Racionalidade Musical e Experiência natural formativa em Rousseau

Racionalidade musical e experincia natural formativa em Rousseau

Musical rationality and formative natural experience in Rousseau

Raimundo Rajobac1 Claudio A. Dalbosco2

RESUMO

O estudo tem como objetivo investigar o estatuto da racionalidade meldica no Ensaio sobre a origem das lnguas de Rousseau na busca por articular o fazer musical no ocidente com problemas epistemolgicos caractersticos da racionalidade iluminista, pondo em foco as concepes sobre a educabilidade humana e suas respectivas formas de experincias formativas inseridas no amplo processo de relao tensional entre expresso musical e formas de racionalidade. Aps a apresentao da hiptese e problema de pesquisa, trs passos fundamentais sero desdobrados: o primeiro analisa o significado epistemolgico do Ensaio como crtica episteme cartesiana. O segundo reconstri a concepo rousseauniana de msica, atendo-se na melodia como seu princpio bsico. O terceiro e ltimo apresenta uma reconstruo esquemtica da distino entre razo perceptiva e razo intelectual, pondo em foco a arquitetnica pedaggica do Emlio, e o lugar que nela ocupa a educao natural, sustentada pela razo perceptiva como base da educao do corpo e do refinamento dos sentidos.

Palavras-chave: racionalidade; educao; msica; melodia; formao.

ABSTRACT

This study aims at investigating the statute of the melodic rationality in Rousseaus Essay on the Origin of Languages in the search for articulating

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Rua Senhor dos Passos, 248. Centro. CEP: 90040-390.

2 Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. CNPq. BR 285, So Jos. CEP: 99052-900.

DOI: 10.1590/0104-4060.36002

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 273-293, jul./set. 2014. Editora UFPR 273

the making of music in the west with epistemological problems, typical in the illuminist rationality, focusing on the conception of human educability and its respective forms of formative experiences inserted in the broad process of a tensional relation between musical expression and forms of rationality. After the introduction of the hypothesis and research problem, three main steps will be unfolded: the first analyses the epistemological meaning of the Essay as criticism to the Cartesian episteme. The second rebuilds Rousseaus conception of music, abiding in the melody as its basic principle. The third and last step presents a schematic reconstruction of the distinction between perceptive reasoning and intellectual reasoning, focusing on the pedagogical architectonics of Emile, and the position taken by the natural education, supported by the perceptive reasoning as the basis for the education of the body and the refinement of the senses.

Keywords: rationality; education; music; melody; formation.

Introduo

A investigao do estatuto da racionalidade meldica no Ensaio sobre a origem das lnguas3 de Rousseau articula o fazer musical com problemas epis-temolgicos caractersticos da racionalidade iluminista e orienta posio da melodia no contexto da crtica rousseauniana em relao ao conceito de razo iluminista4. Tais preocupaes exigem, inicialmente, o questionamento sobre o que significa compreender o fazer musical no ocidente numa perspectiva epistemolgica, bem como as implicaes formativas e pedaggicas que a ele esto relacionadas. A centralidade desse questionamento reside em estabele-cer pontos de interlocuo entre prticas, fazeres e criaes em msica, com temticas filosficas mais amplas que delinearam perspectivas aliceradas em revolues paradigmticas, as quais marcaram, por sua vez, a prpria histria do conhecimento ocidental.

3 Doravante citado somente como Ensaio. Publicado em 1781, em Paris, por Peyrou. A data de redao do escrito tem sido alvo de grandes discusses. Catherine Kintzler, Starobinsky e Derrida tornaram-se fontes determinantes para investigaes sobre essa questo. Ressalta-se ainda a significativa ligao do Ensaio com o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (Segundo Discurso).

4 Entendemos por razo iluminista a razo moderna vincula filosofia da conscincia, cujo principal expoente o filsofo francs Ren Descartes. Contudo, o Iluminismo um amplo movimento intelectual, que envolve vrias tradies, autores e textos, os quais, de modo algum, so consensuais entre si. Para uma viso introdutria e de conjunto sobre o iluminismo, consultar W. Schneiders (2008).

RAJOBAC, R.; DALBOSCO, C. A. Racionalidade musical e experincia natural formativa...

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 53, p. 273-293, jul./set. 2014. Editora UFPR274

Essa perspectiva geral confere as condies de desenvolvimento do presente ensaio medida que nos permite discutir sobre msica, racionalidade iluminista e experincia formativa em uma constante e interdependente relao. Aponta-se, portanto, a uma racionalidade musical que comporta em si conflitos epistemolgicos profundos que marcaram nossa tradio desde aquele conflito mitolgico entre Apolo e Mrsias at as rupturas e continuidades da msica do sculo XX, bem como para as diferentes concepes sobre a educabilidade hu-mana e seus respectivos modos de experincias formativas inseridas nesse amplo processo de relao tensional entre expresso musical e formas de racionalidade.

Desde a conhecida concepo platnica da msica sob influncia pitagri-ca5, bem como a influncia que esta e o prprio pitagorismo exerceram sobre a tratadstica medieval, e todo o contexto mais amplo que concorrer para a Renas-cena e o consequente Sculo das Luzes, so apresentados conflitos profundos de racionalidades e seus visveis efeitos na ampla problemtica da formao humana , com os quais, as artes em geral, e em nosso caso especfico a msica, comunicaram-se mutuamente. Nesse sentido, o projeto filosfico-musical de Rousseau, o qual incorpora em parte a crtica s pretenses da racionalidade iluminista, representa um momento central, na medida em que no s se con-figura como crtica perspectiva epistemolgica do projeto iluminista, como tambm ao ideal de formao humana a ele subjacente. Como iremos defender logo abaixo, crtica da racionalidade musical harmnica vinculam-se preo-cupaes no s de natureza epistemolgica, mas, sobretudo quando se tem diante dos olhos o mile ou de lducation6 , tambm de natureza nitidamente pedaggica, relacionada ao amplo processo formativo e educacional humano.

5 Uma hermenutica aprofundada desse processo pode ser encontrada em Max Weber (1995), para quem nossa msica harmnica de acordes racionalizou o material sonoro mediante a diviso aritmtica, e respectivamente harmnica. Quando houve uma transposio de intervalos da flauta para a ctara, procurou-se racionaliz-los, e disto resultou a controvrsia sobre a natureza dos intervalos, sempre levada adiante pelos tericos posteriores. Assim, o racionalismo dos reformadores da msica, proveniente da teoria matemtica, trabalhou sem cessar e das formas mais variadas no ajustamento das discrepncias resultantes da assimetria da oitava. Entenda-se porque a tendncia por parte da msica, a repetio dos mesmos motivos com outras palavras, e a construo, por parte da lngua, de estrofes de uma cano com melodias constantes, so fatores que acabam por romper essa espcie de unidade da fala com a melodia [Melos]. Entre os helenos, esta unidade desaparece inteiramente com o desenvolvimento da linguagem como instrumento retrico, levando, com isso, concomitante decadncia do acento musical. Na verdade, a formulao de Rameau de que o baixo fundamental, isto , o som harmnico fundamental dos respectivos acordes, pode mover-se apenas nos intervalos dos acordes de trs sons (quintas justas e teras), submete tambm a melodia harmonia de acordes racional. Ver ainda Nietzsche, O nascimento da tragdia, 1993 e O drama musical grego, 2005.

6 Emlio ou da Educao. Doravante abreviado como Emlio.



L-se no Ensaio: [...] a msica [...] no a arte de combinar sons de uma maneira agradvel ao ouvido. Se fosse apenas isso, [...] pertenceria s cincias naturais e no s belas artes (ROUSSEAU, 2008, p. 151). Essa citao anuncia questes diversas que perpassam o todo da obra em estudo. Rousseau pontua a crtica ao conceito de msica iluminista, principalmente aquele difundido pelo Ancien Rgime do qual Jean-Philippe Rameau firmou-se como principal representante7. Ao assumir essa posio, o genebrino lanou duros golpes ao conceito reduzido de razo que orientou as especulaes iluministas, ao enten-dimento a respeito da natureza, das artes, da sociedade e da cultura como um todo, incluindo nela, como aspecto privilegiado, o prprio problema da edu-cabilidade humana. No que diz respeito especificamente msica, h a recusa rousseauniana ao primado da arte agradvel e combinatria de carter mecnico e matematizante8. Da a necessidade do estabelecimento de fronteiras entre cincias naturais e belas artes, posto que todo o ideal mecnico-matematizante, principalmente a teoria harmnica de Rameau, associa a msica ao exerccio reflexivo e a distancia dos sentimentos, das paixes. a partir desse contexto que se faz possvel nossa investigao, a qual prope tematizar o resgate da melodia por Rousseau enquanto problema de racionalidade e, por isso mesmo, tambm como um problema de formao humana.

Nesse contexto, nosso problema de investigao consiste em saber, por um lado, em que sentido a racionalidade meldica do Ensaio significa uma crtica epistemologia iluminista, sobretudo, de matriz cartesiana e, por outro, que relaes tal crtica mantm com o ideal formativo inerente ao projeto de educao natural do Emlio. Como se pode observar, imbricam-se mutuamente, em nosso problema, trs grandes esferas da cultura humana: arte, epistemologia e educao. Para tratar de tal problema, partiremos da hiptese de que o interesse de Rousseau pela msica e a crtica racionalidade iluminista a ela subjacente tambm esto na base de sua crtica ducation barbare de sua poca. Ou seja, a concepo rousseauniana de msica auxilia esclarecer, por um lado, o nexo estreito entre epistemologia moderna, de corte cartesiano, e o ideal educacio-nal e formativo a ela vinculado e, por outro, a compreender melhor as razes que levam o genebrino a colocar a razo perceptiva na base de seu projeto de educao natural, esboado nos trs primeiros livros do Emlio. Trata-se, com isso, no fundo, de reposicionar o papel dos sentimentos e emoes (paixes) no mbito do conhecimento humano, em sentido amplo e, especificamente, no que se refere experincia formativa.

7 Ver: MARQUES, J. O. A. Rousseau, Rameau e o Ensaio sobre a origem das lnguas, 2010.8 Na tradio filosfica racionalista germnica, Gottfried Wilhelm Leibniz marcou poca

com Dissertatio de arte combinatria (1666).



Do ponto de vista da delimitao textual, a problemtica acima referida exige que nos concentremos em determinados captulos do Ensaio e em algumas passagens do Emlio: do primeiro interessa-nos especialmente o captulo XII em diante e, do Emlio, algumas passagens inseridas nos trs primeiros livros. Como nossa pesquisa de natureza eminentemente bibliogrfica, o problema da compreenso do texto e da relao entre autor e leitor assume importncia decisiva. Nossa dificuldade a aumenta muito considerando o carter extraordi-nariamente paradoxal que Rousseau como autor atribuiu conscientemente aos seus escritos. Vale, aqui, para o escritor de genebra, talvez mais do que qualquer outro autor, o credo gadameriano de que preciso saber quanto fica de no dito quando se diz algo. justamente nesse contexto que emerge a compreenso como problema hermenutico fundamental e que certamente ilumina o difcil problema da relao entre autor e leitor na investigao do sentido do texto9.

Na sequncia, trataremos do problema e da hiptese acima referidos desdobrando nossa argumentao em trs momentos interligados entre si. No primeiro, analisamos brevemente o significado epistemolgico do Ensaio como crtica episteme cartesiana. Com isso, pretendemos deixar claro o valor histrico, filosfico e pedaggico desse escrito, que denuncia, com todas as letras, ainda no sculo XVIII, os limites da razo analtica (apodtica dedutiva), deixando manifesto, nas entrelinhas, o quanto indispensvel, para pensar a razo humana em sua amplitude, consider-la na multiplicidade de suas vozes.

No segundo momento, reconstrumos a concepo rousseauniana de msi-ca, atendo-nos na melodia como seu princpio bsico. A crtica que Rousseau faz harmonia e sua defesa da melodia elucida, no mbito musical, sua crtica mais

9 Hans-Georg Gadamer insere a compreenso, em Verdade e Mtodo, na conversao que o leitor estabelece com o texto legado pela tradio. Esclarece, contudo, que um texto s pode dizer algo em razo das perguntas que o leitor for capaz de lhe fazer. Nesse contexto, a compreenso sintetiza a manifestao mais apurada da relao tensional entre pergunta e resposta, a qual, por sua vez, considerada como ncleo da experincia hermenutica enquanto conversao. O prprio Gadamer resume isso em uma passagem da referida obra: Pois a dialtica da pergunta e resposta que temos descoberto permite que a relao da compreenso se manifeste como uma relao recproca maneira de uma conversao (GADAMER, 1999, p. 383; grifos e traduo nossos). Dito de outro modo, a compreenso nada mais do que a dialtica entre pergunta e resposta que se constri na conversao autntica entre autor e leitor na busca pelo sentido do prprio texto. Conversao assume aqui um duplo sentido interligado entre si: a disposio de escutar o sentido do texto, orientando-se por perguntas que precisam ser constantemente reformuladas. Essa dupla significao da escuta e da pergunta exige, no mbito de nossa relao com o texto rousseauniano, a abertura para ouvir o texto e poder, com isso, no s perceber seu sentido aparente, mas tambm perscrutar aquilo que permanece oculto no que dito. Tambm exige, considerando nosso problema de investigao, buscar o vnculo entre problemas e conceitos que no foram estabelecidos claramente pelo prprio autor. Em sntese, o aporte hermenutico nos auxilia duplamente: na construo da necessria abertura escuta do texto e, mediado pela pergunta, ir alm do prprio sentido do texto.



ampla episteme iluminista, assinalando tambm seu distanciamento em relao aos philosophes. Como a defesa da melodia significa um reposicionamento das paixes no mbito geral da cognio humana, ela torna-se indispensvel para compreender o papel que Rousseau atribui razo perceptiva no mbito de sua educao natural.

O nexo entre razo perceptiva e educao natural o tema com o qual nos ocupamos na terceira e ltima parte do ensaio. Iniciamos com uma breve reconstruo esquemtica da distino entre razo perceptiva e razo intelec-tual, mostrando que o primado concedido por Rousseau razo perceptiva no processo formativo do ser humano em sua fase infantil no significa sua adeso ao sensualismo ingnuo. Ao contrrio disso, Rousseau tem clareza de que se a experincia baseada nas sensaes o ponto de partida do conhecimento e da aprendizagem, ela no pode ser o seu ponto de chegada. Na sequncia, depois de reconstruir brevemente a arquitetnica pedaggica do Emlio, localizando o lugar que nela ocupa a educao natural, procuramos evidenciar o quanto a fsica experimental sustentada pela razo perceptiva est na base da educao do corpo e do refinamento dos sentidos. Ora, justamente por compreender que as paixes e os sentimentos possuem valor indispensvel experincia formativa humana, especialmente formao da criana, que Rousseau pde estabelecer epistemologicamente a razo perceptiva como ncleo da educao natural.

Da crtica episteme cartesiana

O problema que est implicado nessa temtica possui um alcance atual ao campo educacional muito maior do que inicialmente podemos imaginar. O que j est em jogo na crtica de Rousseau, a episteme moderna, nada mais do que sua prpria crtica razo reduzida ao modelo da mathesis universalis. Tal modelo, elaborado inicialmente pelos grandes sistemas metafsicos do sculo XVII sobretudo o sistema cartesiano, embora devssemos incluir a tambm Spinoza e Leibniz , ainda vigorava com muita fora no prprio sculo de Rousseau. A matemtica universal, que deveria servir de modelo a todos os outros saberes humanos, incluindo a arte e a educao, baseava-se em uma razo analtica de cunho apodtico dedutivo. Ou seja, formulava-se um teorema, constitudo por um princpio geral ou por vrios princpios e buscava-se deduzir todos os raciocnios subsequentes deste princpio geral.

Quanto mais irrefutvel se demonstrasse tal princpio, mais seguro seria o sistema dele derivado. A verdade dependia ento de um princpio de fundamen-



tao ltima e, sendo assim, no seria obviamente na esfera dos sentidos que tal princpio deveria ser buscado. O Discurso do Mtodo torna-se ilustrativo, inclusive pedagogicamente, de uma biografia filosfica moderna, eminentemente racionalista, que procura angustiada e obcecadamente pelo princpio ltimo que daria segurana ao sistema de pensamento. No percurso estabelecido pela dvida, Descartes procura se independizar da tradio intelectual na qual foi formado e, depois de procurar e tambm no encontrar no grande livro do mundo a certeza de que precisava, volta-se meditativamente para o interior de seus prprios pensamentos. Toma conscincia de que enquanto duvidava de tudo, pondo em dvida o conhecimento de seus mestres e a verdade da cultura do mundo, no poderia mais duvidar ao menos de uma coisa, a saber, de que continuava pensando enquanto duvidava. Chega ento certeza do cogito como condio de sua prpria existncia: cogito ergo sum (penso, logo existo).

No nos interessa aqui seguir de perto o refinamento filosfico que a argumentao metafsica de Descartes assume para justificar seu sistema, tam-pouco analisar todas as dificuldades nas quais tal argumentao se enreda10. Importa, sim, destacar que a fundao do cogito ocorre com base no dualismo entre coisa pensante e coisa material, que , por sua vez, herdeira da ampla tradio racionalista ocidental, remontando sua origem no dualismo platnico entre corpo e alma. Nesse contexto, o reducionismo da razo surge exatamente quando a natureza da coisa pensante justificada, ao menos no modo de segu-rana e certeza pretendido por Descartes, somente se os sentidos e tudo aquilo que pertencer ao mbito da coisa extensa forem devidamente isolados. O que fica claro, ento, nesse movimento de pensamento, que a certeza do cogito s pode ser conquistada mediante o empobrecimento da coisa extensa, tendo, como uma de suas consequncias, a excluso dos sentidos. Nesse ponto, o racionalis-mo cartesiano torna-se mais radical do que o Plato do Teeteto, pois o filsofo grego foi cuidadoso o suficiente para no descartar a esfera da doxa como um problema legtimo do conhecimento humano. Plato foi levado, nesse sentido, a elaborar um amplo programa investigativo, visando estabelecer, no referido Dilogo, o lugar e o papel das percepes no mbito do conhecimento humano.

Com sua forma de pensar, Descartes fomentou a educao de cunho marcadamente racionalista. Ou seja, da estrutura do cogito brotou aquele ideal educativo iluminista que encontra seu centro na razo analtica, de cunho apo-dtico e dedutivo. Baseando-se apenas em princpios universais, tal educao

10 A filosofia contempornea, sobretudo depois de Nietzsche, volta-se cada vez mais de modo crtico filosofia cartesiana, concebendo-a como paradigma fundante do discurso filosfico moderno. Na atualidade, tanto Jrgen Habermas (1997) como Michel Foucault (2004) so, cada um a seu modo, figuras exemplares da crtica verdade cartesiana.



enquadra o particular no universal, deixando de apreender a singularidade e, com isso, de enxergar a diferena. Como uma educao eminentemente in-telectualista, pretende raciocinar desde cedo com a criana, desconsiderando suas condies afetivas e cognitivas prprias. Em sntese, uma educao livresca que se baseia estritamente na autoridade do mestre e no seu discurso racionalista, inclusive, concedendo ao adulto o poder absoluto de determinar o futuro das novas geraes (DURKHEIM, 1975). Nesse sentido, o autoritarismo inerente ao intelectualismo pedaggico impede o sentido genuno da prpria ideia de educao como manifestao do novo que cada criana traz ao vir ao mundo (ARENDT, 1994, p. 255-276). No intelectualismo pedaggico, repousa o sentido conservador e no conservativo de educao.

Mas, como Rousseau se posiciona frente a essa tradio racionalista? O problema apresentado pelo genebrino no Ensaio faz frente tradio cartesiana ao ligar a msica sensibilidade e s paixes e no apenas ao cogito, e apre-senta como novidade filosfica concepo de linguagem clssica cartesiana o elemento musical: a melodia. Sabe-se da decidida crena de Descartes na ma-temtica e o quanto esta determinou sua concepo de msica, j na juventude, com a obra Compendium Musicae, de 1618. Aqui, a msica precisou passar pela assertiva matemtica para poder garantir o princpio bsico do mtodo preocupado em [...] nada incluir em meus juzos que no se apresentasse to clara e to distintamente a meu esprito, que eu no tivesse nenhuma ocasio de p-lo em dvida (DESCARTES, 1973, p. 45). Dessa forma, ao tomar o som como objeto, capaz de [...] deleitar e provocar-nos paixes diversas (DES-CARTES, 2001, p. 55), o terico o faz por acreditar se tratar de uma realidade mensurvel. Nesse contexto, a msica como um todo tomada como passvel de uma anlise racional.

Como vimos acima, no mbito epistemolgico cartesiano ocorre nitida-mente a subordinao do sensvel mathesis universalis, pondo o cogito como referncia segura e inquestionvel do sentido produzido pelo sujeito. uma razo de tipo apodtico dedutivo que determina no s a linguagem em sentido epistemolgico, mas tambm a prpria noo de formao em sentido mais am-plo, incluindo nela a educao da criana. Se Descartes se filia, a grosso modo, na longa tradio intelectualista da razo e do discurso racional como ncleo da educao da criana, contribuindo decisivamente para consolid-lo na aurora da modernidade, Rousseau no pode aceitar tal discurso, uma vez que almeja, como ncleo de seu projeto de educao natural, uma fsica experimental que tem na escuta da melodia da natureza sua ncora principal. Nessa perspectiva,



o ouvir a voz da natureza11 torna-se incompatvel com o ouvir a voz da razo no sentido metdico experimental.

Nesse contexto, Rousseau precisou perpassar o paradigma da lingustica cartesiana para justificar a ideia de msica como paradigma da linguagem. Operou, portanto, com uma viragem fundamental: a linguagem, entendida como representao do cogito, que supunha serem as palavras instrumentos do conhecimento e que viria a justificar o carter representativo da funo da linguagem, foi substituda pelo primado rousseauniano das paixes como origem da linguagem, e no a razo. Estando as paixes na condio de primado funda-mental, e no mais a razo, a msica constituiu-se o paradigma da linguagem12.

Com esse enfrentamento, o genebrino pe em xeque no s uma teoria da linguagem, mas, sobretudo, a concepo de msica que perpassa todo o classicismo francs. Com isso, a reposio da pergunta pela origem das lnguas exigiu, a todo custo, o questionamento sobre a natureza da msica e da forma como ela foi compreendida historicamente. A prpria interpretao do conflito entre Rousseau e Rameau, que marcou um episdio determinante da esttica e filosofia da msica, precisa levar em conta a slida herana cartesiana presente no Trait de Lharmonie de 1772, no qual transparente a influncia do Com-pendium Muciae de Descartes.

Enquanto conflito de racionalidades, o embate entre a harmonia de Rameau e a melodia de Rousseau configura a importncia da matemtica cartesiana enquanto matriz para formao do projeto moderno iluminista, bem como configura a necessidade de superao que a msica teve em relao a um uni-verso determinado em todos os sentidos pela razo. Nesse sentido, a noo de melodia carrega no s a novidade epistemolgica proposta por Rousseau, mas tambm se constitui em um novo ideal formativo do ser humano, que, vertido ao universo infantil, significa, pedagogicamente, a necessria primazia a ser concedida aos sentidos e razo perceptiva. Portanto, o que est em jogo nesse

11 Charles Taylor (1996, p. 619 et seq.) oferece uma das interpretaes mais claras e atuais do significado rousseauniano da expresso ouvir a voz da natureza, esclarecendo o modo como ela se conecta diretamente com seu sentido moral de ouvir a voz do corao.

12 Para Prado Jr. (2008), a msica ocupa, de fato, um lugar central na economia do Ensaio: ela se encontra, ao mesmo tempo, no ponto de partida da gnese ideal e em um dos polos da reflexo sistemtica. E esta presena, nestes dois polos, que d a originalidade da teoria da linguagem em Rousseau e que o ope, particularmente, a Condillac. No nvel da origem, na identidade entre fala e canto, no nascimento da linguagem explicado pelas paixes, e no pelas necessidades, a descontinuidade entre linguagem dos gestos e fala que dada, a irredutibilidade do sentido pura indicao. No nvel da reflexo sistemtica no privilgio concedido melodia, tanto a gnese quanto a estrutura da linguagem que so ordenados a um telos que no o da Gramtica, essa dimenso harmnica da linguagem. Em sua ambiguidade, ao longo do Ensaio, a msica se apresenta como o paradigma segundo o qual a histria e a essncia da linguagem so pensadas.



embate entre razo perceptiva e razo intelectual um conflito epistemolgico de racionalidades, o qual tambm assume repercusses pedaggicas diretas ao ideal formativo humano.

Com o poder imitativo da msica, viu-se questionado o ideal representativo que as teorias racionalistas da linguagem reivindicaram. O carter emblemtico de uma revoluo paradigmtica do ponto de vista epistemolgico caracterizou--se pela posio que a msica passou a ocupar nas investigaes a respeito da linguagem durante o sculo XVIII. Na perspectiva racionalista, prevalecia a ideia de que a ordem das palavras prescrevia a ordem dos pensamentos, e aquelas, por sua vez, tinham como funo apresentar uma imagem da ideia, pois, [...] servir--se de palavras [e] de outros sinais, combinando-os como fazemos [tem como objetivo] declarar aos outros nossos pensamentos (DESCARTES, 2007, p. 94).

J para o genebrino, as primeiras histrias, as primeiras alocues, as primeiras leis foram em verso: a poesia foi descoberta antes da prosa; [...] visto que as paixes falaram antes da razo (ROUSSEAU, 2008, p. 146). O que h de peculiar aqui que estremece o edifcio da lingustica racionalista? A inverso de princpios fundamentais: as paixes so postas como anteriores razo. Neste contexto, completa Rousseau: o mesmo aconteceu com a msica: a princpio no houve outra msica alm da melodia, nem outra melodia alm do som diversificado da palavra [...]. Dizer e cantar eram outrora a mesma coisa [...] (2008, p. 146). arraigada concepo, no s de linguagem, mas prpria estrutura cartesiana da relao entre sujeito cognoscente e objeto cognoscvel, bem como razo como fonte do conhecimento, ope-se a perspectiva rous-seauniana. Tal perspectiva anunciada pelo genebrino nas seguintes palavras: [...] no se comeou por raciocinar, mas por sentir. [...] A linguagem figurada foi a primeira a nascer, o sentido prprio foi o ltimo a ser encontrado. [...] A princpio, falou-se somente em poesia; s se comeou a raciocinar muito tempo depois (2008, p. 103-105).

nesse contexto que se far possvel a perspectiva rousseauniana, sus-tentando, em nosso ensaio, a justificao da hiptese de existncia de uma racionalidade meldica capaz de articular o fazer musical no ocidente, com problemas filosficos e formativos de ordem mais ampla. O genebrino precisou fazer entender que as necessidades arrancaram os primeiros gestos, e que as primeiras vozes foram arrancadas pelas paixes. Aqui se reconhece o primado segundo o qual a origem das lnguas deve-se s necessidades morais e s pai-xes: no foi a fome nem a sede, mas o amor, o dio, a piedade, a clera que [...] arrancaram as primeiras vozes. [...] Eis por que as primeiras lnguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metdicas (ROUSSEAU, 2008, p. 104).



Em concluso, podemos afirmar que o ncleo da diferena de Rousseau em relao a Descartes repousa na centralidade atribuda s paixes e, por conseguinte, ao papel dos sentidos no mbito da racionalidade humana. Preci-samos investigar com mais cuidado, na sequncia, em que sentido a melodia torna-se, aos olhos de Rousseau, o ncleo fundante da expresso musical, para posteriormente investigar a razo perceptiva como ncleo da educao natural. Ou seja, deixaremos nos guiar, no tpico seguinte, pela seguinte questo: qual o estatuto da melodia no Ensaio?

Da melodia como princpio

L-se da seguinte maneira o ttulo completo da obra em estudo: Ensaio sobre a origem das lnguas: no qual se fala da melodia e da imitao musical. O subttulo apresenta a centralidade da msica para a discusso. Aps considerar a origem da linguagem e colocar a msica como princpio, o genebrino segue tematizando a origem da msica e suas relaes. Esta, por sua vez, liga-se s primeiras vogais que se formaram junto com as primeiras articulaes ou sons, expressos a partir das paixes. Essa premissa bsica sustenta o argumento central segundo o qual [...] os primeiros discursos foram as primeiras canes [...] (ROUSSEAU, 2008, p. 145); e justifica-se com a ideia de que ritmos, inflexes, melodias e acentos arrancados pelas paixes [...] fizeram nascer, com a lngua, a poesia e a msica, ou melhor, que tudo isso no era outra coisa seno a prpria lngua [...] (ROUSSEAU, 2008, p. 145). Enquanto crtica concepo racionalista sobre a origem da linguagem, a antecipao das paixes em relao razo conferiu as condies de antecipao originria da melodia.

A simbiose que o filsofo prope na relao originria entre msica e linguagem tem como principal objetivo mostrar que, no que diz respeito origem, as duas foram uma coisa s. Tal preocupao exigiu, assim, a passa-gem pelo problema da relao entre melodia e imitao, na qual o papel dos sentidos adquire primazia. O filsofo pretende mostrar que as sensaes, ao nos afetarem, no se reduzem a simples efeitos, mas podem ser compreendidas como sinais, imagens e efeitos morais e, para tornar claro esse ponto de partida, recorre analogia entre pintura e msica. Essa considerao, ao se levar em conta a macroestrutura do Ensaio, e de forma especfica a novidade filosfica da teoria da linguagem rousseauniana, rompe com o racionalismo clssico de matriz cartesiana e sua decidida crena na fora representativa da linguagem.



Se h, de fato, em Rousseau, uma posio hertica em relao concepo iluminista de linguagem, esta reside em superar o paradigma da representao linguista pelo da imitao. Da a centralidade da melodia. Ora, se, na pintu-ra, a imitao que d vida e alma s cores; na linguagem, ser o potencial imitativo da melodia o capaz de dar vida e alma s palavras. Imitar, portanto, no corresponde a representar. Mas, o que h na melodia que a torna capaz de redirecionar a concepo de linguagem da poca a um novo conceito de linguagem e at mesmo de msica? Demos ao prprio Rousseau o direito de resposta: a melodia faz na msica exatamente o que o desenho na pintura; ela que representa os traos e as formas cujos acordes e sons so apenas cores (2008, p. 150). Guarda-se, aqui, uma crtica contundente ao fazer artstico no mbito da msica e da pintura. Mas o que toca musica sobre a problemtica levantada em relao aos pintores?

Parece termos atingido o ponto do qual partimos anteriormente, anotado pela diviso sugerida pelo filsofo entre artes plsticas e cincias naturais. Mas, h algo que agora deve ser evidenciado, no apenas para corroborar as pretenses de nosso estudo, mas para justificar a contribuio do debate rousseauniano para a perspectiva epistemolgica da poca no que diz respeito msica: somente a imitao capaz de elevar a msica s belas-artes, no limitando-a ao mbito das preocupaes das cincias naturais. Nas palavras de Rousseau: ora, o que que faz da pintura uma arte de imitao? o desenho. O que que da msica faz uma outra? a melodia. (2008, p. 151).

Dada a importncia da melodia e a maneira como ela determina o novo sentido do conceito de linguagem, bem como a posio basilar que esta passou a ocupar ao investir contra um problema epistemolgico responsvel por orientar a produo artstica e do conhecimento em sentido mais amplo, fez-se necessrio considerar a esfera oposta, principal representante da perspectiva racionalista em msica: a harmonia. No que reside a beleza da harmonia e o que a garante? Quais seus limites na perspectiva rousseauniana?

Na verdade, a recusa de Rousseau a uma racionalidade harmnica precisar levar em conta o conceito de natureza e a posio que esse conceito ocupa em relao ao conjunto da obra do terico. O conceito rousseauniano de natureza13

13 No ser interesse nosso discutir os diversos e contraditrios conceitos de natureza que perpassam a obra de Rousseau, contudo, para pontuarmos a importncia de tal conceito para a mo-dernidade e a obra do autor, faremos uso da considerao de Dalbosco (2011), ao afirmar que, para que o conceito de natureza de Rousseau possa se tornar, no entanto, um conceito eminentemente moderno, ele precisa se defrontar ao menos com um dos problemas de teodiceia, a saber: com o problema da origem da maldade na histria da vida humana poder mostrar que a sua culpa no reside em Deus nem exclusivamente no homem, mas sim na sociedade. Ele precisa mostrar, em primeiro lugar, que o sentido normativo do conceito de natureza no depende mais diretamente de



extrapola nitidamente o significado fsico-mecnico estabelecido a partir da fsica de Newton e da res extensa de Descartes. Ele carrega um sentido norma-tivo de provenincia grega e romana, com raiz nitidamente estoica, vinculado principalmente ao pensamento de Sneca. O ncleo desse sentido normativo tico e cosmolgico, pois a natureza fonte da bondade e da beleza que reina no cosmo. Nesse sentido, seguir a natureza significa seguir a ordem universal que lhe imanente, ou seja, seus ideais de bondade e beleza. Tudo o que bom provm da natureza e compete ao ser humano se espelhar nela.

Da a ideia de que a beleza dos sons pertence natureza (ROUSSEAU, 2008, p. 153). Nessa perspectiva, a harmonia encontra-se em situao desfavo-rvel, pois, para Rousseau, a beleza que esta expressa obedece a convenes, ao passo que agrada sempre a ouvidos habituados. Para chegar a essa conclu-so o genebrino parte da teoria harmnica de Rameau desenvolvida no Trait dHarmonie (1722), que j fora alvo de seus estudos em Chambry, em 1735. Ouve-se de Rousseau: o Sr. Rameau pensa que os registros mais altos de uma certa simplicidade sugerem naturalmente seus registros mais baixos e que um homem que possui ouvido, afinado e no exercitado, entoar naturalmente esse baixo (2008, p. 154). O genebrino est convencido de que qualquer experin-cia bsica com a msica mostrar o contrrio e de que os que jamais tivessem ouvido o baixo e a harmonia, em hiptese alguma os identificariam, e completa: obrigados a ouvir tal estrutura harmnica desconhecida, a entenderiam como desagradvel e optariam pelo simples unssono (ROUSSEAU, 2008, p. 154).

O que h de problemtico aqui? O fato de a harmonia inviabilizar o prin-cpio da imitao. Isso acontece quando a melodia pensada em detrimento da harmonia e passa a ser estabelecida a partir de sucesses sonoras e regras de modulaes, exigindo a preciso do desenvolvimento meldico. Nesse caso, embora exista uma preocupao meldica, ela se d do ponto de vista racional e reflexivo, chegando a [...] retirar-lhe a energia e a expresso, ela elimina o acento apaixonado para a ele substituir o intervalo harmnico, [...] ela separa [...] o canto e a palavra (ROUSSEAU, 2008, p. 155). Nessas condies, a har-monia fere o princpio bsico da origem das lnguas ao inviabilizar o despertar das paixes, dos sentimentos14.

Deus para poder conectar, em seguida, a sua voz com a voz interna da conscincia. De outra parte, para uma abordagem atual e bem fundamentada do conceito de natureza em Rousseau no mbito anglo-saxnico, ver os estudos de Laurence D. Cooper (1999) e Frederick Neuhouser (2008, p. 109-133).

14 A posio acima confirma o partidrio que foi Rousseau da melodiosidade da msica italiana, que conferiu todo o pano de fundo para o desencadeamento da to conhecida querele des bouffons entre 1752 e 1754.



Com a emoo integrando o conjunto de objetivos da imitao musical, emerge a problemtica sobre o que significa ser atingido pela msica e sobre o que determina nossas impresses. Questiona-se, ento, o primado da emoo causada pelos sons que excitam os nervos, uma vez que, nessa perspectiva, exclui-se todo o poder que a msica exerce sobre os coraes. Rousseau parte, portanto, da superao da mera sensao para firmar o princpio das impresses morais e afirma: os sons, na melodia, no agem em ns apenas como sons, mas como sinais de nossas afeies, de nossos sentimentos; assim que excitam em ns os movimentos que exprimem, e cuja imagem reconhecemos (2008, p. 157). A reflexo nessa parte perpassa numa perspectiva antropolgica o campo semntico da experincia com a msica e refora a tese de que toda e qualquer sensao musical possui sua origem em causas morais15.

Na verdade, como prprio das cincias da natureza, todas as experincias so vlidas universalmente. E a noo de msica que tem como objeto o som, continha, em si, essa mesma perspectiva universalizante. Assim, as impresses, a partir da experincia com msica, eram entendidas como efeitos sonoros sobre os corpos, ou sobre nervos, como prefere Rousseau. Ao se concentrar no campo semntico formado a partir de impresses morais, o filsofo relativiza toda e qualquer perspectiva universalizante em msica e se mostra convencido que a experincia musical relativiza-se: cada um afetado somente por acentos que lhes so familiares; seus nervos agem na medida em que seu esprito os dispe para isso [...] (2008, p. 158).

No fundo, h um princpio fundamental nas entrelinhas que luta contra o conceito de razo iluminista: o sentimento. Afirmar o genebrino: [...] no tanto o ouvido que leva o prazer ao corao, mas sim o corao que o leva ao ouvido (ROUSSEAU, 2008, p. 159). Essa mxima prope uma inverso profunda ao passo que aponta os limites do julgamento da razo, seja na pers-pectiva do mais radical racionalismo, ou do mais radical empirismo. Quando o ouvido deixa de ser o condutor, suspensa a validade racionalista segundo a qual os sentidos confirmam os contedos natos da ideia, bem como a crena empirista ferrenha nos contedos racionais adquiridos por meio dos sentidos. Dessa forma, o corao posto como fonte, o movimento caracteriza-se ad interno, e a fonte primria deixa de ser pura razo.

Enquanto problema de poca e racionalidade, o filsofo precisou enfrentar o que ele denomina de [...] absurdo [das] observaes fsicas ocasionado no exame das belas-artes (ROUSSEAU, 2008, p. 161). Ele refere-se aos mesmos

15 Para fazer-se entender, diz o genebrino: [...] nossas mais emocionantes msicas so apenas um rudo sem valor para o ouvido de um caraba [e acrescenta], sero seus nervos diferentes dos nossos? (ROUSSEAU, 2008, p. 158).



critrios adotados para anlise do som e da luz ou cores: h uma falsa analogia a. Essa a suspeita do genebrino, a qual transparece na ideia de que essa analogia foi logo rapidamente aceita sem nenhuma preocupao com a experincia ou a razo. O esprito de sistema misturou tudo e, sem saber pintar para as orelhas, decidiu-se cantar para os olhos (2008, p. 161). Tais concepes contradizem as operaes da natureza, tal como a concebia o genebrino, pois no leva em conta que a permanncia a caracterstica fundamental das cores, enquanto a dos sons a sucesso temporal: o campo da msica o tempo, o da pintura o espao (ROUSSEAU, 2008, p. 162).

H uma recusa difundida teoria de que, assim como as cores so de-terminadas pelo ngulo de refrao do raio que as causam, tambm o som determinado pelo nmero de vibraes do corpo sonoro em um determinado espao de tempo. Para o filsofo, essa analogia possvel, desde que apoiada na pura razo, o que deixa de fora sentimentos e impresses morais. Ao tratar da pintura de sua poca, ir caracteriz-la como inanimada e como algo que certamente produz uma experincia esttica e pode transportar algum a lugares diversos, mas ainda assim no correlata da msica. Com a msica, todo e qualquer sinal vocal nos indica a existncia de um semelhante. Da a conclu-so de que somente o homem canta, o que nos liga definio de abertura do Ensaio: a palavra distingue os homens dos animais (ROUSSEAU, 2008, p. 97). J foi de Aristteles a definio de que o homem o animal que possui o logos; em Rousseau, essa definio se amplia ao passo que o que define o ser humano a palavra cantada.

Ao chegar a esta altura de nossa reconstruo do Ensaio, j estamos em condies de resumir o essencial que interessa ao nosso ponto em discusso. O Ensaio contm uma novidade filosfica na teoria rousseauniana de linguagem na medida em que rompe com o modelo lingustico da mente representacional (modelo da representao sgnica), colocando em seu lugar o papel imitativo da linguagem. Isso foi possvel porque Rousseau distanciou-se da certeza apo-dtica do cogito, reposicionando o papel das paixes e emoes no mbito da cognio humana. Nesse contexto, concedeu primazia, no mbito da msica, melodia em detrimento ao papel atribudo pelos racionalistas harmonia. Tomamos reconstrutivamente tal procedimento do Ensaio para exemplificar a ruptura de seu pensamento em relao ao racionalismo cartesiano. Na sequncia, na ltima parte de nosso ensaio e como forma de concluso deste, vamos tratar de alguns desdobramentos pedaggicos que se vinculam concepo musical rousseauniana. Esse passo de nossa anlise exige considerar o Emlio.



Da racionalidade meldica experincia formativa natural

Nas entrelinhas do Ensaio est presente uma problemtica epistemol-gica que se tornar muito explcita na arquitetnica pedaggica do Emlio. Tal problemtica sustenta, tambm, no mbito da educao natural, a experincia formativa do aluno fictcio. Esse o ponto que gostaramos de tratar na sequn-cia, comeando pela explicitao da prpria problemtica epistemolgica.

O tema de fundo que cruza o Emlio do comeo ao fim a crtica de Rous-seau ducation barbare. No sculo XVIII, se consolida uma noo racionalista de educao que remonta tradio grega, de matriz tanto platnica como aristotlica. O racionalismo platnico que nos interessa aparece nitidamente, de maneira especial, nos Dilogos Fedo e Meno, caracterizando-se, entre outros, pelos seguintes aspectos: a) distino entre inteligvel e sensvel; b) admisso das ideias (formas) e de seu carter eterno e inato; c) a crena na imortalidade da alma; d) a defesa da teoria do conhecimento como anamnese e; e) a noo de ensino e aprendizagem como o extrair ou o fazer brotar de dentro. Todos esses aspectos justificam a tese central do racionalismo platnico isto , do Plato da maturidade de que o pensamento puro determinado pelo mundo das ideias e, portanto, pelo inteligvel.

Embora existam enormes diferenas entre Plato e Aristteles, o raciona-lismo platnico acima exposto assumido pelo estagirita no Livro XII (Lambda) da Metafsica. Aristteles assume a a tese de que o pensamento puro (o inte-lecto) determinado pelo inteligvel e, ao tornar-se independente dos sentidos, tem condies de conhecer as coisas como elas so em si mesmas. Com isso, se expressa o ncleo de uma vertente do racionalismo aristotlico: o inteligvel que move o intelecto a substncia primeira (prt ousia), a qual ocupa o lugar mais alto na coluna de opostos e , enquanto tal, simples, existindo em ato (Met, 1072a 30, ARISTTELES, 1995). No contexto desse mesmo livro da Metafsica, fica estabelecida a vida contemplativa como melhor maneira do intelecto ser afetado pelo inteligvel (Met, 1072b 20, ARISTTELES, 1995).

Portanto, por meio da vida contemplativa o intelecto afetado pelo in-teligvel e pensa sobre o mundo. esse ncleo duro da tradio racionalista ocidental que chega at o racionalismo moderno, especialmente at Descartes. Obviamente que se no podemos considerar Aristteles como um mero continua-dor de Plato16, tambm no podemos inserir a filosofia cartesiana simplesmente

16 O livro sete da Metafsica investiga um sentido de substncia que se distancia da onto-logia platnica. Alm disso, como mostrou Marco A. Zingano (1998, p. 31 e 170), no De Anima, Aristteles desenvolve uma teoria do intelecto que no mais receptiva das formas inteligveis,



na tradio platnica e aristotlica. Nesse sentido, o cogito iminentemente moderno porque pe a subjetividade como centro e referncia do pensamento filosfico de modo completamente original, isto , de uma maneira que no foi vista pela tradio passada. Contudo, com a primazia concedida coisa pensante, Descartes assume o ncleo duro daquele racionalismo, vendo agora a atividade do cogito como fonte doadora de sentido das coisas e do mundo.

Esse breve apanhado j suficiente para dirigirmo-nos novamente a Rousseau, o qual pe a razo perceptiva no centro de seu projeto de educao natural, criticando, por um lado, a primazia da razo intelectual e, por outro, a obcecao da educao de sua poca em querer raciocinar com as crianas. Ao fazer isso, ele est se distanciando no s daquela tradio racionalista, da qual Descartes o principal representante moderno, mas tambm do intelectualismo pedaggico a ela inerente. Nesse contexto, torna-se decisivo expor e analisar a distino rousseauniana entre razo perceptiva e razo intelectual. Comea-mos pela citao integral da passagem do Emlio que trata do tema. Assim se expressa Rousseau:

Como tudo que entra no conhecimento humano entra pelos sentidos, a primeira razo do homem uma razo perceptiva. Ela que serve de base razo intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia so os nossos ps, nossas mos, nossos olhos. Substituir tudo isso por livros no ensinar-nos a raciocinar, ensinar-nos a nos servirmos da razo de outrem; ensinar-nos a acreditarmos muito e a nunca sabermos coisa alguma (ROUSSEAU, OC IV 370; 1992, p. 121).

H dois aspectos dessa passagem que interessam diretamente ao nosso ponto. O primeiro refere-se propriamente distino entre as duas razes citadas: enquanto a perceptiva brota dos sentidos e corresponde educao adequada dos mesmos, a intelectual tem a ver com o emprego adequado do raciocnio. Rousseau atribui nitidamente uma tarefa educativa para ambas: razo perceptiva correspondem o fortalecimento do corpo e o refinamento dos sentidos; intelectual, a capacidade de pensar por si mesmo. Contudo, de acordo com a arquitetnica pedaggica do Emlio, razo perceptiva e razo intelectual implicam-se mutuamente, do mesmo modo que, sem a educao natural, no seria possvel pensar na educao moral e na educao poltica. O

uma vez que o intelecto concebido como atividade prpria que produz seus prprios objetos, estabelecendo, com isso, outra forma de relao com o inteligvel.



segundo aspecto refere-se crtica ao intelectualismo pedaggico e, com ele, educao livresca, que est subjacente passagem citada. A distino clara entre razo perceptiva e razo intelectual e o emprego adequado delas, consi-derando o estgio em que se encontra o educando, so decisivos formao do pensamento autnomo. Em sntese, a tese de fundo que sustenta a distino entre razo perceptiva e razo intelectual a de que o fortalecimento do corpo e o refinamento dos sentidos condio de possibilidade s operaes simples e seguras do esprito (ROUSSEAU, 2008).

O fato de ter recorrido razo perceptiva no significa que Rousseau esti-vesse apelando simplesmente s sensaes e que depositasse nelas o alicerce da moralidade e do conhecimento. Duas consideraes nos auxiliam a esclarecer melhor isso: a primeira de contedo estritamente epistemolgico; a segunda, de carter moral. Do ponto de vista epistemolgico, Rousseau est certo de que e isso ser desenvolvido sistematicamente depois por Kant , embora nosso conhecimento comece com a experincia, no pode ser por ela justificado. Ou seja, sua crtica ao predomnio da razo intelectual no significa obviamente a dispensa da atividade intelectiva como fonte sintetizadora do conhecimento. Ao negar o poder absoluto da razo analtica de cunho dedutivo (demonstrati-vo), ele enfatiza o mbito da experincia como ponto de partida da elaborao do conhecimento. Essa mudana no ponto de partida ter implicaes ainda maiores, como veremos abaixo, questo especificamente educacional e, com ela, aprendizagem da criana. Contudo, o primado da razo perceptiva ocorre do ponto de vista da gnese (ponto de partida) da aprendizagem e no significa obviamente a dispensa da razo intelectual.

Do ponto de vista moral, a nfase razo perceptiva refere-se importn-cia das emoes e das paixes na constituio da moralidade. Nesse aspecto, Rousseau insere-se nitidamente na tradio inglesa da filosofia dos sentimentos morais, cuja sntese bem elaborada a obra Teoria dos sentimentos morais de Adam Smith (2002), a qual serve de fonte de inspirao para que Rousseau critique o intelectualismo moral e ponha no corao, ou seja, nas emoes e paixes humanas, a fonte da moralidade. Ora, justamente no mbito dessa problemtica que encontramos o elo direto entre Ensaio e Emlio, pois a pri-mazia concedida melodia em relao harmonia tendo em vista recobrar as paixes como ncleo dos sentimentos morais coaduna-se com a centralidade concedida, no Emlio, aos sentimentos que brotam do corao como fonte da educao moral dirigida ao jovem Emlio.

Uma vez esclarecidos os principais motivos que levam Rousseau a conceder prioridade razo perceptiva e tambm os limites de tal concesso,



resta-nos agora analisar especificamente os desdobramentos pedaggicos que emergem de tal prioridade. Ou seja, precisamos nos ocupar, agora, brevemente e j em forma de concluso, com a questo do vnculo entre razo perceptiva e educao natural.

Quando nos referimos educao natural em Rousseau, precisamos ter presente que ela se insere, no Emlio, em uma arquitetnica pedaggica mais ampla, da qual faz parte tambm a educao moral e a educao poltica. En-quanto a educao natural refere-se formao do aluno fictcio em sua fase inicial, compreendendo uma noo tripartite de infncia (primeira, segunda e terceira infncias), a educao moral e a poltica dizem respeito juventude e fase adulta do Emlio. Embora cada fase tenha suas especificidades, elas formam o projeto educativo como um todo, cuja meta, como Rousseau enfatiza, consiste em formar o ideal do ser humano, com a razo de um sbio e o vigor de um atleta (ROUSSEAU, OC IV, 362; 1992, p. 113).

Considerando essa arquitetnica pedaggica, o primado da razo per-ceptiva torna-se nuclear educao natural. nesse mbito que Rousseau desenvolve o princpio pedaggico da educao pelas coisas, pois acredita que a melhor forma de preparar solidamente o futuro desenvolvimento cognitivo e moral do aluno fictcio estimular previamente seu desenvolvimento corporal e sensitivo. Tambm por isso que se d, nos trs primeiros livros do Emlio, o desenvolvimento de inmeras estratgias pedaggicas visando fortalecer o corpo e refinar os sentidos do aluno fictcio. Trata-se, portanto, de um amplo movimento pedaggico ancorado na razo perceptiva, fazendo parte do credo pedaggico rousseauniano mais amplo de que a insero direta da criana no ambiente natural, alm de evitar os riscos de corrupo do mundo adulto, prepara a criana formao futura de seu carter moral.

Em sntese, como podemos observar, com o primado concedido razo perceptiva na infncia, implicam-se motivos no s de ordem epistemolgica, mas tambm moral. Ora, encontramos aqui, no Emlio, pelo vis pedaggico, uma ressonncia clara do primado concedido s paixes no mbito do Ensaio. Da educao natural centrada na razo perceptiva brota ento um tipo de expe-rincia formativa que tem seu centro no refinamento dos sentidos, o qual exige tanto a insero do educando no ambiente natural como o aprendizado tenso e progressivo do domnio de suas prprias paixes. Nesse contexto, o apelo ao primado meldico da msica pode ser visto tambm como uma fonte genuna da dupla tarefa formativa, ou seja, do refinamento dos sentidos e do progressivo domnio das paixes.



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Texto recebido em 04 de abril de 2014.Texto aprovado em 22 de julho de 2014.



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Racionalidade Musical e Experiência natural formativa em Rousseau