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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA AUTORA: FABÍOLA LANGARO ORIENTADORA: ZULEICA PRETTO EXAMINADOR: LUCIANA SARAIVA BIGUAÇU 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA

CLÍNICA

AUTORA: FABÍOLA LANGARO

ORIENTADORA: ZULEICA PRETTO

EXAMINADOR: LUCIANA SARAIVA

BIGUAÇU

2008

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TÍTULO: RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM

PSICOLOGIA CLÍNICA

RESUMO: Este relatório descreve as atividades realizadas em Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, requisito obrigatório para a graduação em Psicologia em uma Universidade do Estado de Santa Catarina. As atividades desenvolvidas foram definidas como Psicoterapia Individual e objetivaram o atendimento clínico gratuito à população no contexto de uma Unidade Básica de Saúde. Os atendimentos ocorreram em salas disponibilizadas pela Unidade, que contavam com condições apropriadas para as atividades de psicoterapia e que garantiram as condições de sigilo necessárias ao trabalho, da mesma forma ocorre para os demais profissionais da saúde atuantes naquele local. Ao longo de um ano e meio, foram atendidos nove pacientes, entre eles sete crianças entre 6 e 13 anos e dois adultos – um homem e uma mulher – de, respectivamente 27 e 28 anos. A maioria destes pacientes veio encaminhada por profissionais de outros centros de saúde ou do Conselho Tutelar do Município. As demandas foram desde queixas de depressão, ansiedade, medo e agressividade, até casos de violência sexual. Tendo em vista que os atendimentos foram desenvolvidos a partir da abordagem existencialista fenomenológica, o processo psicoterápico objetivou a alteração da personalidade dos sujeitos, para que se tornassem capazes de transcender suas dificuldades. Assim, nas situações em que houve engajamento, por parte dos pacientes, este objetivo pôde ser alcançado, conforme explicitado através do principal estudo de caso descrito neste relatório. Para o atendimento de crianças, foi considerado fundamental o acompanhamento e o engajamento de seus pais e/ou responsáveis no processo. Nos casos em que isto não foi verificado, a criança não sentiu-se motivada a dar continuidade à psicoterapia e desistiu dos atendimentos. Como considerações acerca do trabalho, destaca-se que, pela diversidade de demandas que se apresentam a clínica, há a possibilidade de realizar um trabalho amplo, de psicoterapia, de orientação e também de envolvimento da família no processo, requerendo que o estagiário desenvolva instrumentos e ferramentas que dêem conta dessa diversidade. Por outro lado, a abordagem fenomenológica existencialista, ao não reduzir o paciente a queixa nem a um diagnóstico, mas compreendê-lo em sua história e relações que estabelece com a exterioridade, permite abarcar a diversidade dos fenômenos a serem trabalhados, considerando o homem como aquele que se move para o futuro e que o faz em direção àquilo que ainda não é e que ainda pode realizar. Como considerações acerca da inserção do psicólogo em serviços de saúde pública, destaca-se que há ainda uma construção a ser realizada neste campo de atuação, no sentido de organizar os profissionais das diversas áreas da saúde para uma comunicação efetiva e eficaz. Além disso, há a necessidade de compartilhar saberes que são característicos da Psicologia, a fim de instrumentalizar outros profissionais para que realizem encaminhamentos a partir de avaliações mais consistentes, evitando o acúmulo de pacientes em lista de espera por atendimento. Por outro lado, considera-se que o exercício da psicoterapia enquanto serviço gratuito a uma comunidade predominantemente inserida em classes populares possibilitou que a Psicologia tenha chegado até pessoas que de outras formas não teriam acesso a esse serviço.

PALAVRAS-CHAVE: Atenção Básica; Psicologia Clínica; Existencialismo.

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RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA

CLÍNICA

AUTORA: FABÍOLA LANGARO

ORIENTADORA: ZULEICA PRETTO

EXAMINADOR: LUCIANA SARAIVA

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1 INTRODUÇÃO

Este relatório refere-se às atividades realizadas em Estágio Supervisionado em Psicologia

Clínica, requisito obrigatório para a graduação em Psicologia em uma Universidade do Estado de

Santa Catarina.

O estágio foi realizado entre fevereiro de 2007 e julho de 2008, em uma Unidade Básica de

Saúde (UBS), localizada em um município do Estado de Santa Catarina, tendo a carga de 08 horas

semanais e 1 hora/aula semanal para a realização da supervisão acadêmica. As atividades

desenvolvidas foram definidas como Psicoterapia Individual e objetivaram o atendimento clínico

gratuito à população da lista de espera de atendimento psicológico à comunidade residente próxima

àquela UBS. Os atendimentos aconteceram todas às terças-feiras, no período matutino, orientadas a

partir da abordagem Fenomenológica Existencialista.

A Unidade Básica de Saúde, local do estágio, presta serviços de atenção primária, de

prevenção e promoção em saúde e tem sua organização e funcionamento da orientados pelos

princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Tendo sido criado conforme a Constituição Federal

promulgada no ano de 1988, o SUS “não é um serviço ou uma instituição, mas um Sistema que

significa um conjunto de unidades, serviços e ações que interagem para um fim comum” (BRASIL,

2003).

O SUS tem como meta criar políticas públicas de saúde que integrem o campo de ação

social do Estado orientado para a melhoria das condições de saúde da população e dos ambientes

natural, social e do trabalho. Sua tarefa específica em relação às políticas públicas da área social

consistiu em organizar as funções públicas governamentais para a promoção, proteção e

recuperação da saúde dos indivíduos e da coletividade. Ainda, sua implantação é de

responsabilidade da União, dos Estados e municípios, tendo como princípios a universalidade (a

saúde é direito de todos e dever do Estado), a integralidade (o ser humano é entendido como um

todo e precisa ser atendido por um sistema que abranja este todo), e a eqüidade no acesso às ações e

serviços.

No momento em que o SUS começou a ser implantado no Brasil, as ações em saúde,

conforme orientação da OMS (1964), precisariam ser direcionadas para o foco da promoção de

saúde, compreendendo que, conforme cita Gonçalves (1997, apud KAHHALE, 2003, p. 167),

“saúde envolve uma atitude ativa de fazer face às dificuldades do meio físico, psíquico e social, de

entender sua existência e, portanto, de lutar contra elas” e que, para promover a saúde da população,

seria necessário considerar saúde como um projeto social, significando “a exploração de novas

possibilidades pelas vontades humanas, por meio da oposição da imaginação ao que existe, em

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nome de algo radicalmente melhor para a humanidade” (SOUZA, 1999 apud KAHHALE, 2003, p.

168). Tentando criar ações voltadas para a participação da comunidade, analisando a história social

das doenças, surgiu ainda a necessidade de orientar as ações a partir do estudo do perfil

epidemiológico dos processos de saúde e doença, pois a partir dele ter-se-ia parâmetros de

enfretamentos das prioridades em saúde e seria possível não ceder aos postulados teórico-

medotológicos e práticos da saúde pública oficial e da medicina hegemônica (KAHHALE, 2003).

Foi neste contexto que a Psicologia teve sua inserção nas Unidades Básicas de Saúde, tendo

ocorrido através de um processo de busca por pensar a saúde como um processo coletivo,

possibilitando o seu controle social. Segundo Kahhale (2003, p. 184) “a inserção do psicólogo nos

serviços públicos de saúde ocorre no momento em que, ao mesmo tempo, há um movimento geral

das nações e, especificamente no Brasil, um movimento no interior da própria psicologia com o

desenvolvimento da psicologia social comunitária”. Neste sentido, o trabalho do profissional neste

setor envolve “um processo de recriar sentidos e refazer projetos de vida, o que permitirá

apropriação da subjetividade individual e social [...]” (KAHHALE, 2003, p. 188).

Portanto, o psicólogo na rede básica de saúde atuaria na organização dos serviços de saúde

preconizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que pressupõe uma rede de serviços integrada e

regionalizada, composta neste primeiro nível por unidades básicas de saúde (responsáveis pelo

atendimento primário). Seguindo a hierarquização dos atendimentos, conforme diretrizes do SUS,

estariam a rede de ambulatórios (atenção secundária) e rede de hospitais cujos níveis vão desde as

ações preventivas ou remediativas de baixa complexidade (na atenção primária) às ações

especializadas, que requerem seguimento (atenção secundária) até as ações especializadas

específicas das situações hospitalares (atenção terciária).

Conforme lembra Kahhale (2003), as ações em saúde, principalmente aquelas que estão

relacionadas à sua promoção (realizada fundamentalmente nas unidades básicas de saúde), precisam

construir intervenções diretas nas comunidades, visando desenvolver estratégias pessoais e coletivas

de enfrentamento das dificuldades relacionadas aos processos de saúde/doença. Isso porque, como

cita Kahhale (2003, p.167),

saúde não é dada, mas é uma conquista de cada um, da comunidade e da sociedade em geral. Envolve uma ‘atitude ativa de fazer face às dificuldades do meio físico, psíquico e social, de entender sua existência e, portanto, de lutar contra eles’. Viver da melhor forma possível dentro da limitação implica em ser ativo e não conformado.

A partir da compreensão de que saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio

e que o sujeito sadio não foge dos problemas causados por alterações de seus hábitos, tem-se que

alcançar um estado de saúde significa ir busca da capacidade de superar crises, não só orgânicas,

mas psicológicas e sociais, para instaurar uma nova organização na vida dos indivíduos

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(CANGUILHEM, 1982). Portanto, a partir desta perspectiva, o trabalho de psicoterapia individual

desenvolvido nesse campo de estágio teve como base a compreensão de que ser saudável significa

ser capaz de participar do processo de construção da organização de eventos que acrescentem e

garantam qualidade à sua vida e, sobretudo, ao gerenciamento dela, na autoria e assunção da

responsabilidade por suas escolhas e na compreensão de uma abordagem biopsicossocial em saúde.

Considerando, ainda, que a psicoterapia na abordagem existencialista fenomenológica tem

como objetivo a alteração da personalidade, para que o indivíduo se instrumentalize em sua ação no

mundo, os processos de psicoterapia desenvolvidos neste estágio tiveram como fim último que, ao

final do processo psicoterápico, os indivíduos tivessem se tornado capazes de transcender suas

dificuldades, estando conscientes de que cada escolha que fizessem teria implicação em se projeto-

de-ser. Tendo buscado redefinir este projeto, a psicoterapia visou, finalmente, que cada sujeito

pudesse retomar seu ser em suas mãos, superando dificuldades e viabilizando-os em seus desejo-de-

ser.

A seguir, estão descritas a caracterização do local de estágio, as atividades desenvolvidas e,

finalmente, as considerações finais acerca do trabalho.

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2 CARACTERIZAÇAO DO LOCAL DE ESTÁGIO1

Esta Unidade Básica de Saúde caracteriza-se como um órgão de prestação de ações e

serviços de atenção básica à saúde, com vistas à promoção, proteção, recuperação e reabilitação da

saúde da criança, do adolescente, da mulher, do adulto e do idoso, da comunidade residente na

região cercana à unidade e também à comunidade universitária. Atende em média 2.590 famílias,

com uma população de 9.500 habitantes e funciona diariamente, de segunda à sexta-feira, no

horário das 7:30 às 12h e das 13:00 às 16:30.

Foi inaugurada em 17 de maio de 2002 e suas atividades tiveram início em 3 de junho do

mesmo ano. É um órgão pertencente à Universidade, em que funcionam as áreas de Enfermagem,

Fisioterapia e Psicologia, em parceria com a Secretaria de Saúde do município. Oferece, ainda, os

serviços de odontologia, farmácia básica e de duas equipes do Programa de Saúde da Família2. Os

atendimentos realizados pela Psicologia tiveram início no mês de agosto do ano de sua fundação,

com o trabalho de dois estagiários da Universidade. Este serviço abrange uma área populacional

maior do que aquela atendida pela UBS, recebendo encaminhamentos até mesmo de municípios

vizinhos àquele onde a Unidade está situada.

Sua missão enquanto instituição é a de ser uma clínica de excelência em atenção básica à

saúde, oferecendo serviços multiprofissionais, considerando o ensino, a pesquisa e a extensão como

elementos impulsionadores de uma assistência integral. É, assim, um órgão de extensão para

prestação de ações e serviços de saúde, de forma individual e coletiva, e tem por finalidade atender

a todas as pessoas de sua área de abrangência, indiscriminadamente, além de promover a formação

do profissional da área da saúde, através do desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão.

Os atendimentos dos estagiários de Psicologia ocorrem em salas disponibilizadas pela

Unidade, que contam com mesas e cadeiras apropriadas para as atividades de psicoterapia e que

garantem as condições de sigilo necessárias ao trabalho. Todo o material necessário à realização das

atividades, como papel, canetas, tesoura, cola, brinquedos infantis, jogos, entre outros, são

disponibilizados pela Universidade.

Os encaminhamentos, provenientes de instituições como escolas, centros de saúde e

Conselhos Tutelares, chegam até a coordenadora do local de estágio – psicóloga, professora da

Universidade – e, assim como quando há busca espontânea na Unidade, são registrados em uma

1 Os dados referentes à Unidade Básica de Saúde onde o estágio foi relaizado foram adaptados de seu Relatório Anual, elaborado em Dezembro de 2006 (MATTOS, 2006). 2 O Programa Saúde da Família (PSF) caracteriza-se como um modelo de atenção primária à saúde, que visa a desenvolver a prevenção e a promoção da saúde na comunidade, mediante uma ação assertiva com a população como alternativa a uma estratégia centrada exclusivamente na doença (Brasil, 2002).

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lista de espera por atendimento. Após este momento de acolhimento das queixas, a coordenadora

analisa os casos mais urgentes a serem atendidos prontamente e os repassa aos alunos, de acordo

com suas disponibilidades de horário.

A demanda pelo atendimento psicológico é caracterizada pela diversidade - crianças,

adolescentes, adultos, idosos, mulheres, homens e famílias -, os quais se queixam de problemas de

diferentes ordens, como dificuldades relacionadas à aprendizagem, à escola, às relações familiares,

às relações amorosas, à sexualidade, às doenças, à violência física e sexual e às psicopatologias

variadas. Apesar disso, o maior número de pessoas em lista de espera é de crianças. Em 2007, a

maior quantidade de encaminhamentos à Psicologia referiu-se a crianças entre 2 e 12 anos de idade,

haja vista que, conforme dados referentes ao mês de agosto de 2007, obtidos através da lista de

pacientes que aguardam atendimento psicológico, das 108 pessoas em lista de espera para

atendimento, 101 eram crianças.

Todos os atendimentos realizados são registrados nos prontuários gerais da clínica, nos quais

constam informações referentes aos atendimentos dos demais serviços de saúde disponibilizados

pela Unidade, bem como em pronturários da Psicologia, que permanecem em local apropriado e de

acesso exclusivo a alunos e professores da Universidade. Há, portanto, uma exigência quanto à

atuação ética e comprometida por parte dos estagiários. Destaca-se, assim, que os atendimentos da

Psicologia oferecidos nesta Unidade vem se tornando referência na região próxima à cidade, tanto

pela qualidade com que tem sido realizados como pela escassez de outros locais de atendimento

psicológico gratuito na região.

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3 ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

No mês de fevereiro de 2007 tiveram início as supervisões deste estágio, com o objetivo de

planejar as intervenções a serem realizadas na Unidade Básica de Saúde. Desde então, as

supervisões ocorreram semanalmente, para relato de atendimentos, indicação de leituras,

orientações quanto às intervenções já realizadas e planejamento das sessões seguintes, visto que a

Psicoterapia Individual na abordagem existencialista de Sartre requer que o terapeuta tenha

objetivos traçados tanto para a terapia enquanto processo como para cada sessão em particular.

Assim, tendo os atendimentos ocorridos com base na Psicologia Fenomenológica

Existencialista, tem-se que esta teoria entende o sujeito como sendo um “ser-no-mundo”, o que

significa que ele é dotado de um corpo e de uma consciência, através e pelos quais relaciona-se com

a exterioridade, estabelecendo relações que caracterizam sua existência. A partir do estabelecimento

das relações com o outro, que irão mediar3 suas relações com as coisas, com o tempo e com seu

próprio corpo, é que o sujeito irá constituir sua subjetividade (SARTRE, 1978).

Dessa forma, a concepção de homem que subjaz na teoria sartreana é histórica e dialética,

segundo a qual o sujeito só pode ser compreendido levando-se em consideração sua história

individual e o seu contexto social e cultural, tendo como fundo de sustentação a noção de que ele

“se faz e é feito” no/por esse conjunto de fatores (SCHNEIDER, 2002). Sendo assim, se faz “um

sujeito singular/original, já que pode se fazer diferente do que a história fez dele, e se faz, ao mesmo

tempo, um sujeito universal, já que contém a história da humanidade em si, e se encontra aberto a

uma diversidade de possibilidades em curso” (MAHEIRIE; PRETTO, 2007, p. 2).

Ainda, segundo Sartre (1978), os seres humanos são seres sociais por excelência. A estrutura

social em que o indivíduo está inserido fornece o horizonte no qual encontrará os parâmetros para

construir sua singularidade, apropriando-se ativamente desse conjunto de práticas sociais, de

valores, de conhecimentos, de ideologias, de afetividades, histórica e culturalmente constituídas.

Todas as mediações a que os indivíduos estão sujeitos, na medida em que vão se desenvolvendo,

começam a ser apropriadas de forma reflexiva, constituindo assim, a inteligibilidade que terá de si

mesmo. Ou seja, é através da reflexão que o sujeito estabelece um entendimento de como age,

pensa e sente, sendo esta inteligibilidade construída pela apropriação singular que o sujeito faz dos

3 A idéia de mediação em Sartre está fundamentada no materialismo histórico-dialético, que compreende o desenvolvimento humano como resultado da atividade do indivíduo sobre seu meio. Desta forma, o homem age sobre as condições materiais e históricas em que está inserido, tornando-se produto e produtor da situação objetiva em que se insere e a partir da qual poderá, posteriormente, superar o que está dado. Para realizar esta atividade, o homem utiliza ferramentas mediadoras - as condições materiais, sociais, familiares e existenciais concretas em que está inserido-, que compõem o conjunto de instrumentos que dispõe para alterar sua situação (Sartre, 1978).

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valores, conhecimentos, crenças da sociedade, mediatizados pelas pessoas que o cercam. É essa

dialética entre a subjetividade e a objetividade que determinará a personalização dos indivíduos

(SARTRE, 1978).

Também os indivíduos constituem-se a partir de suas escolhas e ações que estão sempre

relacionadas a um projeto, a um desejo de ser. Suas escolhas cotidianas relacionam-se a uma

escolha fundamental, que o levam a um projeto fundamental, que se caracteriza pela totalização em

curso que é o homem. Sendo este projeto um “desejo de ser”, podemos pensar que é principalmente

a partir deste desejo – que especifica-se em diferentes desejos concretos – que move o homem e que

o orienta no estabelecimento de suas relações com a exterioridade.

Segundo Schneider (2002, p. 192), o projeto de ser

se caracteriza por essa busca do sujeito em realizar plenamente o seu ser, já que o homem está sempre indo em direção ao seu futuro. Não existe indivíduo sem projeto. Mesmo não ter projeto é ainda ter um projeto. (...) Em cada posicionamento, em cada comportamento do sujeito existe uma significação que o transcende; cada escolha concreta e empírica designa uma escolha fundamental, ou seja, a realização do projeto de ser.

Movendo-se em direção a este projeto, fazendo escolhas cotidianas, o homem é condenado a

ser livre, ou seja, ele é responsável pela sua existência na medida em que é-lhe atribuída a

responsabilidade por escolher e agir, lançando-se no mundo (SARTRE, 1978). Sendo um ser que

pode fazer escolhas e as faz em função de um projeto, o homem pode fazer essas escolhas a partir

de uma consciência espontânea ou a partir de uma consciência reflexiva crítica. A consciência

espontânea faz com que o homem fique preso ao “dever ser” e a consciência reflexiva crítica o leva

ao seu verdadeiro desejo de ser.

Esta experiência do “dever ser” é fruto, segundo Sartre (1978), de uma apropriação fatalista

da realidade e de si que o sujeito realiza a partir de uma consciência que é espontânea, alienada, não

posicional de si. Dessa forma, o indivíduo vive como estando destinado, determinado a ser da forma

como se compreende e se vê, tendo a experiência de que esta maneira de ser é sua única

possibilidade. Para sair desta consciência de primeiro grau, em que não toma seu próprio eu como

objeto da consciência, mas reproduz ideologias sociais, é necessário que o indivíduo, através da

reflexão, passe a agir a partir de uma consciência crítica, e que conceba a liberdade como a

condição humana de fazer escolhas e de desejar ser diferente do que suas mediações aparentemente

impõem, isto é, sair do “dever ser” para o “poder ser”.

A partir do momento em que o sujeito passa a ser, ele mesmo, objeto de sua consciência, sai

dessa consciência espontânea e passa para uma consciência que é reflexiva crítica, de segundo grau.

É aí, então, que aparece o Eu [Ego], já que "encontrar-nos-íamos, portanto, na presença, por um

lado, de um acto certo que me permite afirmar a presença do Eu na consciência refletida e, por outro

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lado, de uma recordação duvidosa que tenderia a fazer crer que o Eu está ausente da consciência

irreflectida” (SARTRE, 1994, p. 52). Assim, a reflexão modifica a consciência espontânea, trazendo

o eu como objeto de reflexão, saindo de uma experiência de consciência de primeiro grau para outra

de segundo grau.

Finalmente, para Sartre (1978, p. 19), só há realidade na ação: “o homem [...] só existe na

medida em que se realiza, não é, portanto, nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do

que a sua vida”. As ações são, portanto, concretas e transcendentes e “mesmo as atividades

psíquicas são ações concretas no mundo, participam dele, transformam-no” (SCHNEIDER, 2002, p.

205).

Assim, entendendo que “a significação de qualquer desejo ou escolha empírica sempre

transcende em direção ao projeto de ser” (SCHNEIDER, 2002), e considerando que toda a ação do

homem o leva ao futuro e ao seu projeto, tem-se que, ao mover-se no mundo, o sujeito poderá

encontrar dificuldades que, de alguma forma, podem inviabilizá-lo neste projeto. Nestes momentos

de dificuldades, em que o sujeito vê seu projeto ameaçado, podem surgir as complicações

psicológicas, e que dizem respeito justamente ao movimento do homem no mundo.

Construindo sua personalidade através de um processo de subjetivação da objetividade e

objetivação da subjetividade, o sujeito estará sempre fazendo escolhas em meio a uma realidade que

é cheia de contradições. Nela, escolher algo significa necessariamente renunciar a outra opção.

Assim, segundo Schneider (2002, p. 291) “a ‘complicação psicológica é, portanto, um

acontecimento concreto na vida do sujeito, que o leva a experimentar uma ‘contradição de ser’. A

realidade lhe apresenta diferentes possibilidades, e seja qual for o lado para o qual se dirigir, seu ser

está comprometido”.

Sentindo-se pressionado a escolher diante dessas contradições, o sujeito pode, assim,

experimentar uma angústia diante destes impasses. Esta experiência ocorre em nível de corpo e

consciência, afetando as emoções, os afetos e os desejos do sujeito e que, naquele momento, coloca

todo o seu ser em cheque (SCHNEIDER, 2002). A escolha que o sujeito fizer nesta situação,

portanto, terá necessariamente implicações em seu projeto de ser. Assim, “a complicação

psicológica passa, portanto, pela insegurança na realização do projeto, ou ainda, pela inviabilização

do projeto e do desejo de ser” (idem, p. 295).

Assim, toda complicação psicológica poderá ser compreendida na medida em que seja

possível conhecer a história do sujeito, a história de suas relações e a inteligibilidade que ele

direcionou às ocorrências experienciadas psicofisicamente. Será necessário, ainda, compreender

como este sujeito se fez e de como vem organizando seu movimento no mundo, para que se

demarque o que o levou a sentir-se inseguro quanto à realização de seu projeto. Esse é o caminho

que levará a um trabalho efetivo em psicoterapia, através do qual será possível alterar sua

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personalidade e superar as dificuldades enfrentadas, para que seu projeto seja reorganizado e

retomado (SCHNEIDER, 2002).

É neste momento, então, em que o indivíduo, ao ver-se inviabilizado diante de seu desejo,

pode vir a procurar pela terapia, como fonte de auxílio para a superação de sua condição de

sofrimento. A partir disto, tem-se que, fundamentalmente, os sujeitos que buscaram pelo

atendimento psicológico na Unidade Básica de Saúde, atendidos através deste estágio,

encontravam-se diante de impasses e experimentavam o sofrimento de vivenciar suas possibilidades

de vida como únicas, necessitando de uma mediação crítica para reavaliarem seus projetos-de-ser e,

portanto, refletir sobre suas escolhas.

Em sua maioria, os pacientes atendidos vieram encaminhados por profissionais da saúde e,

ainda, acompanhados de um responsável, pois a maior parte dos casos constou de crianças com

idades entre 6 e 8 anos. A seguir, está descrito detalhadamente um destes casos e, em seguida, estão

sucintamente discutidos os casos de outros pacientes atendidos durante o período de estágio.

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4 ESTUDOS DE CASO

4.1 Estudo de Caso 1

A Psicoterapia Individual com base existencialista tem por objetivo alterar uma

personalidade. “Uma mudança de personalidade implica numa reflexão crítica, a qual possibilita a

resignificação do passado e a reestruturação do futuro”, em que a meta principal é colocar o ser do

sujeito em suas mãos (TRAFANI, 1992, p. 3). Compreendendo que o homem constrói sua própria

história, o existencialismo apreende o indivíduo como um ser capaz de fazer escolhas e que pode

ser instrumentalizado em sua ação no mundo, para que, ao final do processo psicoterápico, se torne

capaz de transcender suas dificuldades e ter seu projeto em suas mãos (PRETTO, 2004).

O processo psicoterápico inicia-se através de um processo de investigação científica, cujo

ponto de partida é sempre a queixa trazida pelo cliente e que visa sempre conhecer a história do

sujeito. Segundo a teoria de Sartre (1978), para conhecer o indivíduo, é preciso investigar os

aspectos da vida concreta do sujeito, e este processo terá início a partir da demarcação de

fenômenos, que são ocorrências das quais o sujeito faz uma inteligibilidade. A partir da

identificação dos fenômenos, será possível estabelecer que variáveis o compõem e como elas se

relacionam entre si, para que o terapeuta consiga elaborar e testar hipóteses, para que o trabalho de

mudança em terapia possa se efetuar.

Desta forma, o método da terapia é sempre fenomenológico e sempre dialético.

Fenomenológico porque compreende o fenômeno como um conjunto de aspectos ou variáveis que

se articulam entre si e que, para estudá-lo, irá tentar compreender quais são essas variáveis e como

elas se articulam. Faz isso “indo às coisas mesmas”, descrevendo os fenômenos. E é dialético

porque compreende o sujeito como singular/universal: há o que o sujeito apreende da realidade,

subjetivando-a, mas há também uma situação em que este sujeito se encontra, ou seja, num

determinado contexto histórico, cultural, social e econômico e que fornece condições específicas

para que ele se constitua (SCHNEIDER, 2002).

Ainda, para que se possa conhecer o projeto de um sujeito, utiliza-se o método sartreano,

que se delineia a partir de três aspectos: o comparativo, o compreensivo e o progressivo-regressivo.

O método sartreano é comparativo porque compara o sujeito com ele mesmo, em seus diferentes

perfis, em diferentes situações e momentos de sua vida. Compara, assim, pensamentos, sentimentos,

ações, atitudes, etc, buscando identificar regularidades, ou seja, variáveis que podem ser

determinantes dos fenômenos, pois se apresentam constantemente presentes, independentemente

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das situações, e que, por isso, precisam sofrer modificação. È também compreensivo ou sintético,

porque busca as sínteses realizadas pelo sujeito, compreendendo sua história “por dentro” e é,

finalmente, progressivo-regressivo, pois “deve situar os aspectos objetivos (época, cultura,

sociedade, nível social, estrutura familiar, etc.) que definem os contornos do ser de um sujeito

concreto, reenviando-os ao mesmo tempo, à sua subjetividade, a fim de se compreender a

apropriação peculiar desses aspectos mais universais” (SCHNEIDER, 2002, p. 303). Ou seja, o

aspecto progressivo-regressivo apreende o sujeito como singular/universal, individual/coletivo,

compreendendo também que ele se constrói num movimento de relação com a temporalidade, ou

seja, que o sujeito se apresenta uma síntese dialética das experiências passadas, presentes e futuras.

Dessa forma, o estudo de caso apresentado a seguir tem como objetivo apresentar o trabalho

realizado em terapia, construído a partir das orientações metodológicas e técnicas da abordagem

fenomenológica existencialista. Fundamentalmente, todo o processo descrito a seguir teve como

propósito compreender a personalidade do paciente, buscando especificar as variáveis que

ocorreram ao longo de sua vida de relações, esclarecendo seus processos de

totalizações/destotalizações/retotalizações. A terapia teve assim, como fim último, instrumentalizar

o sujeito, para que fosse capaz de superar as dificuldades que iria encontrar em seu dia-a-dia, ao

longo de sua existência, e para que fosse capaz de concretizar seu desejo-de-ser, através da

viabilização de seu projeto.

4.1.2 Dados de Identificação do Paciente

O paciente chegou à terapia com sete anos de idade. Morava com os pais, sendo o pai

mestre-de-obras e a mãe, dona de casa. Tinha um irmão de 14 anos de idade. A mãe já havia

procurado atendimento psicológico para este filho mais velho e, portanto, já tinha algum

conhecimento sobre a metodologia de trabalho de um psicólogo.

4.1.3 Problemática e Compreensão do caso

O paciente foi levado à terapia por sua mãe, a partir de um encaminhamento realizado por

um médico do Programa de Saúde da Família de um centro de saúde próximo à UBS, por motivo de

“agressividade”. Contudo, na primeira entrevista, na presença do paciente, a mãe referiu queixas

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difusas, dizendo que o filho era uma criança “volúvel, de humor instável”, sendo verbalmente

agressivo e não gostar de brincadeiras “tão normais”, como de bola, pois gostava de fazer trabalhos

manuais e de escrever o tempo todo quando estava em casa.

Investigando-se a história do paciente e de sua família, foi relatado que a gravidez do

paciente foi vivida pela mãe com muita dificuldade e necessidade de repouso. Ao nascer, mãe e

filho tiveram incompatibilidade de sangue A B O, o que causou icterícia ao bebê. Ainda, o paciente,

segundo ela, foi sempre muito frágil e precisou de cuidados que fizeram com que ela se dedicasse

exclusivamente a ele; disse que o filho falava muito e exigia muito dela. Assim, a criança cresceu

“grudada à mãe”, gostando de brincar em casa, sendo muito criativo e ativo, escrevendo livros e não

compartilhando de brincadeiras “normais”, como de bola. Contudo, na escola, desde a primeira

série não queria mais escrever, relutando também para realizar os deveres de casa. Neste momento,

o paciente relatou que em casa não precisava “olhar para o quadro”. Com relação aos demais

membros da família, a mãe relatou ter um outro filho, de 14 anos – que já havia sido atendido por

uma psicóloga, mas que a mãe preferiu não mencionar o motivo naquele momento - e que seu

marido era pedreiro, sendo também volúvel, relatando que “nunca sei como ele vai chegar em casa

e isso me deixa nervosa; ele descarrega as tensões com o sexo e pra mim é o contrário, quando ele

está assim eu não quero. Então me desdobro tentando disfarçar, queria até ter um quarto pra

dormir, eu tento sempre me controlar, apaziguar, mas ele é agressivo verbalmente. É um bom pai,

dá de tudo, mas muitas vezes sai de si e fala bobagem, depois se arrepende e pede desculpas. Mas a

família dele é ignorante, o pai dele era alcoólatra, acho que vem de família ser nervoso, vem no

sangue. Eu também sou nervosa, na verdade, minhas unhas vivem um toco, sofro de depressão, um

irmão da minha mãe é esquizofrênico, meu humor é bipolar e tem horas que eu não quero que as

crianças falem comigo”.

Diante deste relato que apresentava aspectos importantes a serem investigados sobre a

história e a dinâmica familiar do paciente, a mãe foi solicitada a comparecer sozinha na sessão

seguinte, para investigar o motivo pelo qual o filho mais velho havia realizado psicoterapia, elucidar

o acontecimento recente que havia levado à busca pela terapia e, ainda, como a mãe havia

significado a história de dificuldades com os primeiros cuidados do filho, logo ao nascer. Assim,

tendo comparecido sozinha à segunda sessão, a mãe relatou que há alguns meses, havia descoberto

o filho brincando de “médico” com um primo de sete anos, ocasião em que ambos estavam nus e

tocavam-se em seus órgãos genitais. Tendo ficado preocupada, conversou com o filho

questionando-o sobre a freqüência daquelas brincadeiras, quando o paciente relatou serem comuns.

Este acontecimento, somado às demais queixas foi, segundo ela, “a gota d´água” para que

trouxesse o filho à terapia.

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A mãe do paciente relatou, ainda, que seu sobrinho havia tido contato com revistas

pornográficas, pertencentes ao tio dele, cunhado dela (irmão do marido), e que outra sobrinha

demonstrava também comportamento precoce com relação à sexualidade e que a família de seu

marido não se preocupava em orientar as crianças com relação a este assunto. Sua maior

preocupação, segundo ela, era de que o filho pudesse vir a sofrer algum abuso por parte de algum

adulto, ou que isso voltasse a acontecer com outros meninos, inclusive com o irmão. Relatou ainda

que o irmão do paciente havia sido levado à terapia porque, desde seus 2 anos, masturbava-se, e que

as orientações fornecidas pela psicóloga permitiram que ela mediasse a sexualidade do filho, que

estava com 14 anos. Disse também que, tanto no caso do filho mais velho quanto no do paciente, o

pai das crianças cobrava dela uma resolução para os problemas.

Ainda com relação ao paciente, a mãe queixou-se novamente de sua falta de dedicação à

escola, por não copiar as matérias durante as aulas e não realizar os deveres de casa, da

agressividade, do medo que o filho às vezes dizia sentir de dormir com a luz apagada e, ainda, de

que ele mentia dizendo que “ninguém gosta dele, que ele é chato”. Contudo, referiu-se ao filho

como uma criança muito inteligente, ativa e criativa, pois chegou a “desmontar o motor da

máquina de costura”.

A partir das queixas da mãe do paciente, as sessões seguintes foram utilizadas para

descrever as situações em que o paciente ficava nervoso, a forma como se relacionava com as

atividades da escola, com os familiares e com os amigos. Com isto, tem o início o processo de

investigação dos fenômenos e das variáveis que o compunham, com o objetivo levantar as montar

um quadro da problemática a partir da queixa trazida pelo paciente, que possibilitasse efetivar a

consecução de um trabalho científico. Visava-se, assim, montar a queixa, equacionando o problema,

elaborando um quadro objetivo de todas as relações do indivíduo, para saber o que precisaria ser

modificado, tanto na materialidade como na compreensão reflexiva do paciente sobre suas relações

na objetividade (RIBEIRO, 1992).

Segundo Ribeiro (1992), as entrevistas iniciais compõem a primeira etapa da terapia e se

caracterizam por terem o “objetivo de levantar as queixas trazidas pelo cliente, bem como montar

um quadro da problemática trazida, que possibilite efetivar a consecução de um trabalho científico”

(p. 3). É neste momento que tem início a demarcação dos fenômenos, tentando localizar o cliente,

ou seja, montando a queixa, com o intuito de equacionar o problema, montando um quadro objetivo

de todas as relações do indivíduo, para saber o que precisará ser modificado, tanto na materialidade

como na compreensão reflexiva da pessoa sobre suas relações na objetividade (RIBEIRO, 1992).

Assim, através de investigações das relações do sujeito, o terapeuta tem condições de montar

um plano terapêutico para o processo, que se desdobrará em um plano de atividade para cada

sessão, a ser realizado antes de cada atendimento. Nesta etapa das entrevistas iniciais, é importante

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fazer com que o cliente consiga descrever os fenômenos. Muitas vezes, é preciso um trabalho de

aprendizado para isso, já que este processo implica deixar de lado a reflexão ou informações

interiores (redução eidética) (TRAFANI, 1992). Além disto, a descrição de fenômenos se constitui

como um processo importante que irá ocorrer durante todo o tempo da terapia, já que é fundamental

para a efetivação do método fenomenológico.

No caso deste paciente, as sessões seguintes contaram com o uso de instrumentos como

desenhos e jogos infantis, a fim de demarcar suas relações com seus familiares, com seus amigos e

também na escola. Após os primeiros atendimentos com a criança, foi possível demarcar que o

paciente sentia-se sozinho, não tendo muitos amigos, pois as brincadeiras das quais gostava – como

fazer livros – eram brincadeiras solitárias, que seus colegas não gostavam de realizar e

compartilhar. As atitudes agressivas estavam relacionadas aos momentos em que ele insistia em

praticar as atividades de que gostava e nos momentos em que se desentendia com seus colegas e

com uma prima – sua vizinha -, que queriam geralmente fazer atividades das quais o paciente não

gostava. Com relação às dificuldades na escola, percebeu-se, ao longo das entrevistas com a mãe do

paciente, que esta não tinha “muita paciência” para ajudar-lhe nos deveres, tendo uma atitude mais

de exigência com relação ao filho do que de compreensão e mediação e, ainda, de cobrança com

relação aos seus erros e ao “capricho”.

A mãe, que não contava com a ajuda do pai para a divisão das responsabilidades da

educação dos filhos, muitas vezes exigia que o filho se comportasse por estar cansada, mas também

acabava fazendo “coisas por ele” por estar cansada e desejar “fazer logo pra não se incomodar

mais ainda”. A história de necessidade de cuidado por questões de saúde da criança logo após seu

nascimento fez com que a mãe do paciente tomasse os cuidados dele para si, o que fez com que “se

doasse muito, esquecendo até de si mesma”, o que representou o início da construção de uma

relação de dependência entre ambos e que naquele momento gerava na mãe uma dificuldade de

permitir ao filho a crescente conquista de independência. Dessa forma, o cotidiano da mãe era

preenchido por atividades basicamente relacionadas à maternidade, gerando uma centralidade deste

perfil em sua vida e também na do filho, que se por um lado criava uma dependência da presença

um do outro, gerava também conflitos em função de não haver espaço para a realização em outros

perfis. Portanto, grande parte das queixas da mãe com relação ao paciente – em seu perfil de filho –

relacionavam-se com o fato de que seu olhar era potencializado pela sua presença constante no dia-

a-dia dele.

Assim, a partir das contradições de uma realidade que é sempre dialética, compreendeu-se

que o paciente, diante das exigências que a mãe lhe fazia, de “saber fazer” tudo o que dele era

esperado, bem como “de estar pronto” para não demandar dos pais a atenção requerida por qualquer

criança que está em fase de desenvolvimento, estava gerando nele uma insegurança de ser, que o

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jogava na solidão e o desmotivava a realizar as atividades que faziam parte de seu cotidiano, como a

escola. Segundo Laing (1987, p. 41), uma pessoa segura “enfrentará todos os riscos da vida –

sociais, éticos, espirituais e biológicos – com um firme senso da própria realidade e identidade,

assim como a dos outros”. Dessa forma, uma pessoa insegura do ponto de vista ontológico, ou seja,

do seu ser, possivelmente vivenciará circunstâncias comuns da vida como uma ameaça constante à

sua existência.

Assim, a falta de mediação dos pais, bem como a falta de tecimento entre os membros da

família, não permitiam que o paciente compreendesse que suas amizades dependiam de seu

investimento, como a participação em brincadeiras coletivas, por exemplo. Ainda, a falta de

instrução para a realização das tarefas da escola, bem como de desvalorização das atividades

intelectuais que gostava de realizar, o impediam de compreender a importância de seu envolvimento

com os estudos formais, fazendo com que ele se afastasse cada vez mais de suas atribuições o que,

por sua vez, aumentavam as exigências da mãe.

A demarcação das relações do paciente, de sua história e de seu cotidiano foi fundamental

para a compreensão deste caso. Isto porque, à luz da teoria fenomenológica existencialista, ao

buscar demarcar quais são as dificuldades psicológicas enfrentadas pelo sujeito, é preciso definir

quem é o indivíduo que se complica, que se vê impossibilitado em seu projeto e conseqüentemente

em seu movimento no mundo. Assim, opondo-se às teorias baseadas no racionalismo, Sartre (1978)

procura deixar esclarecida a diferença que faz entre “consciência” e “personalidade”. Isso porque,

para o racionalismo, o sujeito que adoece é aquele que está diante de um “conflito de idéias”, ou de

“problemas do mundo interno” (SCHNEIDER, 2002).

Dessa forma, Sartre (1978) define que o “complicar-se” não se refere à consciência, não é

ela que se complica, pois ela é pura relação, pura intencionalidade. Quem se complica, dessa forma,

é o indivíduo como um ser dotado de uma consciência, mas também de um corpo, através dos quais

estabelece relações com a materialidade, com a temporalidade, consigo mesmo e com os outros

indivíduos.

A personalidade, sendo a unificação de corpo/consciência do indivíduo, está em constante

movimento em direção ao futuro e ao seu projeto. É, ainda, o resultado das totalizações que o

sujeito realiza a partir de suas relações, que são mediadas socialmente. Por isso, quando o sujeito se

complica psicologicamente, experimenta uma intercorrência na trajetória que tem estabelecido em

direção à concretização do projeto e que é realizado através das relações materiais, sociais, entre

outras.

O projeto psicoterápico, assim, precisa necessariamente contemplar uma mediação que

possibilite mudanças nas experiências concretas do indivíduo, que permitam que ele volte a sentir-

se seguro de seu projeto e de suas escolhas e ações. Essas mudanças se operam, ainda, no sujeito

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enquanto personalidade, no âmbito de suas ações, e emoções, visto que, para Sartre (1994, p. 59),

“o Ego é unidade dos estados e das acções – facultativamente, das qualidades”.

A compreensão da personalidade do sujeito, com os aspectos que a caracterizam, é

fundamental para a formulação de um projeto de investigação ou intervenção (RIBEIRO, 1992).

Para tanto, deve-se descrever os fenômenos, visando verificar quais são seus elementos

constitutivos, o que levará à sua demarcação, que garante a objetividade do objeto a ser estudado,

não reduzindo-o a nenhum outro. Através desse processo de identificação de ocorrências por

variáveis poder-se-á, então, estabelecer hipóteses de trabalho, o que possibilitará fazer antecipações

de resultado, e elaborar um plano de ação.

Assim, a partir da compreensão possibilitada pelas entrevistas iniciais, foi possível

estabelecer o plano de intervenção que orientou o trabalho realizado em psicoterapia, bem como a

construção dos objetivos para cada sessão realizada. Ressalta-se, ainda, que tais planejamentos

também ocorreram num processo dialético, tendo sofrido alterações conforme novas informações

foram surgindo. A seguir, está explicitado o planejamento do processo, com a descrição dos

objetivos da terapia.

4.1.4 Plano de Intervenção

Segundo Trafani (1992, p. 6), em terapia, “o planejamento, em suma, implica em:

diagnóstico da realidade: descrição da queixa; prognóstico: antecipação reflexiva dos

desdobramentos e conseqüências do diagnóstico; intervenção: alteração do prognóstico, através da

elaboração de certas práticas e alternativas”. Dessa forma, a partir da compreensão do caso, foi

estabelecido um plano de intervenção, que constou de dois aspectos:

1) a demarcação das relações do paciente com sua família, amigos e escola, ao

mesmo tempo em que foi estabelecida uma mediação para que as mudanças

desejadas por ele pudessem ocorrer em seus perfis de filho/amigo/estudante;

2) processo de esclarecimento com a mãe do paciente sobre a forma como ela estava

vivenciando as dificuldades e o período da infância do filho, para que pudesse

compreender que precisaria mediá-lo em suas dificuldades, a partir do

entendimento de que o desenvolvimento da criança precisa ser assistido e de que a

forma como ela o estava fazendo – e que geravam nele os comportamentos

indesejáveis por ela - estava impregnada de suas próprias dificuldades como mãe.

Para as mudanças desejadas no primeiro aspecto, foram sendo demarcadas – através da

descrição dos eventos, da reflexão e com o auxílio de desenhos e figuras - as relações do paciente

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com a escola, com os estudos e com as atividades intelectuais; as relações de amizades, com a

compreensão das brincadeiras realizadas por ele, a forma de estar com seus colegas e amigos; e em

suas relações com a mãe, irmão e pai, visando demarcar o que poderia ser modificado para que a

relação de dependência que estava sendo criada com a mãe fosse interrompida, para que o paciente

pudesse desenvolver sua autonomia e quebrar a dinâmica de cobranças e centralidade de sua

presença para a mãe. Todos estes aspectos trabalhados foram permeados pelo objetivo de fazer com

que o paciente se apropriasse da forma como vinha construindo sua personalidade e sua rede de

relacionamento, entendendo que as escolhas que fizesse teriam implicações imediatas para a

concretização de seus desejos, visando alterar o prognóstico advindo da queixa.

Para o segundo aspecto, foram trabalhadas com a mãe, através da descrição dos eventos e da

reflexão, questões como: expectativas que tinha com relação à maternidade, à educação e ao

desenvolvimento dos filhos; suas dificuldades de deixar que os filhos fizessem suas próprias

escolhas e desenvolvessem seus próprios desejos; a forma como organizava seu cotidiano e sua

própria vida, que acabava centralizando suas atividades no perfil de mãe, tornando isso a principal

fonte de significado para sua vida; as dificuldades de dividir as responsabilidades de educação dos

filhos com seu marido, o que lhe gerava a sobrecarga de fazer escolhas e tomar atitudes sozinha

que, ao mesmo tempo em que lhe angustiava, potencializava sua dinâmica de ocupar-se

fundamentalmente de atividades que reforçavam a centralidade do perfil de mãe; a dificuldade de

entender que o outro pode ser diferente do que ela era ou de que ela esperava que ele fosse e de que

isso não impediria de este outro realizar seus desejos e projetos e de se tornar um ser humano

realizado.

Todos estes pontos foram sendo trabalhados ao longo das sessões compreendendo-se que, no

início, o sujeito inicia o processo de mudança ainda agindo na espontaneidade, pois não está em

condições de pensar em termos de um projeto. Neste caminho, procurou-se realizar reflexões que

visaram localizar o paciente das mudanças e atitudes a serem tomadas diante de seu problema,

estimulando-o a partir para uma ação mediada pela psicoterapia, que o levaria ao seu projeto de ser

desejado. Fundamentalmente, através das entrevistas, o paciente e sua mãe eram levados a refletir

sobre suas histórias, para que compreendessem a construção que haviam realizado de suas

dinâmicas de ser, incluindo suas formas de agir/pensar/sentir para, a partir desta compreensão

crítica, iniciarem o processo de mudanças, de fazer diferente da maneira como até então vinham

fazendo e, conseqüentemente, modificar suas personalidades e de viabilizarem-se enquanto

indivíduos.

Nas primeiras sessões, portanto, foi a compreensão do terapeuta de como se constitui a

personalidade do sujeito que deu base para as intervenções em termos de estratégias imediatas de

futuro. Isso porque conhecer a personalidade do sujeito é compreender o movimento que ele vem

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realizado no mundo e a forma como tem realizado totalizações para chegar ao saber-de-ser que

possui no momento presente.

Contudo, é fundamental fazer com que o paciente também compreenda a forma como foi se

constituindo até então e que veja o problema e se veja no problema. Quando ele puder fazer isso,

terá a possibilidade de entender que há um saber-de-ser, como o modo através do qual o sujeito se

experimenta sendo no mundo, que define e orienta suas ações, impulsionando-o para o futuro,

constitui o seu projeto original. Para compreender como o sujeito tem elaborado este seu

entendimento do mundo e de si mesmo, tem-se que “cada ocorrência descrita pelo cliente é uma

totalização, ou seja, uma conclusão lógica de uma série de fatos ou dados vivenciados, aos quais o

cliente deu uma inteligibilidade (se deu razões) para incluí-los na sua existência” (TRAFANI, 1992,

p. 11).

Após esta compreensão inicial, pôde-se então partir para o Rastreamento da História, que

forneceu elementos para uma compreensão crítica. Esta etapa ocorreu com a apreensão crítica das

totalizações que o indivíduo realizou até aquele momento de sua vida, em todos os seus perfis, em

todas as suas relações. A partir dela, o terapeuta foi capaz de realizar uma compreensão da história

do cliente, que é a etapa seguinte da terapia.

A Compreensão Crítica da História foi realizada a partir da reflexão crítica, em que o cliente

teve a possibilidade entender que cada escolha que realiza tem implicações para o seu projeto.

Dessa forma, ele compreende que os indivíduos estão condenados a ser livres e que a realidade só

existe na ação, que ocorre a partir das escolhas que o sujeito realiza. Compreendendo que é livre

para escolher, o cliente estará preparado para passar à etapa da terapia denominada Compreensão

Política, em que

ele já tem conhecimento do caminho que fez para chegar ao que é hoje e já pode modificar o mesmo. Precisa agora localizar-se politicamente de modo a não permitir que os outros inviabilizem o seu projeto e nem ele próprio inviabilize o projeto dos demais (TRAFANI, 1992, p. 15).

É nesta etapa da psicoterapia que o sujeito compreende que, escolhendo por si, escolhe

também por toda a humanidade e neste aspecto reside a grande responsabilidade do ser humano em

fazer escolhas. Segundo Sartre (1978, p. 13), “assim, sou responsável por mim e por todos, e crio

uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem”.

A seguir, constam as descrições relativas à evolução clínica do paciente, desde o momento

em que chegou à terapia, até a sua alta, passando por todos os momentos do processo explicitados

anteriormente.

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4.1.5 Evolução Clínica

Para a descrição dos fenômenos, foi utilizada com o paciente a elaboração de desenhos,

como tema livre, da sua família, de coisas das quais gostava, da escola e das profissões que

conhecia. Em todos os desenhos e colagens, o paciente sempre se mostrou bastante interessado nas

atividades propostas, sendo capaz de manter-se concentrado nas tarefas durante todo o tempo da

terapia. Suas produções em terapia eram sempre muito criativas, tendo chegado a desenvolver em

sessão um livro contando sobre as coisas que gostava – como comidas, filmes, animas.

Através destes desenhos, inicialmente foi sendo investigado o cotidiano de relações do

paciente, que relatou ter amizade apenas com o irmão e com dois primos, de idade semelhante à

sua. Em casa, passava muito tempo com a mãe, sendo ela sua principal companhia durante o dia.

Também sentia medo de dormir no escuro à noite, dizendo que sentia “medo de olhar e ver alguma

coisa no corredor”. Sobre a escola, dizia que não tinha amigos e que não gostava de copiar as

matérias porque “precisava olhar para o quadro, enquanto para fazer livrinhos não”; relatou,

ainda, que “na escola sabia tudo, era tudo mais fácil” e que “quase todos os colegas não obedeciam

e ficavam andando na sala e que então ficava sentado sem copiar os deveres do quadro”. Dizia

ainda que seus colegas não gostavam de brincar de suas brincadeiras e que na escola gostava mais

de jogar xadrez, mas que não encontrava companheiro para o jogo.

Considerando que o plano de terapia constava de efetuar mudanças nos perfis de

filho/amigo/estudante do paciente - após a compreensão de que as dificuldades no perfil de filho

relacionavam-se à busca de autonomia - o estímulo à sua independência foi feito a partir,

principalmente, de seus outros perfis – de estudante e de amigo -, em que poderia mais facilmente

passar a agir de modo a perceber a responsabilidade que tinha na construção das mudanças que

desejava. Para as questões relacionadas à sua independência como filho, foram trabalhadas as

dificuldades da mãe em permitir que isso ocorresse, já que, quando criança, os indivíduos se

apropriam espontaneamente das condições em que estão inseridos.

Assim, num primeiro momento, a criança não se diferencia dos outros e das coisas e nem os

diferencia entre si, sendo que as pessoas que a cercam de um certo modo lhe conferem uma

identidade. Sua subjetividade, portanto, irá se constituir frente à situação em que é lançada,

sentindo, pensando e fazendo algo disso, apropriando-se do espaço social e psicológico que a cerca

(SCHNEIDER, 2002). Para Sartre (1978, p. 125) “a verdade é que a subjetividade não é nem tudo,

nem nada; ela apresenta um momento do processo objetivo (o da interiorização da exterioridade), e

este momento se elimina sem cessar, para sem cessar renascer novamente”.

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Essa apropriação, em um primeiro momento, é feita de um modo alienado. Quer dizer,

mesmo que a criança tome atitudes de contestação ou subordinação, de autonomia, agindo diferente

daquilo que é esperado, ainda assim, não vivencia seu ser em suas mãos, na medida em que este lhe

parece como uma tarefa a realizar. Nesse modo de apropriação da realidade, a criança percebe e

reflete espontaneamente sobre o mundo, encontrando-se tão absorvida no objeto, que não há espaço

para o seu eu (SCHNEIDER, 2002). Segundo Sartre (1978, p.139), “cada um vive seus primeiros

anos no desvario e na fascinação como uma realidade profunda e solitária: a interiorização da

exterioridade é aqui um fato irredutível”.

Sendo assim, a criança se move em função de um ser futuro que tem que realizar, ou seja, de

um projeto existencial que lhe é passado pelos outros. O projeto nada mais é do que o desejo de ser

certo tipo de pessoa, com características e qualidades específicas que estabelecem determinadas

relações sociais. Para Sartre (SARTRE, 1978, p. 177), “o homem define-se pelo seu projeto. Este

ser material supera perpetuamente a condição que lhe é dada; revela e determina sua situação,

transcendendo-a para objetivar-se, pelo trabalho, pela ação ou pelo gesto”.

Esse futuro, por ser desejado pela criança, acaba por definir suas escolhas cotidianas. O

significado que ela confere às suas vivências e a inteligibilidade que monta acerca de si mesma

unificando sua história (o conjunto de relações, as expectativas construídas a respeito do seu ser,

suas vivências, a identidade que lhe foi conferida e por ela apropriada, ou seja, o que ela fez do que

fizeram dela e seu futuro, seu desejo de ser) serão a base com que construirá seu “eu”, sua

personalidade (CASTRO; SCHNEIDER, 1998).

Assim, através dos desenhos, o paciente foi se localizando das atividades que gostava de

fazer e das quais não gostava, procurando diferenciar o que era de seu ser e o que era dos outros,

descortinando o saber-de-ser que vinha construindo na espontaneidade e que o estava

impossibilitando de experimentar outras possibilidades de escolhas. Com relação aos amigos da

escola, percebeu que estava realizando escolhas que contribuíam para que se sentisse sozinho e,

diante do desejo que tinha de fazer novas amizades e de ter companheiros para suas brincadeiras,

compreendeu que era necessário escolher partilhar das brincadeiras que a maioria de seus colegas

desenvolviam. Assim, foi descobrindo as brincadeiras de bola, o futebol, as cartas – que já possuía

em casa e que passou a levar para o colégio, convidando seus amigos para jogarem -, o que

promoveu uma ampliação em sua rede de relações, não deixando de fazer aquilo que gostava

(xadrez, por exemplo), mas relativizando suas escolhas.

Esta compreensão de que suas ações geravam conseqüências que o levavam a realizar seu

desejo – de ter amigos, por exemplo -, foi fundamental para que o paciente começasse a mudar suas

atitudes, responsabilizando-se por suas escolhas e pelas conseqüências de seus atos. Com relação às

atividades da escola, como deveres e tarefas de sala de aula, estava claro que não lhe despertavam

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tanto interesse como as que realizava em casa, livremente. Contudo, durante uma atividade em que

foi requisitado a fazer uma colagem e/ou desenho sobre “o que tinha na escola”, ficou evidente seu

interesse em ir para as aulas e da compreensão que fazia sobre a importância do estudo formal.

Além disso, o paciente identificou somente coisas “boas” e de que gostava na escola, como as

brincadeiras com os amigos, “ele escrevendo”, a leitura de livros e o parque. Quando questionado

sobre o que não gostava na escola, disse que “gostava de tudo”.

Além do prazer que sentia em ir à escola, em outra sessão, ao investigar o desejo do paciente

com relação a um possível futuro profissional, este relatou que sabia que freqüentar a escola e

estudar era fundamental para que pudesse concretizar o desejo que tinha de seguir alguma profissão

semelhante a do pai, de mestre-de-obras. Segundo ele, “era legal construir casas, mas gostaria de

escolher uma profissão em que não precisasse fazer tanto esforço”. Ao realizar uma colagem sobre

as profissões que conhecia, o paciente relatou que sabia que poderia ser “engenheiro, por exemplo”.

Dessa forma, foi refletido que, mesmo que escolhesse uma profissão diferente da escolhida pelo pai

em que desempenhasse, por exemplo, atividades semelhantes às que já gostava de realizar – como

de escrever, livros, desenhar, pintar – tudo o que aprenderia na escola e a formação até o segundo

grau lhe proporcionariam a oportunidade de continuar estudado e de fazer uma faculdade, entre

outras possibilidades. Assim, refletiu-se sobre as conseqüências que as escolhas cotidianas que fazia

tinham para o seu futuro e para o seu projeto de ser.

Além dos desenhos realizados durante as sessões, foram desenvolvidas atividades como

palavras cruzadas para crianças e leitura de pequenos textos em revistas infantis que, tendo sido

mediados pela estagiária, foram auxiliando a gerar no paciente a segurança necessária para a

realização das tarefas da escola. Ao proporcionar um ambiente de tranqüilidade, em que percebia a

necessidade de receber ajuda de um adulto para a realização de tarefas intelectuais, o paciente pôde

experimentar uma outra possibilidade de ser: o de alguém que não era cobrado de que “soubesse

tudo e estivesse pronto” e de que poderia errar sem ser repreendido ou sem que com isso gerasse

sofrimento em outra pessoa, como muitas vezes ocorria com sua mãe. Essa segurança de ser foi

fundamental para que realizasse as mudanças sem sentir sua existência ameaçada diante das

dificuldades experimentadas, ponto destacado por Laing (1987), ao referir-se ao processo de

segurança de ser.

Dessa forma, após o paciente ter-se localizado de quem era e de como estava fazendo suas

escolhas, a partir do rastreamento e da compreensão de sua história, passou por uma etapa de

mudanças, através da qual percebeu que suas escolhas tinham implicações diretas para a

concretização de seu desejo. Assim, através de ações mediadas pela terapia, alterou sua dinâmica de

ser, gerando mudanças visualizadas nas sessões: o paciente demonstrava evidente amadurecimento

na relação com a estagiária – tanto na realização de tarefas como nas reflexões que fazia -; alterou

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inclusive sua forma de expressar-se verbalmente, apresentando um modo de falar mais tranqüilo;

melhorou a letra nas produções escritas e também aumentou o cuidado com os desenhos, colagens e

palavras cruzadas, tendo diminuído também os erros de português, comuns para crianças que

passam pelo processo de alfabetização.

Além disso, a mãe relatava que era possível perceber as transformações do filho com relação

às queixas inicias, movimento que também foi percebido pelo pai e pela professora do paciente.

Especificamente com relação à queixa de agressividade, a mãe dizia que o paciente estava mais

tranqüilo, que já era possível negociar e fazer acordos sem que ele se alterasse e cumprisse os

combinados. Destaca-se que a mudança na expressão verbal do paciente em terapia – mesmo que

em nenhum momento este tenha se utilizado da agressão com a estagiária – foram encarados como

mostras de que as conquistas relatadas pela mãe eram bastante concretas. Esta mudança

possivelmente auxiliou também o paciente a expressar-se de forma mais assertiva com seus novos

amigos.

A partir dessas alterações na dinâmica do paciente, que o levaram a viabilizar-se em seus

desejos, optou-se por partir para a segunda parte do plano de intervenção da terapia, a ser realizada

com a mãe. Dessa forma, em uma última sessão antes que a mãe começasse a comparecer com mais

freqüência aos atendimentos, sem a presença do filho, realizou-se uma atividade em que o paciente

foi requisitado a escrever sobre “o antes e o depois” da terapia. Assim, em papéis diferentes,

escreveu: “Antes – escola: antes na escola eu não tinha muitos amigos e não fazia atividades lá;

noite: tinha medo do escuro e usava minha lanterna. Depois – escola: agora eu tenho muitos

amigos para brincar e faço todas as atividades; noite: eu não tenho medo do escuro e não uso a

minha lanterna”. Esta atividade, mais uma vez, deixou claro que o paciente havia se apropriado das

mudanças realizadas e estava usufruindo das alterações em suas personalidade.

A opção de fazer o atendimento com a mãe fundamentou-se na compreensão de que a

família desempenha papel fundamental na construção do ser do indivíduo e precisa ser implicada no

processo terapêutico quando o paciente é uma criança. Em terapia com base no existencialismo

fenomenológico, os pais são chamados, assim, a participarem ativamente do processo, realizando

sessões em conjunto com os filhos, mas também separadamente. Neste caso, especificamente, o pai

do paciente, em função do trabalho, não pôde comparecer às sessões. Contudo, todas as reflexões

feitas com a mãe foram sendo compartilhadas com ele, a pedido da estagiária, para que se

implicasse também no processo de mudança proporcionado pela terapia. Considerando que a mãe

trazia queixas com relação à dificuldade de dividir responsabilidades com relação aos filhos com

seu marido, esperava-se que as alterações realizadas com o filho e com a mãe pudessem alterar

também, de alguma forma, o ser do pai.

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A implicação da família é essencial porque, mesmo que mudanças sejam efetuadas com a

criança através da mediação fornecida pela terapia, após a alta, as principais mediações a que ela

estará sujeita serão novamente seus familiares. Dessa forma, diante da possibilidade de apenas a

mãe comparecer aos atendimentos, compreendia-se que sua participação era essencial para garantir

que as mudanças efetuadas ao longo do processo pudessem perdurar, evitando que futuras

complicações psicológicas surgissem.

Com relação ao papel que a família desempenha no desenvolvimento dos indivíduos, para

Sartre (1978b, p. 138-139), o existencialismo [...] descobre o ponto de inserção do homem em sua classe, isto é, a família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo: a família, com efeito, é constituída no e pelo movimento geral da História e vivida, de outro lado, como um absoluto na profundidade e na opacidade da infância.

Segundo Sartre (1978, p. 140), “a pessoa vive e conhece mais ou menos claramente a sua

condição através de sua pertinência a grupos”. Dizendo que os homens nunca estão isolados, mas

sempre na presença inevitável de outros, a reunião de pessoas poderá organizar-se em duas

estruturas: as séries ou os grupos organizados. As séries significam um agrupamento de pessoas em

que não há compartilhamento de projetos, não há mediação; “[os indivíduos] utilizam-se do mesmo

meio de realizar o objetivo, mas não há troca entre eles, não há uma ação coletiva” (SCHNEIDER,

2002, p. 223).

Já nos grupos organizados, existe um projeto comum, em que todos se esforçam para

realizá-lo. A ação é coletiva e existe um compartilhamento de objetivos e, através de relações de

reciprocidade, a superação da solidão dos participantes ocorre pelo tecimento entre seus membros

(SCHNEIDER, 2002). Estabelece-se, assim, além de uma afetividade, uma mediação exercida pelo

grupo, através da qual “o outro torna-se um meio para me realizar, assim como eu a ele” (idem,

2002, p. 224).

Para Sartre (1978 apud SCHNEIDER, 2002), o ideal é que a família se relacione a partir de

uma estrutura de grupo organizado, em função de seu papel de mediadora na estruturação do projeto

de ser dos sujeitos. No entanto,

muitas vezes uma família, em função das relações estabelecidas entre seus membros, é corroída por uma serialidade interna, ou seja, seus membros não conseguem tecer seus projetos individuais em torno de um projeto coletivo, permanecendo uma pluralidade de solidões (idem, 2002, p. 225).

Nesta estrutura familiar, e posteriormente em outros grupos, o conjunto de expectativas

criado pelos outros irá se desdobrar no modo destes se relacionarem com essa criança, lançando-a

em um espaço existencial. Assim, os outros irão tratá-la com carinho ou com indiferença, escutar o

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que ela pede ou a ignorar, lançar olhares de aprovação ou reprovação a partir de seus atos,

identificá-la como sendo boazinha, quieta, querida, chata ou mal-educada, proporcionando-lhe

contornos existenciais que constituem o início de seu processo de humanização (CASTRO;

SCHENEIDER, 1998).

Assim, com a mãe do paciente, buscou-se primeiramente identificar quais eram as

dificuldades enfrentadas em seu dia-a-dia na relação com seus filhos e também com o marido,

compreendendo que a forma como se experimentava nestas relações interferia diretamente na forma

como o paciente se experimentava enquanto filho. Para tanto, a mãe do paciente foi requisitada a

descrever, em uma folha de papel, como se via em seus diversos perfis – que deveria, também,

demarcar: de mãe, de filha, de amiga, de esposa, de mulher.

Com relação ao conhecimento que se pode ter sobre os fenômenos, Sartre (1997, p. 19)

destaca que “o fenômeno é o que se manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo, pois

dele podemos falar e dele temos certa compreensão. [...] Em um objeto singular podemos sempre

distinguir qualidades [...]. E, a partir delas, sempre pode-se determinar uma essência por elas

compreendida, como o signo implica a significação”. Ainda, descreve Sartre (1997, p. 20) que “o

fenômeno de ser exige a transfenomenalidade do ser. Não significa que o ser se encontre escondido

atrás dos fenômenos [...], nem que o fenômeno seja uma aparência que remeta a um ser distinto (o

fenômeno é enquanto aparência, quer dizer, índica a si mesmo sobre o fundamento do ser)”. Dessa

forma, para conhecer a personalidade de um sujeito, é preciso descrever os fenômenos que o sujeito

experiência através de seus perfis, compreendendo que o fenômeno de ser uma individualidade

pode ser apreendido através daquilo que o indivíduo concebe como sendo característico dele,

vivenciado através de suas ações, emoções, estados e qualidades.

Segundo Sartre (1994), as ações, os estados e facultativamente as qualidades são as

dimensões que compõem a personalidade do indivíduo, sendo que os estados não são apenas

emoções efêmeras, mas têm permanência, transcendem uma situação específica em direção a outras

que ainda serão experienciadas. Elas são constitutivas da forma como o sujeito se experimenta, em

determinadas ocasiões, frente a certas pessoas e situações. Assim, os estados se consolidam a partir de experiências espontâneas, irrefletidas [...]. Quando nos apropriamos reflexivamente de uma emoção espontânea, postulando-a como tendo sido vivida por mim, compromentendo o meu ser, torna-se um ‘estado’. Este é constituído, portanto, pela apropriação reflexiva de consciências espontâneas significativas (SCHNEIDER, 2002, p. 205).

Além dos estados, o sujeito tem sua personalidade totalizada também a partir de qualidades

e ações. As ações são unidades transcendentes, são totalizações das experiências passadas, e as

qualidades são as unidades dos estados e tem um caráter constitutivo mais permanente na

personalidade do indivíduo. Dessa forma, as qualidades podem ser compreendidas como uma

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potencialidade, pois “não é a simples possibilidade: ela apresenta-se como qualquer coisa que existe

realmente, mas cujo modo de existência é o de estar em latência. Deste tipo são, naturalmente, os

defeitos, as virtudes, os gostos, os talentos, as tendências, os instintos, etc” (SARTRE, 1994, p.64).

Assim sendo, segundo Sartre (1994, p. 67), “quando incorporo os meus estados na totalidade

concreta Eu [Moi], não lhes junto nada. É que, com efeito, a relação do Ego com as qualidades,

estados e acções [...] é uma relação de produção [...] ou, se quiser, de criação”. Portanto, a partir dos

conteúdos que surgiram através da utilização da dinâmica dos perfis, as sessões foram orientadas

para o trabalho com as dificuldades pontuais apontada pela mãe do paciente, compreendendo as

qualidades de ser dela que estavam intervindo diretamente no olhar que direcionava ao paciente e

que mediava o movimento dele mundo, contribuindo também para a construção das qualidades de

ser dele.

Assim, um dos primeiros pontos trabalhados foi descrição das tarefas assumidas por ela e

pelo marido com relação às responsabilidades pela casa e pela educação dos filhos, visto que uma

de suas queixas era a “sobrecarga” que sofria por ter que “cuidar de tudo”. Entre as definições que

utilizou para demarcar sua relação com as tarefas de casa e com os filhos, a mãe do paciente disse

que “tinha uma vida muito corrida”, que “até as coisas dele [marido] eu tenho que resolver” e que

“se não fizer, acaba sendo pior”. Suas queixas eram de que “chegava um momento em que a carga

era tão grande, que deprimia-se, sentindo-se esgotada”. Ao descrever o cotidiano de suas

atividades e a rotina do marido, contudo, a mãe do paciente se deu conta de que, na verdade, seu

marido lhe auxiliava no que era possível, visto que trabalhava o dia todo fora de casa e que, em

função de ela estar em casa durante a maior parte do dia – por ser dona de casa -, as

responsabilidades pelo cuidado com a educação com os filhos e com a casa poderiam ser mais

facilmente resolvidas por ela.

Ao mesmo tempo, a mãe do paciente descreveu que, desde o início das reflexões realizadas

em terapia, quando era questionada sobre a forma como abordava seu marido para os diálogos, ela o

havia convidado a fazer caminhadas após o trabalho dele, como forma de cuidarem de sua saúde,

mas, principalmente, para reservar um tempo para o casal, em que pudessem conversar sobre os

acontecimentos do dia de cada um. Dessa forma, ao longo destas caminhadas, a mãe do paciente

estava conseguindo expor suas dificuldades com relação aos filhos e requisitar a ajuda do marido,

que estava demonstrando, em contrapartida, interesse e empenho em auxiliá-la e em estar mais

presente no dia-a-dia dos filhos.

Após estas reflexões e da demarcação das atividades desempenhadas por ela e pelo marido,

a mãe do paciente relatou, em sessão seguinte que, na verdade, o que lhe angustiava era a

dificuldade que tinha de lidar com o que considerava “imprevistos” na relação com os filhos.

Assim, quando surgia algum impasse, como um pedido do filho para fazer algo sobre o qual ela não

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tinha certeza se deveria ou não permitir, se angustiava diante da necessidade de posicionar-se diante

dele e da possibilidade de lhe dizer “não”. Retomando brevemente sua história, a mãe do paciente

compreendeu que tinha dificuldade de dizer “não” por medo de “frustrar o outro”; ao mesmo tempo,

ela buscava controlar as ações e reações dos filhos, o que, na verdade, era uma forma de induzi-los

a agirem de forma com que, mais tarde, ela não fosse novamente requisitada a tomar uma posição

em relação às escolhas deles.

Todas estas experiências eram vividas com ansiedade, na medida em que esperava que nada

“desse errado”, que “tudo fosse resolvido logo, que tudo desse certo”. Assim, foram trabalhadas as

questões referentes à infância – e também à adolescência, por seu outro filho ter 14 anos -,

refletindo-se sobre a realidade que esta fase do desenvolvimento humano impõe aos pais: constante

orientação, diálogo e seguidas intervenções, até que os filhos tenham clareza das escolhas que

desejam fazer, em função do futuro que desejam para si. Sobre o “dizer não”, a mãe foi questionada

sobre o projeto educativo que desejava para os filhos, ou seja, o que gostaria de passar a eles, como

gostaria de educá-los, o que gostaria que eles aprendessem, através do que foi possível a ela

compreender que o “dizer não” fazia parte daquilo que ela entendia como necessário e que a levaria

a concretizar a educação e o futuro que desejava para os filhos.

Após estas sessões, a mãe do paciente relatou estar sentindo-se mais segura com relação às

suas ações na educação com os filhos, compreendendo que era necessário ter claro o projeto de

educação deles, como uma escolha fundamental que a guiaria nas suas escolhas cotidianas, que a

levaria ao futuro desejado para si e para os filhos. Por fim, um último aspecto ainda foi trabalhado:

a dificuldade que ela tinha de permitir que o paciente se tornasse independente dela e a dificuldade

que ela própria tinha de desconstruir a centralidade de seu perfil de mãe, que gerava nela também

uma dependência da presença dos filhos e da ocupação com as questões de ambos.

Segundo Sartre (1997), sendo o indivíduo corpo e consciência, ele estabelece relações com a

materialidade, com seu corpo, com a temporalidade e também com os demais. Nesta última, ou seja,

na relação com o outro, o sujeito pode relacionar-se enquanto um “ser para o outro” ou enquanto

um “ser com o outro”. Na primeira forma de relação, o sujeito experimenta seu ser como estando

em poder do outro, em que “o outro desvela-se a mim como o sujeito para o qual eu sou objeto”

(SARTRE, 1997, p. 441). Ainda, se, pelo contrário, o sujeito faz do outro um objeto, então torna o

outro um “ser para mim”. Nesta forma de relacionar-se, as conseqüências são sempre as mesmas:

não há tecimento entre os indivíduos, nem compartilhamento de um projeto comum, que faça com

que os sujeitos caminhem juntos para um futuro.

Se, no entanto, os sujeitos se relacionam sendo um ser-com-o-outro, há relação de

reciprocidade, ou seja, “o reconhecimento do outro enquanto liberdade, que viabiliza, portanto, a

troca com o outro, onde um pode ser mediação para o outro” (SCHNEIDER, 2002, p. 219). É esta

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forma de relacionar-se, portanto, que buscou-se construir em terapia entre a mãe do paciente e ele,

permitindo principalmente que a mãe, compreendendo o outro enquanto “liberdade”, permitisse

uma relação de compartilhamento de projetos com seus filhos, tomando decisões conjuntas, a partir

de uma mediação mais crítica. Primeiro, contudo, ela mesma precisou compreender-se como um ser

“condenado a ser livre”, que faz escolhas que lhe direcionam sempre a um futuro.

Ao deparar-se com a necessidade de responsabilizar-se por sua vida e pelo seu projeto de

ser, a mãe do paciente refletiu sobre a possibilidade de voltar a trabalhar, entendendo que esta

atitude lhe proporcionaria novas formas de mover-se no mundo e de significar seu dia-a-dia,

colaborando também para seu objetivo de “deixar seus filhos tornarem-se mais independentes”.

Assim, em terapia, foram avaliadas as possibilidades concretas de retomar ou iniciar alguma

atividade remunerada, que lhe conferisse retorno financeiro, uma ocupação durante seus dias, mas

também uma proximidade com sua casa, tendo em vista que seu desejo de estar perto dos filhos era

fonte de satisfação e significado para ela. Dessa forma, compreendia-se que, mais importante do

que a distância física, era imprescindível uma mudança de atitude da mãe do paciente e que, se ela

conseguisse conciliar seu desejo de manter-se próxima na relação com os filhos, mas também de

organizar-se para um trabalho formal, o ganho viria da possibilidade de viabilizar-se em seu projeto

como mãe e também enquanto profissional. Diante das reflexões, a mãe do paciente avaliou a

possibilidade de voltar a fazer trabalho com costuras, visto que tinha experiência e uma máquina em

casa, o que, segundo ela, “seria uma forma de conciliar seus desejos”.

Após quatro sessões seguidas com a mãe, foram realizadas duas novas sessões com o

paciente, em que foram trabalhados aspectos de sua independência e autonomia como filho - tendo

em vista que sua mãe havia relatado dificuldades para estimular este amadurecimento nos filhos – e

sobre sua relação com a mãe. Na primeira delas, fazendo uma reflexão sobre o que é ser

independente e sobre como esta construção ocorre na vida das pessoas, o paciente foi requisitado a

desenhar “coisas que fazia para as quais precisava de ajuda” e “coisas que fazia sozinho”. Para as

primeiras, desenhou a si mesmo sendo ajudado pela mãe na realização de tarefas de casa; como

coisas que fazia sozinho, desenhou: “escovar os dentes, pentear os cabelos, tomar banho, andar de

bicicleta, comer, vestir-se, ir à casa de seus amigos e estudar na escola”.

Assim, a autonomia que antes estava sendo trabalhada a partir dos perfis de amigo e

estudante do paciente, passou a se trabalhada também em seu perfil de filho, compreendendo-se que

as reflexões realizadas levariam ao entendimento de que cada sujeito é responsável por suas

escolhas e pelo seu projeto de ser. Por outro lado, salientou-se que a liberdade que os indivíduos

têm de escolher e de se constituir a partir de seu desejo está sempre mediada pelo outro e pela

materialidade. Assim, buscou-se localizar o paciente de que suas escolhas estarão sempre inseridas

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em um contexto e terão sempre o olhar e a mediação do outro, pois, segundo Sartre (1997, p. 290)

“o outro é mediação indispensável entre mim e mim mesmo”.

Na segunda sessão, trabalhando aspectos diretamente atrelados à sua relação com a mãe, o

paciente foi levado a refletir sobre as conseqüências que a sua forma de se colocar nesse perfil tinha

tanto para si como para a sua mãe, visto que, ao escolher para si, o indivíduo escolhe também para o

outro. Apesar deste trabalho com ele, naquele momento avaliou-se que as dificuldades do paciente

adquirir autonomia advinham, principalmente, da forma como a mãe se relacionava com os filhos,

já que, durante estas duas sessões, o paciente não demonstrou resistências em assumir as

responsabilidades por suas tarefas e auto-cuidado. Portanto, considerou-se fundamental dar

continuidade às reflexões iniciadas com ela nas sessões anteriores.

Dessa forma, o trabalho em terapia no processo de amadurecimento e de independência do

paciente - através das reflexões sobre as conseqüências de suas escolhas e da responsabilidade sobre

seu presente e sobre seu futuro e, conseqüentemente, sobre seu desejo de ser - esteve o tempo todo

vinculado às reflexões realizadas com a mãe do paciente, a partir da compreensão de que a

realidade é dialética, ou seja, de que os sujeitos fazem suas escolhas inseridos em um contexto de

relações, incluindo a relação com o outro, com a sociedade, com a materialidade e com a

temporalidade. Por isso, após estas sessões com o paciente, duas novas sessões com sua mãe foram

realizadas, quando foram abordadas questões relacionadas à sua própria independência com relação

aos filhos, ou seja, de modificação de uma dinâmica caracterizada pela centralidade que o papel de

mãe tinha em sua vida, que proporcionaria ao paciente novas possibilidades de experimentar-se

enquanto sujeito independente, mediado em sua relação com a mãe.

Segundo Schneider (2002, p. 229), as estruturas da família, dos grupos primários a que pertence, são interiorizadas pela criança em atitudes, e reexteriorizadas em práticas, pelas quais ela se faz ser aquilo que fizeram dela. Dessa forma, o que encontramos na infância são atitudes, ações, emoções que sempre têm sua origem em uma ‘determinação interiorizada’, passando por um processo de totalização e destotalização do ser da criança, no seio de suas relações fundamentais.

Portanto, na etapa da terapia em que a mãe do paciente foi chamada a participar ativamente

do processo, o trabalho esteve centrado na alteração de algumas de suas dinâmicas e também em

algumas dinâmicas da família – fundamentalmente através da mãe -, na medida em que seus

membros representavam a principal fonte de mediação para o paciente. Considerando que a

personalidade dos sujeitos é constituída a partir de um processo histórico, “realizado entre o jogo

dialético entre a objetividade (outros, sociedade, materialidade) e a subjetividade (o sujeito, com

suas emoções, seu imaginário, suas ações, suas qualidades)” (SCHNEIDER, 2002, p. 233), o

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trabalho da terapia buscou garantir que o paciente tivesse, em sua relação com a família, mediação

para a realização de seu projeto de ser.

Assim, nas últimas sessões realizadas com a mãe do paciente, procurando realizar um

trabalho “por dentro” de sua história, para que se apropriasse de fato das mudanças que vinha

fazendo, refletiu-se sobre a forma como ela vinha construindo sua história com os dois filhos e

sobre as conseqüências das escolhas que vinha fazendo até então em seu perfil de mãe.

Considerando que sua racionalidade sobre o mundo e sobre o conhecimento que tinha de si mesma

estava impregnada de determinismos, ela foi levada a compreender o caminho que vinha fazendo e

que estava gerando as dificuldades que lhe traziam sofrimento. As reflexões proporcionadas,

portanto, levaram-na a perceber que era imprescindível que se apropriasse de suas qualidades-de-ser

de forma crítica e que as alterasse de acordo com seu desejo-de-ser.

Refletindo sobre o futuro que desejava para si e que desejava para seus filhos,

compreendendo que sua personalidade havia sido constituída no e por seu movimento no mundo, a

mãe do paciente compreendeu que, através de suas ações, estavam sendo construídas, em terapia,

novas possibilidades de ser, que a aproximavam do seu desejo-de-ser. Em decorrência disso, seu

desejo e seu projeto foram sendo redesenhados ao longo das sessões. Após este período de terapia, a

mãe do paciente, nos últimos atendimentos antes da alta, relatou estar segura e preparada para

realizar escolhas de forma mais crítica, tendo aprendido o caminho – de retomar a sua história, de

olhar para o seu desejo de ser e também para o seu projeto de futuro – a ser construído diante da

necessidade de agir e de responsabilizar-se por sua vida e, consequentemente, por aqueles com

quem convivia.

Tendo apropriado-se de suas histórias, da forma como estavam construindo suas relações

com a exterioridade e da maneira como vinham constituindo suas personalidades, tanto o paciente

como sua mãe passaram a realizar escolhas de forma mais crítica, localizados de seus desejos e

projetos-de-ser, compreendendo a responsabildade que tinham sobre si mesmos e sobre os demais.

A partir destas redefiniçoes, ambos estavam preparados para a alta da terapia, que foi sendo

trabalhada aos poucos nos últimos dois meses de processso.

Além da alta, os conteúdos trabalhados nas últimas sessões com a mãe e com o paciente

incluiram a compreensão política descrita por Sartre (1978), relacionadas à responsabilidade que os

indivíduos tem com relação aos seus projetos e também para com os projetos de ser dos demais.

Assim, ambos puderam compreender que escolher para si implica em escolher também para o outro

e, além disso, para a humanidade, tendo em vista que os sujeitos são sempre seres em relação e que

constituem sua personalidade a partir da subjetivação da exterioridade, sendo a exterioridade criada

também a partir da objetivação que fazem de sua subjetividade, num processo dialético de

construção individual e social.

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4.2 Estudo de Caso 2

Paciente: B Sexo: Feminino Idade: 7 anos

Encaminhada por: Pediatra do Centro de Saúde do Município

Motivo do Encaminhamento: A paciente sentia “medo de tudo”

Número Total de Sessões: 5

Motivo do Desligamento: Excesso de faltas sem justificativa.

QUEIXA PRINCIPAL

A paciente tinha “medo de tudo”, mas principalmente de ficar sozinha. Também ficava muito

nervosa em algumas situações, com relação aos irmãos e quando a mãe não fazia suas vontades e

exigia dela certos limites; tinha dificuldade de aprendizagem.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas entrevistas com a paciente e com sua mãe, em sessão conjunta inicialmente e

individualmente após o primeiro atendimento. Com a paciente foram utilizadas técnicas como do

desenho livre e da família e também jogos infantis.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

A paciente apresentava reações esperadas mediante a situação enfrentada pela família quando da

chegada à terapia. Naquele momento, eram enfrentados lutos com relação à morte de mais de um

membro, que faleceram em um curto período de tempo. A mãe da paciente ausentou-se de sua casa

por algumas noites durante mais de um mês, pois era a principal cuidadora dos enfermos. As

dificuldades referidas pela mãe estariam, assim, relacionadas à dinâmica familiar e aos conflitos

vivenciados e presenciados pela paciente, em função dos lutos, do alcoolismo do pai e da maneira

como a família vinha construindo suas relações diante destes fatos.

PLANO TERAPÊUTICO

Psicoterapia individual, com o objetivo de investigar a real necessidade de realizar os atendimentos

com a paciente. A mãe da criança foi chamada para que fosse possível compreender quais as

expectativas dela com relação à terapia, para orientá-la e informá-la sobre as hipóteses levantadas.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Ao longo do processo, foi possível compreender que as atitudes da paciente relacionadas à queixa

da mãe estavam ocorrendo como reflexo da situação enfrentada pela família, principalmente com

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relação ao luto por familiares. Com o passar do tempo, a família pôde começar a se reorganizar e,

com isso, a mãe relatou melhoras sobre o comportamento da filha, fundamentalmente com relação

aos medos e às dificuldades de aprendizagem. Apesar disso, questões relacionadas à dinâmica

familiar seriam trabalhadas, tendo em vista que o pai da paciente era alcoolista e a mãe referia

dificuldades na relação com ele e também com a filha. Contudo, a paciente foi desligada em função

de não ter mais comparecido às sessões.

4.3 Estudo de Caso 3

Paciente C Sexo: masculino Idade: 27 anos

Separado, três filhos (duas meninas e um menino)

Encaminhado por: Estagiárias de Psicologia Educacional do Escritóro Modelo de Advocacia da

Universidade

Motivo do Encaminhamento: A mulher do paciente procurou ajuda psicológica para o marido após

ele ter sofrido duas “crises”, nas quais teria tido alucinações visuais e auditivas.

Número Total de Sessões: 5

Motivo do Desligamento: Excesso de faltas sem justificativa.

QUEIXA PRINCIPAL

O paciente queixou-se de estar sentindo-se confuso em função de mudanças que ocorreram na sua

vida, pois estava tudo bem até há algum tempo, quando “tudo começou a dar errado”. As mudanças

relatadas foram a perda do emprego, a aquisição de dívidas e a separação da esposa que, segundo

ele, não agüentou vê-lo fragilizado e pediu que terminassem o casamento de 11 anos. O paciente

relatou ter tido uma crise nervosa em que chorou muito e cortou seu corpo com cacos de vidro de

um copo quebrado, ter choro recorrente, sentir medo de voltar a ter outras crises e ter problemas de

relacionamento com a mãe.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas sessões com o paciente e um atendimento com a esposa, nas quais suas relações

foram descritas e investigadas através de entrevistas. Em algumas sessões, foram utilizadas tarefas

de casa como estratégias imediatas para lidar com as dificuldades que compunham sua queixa.

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HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

Um das hipóteses elaboradas foi a de que o paciente apresentou a crise a partir do evento da

separação de sua esposa e diante da possibilidade de ter de enfrentar sua ausência, já que este não

era seu desejo e considerando que ela era a principal fonte de apoio para as dificuldades que

enfrentava com as dívidas. Diante das mudanças que ocorreram em sua vida (perda do emprego e

dívidas), não conseguiu organizar-se de maneira a lidar com os problemas que precisou enfrentar;

por isso, sentia-se fraco e culpado por não ter conseguido resolver as dificuldades sem apresentar as

crises. Uma hipótese sobre o que estava contribuindo para este sentimento era o fato de sua esposa

cobrar dele um comportamento de “homem da casa”, que precisava ser forte e protegê-la. Assim, o

paciente apresentava dificuldades de se posicionar diante das situações que exigiam dele escolhas e

atitudes, tanto com relação às dividas como na relação com a esposa e também em seu

relacionamento com sua mãe, que o criticava por estar casado com uma mulher que tinha uma filha

de outro homem. Essa dificuldade de posicionamento o angustiava e o fez mergulhar na

espontaneidade, dando a ele a sensação de impotência e fraqueza, fazendo com que, cada vez mais,

se sentisse triste e frágil emocionalmente.

PLANO TERAPÊUTICO

Psicoterapia individual. Diante do desejo de continuar casado, de quitar suas dívidas e de lutar para

que sua vida voltasse a estar sob seu controle, a psicoterapia tinha como meta auxiliar o paciente a

compreender o caminho que vinha fazendo e que fez com que se complicasse, bem como delinear

com contornos mais claros seu desejo de ser e instrumentalizá-lo para que, agindo de forma mais

ativa, escolhendo a partir de uma consciência crítica, pudesse chegar a concretizar seu projeto de

ser.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Ao longo das sessões realizadas, foi possível compreender que o paciente, diante de mudanças

significativas nas condições objetivas de sua vida, não conseguiu estar seguro emocionalmente para

fazer escolhas e enfrentar os problemas sem complicar-se psicologicamente. Através dos relatos

sobre a forma como vinha construindo suas relações, foi possível perceber que, colocando-se no

mundo de maneira bastante passiva, lhe faltava clareza sobre seu desejo e sobre a necessidade de

agir conscientemente de forma a concretiza-los: sentindo-se inseguro diante da necessidade de

escolher que a vida lhe exigia, o paciente complicou-se a partir do momento em que não mais

conseguia viabilizar seu desejo e seu projeto de ser. Neste sentido, a terapia teria como objetivo

instrumentalizar o paciente, para que se tornasse capaz de transcender suas dificuldades e ter seu

projeto em suas mãos.

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4.4 Estudo de Caso 4

Paciente: F Sexo: Masculino Idade: 12 anos

Encaminhado por: Pediatra do Posto de Saúde do Município

Motivo do Encaminhamento: sentia raiva diante de “brincadeiras de mau gosto” que os colegas

faziam; não conseguia segurar as fezes.

Número de sessões: 8

Motivo do desligamento: Excesso de faltas sem justificativa.

QUEIXA PRINCIPAL

A mãe do paciente relatou ter buscado atendimento psicológico para seu filho por ele ser muito

nervoso e por não conseguir segurar as fezes. Disse que estes problemas haviam começado há um

ano, quando o paciente tinha 11 anos e “começou a dar problema”, como brigar com os colegas,

faltar aulas e ficar muito nervoso.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas entrevistas com o paciente e com sua mãe, em sessão conjunta inicialmente e

individualmente após o primeiro atendimento. Com o paciente foram utilizadas técnicas como de

desenho e também jogos infantis.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

As dificuldades do paciente apareceram como ligadas ao seu relacionamento com os pais: a mãe

definia-se como nervosa, perdendo a paciência com o filho e reconhecendo participar de forma

distante de seu cotidiano; o pai mudava-se constantemente de cidade e não realizava contato com o

menino por, pelo menos, 4 meses. Não foi descartada possibilidade de influência de causas

orgânicas para a dificuldade de segurar as fezes, tendo em vista que mãe não o levou para avaliação

médica. A hipótese que se apresentou como a mais condizente com a realidade vivenciada pelo

paciente foi a de que poderia haver alguma inviabilização em seu perfil de filho, já que o quem

apareceu em terapia foi que a relação que mantinha com sua mãe era permeada por conflitos e pela

falta de mediação dela para que seu desenvolvimento pudesse ocorrer de forma segura. Nos poucos

contatos realizados com a mãe, ela apareceu como alguém que não conseguia dialogar com o filho,

sentindo-se nervosa por diversas vezes em seu cotidiano e “descontando” nele sua raiva advinda de

vivências em seu ambiente de trabalho, através de agressões verbais e, mais raramente, físicas.

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PLANO TERAPÊUTICO

Psicoterapia individual, com objetivo de investigar as possíveis causas para a dificuldade de segurar

as fezes do paciente e também para avaliar as situações em que sentia-se nervoso. Seria investigado

sobre a relação da mãe com o filho e sobre a forma como a ela o apreendia e o educava, bem como

investigar como o paciente se via, sobre como acreditava que os outros o viam e também sobre

quem era este outro para ele, para que fossem trabalhadas questões relacionadas ao seu desejo de

ser e sobre a sua responsabilidade de fazer escolhas que o viabilizassem.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Ao longo do processo, a estratégia utilizada em psicoterapia foi a de compreender o cotidiano em

que o paciente estava inserido, com suas relações em todos os perfis, considerando que havia relatos

de uma história um pouco confusa em seu perfil de filho: o pai ausentava-se constantemente (não

fazia contato desde antes do início da terapia) e a relação com a mãe parecia tumultuada, com

relatos de agressão física e verbal em algumas ocasiões. Na última sessão, percebeu-se a

necessidade de realizar um trabalho mais intenso com a mãe do paciente, pois provavelmente em

função de condições objetivas de dificuldade de organizar sua rotina e de ter tempo para o filho, ela

estivesse distanciada dele, necessitando de uma reflexão mediada para que pudesse agenciar seu

tempo de acordo com seu desejo e projeto de ser, fornecendo apoio e mediação ao filho, que

demonstrava sentir uma insegurança de ser em função das dificuldades de tecimento na relação com

os pais.

4.5 Estudo de Caso 5

Pacientes: G Sexo: M Idade: 13 anos

Encaminhado por: Conselho Tutelar, por pedido da mãe do paciente

Motivo do encaminhamento: Estava apresentando dificuldades de relacionamento; não gostava de

limites e de ser contrariado, não respeitando regras e mostrando-se agressivo.

Número de sessões: 6

Motivo do desligamento: Excesso de faltas sem justificativa.

QUEIXA PRINCIPAL

O paciente e a tia que o acompanhou – sua responsável – queixavam-se de dificuldades de

relacionamento dele com sua mãe, que o havia abandonado aos cuidados da tia quando ele tinha

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ainda 15 dias. A tia queixou-se ainda de que o menino, em muitas ocasiões, não conversava sobre o

que sentia, ficando sozinho, sem comer e querendo apenas ficar dormindo em seu quarto.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas entrevistas com o paciente, em sessão conjunta inicialmente e individualmente

após o primeiro atendimento. Com o paciente foram utilizadas técnicas como mapeamento das

relações familiares e também jogos infantis.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

Apesar da queixa dos encaminhantes de que o paciente era indisciplinado, o paciente demonstrou

ser um adolescente bastante ativo, espontâneo e alegre e preocupava-se em não deixar que a mãe

cometesse o que, ao seu ver, eram injustiças na forma como tratava seu pai. Nestes momentos,

entrava em atrito com ela, que não conseguia estabelecer um diálogo claro com o filho, nem

proporcionar a ele segurança de ser. Assim, seu sofrimento estava relacionado principalmente às

vivências em seu perfil de filho, visto que não sentia possibilidade de estabelecer tecimento com sua

mãe, que, por sua vez, parecia não conseguir separar as dificuldades advindas de sua separação com

o pai do paciente e de seu relacionamento com o filho.

PLANO TERAPÊUTICO

Psicoterapia individual, com o objetivo trabalhar a forma como o paciente se relacionava com sua

mãe, investigando-se seu desejo sobre como gostaria que essa relação ocorresse, auxiliando-o a

posicionar-se de maneira a atingir seu desejo e, conseqüentemente, seu projeto de ser como filho.

Ainda, objetivou-se não permitir que as queixas e dificuldades da mãe em seu relacionamento com

o paciente e também com o pai dele lhe proporcionassem mediações que viessem a contribuir na

construção de suas qualidades-de-ser, ou seja, possibilitar que ele se afastasse psicologicamente do

discurso da mãe, que o desvalorizava e o lançava em uma insegurança de ser.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Ao longo do processo, foi possível compreender que a mãe do paciente lhe apresentava um discurso

ambíguo com relação à assunção de sua maternidade. Por outro lado, poderia haver um discurso

ambíguo também da tia (irmã da mãe) que o estava educando, pois, em determinados momentos, a

tia referia que sua irmã era “difícil, mal educada”, responsabilizando-a pelo sofrimento do sobrinho,

mas, outras vezes, queixava-se do menino, dizendo que ele precisava “deixar de ser rebelde”.

Diante disso e também diante de seu desejo de estabelecer um bom relacionamento com a mãe, o

paciente encontrava dificuldades de se viabilizar em seu perfil de filho. Contudo, quando foram

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trabalhadas estratégias de distanciamento psicológico, o paciente demonstrou apropriar-se do que

estava sendo discutido, conseguindo pensar em maneiras práticas de realizar mudanças e, inclusive,

tendo relatado pequenas alterações – que considerou como melhoras - em seu comportamento e

também no comportamento da mãe.

4.6 Estudo de caso 6

Paciente: H Sexo: M Idade: 7 anos

Encaminhado por: Médica pediátrica

Motivo do encaminhamento: “Comportamento diferenciado”

Número de sessões: 4

Motivo do desligamento: Incompatibilidade de horário; o paciente foi encaminhado para outra

estagiária, em horário oposto ao que freqüentava a escola.

QUEIXA PRINCIPAL

A mãe do paciente queixava-se fundamentalmente que o filho era muito distraído e aéreo. Referia

algum dano neurológico leve, mas não especificado, que justificaria em certo grau as dificuldades

de atenção do filho.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas quatro entrevistas de triagem, sendo que a primeira e a última contaram com a

presença da mãe do paciente. Com a paciente foram utilizadas técnicas como do desenho livre e da

família e também jogos infantis.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

Diante das entrevistas com o paciente e com sua mãe e da utilização das técnicas mencionadas, foi

constatado que o paciente apresentava uma leve dificuldade de concentração e atenção,

principalmente para o início da realização de algumas tarefas. Contudo, mais do que ser devido a

algum prejuízo neurológico, estas dificuldades pareciam advir da superproteção da mãe, que relatou

não “ter paciência” de mediar o aprendizado do filho para tarefas simples, como deveres de casa,

banho, escovação dos dentes, realizando-as para ele.

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PLANO TERAPÊUTICO

Seriam realizadas sessões com a criança, para estimulá-la ao aprendizado da autonomia e de

estratégias para concentrar-se e manter sua atenção em tarefas simples, como cuidados com a

higiene, deslocamento entre escola/casa/casa de amigos; e seriam realizadas sessões para mediar as

mudanças requeridas da mãe com relação ao seu comportamento de superproteção, que atravancava

o amadurecimento do filho.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Percebeu-se a necessidade de terapia para a criança, a fim de estimulá-la para aquisição de

autonomia e maturidade; contudo, seria de fundamental importância a participação da mãe no

processo, para que suas mudanças com relação ao comportamento de superproteção do filho

pudessem ser mediadas, com o intuito de estimular a criança a desenvolver a capacidade de atenção

e também de amadurecimento.

4.7 Estudo de caso 7

Pacientes: I e J Sexo: M Idade: 6 e 8 anos

Encaminhado por: Conselho Tutelar

Motivo do encaminhamento: Foram vítimas de abuso sexual por parte de um primo de 16 anos, no

ano de 2005

Número de sessões: 8

Motivo do desligamento: Os pacientes não receberam alta e foram encaminhados para atendimento

com outro estagiário.

QUEIXA PRINCIPAL

A mãe do paciente relatava sentir-se preocupada com as conseqüências do abuso sexual sofrido

pelos filhos, tendo em vista que ela considerava não ter sido capaz de prestar-lhes apoio naquele

momento, nem de ter fornecido mediação para que elaborassem o ocorrido. Dizia, ainda, que o filho

mais velho era muito “fechado” e de humor instável e que o filho menor gostava apenas de brincar

com meninas e de que, com os meninos, tentava realizar brincadeiras de conotação sexual.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas 3 entrevistas de triagem com os dois meninos conjuntamente, tendo o atendimento

sido iniciado neste formato. Após este período, passou-se a atendê-los separadamente, tendo sido

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realizados cinco encontros no formato de psicoterapia individual. Foram utilizadas técnicas de

desenhos, pinturas infantis, jogos e fantoches.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

Nas sessões realizadas, os pacientes não fizeram menção ao abuso sofrido nem demonstraram

comportamentos e falas relacionadas ao evento. Contudo, diante da dinâmica familiar em que

estavam inseridos, expressavam dificuldades em seu dia-a-dia – sentiam-se tristes, agrediam seus

colegas quando desentendiam-se com eles, por exemplo -, tendo em vista que seu pai, no último

ano, os visitava somente nos finais de semana e a mãe, muitas vezes, os agredia física e

verbalmente. Assim, era principalmente pela maneira como suas relações familiares estavam sendo

experienciadas que as dificuldades pareciam advir. Ainda, pela falta de estímulo e pela ausência dos

pais nos cuidados com os filhos, percebia-se também uma dificuldade de ambos em expressarem

suas emoções e relatarem fatos simples e concretos de seu dia-a-dia, possivelmente proveniente de

uma condição precária para aprendizagem.

PLANO TERAPÊUTICO

A partir das hipóteses levantadas, seria necessário descrever as relações familiares e relações dos

demais perfis dos pacientes, para avaliar as dificuldades que tinham e mediar sua organização

concreta no cotidiano. Além disso, na medida em que o processo fosse evoluindo, seria possível

avaliar mais claramente como os pacientes haviam se apropriado da experiência do abuso e, se

necessário, realizar uma mediação para a apropriação desse evento de forma a não inviabilizá-los

em seus desejos-de-ser e de futuro, sendo esse episódio também trabalhado com a mãe.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Embora tenha sido encaminhado pelo CT por ter sido vítima de abuso sexual, esta não foi uma

questão que apareceu ao longo das sessões, mesmo nos momentos em que o paciente referiu que

alguns primos eram seus amigos (tendo citado nome e idade de cada um) e também naqueles em

que se enfatizou sobre a possibilidade de falar naquele espaço sobre “problemas e dificuldades

enfrentadas”. Assim, a avaliação que se fez é de que existem questões que podem vir a complicar o

paciente se não forem trabalhadas, mas que são da ordem do ambiente familiar em que está

inserido, que lhe apresenta pouco estímulo e mediação para que sinta a segurança de ser que

necessita para fazer escolhas e viabilizar-se em seu projeto de ser.

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4.8 Estudo de caso 8

Pacientes: K Sexo: F Idade: 28 anos

Encaminhado por: Conselho Tutelar

Motivo do atendimento: Mãe dos pacientes I e J, vítimas de abuso sexual

Número de sessões: 11

Motivo do desligamento: A pacientes não recebeu alta e foi encaminhada a outro estagiário.

QUEIXA PRINCIPAL

Tendo chegado à terapia buscando atendimento para os filhos (estudo de caso 7), a paciente relatou

dificuldades para enfrentar a situação de abuso sofrida pelos filhos, por ela ter sido também vítima

de abuso sexual quando criança, praticado por um irmão mais velho. Sua queixa era de que, tendo

sofrido abuso dos 9 aos 12 anos, durante toda a sua vida foi fazendo escolhas “sem pensar”, o que

naquele momento havia criado uma situação de sofrimento, por estar vivendo uma vida que não era

a desejada por ela. A partir das primeiras sessões realizadas com ela - para início da terapia com os

filhos-, de suas queixas e do quadro de sofrimento apresentado, optou-se por realizar o atendimento

psicoterápico individual.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Foram realizadas entrevistas individuais, nas quais foram descritas suas relações e também sua

história. Em algumas sessões, foram utilizadas tarefas de casa como instrumentos no auxílio à

demarcação de fenômenos psicológicos.

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS

Através da descrição da história da paciente e de suas relações, principalmente familiares, foi

possível elaborar a hipótese de que, a partir do abuso sofrido por ela na infância e início da

adolescência, tendo em vista que estas ocorrências não foram mediadas, a paciente passou a fazer

escolhas de maneira espontânea. Dessa forma, tendo casado com 13 anos, para sair de casa e não

mais ser abusada, havia depositado no casamento e no marido todas as expectativas de uma vida

feliz, mas acabou por fazer escolhas de forma alienada que, no momento da chegada em terapia,

não condiziam com seu desejo. Sentindo-se inviabilizada, determinada a viver uma vida de

sofrimento, a paciente não via para si outra possibilidade que não fosse a de continuar vivendo uma

vida que não havia escolhido para si.

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PLANO TERAPÊUTICO

Realizar o processo de psicoterapia individual, com o objetivo de reorganizar a personalidade da

paciente, retomando sua história e descrevendo suas relações, conhecendo e alterando sua dinâmica-

de-ser que, naquele momento, continha características que a inviabilizam em seu movimento no

mundo, apresentavam-se como complicações psicológicas e lhe causavam sofrimento. Ainda, seria

redefinido seu projeto-de-ser, para que pudesse retomar seu ser em suas mãos, superando

dificuldades e fazendo escolhas de forma crítica, localizada de seu desejo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO

Através das sessões realizadas, percebeu-se que a paciente, em decorrência de sua história de vida e

da maneira pela qual foi, ao longo dela, se apropriando dos eventos que ocorrem, sentia-se

inviabilizada em seu projeto de ser, apresentando complicações psicológicas que lhe causava

sofrimento. Sentindo estar diante de uma realidade contraditória e que parecia não apresentar a ela

outras possibilidades de ser, vivenciava conflitos constantes com o marido e dificuldades freqüentes

na relação com os filhos. Ao mesmo tempo, por sentir-se inviabilizada, a paciente também não

conseguia fornecer mediação para viabilizar o ser de seus filhos, de dar-lhes segurança e de

estimular seu amadurecimento. Diante dessa realidade, a terapia, ao representar uma mediação que

lhe levou a compreender a forma como vinha constituindo sua personalidade e construindo o

cotidiano de relações que experimentava naquele momento, possibilitou à paciente a realização de

algumas mudanças.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estágio foi desenvolver processos de psicoterapia na abordagem

Fenomenológica Existencialista de J. P. Sartre, beneficiado a comunidade atendida por uma

Unidade Básica de Saúde de um município de Santa Catarina e demais localidades próximas à

cidade. Assim, os pacientes atendidos ao logo de um ano e meio de estágio puderam contar com o

serviço psicoterápico gratuito, para que, ao final do processo, tivessem se tornado capazes de

transcender as dificuldades que os levaram a buscar o auxílio da psicologia.

Neste período, foram atendidos nove pacientes, sendo sete crianças, com idade entre 6 e 13

anos, e dois adultos, sendo um homem de 27 anos e uma mulher de 28. Com relação às crianças, a

demanda pelo atendimento relacionava-se, principalmente, a queixas sobre seu comportamento – de

agressividade, raiva, medo ou de dificuldades na escola -, demarcado características comuns às

crianças encaminhadas ao atendimento naquela clinica. No atendimento a estes pacientes, três deles

desistiram do processo psicoterápico. Nestes três casos, percebeu-se que, quando os pais foram

chamados a participar ativamente da terapia, não compareceram às sessões e que, portanto, ao não

se envolverem no processo, acabaram por desvalorizar o trabalho, atitude que possivelmente gerou

o desligamento do paciente por motivo de faltas sem justificativa.

Quando, por outro lado, os pais mostraram-se participantes e ativos, como no estudo de caso

deste relatório, a terapia pôde ser desenvolvida em todas as suas etapas. Dessa forma, houve a

possibilidade de promover uma reorganização da personalidade do paciente, na medida em que suas

qualidades-de-ser foram demarcadas e alteradas, redefinindo-se seu projeto-de-ser. Assim, a partir

do momento em que uma nova mediação foi inserida em suas relações, seu eu pôde aparecer, visto

que, refletindo criticamente sobre si mesmo, fez mais do que assumir o que lhe foi imposto e

superou o “dever-ser” para situar-se no horizonte do “poder-ser”, como descrito pela teoria.

Além da dificuldade em dar continuidade à terapia quando havia a desvalorização dos pais

do paciente com relação ao trabalho, outro entrave encontrado nos processos foi a impossibilidade

de realizar um trabalho interdisciplinar, através do dialogo, avaliação e acompanhamento conjunto

do paciente com outros profissionais da saúde. Considera-se, que, principalmente nos casos mais

graves, esta forma de trabalho enriquece o processo e abarca o sujeito sem fragmentá-lo, visto que

os processos de saúde/doença são entendidos como fenômenos coletivos, históricos e

multideterminados. No caso do paciente do estudo de caso 2, por exemplo, este contato poderia ter

proporcionado uma avaliação conjunta com um médico, para avaliar sua condição física com

relação à dificuldade da criança em segurar as fezes, o que não foi possível. Além disso, não houve

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possibilidade, durante o estágio, de realizar trabalhos de prevenção e de promoção em saúde,

atividades preconizadas para o atendimento em Unidades Básicas.

Percebe-se, assim, que há, ainda, uma construção a ser realizada no campo da saúde, no

sentido de organizar os profissionais de suas diversas áreas para uma comunicação efetiva e eficaz.

Além disso, há a necessidade de compartilhar saberes que são característicos da Psicologia, a fim de

instrumentalizar outros profissionais para que realizem encaminhamentos a partir de avaliações

mais consistentes. Isto evitaria, entre outros dificultadores, um olhar estereotipado voltado aos

sujeitos, como, por exemplo, o caso em que o paciente foi encaminhado por ter, segundo uma

médica, “comportamento diferenciado”.

Por outro lado, considera-se que o exercício da psicoterapia enquanto serviço gratuito a uma

comunidade predominantemente inserida em classes populares possibilitou que a Psicologia tenha

chegado até pessoas que de outras formas não teriam acesso a esse serviço. Segundo Bock (2003),

esta prática tem visado beneficiar uma população que, historicamente, foi excluída da Psicologia,

que assumiu no Brasil, desde o início de sua emancipação como profissão, um compromisso com as

elites, vendo o homem como capaz de produzir seu próprio desenvolvimento e individualização,

tirando o papel da sociedade na construção do ser humano enquanto pessoa.

Acredita-se, assim, que a lista de espera existente para o atendimento em psicologia

demonstra o quanto o atendimento realizado é de qualidade, tendo feito com que aquela UBS tenha

se tornado referência para o atendimento psicológico. Para diminuir esta lista, sugere-se a

organização de um trabalho de triagem mais longo do que aquele que já vem sendo feito, em que o

paciente fosse chamado à clínica, passando por quatro a cinco sessões de avaliação, para

levantamento da real necessidade de psicoterapia ou da existência da possibilidade de realizar um

atendimento com foco em uma orientação breve ou mediação, por exemplo. Para realizar este

trabalho, uma das possibilidades seria direcionar o primeiro semestre de estágio em psicologia

clínica a este atendimento.

Ainda, considera-se que, pela diversidade de demandas que se apresentam a clínica, há a

possibilidade de realizar um trabalho amplo, de psicoterapia, de orientação e também de

envolvimento da família no processo, requerendo que o estagiário desenvolva instrumentos e

ferramentas que dêem conta dessa diversidade. Por outro lado, a abordagem fenomenológica

existencialista de J. P. Sartre, ao não reduzir o paciente a queixa nem a um diagnóstico, mas

compreender a partir de sua história e das relações que estabelece com a exterioridade, permite

abarcar a diversidade dos fenômenos a serem trabalhados em terapia, considerando o homem como

um “eterno vir a ser”, ou seja, como aquele que se move para o futuro e que o faz em direção àquilo

que ainda não é e que ainda pode realizar.

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Assim, sendo um ser inacabado, há sempre a possibilidade de alteração do projeto-de-ser do

indivíduo, para que suas ações no mundo tornem-se, cada vez mais, condizentes com seu desejo. Ao

escolher para si de forma responsável, compreendendo-se como um ser que é livre, o sujeito pode

fazer escolhas que viabilizem seu ser, entendendo que não está determinado a sofrer, sendo capaz

de construir e reconstruir sua vida de muitas formas. A terapia com base na teoria de Sartre, assim,

possibilita um trabalho que torna os sujeitos responsáveis por si mesmos e também pelo coletivo

que estão sempre construindo – e que, por sua vez, também os constitui. Permite, ainda, que o

psicoterapeuta, enquanto sujeito, transforme a realidade humana e se transforme, tendo em vista que

estabelece relações que são sempre dialéticas.

Portanto, como construtores e construídos da realidade, ao mesmo tempo em que os sujeitos

participantes da terapia puderam redefinir seus projetos, houve a preparação da estagiária para o

exercício da profissão enquanto psicóloga clínica. Além disso, através das reflexões realizadas em

supervisão, no contato com outras estagiárias e no dia-a-dia de trabalho, ficou claro que, enquanto

profissionais, possuímos um compromisso individual, social e também científico que é o de alterar a

realidade, a partir de uma ação crítica e comprometida com o bem-estar humano.

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7 RESUMO

Este relatório descreve as atividades realizadas em Estágio Supervisionado em Psicologia

Clínica, requisito obrigatório para a graduação em Psicologia em uma Universidade do Estado de

Santa Catarina. As atividades desenvolvidas foram definidas como Psicoterapia Individual e

objetivaram o atendimento clínico gratuito à população no contexto de uma Unidade Básica de

Saúde. Os atendimentos ocorreram em salas disponibilizadas pela Unidade, que contavam com

condições apropriadas para as atividades de psicoterapia e que garantiram as condições de sigilo

necessárias ao trabalho, da mesma forma ocorre para os demais profissionais da saúde atuantes

naquele local. Ao longo de um ano e meio, foram atendidos nove pacientes, entre eles sete crianças

entre 6 e 13 anos e dois adultos – um homem e uma mulher – de, respectivamente 27 e 28 anos. A

maioria destes pacientes veio encaminhada por profissionais de outros centros de saúde ou do

Conselho Tutelar do Município. As demandas foram desde queixas de depressão, ansiedade, medo e

agressividade, até casos de violência sexual. Tendo em vista que os atendimentos foram

desenvolvidos a partir da abordagem existencialista fenomenológica, o processo psicoterápico

objetivou a alteração da personalidade dos sujeitos, para que se tornassem capazes de transcender

suas dificuldades. Assim, nas situações em que houve engajamento, por parte dos pacientes, este

objetivo pôde ser alcançado, conforme explicitado através do principal estudo de caso descrito neste

relatório. Para o atendimento de crianças, foi considerado fundamental o acompanhamento e o

engajamento de seus pais e/ou responsáveis no processo. Nos casos em que isto não foi verificado, a

criança não sentiu-se motivada a dar continuidade à psicoterapia e desistiu dos atendimentos. Como

considerações acerca do trabalho, destaca-se que, pela diversidade de demandas que se apresentam

a clínica, há a possibilidade de realizar um trabalho amplo, de psicoterapia, de orientação e também

de envolvimento da família no processo, requerendo que o estagiário desenvolva instrumentos e

ferramentas que dêem conta dessa diversidade. Por outro lado, a abordagem fenomenológica

existencialista, ao não reduzir o paciente a queixa nem a um diagnóstico, mas compreendê-lo em

sua história e relações que estabelece com a exterioridade, permite abarcar a diversidade dos

fenômenos a serem trabalhados, considerando o homem como aquele que se move para o futuro e

que o faz em direção àquilo que ainda não é e que ainda pode realizar. Como considerações acerca

da inserção do psicólogo em serviços de saúde pública, destaca-se que há ainda uma construção a

ser realizada neste campo de atuação, no sentido de organizar os profissionais das diversas áreas da

saúde para uma comunicação efetiva e eficaz. Além disso, há a necessidade de compartilhar saberes

que são característicos da Psicologia, a fim de instrumentalizar outros profissionais para que

realizem encaminhamentos a partir de avaliações mais consistentes, evitando o acúmulo de

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pacientes em lista de espera por atendimento. Por outro lado, considera-se que o exercício da

psicoterapia enquanto serviço gratuito a uma comunidade predominantemente inserida em classes

populares possibilitou que a Psicologia tenha chegado até pessoas que de outras formas não teriam

acesso a esse serviço.