Reforma e educação sanitária na Penna de Belisário – primeira república do Brasil (1916-1925) - Leonardo Querino Barboza Freire / Iranilson Buriti de Oliveira

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    Reforma e educao sanitria na Penna de Belisrio

    | vol. 3 n. 2. Agosto/Dezembro de 2011 ISSN: 1984-6150 |

    Reforma e educao sanitria na Penna de Belisrio primeira repblica do Brasil (1916-1925)1

    Leonardo Querino Barboza FreireGranduando em Histria pela UFCG

    [email protected]

    Iranilson Buriti de OliveiraUnidade Acadmica de Histria da UFCG

    [email protected]

    RESUMO:A Reforma Sanitria ocorrida nas primeiras dcadas da Repblica Brasileira constituium tema bastante visitado por cientistas de diversas reas nos ltimos anos. Nesse espao de

    discusso intelectual, tem se destacado as pesquisas realizadas pelos historiadores e por seuscolegas das cincias sociais. Nossa pesquisa se insere no debate mais amplo sobre a histria dessaReforma Sanitria. No entanto, privilegiamos o dilogo entre sade e educao que estevepresente nos projetos de reforma sanitria e de construo da nao na Infncia de nossaRepblica. Para isso, analisamos as representaes tecidas pelo mdico mineiro Belisrio Pennasobre a reforma sanitria, a nacionalizao dos servios de sade pblica, e a educao higinica.O nosso estudo se aproxima da perspectiva da Histria Cultural, sobretudo no que diz respeitoao aporte terico ofertado por autores como Roger Chartier de grande auxilio para a nossaanlise das fontes e das experincias histricas nelas encenadas. Alm disso, nos aproximamos docampo historiogrfico que tem realizado pesquisas em histria da sade, da doena e das artesde curar, a partir de uma perspectiva sociocultural.

    PALAVRAS-CHAVE: Educao, Sade, Belisrio Penna.

    ABSTRACT:The Health Reform held in the first decades of the Brazilian Republic, is a thememuch visited by scientists from various fields in recent years. In the space of intellectualdiscussion, has been highlighted by research carried out by his fellow historians and socialsciences. Our research fits into the broader debate about the history of health reform. However,

    we make the dialogue between health and education that was present in projects of sanitaryreform and nation-building in "Childhood" of our Republic. For this, we analyzed therepresentations woven by the doctor mining Belisrio Pena on health reform, nationalization ofpublic health services and hygiene education. Our study approaches the perspective of cultural

    history, particularly with regard to the theoretical approach offered by authors such as RogerChartier are extremely helpful for our analysis of the sources and historical experiences of themstaged. In addition, we approach the historiographical field that has conducted research on thehistory of health, illness and "healing arts", from a sociocultural perspective.

    KEYWORDS: Education, Health, Belisrio Penna.

    [...] o processo de produo do texto , comfreqncia, tambm o processo de constituir

    1Esta pesquisa conta com o apoio do CNPq.

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    Leonardo Querino Barboza Freire & Iranilson Buriti de Oliveira

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    quem fala em um interlocutor legtimo. Almdisso, o intelectual falaria de si ao falar domundo.2

    Brasil, 1912. Chefiada pelos mdicos Belisrio Penna e Arthur Neiva, a terceiraexpedio cientfica contratada pela Inspetoria de Obras Contra as Secas (s naquele ano)

    percorre, durante nove meses, localidades das regies Norte e Nordeste (norte da Bahia, sudoeste

    de Pernambuco e sul do Par) e parte do Estado de Gois. O seu objetivo era realizar um amplo

    levantamento sobre a flora, a fauna, mas, sobretudo, sobre as condies de vida e sade das

    populaes locais. Alm de ter reunido um vasto registro fotogrfico das situaes que

    encontrou, esta experincia apresentou um amplo relatrio de viagem. Publicado em 1916, este

    texto torna-se um marco no movimento em defesa do saneamento rural, que comea a dar

    passos mais largos na Primeira Repblica do Brasil. Nosso objetivo, neste artigo, problematizar

    as representaes construdas por Belisrio Penna acerca da educao sanitria e da regenerao

    da nao a partir do discurso mdico-sanitarista.

    Segundo Nsia Trindade, em Um serto chamado Brasil, a representao do Brasil esboada

    no relatrio desta expedio salienta a doena (no mais o clima ou a mistura de raas) como o

    grande obstculo ao progresso do pas3. Ao falar de representao no estamos partindo de um

    improvvel nada intelectual. Escolhemos pensar as representaes construdas por Penna e

    Neiva a partir da perspectiva do historiador francs Roger Chartier a este respeito:

    O que leva seguidamente a considerar estas representaes como as matrizes dediscursos e de prticas diferenciadas [...] que tem por objetivo a construo do mundosocial, e como tal a definio contraditria das identidades tanto a dos outros comoa sua.4

    Estas representaes no apenas constroem a sociedade brasileira vista nas lentes destes

    sanitaristas. Elas tambm criam suas identidades, constroem a imagem do outro doente e

    instituem um espao5para a interveno autorizada do mdico-reformador.

    Na pena de Belisrio, o atraso do Brasil aparece pintado bem ao lado do abandono

    poltico das populaes do interior do pas, entregues a prpria sorte em funo das disputas

    2LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil.Intelectuais e representao geogrfica da identidade nacional. Riode Janeiro: Iuperj/Revan, 1999, p. 20.3LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil,p. 84.4CHARTIER, Roger.A histria cultural entre prticas e representaes.2 Ed. Lisboa: DIFEL, 2002, p. 18.5 Estamos trabalhando com a noo de espao formulada pelo professor Durval Muniz. Nessa linha,compreendemos que os espaos no se resumem a sua dimenso fsica. Eles so tambm constitudos pelas relaeshistrico-sociais e pelas redes de cdigos scio-culturais que se desenvolvem no seu mbito. So as prticas que

    trabalham este espao, que o tornam vivncia e experincia. Ver: ALBUQUERQUE JR., Durval M. de. Nos destinosde fronteira.Histria, espaos e identidade regional. Recife: Bagao, 2008.

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    oligrquicas que assolavam a proposta federalista da ainda adolescente Repblica6. Em O

    Saneamento do Brasil, de 1918, sua denncia foi contundente:

    Uma viagem atravs de nossos sertes, e mesmo fora deles, constrange a alma e abate

    a confiana no futuro da ptria, sobretudo pela indiferena ou inconscincia dospoderes pblicos federais, estaduais ou municipais, quanto soluo do problemasanitrio, certamente o mais grave para a salvao econmica da Nao.7

    At aquela expedio, a carreira mdica do mineiro Belisrio Penna (1868 1939), no

    parecia to promissora como a de seus contemporneos Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Em

    1904, ele havia sido aprovado em um concurso para a Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP),

    com sede no Rio de Janeiro. Desde ento, sua trajetria orienta-se para a inspeo de doenas e

    para a defesa do saneamento e da educao sanitria. Nessa poca, atuando como inspetor de

    sade na capital federal, colaborou com as campanhas de erradicao da febre amarela no Rio deJaneiro e em Belm do Par, ambas coordenadas por Oswaldo Cruz. Em parceria com este, ainda

    participou das aes sanitrias que acompanharam a construo da Ferrovia Madeira-Mamor, no

    norte do pas.

    Mas foi durante a campanha pelo saneamento do Brasil que Belisrio gastou a sua Penna

    escrevendo e divulgando bastante o iderio sanitarista, dando visibilidade s campanhas sanitrias

    e profilticas. Tanto que h quem diga que a campanha pela reforma sanitria conseguiu

    sensibilizar a opinio pblica a partir da publicao de alguns artigos seus no jornal carioca Correioda Manh, em 1917. No ano seguinte eles foram reunidos dando origem a sua obra mais

    importante sobre essa temtica, batizada de Saneamento do Brasil.Segundo Gilberto Hochman em

    A Era do Saneamento, foi muito importante a participao de Belisrio como publicista do iderio

    sanitarista na Primeira Repblica, pois:

    [...] as idias de Belisrio Penna, repetidas em centenas de outros artigos e palestraspublicados no perodo, tiveram expressivo impacto pblico, tendo convertido aocredo sanitarista, diversos polticos e intelectuais, como Monteiro Lobato, queamplificaram a campanha, mas, certamente, criado, tambm, muitos opositores,principalmente s suas recomendaes de polticas pblicas.8

    Dando nfase ao papel da educao sanitria para a regenerao da sade fsica e moral

    das populaes, Belisrio se torna uma importante figura na segunda fase do movimento

    6Segundo Nsia Trindade, [...] o tema da sade e das doenas endmicas sempre era abordado [por Belisrio Penna]a partir de uma crtica ao que considerava degenerao da Repblica [...] Em vrias cartas e outros documentos,demonstrou sua insatisfao com a atuao dos rgos pblicos. LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil., p.123.7PENNA, Belisrio. Saneamento do Brasil.Rio de Janeiro, Typ. Revista dos Tribunais, 1918.8HOCHMAN, Gilberto. A Era do saneamento.As bases da poltica de sade pblica no Brasil. So Paulo: Hucitec,

    1998, p. 72.

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    sanitarista brasileiro9, caracterizada pela campanha Pr-Saneamento do Brasil10. Com teor

    quase sempre crtico ao que considerava a degenerao poltica da Repblica, o tema da doena e

    da sade aparecem representados em sua escrita como, respectivamente, entrave e soluo para a

    modernizao do Brasil.

    Nossa anlise foca a educao sanitria nos escritos de Belisrio Penna, tema inserido na

    histria da Reforma Sanitria do Brasil. No entanto, privilegiamos um aspecto que tem sido

    abordado apenas de forma secundria nos estudos de maior monta sobre esta experincia: o

    dilogo entre sade e educao que esteve presente nos projetos de reforma sanitria e de

    construo da nao na Infncia de nossa Repblica.

    Alm disso, dialogamos com o campo historiogrfico que tem realizado pesquisas em

    histria da sade, da doena e das artes de curar, a partir de uma perspectiva que rejeita a

    abordagem clnica, orgnica e puramente laudatria desses temas. Assim, nossa inteno estud-

    los a partir de um ponto de vista sociocultural. Mais do que isso, nosso objetivo problematizar

    estes temas na linha da Histria Cultural, tal como definida pelo j mencionado Roger Chartier

    para quem: A histria cultural tal como entendemos, tem por principal objeto identificar o

    modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social construda,

    pensada, dada a ler.11

    A dcada de 1910 demarca os primeiros esforos mais organizados no sentido da

    reforma sanitria e da nacionalizao da sade pblica no Brasil. At ento, o sistema federalista,

    hasteado junto com o nascimento da Repblica, consignava os estados-membros da federao

    como os responsveis pela gesto dos servios de sade.

    Contudo, como talvez j fosse de esperar, a precariedade financeira da maioria das

    unidades federativas, restringiu a promoo de polticas no campo da sade aos estados mais

    fortes do ponto de vista poltico e econmico. Essa situao contribuiu para que a interveno

    federal nos servios de sade ocorresse apenas nos casos em que as endemias locais se

    9Sistematicamente, o movimento sanitarista brasileiro pode ser divido em dois momentos. No primeiro, vinculadoaos anos iniciais do sculo XX, destacou-se a gesto de Oswaldo Cruz frente dos servios sanitrios federais. Nessaprimeira fase enfatiza-se o saneamento urbano, em especial da cidade do Rio de Janeiro, e o combate s epidemias defebre amarela, peste bubnica e varola. Na segunda fase do movimento, correspondente ao perodo 1910 1920, aidia do saneamento rural adquire mais fora. A nfase no saneamento dos sertes dada em razo da descoberta deum Brasil cujo interior vivia abandonado e doente. A este respeito, ver HOCHMAN, Gilberto.A Era do saneamento,p. 60-61.10 Em fevereiro de 1918, ocorre a criao da Liga Pr-Saneamento do Brasil, em seo pblica na SociedadeNacional de Agricultura. Fruto da progressiva sensibilizao que o iderio sanitarista causa na opinio pblica,

    inicialmente a Liga era coordenada por Belisrio Penna.11CHARTIER, Roger.A histria cultural entre prticas e representaes, p. 18.

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    transformassem em crises epidmicas de maiores propores. Portanto, a gesto federal da sade

    tinha duas caractersticas bsicas nesse momento: seu carter fragmentrio e espordico.12

    As experincias de transformao social no nascem do nada histrico, muito menos

    so construdas pelo protagonismo individual dos agentes polticos. Sendo assim, no

    acreditamos que o apelo pblico alcanado pelo movimento sanitarista da Primeira Repblica

    nasceu do da noite pro dia, muito menos que a Nacionalizao desses servios respondeu

    exclusivamente inteno vanguardista de nossas lideranas polticas.

    Esta conjuntura social esteve, em parte, relacionada ao envolvimento de mdicos,

    sanitaristas e outros intelectuais com questes mais amplas sobre a reforma da ordem social e a

    construo de uma Nao mais moderna e desenvolvida. O seu diagnstico era claro: a doena e

    o abandono poltico dos sertes13 eram os maiores entraves formao de um povo saudvel e

    educado, bem como de um pas prspero e moderno. Mais claro do que isso, s o remdio

    prescrito para os males do pas: educao e sade de qualidade para a populao.

    Assim, a idia da construo de uma nao prspera e moderna, condizente com o

    gigante pela prpria natureza de seu hino nacional, esbarrava na constatao de um Brasil mrbido

    no interior, prejudicado pelas disputas oligrquicas, cuja populao se destacava negativamente

    pela doena e pelo analfabetismo. Principalmente no final da dcada de 1910, o movimento

    sanitarista alcana enorme visibilidade no cenrio brasileiro. Como destaca Nsia Trindade a este

    respeito:

    [...] possvel afirmar que a campanha transformou em problema social, tema dedebate pblico, uma questo que at aquele momento encontrava-se em focoespecialmente nos peridicos mdicos a doena e o abandono como marcasconstitutivas das reas rurais do Brasil.14

    Dois aspectos respondem por esta politizao do saneamento. Em primeiro lugar, a

    campanha sanitarista ocorreu num contexto favorvel s ideologias de construo nacional,

    sobretudo as sintonizadas com os problemas da sade pblica, como demonstram autores como

    12Sobre este aspecto ver: FARIA, Lina Rodrigues de.; SANTOS, Luiz Antonio de Castro.A reforma sanitria no Brasil:ecos da Primeira Repblica. Bragana Paulista: EDUSF, 2003.13Em Pouca Sade, muita Sava, os males do Brasil so , Nsia Trindade e Gilberto Hochman lembram que no discursodos mdicos e higienistas do perodo, o termo serto significa uma categoria social e poltica e no um simplesenquadramento espacial, definido no pela geografia, mas pela presena da doena somada ausncia dos poderespblicos. Ver: LIMA, Nsia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Pouca Sade, muita Sava, os males do Brasil so...Discurso mdico-sanitrio e interpretao do pas. Cincia & Sade Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 317, abr/jun.2000.14LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil, p. 108.

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    Gilberto Hochman, Nsia Trindade e Luiz Antnio de Castro Santos 15. No ambiente da 1

    Grande Guerra, e tambm nos anos que se seguiram a ela, temas como alistamento militar,

    imigrao, controle sanitrio, higiene, soberania nacional e construo da nacionalidade estiveram

    em pauta e favoreceram os debates sobre determinismo geogrfico e melhoria racial, nos quais a

    sade pblica desempenhava papel relevante.

    Em segundo lugar, a (re)descoberta dos sertes e a campanha pelo saneamento do

    Brasil sensibilizaram os grupos dirigentes sobre o que Gilberto Hochman definiu como

    Interdependncia Sanitria16, ou o carter contagioso da doena que pega. Este aspecto

    tornava os microorganismos patognicos uma espcie de nivelador social, capaz de afetar

    qualquer indivduo independente de sua condio socioeconmica.

    Mesmo em melhor situao para cuidar da prpria sade, os membros mais abastados

    da sociedade foram sensibilizados pelas representaes mdico-sanitrias de que seus esforos

    poderiam resultar em nada, caso no fossem melhoradas as condies de vida da populao mais

    pobre. Abandonadas prpria sorte no interior do pas, oprimida pelo analfabetismo, pelos

    vermes e pelos insetos vetores de doenas, esta parcela enferma da populao brasileira

    preocupava as elites em dois sentidos: representavam um entrave aos seus projetos de

    desenvolvimento nacional e um risco sade coletiva devido ao carter contagioso das doenas

    que a assolavam.

    Um dos fatores responsveis pela politizao da sade pblica foi que os mdicos

    higienistas engajados na campanha pelo Saneamento dos Sertes refutaram as ligaes entre as

    doenas que combatiam e a origem socioeconmica das populaes, pois Enfaticamente

    argumentavam que todos poderiam contrair a doena, que no respeitava limites de raa ou

    condio social.17

    inegvel que as representaes dos sanitaristas contriburam para que a opinio

    pblica e as autoridades polticas atentassem para os problemas de educao e sade que

    maltratavam grande parte da populao brasileira, mas que, sobretudo, inviabilizavam os projetos

    15 Cf. HOCHMAN, Gilberto. A Era do saneamento; LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil; LIMA, NsiaTrindade; HOCHMAN, Gilberto. Pouca Sade, muita Sava, os males do Brasil so; e CASTRO SANTOS, Luiz Antniode. O pensamento sanitarista na Primeira Repblica: uma ideologia de construo da nacionalidade. Dados, Revista deCincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 193-210, 1985.16Nossa leitura do conceito de interdependncia sanitria dialoga com as formulaes de Gilberto Hochman a esterespeito. Trata-se da dependncia social presente nas relaes humanas em razo do carter transmissvel dasepidemias e do consumo coletivo dos males pblicos gerados pela doena que se pega. HOCHMAN, Gilberto. A

    Era do Saneamento.17LIMA, Nsia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Pouca Sade, muita Sava, os males do Brasil so, p. 319.

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    nacionais de elites interessadas em promover o progresso do pas para dele tirar o mximo

    proveito. Sim, pois, como esclarece Chartier:

    As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem

    universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelosinteresses de grupo que as forjam. Da, para cada caso, o necessrio relacionamentodos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza.18

    Alm do mais, como nos lembram os j mencionados Castro Santos e Lina de Faria, em

    certo sentido, a reforma sanitria da Primeira Repblica no envolveu, a rigor, lutas sociais pela

    melhoria nas condies da sade. Ou seja, ela no envolveu a participao direta da populao

    menos abastada (justamente a mais prejudicada pela precariedade dos servios) na formulao de

    projetos em defesa dos direitos da sade. Contrariamente, ela parece ter seguido o tom da famosa

    modernizao conservadora do nosso pas, configurando um projeto de reforma social vindode cima, que no afetou toda a sociedade, e que significou muito mais a modernizao de

    algumas esferas da vida social, do que um amplo processo de modernidade ou mudana

    estrutural mais ampla.19

    Belisrio Penna foi um dos principais divulgadores da campanha Pr-Saneamento do

    Brasil. Em A Era do Saneamento, Gilberto Hochman estabelece entre os anos de 1916 20 o

    marco cronolgico que emoldura a politizao de temas como a relao entre doena, sociedade

    e poltica, a reforma sanitria e o saneamento do Brasil, que progressivamente foram inundandoas pginas de jornais e peridicos nacionais e sensibilizando a opinio pblica quanto aos seus

    impactos sobre o futuro do pas.20

    Segundo Hochman, o significado desse marco cronolgico dado por quatro eventos

    que repercutiram bastante sobre a opinio pblica brasileira. O primeiro foi a repercusso do

    pronunciamento de Miguel Pereira, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e

    presidente da Academia Nacional de Medicina. Feito em outubro de 1916, qualificava o Brasil

    como um imenso hospital. 1916 tambm foi o ano de publicao do relatrio da expediomdica-cientfica do Instituto Oswaldo Cruz, chefiada por Belisrio Penna e Arthur Neiva em

    1912. Vieram ento os artigos de Belisrio Penna sobre sade e saneamento, publicados na

    imprensa carioca entre 1916 e 1917 depois reunidos no livro Saneamento do Brasil. Por fim,

    temos as atividades da Liga Pr-Saneamento do Brasil entre os anos de 19181920.

    18CHARTIER, Roger.A histria cultural entre prticas e representaes, p. 17.19 FARIA, Lina Rodrigues de.; SANTOS, Luiz Antonio de Castro. A reforma sanitria no Brasil: ecos da PrimeiraRepblica.20HOCHMAN, Gilberto.A Era do Saneamento, p. 63.

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    Contudo, as representaes construdas pelo mdico mineiro sobre Brasil, foram lidas e

    apropriadas pela opinio pblica e pelas elites do perodo no (exclusivamente) da forma como

    preconizava o seu autor. Isto porque, como nos indicou Roger Chartier, o ato da leitura constitui

    uma prtica criativa que inventa significados e contedos singulares, no redutveis s intenes

    dos autores dos textos ou dos produtores dos livros 24. De forma semelhante, podemos imaginar

    a apropriao criativa que os interlocutores do espao sanitrio realizaram das informaes que a

    Penna de Belizrio fazia circular no ambiente intelectual brasileiro, na medida em que a

    apropriao consiste no que os leitores:

    [...] fazem com o que recebem, e que uma forma de inveno, de criao e deproduo desde o momento em que se apoderam dos textos ou dos objetos recebidos.Desta maneira, o conceito de apropriao pode misturar o controle e a inveno, pode

    articular a imposio de um sentido e a produo de novos sentidos.25No entanto, nem tudo liberdade no mundo da leitura. A apropriao resulta do

    encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Os textos no possuem um sentido

    estvel. Contudo, seu significado construdo no terreno da negociao entre a proposio do

    autor e apropriao do leitor. Isso porque cada autor insere nos seus enunciados os protocolos

    de leitura 26. Assim, nossa anlise apia-se na interpretao de Roger Chartier, segundo a qual

    cada leitor, a partir de suas prprias referncias, individuais ou sociais, histricas ou existenciais,

    d um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado aos textos de que se

    apropria.27

    Assim, mesmo vindo de Belisrio, um importante interlocutor do espao sanitrio

    brasileiro, as denncias sobre a situao precria da sade pblica e as propostas de

    nacionalizao destes servios, seriam apropriadas por nossa elite intelectual e poltica a partir de

    suas referncias scio-histricas e interesses pessoais. Tanto que, j em 1916, no relatrio da

    expedio que liderou com Arthur Neiva, Penna prope a criao de um Ministrio da Educao

    e Sade, visando claramente centralizar a gesto de polticas pblicas para esses setores nas mos

    do governo federal. Alm disso, essa sua proposta buscava aproximar os campos de saber mdico

    e pedaggico num esforo conjunto para transformar o Brasil atravs da Educao Sanitria. Em

    24 CHARTIER, Roger. Textos, impresso, leitura. In: HUNT, Lynn (org.) A nova histria cultural. So Paulo:Martins Fontes, 2001, p. 214.25CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria.Conversas de Roger Chartier com Carlos A. Anaya, Jess A.R., Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001, p. 67.26Para Chartier, os protocolos de leitura consistem de senhas, explcitas ou implcitas, que um autor inscreve em suaobra a fim de produzir uma leitura correta dela. CHARTIER, Roger. Do Livro Leitura. In: CHARTIER, Roger(Org.). Prticas de leitura. 2 ed. So Paulo: Estao Liberdade, 2001, p 96.

    27CHARTIER, Roger. Histria cultural: entre prticas e representaes, p. 20.

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    1918, ele afirmava que: no h nenhuma preocupao de defesa sanitria em todo o Brasil, que

    nesse particular est atrasado em muitos sculos.28

    Os pedidos de Belisrio Penna, como os de outros sanitaristas, pela nacionalizao dos

    servios de sade ainda no seriam satisfeitos nos meados da dcada de 1910. Contudo, eles

    estavam bem mais prximos de alcanar os seus objetivos do que os seus colegas higienistas do

    final do sculo XIX. Mas no nos enganemos: a centralizao da sade brasileira foi construda

    com muita negociao poltica e lutas de representaes.29

    O caminho at a nacionalizao da sade foi longo. Junto com outros publicistas da

    causa sanitria, Belisrio gastou sua pena para defend-la. Se o formato da reforma no legou

    uma Pasta Ministerial30 com autonomia tcnica e competncia jurdica para gerenciar todo o

    servio de sade, a regulamentao de um Departamento Nacional de Sade Pblica 31, com

    maiores poderes que a antiga Diretoria-Geral de Sade Pblica, foi lida por Belisrio como uma

    vitria, um passo importante no caminho da gradual nacionalizao da sade brasileira.

    J para o final da dcada de 1910, as transformaes institucionais da Repblica,

    proporcionadas em parte pelas rendas do caf, pela urbanizao e pela imigrao europia no sul

    do pas, associadas s representaes dos sanitaristas, contribuem para que os servios de sade

    pblica sofressem uma gradual centralizao. Alm disso, o surgimento da peste bubnica e da

    febre amarela no Distrito Federal, somado incapacidade das agncias de sade pblica para lidar

    com estas epidemias, acirra o debate em torno da reforma sanitria e da nacionalizao dos

    servios de cura.

    28PENNA, Belisrio. Saneamento do Brasil, p. 93.29 Segundo Roger Chartier, as representaes sociais no so constituem discursos neutros. Sua anlise implicapens-las como estando sempre em estado de concorrncia em termos de poder e dominao. Por isso, As lutas de

    representaes tem tanta importncia como as lutas econmicas para compreender os mecanismos pelos quais umgrupo impe, ou tentar impor, a sua concepo do mundo social, os valores que so os seus, e o seu domnio.CHARTIER, Roger. Histria cultural: entre prticas e representaes, p. 17.30Em 1916, no relatrio da expedio que liderou com Arthur Neiva, Penna prope a criao de um Ministrio daEducao e Sade, visando centralizar a gesto de polticas pblicas para esses setores nas mos do governo federal.Essa proposta, alm de defender a nacionalizao da sade, buscava aproximar os campos de saber mdico epedaggico num esforo conjunto para transformar o Brasil atravs da Educao Sanitria. Contudo, percebendoque este parecia pouco vivel politicamente, j em 1919, Penna prope a criao de um Departamento Nacional deSade, com autonomia tcnica, amplas atribuies e vasta competncia jurdica para gerir a sade pblica brasileira.PENNA, Belisrio. Discurso Pronunciado pelo Dr. Belisrio Penna na Sededa Sociedade Nacional de Agricultura,a 11 de fevereiro de 1919, em Sesso Comemorativa do 1 Aniversrio de Fundao da Liga Pr-Saneamento doBrasil. Sade, Rio de janeiro, v. 2, n. 2, p. 218230, 1920.31Em 2 de janeiro de 1920, foi aprovado o Decreto n 3.987, que dispe acerca da reorganizao dos servios de

    sade pblica no Brasil por intermdio da criao do DNSP. J em 15 de setembro de 1920, foi sancionado oDecreto n 14.354, que aprova o regulamento desta instituio.

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    Nesse processo se destacam a circulao de representaes que tinham na construo de

    um pas prspero e moderno seu contedo central. Na discusso sobre os destinos do Brasil, a

    idia de reforma na sade e expanso da educao constitui condio de possibilidade. Segundo

    Castro Santos e Lina de Faria:

    Esses lemas de progresso social e racial, que colocavam a sade entre as prioridadesnacionais, eram difundidos pelo Estado s elites oligrquicas particularmente selites cafeicultoras, e criavam um ambiente propcio s reformas preconizadas, desde apassagem do sculo 19, por higienistas de renome.32

    Desde a criao da Diretoria-Geral de Sade Pblica (DGSP)33, passando pela reforma

    sanitria da Capital Federal34, pela criao do Servio de Profilaxia Rural35, at a criao e

    regulamentao do Departamento Nacional de Sade Pblica (DNSP), no governo Epitcio

    Pessoa, a sociedade brasileira participa do processo de nacionalizao dos servios de sadepblica. A criao do DNSP, dirigido desde a sua fundao at 1930 por Carlos Chagas, significa

    um novo tempo para a sade brasileira. Ela inaugura uma nova postura da poltica nacional no

    trato de questes envolvendo a sade, a higiene e educao sanitria.

    Com o DNSP, houve a modernizao e a ampliao dos servios de sade no Brasil,

    resultado da centralizao administrativa da rea na esfera federal, o que aumentou a circulao

    de informaes sobre sade e educao sanitria bem como o acesso da populao a estes

    servios pblicos. A nacionalizao da sade e a ampliao da reforma sanitria so indcios deuma nova sensibilidade histrica que passa a representar o binmio educao/sade como

    problema de segurana nacional. Nas palavras de Belisrio Penna:

    Mais do que proteger as fronteiras e as costas, a defeza nacional consiste [...] nainstruo e educao do povo, no aperfeioamento e vigor da raa. [...] Defender anao sane-la, e sane-la povo-la, enriquec-la, moraliz-la, tornar habitvelo seu solo, curar a sua gente, instru-la e ensin-la a se defender de inimigosmicroscpicos, agentes causais de doenas degeneradoras e degradantes da raa,contra os quais a higiene moderna dispe de processos de xito seguro e garantido.36

    Mas, como regenerar o povo brasileiro? Como resgat-lo de uma situao toprecria, na qual ao perigo constante das endemias somava-se a misria moral e o descaso

    poltico? Nessa poca, a idia de construir uma nao forte e moderna, passava por expandir a

    educao e melhorar a sade oferecida ao povo. Nesse contexto, percebemos a aproximao

    32FARIA, Lina Rodrigues de.; SANTOS, Luiz Antonio de Castro. Reforma Sanitria na Primeira Repblica, p. 19.33Em fevereiro de 1897 durante o governo Prudente de Morais.34Realizada Durante o governo Rodrigues Alves sob a liderana do sanitarista Oswaldo Cruz, ela foi contempornea instituio de um amplo regulamento sanitrio.35Em 1918, no governo Venceslau Brs.36PENNA, Belisrio. Revista de sade Hygia. S/d.

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    Leonardo Querino Barboza Freire & Iranilson Buriti de Oliveira

    Temporalidades Revista Discente UFMG

    entre os campos mdico e pedaggico nas aes concretas da poltica republicana e nas

    representaes de intelectuais e reformadores sociais que, como Belisrio Penna, acreditavam que

    A educao uma fora to extraordinria, e o exemplo tem um poder de sugesto to intensas

    que so por si ss, suficientes, muitas vezes, para destruir nos filhos as ms qualidades adquiridas

    pelos Pais.37

    Ao falar de qualidades ruins adquiridas hereditariamente, Belisrio Penna parece dialogar

    com o discurso da eugenia. O pensamento eugnico, que se desenvolveu desde as ltimas

    dcadas do sculo XIX, teve seu auge no perodo entre as duas guerras mundiais. Ele defende

    que a origem dos males humanos, sejam eles fsicos ou morais, hereditria. O conceito de

    degenerao central no pensamento eugenista. Degenerados, nessa concepo, so todos os

    indivduos que apresentam defeitos no aspecto fsico, cognitivo e moral. A eugenia visava, ento,o aperfeioamento dos seres humanos, atravs do aprimoramento de traos hereditrios feito

    pelas intervenes cientficas, mdicas e culturais.38

    O grande problema a ser resolvido pela intelectualidade nacional era que o pensamento

    eugnico vinculava-se fortemente ao racismo cientfico em moda na Europa durante o final do

    sculo XIX. Esta concepo interpretava a noo de raa como uma categoria social em vez de

    reconhec-la enquanto aspecto biolgico. Sendo assim, os indivduos eram classificados em uma

    determinada categoria scio-racial dependendo da cor de sua pele ou de suas origens tnicas.Afirmava-se, assim, a superioridade branca e a degenerao natural das pessoas no-brancas.

    Contudo, outro aspecto agravaria ainda mais a questo:

    No Brasil, o processo de formao de uma identidade nacional esteve fortementeassociado ao debate sobre a diversidade tnica, ou, se quisermos ser fiis aos termosutilizados no final do sculo XIX e incio do sculo XX, aos temas da raa e damestiagem.39

    O problema estava em que, a mestiagem, algo caracterstico da formao scio-

    histrica do povo brasileiro, era representada por tais discursos como um entrave construo deum pas prspero. Como, ento, superar os obstculos da herana colonial e promover a

    modernizao do pas, sem prescindir de uma populao notadamente mestia em sua maioria. A

    soluo de nossa elite intelectual foi realizar um deslocamento estratgico, como descrito por

    Jerry Dvila:

    37 PENNA, Belisrio. Instruco, Educao e Hygiene. Conferncia proferida na Escola Pblica de Pavuna. Rio deJaneiro, 1925.

    38Cf. DVILA, Jerry. Diploma de brancura. Poltica social e racial no Brasil 1917-1945. So Paulo: EDUNESP, 2007. 39LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil, p. 27.

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    [...] por volta da segunda dcada do sculo XX, as elites comearam a tentar escaparda armadilha determinista que prendia o Brasil ao atraso perptuo por causa de suavasta populao no-branca. Em substituio, abraaram a noo de que adegenerao era uma condio adquirida e, portanto, remedivel. A negritudeconservava todas as suas conotaes pejorativas, mas os indivduos podiam escapar categoria social da negritude por meio da melhoria de sua sade, nvel de educao ecultura, ou classe social.40

    O carter mais malevel desta definio de degenerao confere expanso dos servios

    de educao sanitria um significado especial. Condenado pela mistura de raas, o pas poderia

    ser absolvido pela educao sanitria. Segundo Dvila, a possibilidade de modernizar o pas

    atravs do embranquecimento cultural da populao brasileira levou nossos intelectuais e

    reformadores sociais a realizarem a defesa da interveno estatal na construo de instituies

    que cuidassem da educao e da sade pblicas, representadas como elementos prioritrios para

    viabilizar este sonho de modernidade: A preocupao com a redeno do Brasil reuniu a

    educao e a sade em um empenho comum. Tornou menos rgidas as distines entre diferentes

    profisses e disciplinas cientficas.41

    Belisrio Penna, assim como outros sanitaristas que participaram da campanha pelo

    saneamento do Brasil, se afastou dos enunciados que relacionavam a ocorrncia de doenas

    origem racial da populao brasileira. Sua escrita faz circular representaes que salientavam que

    todos, independentes de raa ou grupo social, estavam sujeitos a contrair doenas. Seu discurso,

    portanto, rejeitava a noo de que a causa do atraso brasileiro era a suposta inferioridade tnica

    de seu povo. Com sua Penna, Belisrio representa como o grande entrave ao desenvolvimento do

    pas o descaso poltico e a falta de educao e sade do povo mais pobre. Sendo assim, sua

    interpretao dos problemas brasileiros vincula-se mais s questes polticas e sociais do que s

    reflexes sobre a hierarquia das raas.

    Por ser um problema de ordem social, a modernizao do pas exige interveno poltica

    e engajamento intelectual. Por ser causado por fatores sociais, e no biolgicos, a degenerao do

    povo pobre do Brasil que impede a prosperidade do pas, deixa de ser inseparvel de nossa

    histrica mestiagem, podendo ser contornada at em mdio prazo. Para isso, preciso trabalho

    duro e bastante esforo das autoridades polticas. preciso, sobretudo, educar o povo para que

    no adoea ou se degenere moralmente; preciso dar-lhe melhores condies de vida e sade,

    para que possa trabalhar produtiva e disciplinarmente para a construo de um pas prospero e

    saudvel:

    40DVILA, Jerry. Diploma de brancura. Poltica social e racial no Brasil 1917-1945,p. 26.

    41DVILA, Jerry. Diploma de brancura, Poltica social e racial no Brasil 1917-1945,p. 60.

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    geogrfico e racial que condenavam o pas em razo de sua natureza tropical e herana colonial 45.

    Foi seguindo essa linha que, em vrios de seus escritos, Belisrio assumiu a identidade46 do

    intelectual que pretende conhecer o pas de perto, cientificamente, para s ento se engajar na sua

    transformao por meio do saneamento:

    Quanto mais viajo terras do Brasil, mais me certifico do pouco que ele conhecidodos brasileiros, e mais se fortalece a minha convico de que o combate, pelaeducao higinica do povo e pelo saneamento da terra, [...] constitui a chave [...] daprosperidade real e da grandeza efetiva da nao.47

    No que Belisrio Penna tenha sido um fator determinante, uma condio de

    possibilidade da nacionalizao dos servios de sade e da campanha pela educao sanitria na

    Primeira Repblica. De outro modo, consignamos a possibilidade de refletir sobre essas vivncias

    histricas pensando as representaes de Belisrio Penna como um eixo interpretativo entrevrios outros possveis, afinal[...] cada indivduo representa a reapropriao singular do universo

    social e histrico que o circunda.48

    Os problemas de nossas pesquisas histricas dialogam com as inquietaes da sociedade

    em que vivemos. Este estudo permite problematizar as representaes ainda hoje construdas

    sobre o carter redentor da educao, demonstrando a dimenso social e poltica que est

    visvel nesses enunciados. Percebemos, assim, que em perodos diferentes, os meios educativos

    para construir uma nacionalidade moderna e redimida vo sendo ressignificados de acordocom as condies scio-histricas de cada poca.

    Recebido: 04/11/2011Aprovado: 17/02/2012

    45Cf. LIMA, Nsia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Pouca Sade, muita Sava, os males do Brasil so.46Nossa perspectiva filia-se noo de identidade desenvolvida por Stuart Hall, para quem a identidade do sujeitono fixa, mas aberta a identificaes conforme as situaes e interlocutores sociais com que interagemcotidianamente. Alm disso, dialogamos com as formulaes de ngela de Castro Gomes e Pierre Bourdieu sobre ailuso biogrfica de uma trajetria linear e de uma identidade estvel nas produes de si. HALL, Stuart. Asidentidades culturais na ps-modernidade. 10 ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2005; GOMES, ngela de Castro. Escrita de si,escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004; BURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica In: FERREIRA, Marieta M;

    AMADO, Janaina. Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.47PENNA, Belisrio. Impresses de Viagem Brasil Desconhecido. Flagelos nacionais prova e contraprova, s/d.Manuscrito Fundo BP, COC.48 NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana Maul de. (orgs). Uma histria Brasileira das doenas.

    Braslia: Paralelo 15, 2004, p. 323.