Upload
fernando-carmo-viana
View
223
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
8/8/2019 RAA, RACISMO E DIREITOS HUMANOS
1/3
Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 225-227, jan/jun 2005
225Raa, racismo e direitos humanos
RAA, RACISMO E DIREITOS HUMANOS
Francisco M. Salzano
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil
Discusses sobre o conceito de raa, inicialmente proposto paraaplicao na espcie humana por George Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), continuam sem sinal de arrefecimento. Recordo-me muito bem do
drama que foi a redao final do documento de quatro pginas adotadooficialmente pela Unesco sobre os aspectos biolgicos da raa, e aprovadoem 18 de agosto de 1964. Eu fazia parte de um grupo selecionado de 22especialistas de todos os continentes, reunidos em Moscou para a tarefa. Easseguro que alcanar a unanimidade requerida no foi fcil, mesmo depoisde sete dias e meio de exaustivas discusses formais e informais(Biological, 1965).
O problema todo que h um conceito biolgico e um conceito social
de raa. No adoto a posio de Pena e Bortolini (2004) de que raashumanas simplesmente no existem, e a divergncia de opinio relaciona-se prpria definio de raa em si. O conceito deriva diretamente daquelede subespcie, que classicamente requer apenas que o agregado depopulaes locais habite um territrio especfico e difira taxonomicamentede outras populaes da espcie. O grau dessa diferena s poderia serdeterminado atravs de taxonomistas experientes com a espcie em questoe afins (Mayr, 1963).
Voltando ao caso humano, vou me permitir o relato de mais uma
experincia pessoal. No curso de trabalho de campo realizado em 1969 entreos Mekranoti, um subgrupo kayap, encontramos um homem branco (ruivo!)que havia sido capturado na infncia pelos ndios e adotara de maneira totalo modo de vida da tribo, inclusive casando com uma ndia, da qual tinha trsfilhos. Obviamente a caracterizao gentica do mesmo era importante paraa avaliao de toda a populao e o seu sangue foi coletado, como o de todaa sua famlia e colegas. Alquotas dos mesmos foram enviadas para estudoparcial nos EUA, e uma semana depois chegava-nos uma carta incisiva del: O que isto, vocs misturaram sangue de algum branco na amostra
8/8/2019 RAA, RACISMO E DIREITOS HUMANOS
2/3
Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 225-227, jan/jun 2005
226 Francisco M. Salzano
enviada? Isto , a quilmetros de distncia, sem ser vista, a referida pessoafoi caracterizada como euroderivada (Salzano et al., 1972).
Na verdade, com o desenvolvimento da genmica, ficou fcil (desdeque se teste o nmero apropriado de marcadores genticos) estabelecerconexes mesmo remotas com ancestrais dos diferentes continentes (ver,por exemplo, Bamshad et al., 2004). E essa possibilidade j proporciona boafonte de renda para empresas internacionais que se propem a fornecer aancestralidade remota de qualquer pessoa obcecada pela sua genealogia(Shriver; Kittles, 2004). Devido a histrias evolucionrias distintas a prpriaestrutura gentica dos grupos continentais diferente; assim, h muito mais
recombinao gentica nos cromossomos de africanos do que nos deeuropeus ou asiticos (Gabriel et al., 2002).Porm, o ponto todo discutido no excelente e bem documentado artigo
de Maio e Santos no esse. Trata-se da validade do estabelecimento decotas raciais e como implement-las no mbito, nesse caso especfico, deuma universidade. Foi s recentemente que os vrios documentos sobredireitos humanos estenderam o conceito de direito individual ao direito degrupos, o que cria uma srie de problemas, especialmente no que se referea quem tem direitos legtimos de representar a estes ltimos (reviso em
Salzano; Hurtado, 2004). O sistema de cotas claramente inconstitucional,pois a Constituio Brasileira de 1988, em seu artigo 5o, afirma que todosso iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, e no seupargrafo XLII estabelece que a prtica do racismo constitui crimeinafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso, nos termos da lei.E o que est ocorrendo, justamente, um racismo s avessas, inclusive coma instituio (vergonhosa) do apartheid: h vestibular para brancos evestibular para negros e ndios separados, incomunicveis.
O problema da implementao da poltica de cotas, em um pasetnicamente to diverso como o nosso, est perfeitamente caracterizado noartigo de Maio e Santos. Que nvel de ancestralidade africana, europia ouamerndia deve ser considerado como significante? Pena e Bortolini(2004) assinalaram que 86% da populao brasileira possui mais de 10% deancestralidade africana; portanto, potencialmente, essa frao poderiasolicitar o benefcio das cotas; mas eu sou mais radical. Como estamplamente demonstrado (para horror dos racistas!) que a frica foi obero de toda a humanidade, bvio que todos os brasileiros tm
potencialmente direito ao benefcio.
8/8/2019 RAA, RACISMO E DIREITOS HUMANOS
3/3
Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 225-227, jan/jun 2005
227Raa, racismo e direitos humanos
A questo da dvida histrica para com os afro-descendentes eamerndios no convence, e postulada pelos mesmos grupos que
preconizam o calote com relao dvida financeira externa do pas com oPrimeiro Mundo. Por que eu, meus filhos ou netos iro pagar por umcomportamento que no deles, caracterstico de pocas em que este eraconsiderado vlido? bom no esquecer que o trfico de escravos eradesenvolvido com a intermediao direta dos prprios africanos, que tinhamo monoplio do apresamento das vtimas em toda a frica.
Eu concluiria declarando o seguinte: o direito igualdade de oportunidades,assegurado pela Declarao Universal dos Direitos Humanos, deve ser
estritamente respeitado. A desigualdade biolgica no tem nada a ver com oprincpio tico de que a posio de qualquer pessoa em uma determinadasociedade deva ser um reflexo acurado de sua capacidade individual.
Referncias
BAMSHAD, M. et al. Deconstructing the relationship between genetics andrace. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 8, p. 598-609, 2004.
BIOLOGICAL aspects of race. International Social Science Journal, v.
17, n. 1, p. 71-161, 1965.GABRIEL, S. B. et al. The structure of haplotype blocks in the humangenome. Science, v. 296, n. 5576, p. 2225-2229, 2002.
MAYR, E. Animal species and evolution. Cambridge, Massachusets:Harvard University Press, 1963.
PENA, S. D. J.; BORTOLINI, M. C. Pode a gentica definir quem devese beneficiar das cotas universitrias e demais aes afirmativas? EstudosAvanados, v. 18, n. 50, p. 31-50, 2004.
SALZANO, F. M.; HURTADO, A. M. Lost paradises and the ethics ofresearch and publication. New York: Oxford University Press, 2004.
SALZANO, F. M. et al. Blood groups and H-Lea salivary secretion ofBrazilian Cayapo Indians. American Journal of Physical Anthropology, v.36, p. 417-425, 1972.
SHRIVER, M. D.; KITTLES, R. A. Genetic ancestry and the search forpersonalized genetic histories. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 8, p. 611-618, 2004.