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3FWJTUB"PQマEB-FUSBo7PMVNF 27 0-&53".&/50-*5&3ォ3*0/0-*730%*%ォ5*$0 %0&/4*/0.イ%*0 Helio Castelo Branco Ramos 1 Universidade Federal de Pernambuco Resumo: O presente trabalho tem por objetivo avaliar se os exercícios de compreensão leitora do texto literário exploram aspectos mais complexos ou se limitam ao processo de identificação de técnicas e características de um estilo de época. Palavras-chave: letramento, literatura, livro didático, ensino. Abstract: The objective of this paper is to evaluate whether the reader comprehension exercises of the literary text explores more complex aspects or is limited to the process of the identification of techniques and characteristics of a period style. Key-words: literacy, literature, textbook, teaching. 1. Introdução Não obstante o uso do livro didático não ser um ponto pacífico entre os estudiosos do tema, ele continua sendo um dos principais recursos didáticos utilizados pelo professor, quando não o único. A utilização do livro didático (ou, pelo menos, do livro com fins didáticos) em sala de aula não é nova, remonta ao período do império português no Brasil, porém o seu formato foi mudando de acordo com o processo sócio-histórico. 1 Aluno bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Letras da UFPE. Este estudo é resultado das atividades de pesquisa realizadas no âmbito do programa, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Lívia Suassuna.

RAMOS, Helio C.B. O Letramento Literário No Livro Didático Do Ensino Médio

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Helio Castelo Branco Ramos. Letramento Literário no Ensino Médio

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    O LETRAMENTO LITERRIO NO LIVRO DIDTICO DO ENSINO MDIO

    Helio Castelo Branco Ramos 1

    Universidade Federal de Pernambuco

    Resumo: O presente trabalho tem por objetivo avaliar se os exerccios de compreenso leitora do texto literrio exploram aspectos mais complexos ou se limitam ao processo de identificao de tcnicas e caractersticas de um estilo de poca. Palavras-chave: letramento, literatura, livro didtico, ensino.

    Abstract: The objective of this paper is to evaluate whether the reader comprehension exercises of the literary text explores more complex aspects or is limited to the process of the identification of techniques and characteristics of a period style. Key-words: literacy, literature, textbook, teaching.

    1. Introduo

    No obstante o uso do livro didtico no ser um ponto pacfico entre os estudiosos do tema, ele continua sendo um dos principais recursos didticos utilizados pelo professor, quando no o nico. A utilizao do livro didtico (ou, pelo menos, do livro com fins didticos) em sala de aula no nova, remonta ao perodo do imprio portugus no Brasil, porm o seu formato foi mudando de acordo com o processo scio-histrico.

    1 Aluno bolsista do Programa de Educao Tutorial (PET) do curso de Letras da UFPE. Este estudo resultado das atividades de pesquisa realizadas no mbito do programa, sob a orientao da Prof. Dr. Lvia Suassuna.

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    A mudana na conjuntura socioeconmica no Brasil ocorrida entre os anos 1930 e 1960, marcada pelo acelerado processo de industrializao, por conseguinte, pelo aumento na demanda por mo-de-obra qualificada, como tambm pelas reivindicaes sociais em prol da democratizao do ensino pblico, fez a escola abrir as portas para um pblico que apresentava uma srie de dificuldades em relao lngua. Alm disso, esse aumento no nmero de alunos gerou um recrutamento amplo e menos seletivo dos professores, o que foi conduzindo esses profissionais a condies de trabalho cada dia menos favorveis, entre elas, um nmero excessivo de turmas, a fim de garantir ganhos salariais mnimos. Em virtude disso, gramticas e antologias com fragmentos de texto literrio vo cedendo espao para livros com exerccios, j que muitas vezes o professor no tinha tempo para pesquisar textos e pensar em atividades.

    Na contemporaneidade, a situao da escola pblica e dos professores no mudou muito, embora a academia tenha se voltado para o enfrentamento das questes relacionadas aos problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos. Entre as discusses acadmicas, consenso que a formao do leitor, seja do texto literrio, seja do texto no-literrio, no pode se resumir ao estudo de metalinguagem gramatical nem ao estudo de tcnicas e caractersticas de um estilo de poca.

    Assim sendo, nosso objetivo com o presente trabalho avaliar de que maneira os exerccios de compreenso no livro didtico do ensino mdio orientam a formao do leitor do texto literrio. Buscamos responder seguinte pergunta: os exerccios revelam uma preocupao de desenvolver habilidades mais complexas de leitura ou se resumem identificao de tcnicas e caractersticas de um estilo de poca?

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    Para tanto, comecemos nossa discusso a partir das ideias que nortearam a concepo deste trabalho.

    2. Letramento

    Definir letramento no uma tarefa fcil, pois ele envolve uma srie de elementos, entre eles, habilidades, valores, usos e funes sociais, que, de um lado, possuem uma dimenso individual e, de outro, social. Essas duas dimenses chegam a cindir os tericos em diferentes definies, que representam, muitas vezes, posies antagnicas.

    Na dimenso individual, uma das dificuldades de se definir letramento encontra-se no fato de ela envolver dois processos fundamentais ler e escrever, compreendidos aqui como duas tecnologias de natureza distinta, mas complementares; por conseguinte, o letramento est ligado a ambas. Alguns tericos costumam apresentar esses dois processos como uma nica habilidade, enquanto outros, ao reconhecerem essa distino, concentram-se na leitura ou na escrita.

    A leitura engloba um complexo conjunto de habilidades que vo desde a decodificao de palavras escritas at a compreenso de textos escritos. A escrita, por seu turno, habilidades que vo desde a codificao de palavras escritas at a construo de um texto inteligvel para um leitor potencial. Alm disso, ambas as tecnologias devem ser aplicadas a diferentes materiais receitas, catlogos, lista de compras, projeto de pesquisa cientifica, etc., todos imersos em diferentes prticas sociais, que podero demandar operaes mais simples ou mais complexas. Considerando-se a natureza, bem como o nmero de habilidades envolvidas nesses

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    processos, fica difcil traar um conceito adequado para o termo letramento e definir quais habilidades de leitura e escrita qualificariam um indivduo como sendo letrado.

    Na dimenso social do letramento, em que se leva em considerao o que as pessoas so capazes de fazer com as habilidades de leitura e escrita em contextos de uso da lngua, encontramos interpretaes opostas em relao natureza social desse fenmeno uma verso de cunho liberal, preocupada com a insero adequada do indivduo nas prticas sociais, e outra de cunho crtico, voltada ao desvelamento das ideologias presentes em tais prticas.

    A distino entre essas duas maneiras de encarar o letramento muito importante, porque elas iro implicar diferentes modos de conduzir o processo de ensino-aprendizagem de leitura e escrita. A primeira ir conceber o letramento como uma forma de adaptao do indivduo s relaes sociais existentes, enquanto a ltima ir se preocupar com a formao de um indivduo consciente dos processos ideolgicos e das formas de distribuio de poder presentes nas prticas sociais. Segundo Street (1984), um dos representantes dessa segunda perspectiva, apud Soares (2003:75), a verdadeira natureza do letramento so as formas que as prticas de leitura e escrita concretamente assumem em determinados contextos sociais, e isso depende fundamentalmente das instituies sociais que propem e exigem essas prticas.

    Embora sejam distintas, essas vises apresentam a relatividade do conceito de letramento, j que ele vai estar diretamente relacionado com a natureza e a estrutura sociais, por isso, ligado aos interesses polticos de cada grupo, o que o torna varivel no espao e no tempo. Por essa razo, Soares (op. cit., p. 112) define letramento

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    como sendo uma varivel contnua e no discreta ou dicotmica; refere-se a uma multiplicidade de habilidades de leitura e escrita, que devem ser aplicadas a uma ampla variedade de materiais de leitura e escrita; compreende diferentes prticas que dependem da natureza, estrutura e aspiraes de determinada sociedade.

    Em virtude da multiplicidade e complexidade dos elementos envolvidos na constituio do letramento, h tericos que no usam esse termo no singular, mas no plural, letramentos, o que nos parece pertinente, se levarmos em considerao que cada prtica social tem suas especificidades e que, certamente, um indivduo sempre estar no letrado em determinadas prticas sociais. reflexo sobre um desses letramentos que dedicamos o prximo tpico.

    3. Letramento literrio

    H pelo menos dois grandes paradigmas construdos pela tradio do ensino de leitura literria, que representam posies filosficas diferentes o franco-brasileiro, influenciado pelo positivismo de Augusto Comte, e o anglo-americano, alicerado sobre as bases liberal-humanistas de John Stuart Mill. Leahy-Dios (2001:49-50) distingue os dois paradigmas da seguinte maneira:

    O primeiro se apia sobre o lado histrico-social, aparentemente o mais adequado para um processo de ensino quantificvel, tecnicista, objetivamente mensurvel. Apesar de assassinar o texto literrio, esse modelo parece menos elitista, mais democrtico que o segundo. O modelo anglo-americano valoriza a transmisso de valores socioculturais da elite dominante; seus mtodos, tcnicas e teorias de

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    educao literria constituem uma agenda implcita obscura para os menos iguais.

    Em nenhum dos dois paradigmas, parece haver a preocupao de fazer com que o aluno construa um olhar mais crtico para o mundo, para o outro e para si prprio, desconsiderando, portanto, um dos objetivos principais da leitura do texto literrio em sala de aula, isto , o seu carter formativo. Pois, embora o paradigma anglo- americano tenha como objeto de ensino o texto, o sucesso do aluno vai estar atrelado a sua familiaridade com o texto literrio, ou seja, a seu histrico familiar. Educar pela literatura torna-se, assim, uma questo de bero (op. cit., p. 50); j o modelo franco-brasileiro, tem como foco no o estudo do texto literrio, mas um estudo sobre o texto literrio, baseado em estilos de poca, suas caractersticas e autores mais representativos. Esse modelo tem sido o mais adotado no Brasil, provavelmente por conta dos livros didticos.

    Entre as crticas ao paradigma franco-brasileiro, destacamos o fato de considerar o aluno (leitor) como sujeito passivo no processo de interao com o texto, uma vez que, quando acontece a leitura do texto literrio, ela baseada na identificao de determinadas tcnicas ou caractersticas de um estilo de poca nesse texto. Essa atitude no implica um alargamento dos horizontes culturais dos alunos porque limita a atividade de leitura a uma taxonomia do texto.

    Por essa razo, s possvel falar em leitura do texto literrio quando esta atividade leva em considerao no s os aspectos formais do texto, mas tambm a enunciao desse texto, isto , as condies em que ele foi produzido. Dessa forma, a seleo dos significados se opera por fora de um contexto que os justifica. Esse

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    contexto o da experincia humana, que confere valor a um sinal que em principio vazio e s passa a portar significado por um ato de conveno eminentemente social (BORDINI e AGUIAR, 1993:16).

    Com o intuito de buscar uma nova abordagem para a leitura do texto literrio, Cosson (2006:12) prope o uso da expresso letramento literrio, que corresponde ao processo de letramento que se faz via textos literrios [e] compreende no apenas uma dimenso diferenciada do uso da escrita, mas tambm e, sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domnio.

    Fica claro, ento, que primordialmente por meio da leitura dos textos literrios que o aluno ir se construir enquanto leitor. No obstante o letramento literrio possa ocorrer fora da escola (como o caso dos autodidatas), essa instituio continua sendo o locus por excelncia no que se refere formao do leitor, haja vista o seu papel de agncia cultural. S atravs da escola, por conseguinte, da mediao do professor, o aluno ser capaz de realizar a leitura proficiente do texto literrio, desconstruindo dois dos mitos vigentes em nossa sociedade em relao leitura: o primeiro o de que h uma transparncia nos livros e o outro, de que a leitura um ato solitrio.

    No tocante ao primeiro mito, no h a necessidade de interveno da escola no ato de leitura, uma vez que, fora dessa instituio, lemos as obras literrias com prazer, sem nenhuma instruo especial. Entretanto, nossa leitura desses textos est intimamente relacionada com os mecanismos de interpretao (op. cit., p. 26) que utilizamos, mecanismos esses que, em grande parte, so aprendidos na escola. Alm do mais, o papel da escola no que se refere leitura do texto literrio extrapola os limites do entretenimento que a leitura de fruio proporciona. Por ser artefato

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    cultural multifacetado, envolvendo, assim, questes de ordem diversa, tais como lingusticas, discursivas, estticas, ticas, etc., necessrio que o aluno aprenda a explorar esse texto atravs do processo de escolarizao.

    No que diz respeito ao segundo mito, considera-se a leitura em sala de aula um desperdcio de tempo, por se acreditar que o ato de ler se restringe decodificao do material lingustico do texto; todavia, sabe-se, pelas pesquisas recentes, que durante a interao que o leitor mais inexperiente compreende o texto: no durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto. (KLEIMAN, 2007:24).

    Infere-se, a partir dessa afirmao, a importncia das atividades de leitura realizadas em sala de aula, sobretudo aquelas relacionadas com a compreenso do texto, processo que abordaremos a seguir.

    4. Compreenso textual: estrutura x processo de interao

    A maneira de conceber o processo de compreenso textual est interligada s noes de lngua, texto e sujeito, que iro variar de acordo com as diferentes correntes lingusticas. Em nosso recorte terico, iremos analisar essas noes luz dos pressupostos do estruturalismo e do sociointeracionismo, por julgarmos que essas duas correntes so bastante representativas de pelo menos dois dos paradigmas de abordagem desse fenmeno na contemporaneidade: um que toma a lngua como um sistema de signos e outro no qual o texto visto como um locus de interao social entre os indivduos.

    Na concepo de lngua como sistema de signos, a enunciao do sujeito a fala encarada como concreta e individual; j a lngua um sistema abstrato, homogneo, social e que transcende o

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    indivduo. Em funo disso, Saussure excluiu do objeto de estudo da Lingustica tudo o que fosse individual e heterogneo. Os signos, por sua vez, comportam dois elementos: o significante e o significado. Assim sendo, o texto visto como um produto desse sistema, que se torna totalmente explcito quando seu interlocutor consegue estabelecer as relaes entre os signos presentes. A atividade de compreenso resume-se, desse modo, a uma extrao de contedos do texto.

    Na concepo de lngua como lugar de interao, o sujeito visto como uma entidade social; refora-se o carter ativo que os sujeitos (locutor e interlocutor) possuem no processo de interao social, pois, a partir dela, esses sujeitos no s reproduzem, como tambm produzem o social, medida que participam ativamente da formao da situao comunicativa na qual se encontram. Alm disso, so responsveis pela atualizao das imagens e das representaes sociais necessrias comunicao. O texto deixa de ser um produto da comunicao e passa a ser visto como o prprio lugar em que a interao social se desenvolve e atravs do qual os sujeitos dialogicamente se constroem e so construdos. Desse modo, o texto apresenta uma srie de implcitos, apenas reconhecveis quando apreendemos o contexto sociocognitivo dos interlocutores e da situao comunicativa. Isso implica considerar o processo de compreenso como uma atividade de construo de sentido, que se realiza atravs da relao entre os ndices de significao deixados pelo autor do texto e os elementos extralingusticos presentes na enunciao do texto.

    A noo do processo de compreenso que o professor possui norteia a construo das atividades que ele elabora para os seus

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    alunos. O mesmo fato pode ser observado nos exerccios de compreenso leitora presente nos livros didticos.

    Em nossa anlise dos exerccios do livro didtico do ensino mdio, levamos em considerao a classificao tipolgica 2

    estabelecida por Marcuschi (2005), considerando, assim, a natureza de cada uma das questes e sua relao com a construo de habilidades de leitura no processo de formao do leitor do texto literrio. No que se refere ao tipo, as questes podem classificadas em:

    a) A cor do cavalo branco de Napoleo so questes nas quais no se exige o mnimo de perspiccia por parte do aluno (leitor), j que a prpria formulao as torna auto-repondidas, poderiam ser resumidas a indagaes do tipo: Qual a cor do cavalo branco de Napoleo?

    b) Cpias so aquelas que exigem do aluno apenas a reproduo de enunciados explcitos no texto. Trata-se de uma atividade de mera identificao.

    c) Objetivas so perguntas cujas respostas se encontram inscritas no material lingustico do texto. Logo, a compreenso leitora encerra-se na atividade de decodificao desse material.

    d) Inferenciais so perguntas cujas respostas extrapolam a decodificao do material lingustico do texto, uma vez que, para respond-las, o aluno precisa produzir novas

    2 Para a elaborao dessa tipologia, o autor no analisou exclusivamente exerccios de compreenso leitora de textos literrios, visto que as atuais colees de livros de lngua portuguesa do ensino fundamental e mdio apresentam um nmero variado de gneros textuais. Todavia, como algumas habilidades de leitura tambm so comuns ao texto literrio, adotamos a sua classificao.

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    informaes a partir de informaes prvias, quer sejam de carter textual ou no. Essas perguntas so mais complexas, pois implicam a interao entre o material lingstico do texto e outros conhecimentos, como os pessoais, os contextuais e os enciclopdicos. E isso acarreta determinadas estratgias lgicas e cognitivas, tais como dedues, indues, generalizaes, particularizaes, associaes, etc.

    e) Globais so perguntas que levam em considerao a relao entre organicidade do texto e os aspectos extratextuais envolvidos na sua produo, o que implica a utilizao de processos inferenciais. So questes que dizem respeito s ideias centrais do texto, temtica, ponto de vista discurso, entre outras.

    f) Subjetivas so as questes que relacionam com o texto superficialmente, j que suas respostas ficam apenas a cargo do aluno, sem que possamos testar a validade dessas respostas a partir do confronto com o texto.

    g) Metalingusticas so perguntas que exigem do aluno ateno para questes formais dos gneros textuais, normalmente, se referem estrutura do texto ou do lxico, como tambm a partes textuais.

    h) Interdisciplinares 23 so perguntas que visam a ampliar o repertrio cultural do aluno, pois, com elas, busca-se compreender um conceito presente no texto a partir do respaldo de uma outra rea do conhecimento.

    2 A nomenclatura para esse tipo de questo foi proposta por ns, uma vez que, entre os dados coletados, havia questes que apresentavam esse formato, porm no tinham sido contempladas no estudo realizado por Marcuschi.

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    5. Metodologia

    O corpus selecionado para a nossa anlise composto pelo manual do professor, bem como pelos exerccios de compreenso leitora da unidade 3 do primeiro volume de uma coleo didtica de lngua e literatura que tem como foco o trabalho com a compreenso leitora de textos produzidos no perodo do Barroco. O recorte adotado o trabalho com apenas uma unidade do livro deve-se ao carter inicial e exploratrio da pesquisa, que talvez no permitisse um olhar mais acurado das questes com um volume maior de dados. As subquestes de uma mesma pergunta foram consideradas individualmente, porque, na maioria dos casos, eram de natureza distinta. Examinamos, ento, um total de 61 questes.

    A seleo do corpus justifica-se pela formao dos co-autores do LD, livro didtico um deles mestre em Teoria Literria e Doutor em Lingustica Aplicada e Anlise do Discurso e o outro, mestre em Estudos Literrios , bem como pelo fato de atuarem como professores da educao bsica. Acreditamos que a formulao de exerccios significativos aprendizagem do aluno est ligada no somente ao domnio do objeto de ensino e de saberes de cunho pedaggico, mas tambm aos conhecimentos experienciais adquiridos ao longo da carreira profissional.

    Tanto na anlise do manual do professor quanto na anlise dos exerccios visvamos a identificar quais as noes de lngua e literatura presentes, em virtude do fato de que elas norteiam a formulao dos exerccios em torno da leitura do texto literrio. Alm disso, queramos verificar se, a partir dos exerccios propostos, o aluno teria a possibilidade de desenvolver habilidades de leitura, e

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    se o professor era encarado como parceiro no processo de formao do aluno-leitor.

    6. Os exerccios de compreenso leitora no livro didtico do ensino mdio

    A anlise do manual do professor permitiu observar que o referencial terico adotado pelos autores do livro, no tocante ao ensino de leitura literria, tinha como base, entre outras, a teoria dialgica bakhtiniana. Assim, o enfoque pretendido era a leitura do texto e no a histria da literatura, embora esta seja usada como recurso de organizao didtica. Os autores propem um trabalho de leitura em que o professor possa estabelecer a partir da obra literria dilogos entre o passado e o presente, entre as literaturas nacional e estrangeiras e entre a literatura e outras linguagens, tudo isso visando a uma ampliao da capacidade leitora dos alunos, como tambm ampliao do seu repertrio cultural em relao literatura e cultura universais. Entretanto, no ficam claras quais seriam as competncias e habilidades que precisam ser desenvolvidas, a fim de que o aluno alcance tais objetivos.

    Com a anlise dos exerccios de compreenso, pudemos verificar que o professor encarado como mero executor das atividades propostas pelos autores, haja vista o fato de que a nica diferena entre o livro do aluno e o do professor, na grande maioria dos exerccios, o fato de o segundo apresentar as respostas para os exerccios, como se a proposta de cada um deles por si s fosse bvia e no passvel de crtica.

    De um modo geral, os exerccios de compreenso leitora apresentaram o formato de um roteiro de leitura, estruturado

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    atravs da tcnica pergunta-resposta, mediante a qual o aluno deveria identificar ou analisar determinados aspectos a partir do texto. Assim como Marcuschi, reconhecemos a utilidade dessa tcnica; entretanto, o uso de outras tcnicas de igual plausibilidade tornariam as atividades de compreenso leitora menos repetitivas.

    No que diz respeito ao tipo das perguntas encontradas no corpus, percebemos uma recorrncia maior das globais e inferenciais, em oposio quelas centradas exclusivamente no texto, conforme a tabela a seguir:

    Tabela 1: Perguntas de compreenso leitora no LD do Ensino Mdio

    Tipo Quantidade % 1. A cor do cavalo branco de Napoleo 1 0,02 2. Cpia 4 0,05 3. Objetiva 13 0,21 4. Inferencial 20 0,34 5. Global 17 0,28 6. Subjetiva 2 0,03 7. Metalingustica 3 0,05 8. Interdisciplinar 1 0,02

    Esse predomnio de questes de compreenso leitora que no se prendem a aspectos meramente lingsticos representa um avano em relao ao trabalho realizado com o texto literrio; contudo, ao trabalhar o aspecto composicional desse texto, nem sempre os autores conseguem formular questes que faam com que o aluno perceba a interao entre os aspectos estruturais e a construo de sentido do texto como um todo.

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    Talvez isso acontea em virtude da fragmentao presente no trabalho de lngua e literatura, tpica do ensino mdio, o que leva algumas escolas, sobretudo, da rede privada de ensino, a contratarem diferentes profissionais da rea de Letras para cada unidade de ensino da lngua. Assim, temos um professor que trabalha com a gramtica (normalmente numa perspectiva tradicional); um, com produo de textos; e outro, com leitura, esta geralmente realizada a partir de textos literrios. De certo modo, essa fragmentao presente no ensino mdio reflexo da formao acadmica dos professores de lngua e literatura maternas, segundo Leahy-Dios:

    As ausncias mais sentidas [na formao dos estudantes de Letras] dizem respeito fragmentao curricular, insuficincia de leituras crticas e reflexivas, falta de dilogo genuno entre os professores, entre alunos, entre professores e alunos. Esses so requisitos essenciais para a autonomia poltica e pedaggica (op. cit., p. 20).

    A dificuldade de articular conhecimentos pode ser a causa de o professor, ou mesmo o autor do LD, recorrer tradio no ensino de literatura, ao trabalhar com o aspecto composicional desse texto, isto , solicita-se ao aluno que ele identifique determinadas tcnicas ou caractersticas da esttica literria estudada sem relacionar tais aspectos com a construo de sentido do texto. Assim, o trabalho de leitura do texto literrio se faz desarticulado do trabalho de anlise lingustica. As questes abaixo so representativas dessa postura:

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    3. Os dois poemas apresentam aspectos em comum, como, por exemplo, o tipo de composio, as imagens e o tema. Compare-os e responda:

    a) Que tipo de composio potica foi empregado nos dois textos? b) Os dois poemas so ricos em imagens. Uma das imagens do texto I criada pela metfora da nau (embarcao). Destaque do II um verso que corresponde a essa mesma imagem.

    4. A linguagem barroca geralmente busca expressar estados de conflito espiritual. Por isso faz uso de inverses, antteses e paradoxos, entre outros recursos. Identifique nos textos:

    a) exemplos de inverso de quanto estrutura sinttica; b) exemplos de antteses ou paradoxos.

    7. Leia o box Cultismo e conceptismo e procure nos textos elementos que se identifiquem com as duas tendncias de estilo presentes no Barroco.

    A Questo 3.a) do tipo metalingustica, pois a operao que o aluno precisa realizar informar qual o gnero textual a que pertencem os dois textos lidos; j as demais questes so do tipo cpia, porque basta que o aluno reproduza integralmente os elementos que so solicitados para respond-la. Se analisada apressadamente, a questo 7 poderia ser considerada inferencial, j que o aluno precisa se apoiar na leitura do box para identificar caractersticas do cultismo e conceptismo, contudo o objetivo da atividade se limita identificao de tais tendncias estilsticas.

    Entretanto, essas questes poderiam se tornar mais significativas no processo de formao do leitor do texto literrio, caso fossem articulados os aspectos formais com suas implicaes na construo de sentido do texto. Na primeira subquesto, por exemplo, poderia ser explorado o modo como o gnero soneto organiza o discurso literrio: normalmente, a voz lrica prope ao

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    leitor uma problematizao, nas trs primeiras estrofes, para, em seguida, solucion-la na ltima estrofe.

    Por outro lado, o livro didtico j apresenta questes bem formuladas, que fazem com que o aluno articule o material lingstico do texto com operaes inferenciais, como podemos ver nas questes a seguir:

    2. No texto I, na ltima estrofe, os trs elementos comparados rosa so retomados e o eu lrico menciona o destino de cada um deles: a penha (a pedra) aguarda a nau; o ferro aguarda a planta; a tarde aguarda a rosa.

    a) O que a pedra, o ferro, e a tarde podem provocar, respectivamente, na nau, na planta e na rosa? b) Portanto, o que h em comum entre estes trs elementos: nau, planta e rosa? c) Relacione a caracterstica comum desses trs elementos com a vaidade e conclua: Qual a opinio do eu lrico sobre a vaidade?

    As duas primeiras subquestes so do tipo inferencial e a terceira, global. Para responder primeira, faz-se necessrio que aluno lance mo de seu repertrio cultural, a fim de chegar concluso de que a penha, o ferro e a tarde so elementos nocivos queles elementos comparados rosa. Na segunda, preciso associar esses trs elementos, para se concluir que todos eles so frgeis diante da adversidade, esto sujeitos morte, so efmeros. Por fim, feitas todas essas associaes, chega-se a idia central do texto, que encerra o discurso presente no soneto: a vaidade no conduz a nenhum caminho, uma vez que tudo na vida transitrio, discurso que pode ser associado cultura crist, que um dos elementos presentes na enunciao do texto barroco.

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    H tambm, na elaborao das questes, uma preocupao de contextualizar as perguntas, o que, de certo modo, contribui para a ampliao do repertrio cultural do aluno, bem como pode servir para orientar as suas antecipaes de leitura em atividades posteriores, como o caso da questo a seguir, que contextualiza a esttica do texto do Pe. Vieira:

    2. Vieira costuma desenvolver seus sermes por meio de raciocnios complexos e lgicos, em que faz uso freqente de metforas, comparaes e alegorias. Nesse sermo, por exemplo, ele constri correspondncias alegricas, que podem ser assim esquematizadas: Sempre necessrio:

    " pregador " com a doutrina persuadindo

    " ouvinte " com o entendimento percebendo

    para converter uma alma

    " Deus " com a graa, iluminando

    " olhos " espelho para um homem se ver " luz

    Releia o primeiro pargrafo do texto e estabelea as relaes: A quem correspondem os elementos olhos, espelho e luz?

    Alm da contextualizao, a proposta de trabalhar com raciocnios esquemticos pode ser visto como algo positivo, porque esse tipo de raciocnio encontrado, por exemplo, em textos em forma de diagrama, encontrados em outras disciplinas, o que ajudaria os alunos na leitura desse gnero textual. Contudo, a questo apresenta um problema de formulao, j que o aluno pode entender

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    o primeiro esquema como sendo uma alegoria, quando, provavelmente, os autores o utilizaram, a fim de exemplificar a atividade para o aluno.

    Uma leitura apressada dos resultados pode levar o nosso leitor a concluir que os exerccios de compreenso do livro didtico apresentam pouco avano no que se refere ao letramento literrio, haja vista a influncia que a tradio ainda exerce no ensino de literatura. Mas outros aspectos devem ser levados em considerao ao se avaliar a proposta de letramento literrio presente no livro didtico do ensino mdio, o que nos leva ao tpico final desta discusso.

    7. Consideraes finais

    Analisados o manual do professor pautado numa viso discursiva de lngua e literatura e os exerccios propostos pelos autores do livro didtico, percebemos que a proposta de letramento literrio presente nesse suporte uma alegoria de nossa poca, isto , revela a tenso entre dois discursos pedaggicos: o da tradio, para o qual a leitura do texto literrio se encerra no reconhecimento de tcnicas e aspectos formais de um determinado estilo de poca, e o do letramento literrio, para o qual a leitura do texto literrio s se traduz em compreenso plena quando se consegue vincular a esttica s condies socioculturais em que o texto foi produzido. Assim, no possvel, por exemplo, dissociar as antteses e paradoxos presentes na esttica barroca das tenses discursivas vividas pelo homem do sculo XVII, extremamente atormentado pela impossibilidade de conciliar a tradio clssica do sculo anterior com os valores da sociedade medieval crist.

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    Embora o livro didtico encerre essa tenso, deve-se reconhecer o esforo de seus autores no sentido de romper com uma tradio que no contribui com a formao de leitores do texto literrio, pelo contrrio, acaba por, muitas vezes, criar uma antipatia entre os alunos e as obras literrias, j que a literatura se mostra refratria atitude de mant-la sob a previsibilidade da taxonomia do estilo de poca. E essa postura refratria da literatura, por sua vez, impossibilita os alunos de aplicarem integralmente o receiturio aprendido nas aulas centradas em tcnicas e caractersticas estilsticas.

    No que se refere s atividades, importante que elas sejam variadas e instigantes, j que a mobilizao dos alunos compe um dos elementos do processo didtico, que pode no ser alcanado caso a tcnica pergunta-resposta seja exclusiva.

    Assim, faz-se necessrio que os autores de livro didtico, assim como os professores, pensem em alternativas metodolgicas. E, ao contrrio do que se pensa, essas alternativas no precisam, necessariamente, ser mirabolantes, por exemplo, a atividade de parfrase de um texto ou parte dele um exerccio que serve para avaliar a compreenso desse texto, j que s ser capaz de reformular linguisticamente um texto quem apreendeu as suas ideias centrais.

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