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Este texto procura refletir sobre as relações entre antropologia e trabalho de campo ao propor uma releitura dos célebres esclarecimentos presta- dos por Bronislaw Malinowski no capítulo de abertura dos Argonautas do pacífico ocidental, li- vro originalmente publicado em 1922. Conside- rando tanto a amplitude da questão quanto a im- portância do escrito a ser comentado, tentarei, an- tes de mais nada, deixar claro o que este texto não pretende ser. Como se sabe, naquele capítu- lo, Malinowski apresenta “uma descrição dos mé- todos utilizados na coleta do material etnográfico” (1978, p. 18) referente ao “trabalho de campo” que realizou entre os nativos das Ilhas Trobriand, uma população de 1200 melanésios da costa nor- deste da Nova Guiné, durante a década de 1910. Pouco tempo depois, essa apresentação passou a ter lugar paradigmático na antropologia, alçada ora a marco de uma verdadeira revolução nos re- ferenciais teóricos e nos objetivos gerais da disci- plina, ora a padrão original e exemplar em termos metodológicos. Pois bem, meu propósito não é discutir o lugar ou as contribuições de Malinowski para a antropologia, nem analisar a produção de sua pesquisa tendo como parâmetro o contexto específico ou geral em que se insere, nem me po- sicionar sobre a questão de se ele efetivamente criou o “trabalho de campo”, nem, enfim, incur- sionar pelos modos pelos quais Malinowski cons- truiu a “autoridade etnográfica de suas ficções” ou como “convenceu” seus leitores do que disse. O propósito deste texto é realizar uma leitu- ra de Malinowski, reconhecendo assim sua centra- PARA ALÉM DO “TRABALHO DE CAMPO”: reflexões supostamente malinowskianas* Emerson Giumbelli * Trabalho apresentado no XXV Encontro Anual da An- pocs (Caxumbu, 2001), na programação do Seminá- rio Temático “A Antropologia e seus métodos: o ar- quivo, o campo, os problemas”. Após a apresentação, introduzi algumas modificações na versão original, derivadas das discussões que mantivemos durante o evento – daí meus créditos aos colegas de seminário. RBCS Vol. 17 n o 48 fevereiro/2002

REFLEXÕES MALINOWSKIANAS

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Este texto procura refletir sobre as relaçõesentre antropologia e trabalho de campo ao proporuma releitura dos célebres esclarecimentos presta-dos por Bronislaw Malinowski no capítulo deabertura dos Argonautas do pacífico ocidental, li-vro originalmente publicado em 1922. Conside-rando tanto a amplitude da questão quanto a im-portância do escrito a ser comentado, tentarei, an-tes de mais nada, deixar claro o que este textonão pretende ser. Como se sabe, naquele capítu-lo, Malinowski apresenta “uma descrição dos mé-todos utilizados na coleta do material etnográfico”(1978, p. 18) referente ao “trabalho de campo”

que realizou entre os nativos das Ilhas Trobriand,uma população de 1200 melanésios da costa nor-deste da Nova Guiné, durante a década de 1910.Pouco tempo depois, essa apresentação passou ater lugar paradigmático na antropologia, alçadaora a marco de uma verdadeira revolução nos re-ferenciais teóricos e nos objetivos gerais da disci-plina, ora a padrão original e exemplar em termosmetodológicos. Pois bem, meu propósito não édiscutir o lugar ou as contribuições de Malinowskipara a antropologia, nem analisar a produção desua pesquisa tendo como parâmetro o contextoespecífico ou geral em que se insere, nem me po-sicionar sobre a questão de se ele efetivamentecriou o “trabalho de campo”, nem, enfim, incur-sionar pelos modos pelos quais Malinowski cons-truiu a “autoridade etnográfica de suas ficções” oucomo “convenceu” seus leitores do que disse.

O propósito deste texto é realizar uma leitu-ra de Malinowski, reconhecendo assim sua centra-

PARA ALÉM DO “TRABALHO DE CAMPO”: reflexões supostamente malinowskianas*

Emerson Giumbelli

* Trabalho apresentado no XXV Encontro Anual da An-pocs (Caxumbu, 2001), na programação do Seminá-rio Temático “A Antropologia e seus métodos: o ar-quivo, o campo, os problemas”. Após a apresentação,introduzi algumas modificações na versão original,derivadas das discussões que mantivemos durante oevento – daí meus créditos aos colegas de seminário.

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lidade na disciplina, que consiga problematizar aassociação privilegiada que costumamos fazer en-tre trabalho de campo e antropologia. Admito quehá algo de disparatado entre os meios e os fins deminha empreitada. Afinal, Malinowski, indepen-dentemente das controvérsias em torno de ques-tões de precedência quanto ao método e de fide-lidade quanto ao ideal, é considerado referênciaobrigatória em se tratando do “modo padrão dapesquisa etnográfica” (Kuper, 1996); aquele queestabeleceu a “estratégia básica que é fundamentocomum entre antropólogos” (Salzman, 1996, p.364). Ele é o “etnógrafo do etnógrafo”, protagonis-ta da “viagem paradigma para o outro-lugar-qual-quer paradigma” (Geertz, 1988: pp. 4 e 75). É o“herói” de um mito, o “trabalho de campo”, e o ca-pítulo de abertura dos Argonautas, espécie de“mapa” ou “roteiro” míticos para os antropólogos(Stocking, 1992, pp. 16 e 56; ver também Carri-thers, 1996, p. 230; Young, 1979, p. 1). Uma desuas alunas refere-se exatamente a uma das quali-dades das etnografias de Malinowski, a saber,transmitir ao leitor a sensação de estar lá, passan-do ele mesmo pela experiência do contato com re-motos nativos (Richards, 1971). Esse, no entanto,era apenas parte do fascínio que exerceu na antro-pologia; outra dimensão muito importante é o fatode Malinowski, por meio de seus textos e de suasaulas, ter se tornado referência fundamental paramonografias hoje consideradas “clássicas”, igual-mente baseadas em “trabalho de campo” (Kuper,1996; Urry, 1984; Kilani, 1990; Boon, 1982).

Não é por acaso, portanto, que o (re)nomede Malinowski consista em um elemento impres-cindível da associação, já mencionada, entre an-tropologia e trabalho de campo. Urry, em um tex-to dedicado a traçar a “história dos métodos decampo”, indica que “em torno dos anos de 1930,o ideal do trabalho de campo individual em umaúnica cultura havia se tornado a norma aceita dainvestigação antropológica” (1984, p. 54). Stocking,que, por sua vez, acompanha a elaboração desseideal na antropologia britânica, termina sua análi-se com Malinowski, confirmando que “o trabalhode campo mediante observação participante, pre-ferivelmente em um grupo social de dimensõesreduzidas bem diferente daquele ao qual perten-

ce o investigador, é o marco da antropologia so-cial/cultural” (1992, 16). Estes e outros autoresapontam também o papel que Malinowski desem-penhou na constituição da antropologia como dis-ciplina científica autônoma (L’Estoile, 1998; Ri-chards, 1971). E, embora seja geralmente admiti-do que desde os tempos de Malinowski até agoramuita coisa mudou na antropologia, a opinião deque o trabalho de campo seja o método privilegia-do da antropologia e a sobreposição entre etno-grafia e trabalho de campo parecem hegemônicas(ver Maanen, 1996; Salzman, 1996; Sanjek, 1996a).Para muitos, o “trabalho de campo” consiste emum ritual de passagem obrigatório na formação deum antropólogo. A esse propósito, é bastante sig-nificativo que George Stocking, ele mesmo um“não iniciado”, admita que tenha aconselhado es-tudantes interessados em se empregarem comoantropólogos a “escrever uma tese baseada emtrabalho de campo” (1992, p. 14).1

Fica então a pergunta: existe antropologiasem trabalho de campo? O volume e a variedadede pesquisas conduzidas no âmbito de espaços einstituições referidos à antropologia que se utili-zam de fontes (às vezes exclusivamente) históri-cas e de técnicas distintas da observação partici-pante não deixam margens à dúvida. O que, ameu ver, resta por fazer é encontrar argumentosque fundamentem essa possibilidade. Minha con-tribuição vai no sentido de conceber uma relaçãoentre antropologia e trabalho de campo que nãoexclua outras possibilidades metodológicas, utili-zando um texto e um autor que sempre aparece-ram e aparecem para sustentar o contrário. Omaterial que alimenta meus esforços não vem daextensa revisão bibliográfica que o tema deman-daria; seu resultado também não realiza umdebate sistemático com as referências e posiçõespertinentes. Consultei alguns estudos sobre “me-todologia”, “trabalho de campo”, “etnografia”,além de textos sobre e do próprio Malinowski. Asinúmeras lacunas derivadas do modo como reali-zei minhas buscas bibliográficas foram, em parte,sanadas pelo recurso a um material “de referên-cia”: verbetes de enciclopédias de ciências sociaisou de antropologia. É preciso ainda dizer que umadas motivações para este texto nasce de uma ne-

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cessidade de refletir sobre minha curta trajetória naantropologia, pensando as pesquisas que realizeiem termos de problemas que não seriam apenasmeus. Dentro dessas condições, este trabalho ad-quire as feições de um ensaio (no duplo sentidoda palavra), e espera despertar interesse pelasprovocações que coloca.

I

O fato de que o trabalho de campo apareçafreqüentemente como essencial à antropologianão significa que haja muita clareza a seu respei-to. Desde as orientações que Rivers emitiu em1913 – exigindo que os pequenos grupos pelosquais a antropologia se interessava fossem estu-dados durante um ano ou mais, em cada detalhede sua vida e cultura, por meio do contato pes-soal com cada membro da comunidade e com co-nhecimento do idioma nativo (ver Young, 1979;Stocking, 1992) –, as definições do trabalho decampo antropológico frustram ora pela carência,ora pelo excesso. De um lado, encontram-se de-finições que perpetuam o modo pelo qual o tra-balho de campo originalmente se constitui, ouseja, por oposição à pesquisa conduzida em labo-ratório ou no gabinete (Clammer, 1984; Borgatta,1992; Oxford dictionnary apud Garber et al.,1996), ou que investem na clivagem entre asciências humanas e as ciências naturais, ou seja,enfatizando a relação de “intimidade”, a “convi-vência” com as pessoas, a “imersão” em outracultura (Wax, 1971; Clammer, 1984; Lawless et al.,1983). De outro lado, há descrições que parecemutópicas ou ao menos idealizadas quando aproxi-madas das condições que presidem a maior par-te das experiências de trabalho de campo. Umexemplo: “sua meta crucial é ouvir e mover-setão rapidamente quanto possível nos cenários na-turais da vida social, os lugares onde as pessoasestariam, fazendo o que estariam fazendo, comose o etnógrafo não estivesse lá” (Sanjek, 1996a, p.196; ver também Salzman, 1996).

Não surpreende então que, apesar da abun-dante e variada literatura (surgida especialmentedepois dos anos de 1960, cf. Lawless et al., 1983e Carrithers, 1996) dedicada a refletir sobre a prá-

tica antropológica – antes, durante e após a ela-boração de seus textos –, continuem a se ouvir la-mentos e queixas em torno da ausência do queMalinowski denominou “sinceridade metodológi-ca” (1978, p. 18, igualmente exigida por Sanjek,1996a, p. 198). Enquanto alguns reclamam da fal-ta de reflexão sobre a maneira de coletar e anali-sar dados e de construir interpretações (Kilani,1990), outros apontam certos pressupostos empi-ricistas na tradição do trabalho de campo (Boon,1982), outros ainda notam que a prática antropo-lógica continua pouco codificada e normatizada(Maanen, 1996). Stocking (1992), aludindo a cer-tas características da formação dos antropólogos,dá ênfase ao fato de que o “trabalho de campo”não se sustenta sobre um treinamento formal – oque parece dar razão à observação de Salzman:“Bem poucos pesquisadores dominam realmentequaisquer métodos de coleta de informação, paraalém de acompanhar o pessoal e buscar elocu-brar o que está se passando” (1996, p. 335). É cla-ro que, nesse assunto, estamos tratando de algomuito mais complicado do que “sinceridade me-todológica” e as supostas regras que ela solicita.Essas questões precisam ser discutidas no contex-to de uma malaise epistemológica com a qual aantropologia (felizmente) convive – e para a quala literatura pós-1960 contribuiu em muito paraalimentar. Resta, no entanto, a constatação deque o que fazemos como pesquisadores e cientis-tas assenta-se em algo (a “magia do etnógrafo”?)que não se traduz em códigos explícitos e disci-plinamento estrito.

Um outro ponto que merece ser menciona-do não deixa de ter vínculos com o que se aca-bou de tratar. Refiro-me às variações no trabalhode campo, reconhecidas por muitos comentaristase praticantes. Carrithers (1996, p. 229) chega aafirmar que “o trabalho de campo pode assumirtantas formas quanto forem os antropólogos, osprojetos e as circunstâncias”, dando como exem-plos três situações bastante diversas quanto à dis-tância (geográfica e cultural) que precisa ser ven-cida para o antropólogo chegar aos seus “nativos”.Vale também lembrar a distinção possível entreobservador integral, observador participante eparticipante observador (apud Bogatta, 1992).

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Clammer (1984) encontra vários “estilos” de pes-quisa etnográfica, relacionando-os com uma sériede técnicas de investigação. Neste aspecto, pare-ce haver um reconhecimento geral de que a prá-tica antropológica vem abrindo, já há algum tem-po, espaço para uma pluralidade de técnicas depesquisa (Sanjek, 1996a e 1996b; Holy, 1984; Urry,1984). Há aqueles que conseguem classificar essapluralidade de acordo com a tradicional divisãoquantitativo/qualitativo, cientificismo/humanismo(Clammer, 1984; Salzman, 1996), enquanto outrosa consideram ultrapassada e tentam encontrar for-mas alternativas de aproximação ao objeto (Rap-port, 2000). Seja como for, parece-me significativoque o verbete “metodologia” de uma enciclopédiade antropologia (Salzman, 1996) traga uma listadisparatada de itens, na qual encontramos diver-sas técnicas (arquivos, entrevistas, mensurações,amostras, surveys, testes), várias abordagens (estu-do de caso, história de vida, network analysis),coisas que parecem compostos de técnicas eabordagens (observação em contextos naturais,estudo de caso quantitativo), e até mesmo algoque se pode considerar um princípio geral (análi-se comparativa).

Feita essa observação, o que parece estranhoé o fato de esse mesmo verbete se iniciar com amenção a Malinowski e a referência à “observaçãoparticipante” e ao “trabalho de campo etnográfico”como algo geral à antropologia. Trata-se, a meuver, de um exemplo de como a evocação do “tra-balho de campo” funciona como um sinônimo deantropologia, no sentido de que designaria a suametodologia privilegiada ou apropriada. Se pensa-mos em termos históricos, essa operação desprezaque o “trabalho de campo” não tenha surgido ape-nas na antropologia (Wax, 1971; Sanjek, 1996b) eque a antropologia tenha se desenvolvido tambémgraças a intelectuais que fizeram pouco ou nadade “trabalho de campo” (Mauss e Lévi-Strauss sãotalvez os mais célebres). Em relação propriamentea questões metodológicas, a mesma operaçãopode ter implicações que considero igualmenteproblemáticas. Uma possibilidade é que o “traba-lho de campo” acabe, em vez de abrigar ou tradu-zir, subsumindo um conjunto geralmente plural detécnicas e abordagens. Essa subsunção tende a dis-

pensar uma reflexão sobre as próprias técnicas eabordagens, várias delas não exclusivas à antropo-logia. Outra possibilidade é que, quando se tratade “antropologia das sociedades complexas” (ouqualquer de seus equivalentes), a metodologiaacabe pensada como uma composição entre técni-cas antropológicas (o “trabalho de campo”) e téc-nicas não antropológicas (tudo que não impliqueum contato direto e intens(iv)o com os nativos) –como se esse pesquisador fosse “menos antropó-logo” do que aqueles que se dedicaram integral-mente ao “trabalho de campo”.

Reencontramos assim a associação entre an-tropologia e trabalho de campo. É curioso comoessa associação foi pouco questionada mesmo nasreflexões recentes sobre a prática antropológica,as mesmas que proclamaram a existência de umacrise na disciplina e questionaram a relação entresujeito e objeto de conhecimento. Limito-me aevocar uma celebridade, Clifford Geertz, tambémum dos antropólogos que recorreu, em seu traba-lho de campo, a técnicas não tão convencionaisde pesquisa (cf. Sanjek, 1996b) e autor de um dostextos sempre citados nas discussões sobre a prá-tica antropológica. Neste texto, Geertz empreendeuma análise da obra de quatro autores que tomacomo “fundadores de discursividade” na antropo-logia, Malinowski entre eles. A partir dela, tece al-gumas considerações mais gerais acerca da antro-pologia: como descrever “aqui” o que viveu “lá”,levando em conta que hoje, em função dos resul-tados da descolonização e da crise da idéia de re-presentação, “lá” e “aqui” estão mais próximos eimplicados? Nessa questão, há o pressuposto deque “estar lá” é fazer “trabalho de campo” e quea etnografia “escrita aqui” deve se apresentarcomo “um relato autêntico elaborado por alguémpessoalmente familiarizado com o modo peloqual a vida ocorre em algum lugar, em algum tem-po, entre algum grupo “ (1988, p. 143). O livro deGeertz é interessante também por traçar uma con-tinuidade entre alguns experimentos etnográficostidos como “pós-modernos” e o modelo “realista”deixado por Malinowski em seu trabalho de cam-po, ambos igualmente desembocando em textosauthor-saturated (1988, p. 97). O que procurareifazer aqui é produzir um “outro Malinowski”, um

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que sirva ao meu já declarado propósito de ques-tionar a associação direta entre antropologia e tra-balho de campo.

II

Mas antes de prosseguir com Malinowski, épreciso que conte algo sobre minha trajetória deantrópologo. O termo “antropólogo”, nesse caso,não tem maior significado e nem maiores basesdo que aqueles devidos a uma inserção institu-cional. Tiro as conseqüências do fato de ter cur-sado minha pós-graduação (mestrado e doutora-do) em um programa de “antropologia social”.Devo ser, por essa razão, “antropólogo”. E é àsexperiências de pesquisa pelas quais passei du-rante o mestrado e o doutorado que meu relatofaz referência. Trata-se, evidentemente, de umatrajetória singular, mas espero que algumas desuas feições correspondam a situações bem maisgerais compartilhadas por outros antropólogos eantropólogas. Além disso, lembro que meu obje-tivo é fundamentar a cidadania plena das pesqui-sas antropológicas que não recorrem a experiên-cias canônicas de “trabalho de campo”. Confessoque a motivação para isso vem, sobretudo, deum certo incômodo com a marginalidade do “tra-balho de campo” em minhas próprias pesquisas.Desse modo, trata-se, antes de mais nada, deconvencer a mim mesmo de que “sou antropólo-go” em um sentido diferente daquele derivadode uma mera inserção institucional. Só esperoque o modo de argumentação escolhido sejaconvincente para outros também.

Minha dissertação de mestrado (Giumbelli,1997) explora basicamente material histórico.Tem como objeto o processo de definição e legi-timação do espiritismo, levando em consideraçãovários campos empíricos: de um lado, a trajetó-ria de uma instituição importante naquele pro-cesso, a Federação Espírita Brasileira, fundadaem 1884 no Rio de Janeiro; de outro, uma sériede discursos e intervenções, de natureza diversa(jurídica, médica, jornalística, policial, assisten-cial), cujo ponto em comum era o interesse peloespiritismo. O trabalho cobre um período quevai das décadas finais do século XIX até a déca-

da de 1940. As fontes são basicamente documen-tais: publicações espíritas, processos judiciais,textos jurídicos, médicos, jornalísticos etc. O in-teresse pelo passado não decorreu de nenhumaaversão ao presente; ao contrário, havia o esfor-ço em tratar de questões que demonstrassematualidade e em desenvolver uma perspectiva deanálise que pudesse ser aplicada à situação con-temporânea do espiritismo. A incursão exclusiva-mente histórica justifica-se pela natureza do pro-blema que me interessava, definindo dois marcoscruciais: a condenação legal do espiritismo noCódigo Penal de 1890 e as configurações estabe-lecidas na década de 1940 (quando aquela ver-são do código é substituída por outra). O curio-so é que a ausência de um “trabalho de campo”antropológico não me causou então incômodomaior, talvez porque estivesse estudando umtema tradicional como “religião” e a dimensãoestritamente histórica da pesquisa tornasse im-possível o “contato com os nativos”.

O incômodo surgiu durante meu doutorado(Giumbelli, 2000). Desde o início havia escolhidouma situação contemporânea, que se desenrolavadiante de meus olhos. Após alguns ajustes, definicomo objeto de pesquisa as controvérsias em tor-no da Igreja Universal do Reino de Deus, igrejapentecostal que se destaca no surto recente decrescimento evangélico no Brasil, crescimentoque, como se sabe, extrapola em muito o planoreligioso para se manifestar nos terrenos da mídiae da política. A expansão da Igreja Universal trou-xe consigo o interesse e as desconfianças de umasérie de segmentos sociais: aparatos policiais e ju-diciários, imprensa, a Igreja Católica, outras igre-jas e lideranças evangélicas, além dos próprios in-telectuais. Ao problematizar esse conjunto de dis-cursos e suas interações, o propósito era refletirsobre os canais e as formas de definição do lugare do estatuto do “religioso” no Brasil. Não falta-riam ocasiões, pensava, para fazer “trabalho decampo”. Essa expectativa foi sucessivamente des-mentida. Primeiro, quando percebi que já passarao momento no qual a controvérsia tinha geradosuas manifestações mais interessantes. Isso ocor-rera no segundo semestre de 1995, sendo que eucomeçara a reunir material apenas em meados de

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1996. Os debates públicos, o interesse da impren-sa em todos os seus ramos, as reações da IgrejaCatólica e de outras igrejas evangélicas, os pro-nunciamentos da própria Igreja Universal – os lan-ces mais importantes do jogo que gostaria deacompanhar já haviam se dado quando iniciei mi-nha pesquisa. É claro que procurei, às vezes semsucesso, conversar com algumas pessoas que par-ticiparam desse momento, mas considerei que omaterial mais valioso estaria nos registros textuaisdas intervenções daquelas várias personagens.

Tive uma segunda oportunidade de realizarum “trabalho de campo”. Foi quando, por contadas condições propiciadas por uma bolsa-sanduí-che na École des Hautes Études en Sciences So-ciales, em Paris, resolvi transformar a pesquisa emum empreendimento comparativo. Na França en-contrei também uma forte controvérsia que permi-tia refletir sobre canais e formas de definição do“religioso”. Lá, o problema era o que se chama de“seitas”, termo utilizado sempre em tom franca-mente acusatório e que é aplicado a uma miríadede grupos de natureza diversa, embora a maiorparte se apresente como uma proposta “religiosa”.Tendo a participação da Igreja Católica, da im-prensa e de intelectuais, as principais personagensna controvérsia são, de um lado, aparatos estataise, de outro, associações civis, ambos voltados es-pecificamente para o “combate às seitas”. Emboratenha acompanhado algo do cotidiano dessas as-sociações anti-seitas, que funcionam como cen-tros de documentação e de recebimento e difusãode denúncias, esses contatos não atingiram a in-tensidade que se pode esperar de um “trabalho decampo”. Resolvi prosseguir na estratégia mais ge-ral de pesquisa, que era determinar a resultanteda interação entre as várias personagens da con-trovérsia acerca das “seitas” na França. Isso me le-vou, mais uma vez, a privilegiar os registros tex-tuais: relatórios oficiais, material de imprensa, pu-blicações das associações e da Igreja Católica etc.

Lembro que minha preocupação fundamen-tal era a conformação social do “religioso”. Nessadireção, a compreensão de certas definições his-tóricas revelou-se crucial no caso francês. Por issoé que procurei inserir, com a ajuda da bibliografiajá existente, a situação atual que se delineia atra-

vés da controvérsia acerca das “seitas” nas confi-gurações históricas que assumem as relações en-tre Estado e religião na França. Essa preocupaçãocom a dimensão histórica rebateu sobre o casobrasileiro. Quando voltei ao Brasil, incorporei àpesquisa a mesma tentativa de relação histórica, oque me levou a levantar uma série de fontes do-cumentais acerca do processo de definição das re-lações Estado/Igreja após a proclamação da Repú-blica. Noto que, no caso do Brasil, esse recurso afontes documentais sobre o passado juntou-se aoprivilégio que já havia concedido ao mesmo tipode fontes para tratar do presente. Feitas todas ascontas, nada ou muito pouco de “trabalho decampo” na França e no Brasil. Mas, como se pôdeperceber, devido a razões distintas. No Brasil, nãofiz “trabalho de campo” porque a situação con-temporânea de que tratava logo se deslocou parao passado, recente ou remoto. Na França, o pou-co “trabalho de campo” que fiz, em função dascondições do tema e da pesquisa e de minhas op-ções gerais de investigação, dissolveu-se em meioa outras formas de produção de dados.

Para terminar esse relato, aponto para umtraço comum às pesquisas do mestrado e do dou-torado, a saber, o foco sobre certas controvérsiassociais. Não é também sem importância que emambas as pesquisas o tema esteja relacionado àreligião, o que permitiu em determinados mo-mentos estabelecer algumas complementaridadese continuidades entre as duas análises. Mas o quegostaria mesmo de fazer é precisar o modo comoconsidero a idéia de controvérsia. Quando se ob-serva uma polêmica, na qual, acerca de um dadoassunto, intervém uma série de agentes sociais,pode-se tratá-la apenas como uma convulsão efê-mera, fadada a arrefecer tão logo outros assuntosganhem o centro das atenções. De fato, é assimque se passa com a maioria das controvérsias. Noentanto, sem negar sua ocorrência passageira,pode-se considerá-las como um momento de ex-pressão e redefinição de pontos e problemas, osquais permanecem importantes, às vezes até cru-ciais, na constituição de uma sociedade, mesmoquando não despertam interesse generalizado ouintenso. Se é apenas em determinadas ocasiõesque se polemiza sobre “religião”, isso não quer di-

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zer que essa noção não seja essencial para enten-der traços constitutivos da sociedade de quefazem parte as personagens da controvérsia. Acontrovérsia é uma espécie de drama social, querevela mas também reconfigura definições de rea-lidade, explicitando o conflito que existe emtorno dessas definições.

III

Para Malinowski, o “trabalho de campo” de-veria produzir uma “visão autêntica da vida tribal”(1978). Sua adequação media-se pela capacidadede ultrapassar alguns obstáculos e de satisfazercertas regras. Do lado dos obstáculos, haveria tan-to a falta de domínio da língua nativa, sem o qualnão se atingiria o “significado intrínseco da vidatribal”, quanto os “preconceitos e opiniões” dos“outros homens brancos” que viviam na região.Do lado das regras, o “trabalho de campo”, devi-damente integrado a problematizações teóricas,ao propiciar um “contato o mais íntimo possível”com o grupo estudado e permitir ao etnógrafo“tomar parte na vida da aldeia”, forneceria os da-dos que cumpririam os objetivos da pesquisa et-nográfica através de seus “três caminhos”: a docu-mentação estatística por evidência concreta, aatenção aos imponderáveis da vida real e a elabo-ração de um corpus inscriptorum. Cada um doscaminhos correspondia a uma tarefa determinadae à produção de registros específicos: as regrassociais, a tradição, apresentadas por meio de qua-dros sinóticos, recenseamentos, mapas; os com-portamentos reais, detalhada e minuciosamentedescritos nos diários etnográficos; a “mentalidadenativa”, por meio da transcrição, preservando-se oidioma nativo, de palavras e asserções caracterís-ticas, narrativas típicas, fórmulas mágicas.

A partir dessa primeira apresentação do tex-to de Malinowski, que procura considerá-lo na suageneralidade e que respeita sua seqüência original,seria possível explorar uma segunda, desenvolven-do em certas direções algumas de suas pistas. Aapreensão das regras, dos comportamentos e dascategorias de pensamento apenas distinguem “trêscaminhos”, três tarefas e mesmo três registros dis-tintos do trabalho antropológico às custas de cer-

tos deslocamentos ou entendimentos questioná-veis dentro da própria lógica do texto. Malinowskiapresenta a primeira tarefa por referência a um“princípio geral”, mas logo o transforma em umdos aspectos da etnografia, já que se trataria ape-nas da dimensão “legal”, o que “é permanente efixo” (1978, p. 24). Por isso, exige em seguida queapreendamos a forma como os nativos vivem suastradições por meio de exemplos bem concretos,convertendo logo a tarefa no registro de sua “vidareal” (1978, p. 29). Por fim, sugere uma atenção es-pecífica quanto ao acesso aos “estados mentais”dos nativos, mas o encaminhamento que confereao problema parece interessar mais ao filólogo doque ao antropólogo (1978, p. 33). Ou seja, pode-se mesmo duvidar que esses mandamentos condu-zam todos à mesma direção. O modo como o pró-prio Malinowski formula a idéia de um conjuntoúnico – o esqueleto, a carne e o sangue, o espíri-to – sugere, mais do que a imagem de um ser or-gânico, a sobreposição de camadas que não per-dem cada qual sua constituição própria.

O interessante é que, em certo momento, Ma-linowski aponta para uma possibilidade analíticaque conseguiria articular simultaneamente as três di-mensões da etnografia. As “leis e regularidades queregem a vida tribal”, afirma ele, não estão registra-das senão nos “próprios seres humanos”; mesmo as-sim, não é na forma de “leis”, ou seja, “regras geraise abstratas”, que os nativos expressam sua “tradi-ção” ao etnógrafo. Para chegar até elas, Malinowskisugere que interpelemos os nativos “sobre a soluçãoque dariam a determinados problemas” (1978, p.24), imaginários ou, melhor ainda, reais. As opiniõesemitidas manifestariam “uma grande variedade depontos de vista” e os comentários levariam a desco-brir o “mecanismo social ativado” em certas situa-ções (1978, p. 25). O que Malinowski não percebeé que, dessa forma, o recurso elaborado para se teracesso à “estrutura social” e à “organização da tribo”permitiria apreender também as categorias coletivasque forjam a “mentalidade nativa” e, em se tratandode um caso real, os próprios comportamentos comseus “imponderáveis”. Além de conseguir articularos três mandamentos da etnografia malinowskiana,esse artifício detém as condições para produzir umaanálise antropológica que destoa claramente do re-

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sultado atingido pelo funcionalismo. Em vez de cul-turas ou sociedades orgânicas, estavelmente equili-bradas em estruturas ou com suas necessidades fun-cionalmente supridas por instituições, o que vislum-bramos são ordenações instáveis caracterizadas porregras que precisam ser perpetuamente efetivadas enegociadas. Em suma, uma sociedade em perma-nente controvérsia.2

Isso, no entanto, ainda não é o mais impor-tante. Pouco antes de propor o recurso para resol-ver a dificuldade com que se defronta, Malinowskiesboça uma analogia curiosa: “Da mesma formaque os membros mais humildes de qualquer ins-tituição moderna – seja o Estado, a Igreja, o Exér-cito etc. – pertencem a ela e nela se encontram,sem ter a visão da ação integral do todo e, menosainda, sem poder fornecer detalhes de sua organi-zação, seria inútil interpelar o nativo em termossociológicos abstratos” (1978, p. 24). O que essaaproximação sugere é que não haveria diferençasubstancial entre o funcionamento de uma “insti-tuição moderna” e o de uma instituição não-“mo-derna”. O mesmo se aplicaria ao que Malinowskiconsidera como o “princípio geral” da antropolo-gia, formulado nos seguintes termos: “o objetivofundamental da pesquisa etnográfica é [...] estabe-lecer o contorno firme e claro da constituição tri-bal” (1978, p. 24). Para ele, esse objetivo estavarelacionado a um ideal holístico, que exigia do et-nógrafo uma atenção voltada à articulação entreos vários aspectos de uma cultura. Malinowskilança mão, em 1922, de uma noção que foi recen-temente utilizada para nomear a própria vocaçãoantropológica. Refiro-me ao texto em que Latourdescreve a “constituição” dos “modernos”, preten-dendo assim revelar seu “dispositivo central”. Paratanto, Latour elege a ciência, em sua prática atuale em seus fundamentos filosóficos, como objetode estudo. Uma de suas inspirações é exatamentea antropologia, que, segundo ele, “enviada aostrópicos” acostumou-se a apreender integralmen-te uma sociedade ou a investigar seus elementoscentrais (1994, pp. 91-102).

A partir dessas observações, o que deveriafazer Malinowski se lhe pedíssemos para aplicarseu “princípio geral” ao estudo de uma instituição“moderna”? É um pouco essa a provocação que

faz Latour ao criticar a antropologia repatriada,cuja culpa seria se contentar na maioria das vezesem “estudar os aspectos marginais de sua própriacultura” (1994, p. 100). O mesmo lamento é en-contrado no texto de Kilani: “é a partir da perti-nência postulada do olhar antropológico e do tex-to etnográfico clássico que essa antropologia pro-cura hoje fundar e legitimar a nova prática” (1990,p. 104). A referência que ocorre à noção de “clás-sico” presta-se a um comentário crucial. Pareceque se prefere entendê-lo, quando se trata de fa-zer a antropologia dizer diretamente algo sobre ouniverso a que ela própria pertence, não pela ne-cessidade de reavaliar técnicas e objetos de pes-quisa de acordo com um “princípio geral”, mascomo a replicação de suas metodologias tradicio-nais ou como a manutenção dos temas cuja aná-lise se exercitou junto às sociedades “primitivas”.Daí o predomínio dos “aspectos marginais”, sejano sentido de algo exógeno ou anacrônico em re-lação à sociedade “moderna” ou “complexa”, sejano sentido de algo que remeta metaforicamente àscaracterísticas associadas ao “tradicional” ou ao“simples” (isolamento, pequena escala etc.). Ma-neira curiosa de continuar fiel ao fascínio pela al-teridade – a antropologia estuda o “outro” ondequer que esteja – e que arrisca nos transformar,pelo menos aos olhos dos colegas cientistas e dopúblico leigo, em “folcloristas do exótico” (Jackson,1987, p. 8; ver também Herzfeld, 1996).

Nesse sentido, é esclarecedor apreciar, mes-mo superficialmente, o conteúdo de dois verbe-tes sobre o assunto em pauta (Goldenschmidt,1968; Hannerz, 1996).3 Impressiona, apesar dadistância temporal e da mudança terminológica, asemelhança entre eles. Goldenschmidt trata do“estudo antropológico da sociedade moderna”,campo cujas origens estão localizadas entre asdécadas de 1930 e 1940. Destaco a classificaçãocom a ajuda da qual descreve as características docampo: 1) estudos de comunidades (que incluinão só cidades interioranas, mas também gruposraciais, comunidades étnicas e gangs urbanas); 2)campesinato; 3) instituições (fábricas, hospitais,escolas); 4) caráter nacional; 5) culturas tribaistransformadas pelo mundo moderno. Uma pri-meira observação a ser feita permite reagrupar ou

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relacionar esses subcampos. Enquanto o estudode sociedades tribais aculturadas remete para umaantropologia que procura acompanhar as mudan-ças em seu objeto tradicional, os demais subcam-pos, com exceção dos estudos de caráter nacio-nal, identificam situações bem circunscritas (insti-tuições e cidades interioranas) ou coletivos social-mente periféricos ou marginais (grupos e campo-neses). Mas esses dois blocos não deixam de es-tar relacionados sob uma outra perspectiva: ao es-tudarem grupos urbanos e rurais em sua própriasociedade, “antropólogos norte-americanos se de-pararam com muitos dos problemas encontradospor seus colegas britânicos contemporâneos naÁfrica” (Urry, 1984, p. 59; ver também Sanjek,1996b). Uma segunda observação salienta o fatode que, em pelo menos dois daqueles subcampos,haveria, segundo Goldenschmidt, a idéia de quemicrosituações de algum modo seriam “represen-tativas” das configurações encontradas na socieda-de abrangente.

O artigo publicado aproximadamente trintaanos mais tarde não esboça um quadro muito di-ferente (Hannerz, 1996). A terminologia agoramuda para “sociedade complexa”, mas a históriacontada é praticamente a mesma. A continuidadetambém é óbvia na classificação apresentada porHannerz: estudos de comunidade, pesquisa de vá-rios tipos de organização informal (amizade, me-diação, redes sociais), grupos cuja forma de vidadiverge de padrões hegemônicos ou valorizados(cada vez mais analisados mediante conceito deetnicidade). Essa última classe de situações tam-bém aparece no verbete “antropologia urbana”,publicado na mesma enciclopédia (Sanjek,1996b). As várias espécies arroladas por Hannerztêm em comum o fato de demandarem análises de“unidades de pequena escala”. Como ele explica:“Sem dúvida influenciada pelas tradições de estu-do de campo etnográfico local, a pesquisa antro-pológica tem freqüentemente se ocupado de uni-dades de análise de pequena escala no interior desociedades complexas” (1996, p. 122). Em con-traste com linhas de investigação bem estabeleci-das, o estudo do Estado e o da globalização apa-recem como pistas recentes e pouco cristalizadas.No geral, considerando que pesquisas sobre “ca-

ráter nacional” foram abandonadas, nota Hannerz:“os antropólogos têm dado comparativamentepouca atenção ao desenvolvimento de marcos deanálise macroantropológica para sociedades com-plexas como ‘todos’” (1996, p. 123). Note-se acontraposição entre o micro e o macro. A obser-vação parece aplicar-se também à “antropologiaurbana”, com a particularidade de que no casodessa especialidade esforços de macroanálise fi-cam associados a teorias do urbano que geral-mente devem pouco às tradições conceituais daantropologia.

Um comentário geral poderia tentar organi-zar esse conjunto de investimentos de pesquisaafirmando simplesmente que a antropologia estu-da “grupos”,4 objetivo que encontra correspon-dentes seja no âmbito de uma sociedade inteira,seja de segmentos no seu interior. Ambas as alter-nativas têm seus problemas. Por um lado, estudarsociedades inteiras (o que é diferente de apreen-der integralmente uma sociedade) tende a alimen-tar modelos baseados em algum dos “grandesdivisores” (tradicional ou moderna, simples oucomplexa etc.),5 que funcionam exatamente parasolapar a desejada repatriação da antropologia.Além disso, essa alternativa torna difícil transportécnicas e noções geradas em condições bastantedistintas daquelas que serão exigidas por uma ma-croantropologia, e o mais provável é que esta pas-se a depender dos recursos de outras disciplinas.Por outro lado, estudar segmentos de uma socie-dade tende a favorecer a escolha de grupos em si-tuações que permitam transpor automaticamentetécnicas e noções já presentes na antropologia.Daí o privilégio a grupos pequenos ou periféricose a dimensões que evocam fatores invisíveis ouesquecidos. Os objetos acabam sendo restringidosàqueles que obedecem a essas condições e a mi-croantropologia daí derivada pode se converterem uma ciência menor. Por fim, é claro que sepode apelar para a idéia, já evocada, de que umgrupo possa “representar” a sociedade toda e deque estudá-lo significaria conhecer a totalidadedessa sociedade. O problema, nesse caso, consis-te em encontrar critérios que indiquem quais as-pectos seriam os mais “representativos”.

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Creio que Malinowski aponta para uma ou-tra alternativa ao se preocupar com os “pontos devista” e os “mecanismos sociais” pelos quais se al-cançaria a “constituição da vida tribal”. Seria assimpossível afirmar algo sobre uma sociedade em suatotalidade sem precisar partir de uma de suas par-tes, mas acompanhando as interações e os fluxosresultantes da atividade de vários de seus elemen-tos. Livramo-nos das imposições correspondentesà marginalidade dos grupos (para se adequar atécnicas ou noções tradicionais) e à representati-vidade das situações (canal para manter a preten-são de estudar a sociedade inteira), sem nos ren-der a macrounidades de análise. Analisar “pontosde vista” e “mecanismos sociais” para afirmar algosobre uma sociedade em sua totalidade tem aindacomo vantagem escapar à dicotomia entre microe macro, sem precisarmos compartilhar do pressu-posto de que há entre eles uma relação especular.A idéia, portanto, não é que a antropologia deixede estudar “grupos”, mas chegar a um entendi-mento a respeito de seu “princípio geral” que con-siga justificar esse estudo em termos mais amplos,de modo que outras possibilidades de enfoque darealidade não estejam excluídas. Finalmente, pen-so que a atenção aos “dispositivos centrais” deuma sociedade não obriga a uma delimitação deobjetos supostamente “centrais”, mas uma articu-lação entre micro e macro na qual o ponto de par-tida permanece em aberto, podendo ser mesmo amais periférica das situações.

Retrospectivamente em relação ao mestradoe mais deliberadamente no caso do doutorado,creio que é essa a perspectiva que sustenta meustrabalhos. Estudei “religião” não por ser um tematradicional da antropologia, ele mesmo referen-ciado a um aspecto “tradicional” das “sociedadesmodernas”; ao contrário, busquei inspiração forada “antropologia da religião” e procurei exata-mente questionar a “tradicionalidade” da religiãoenfatizando suas relações intrínsecas com a mo-dernidade, sua natureza como categoria moder-na. Também não foi para me fixar apenas em al-gum grupo específico; ao contrário, a FederaçãoEspírita Brasileira e a Igreja Universal do Reinode Deus foram analisados do mesmo modo queoutros atores sociais igualmente envolvidos nas

controvérsias, estes não religiosos, ou seja, emfunção das características e das implicações deseus discursos e práticas. Estudei “religião”, por-tanto, com o objetivo de destrinchar as contro-vérsias que a seu propósito ocorriam. E as con-trovérsias, ao mobilizarem várias instituições edispositivos importantes, revelam algo sobre de-terminadas sociedades e sobre certas transforma-ções que nelas ocorrem.

IV

Gostaria de voltar à dimensão metodológicapara tecer mais alguns comentários sobre e a par-tir de Malinowski. É verdade que, como afirmaHoly, “a concepção da observação participantecomo a maneira standard pela qual o trabalho decampo antropológico é conduzido deriva direta-mente da natureza da pesquisa antropológica típi-ca em uma sociedade pré-industrial” (1984). Mali-nowski, no próprio capítulo de abertura dos Argo-nautas, descreve sua chegada solitária a “umapraia tropical próxima a uma aldeia nativa” (1978,p. 19).6 Holy acrescenta que não se pode enten-der o modelo malinowskiano de trabalho de cam-po sem passar pelo seu vínculo com uma pers-pectiva funcionalista. E Malinowski é bastante ex-plícito quanto a isso no ponto em que se refere àcultura nativa como um “todo coerente” (1978, p.24). Leach revela outro aspecto interessante aoatribuir parte da popularidade de Malinowski,para além dos círculos antropológicos, aos seusinvestimentos intelectuais sobre a vida sexual dostrobriandeses (1966). A ligação entre a antropolo-gia e o exótico manifesta-se, de maneira efetiva,no vocabulário ocasionalmente evolucionista enos comentários sobre a “alma selvagem” de Ma-linowski. A questão que fica é se as observaçõesmetodológicas de Malinowski podem ser lidas demodo que se encontre nelas algo mais do que ascondições de pesquisa em uma sociedade pré-in-dustrial, a perspectiva funcionalista e o interessepelo exótico e o selvagem.

Retornemos aos dois obstáculos assinaladosna introdução dos Argonautas: falta de domíniodo idioma nativo e pouca valia das informaçõesprestadas por “outros homens brancos”. Essas fo-

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ram dificuldades sentidas pessoalmente por Mali-nowski em seu primeiro trabalho de campo, du-rante alguns meses entre os magi da Nova Guiné,conduzido basicamente com a ajuda de intérpre-tes e com o etnógrafo morando fora da aldeia(Young, 1988). Em Argonautas, o autor é taxativo:é preciso aprender o idioma nativo, afastar-se doshomens brancos e transferir-se para dentro deuma aldeia. A partir disso, se configurariam ascondições para um “relacionamento natural” entreo etnógrafo e os nativos, a tal ponto que o primei-ro deixaria de “representar um elemento perturba-dor na vida tribal que devia estudar” (1978, p. 21).Tais condições propiciariam ainda ao etnógrafouma visão a um tempo integral e exaustiva do co-tidiano nativo: “Tudo o que se passava no decor-rer do dia estava plenamente ao meu alcance enão podia, assim, escapar à minha observação”(1978, p. 22). Lembremos que essas orientações seproclamavam constituir um “relato das condiçõessob as quais foram feitas as observações e coleta-das as informações”, cumprindo uma exigência dametodologia científica (1978, p. 18), mas que tam-bém se destinavam a mostrar que o etnógrafo “en-trara realmente em contato com os nativos” (1978,p. 22). É a tensão, nem sempre tranqüila, entre es-sas pretensões que, segundo Geertz (1988), mar-ca o estilo de Malinowski.

Não há dúvida de que ambas as pretensõespodem ser questionadas. Há alternativas ao idealcientífico abraçado então por Malinowski e sabe-se que o contato que manteve com os nativos nãopassava sem problemas ou limitações e que nãoforam cortadas as relações com o mundo dos “ou-tros homens brancos” (seja em um sentido estru-tural – a situação colonial –, seja naquele sentidoque se depreende da lista de agradecimentos deum autor). O texto de Stocking (1992), talvez maisdo que os diários pessoais de Malinowski publica-dos postumamente, revela o ritmo e as condiçõesefetivas em que se realizou seu trabalho de cam-po nas Ilhas Trobriand. Por meio dele sabemosque nosso herói nunca navegou nas canoas coma ajuda das quais ocorriam as expedições conhe-cidas como kula; que o tabaco que os nativos ob-tinham dele nem sempre eram propriamente“doações”; que em várias ocasiões preferiu a com-

panhia de comerciantes, missionários e outros eu-ropeus lá estabelecidos; que a tenda à qual comorgulho se referia era uma maneira de “viver en-tre os nativos” sem morar com eles. Nada disso in-valida a experiência de Malinowski, mas dificil-mente se pode acreditar que ela dependeu de um“relacionamento natural” com os nativos.

Entretanto, o ideal de “observação” defendi-do por Malinowski talvez tenha algo além da pre-tensão desmesurada e ilusória que o levava aachar que o etnógrafo poderia ver tudo. Para ele,o etnógrafo não conseguiria “observar” simples-mente vagando por uma aldeia: o que juntaria se-ria um “material ‘morto’, que não podia levar aentender a verdadeira mentalidade e comporta-mento dos nativos” (1978, p. 20). O imperativodo aprendizado da língua nativa não é um obje-tivo em si,7 mas a melhor forma de acesso ao“significado intrínseco da vida tribal” (1978, p.20). Em várias ocasiões, Malinowski foi enfáticoquanto às limitações dos métodos de questiona-mento direto e de perguntas-e-respostas. O cru-cial seria poder observar os nativos conversandoentre si, em situações cotidianas, e poder discutircom eles a partir de acontecimentos concretos.8

Isso, por outro lado, não quer dizer que o “pon-to de vista dos nativos” se manifestasse direta-mente nessas conversas ou nessas discussões. Jávimos a posição de Malinowski quanto a essaquestão. A compreensão viria da observação, eaqui recorro a uma expressão utlizada em CoralGardens, de comportamentos integrais – “umcomposto de ações verbais e manuais” (Mali-nowski, 1935). Os “dados concretos” que se mos-travam limitados enquanto permaneciam “mate-rial morto” (1978, p. 20) agora serviriam para for-necer o contexto no qual os nativos expressamsuas opiniões e concepções (1978, p. 24). O tra-balho de campo propiciaria, então, exatamente ascondições para realizar o que se poderia chamarde observação compreensiva.9

Malinowski dá indicações de que sua pes-quisa entre os trobriandeses lançou mão de diver-sas técnicas ou abordagens: algumas mais deriva-das da mensuração, como recenseamentos e ma-peamentos; outras que contavam com a utilizaçãode questionamentos diretos, às vezes com infor-

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mantes privilegiados, algo que pode não estarmuito distante do que chamaríamos de entrevista;outras, ainda, que anteciparam o método da his-tória de caso, como já foi mencionado. Se não sa-bemos mais sobre essas técnicas e abordagens,talvez seja porque a “sinceridade metodológica”exigida pelo próprio Malinowski resulte em orien-tações voltadas mais para a organização e a apre-sentação dos dados do que para a sua obtenção.Daí que Stocking encontre no estilo malinowskia-no um fundamento para a falta de treinamentoformal que reina na antropologia em se tratandode trabalho de campo: “O estilo de trabalho decampo que ele validou era menos uma questão deprescrição concreta do que de se colocar em umasituação na qual se pode ter um certo tipo de ex-periência” (1992, p. 58). De minha parte, prefirochamar a atenção para uma aproximação que Ma-linowski realiza entre a história e a etnografia: “Naetnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu pró-prio cronista e historiador; suas fontes de informa-ção são, indubitavelmente, bastante acessíveis,mas também extremamente enganosas e comple-xas; não estão incorporadas a documentos mate-riais fixos, mas sim ao comportamento e memóriade seres humanos” (1978, pp. 18-19).10

Somos assim conduzidos ao ponto que creioser o mais importante nesta parte da discussão. Aconclusão que se pode tirar dessa última passagem,assim como de todas as considerações anteriores, éque o “objetivo fundamental da pesquisa etnográfi-ca” deve ser buscado a partir de uma variedade defontes, cuja pertinência é avaliada pelo acesso quepropiciam aos “mecanismos sociais” e aos “pontosde vista” em suas “manifestações concretas”. Ora,há situações etnográficas em que essas fontes sãoexatamente os “documentos materiais fixos” a quese refere Malinowski. Em se tratando de um objetohistórico, essas serão as únicas fontes para o traba-lho de um antropólogo. Mas mesmo quando esti-vermos diante de um objeto contemporâneo, é pos-sível que a análise de fontes documentais seja maisindicada do que a busca de um “contato o mais ín-timo possível com os nativos”. Foi essa a conclusãoa que cheguei à medida que prosseguia na pesqui-sa do meu doutorado. Embora estivesse aberto paraencontrar situações nas quais um trabalho de cam-

po fosse necessário, considerei que o fundamentalconsistiria na sistematização dos registros das inter-venções públicas por parte das personagens queparticipavam das controvérsias sociais. A fonte tex-tual não ganha privilégio por oposição ao trabalhode campo, mas pela razão de estarem nela inscritasas informações metodologicamente relevantes e so-cialmente significativas.

Isso me leva a fazer uma breve digressão so-bre o recurso a entrevistas como técnica de obten-ção de dados. Trata-se de uma técnica bastanteutilizada pelos antropólogos, parecendo ganharmaiores cuidados e aplicabilidade justamente en-tre aqueles cuja situação de pesquisa impede aobservação participante nos moldes de um traba-lho de campo. Exatamente por essa razão, tenhoa impressão de que a entrevista assume, muitasvezes, o papel de simular o “trabalho de campo”,ou seja, permite obter uma “informação” de natu-reza igual àquela que seria registrada pela obser-vação participante. Penso, ao contrário, que é im-prescindível bem distinguir os dois procedimentos,uma vez que a observação participante obrigaa situar os dizeres em relação a “comportamentosintegrais” (a expressão, lembro, é de Malinowski),enquanto a entrevista consiste em buscar a tradu-ção de comportamentos em palavras. Nesse senti-do, a análise de registros textuais consideradosem seus efeitos sociais tem um parentesco com alógica da observação participante maior do queaquele que existe entre esta e a entrevista. Se naobservação participante, o pesquisador deve dei-xar seus “nativos” falarem, no uso de fontes tex-tuais ele deve lidar com o que já foi dito. Nadadisso invalida o recurso a entrevistas; afinal, hásituações em que é fundamental fazer certas per-sonagens falarem, assim como é imprescindívelfazer emergir vozes que, de outro modo, perma-neceriam submersas. O que considero importanteé pensar adequadamente a relação entre entrevis-ta e trabalho de campo e não deixar de incluirnessa reflexão o lugar das fontes textuais.

O estudo de controvérsias que ocorrem naprópria sociedade permite ainda outras considera-ções derivadas da leitura de Malinowski. Vimosque sua observação compreensiva permite rompercom uma dicotomia entre “realidade” e “discur-

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sos”. Quando se trata de controvérsias, o que setem diante de si é um conjunto, mais ou menosdiverso, mais ou menos agonístico, de discursos,os quais constituem, em si mesmos, a realidade aser investigada. Não há, portanto, nesse aspecto,dicotomia, como não haverá também se esses dis-cursos forem considerados atos, ou seja, o regis-tro de intervenções analisadas pelos resultadosque engendram, por si mesmas ou em função dasua conjugação com as demais. Um outro pontodiz respeito às relações entre “etnógrafo”, “outroshomens brancos” e “nativos”, figuras que, paraMalinowski, poderiam ser claramente distinguidase que acabam embaralhadas em situações que en-volvem controvérsias na própria sociedade do an-tropólogo. Afinal, os próprios antropólogos ocu-pam a posição de personagens da controvérsia,seja como objeto de intervenções sociais, sejacomo produtores de representações que interfe-rem na situação geral. O problema que se vivenão deriva da necessidade de deslocamento, masde uma política do saber. Se quisermos manter atríade malinowskiana, eu diria que o dilema con-siste exatamente em como sustentar a autonomiado “etnógrafo” em uma configuração na qual ne-nhuma operação metodológica assegura, por sisó, a distinção em relação aos demais “homensbrancos” e aos seus “nativos”.

Procurando encerrrar a discussão metodoló-gica, retomo a idéia de reconsiderar o vínculo ne-cessário entre etnografia e trabalho de campo. Játemos os elementos suficientes para entender porque, em um determinado momento, uma indisso-ciação se firma; elementos que passam pela situa-ção colonial, pela inspiração em métodos e exi-gências vigentes em outras disciplinas científicas epela crise das teorias evolucionistas (Stocking,1992; Urry, 1984). Uma certa sacralização do tra-balho de campo obstacularizou, por exemplo, adiscussão sobre as técnicas de pesquisa que efeti-vamente se combinavam na prática etnográficados antrópologos. Com isso, não desejo reduzir otrabalho de campo a um mero agregado de técni-cas. Apesar dos problemas que temos de adminis-trar em função desse entendimento, não há comoeludir uma dimensão experiencial do trabalho decampo, que sobrepõe o efeito sintético a qualquer

decomposição analítica – coisa para a qual, comovimos, o estilo malinowskiano contribuiu decisi-vamente. Também não estaria sendo bem enten-dido se alguém enxergasse nas minhas reflexõesum plano para invalidar o trabalho de campocomo metodologia adequada às condições atuaisda prática antropológica. Ao contrário, penso que,em meu próprio caso, se tivesse outras condiçõesde planejamento e realização da pesquisa, o tra-balho de campo ocuparia mais espaço no resulta-do final.

Não se trata de dissolver ou de invalidar otrabalho de campo, mas de ter uma concepçãomais ampla e aberta da investigação etnográfica.11

Em parte, isso se torna uma necessidade diante danatureza dos problemas e das situações de pequi-sa com os quais os antropólogos se deparam hoje.Não surpreende que Maanen observe uma multi-plicação de gêneros etnográficos, não mais orga-nizados “por região geográfica, sociedade ou co-munidade” (1996, p. 264). Daí fazer sentido a con-clusão de Clammer, em seu texto sobre pesquisaetnográfica: “há certos tipos de questões que sim-plesmente não se pode formular sobre dados de-rivados de trabalho de campo tradicional, umavez que as técnicas inerentes a esse método nãosão capazes de respondê-las ou mesmo de desco-bri-las. O trabalho de campo não pode ser o úni-co método em antropologia, mas precisa ser com-plementado por outros” (1984, p. 84). Mas creioser preciso também justificar uma concepção maisampla da etnografia com base não apenas nas li-mitações do trabalho de campo – ou seja, naconstatação de que há problemas e situações depesquisa nas quais o “contato o mais íntimo pos-sível” seja apenas parte ou até mesmo não tenhanada a fazer no processo de produção dos dados.A leitura que proponho sobre as recomendaçõesde Malinowski aponta para uma outra fundamen-tação, na medida em que procura entender o tra-balho de campo como a solução para efetivar cer-tas exigências colocadas pelo tipo de conheci-mento que se deseja obter com a antropologia.Segundo essa concepção, o trabalho de campo evárias outras técnicas não se opõem, mas apare-cem como caminhos complementares ou alterna-tivos para levar adiante tais exigências.

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V

“Talvez, pela compreensão de uma formatão distante e estranha da natureza humana, pos-samos entender nossa própria natureza” (Mali-nowski, 1978, p. 34). De fato, a antropologia,mesmo antes do que afirmou Malinowski na pe-núltima linha da introdução aos Argonautas, re-presenta um empreendimento que se sustenta so-bre o encontro de dois mundos. O encontro temsua versão edificante: acabamos aprendendo algosobre nós mesmo quando só queríamos desven-dar a vida deles. E sua versão cínica: quando nosinteressamos pelos outros é sempre a nós que de-sejamos encontrar. Além disso, ganha cada vezmais adeptos a impressão de que “aqui” e “lá” nãomais correspondem a lugares distantes entre si.Seja como for, o fato é que já faz algum tempoque se aceitou repatriar a antropologia, fazê-la di-zer algo diretamente sobre nós mesmos. A ques-tão que permanece sem resposta definitiva podereceber uma dupla formulação: como fazer falarsobre si um saber que se construiu, em termos deseu objeto e de sua metodologia, em um discursosobre o outro? Ou: como a antropologia pode semanter fiel a si transformando o campo de aplica-ção de seus conceitos e de suas técnicas?

Não pretendo, evidentemente, responder aessas questões, mas apenas deixar mais claro apista que sigo para enfrentá-las. Como se podedepreender de tudo que foi discutido até aqui,acredito que a antropologia não pode ser defini-da nem em função de determinados tipos de ob-jetos, nem em função de uma metodologia estrita.Hoje ninguém saberia dizer o quê exatamente aantropologia estuda e creio que a postura mais in-teressante é tirar proveito da possibilidade de an-tropologizar tudo – inclusive a própria antropolo-gia. Concordo também com Salzman que o ladopositivo da indefinição metodológica é a “liberda-de de usar um amplo escopo de métodos” (1996,p. 365) – inclusive aqueles que dispensam o tra-balho de campo. E acho que Geertz tem razão emconsiderar a antropologia uma “disciplina indisci-plinada” (1995, p. 97). Mas, afinal, o que a tornauma disciplina autônoma ou ao menos distinta emrelação a outras (supondo, evidentemente, que

ainda valha a pena considerar a antropologia comtal estatuto)? Se não possui um objeto e um méto-do próprios, o que pode definir a especificidadede sua perspectiva?

Para tanto, a proposta de uma “antropologiasimétrica” (Latour, 1994) talvez ajude a vislumbraruma resposta. Nos termos aqui dispostos, signifi-ca, a meu ver, a exigência de que seja levadoadiante o ideal do encontro entre mundos diver-sos, entre “nós” e “eles”. Ou seja, é necessário queas pesquisas sobre “eles” encontrem fórmulas queconsigam pensar sobre “nós”; inversamente, épreciso que as pesquisas sobre “nós” incorporemas noções que foram e continuam a ser desenvol-vidas para pensar sobre “eles”. Conceber a antro-pologia como uma perspectiva, portanto, supõedois movimentos simultâneos. De um lado, nega-mos que se possa definir a disciplina seja pelo es-tudo de sociedades “primitivas”, “tradicionais”,“simples” etc., seja apenas por meio das aproxi-mações metodológicas consagradas na noção de“trabalho de campo”. De outro, afirmamos ser im-prescindível que se estabeleça um diálogo entre oque produzimos hoje sobre uma infinidade de ob-jetos e mediante uma variedade de técnicas e oque a antropologia elaborou quando estava restri-ta aos “primitivos” e ao “trabalho de campo”. Essaseria uma maneira de continuar e de subverter odesejo malinowskiano: só podemos entender nos-sa natureza considerando o que aprendemos econtinuaremos a aprender sobre formas estranhase distantes de vida humana, assim como enrique-ceremos nosso conhecimento sobre essas formasestranhas e distantes se as pensarmos consideran-do nossa própria natureza.

* * *

Permito-me ainda duas observações finais.Estou ciente de que a releitura que proponho deMalinowski não toca e muito menos resolve ne-nhum dos problemas metodológicos, políticos eéticos de uma pesquisa antropológica que dispen-se ou relativize um trabalho de campo. Minha in-tenção não é senão desfazer o dilema que se criaquando se pretende exigir de um antropólogoque realize “trabalho de campo”. Desfeito o dile-

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ma, creio que podemos encarar, de uma perspec-tiva simétrica, os problemas aos quais me referiacima, considerando, por exemplo, as especifici-dades estabelecidas por diferentes situações depesquisa e por distintos contextos nacionais deconstituição da disciplina. O caso do Brasil, aliás,constitui um quadro bem interessante, bastandolembrar algumas características do modo peloqual a antropologia aqui se desenvolveu. Ao ladodas populações indígenas, o outro objeto que estáassociado às origens da antropologia brasileirasão os grupos negros. Como foram quase sempreestudados em ambientes urbanos, propiciaram orecurso a técnicas de pesquisa variadas. Mesmona etnologia, até a década de 1970 predominavaum estilo de trabalho de campo marcado por es-tadias relativamente curtas (comparadas, porexemplo, aos moldes da antropologia britânica). Eé interessante notar o que ocorre com o desenvol-vimento de estudos sobre o campesinato, entre ofinal dos anos de 1960 e os anos de 1980. A prin-cípio, expressão do interesse pelas “margens”, otema do campesinato gera na antropologia brasi-leira linhas de trabalho dedicadas a pensar certosaspectos centrais de nossa sociedade, como suasestruturas econômicas e as formas do capitalismo.

Tenho também a convicção de que a releitu-ra de Malinowski para os fins aqui propostos, adespeito do que possa contribuir para enriquecerou ponderar a visão que cultivamos sobre um dos“pais fundadores” da nossa disciplina, representasobretudo uma operação retórica. Explico-me: nosentido de que haveria outras e melhores viaspara problematizar a relação entre antropologia etrabalho de campo. Se, e não sem alguma ironia,escolhi Malinowski, foi para demonstrar que essequestionamento pode ser realizado mesmo atravésdo mais improvável dos meios. Mas, sob outroponto de vista, o procedimento afigura-se neces-sário. Assim como não se pode definir a especifi-cidade da antropologia enquanto perspectiva semfazer referência a formas precedentes de delimita-ção de objetos e de delineamentos metodológi-cos, é preciso constantemente remeter-se a auto-res e momentos que ocupam lugar crucial naqueladelimitação e naqueles delineamentos. Nessecaso, a idéia de releitura se opõe à de mera des-

construção, tão em voga quando se pretende re-considerar alguns dos “clássicos” da antropologia,geralmente para deles se afastar. Pois se trata me-nos de vislumbrar (ou simplesmente anunciar)novas bases para a antropologia e mais de atuali-zar princípios que foram colocados em momentosanteriores da disciplina. E, em se tratando disso,permanecer fiel a Malinowski não impede a pro-dução de leituras que subvertem planos originais.

NOTAS

1 É também Stocking que admite: “Mesmo aqueles cujapesquisa não correspondia (ou mesmo modelava-sesobre) às prescrições dele [Malinowski] eram apoia-dos por sua arquetipificação prévia” (1992, p. 59)

2 Richards encontra nas etnografias de Malinowski“uma forma primitiva do que hoje se chamaria ‘ométodo da história de caso’” (1971, p. 211). O usoanalítico de “um conjunto de casos” já está anuncia-do nos Argonautas (Malinowski, 1978, p. 27). Ao lero capítulo sobre trabalho de campo de The CoralGardens and their Magic, em que Malinowski apre-senta as várias doutrinas e os argumentos quanto àocupação da terra entre os trobriandeses, é difícilnão vislumbrar a imagem de uma sociedade empermanente controvérsia – a despeito dos esforçosdo autor em demonstrar a “harmonia” entre doutri-nas e argumentos e da reedição da metáfora do es-queleto/carne (1935).

3 Considerações baseadas em avaliações mais geraissobre a “antropologia das sociedades complexas”podem ser conferidas em Peirano, 1991 e Goldman,1999.

4 Essa afirmação é bastante comum, mesmo que senote, por parte dos seus autores, preocupações emrelativizá-la. Ver, por exemplo, Geertz (1988, em tre-cho já citado). A opinião aparece nos dois verbetes“etnografia” consultados: “o termo refere-se ao estu-do da cultura que um determinado grupos de pes-soas mais ou menos compartilha” (Maanen, 1996, p.263); “uma etnografia se ocupa de uma população,um lugar e um tempo particulares” (Sanjek, 1996a,p. 193).

5 Sobre os “grandes divisores” na antropologia, verGoldman e Stolze, 1999.

6 Em “[...] minúsculas e inacessíveis ilhas”, como diria,no mesmo espírito, Richards, 1971, p. 212.

7 Esse é um ponto que Malinowski procura deixarclaro no capítulo sobre trabalho de campo em Co-ral Gardens (1935).

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8 Essas orientações foram defendidas em outros tex-tos por Malinowski (1994, p. 172 e 1935). Ver aindaos comentários de L’Estoile (1998), Young (1988 e1979), Stocking (1992) e Richards (1971).

9 É possível encontar conexões entre essa maneira deobservar a vida social e teorias pragmáticas da lin-guagem – não por acaso desenvolvidas pelo pró-prio Malinowski (cf. Tambiah, 1985).

10 Mais adiante, Malinowski afirma que a “única dife-rença” entre nossas sociedades e aquelas que os et-nógrafos estudavam residia em que as “instituiçõesda sociedade civilizada” possuíam “historiadores, ar-quivos e documentos” (1978, p. 24). O que não ficaclaro é se Malinowski confere aos arquivos e aosdocumentos a mesma complexidade que encontrano comportamento e na memória dos indivíduos.

11 Estou ciente de que a própria noção de “etnografia”passa por questionamentos. Ver, por exemplo, Tho-mas (1991) e o comentário de Peirano (1995). Acre-dito, no entanto, que as sugestões que faço contor-nam os problemas de que se culpa a noção. Paraoutras tentativas de ampliar a concepção de etno-grafia, ver Comaroff e Comaroff (1992), em que osautores se perguntam pela concepção de antropolo-gia necessária para compreender, inclusive na suadimensão histórica, os contatos de missionários eu-ropeus com populações africanas, e Clifford, apudGarber et al. (1996).

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PARA ALÉM DO “TRABALHO DE CAMPO” 107

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PARA ALÉM DO “TRABALHODE CAMPO”: REFLEXÕESSUPOSTAMENTE MALINOWSKIANAS

Emerson Giumbelli

Palavras-chaveAntropologia; Etnografia; Trabalhode campo, Malinowski

O trabalho propõe uma releitura,confessadamente interessada e irôni-ca, dos célebres esclarecimentosprestados por Malinowski no capítu-lo de abertura dos Argonautas dopacífico ocidental. Nesse texto,Malinowski expõe suas justificativaspara o tipo de aproximação querealizou para estudar uma popu-lação melanésia da década de 1910,aproximação desde então consagra-da na antropologia mediante a idéiade “trabalho de campo”. Pretendo,de minha parte, demonstrar que asmesmas justificativas, colocadas den-tro dos quadros propiciados porobjetos bem diversos, podem funda-mentar uma outra aproximaçãometodológica. Nesse sentido, conti-nuar “fiel” a Malinowski significarelê-lo (e mesmo subvertê-lo) deforma a explorar certas virtualidadesde seu texto, acionadas com baseem situações de pesquisa com queos antropólogos se deparam atual-mente, permitindo adequar à disci-plina metodologias que não sedefinem estritamente como “trabalhode campo”. Essas reflexões assentam-se sobre uma trajetória pessoal carac-terizada exatamente por pesquisasque privilegiaram materiais arquivís-ticos e fontes textuais.

BESIDES THE “FIELDWORK”:SUPPOSEDLY MALINOWSKI REFLECTIONS

Emerson Giumbelli

KeywordsAnthropology, etnography, field-work, Malinowski

The article proposes a re-reading(confessed to be interested and iron-ic) of the well-known explanationsrendered by Malinowski in theopening chapter of the Argonauts ofthe Western Pacific. In this text,Malinowski explains the reasons forthe type of approach adopted tostudy a Melanesian population in the1910s, which has ever since becomethe consecrated approach inAnthropology known by the idea of“fieldwork”. The author intends toshow that the same reasons used byMalinowski, placed within the propi-tiated framework by differentobjects, are able to base a differentmethodological approach. In thissense, to continue “faithful” toMalinowski means to re-read (oreven to subvert it) in ordet toexplore certain vital aspects of thetext, based on real research situa-tions that anthropologists have comeacross at present time. This shouldallow the adequation of methodolo-gies in the field that do not need tobe strictly defined as “fieldwork”.These reflections were defined aftera personal trajectory characterizedby researches using archive materialsand textual sources.

AU-DELÀ DU “TRAVAIL SURLE SITE”: RÉFLEXIONS SUPPOSÉES DE MALINOWSKI

Emerson Giumbelli

Mots-clésAnthropologie; Ethnographie;Travail de champs; Malinowski.

Ce travail propose une relecturedélibérément intéressée et ironiquedes célèbres éclaircissements faitspar Malinowski dans le chapitre quiouvre les Argonautes du PacifiqueOccidental. Dans ce texte,Malinowski expose ses justificativespour le genre d’approche qu’ilentrepris afin d’étudier une popula-tion de Mélanésie dans les années1910. Depuis, cette approche a étéconsacrée dans l’anthropologie parl’idée de «travail sur le site». Dansune première partie, nous démon-trons que les mêmes justificatives,insérées dans un contexte proprepar des objets divers, peuvent servirde fondement à une autre approcheméthodologique. Ainsi, continuer“fidèle” à Malinowski signifie lerelire (et même le corrompre) demanière à explorer certaines virtu-osités de son texte, employéescomme fondement dans des situa-tions de recherche auxquelles lesanthropologues font face actuelle-ment. Cela permet d’adapter à ladiscipline des méthodologies qui nese définissent pas strictementcomme un “travail sur le site”. Cesréflexions s’appuient sur une trajec-toire personnelle caractériséeexactement par des recherches quiprivilégient le matériel provenantd’archives et de sources textuelles.

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 227