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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/set, 1993 239 ARTIGO / ARTICLE Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade? Quantitative and Qualitative Methods: Opposition or Complementarity? Maria Cecilia de S. Minayo 1 Odécio Sanches 2 MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O. Quantitative and Qualitative Methods: Opposition or Complementarity? Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/sep, 1993. This paper summarizes a methodological debate underway at the Brazilian National School of Public Health concerning the two major approaches for investigations in the field of health: the quantitative and qualitative methods. The authors — a public health anthropologist and a biostatistician — used theoretical and practical arguments to demonstrate that these methods are differentiated in nature, but that they complement each other in the understanding of social reality. In a world where human beings are distinguished by communicative language, this debate focuses on the possibility, meaning, and limits of both mathematical language and the language commonly used in everyday life. Key words: Biostatistics; Research Methods; Social Sciences; Public Health INTRODUÇÃO Este artigo tem sua origem em uma das atividades curriculares do Curso de Pós-Gra- duação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) — os denominados Seminários Avançados de Teses —, quando os autores, discutindo um dos projetos apresentados, tive- ram a oportunidade de apontar as potencialida- des e limitações das abordagens quantitativa e qualitativa que estavam sendo utilizadas no projeto em discussão. Estas abordagens são os instrumentos de que se serve a Saúde Pública, em particular, para se aproximar da realidade observada. Nenhuma das duas, porém, é boa, no sentido de ser suficiente para a compreensão completa dessa realidade. Um bom método será sempre aquele, que permitindo uma construção correta dos dados, ajude a refletir sobre a dinâmica da teoria. Portanto, além de apropriado ao objeto da investigação e de oferecer elementos teóricos para a análise, o método tem que ser operacio- nalmente exeqüível. Aceitando um desafio do Editor da Revista, dois investigadores se encontram: um trabalha com a abordagem quantitativa; o outro, com a metodologia qualitativa. Ambos defendem seus respectivos instrumentos de ação, porém ambos os relativizam, pois só quando os mesmos são utilizados dentro dos limites de suas especifici- dades é que podem dar uma contribuição efeti- va para o conhecimento da realidade, isto é, a busca da construção de teorias e o levantamen- to de hipóteses. Na primeira parte, a abordagem quantitativa é examinada mais no contexto de uma lingua- gem. Sem particularizar para o campo da Saúde Pública, procura-se evidenciar a evolução das idéias associadas a esta abordagem na descrição e interpretação de fenômenos biológicos de um modo geral (portanto, não adentrando a comple- xidade inter e multidisciplinar da Saúde Públi- ca). Na segunda parte deste trabalho, a metodolo- gia qualitativa é abordada procurando enfocar, 1 Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 9º andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil. 2 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 8º andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.

Qualitativo quantitativo minayo

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/set, 1993 239

ARTIGO / ARTICLE

Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade?Quantitative and Qualitative Methods: Opposition or Complementarity?

Maria Cecilia de S. Minayo 1

Odécio Sanches 2

MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O. Quantitative and Qualitative Methods: Oppositionor Complementarity? Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/sep, 1993.This paper summarizes a methodological debate underway at the Brazilian National School ofPublic Health concerning the two major approaches for investigations in the field of health: thequantitative and qualitative methods.The authors — a public health anthropologist and a biostatistician — used theoretical andpractical arguments to demonstrate that these methods are differentiated in nature, but that theycomplement each other in the understanding of social reality.In a world where human beings are distinguished by communicative language, this debatefocuses on the possibility, meaning, and limits of both mathematical language and the languagecommonly used in everyday life.Key words: Biostatistics; Research Methods; Social Sciences; Public Health

INTRODUÇÃO

Este artigo tem sua origem em uma dasatividades curriculares do Curso de Pós-Gra-duação em Saúde Pública da Escola Nacionalde Saúde Pública (Ensp), Fundação OswaldoCruz (Fiocruz) — os denominados SemináriosAvançados de Teses —, quando os autores,discutindo um dos projetos apresentados, tive-ram a oportunidade de apontar as potencialida-des e limitações das abordagens quantitativa equalitativa que estavam sendo utilizadas noprojeto em discussão.

Estas abordagens são os instrumentos de quese serve a Saúde Pública, em particular, para seaproximar da realidade observada. Nenhumadas duas, porém, é boa, no sentido de sersuficiente para a compreensão completa dessarealidade. Um bom método será sempre aquele,que permitindo uma construção correta dos

dados, ajude a refletir sobre a dinâmica dateoria. Portanto, além de apropriado ao objetoda investigação e de oferecer elementos teóricospara a análise, o método tem que ser operacio-nalmente exeqüível.

Aceitando um desafio do Editor da Revista,dois investigadores se encontram: um trabalhacom a abordagem quantitativa; o outro, com ametodologia qualitativa. Ambos defendem seusrespectivos instrumentos de ação, porém ambosos relativizam, pois só quando os mesmos sãoutilizados dentro dos limites de suas especifici-dades é que podem dar uma contribuição efeti-va para o conhecimento da realidade, isto é, abusca da construção de teorias e o levantamen-to de hipóteses.

Na primeira parte, a abordagem quantitativaé examinada mais no contexto de uma lingua-gem. Sem particularizar para o campo da SaúdePública, procura-se evidenciar a evolução dasidéias associadas a esta abordagem na descriçãoe interpretação de fenômenos biológicos de ummodo geral (portanto, não adentrando a comple-xidade inter e multidisciplinar da Saúde Públi-ca).

Na segunda parte deste trabalho, a metodolo-gia qualitativa é abordada procurando enfocar,

1 Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacionalde Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 9ºandar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.2 Departamento de Epidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde da Escola Nacional de SaúdePública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 8º andar, Riode Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.

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principalmente, o social como um mundo designificados passível de investigação e a lingua-gem comum ou a “fala” como a matéria-primadesta abordagem, a ser contrastada com aprática dos sujeitos sociais.

Finalmente, procura-se concluir que ambas asabordagens são necessárias, porém, em muitascircunstâncias, insuficientes para abarcar toda arealidade observada. Portanto, elas podem edevem ser utilizadas, em tais circunstâncias,como complementares, sempre que o planeja-mento da investigação esteja em conformidade.

O conhecimento científico é sempre umabusca de articulação entre uma teoria e a reali-dade empírica; o método é o fio condutor parase formular esta articulação. O método tem,pois, uma função fundamental: além do seupapel instrumental, é a “própria alma do conteú-do”, como dizia Lenin (1965), e siginifica opróprio “caminho do pensamento”, conforme aexpressão de Habermas (1987).

O QUANTITATIVO

A Descrição Matemáticacomo uma Questão de Linguagem

O desenvolvimento da linguagem é uma etapafundamental na evolução do controle deliberadoe consciente das circunstâncias ambientais. Afala exerce um papel vital na rápida transmissãode grandes quantidades de informação entre osdiferentes elementos de um grupo. Quando seatinge o estágio da escrita, cria-se, então, apossibilidade do registro permanente, revisadoe acumulado. A modificação consciente eintencional da linguagem para servir a propósi-tos deliberados é uma etapa posterior do pro-cesso.

Aqueles que acompanham e operam na evo-lução das idéias e do conhecimento sabem quea situação atual da investigação científica éurgente: os trabalhos científicos são produzidosa uma taxa sempre crescente, tornando-seconstantemente mais difícil acompanhar lado alado os novos desenvolvimentos, tanto naprópria área de interesse específico quanto noâmbito inter e multidisciplinar, independente-mente da existência de meios eletrônicos paraarmazenamento da informação.

Nas áreas denominadas ciências exatas, nosúltimos 3 séculos tem havido consideráveisavanços a este respeito, já existindo, atualmen-te, todos os pré-requisitos para o manuseio docrescimento acelerado do conhecimento, princi-palmente o da linguagem, conforme acentuaBailey (1967).

De fato, a título de ilustração, consideremosaquela que parece ser a mais antiga das ciênciasexatas: a Astronomia. É bem conhecido ofantástico conhecimento adquirido pelos astrô-nomos da Babilônia e do Egito antigo, não sóenvolvendo a observação prolongada e precisados eventos, mas também desenvolvendo ahabilidade para se distinguir padrões de mudan-ças, sobre cuja base puderam criar um calendá-rio suficientemente preciso, que permitiu odesenvolvimento de atividades que, moderna-mente, constituem o cerne da economia agríco-la.

Na verdade, para se alcançar tais resultadosera necessário mais que observar os aconteci-mentos e registrar luz e calor nos dias de verão,ou luz esmaecida e dias frios no inverno. Aobservação de padrões reconhecíveis e a deter-minação e mensuração de suas posições eramessenciais. A manipulação e o registro de taismedidas com propósitos de predição implica-vam a existência de uma linguagem e de umaescrita adequadas. Não é, pois, por um acidenteque a matemática babilônica e egípcia possuíaas qualidades suficientes para atender a taisnecessidades.

A lição fundamental que se pretende extrairda lembrança histórica de tal fato de conheci-mento de todos é que, mesmo no chamadoMundo Antigo, um conhecimento consideradosuficientemente preciso não teria sido atingidoe aplicado sem as noções básicas de contar emedir, acompanhadas de um adequado instru-mento matemático para manipulá-las.

Isto parece corroborar nosso ponto de vista deque uma interação entre pensamento e lingua-gem e, conseqüentemente, seu desenvolvimentomútuo são pautados por uma correspondenteinterdependência entre pensamento e matemáti-ca, quando nos dispomos a usá-la para propósi-tos de maior precisão de expressão.

A despeito dos grandes avanços na BiologiaMolecular e na Engenharia Genética, reconhe-cemos, no entanto, que nas chamadas soft

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sciences da Biologia, Psicologia, Sociologia,etc., o progresso tem sido mais incerto. Umarazão para este fato é que os sujeitos da pesqui-sa, nestas áreas, são muito mais variáveis ecomplexos que aqueles das denominadas Ciên-cias Exatas.

No entanto, à medida que as observações emensurações tornam-se mais acuradas e extensi-vas, no âmbito das soft sciences tem surgido aoportunidade de se usar a linguagem matemáti-ca para descrever, representar ou interpretar amultidiversidade de formas vivas e suas possí-veis inter-relações.

A questão fundamental, porém, é decidir queespécies de arrazoados matemáticos são rele-vantes para determinados problemas, que limi-tações estão impostas e como tais métodospodem ser ampliados e generalizados. Não sepode perder de vista que o uso da linguagemmatemática leva a descrições e modelos ideali-zados, uma construção abstrata que, na prática,na melhor das situações, será observada apenasparcialmente.

Quanto mais complexo for o fenômeno sobinvestigação, maior deverá ser o esfoço para sechegar a uma quantificação adequada, em parteporque algumas atividades são inerentementedifíceis de serem mensuradas e quantificadas e,em parte, porque, até o presente momento,descrições matemáticas excessivamente compli-cadas são extremamente intratáveis, do ponto devista de solução, para que tenham algum valorprático.

Deve, então, ser exercitada uma considerávelhabilidade no julgamento de quais fatores sãorelevantes, ou pelo menos aproximadamenterelevantes, para um determinado problema.

A realidade, porém, é que nos defrontamoscom uma situação conflitante, que requer realis-mo e manejabilidade. Uma descrição extrema-mente precisa de todos os fatos conhecidos, porexemplo, a respeito da evolução de uma espé-cie, pode impedir qualquer representação mate-mática útil. Por outro lado, uma supersimplifi-cação do quadro matemático utilizado poderiapermitir, com grande facilidade, o cálculonumérico de certos coeficientes, mas isto seria,ou poderia ser, totalmente infrutífero, porquemuitos fatos relevantes teriam que ser omitidos.

Este é, certamente, um dos dilemas presentesno moderno trabalho de investigação como um

todo, não se restringindo, portanto, à investi-gação biológica, médica ou social.

O Papel da Teoria de Propabilidade eda Inferência Estatística

Todos nós sabemos que características indivi-duais tais como peso, altura, pressão arterial,taxas de componentes bioquímicos no sangue,resposta a estímulos externos, etc., variam entreindivíduos de um grupo num dado instante e,num mesmo indivíduo, de instante para instante.Ordem e regularidade só podem ser estabeleci-das, de forma aproximada, em termos médios esobre um grande número de indivíduos.

Nossa impossibilidade de predizer antecipada-mente, e com certeza, os resultados de umexperimento em sucessivas repetições, sempresob as mesmas condições, caracteriza-se comoum experimento aleatório. A variabilidadepresente, nestas condições, é chamada variabili-dade aleatória, casual, randômica ou estocástica.

Em matemática, o instrumento adequado paratrabalhar o aleatório é um conjunto de procedi-mentos que constitui a chamada teoria daprobabilidade. Para todo evento aleatório épossível associar uma ou mais variáveis, ditasvariáveis aleatórias (função definida no espaçoamostral do experimento aleatório em questão),e para cada variável aleatória (ou conjunto devariáveis aleatórias) é possível encontrar umafunção que descreva a distribuição de probabili-dades para a referida variável (ou conjunto devariáveis), dita função densidade de probabili-dade.

O uso de distribuições de probabilidade paradescrever padrões biológicos, médicos ousociais não é recente. Quetelet (1835) já haviautilizado as propriedades da distribuição deGauss para descrever padrões de altura de sereshumanos; Galton (1889), um médico inglês,havia utilizado as propriedades da mesmadistribuição nos estudos de genética sobreherança natural, tendo sido o criador da teoriade análise de dados largamente utilizada emestatística e conhecida sob o rótulo de regressãolinear.

É importante observar que as distribuições deprobabilidade estão fundamentalmente associa-das a conceitos matemáticos, embora sejamderivadas das noções comuns de chance e

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possibilidade, estabelecidas pelo senso comum,e as conclusões devam ser interpretadas emsentido prático.

Ao construirmos um quadro matemáticoválido de alguns fenômenos com fortes flu-tuações aleatórias, introduzimos idéias deprobabilidades e usamos a teoria da probabilida-de para desenvolver as implicações práticas damesma. Se o modelo é razoavelmente satisfató-rio, pelo menos a algum respeito, então asimplicações devem ser verificadas na prática.Isto é, as conclusões matemáticas devem mos-trar um certo grau de aproximação ou aderênciaàs observações que são feitas e aos resultadosobtidos para o fenômeno em questão.

É função da estatística estabelecer a relaçãoentre o modelo teórico proposto e os dadosobservados no mundo real, produzindo instru-mentos para testar a adequação do modelo. Emresumo, enquanto a teoria da probabilidade estádentro da esfera da lógica dedutiva, a estatísticaencontra-se no âmago da lógica indutiva, con-forme explicita Bailey (1967).

A grande potencialidade dos procedimentosestatísticos de análise de dados, na presença devariabilidade aleatória está contida na possibili-dade de se estabelecer inferência, neste casochamada inferência estatística.

Uma das aplicações da inferência estatísticaé o teste de ajuste — também chamado teste deaderência (em inglês, goodness of fit) — de ummodelo teórico proposto ao conjunto de dadosobservados.

Formalmente, dois são os grandes problemasestatísticos de natureza inferencial: os proble-mas de estimação de parâmetros e os problemasde testes de hipóteses estatísticas.

As questões de inferência estatística quederam origem à denominada estatística mate-mática surgiram de modo mais formal com ostrabalhos, quase simultâneos (e às vezes polê-micos), de Sir Ronald A. Fischer e da dupla J.Neyman e E. S. Pearson, na década 20-30(Neyman, 1976; Neyman & Pearson, 1967;Fischer, 1934), sendo brilhantemente unificadasnum contexto de teoria das decisões por A.Wald (Wald, 1950).

Um grande avanço tem sido conseguido nasciências da saúde, e em particular na Epidemio-logia, com a criação de alguns procedimentosinferenciais estatísticos, específicos para deter-

minados desenhos de estudo. No entanto, temocorrido um certo abuso na utilização de taisprocedimentos por parte de muitos pesquisado-res desta área, que, desconhecendo ou intencio-nalmente ignorando as limitações impostas atais procedimentos pelos pressupostos sobre osquais se assentam, extrapolam sua aplicações,deixando sob suspeita os resultados da análiseconduzida (Altman, 1991). Isto ocorre principal-mente nos testes de hipóteses estatísticas, emparticular com o abuso do chamado “p-valor”como uma medida de evidência em relação àhipótese de nulidade (Miettinen, 1985; Stephenet al., 1988; Berger & Selke, 1987; Goodman &Royall; 1985). Os estatísticos encontram-seatualmente na situação dos bioquímicos e dosfarmacólogos: não se sentem responsáveis pelouso indevido e abusivo de seus produtos. Nãosão procedentes as críticas feitas à Estatística;elas devem ser dirigidas aos maus usuários.

Associadas às questões de inferência estatísti-ca temos as questões de amostragem. Em regra,aqui também há um desconhecimento quasegeral, por parte dos não-especialistas, a respeitodo papel da amostragem, sua relação com ainferência e, conseqüentemente, os pressupostosbásicos que devem nortear a opção por umdeterminado desenho de amostragem e umtamanho específico da amostra. Esta não é umaquestão apenas técnica, relacionada à definiçãodo tamanho da amostra; não é uma questãomeramente estatística ou para deixar para oestatístico resolver. Pesquisadores experimenta-dos na área das ciências humanas (aqui incluin-do as ciências da saúde) não podem ignorar, emuito menos esquecer, que as questões deamostragem são parte integrante das questõesgerais de desenho da investigação.

O QUALITATIVO, SUASPOTENCIALIDADES E SUAS LIMITAÇÕES

O Social como um Mundode Significados Passível de Investigação

Ao inscrever, no item anterior, a descriçãomatemática como uma questão de linguagem,Sanches afirma que “quanto mais complexo é ofenômeno sob investigação, maior deverá ser oesforço para se chegar a uma quantificação

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adequada”. Em seguida, o autor relativiza as“descrições matemáticas complicadas” comosendo “extremamente intratáveis”, devendo oinvestigador defrontar-se com situações confli-tantes entre realismo e manejabilidade.

A reflexão de Sanches ajuda a introduzir oestudo sobre as potencialidades e os limites dométodo qualitativo, dentro de uma discussãoepistemológica mais ampla.

Uma das questões colocadas sobre a cientifi-cidade das ciências sociais diz respeito à plausi-bilidade de se tratar de uma realidade na qualtanto investigadores como investigados sãoagentes: esta ordem de conhecimento nãoescaparia radicalmente a toda possibilidade deobjetivação?

Para responder a esta pergunta, uma correntede estudiosos das áreas humano-sociais, comoDurkheim (1978), tem se munido de doisargumentos metodológicos: a) é possível traçaruniformidades e encontrar regularidades nocomportamento humano; e b) regularidadespredizíveis existem em qualquer fenômenohumano-cultural e podem ser estudadas semlevar em conta apenas motivações individuais.

Outros cientistas, porém, tentam encaminhara discussão de forma diferente, questionando se,ao buscar instrumentos de objetivação do socialapenas através da quantificação das uniformida-des e regularidades, não se estaria descaracteri-zando o que há de essencial nos fenômenos enos processos sociais.

No início do século XX, em Chicago, EstadosUnidos, e no final do século XIX, em Heidel-berg, Alemanha, surgia uma escola sociológicaque se rebelava radicalmente contra a tentativade analogia entre ciências naturais e ciênciassociais. Seu fundamento residia na argumen-tação de que as ciências sociais privam-se dasua própria essência quando se abstêm deexaminar a estrutura motivacional da açãohumana.

O desenvolvimento desta segunda corrente,em oposição ao positivismo, deveu-se a estudio-sos como Wilhelm Dilthey, embora certas desuas raízes possam ser encontradas em Hegel,Marx e, até, Vico. Quem deu maior consistên-cia metodológica a esta reflexão, no entanto, foiMax Weber. É de Weber a afirmação de quecabe às ciências sociais a compreensão dosignificado da ação humana, e não apenas a

descrição dos comportamentos. Weber tambémafirma que o elemento essencial na interpre-tação da ação é o dimensionamento do signifi-cado subjetivo daqueles que dela participam(Weber, 1970).

Da mesma forma, William Thomas (1970),um dos pais da sociologia norte-americana,avançou na elaboração do clássico teoremasegundo o qual é essencial, no estudo dos sereshumanos, descobrir como eles definem assituações nas quais se encontram, porque “seeles definem situações como reais, elas sãoreais em suas conseqüências” (1970: 245-247).

O que Weber e Thomas afirmaram tornou-sehoje um axioma da investigação dos “objetos”sociais. A compreensão de que os seres huma-nos respondem a estímulos externos de maneiraseletiva, bem como de tal seleção é poderosa-mente influenciada pela maneira através da qualeles definem e interpretam situações e aconte-cimentos, passou a complicar o raciocínio sobrea cientificidade enquanto modelo já construído.

A corrente compreensivista — mãe dasabordagens qualitativas — ganhou legitimidadeà medida que métodos e técnicas foram sendoaperfeiçoados para a abordagem dos problemashumanos e sociais. No entanto, persistemmuitas questões, complexas e profundas, que setornam posições intelectuais e ideológicas frenteaos interrogantes teóricos, metodológicos capa-zes de abranger os objetos com mais profundi-dade.

O positivismo de Comte (1978) e Durkheim(1978), por exemplo, tem defendido que a únicaforma científica de apreender o social é aobservação dos dados da experiência, isto é, doscaracteres exteriores, objetivamente manifestosnos fatos: “a posição epistemológica de base dopositivismo”, dizem Bruyne et al. (1991), “é arecusa da apreensão imediata da realidade, dacompreensão subjetiva dos fenômenos, dapesquisa intuitiva de suas essências”. A atitudepositivista é caracterizada, quanto ao método,pela subordinação da imaginação à observação(Comte, 1978). Os fatos são valorizados pelassuas características exteriores, como bem odescreve Durkheim (1978): “é coisa todo objetode conhecimento que não é naturalmente pene-trável pela inteligência (...) e que o espírito sópode chegar a compreender com a condição desair de si mesmo, por meio de observações e de

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experimentações”. Assim, resumindo, a aborda-gem positivista limita-se a observar os fenôme-nos e fixar as ligações de regularidade quepossam existir entre eles, renunciando a desco-brir causas e contentando-se em estabelecer asleis que os regem. A lógica que preside estalinha de atividade é de caráter comparativo eexterior aos sujeitos. O positivismo não nega ossignificados, mas recusa-se a trabalhar comeles, tratando-os como uma realidade incapazde se abordar cientificamente.

Um dos marcos históricos a favor destacorrente foi a tese de Doutorado de SamuelStouffer, em 1930, na Universidade de Chicago(naquela ocasião, o templo norte-americano daabordagem qualitativa), com o título “An Expe-rimental Comparison of Statistical and CaseHistory Methods of Attitude Research” (1931).Tal tese ensejou um amplo debate acadêmicosobre a propriedade dos métodos quantitativose qualitativos nas ciências sociais, redundandonuma clara prioridade a favor da abordagemestatística, porque: a) foi considerada maisrápida, mais fácil de ser viabilizada e capaz deabranger um número maior de casos; e b) asanálises qualitativas foram consideradas, quandomuito, estudos heurísticos, pré-científicos,subjetivistas ou, até, “reportagens malfeitas”.

Ora, o debate da década de 30 não se encer-rou; pelo contrário, continua ainda hoje emtodos os centros de reflexão sobre o social. Osmotivos que fundamentaram a crítica de Stouf-fer, no entanto, estão muito mais relacionadosao pouco desenvolvimento de métodos e técni-cas compatíveis do que com a própria naturezado conhecimento. E é neste sentido que, aocontrário do positivismo, a sociologia compre-ensiva coloca o aprofundamento do “qualitati-vo” inerente ao social, enquanto possibilidade eúnico quadro de referência condizente e funda-mental das ciências humanas no presente.

Neste debate, como já se mencionou, W.Dilthey (1956) separa as ciências físicas e asciências humanas com um recorte fundamental.Para ele, nas ciências físicas é possível procu-rarmos explicações e lidarmos com a compre-ensão dos fenômenos através da análise de seussignificados. Nas primeiras estabelecem-se leiscausais; nas segundas, configurações e interpre-tações.

Weber (1970) elabora a tarefa qualitativacomo a procura de se atingir precisamente oconhecimento de um fenômeno histórico, isto é,significativo em sua singularidade.

É no campo da subjetividade e do simbolismoque se afirma a abordagem qualitativa. Acompreensão das relações e atividades humanascom os significados que as animam é radical-mente diferente do agrupamento dos fenômenossob conceitos e/ou categorias genéricas dadaspelas observações e experimentações e peladescoberta de leis que ordenariam o social.

A abordagem qualitativa realiza uma aproxi-mação fundamental e de intimidade entre sujei-to e objeto, uma vez que ambos são da mesmanatureza: ela se volve com empatia aos moti-vos, às intenções, aos projetos dos atores, apartir dos quais as ações, as estruturas e asrelações tornam-se significativas.

No entanto, não se assume aqui a redução dacompreensão do outro e da realidade a umacompreensão introspectiva de si mesmo. É porisso que, na tarefa epistemológica de delimi-tação qualitativa, há de se superar tal idéia,buscando uma postura mais dialética dentrodaqueles três aspectos descritos por Bruyne etal. (1991): a) o movimento concreto, natural esócio-histórico da realidade estudada (sentidoobjetivo); b) a lógica interna do pensamentoenquanto sentido subjetivo; e c) a relação entreo objeto real visado pela ciência, o objetoconstruído pela ciência e o método empregado(sentido metodológico).

É necessário buscar o auxílio de pensadorescomo Habermas (1987), para quem “uma teoriadialética da sociedade procede de maneirahermenêutica. Nela, a compreensão do sentidoé constitutiva. Tira suas categorias primeiro daconsciência que têm da situação os própriosindivíduos em ação. No sentido objetivo domeio social, articula-se o sentido sobre o qualse insere a interpretação sociológica, ao mesmotempo identificadora e crítica”.

Em outras palavras, do ponto de vista qualita-tivo, a abordagem dialética atua em nível dossignificados e das estruturas, entendendo estasúltimas como ações humanas objetivadas e,logo, portadoras de significado. Ao mesmotempo, tenta conceber todas as etapas da inves-tigação e da análise como partes do processo

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social analisado e como sua consciência críticapossível. Assim, considera os instrumentos, osdados e a análise numa relação interior com opesquisador, e as contradições como a própriaessência dos problemas reais (Minayo, 1982).

Voltando ao ponto inicial sobre as indagaçõesespistemológicas de tal abordagem, dir-se-iaque a cientificidade tem que ser pensada aquicomo uma idéia reguladora de alta abstração, enão como sinônimo de modelos e normasrígidas. Na verdade, o trabalho qualitativocaminha sempre em duas direções: numa,elabora suas teorias, seus métodos, seus princí-pios e estabelece seus resultados; noutra, inven-ta, ratifica seu caminho, abandona certas vias etoma direções privilegiadas. Ela compartilha aidéia de “devir” no conceito de cientificidade.

Definir o nível de simbólico, dos significadose da intencionalidade, constituí-lo como umcampo de investigação e atribuir-lhe um grau desistematicidade pelo desenvolvimento de méto-dos e técnicas têm sido as tarefas e os desafiosdos cientistas sociais que trabalham com aabordagem qualitativa ao assumirem as críticasinterna e externa exercidas sobre suas investi-gações.

Linguagem e Prática:Matérias Primas da Abordagem Qualitativa

Segundo Granger (1982), a realidade social équalitativa e os acontecimentos nos são dadosprimeiramente como qualidades em dois níveis:a) em primeiro lugar, como um vivido absolutoe único incapaz de ser captado pela ciência; eb) em segundo lugar, enquanto experiênciavivida em nível de forma, sobretudo da lingua-gem que a prática científica visa transformarem conceitos.

Falando dentro do campo sociológico, Gur-vitch (1955) diferencia também dois níveis deexperiência em constante comunicação: a) o“ecológico, morfológico, concreto”, que admiteexpressão em cifras, equações, medidas, gráfi-cos e estatísticas; e b) o das “camadas maisprofundas”, que se refere ao mundo dos símbo-los, dos siginificados, da subjetividade e daintencionalidade.

É exatamente esse nível mais profundo (emconstante interação com o ecológico) — o níveldos significados, motivos, aspirações, atitudes,

crenças e valores, que se expressa pela lingua-gem comum e na vida cotidiana — o objeto daabordagem qualitativa.

Por trabalhar em nível de intensidade dasrelações sociais (para se utilizar uma expressãokantiana), a abordagem qualitativa só pode serempregada para a compreensão de fenômenosespecíficos e delimitáveis mais pelo seu grau decomplexidade interna do que pela sua expressãoquantitativa. Adequa-se, por exemplo, ao estudode um grupo de pessoas afetadas por umadoença, ao estudo do desempenho de umainstituição, ao estudo da configuração de umfenômeno ou processo. Não é útil, ao contrário,para compor grandes perfis populacionais ouindicadores macroeconômicos e sociais. Éextremamente importante para acompanhar eaprofundar algum problema levantado porestudos quantitativos ou, por outro lado, paraabrir perspectivas e variáveis a serem posterior-mente utilizadas em levantamentos estatísticos.

O material primordial da investigação qualita-tiva é a palavra que expressa a fala cotidiana,seja nas relações afetivas e técnicas, seja nosdiscursos intelectuais, burocráticos e políticos.

Segundo Bakhtin (1986), existe uma ubiqüi-dade social nas palavras. Elas são tecidas pelosfios de material ideológico; servem de trama atodas as relações sociais; são o indicador maissensível das transformações sociais, mesmodaquelas que ainda não tomaram formas; atuamcomo meio no qual se produzem lentas acumu-lações quantitativas; são capazes de registrar asfases transitórias mais íntimas e mais efêmerasdas mudanças sociais.

Nestes termos, a fala torna-se reveladora decondições estruturais, de sistemas de valores,normas e símbolos (sendo ela mesma umdeles), e, ao mesmo tempo, possui a magia detransmitir, através de um porta-voz (o entrevis-tado), representações de grupos determinadosem condições históricas, sócio-econômicas eculturais específicas.

Uma das indagações mais freqüentes nocampo da pesquisa é a que se refere à repre-sentatividade da fala individual em releção aum coletivo maior. Tal indagação constituíauma preocupação de Bourdieu (1972) quandoeste definiu o conceito de habitus, segundo oqual a identidade de condições de existênciatende a produzir sistemas de disposições seme-

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lhantes, através de uma harmonização objetivade práticas e obras: “cada agente, ainda quenão saiba ou não queira, é produtor e reprodu-tor do sentido objetivo, porque suas ações sãoo produto de um modo de agir do qual ele nãoé o produtor imediato, nem tem o domíniocompleto”. Daí a possibilidade de se exercer, naanálise da prática social, o efeito da universali-zação e da particularização (180).

O referido autor define o conceito de habitusda seguinte maneira: “um sistema de dispo-sições duráveis e intransferíveis que integratodas as experiências passadas e funciona atodo momento como matriz de preocupações,apreciações e ações (...) o inconsciente dahistória que a história produz, incorporando asestruturas objetivas” (Bourdieu, 1972).

No mesmo sentido, existe um comentáriofeliz de Sapir (1967) quando diz que o “indiví-duo concretiza, sob mil formas possíveis, idéiase modos de comportamento implicitamenteinerentes às estruturas ou às tradições de umadada sociedade”. O autor acrescenta que “se umtestemunho individual é comunicado, isto nãoquer dizer que se considera tal indivíduo pre-cioso em si mesmo. Essa entidade singular étomada como amostra da continuidade de seugrupo” (Sapir, 1967:90).

Resumindo, para Goldmann (1980), “a cons-ciência coletiva só existe nas consciênciasindividuais, embora não seja a soma dessasúltimas”.

Sociologicamente, diferente do que se passacom a Psicologia, a análise das palavras e dassituações expressas por informantes personaliza-dos não permanece, pois, nos significadosindividuais. A compreensão intersubjetiva requera imersão nos significados compartilha-dos. Sociólogos e antropólogos têm desmonstra-do que a função essencial das normas culturaisé prover os membros de um grupo ou sociedadecom definições de situação intelegiveis e inter-cambiáveis no coletivo. Sem isso, a vida socialseria impossível.

Portanto, se um estudioso do social astá aptoa entender a linguagem e a definição da si-tuação típica de um grupo, estrato ou sociedade— respondendo às indagações tradicionais daciência —, ele está apto também a predizer asrespostas desse grupo com um certo grau deprobabilidade.

As considerações acima encaminham-se paraquestões de ordem prática, sobretudo em re-lação à representatividade da fala e da obser-vação das práticas, das instituições e do “evasi-vo da vida cotidiana”.

O confronto da fala e da prática social étarefa complementar e concomitante da investi-gação qualitativa, que, no entanto, em algunscasos, limita-se ao material discursivo. Emparticular, as abordagens etnográficas nãodispensam as etapas de observação e convivên-cia no campo.

A ênfase quase absoluta na fala como mate-rial de análise transforma a questão da desco-berta e da validade em habilidade de manipu-lação dos signos. Ela está fundamentada nacrença de que a “verdade” dos significadossitua-se nos meandros profundos da significaçãodos textos.

Ao contrário, o ensinamento fundamental daAntropologia é o cotejamento da fala, com aobservação das condutas e dos costumes e coma análise das instituições. Checar o que é ditocom o que é feito, com o que é celebrado e/ouestá cristalizado. Desta forma, uma análisequalitativa completa interpreta o conteúdo dosdiscursos ou a fala cotidiana dentro de umquadro de referência, onde a ação e a açãoobjetivada nas instituições permitem ultrapassara mensagem manifesta e atingir os significadoslatentes.

Há vários métodos e técnicas de análise domaterial qualitativo. E, assim, como observaSanches a respeito do uso da estatística, hátrabalhos bem-feitos ou malfeitos. Há investiga-dores que não passam além do que Bourdieu(1972) denomina “ilusão da transparência”, darepetição do que ouve e vê no trabalho decampo. Tal procedimento não pode ser atribuí-do ao método em si, mas ao seu uso superficiale pobre. Segundo Granger (1982), um verdadei-ro modelo qualitativo descreve, compreende eexplica, trabalhando exatamente nesta ordem.

Para Nicole Ramognino (1982), um trabalhode conhecimento social tem que atingir trêsdimensões: a simbólica, a histórica e a concreta.A dimensão simbólica contempla os significa-dos dos sujeitos; a histórica privilegia o tempoconsolidado do espaço real e analítico; e aconcreta refere-se às estruturas e aos atoressociais em relação.

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CONCLUSÕES

Propositalmente, não se entrou, neste traba-lho, nas questões específicas da área da saúde,uma vez que a pretensão do texto era ser intro-dutório de uma problemática que concerne eultrapassa o campo. No entanto, é certo que,hoje, os objetos de investigação, tanto dosprofessores como dos pós-graduandos em SaúdePública da Ensp, vinculam-se metodologica-mente aos temas aqui tratados, fato conhecidoatravés do desenvolvimento das linhas depesquisa e dos projetos de tese.

A intenção dos autores, portanto, é apenas darum pontapé inicial num debate que consideramextremamente relevante e indiscutivelmentepossível e promissor.

Consideram que, do ponto de vista metodoló-gico, não há contradição, assim como não hácontinuidade, entre investigação quantitativa equalitativa. Ambas são de natureza diferente.

A primeira atua em níveis da realidade, ondeos dados se apresentam aos sentidos: “níveisecológicos e morfológicos”, na linguagem deGurvitch (1955).

A segunda trabalha com valores, crenças,representações, hábitos, atitudes e opiniões.

A primeira tem como campo de práticas eobjetivos trazer à luz dados, indicadores etendências observáveis. Deve ser utilizada paraabarcar, do ponto de vista social, grandesaglomerados de dados, de conjuntos demográfi-cos, por exemplo, classificando-os e tornando-os inteligíveis através de variáveis.

A segunda adequa-se a aprofundar a comple-xidade de fenômenos, fatos e processos particu-lares e específicos de grupos mais ou menosdelimitados em extensão e capazes de seremabrangidos intensamente.

Do ponto de vista epistemológico, nenhumadas duas abordagens é mais científica do que aoutra. De que adianta ao investigador utilizarinstrumentos altamente sofisticados de mensu-ração quando estes não se adequam à compre-ensão de seus dados ou não respondem a per-guntas fundamentais? Ou seja, uma pesquisa,por ser quantitativa, não se torna “objetiva” e“melhor”, ainda que prenda à manipulaçãosofisticada de instrumentos de análise, casodeforme ou desconheça aspectos importantes

dos fenômenos ou processos sociais estudados.Da mesma forma, uma abordagem qualitativaem si não garante a compreensão em profundi-dade.

Esta observação torna-se necessária pararebater a tese de vários estudiosos que, doponto de vista científico, colocam, numa escala,a abordagem quantitativa como sendo a maisperfeita, classificando estudos qualitativosapenas como “subjetivismo”, “impressões” ou,no máximo, “atividades exploratórias”.

Não cabe neste espaço desenvolver o tema,mas, tanto do ponto de vista quantitativo quantodo ponto de vista qualitativo, é necessárioutilizar todo o arsenal de métodos e técnicasque ambas as abordagens desenvolveram paraque fossem consideradas científicas.

No entanto, se a relação entre quantitativo equalitativo, entre objetividade e subjetividadenão se reduz a um continuum, ela não pode serpensada como oposição contraditória. Pelocontrário, é de se desejar que as relações sociaispossam ser analisadas em seus aspectos mais“ecológicos” e “concretos” e aprofundadas emseus significados mais essenciais. Assim, oestudo quantitativo pode gerar questões paraserem aprofundadas qualitativamente, e vice-versa.

RESUMO

MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O.Quantitativo-Qualitativo: Oposição ouComplementaridade? Cad. Saúde Públ., Riode Janeiro, 9 (3): 239-262, jul/set, 1993.

Este trabalho resume um debate metodológicoem processo na Escola Nacional de SaúdePública, Brasil, sobre as duas formas deabordagem mais correntes nas investigaçõesda área de saúde: o método quantitativo e ométodo qualitativo.Os autores — uma antropóloga sanitarista eum bioestatístico — demonstram, comargumentações teóricas e práticas, que essesmétodos são de natureza diferenciada, mas secomplementam na compreensão da realidadesocial.Num mundo onde o que distingue o serhumano é a linguagem comunicativa, o acento

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deste debate recai sobre a possibilidade, osignificado e os limites da linguagemmatemática e da linguagem de uso comum naexperiência cotidiana.

Palavras-Chave: Bioestatística; Métodosde Ciências Sociais; Saúde Pública

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