuies se expressam nos estudos junguianos acerca dos arqutipos e mitos,

    inconsciente coletivo, sonhos, tipos psicolgicos, da abordagem simblica, da sincronicidade, e

    das dimenses espirituais da psique, que serviram de base para a fundamentao da Psicologia

    Transpessoal no Ocidente.

    Jung tambm pode ser visto como um dos primeiros tericos a estudar, numa perspectiva

    psicolgica, fenmenos como transes medinicos ou no, yoga, espiritualidade dos nativos ameri-

    canos, xamanismo africano, o I Ching, alquimia e gnosticismo.

  • 34

    As publicaes que mais destacam o aspecto transpessoal na obra de Jung so: Sete

    Sermes para um Morto; Uma Resposta a J; Memrias, Sonhos e Reflexes (JUNG, 2002).

    possvel perceber a ousadia de Jung frente ao meio acadmico a partir de sua declarao a BBC,

    quando questionado acerca da existncia de Deus: Eu no penso que ele existe, eu sei que ele

    existe.

    Terceira Fora Humanismo/Existencialismo

    Weil (1978b, p. 14-15) chama a ateno para o fato de que a terapia e a psicologia exis-

    tencial tm focalizado j h muito tempo a importncia da dimenso fenomenolgica do aqui e

    agora para emergncia do encontro existencial e das suas relaes com os valores superiores

    da humanidade, tais como a beleza, a verdade e o amor. Para autores como Laing e Maslow, a

    conscincia csmica constitui o meio e o objetivo final da terapia. Neste terreno tambm h pro-

    blemas a levantar e a solucionar.

    Existe uma necessidade pulsional de se chegar conscincia csmica?

    Os valores ligados a ela so instintides?

    Como chegar conscincia csmica sem riscos de descompensao?

    Por que a experincia csmica tem o valor teraputico que se lhe tem atribudo?

    Quais as relaes entre a realidade da experincia csmica e a realida-

    de da vida quotidiana?

    Os trabalhos pioneiros de Maslow (apud Walsh e Vaughan, 1995) marcaram o incio pro-

    missor das pesquisas nesta rea. Sendo possvel encontrar nas obras finais de Carl Rogers (1983)

    indcios de sua abertura para os estudos transpessoais. Em Tornar-se Transpessoal Boainain Jr.

    (1998), destaca que Carl Rogers, na dcada final de sua vida, teria passado por um processo de

    transformao transpessoal e, ultrapassando os modelos tradicionais da psicologia humanista,

    teria oferecido fundamentos para criao de uma Abordagem Transpessoal Rogeriana. Este livro

    resgata o momento de passagem do humanismo para o transpessoal.

    Carl Rogers

    Considerado um dos principais representantes da Terceira Fora em Psicologia, Rogers foi

    um dos primeiros autores que forneceu informaes acerca das possibilidades de ampliao do

    campo de pesquisa na rea psicolgica.

    Tornando relevante a possibilidade de abertura para novas idias Rogers (1983, p. 26) va-

    loriza quelas que dizem respeito ao espao interno o chamado reino dos poderes psicolgicos e

    das habilidades psquicas da pessoa humana.

    Nesse sentido assim se expressa:

  • 35

    Estou aberto a fenmenos ainda mais misteriosos - premonio, te-

    lepatia, clarividncia, s auras humanas, s fotografias kirlianas, e at mesmo

    s experincias que se do fora do corpo. Estes fenmenos podem no corres-

    ponder s leis cientficas conhecidas, mas talvez estejamos no caminho da des-

    coberta de uma nova ordem, regida por outros tipos de leis. Sinto que estou a-

    prendendo muito com uma nova rea de conhecimentos, e considero esta expe-

    rincia agradvel e empolgante.

    Esta abertura de Rogers marca uma passagem importante dentro do movimento psicolgi-

    co, pois mostra o interesse dos psiclogos humanistas por uma nova dimenso em psicologia, que

    mais tarde passou a denominar-se Psicologia Transpessoal, e apontava novos rumos para a pes-

    quisa.

    Importante ressaltar que em Reflexes sobre a Morte, Rogers (1983, p. 29) nos ensina

    um dos pontos considerados centrais da Psicologia Transpessoal: a morte.

    A minha crena de que a morte o fim foi modificada, no entanto, por

    coisas que aprendi na dcada passada. Fiquei impressionado com os relatos de

    Raymond Moody (1975) sobre as experincias com pessoas que estiveram pr-

    ximas da morte a ponto de serem declaradas mortas, mas que voltaram vida.

    Impressionam-me alguns relatos sobre reencarnao, embora eu considere uma

    bno muito duvidosa. Interesso-me pelos trabalhos de Elisabeth Kbler-Ross

    e por suas concluses sobre a vida aps a morte.

    Em atualizao a estas afirmaes o autor escreve: Vivendo o Processo de Morrrer. Nele

    busca reorganizar suas consideraes sobre o processo da morte, afirmando a nova viso quando

    destaca: contrastam frontalmente com algumas passagens deste captulo, escrito h apenas dois

    anos atrs (ibid. p.31).

    A experincia de falecimento de sua esposa traa um bonito percurso na reorganizao do

    conceito de morte, e marca a transformao operada em sua mente flexvel e disponvel ao novo.

    Modificaram completamente minha concepo do processo da morte.

    Agora considero possvel que cada um de ns seja uma essncia espiritual con-

    tnua, que se mantm atravs dos tempos e que ocasionalmente se encarna

    num corpo humano. (Ibid, p. 31)

    Em Estados Alterados de Conscincia Rogers (1983) destaca os trabalhos de Grof e Grof

    (1977) e Lilly, que apontam a capacidade das pessoas ultrapassarem o nvel comum de conscin-

    cia, conforme transcrito a seguir:

    Seus estudos parecem revelar que em estados alterados de conscin-

    cia, as pessoas entram em contato com o fluxo da evoluo e apreendem seu

    significado. Este contato vivenciado como um movimento que os aproxima de

    uma experincia transcendente de unidade. como se o eu se dissolvesse nu-

  • 36

    ma regio de valores superiores, especialmente de beleza, harmonia e amor. A

    pessoa sente-se como se ela e o cosmos fossem um s. A realizao obstinada

    de pesquisas parece que vem confirmando as experincias de unio dos msti-

    cos com o universo. (ROGERS, 1983, p.47)

    Diante desse cenrio, percebe-se que Rogers revela o contato com as produes cientfi-

    cas da ento nascente rea de Psicologia Transpessoal, citando os trabalhos Grof, um de seus

    expoentes, responsvel por valorosa construo cartogrfica da conscincia nesta rea.

    Com o desenvolvimento de pesquisas que incluam a dimenso espiritual da vida humana,

    vrios psiclogos humanistas passaram a se interessar por uma srie de estudos at ento negli-

    genciados pela Psicologia Humanista.

    3. Espiritualidade e os pioneiros do desenvolvimento humano

    Apesar de a modernidade ter transformado a sua grande contribuio, diferenciaes das

    esferas de valores culturais10

    (WILBER, 2002, p. 76), em dissociao, fragmentao e alienao,

    ela tambm apresentou sua contribuio ao modelo de desenvolvimento que inclui a dimenso

    espiritual. No campo da psicologia, os estudos sobre o desenvolvimento emergiram no final do

    sculo XIX, tendo sofrido diversas as influncias. Como destaca Charlesworth (1992, p.5):

    Como habitualmente reconhecido, a psicologia do desenvolvimento

    tem uma rica histria. Seus precursores incluem eminentes filsofos, pedagogos,

    e mdicos cujas idias e observaes indubitavelmente tm tido um impacto a-

    cumulativo sobre esta cincia do comportamento infantil e do desenvolvimento

    no sculo dezenove. Mas um conjunto to vasto de perspectivas ao longo dos

    sculos tornou difcil identificar ancestrais diretos da psicologia do desenvolvi-

    mento.

    Cairns (1992) aponta que as primeiras tentativas de compreenso cientfica do desenvol-

    vimento surgiram com as contribuies de James Mark Baldwin, considerado por Wilber (2002),

    como um dos primeiros a esboar modelos integrais de desenvolvimento. Baldwin, contemporneo

    de William James e de Peirce, um nome central na psicologia moderna, sendo o primeiro a definir

    de forma precisa o que um estgio de desenvolvimento, alm de apresentar a primeira verso de

    estgios do desenvolvimento religioso. Seu esquema de desenvolvimento cognitivo foi adotado por

    Piaget e por Kohlberg, contudo foi relegado ao esquecimento, graas ao predomnio do behavio-

    rismo americano.

    A importncia de Baldwin pode ser vista nas palavras Kohlberg (apud WILBER, 2002, p.

    98) a seguir:

    10 Diferenciao sobretudo da arte, da tica e da cincia que passam a seguir seus prprios caminhos,

    livres das presses e imposies das outras esferas.

  • 37

    Quando eu li Baldwin mais profundamente, compreendi que Piaget de-

    rivou de Baldwin todas as idias bsicas com as quais comeou na dcada de

    20: assimilao, acomodao, esquema e adualismo, egocentrismo ou o car-

    ter indiferenciado da mente da criana. Tambm reconheci que a obra global de

    Piaget, a criao de uma epistemologia gentica de uma tica que utilizariam a

    epistemologia para apresentar problemas para a psicologia do desenvolvimento

    e que utilizariam a observao desenvolvimentalista para ajudar a questes epis-

    temolgicas, tambm tiveram origem em Baldwin

    Kohlberg (apud WILBER, 2002, p. 98) reconhece que seu modelo dos seis estgios de de-

    senvolvimento moral fruto das contribuies de Baldwin, e aponta que os nveis bsicos de de-

    senvolvimento (pr-convencional, convencional e ps-convencional)11

    tambm derivam das idias

    deste autor, como podemos ver na citao a seguir:

    ... Nossos dados sugeriram que as distines em trs nveis de Bald-

    win [adualista, dualista e tica] definiam estgios (ou subnveis) na srie bsica,

    pr-convencional, convencional e ps-convencional (autnoma-tica)

    Baldwin tambm reconhecido como um dos primeiros a oferecer explicaes sobre os

    estgios do desenvolvimento espirituais, destacando que estes no poderiam ser reduzidos a inte-

    resses econmicos, cientficos ou morais. Neste campo suas idias so extremamente atuais, co-

    mo destaca Wilber (2002, p. 99):

    ... Baldwin reconhecia que o desenvolvimento da conscincia levava a,

    e culminava em, uma experincia esttica num grau supremo, que unia simulta-

    neamente tanto a moral como a cincia mais elevadas. Essa , naturalmente,

    uma verso do idealismo esttico (derivado de Kant, de Schelling e de Schiller),

    mas que Baldwin retrabalhou em seu prprio sistema, denominando pancalismo,

    palavra que significa que a conscincia csmica totalmente abrangente, sem

    referncia alguma fora de si mesma. Essa experincia da unidade prefigurada

    na contemplao de uma bela obra de arte. A prpria obra de arte existe no

    mundo objetivo, exterior, e, enquanto objeto, pode ser estudada pela investiga-

    o cientfica. Porm, a beleza e o valor da obra de arte um estado interior, um

    estado subjetivo, trazido arte por aquele que a contempla (embora esteja fun-

    damentado nas caractersticas objetivamente reais da obra). ... da natureza de

    tal experincia sinttica ir alm de objetos estticos especficos de contemplao

    at a prpria realidade como um todo. Essa experincia sinttica inclui a idia de

    11 Biaggio (2002, p.24) destaca que no nvel pr-convencional, os indivduos ainda no chegaram a entender e respeitar normas morais e expectativas compartilhadas, predominando atitudes pragmtica e he-donista. No nvel convencional h uma concentrao nos sentimentos coletivos dos demais, sendo que o self identifica-se com, u internaliza, as regras e expectativas dos outros, especialmetne das autoridades; e no ps-

    convencional h uma construo pessoal do sujeito que define moral em termos universais de justia, direitos

    naturais e respeito pessoas, independentemente de sexo, raa, crena e ou religio, ou seja, diferencia o self das regras e expectativas dos outros e define os valores morais em termos de princpios prprios.

  • 38

    Deus, mas agora se v que ela se refere a essa totalidade orgnica ou espiritual

    em cujo mbito o eu e o mundo podem finalmente ser conhecidos. Essa corren-

    te esttica tambm passa por um desenvolvimento em etapas, que culmina na

    experincia consumada da conscincia csmica.

    Biaggio (2002, p. 29), indica que apenas 3% a 5% das pessoas apresentam o raciocnio

    do estgio ps-convencional seis, o que levou muitos tericos a questionar sua validade, contudo

    Kohlberg, alm de defender o estgio 6, como realidade emprica e terica, postula nos ltimos

    anos de sua vida12

    a existncia de um stimo estgio, no sentido lato, relacionado com orienta-

    es ticas e religiosas, que vo alm de sua concepo de justia. O stimo estgio envolve a

    construo de um senso de identidade ou unidade com o ser, com a vida, ou com Deus (Ibid, p.

    38).

    Kohlberg aponta a necessidade do estgio sete como um caminho para resolver o impasse

    presente no relativismo colocado pela distino entre princpios ticos e preocupaes egostas

    ou hedonistas que existem no estgio 6 (Ibid, p. 40) e destaca o estico Marco Aurlio como e-

    xemplo deste ltimo estgio.

    O contedo da f de Marco Aurlio, como o de todos os esticos,

    simples e quase duro. comea com a crena de que o universo ordenado,

    cognoscvel e em evoluo. Ao referir-se ao princpio ltimo, ordenador, racional

    e evolutivo do universo, Marco Aurlio no tenta separar Deus da natureza. s

    vezes ele chama esse princpio de Deus, s vezes de natureza. Desta crena ele

    deriva uma viso de lei natural que lhe d fora de agir em termos de princpios

    universais de justia em um mundo injusto. isso tambm lhe d a paz que vem

    de sentir-se a si mesmo como parte finita de um universo infinito.

    O stimo estgio, Espiritual universal, raramente aparece nas citaes quando da apre-

    sentao da teoria dos estgios do desenvolvimento moral, contudo o trabalho de James Fawler

    (1992), sobre os Estgios da F, seguiu as pistas deixadas por Kohlberg e se destacou como

    uma linha de estudos no campo da espiritualidade, apresentando seis estgios, que vo do primei-

    ro, f mgico-projetiva, at o sexto a f universalizante.

    Estes pesquisadores deixaram enormes contribuies para o estudo do desenvolvimento

    humano e iniciaram pesquisas que contriburam para o estabelecimento de uma linha de desenvol-

    vimento espiritual que englobam trabalhos na rea de solicitude, sinceridade, preocupao, f

    religiosa e estgios meditativos. Assim como, gradativamente se desdobraram e revelaram, nas

    ltimas dcadas, uma gama de estudos sobre o imenso arco-ris de linhas de desenvolvimento que

    incluem a moral, os afetos, a auto-identidade, a psicossexualidade, a cognio, as idias a respeito

    12 Kohlberg morreu em 19 de janeiro de 1987, tendo convivido os ltimos 16 anos de sua vida com

    extrema dor, decorrente de uma infeco intestinal contrada quando realizava pesquisas em Belize, na Am-

    rica central.

  • 39

    do bem, a adoo de papis, a capacidade scio-emocional, a criatividade, o altrusmo, alegria,

    competncia para se comunicar, os modos de espao e tempo, a tomada pela morte, as necessi-

    dades, a viso de mundo, a competncia lgico-matemtica, as habilidades cinestsicas, a identi-

    dade sexual e a empatia, entre outras que contam com suporte de pesquisas empricas.

    Wilber (2002, p. 43-44) destaca que essas linhas so relativamente independentes:

    ... significando que, em sua maior parte, elas podem se desenvolver

    independente umas das outras, em diferentes propores, com dinmicas dife-

    rentes e sob cronogramas diferentes. Uma pessoa pode ser muito avanada em

    algumas linhas, razovel em outras, inferior em algumas outras e tudo ao

    mesmo tempo. Desse modo, o desenvolvimento global a soma total de todas

    essas diferentes linhas no mostra nenhum tipo de desenvolvimento linear ou

    seqencial. ... No entanto, a maior parte das pesquisas continuou a constatar

    que cada linha de desenvolvimento tende a se desdobrar de uma maneira se-

    qencial, holrquica: os estgios superiores de cada linha tendem a se desen-

    volver sobre estgios anteriores ou incorpor-los, no se pode pular nenhum es-

    tgio, e estes aparecem numa orem que no pode ser alterada por condiciona-

    mento ambiental nem por reforo social.

    Assim, alm de independentes, elas se desdobram de forma hololrquica atravs de um

    conjunto de ondas que incluem um estgio fsico/sensrio-motor/pr-convencional, um estgio de

    aes concretas/regras convencionais, um estgio mais abstrato, formal, ps-convencional (WIL-

    BER, 2002, p. 44) e os estgios ps-ps-convencionais ou transpessoais. Eis o retorno de uma

    verso resumida do Grande Ninho do Ser, como espao de desenvolvimento geral ou potencial,

    que se desdobra do corpo (sensrio-motor) para a mente (convencional e ps-convencional) e dai

    para o esprito (ps-ps-convencional).

    A ps-modernidade trouxe imensos desafios para os estudos na rea da espiritualidade,

    pois enquanto a modernidade diferenciou os Trs Grandes (Arte, Moral e Cincia), a ps-

    modernidade prometeu integr-los numa abrangncia inclusiva, integral e no-exclusivista, mas

    com freqncia abraou a loucura aperspectiva, na qual, nenhuma postura melhor que a outra e

    as hierarquias so vistas como marginalizantes, negando-se, assim, as distines qualitativas de

    qualquer tipo, inclusive as pesquisas na rea de desenvolvimento por inclurem hierarquias. Mas

    se devemos ter todas as posturas como igualitrias, por que ento rejeitar o nazismo ou o racis-

    mo? Eis uma questo de difcil resposta para o aperspectivismo ps-moderno.

    As contribuies da ps-modernidade devem ser includas numa agenda integral de estudo

    da espiritualidade, pois a compreenso de que o mundo , em parte, uma construo e uma inter-

    pretao, e que todo significado depende do contexto e estes so interminavelmente holnicos so

    fundamentais para ampliarmos a viso da integralidade e superarmos o reducionismo de leituras

  • 40

    precipitadas da Grande Cadeia do Ser, e assim, termos uma perspectiva mais abrangente do

    fenmeno humano.

    Percebe-se claramente o avano dos estudos na rea da espiritualidade e psicologia, con-

    tudo precisamos definir com mais clareza em que sentido este termo esta sendo utilizado. Com

    este objetivo, buscamos destacar a seguir algumas definies de espiritualidade formuladas a par-

    tir do referencial da psicologia do desenvolvimento e que englobam as contribuies da pr-

    modernidade, modernidade e ps-modernidade.

    Espiritualidade: algumas definies

    De forma geral, Wilber (2002, p. 147) destaca cinco definies de espiritualidade que apre-

    sentam interesse a um olhar psicolgico transpessoal:

    A espiritualidade envolve os nveis mais elevados de qualquer uma das linhas de de-senvolvimento.

    A espiritualidade a soma total dos nveis mais elevados das linhas de desenvolvi-mento.

    A espiritualidade , ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.

    A espiritualidade uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que voc pode ter em qualquer estgio em que esteja.

    A espiritualidade, basicamente, envolve experincias de pico, e no estgios.

    Estas cinco definies congregam aspectos importantes do fenmeno espiritualidade que

    nos parece importantes para sua compreenso, dentro de um modelo integral, neste sentido ire-

    mos abord-las a seguir:

    1. A espiritualidade envolve os nveis mais elevados de qualquer uma das linhas de desenvolvi-mento.

    Nessa perspectiva, a espiritualidade significa basicamente os nveis transpessoal, trans-

    racional, ps-ps-convencional de qualquer uma das linhas de desenvolvimento, como podemos

    perceber no exemplo abaixo:

  • 41

    Neste exemplo, as linhas de desenvolvimento interpessoal e afetivo seriam consideradas

    espirituais, pois apresentam os nveis mais elevados de desenvolvimento, tendo evoludo do nvel

    pr-convencional ao convencional e deste ao ps-convencional at alcanar a sua dimenso mais

    ampla no ps-ps-convencional. Esta viso, conforme destaca Wilber (2002, p. 148) muito co-

    mum e:

    ... reflete os aspetos da espiritualidade que incorporam as capacidades

    mais elevadas, os motivos mais nobres, as melhores aspiraes; os alcances

    maiores da natureza humana; os mais altamente evoludos, a extremidade

    crescente, a ponta de lana todo o que aponta para os nveis mais elevados de

    cada uma das linhas.

    Assim, a espiritualidade ou um dos seus aspectos particulares seguiria definitivamente um

    curso seqencial ou em estgios, pois ela compreende, por definio, os estgios ps-ps-

    convencionais em qualquer uma das correntes de desenvolvimento.

    2. A espiritualidade a soma total dos nveis mais elevados das linhas de desenvolvimento.

    Esta definio semelhante definio anterior, mas com uma nfase ligeiramente dife-

    rente (porm importante). Essa definio enfatiza o fato de que, embora as linhas individuais se

    desdobram de maneira hierrquica, a soma total dos estgios mais elevados dessas linhas no

    apresentaria um tal desenvolvimento em estgios. No grfico, logo abaixo, o somatrio das linhas

    interpessoal, espiritual e afetivo representam esta definio de espiritualidade total vivida pelo indi-

    viduo. Como o desenvolvimento total e o desenvolvimento do eu total, o desenvolvimento espi-

    ritual total no ocorreria em estgios.

    Em outras palavras, o caminho espiritual de cada pessoa radicalmente individual e nico,

    mesmo que as prprias aptides particulares possam seguir um caminho bem-definido.

  • 42

    3. A espiritualidade , ela mesma, uma linha de desenvolvimento separada.

    Nesta definio o desenvolvimento espiritual apresentaria algum tipo de desdobramento

    em estgios, uma vez que uma linha de desenvolvimento, por definio, mostra desenvolvimento.

    Modelos de desenvolvimento espiritual, oriental e ocidental, apresentam em algum nvel

    um desenvolvimento seqencial holrquico, embora, mais uma vez isso no evite regresses, espi-

    rais, avanos temporrios para frente ou experincias de pico de qualquer um dos principais esta-

    dos.

    A seguir apresentamos uma adaptao dos mapas de desenvolvimento da espiritualidade

    adaptados de Wilber (2002, p. 229 e 231).

    Uma comparao intercultural destes mapas do desenvolvimento espiritual aponta para a

    perplexidade diante da enorme semelhana dos campos morfogenticos ou espaos de desenvo l-

    vimento sobre os quais migram os estgios dos seus desenvolvimentos espirituais (WILBER,

    2002, p.149). Contudo, uma das principais dificuldades em se chegar a um acordo a respeito de

    uma concepo de estgios que, em sua maior parte, as pessoas, mesmo que estejam de fato

    progredindo atravs de estgios de competncia, raramente experimentam qualquer coisa que

    lhes d a sensao de um estgio ou que se parea cm um estgio. Um exemplo clssico disto

    est na dificuldade de crianas filmadas resolvendo questes quando estavam em um estgio pr-

    operatrio aceitarem as respostas como suas quando vem este filme em um estgio posterior.

  • 43

    4. A espiritualidade uma atitude (tal como a sinceridade ou o amor) que voc pode ter em qualquer estgio em que esteja.

    Esta a definio mais comum de espiritualidade, no obstante, como destaca Wilber

    (2002, p. 151-152):

    ... isso tem se comprovado muito difcil de definir ou mesmo de se e-

    nunciar de uma maneira coerente. No podemos simplesmente dizer que a ati-

    tude necessria o amor, pois o amor, de acordo com a maior parte das pesqui-

    sas, tende (assim como acontece com outros sentimentos de afeto) a se desdo-

    brar do modo egocntrico para o sociocntrico e da para o mundicntrico; e,

    portanto, essa atitude no est completamente presente em todos os nveis; mas

    se desenvolve a si mesma.

    A viso romntica presente nos que usam esta definio indica que as crianas, por exem-

    plo, tem maior capacidade de sinceridade, dada a fluidez com que a usam; contudo como se pode

    ser sincera sem ainda conseguir adotar o papel do outro? Atribuir o termo espiritual a uma criana

    vivendo o egocentrismo equivaleria transformar o espiritual em narcisismo. Neste sentido Wilber

    (2002, p. 159) destaca:

    Se a sua idia de espiritualidade se sentir bem, ento a infncia po-

    deria ser o den; porm, se a sua idia tambm envolve fazer o bem, adotando

    o papel de outras pessoas, e a projeo da sua conscincia mediante muitas

    perspectivas e panoramas pluralistas, de modo a incluir a compaixo, o cuidado

    e o altrusmo, ento a infncia um domnio de expectativas reduzidas, inde-

    pendentemente do quanto seja maravilhosamente fluido e fluente o seu egocen-

    trismo.

    5. A espiritualidade, basicamente, envolve experincias de pico, e no estgios.

    As experincias de pico (ou estados alterados de conscincia) indicam o acesso s dimen-

    ses da alma ou do esprito, ou mesmo experincias de expanso da conscincia na dimenso

    no-dual em qualquer momento do desenvolvimento humano. No apresentando, em geral, de-

    senvolvimento ou desdobramento em estgios. Elas so temporrias, passageiras, transitrias, por

    isso denominadas de estados de conscincia, diferentemente das estruturas, que so mais est-

    veis.

    Experincias de pico no requerem a noo de estgios e apontam para o acesso a nveis

    transpessoais, contudo as experincias acessadas so geralmente interpretadas por meio de es-

    truturas arcaicas, mgicas, mticas ou racionais, cada uma delas marcada por estgios, sendo a

    meta do trabalho formativo, transformar estados em estruturas, pois ... medida que esses esta-

    dos temporrios so convertidos em caractersticas duradouras, eles se tornam estruturas que

    mostram desenvolvimento (WILBER, 2002, p. 152).

  • 44

    Uma anlise destas cinco definies nos aponta que a resposta para pergunta: a espiritua-

    lidade se desenvolve ou no em estgios, feita no incio deste trabalho, depende de que definio

    estamos utilizando, pois nem tudo que chamamos de espiritualidade envolve estgios de desen-

    volvimento.

    No obstante, muitos aspectos da espiritualidade parecem, numa ins-

    peo mais minuciosa, envolver um ou mais linhas de desenvolvimento [Defini-

    o 1 e 2], bem como a espiritualidade considerada, ela mesma, como uma linha

    separada [Definio 3]. No entanto, experincia de pico [Definio 5] no apre-

    sentam desenvolvimento em estgios, embora tanto as estruturas que tm expe-

    rincias de pico quanto os domnios onde essas experincias ingressam mos-

    trem desenvolvimento se houver realizaes permanentes (Ibid, p. 153).

    Uma abordagem psicolgica mais ampla deveria contemplar algumas destas perspectivas

    de espiritualidade, assim como buscar explicitar o seu modelo de desenvolvimento, e, por conse-

    guinte, do humano que vive o processo humanizao. Todavia, quer se inclua ou no a presena

    da espiritualidade como uma dimenso humana fundamental, as pesquisas apontam que o pro-

    cesso de humanizao mais complexo de que supnhamos, requerendo a vivncia de exerc-

    cios espirituais (HADOT, 2006), que objetivam a busca, a prtica, a experincia mediante as

    quais o sujeito opera sobre si prprio as transformaes necessrias para ter acesso verdade

    (FOUCAULT, 2001, p16), que ajudam a pessoa a tornar-se receptiva a uma experincia direta da

    dimenso do Esprito, e no meramente a crenas ou idias a respeito do Esprito.

    Referncias bibliogrficas

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