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Universidade do Minho
Instituto de Educação
RELATÓRIO DE PESQUISA
PÓS-DOUTORADO
A (in)visibilidade da pedagogia e as possíveis novas gramáticas no espaço acadêmico: de uma
pedagogia negada para uma pedagogia vivida
Investigadora: Rita de Cássia M. T. Stano
(Universidade Federal de Itajubá, Brasil)
Orientação: Flávia Vieira e Natascha van-Hattum-Janssen
(Universidade do Minho, Portugal)
Abril de 2013
1
SUMÁRIO
1 - Introdução ............................................................................................ 2
2 – Cenário da pesquisa: o Processo de Bolonha ................................ 3
3 – Base conceptual 1: o lugar da pedagogia na universidade ........... 7
4 – Base conceptual 2: as engenharias e seus meandros pedagógicos.................................................................................................................. 11
5 – O caminho da pesquisa: traços metodológicos............................ 17
6 – Uma arquitetura pedagógica em construção................................. 21
7 – Considerações finais........................................................................ 38
Referências bibliográficas ..................................................................... 39
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Esquema da atividade supervisiva ..................................... 27
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Dados iniciais dos entrevistados ...................................... 19
Quadro 2 – Guiões das entrevistas....................................................... 20
Quadro 2 – Síntese de respostas dos gestores entrevistados .......... 24
Quadro 3 – Síntese de respostas dos docentes entrevistados ......... 29
2
1- Introdução
O presente relatório sintetiza a pesquisa de pós-doutorado realizada em
Portugal no período compreendido entre Setembro de 2012 e Fevereiro de
2013, a qual parte do pressuposto de que há uma Pedagogia que orienta as
práticas docentes universitárias e que advém delas, porém é pouco explicitada
e devidamente sistematizada.
No âmbito do projeto de pós-doutorado, com base em testemunhos
profissionais de docentes de Engenharia das Universidades do Minho, Porto e
Aveiro, recolhidos a partir de uma entrevista semi-estruturada, procurou-se
compreender em que medida e de que forma se (re)constrói o conhecimento
profissional docente, assim como aceder a mecanismos (individuais e
institucionais) de supervisão da ação docente, possibilitando uma reflexão
sobre o papel da pedagogia universitária nos processos de desenvolvimento
profissional e de promoção da qualidade do ensino, mas também como espaço
de preservação de uma certa singularidade frente ás políticas de
estandardização provenientes do Processo de Bolonha. Equacionando a
existência de uma epistemologia praxeológica na condução e supervisão da
prática formativa, buscou-se descobrir uma pedagogia vivida em contextos
onde a pedagogia enquanto atividade acadêmica é ainda largamente invisível
e, em grande medida, negada.
A contextualização da pesquisa na formação em Engenharia decorreu
da intenção de estabelecer conexões com a realidade de cursos homólogos na
Universidade Federal de Itajubá no Brasil, onde a investigadora tem vindo a
realizar investigação na área da pedagogia no ensino superior, e onde serão
confrontados os dados obtidos em Portugal com dados obtidos nesse contexto,
a partir da mesma entrevista. Contudo, a problemática da pesquisa é
transversal ao currículo do ensino superior.
O relatório parte de uma breve caraterização do cenário de pesquisa
tendo em conta as recentes reformas do ensino superior na Europa, seguindo-
se uma síntese da sua base conceptual, a apresentação da metodologia
seguida, a análise dos testemunhos recolhidos e uma proposta de
reconfiguração da pedagogia.
3
2- Cenário da pesquisa: o Processo de Bolonha
Desde 1998 a União Européia, por meio de suas comissões,
conferências de reitores, associações estudantis e ministérios de educação,
articula a concretização de mudanças e define propostas de políticas
educativas para a Ensino Superior1 de seus países-membros, visando
constituir o chamado Espaço Europeu de Ensino Superior - EEES2. Em 2009, a
Declaração de Bolonha é assinada e apresentada à comunidade universitária e
científica da Europa. Trata-se de uma proposta marcada pela globalização e
por desígnios neoliberais de gestão institucional, de cunho mercantil e
competitivo, e que visa tornar as universidades européias, seu ensino e sua
produção científica, atraentes aos jovens em formação e à frente de suas
concorrentes norte-americanas.
Há pois um sentido econômico nessas novas políticas educativas, que
apontam para um tipo de universidade a ser traçada sob bases utilitaristas e
pragmáticas, fazendo do conhecimento um capital a ser negociado,
propagandeado e disponibilizado por tempos (prazos) equiparados a fim de
garantir o que se denomina "convergência" entre os países em seus planos
curriculares e sistemas de crédito para a realização dos três ciclos de formação
propostos: o primeiro, mais generalista, forma o aluno (mínimo de 3 anos) para
o mercado de trabalho (graduação), seguindo-se dois ciclos mais
especializados (mestrado e doutorado)
Apesar do apelo ao ensino centrado no aluno que acompanha o
Processo de Bolonha, para Esteves (in LEITE, 2010), no primeiro ciclo de
formação, de caráter generalista, há uma tendência para um ensino tradicional
e expositivo ao prever-se um tempo mais curto de formação e o aumento do
número de alunos. As formações gerais propostas para o primeiro ciclo, pelo
encurtamento de seus currículos, enxugamento do número de professores e 1 Nesta pesquisa o termo ensino superior e universidade serão empregados como sinônimos, correspondendo á formação profissional após o ensino médio, sem porém desconsiderar a diversidade de instituições que existem no Brasil e em Portugal. Cabe salientar que efetivamente a pesquisa foca em instituições universitárias e especificamente, nos cursos de engenharia inseridos em universidades públicas desses dois países. 2 Informações retiradas em sites oficiais sobre o assunto: www.bologna-bergen2005.no e http://europa.eu.int/comm/education/index_en.html e de documentos do Ministério da Ciência, Inovação e Ensino Superior - Portugal
4
aumento do número de vagas para os alunos, apontam para as estratégias
metodológicas de ensino que propiciem (in)formar em grande escala e em
curto período de tempo, o que pode contribuir para manter a universidade num
espaço de arcaísmo pedagógico, mais informando que formando seus alunos.
Por outro lado, e em resultado do apelo à inovação pedagógica, observa-se
também um movimento de pragmatismo pedagógico, em que a reflexão sobre
a prática cede lugar a uma aplicação desenfreada de procedimentos didáticos
sem a devida fundamentação e ajuste à diversidade dos contextos de ação
docente. Podemos dizer que a par de um apelo sem precedentes a um ensino
centra no estudante, as determinações de cunho empresarial apoiadas na
propalada gestão de resultados focados na mobilidade, empregabilidade e
competitividade, apresentam um sentido de educação contábil, centrada no
cálculo e na medição de resultados, em que os sujeitos parecem estar
ausentes de todo o processo de implementação da proposta (LIMA, AZEVEDO
e CATANI, 2008). Para Silva (2011), o Processo de Bolonha apresenta, cada
vez mais, mecanismos tecnocráticos de controle de outputs, como as agências
de avaliação e a harmonização de sistemas de creditação, colocando em risco
o tempo destinado ao ensino e o investimento em mudanças sustentáveis.
É pois num cenário de contradição, que centraliza, quantifica e
determina de maneira objetiva os processos de controle do ensino ao mesmo
tempo que expõe a necessidade de criar novas práticas docentes, que as
universidades que aderiram ao Processo de Bolonha têm a oportunidade de
inovar, ultrapassando modelos pedagógicos que se tornam insuficientes para
atender à necessidade de formar e desenvolver competências humanas e
profissionais em seus alunos. Face a esta contradição de base da
"convergência dos sistemas de ensino superior", tem-se a oportunidade de
redesenhar um outro modo de se fazer educação na universidade, novos
arranjos curriculares que efetivamente resgatem a valorização do ato de
ensinar, das práticas de ensino que devem se centrar no aluno, exigindo
práticas docentes diferenciadas. Como afirma Lima (2006), tais mudanças
devem ir além da mera troca ou uso de terminologias e aspectos formais no
âmbito da Pedagogia.
A União Européia, ao deflagrar o Processo de Bolonha para o ensino
superior, determina um território curricular que pretende convergente a fim de
5
possibilitar ou facilitar o intercâmbio de alunos em escala global. O risco de
descaracterização do que diferencia uma universidade de outra, nos meandros
de suas histórias, nas centenas de anos em que elas se construíram, na
importância de seus espaços na configuração da própria história de seus
países, como lugares de crítica, de conservação de saberes para além dos
científicos, precisa ser devidamente considerado a fim de que o Processo de
Bolonha possa constituir um meio para, de alguma forma, fortalecer
exatamente o que as diferencia.
Nesse sentido, as universidades, a despeito da imposição de
agenciamentos externos de avaliação, de controle de qualidade e de currículos
comuns, precisam ser redesenhadas a partir de suas singulares tradições,
fortalecendo suas histórias ímpares, igualando-se em oportunidades para seus
aprendizes em nível global, mas diferenciando-se em suas formas de efetuar o
ensino, a pesquisa e a intervenção/aplicação social. Há, pois, um duplo sentido
a ser posto em movimento pelas instituições de ensino superior da Europa que
se revela necessário e urgente, a partir do que estabelece o Processo de
Bolonha , a saber: a) adotar um sistema de graus acadêmicos comparáveis; b)
promover a mobilidade de alunos, professores e investigadores; c) assegurar
elevada qualidade da docência focando-a na aprendizagem dos alunos (v. Lei
n.º 49/2005 de 30 de Agosto).
Diante dessas três grandes determinações, que cada universidade se
organize no sentido de preservar a sua autonomia, suas especificidades como
instituição educativa, com sua cultura própria enquanto organizadora e
protagonista em seus arranjos curriculares. Que cada instituição construa o que
a igualará às universidades da União Europeia (decreto-lei n.º 74/2006 de 24
de Março apontando para a qualificação dos portugueses no espaço europeu),
mas que traga, em seu bojo, o que também a diferencia a fim de garantir a
continuidade se sua própria história. Tal movimento só se fará por um esforço
conjunto de participação efetiva de gestores, professores e alunos, no
contributo de preservar e redesenhar a própria universidade a partir do que lhe
é peculiar.
Concomitante às mudanças implementadas nas universidades européias
por meio do denominado Processo de Bolonha, no Brasil, o Ministério de
Educação e especificamente a Secretaria de Educação Superior- SESu, lança
6
o Programa de Apoio a planos de reestruturação e expansão das
Universidades Federais, o Reuni. Tal programa, definido no governo Luis Inácio
Lula da Silva, chega ás Universidades Federais em 2007, como um sopro de
esperança á revalorização do ensino superior público que ao longo dos 8 anos
do governo Fernando Henrique Cardoso viu-se à mercê do descaso e de seu
quase desmantelamento frente ao aumento vertigioso da rede privada de
ensino superior. Cabe ainda destacar que o Processo de Bolonha, pela
importância e alcance de seus desígnios, tem influenciado também as políticas
públicas de educação superior no Brasil e algumas de suas determinações tem
sido contempladas em decretos e legislações específicas brasileiros,
resultando na proposta Universidade Nova, tendo como representantes a
Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal do ABC, já aos
moldes do Reuni. Mesmo que atrelado às políticas neoliberais, o Reuni
apresentou-se como a possibilidade das universidades públicas federais
efetuarem sua reestruturação acadêmica e a sua capacidade de trabalho
efetivo de pesquisa e de ensino, instigando um movimento de revitalização das
próprias discussões (abril a dezembro de 2007) acerca do que é universidade,
para quê e a quem deve servir, quais suas novas potencialidades num mundo
complexo, globalizado e competitivo3. Daí a importância de compreender como
também no Brasil as práticas docentes tem sido influenciadas e como tem
reagido a esta reforma.
É neste sentido que esta investigação parte da premissa de que uma
Pedagogia Universitária faz-se necessária ao atual contexto, e especialmente
em áreas do conhecimento e de formação profissional em que a formação
pedagógica não está totalmente estabelecida, como é o caso dos cursos de
engenharia. Para tal, partiu-se das seguintes questões:
Que Pedagogia está subjacente às práticas docentes?
Em que sentido as reformas provocam ou favorecem inovações
pedagógicas?
Como a gestão acadêmica acompanha (supervisiona) as práticas
docentes?
3 Como pró-reitora adjunta de graduação no período, participei das discussões e fui uma das redatoras do projeto Reuni-Unifei.
7
Pode-se identificar uma arquitetura pedagógica implícita nessas
práticas?
Os resultados da pesquisa efetuada serão confrontados com resultados
de uma pesquisa similar junto de docentes da Universidade de Itajubá.
3- Base conceptual 1: o lugar da pedagogia na universidade
A partir da premissa de que existe um gramática permanentemente em
construção na própria prática docente universitária, sem, na maioria das vezes,
ser explicitada nos discursos de seus protagonistas, dar visibilidade a essa
gramática pedagógica pode contribuir para a construção de um certo saber-
fazer próprio da docência universitária. Independente da área de formação, os
professores que atuam nas universidades tem o que se denomina “teorias
pessoais” a respeito do ensinar e do processo de facilitação da aprendizagem e
acionam elementos específicos para concretizar seus objetivos como
formadores. Sacristán (1999) define a prática docente como prática social/educativa
porque institucionalizada, alicerçada nos modos de efetuar a formação
profissional em áreas de saber reconhecidas como relevantes por cada
universidade. Porém, o autor diferencia práticas docentes de ações docentes,
destacando que estas últimas decorrem dos estilos de cada professor, seu
itinerário profissional, suas histórias de vida, seus modos de ver e ser no
mundo. Desta forma, é importante buscar compreender como se relaciona a
institucionalização das práticas e o fazer(ação) docente no cotidiano de seu
exercício profissional.
Com as determinações e mudanças delineadas pelo Processo de
Bolonha e do Programa Reuni, os arranjos cotidianos de um certo saber-fazer
docente podem não se constituir suficientes para garantir o sucesso das
reformas em questão e afastar a própria instituição dos critérios de qualidade a
serem aferidos por agências externas. Mais que isso, torna-se mister
redimensionar a prática docente com o fim de garantir-lhe legitimidade e de
viabilizá-la num contexto que se apresenta cada vez mais complexo devido a
alguns fatores, a saber: a) o risco de homogeneização entre as universidades;
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b) a possibilidade de perda das identidades institucionais; c) o
esvaziamento/desvalorização do ensino como função docente; d) a sobrecarga
de trabalho que se tem exigido do professor/pesquisador nessas novas
diretrizes.
Mediante tais elementos contextuais, a Pedagogia pode se constituir
num lugar de garantia de preservação e reinvenção de identidades
institucionais por corresponder a um espaço praxeológico próprio do professor.
Há um sistema privado de ação docente que informa as práticas e essas
devem ser vulgarizadas, refletidas e redefinidas em função das atuais
exigências oriundas das reformas mas também de todas as mudanças
tecnológicas, econômicas e sociais que a sociedade tem enfrentado. Essas
exigências, apesar de tendencialmente centralizadores e anti-democráticas,
apresentam-se também como possibilitadoras de práticas diferenciadas e
inovadoras, uma vez que os contextos educativos são únicos e incertos, o que
faz com que a prática pedagógica seja sempre provisória em suas realizações.
Gauthier (1998) destaca que o saber docente, construído ao longo da
carreira profissional, constitui-se de três eixos. O primeiro é o eixo científico,
disciplinar/ curricular, correspondente à própria formação profissional, relativo
ao domínio do conteúdo ou área específica que será convertida em conteúdo
disciplinar referente para a atuação como professor. Porém, este eixo, sozinho,
não garante à docência a qualidade que ela deve e precisa ter. Um segundo
eixo, psicopedagógico, corresponde aos saberes específicos da área e dos
estudos sobre a educação, saberes que dão especificidade à ação docente
(TARDIF, 2002). O terceiro eixo, do saber empírico, constitui-se de modos de
ação docente provenientes das experiências como aluno e também como
professor e independe de estudos sistemáticos efetuados, porque oriundo da
empiria que valida esses mesmos conhecimentos, os quais, num certo sentido,
acabam por ser compartilhados pelo coletivo dos professores, como um
conjunto de saberes do senso-comum de professores. Assim, “(…) o saber não
é uma substância ou conteúdo fechado em si mesmo, ele se manifesta através
de relações complexas entre o professor e seus alunos (…)” (TARDIF, 2002,
p.3). Há saberes que são mobilizados pelos professores em suas práticas que
garantem uma gramática específica que pode se constituir em novos e
diferentes modos de exercer a docência no âmbito universitário.
9
O Processo de Bolonha, mesmo a despeito de toda a base econômica (e
talvez por isso mesmo), apresenta uma oportunidade às universidades no
sentido de atentarem para a responsabilidade que terão frente às intervenções
pedagógicas, garantindo a qualidade da formação. Há que se assumir esse
aspecto contraditório do Processo de Bolonha e quiçá o mesmo se revele nas
ações docentes, nos mecanismos de seleção de conteúdos e de práticas de
ensino. Assumir tal contradição em exercícios dialéticos de reflexão-ação-
reflexão pode efetivamente minimizar os efeitos perversos dessa uniformidade
pragmática e mercadológica proposta. Alarcão (in HUET et al.,2009) destaca,
ao efetuar uma reflexão acerca do ensino superior e suas mudanças, dentre
alguns elementos, a perspectiva da relevância da função de investigação e a
falta de incentivo ao bom desempenho pedagógico nas universidades
portuguesas. Há que efetuar uma atividade de ensino que seja também de
investigação, conciliando as funções de pesquisa e docência e resultando em
inovações pedagógicas.
Nesta linha de pensamento, Vieira (2009b) aponta algumas exigências
para se garantir a efetividade de uma cultura pedagógica de qualidade, a
saber: enraizamento de uma cultura de (auto)avaliação; investigação da
pedagogia e a pedagogização da investigação a fim de se construir um
processo de emancipação e de transformação das práticas; incentivo à
formação pedagógica do professor universitário; definição da educação como
processo participado de transformação de seus sujeitos. Em relação a este
último aspeto e com base em projetos focados na transformação da pedagogia
(VIEIRA et al., 2002, 2004; VIEIRA, 2009a/b), são propostos alguns princípios
pedagógicos que podem orientar as práticas docentes no quadro de uma
educação democrática, favorecendo uma maior autonomia dos estudantes mas
também uma reconfiguração da profissionalidade docente e, assim, uma
reconfiguração do lugar da pedagogia na universidade, a qual exige uma maior
articulação entre ensino, investigação e desenvolvimento profissional dos
docentes. Esses princípios são entendidos como regras de uma possível
gramática pedagógica na Universidade, a saber (VIEIRA, 2009b, p.121):
Intencionalidade: a acção pedagógica desenvolve-se numa direcção assente em
pressupostos e finalidades relativos à educação formal e à relação entre esta e a
10
sociedade, direccionando-se a uma formação integrada, de âmbito científico, cultural,
técnico/profissionalizante, pessoal e social;
Transparência: a acção pedagógica integra a explicitação dos pressupostos e finalidades
de formação que a orientam, da natureza da metodologia seguida, dos
processos/percursos de aprendizagem e dos parâmetros de avaliação adoptados;
Coerência: a acção pedagógica é coerente com os pressupostos e finalidades de
formação que a orientam, com a natureza dos conteúdos disciplinares e com os métodos
de avaliação adoptados;
Relevância: a acção pedagógica integra expectativas, necessidades, ritmos e interesses
diferenciados, mobiliza e promove saberes, linguagens e experiências relevantes à futura
profissão, promove o contacto com a realidade sócio-profissional e perspectiva o currículo
de forma articulada;
Reflexividade: a acção pedagógica promove o pensamento divergente e o espírito crítico,
integrando uma reflexão crítica sobre os seus pressupostos e finalidades, os conteúdos, a
metodologia seguida, os parâmetros e métodos de avaliação, os processos/percursos de
aprendizagem, o papel das disciplinas no currículo e a relação deste com a realidade
sócio-profissional;
Democraticidade: a acção pedagógica assenta em valores de uma cidadania democrática
– sentido de justiça, respeito pela diferença, liberdade de pensamento e expressão,
comunicação e debate de ideias, negociação de decisões, colaboração e inter-ajuda;
Autodirecção: a acção pedagógica desenvolve atitudes e capacidades de auto-gestão da
aprendizagem – definição de metas e planos de trabalho auto-determinados, auto-
avaliação e estudo independente, curiosidade intelectual e vontade de aprender, sentido
de auto-estima e auto-confiança;
Criatividade/Inovação: a acção pedagógica estimula processos de compreensão e
intervenção, com implicações profissionais e sociais, promovendo uma interpretação
pessoal e uma visão pluri/inter/transdisciplinar do conhecimento e da realidade,
capacidades de pesquisa e de resolução de problemas, desenvolvimento de projectos
pessoais, capacidades de intervenção no contexto profissional e atitudes de abertura à
inovação.
Conforme destaca a autora, os três primeiros princípios por si só não
garantem um caráter transformador das práticas docentes. Apenas se
ancorados nos restantes podem se constituir promotores de uma gramática
universitária com vistas á transformação e á emancipação dos sujeitos
envolvidos.
11
4 - Base conceptual 2: as Engenharias e seus meandros pedagógicos
Wanderley (1991) define a Universidade como lugar privilegiado, não
apenas para formar profissionais em diversas áreas e para diferentes postos de
trabalho (sentido da empregabilidade) como também a destaca como o lugar
de criar ou preconizar saberes científicos (e culturais) que favoreçam a busca
de uma identidade que lhe seja compatível á realidade (totalidade) de seu povo
e de seu tempo. Isso posto, como compreender os (des)caminhos dos cursos
que se instalam na era da globalização (americanização?) e que trabalham
conhecimentos, reprodução e produção na área tecnológica? Como tais cursos
podem contribuir para sanar as imensas e nem sempre contornáveis
especificidades de seus países, de seus modos de produção e de organização
do trabalho?
O termo “engenharia” é etimologicamente oriundo do latim ingeniarius,
aquele que fabrica ou opera máquina, genie derivado de genius, espírito
iluminado; nasce o sentido de um ser dotado de grande engenhosidade de
espírito e de talento. Engenheirar, fazer com as mãos, combina técnica e arte,
engenho (fazer) que perpassa a história da humanidade antes mesmo de ser
posto no rol de uma profissão. Colenci (2000) destaca uma definição formal
advinda da “Engineers Council for Professional Development” como “a
aplicação criativa de princípios científicos ao projeto de desenvolvimento de
estruturas, máquinas, dispositivos ou processo de fabricação; ou á construção
e/ou operação dos mesmos com perfeito conhecimento de seu projeto; ou á
predição do comportamento sob condições determinadas de operação”; todos
os aspectos anteriores no que se refere: à função prevista, à economia da
operação e à segurança das pessoas e bens envolvidos”. Assim, ser
engenheiro pode ser definido pelo seu aspecto formal, técnico, que significa a
capacidade do ser humano de interferir nos processos de conhecimentos,
habilidades de manusear meios, utilizando bens e instrumentos que tem ao seu
dispor, bem como manuseando de maneira precisa todo o arsenal técnico. A
engenharia, munida como não apenas a arte do fazer, do construir, passa a se
constituir uma área de conhecimento e profissional ligada ao desenvolvimento
de tecnologias que prescindem de formação adequada e cuidadosa.
12
A formação do engenheiro deve contemplar o comprometimento com o
papel social dos profissionais de engenharia, cabendo ao professor completar o
vazio que surge da integração entre o homem e a máquina, recolocando e
reatualizando as identidades que se forjam nas sociedades complexas. Para
redimensionar a tecnologia a partir de uma leitura radical de seus
pressupostos, de suas concepções, de suas verdadeiras possibilidades, torna-
se necessário o repensar do humano como sujeito definido e definidor dessa
engrenagem. As diversas áreas do conhecimento se tocam cada vez mais, se
aproximam e muitas se integram a partir da necessidade de olhares múltiplos
sobre a realidade complexa que buscamos compreender. Portanto, não cabe
mais a distância entre formação tecnológica pura, sem a presença do humano,
em toda a sua complexidade e desafios. É preciso mesmo garantir ao
engenheiro uma formação que tenha como foco o ser humano que será o
beneficiário (ou não) das mais ousadas e avançadas tecnologias engendradas
por estes e tantos outros profissionais.
Nóvoa (2000) destaca o aumento da influência das ordens profissionais
na própria criação ou redefinição de cursos nas universidades em Portugal.
Este processo há muito acontece no Brasil, com forte papel na constituição de
currículos e na formação de profissionais na área da Saúde, Engenharia,
Direito e outros. Tal fenômeno aponta para a fragilidade de uma instituição
(universidade) que permite a imposição de um conjunto de competências
técnicas definidas por tais corporações, diminuindo o seu papel de formadora
de seres humanos, cidadãos conscientes para além de um conjunto de saberes
e fazeres próprios de uma profissão. No caso dos cursos engenharia, tanto no
Brasil quanto em Portugal4, eles sofrem influências cada vez maiores de
entidades externas que controlam e creditam cursos e/ou profissionais na área,
como a ABET (www.abet.org)_ Accreditation Board for Engineering anda
Technology, Inc, uma organização não-governamental que além de creditar
formados também credita cursos e faculdades na área de ciência aplicada,
computação, engenharia e tecnologia de engenharia, nos EUA e em vários
países da Europa e América Latina. Tal programa de creditação sugere, por
4 No Brasil, de acordo com Colenci (2000), a formação de engenheiros se inicia em 1810 com fundação da Academia Real Militar, mas há registros que apontam que antes disso, oriundos de Portugal já havia aqui engenheiros formados em Portugal, na Escola de Santo Antão, onde já havia cursos de matemática aplicada à construção de fortificações e à navegação.
13
meio de avaliações in loco dos cursos de engenharia, mudanças nos currículos
mínimos e define competências a serem desenvolvidas pelos programas de
formação, como o desenvolvimento de projetos pelos alunos. Observa-se que
alguns pontos considerados relevantes para a ABET estão presentes nas
propostas curriculares de diversos cursos de engenharia, inclusive os das
universidades portuguesa e brasileira. Tais critérios de avaliação e índices
definidos de qualidade são assumidos e defendidos por associações
específicas e nacionais nas diversas áreas de Engenharia e de educação em
Engenharia.
Assim, o currículo e, consequentemente, as práticas docentes dos
cursos de engenharia, são influenciados e indiretamente (quando não
diretamente) por tais associações, reduzindo ou conduzindo as definições e
planejamentos das universidades. Num mundo globalizado, em que o discurso
da qualidade e da homogeneização via processos avaliativos tem se tornado a
tônica, as engenharias, pelo seu caráter estratégico para o processo de
desenvolvimento dos países, apresentam-se focais (refèns?) na regulação-
controle de seus cursos de formação.
A universidade, entretanto, é o espaço de encontro entre ciência,
tecnologia e inovação. Como tal precisa contribuir para elevar a qualidade de
vida da população, diminuir os desequilíbrios regionais, cuidar do meio
ambiente, etc. Devemos enxergar a Universidade, não como um ponto de
chegada, mas o começo de um caminho que supõe o entrelaçamento entre
ensino (saberes científicos), pesquisa (problematização) e extensão
(vinculação com a comunidade). Mudanças científicas nasceram de modos
revolucionários de pensar. Mudar a forma de olhar, permitir novas abordagens,
ousar caminhos alternativos torna-se necessário para formar um profissional
que atue com coragem no enfrentamento crítico dos problemas sociais. Porque
somos causa e efeito de relações, temos o dever de atuar de maneira séria e
competente para atender às carências de um mundo em ebulição.
Para enfrentar mesmo que parcialmente esse panorama acadêmico, é
preciso rever a maneira como o currículo é construído nos espaços da
universidade, entendendo currículo aqui como “(...) conjunto de todas as
experiências de conhecimento proporcionadas aos/as estudantes(...)” e como
constituindo o “(...) núcleo do processo institucionalizado de educação” (SILVA
14
e MOREIRA, 2004, p.184). Ao professor cabe reorganizar seu saber-fazer
pedagógico através da reflexão de sua atuação, das técnicas utilizadas, dos
significados dos conteúdos, de seu olhar sob o aluno e sua formação. Nessa
perspectiva, o professor exercerá o papel de mediador na consecução de um
currículo permanentemente reconstruído pela reflexão recuperando em seu
cotidiano escolar fenômenos e problemas com relevância social e científica,
além de se orientar na observação criteriosa de tais fenômenos e na
investigação de suas relações e práticas pedagógicas. Ou seja, ao professor
cabe problematizar o currículo e o cenário em que ele está inserido tendo como
possibilidade discutir essas temáticas com seus pares, despindo-se de ser um
transmissor de conhecimentos (mero executor de espetáculo) e revestindo-se
de arquiteto da aprendizagem de seus alunos (porque reconstrói seu saber-
fazer pedagógico no ensaio).
Pensar os cursos de engenharia a partir da ótica da Pedagogia supõe
refazer alguns percursos epistemológicos necessários à compreensão do
espaço que deve/precisa ser ocupado pela auto-reflexão das práticas docentes
na formação de engenheiros. Quais as contribuições que podem ser
vislumbradas como necessárias e que seriam outorgadas por uma certa
gramática pedagógica nos cursos de Engenharia? Esta e outras questões
podem nortear algumas reflexões necessárias a uma possível contribuição de
uma pedagogia para a autonomia numa área de ensino e de formação
conduzido por um conhecimento tido como nomotético5 como a Engenharia.
Mesmo aí, o sentido político se faz presente apesar de sua (in)visibilidade nos
discursos técnicos, pois, segundo Freire, "o apolítico ou o não-intencional é
falácia daqueles que escamoteiam as próprias idéias e sonhos" (Apontamentos
de aula, 1993, PUC-SP).
Assim, um primeiro caminho sugere enfocar a profissão enquanto ação
humana sobre a realidade. De acordo com Demo (1994), esta realidade se
constitui de duas dimensões inseparáveis: a dimensão da qualidade e a da
quantidade. Pela dimensão da quantidade, lidamos com a realidade através de
categorias que abarcam a quantificação (medida, numeração, probabilidades,
etc) de elementos constitutivos deste real (é o horizonte da extensão). Na 5 Ciências nomotéticas são um conjunto de saberes que estuda os fenômenos naturais através de métodos experimentais e controle rigoroso, distinguindo-se assim das ciências que se dedicam aos fenômenos humanos, como o psiquismo, a linguagem, as relações sociais(classificação de Jean Piaget).
15
interface disso, a dimensão da qualidade permite ao ser humano apreender
relações que ultrapassam a mera quantificação de dados (é o horizonte da
intensidade). É esta dimensão que torna o real uma realidade, no sentido de
tornar aquele significativamente humanizado. Ou seja, é a dimensão da
qualidade que confere à ação do homem na realidade, a verdadeira e
imprescindível tarefa de "habitar o mundo" e fazê-lo seu.
A dimensão da qualidade, ao dar sentido à interferência do homem
sobre o real, qualifica esta ação como formal e política. Ou seja, a ação do
profissional deve ser considerada e avaliada sob um aspecto formal ou técnico,
porém é preciso considerar esta ação no sentido de sua intencionalidade, ou
seja, sua face política, no sentido do compromisso que o profissional deve
assumir frente à ação exercida, em função das necessidades sociais
vinculadas à sua atuação profissional. Ainda segundo Demo (idem), a
qualidade política pode ser identificada pela capacidade do homem em
participar da busca de uma vida melhor e mais justa para todos. A participação
é, pois, a categoria primeira desta qualidade política. Quanto maior consciência
política o profissional tiver, maiores serão os mecanismos criados para a sua
participação na vida comunitária, mesmo através, estritamente, de sua
profissão.
Ao se refletir sobre o papel da Pedagogia na formação continuada de
docentes-engenheiros, pode-se argumentar que esta pode garantir subsídios à
qualidade política de sua ação ao trabalhar no sentido da auto-regulação de
sua própria prática e do processo de aprendizagem de seus alunos por meio de
um exercício de problematização de seu próprio itinerário docente enquanto
forma de reconfigurar as suas próprias práticas. Para Nóvoa (2000), o
desenvolvimento da pedagogia universitária depende menos de técnicas
ensinadas ao professor do que da auto-reflexão e a reflexão coletiva do próprio
saber/fazer docente.
A necessidade de se estimular uma reflexão mais acurada dos
processos sociais que se articulam com os modos de produção de bens
materiais e simbólicos remete os cursos de engenharia a uma formação que
ultrapasse a preparação do técnico e que garanta a dimensão política deste
empreendimento. Não há porque continuar dicotomizando a formação técnica
da formação do sujeito que, além de saber mais estará sabendo melhor,
16
dominando instrumentos e métodos, porém de maneira lúcida, crítica,
compromissada, dentro de valores e fins historicamente desejáveis, eticamente
sustentáveis e profundamente compreendidos. À pedagogia cabe o papel de
despertar e instigar nos estudantes de engenharia, por meio das práticas
docentes, a competência do saber pensar o próprio agir. Neste sentido, Demo
(2005) expõe que a qualidade na formação profissional estará assegurada à
medida que se instrumentalizar o aluno na construção do conhecimento, no
aprender a aprender. É a possibilidade do aluno, não estudar sobre a
participação, mas vivenciar processos participativos de construção de
conhecimento.
Uma pedagogia para a autonomia poderá se constituir como propulsora
de um olhar novo e revitalizante do aluno frente às próprias capacidades e do
professor frente á sua prática de ensino, por meio de um maior
autoconhecimento, através de estudos acerca dos processos subjacentes à
construção do conhecimento, bem como pelo conhecimento do outro, enquanto
sujeito de parcerias possíveis. Impingir o sentido do coletivo na elaboração de
saberes diversos poderá, também, ser uma maneira de minimizar a tendência
individualista da formação do engenheiro (FERRAZ, 1983). Exercitar a reflexão,
a crítica, a análise de ações e de intenções estará no bojo de uma trajetória do
docente-engenheiro, pois "não se trata apenas de intervir na natureza e na
sociedade, mas de intervir com sentido humano" (DEMO, 1994,p.12). E esse
processo pode ser fortalecido pelo auto-estudo, auto-regulação de práticas
trazidas por uma pedagogia para a autonomia.
A criticidade e auto-reflexão tornam-se necessárias às práticas docentes
de professores que atuam em cursos marcadamente tecnológicos como os
cursos de engenharia devido á proximidade que estes tem com uma
racionalidade excessiva que vem dominando a produção científica e todo o
aparato burocrático da organização do trabalho nas sociedades modernas.
Esta criticidade e auto-reflexão supõem a desconstrução do modelo positivista
que tem permeado as discussões acerca dos males postos pelo projeto tido
como inacabado da Modernidade, um projeto instituído desde o iluminismo,
culminando com o avanço tecnológico instituído pelo processo de produção
industrial, amparado pela ciência positivista. Morin (1973) e outros autores tem
ajudado no sentido de refletir sobre as possibilidades da ciência e da tecnologia
17
num mundo que necessita resgatar a proposta de felicidade humana e de
desenvolvimento pleno via conhecimento racional a favor do homem. Na
educação superior ou universitária, o desafio é formar o cidadão e o
profissional moderno com competência questionadora reconstrutiva, não a
simples reprodução de saberes e fazeres.
São duas, pois, as dimensões centrais da atuação do profissional, a
serem garantidas pelo currículo para uma educação científica e tecnológica: a
função social e a técnico-ideológica. Como sublinha Freire (1996, p. 61), “a
educação é uma forma de intervenção no mundo” que implica uma tensão
dialética entre a reprodução e o desmascaramento de ideologias dominantes.
Num cenário em que co-existem racionalidades conflituais para a educação no
ensino superior, a Pedagogia estará no papel de deflagradora de uma dupla
formação de professores e alunos como lugar de auto-regulação de processos
de ensino e de aprendizagem na formação profissional de sujeitos aptos a
usarem, para o bem coletivo e para a garantia de qualidade de vida, a razão, a
técnica e a tecnologia de maneira ética e politicamente comprometida com um
projeto reestruturante da sociedade moderna.
5- O caminho da pesquisa: traços metodológicos
A pesquisa em questão buscou compreender, visibilizar e problematizar
a pedagogia de docentes-engenheiros universitários e os mecanismos
(individuais e institucionais) de supervisão da ação docente, possibilitando uma
reflexão sobre o papel da pedagogia universitária nos processos formativos,
com ênfase nas seguintes dimensões:
o concepções/ visões de pedagogia e do papel docente
o práticas docentes e fatores de facilitação/ constrangimento da mudança
o mecanismos de supervisão da ação docente aos níveis individual e
institucional (reflexão sobre a ação, coordenação, suporte,
acompanhamento, avaliação, formação, investigação pedagógica...)
Inserida nas denominadas "investigações qualitativas", a pesquisa
efetuada caracteriza-se por ter o seu foco num objeto – a pedagogia – mas
também no contexto em que esse objeto se encontra e que o influencia. Os
testemunhos dos participantes, obtidos através de entrevistas, indiciam
18
ligações entre o seu discurso e o contexto da sua produção, exigindo uma
interpretação inferencial de sentidos, por sua vez cruzados com o quadro
conceptual do estudo.
De acordo com Yin (2005), a entrevista é uma das fontes de dados mais
importantes para os estudos de caso. Dentro do traçado desta pesquisa e de
acordo com as questões norteadoras expostas acerca da pedagogia
universitária, torna-se o instrumento possível e viável para que os sentidos
sejam identificados (porque não estão registados, estão nas ações dos
sujeitos) e para melhor capturar a complexidade das práticas docentes pelos
seus próprios sujeitos.
Para a condução das entrevistas decidiu-se envolver docentes de dois
cursos de Engenharia em áreas de maior e menor tradição – mecânica e
computação – assim como os Diretores e o Presidente do Conselho
Pedagógico desses cursos, em três universidades - Minho, Porto e Aveiro.
Privilegiou-se o contacto com os Presidentes dos Conselhos Pedagógicos, a
partir do qual seriam contactados os restantes participantes. No caso dos
docentes, estes seriam sugeridos pelos Diretores de Curso.
Face à ausência de resposta ou indisponibilidade de alguns dos sujeitos
contactados, foram apenas efetuadas 12 entrevistas: 1 Presidente do Conselho
Pedagógico de Engenharia de uma das universidades, 4 Diretores de Curso de
duas universidades e 7 professores desse cursos nas 3 universidades. O
quadro 1 sintetiza alguma informação sobre os sujeitos entrevistados (por
questões de anonimato não se indica a universidade de origem nem o gênero
dos entrevistados, optando-se por usar o gênero masculino, que corresponde
ao da maioria dos entrevistados).
As entrevistas, feitas presencialmente nas instituições dos participantes
mediante agendamento prévio com a investigadora, foram de natureza semi-
estruturada e conduzidas com base em guiões diferenciados para cada um dos
grupos de entrevistados (Presidentes de Conselho Pedagógico, Diretores de
curso e docentes dos cursos), com algumas questões iniciais comuns,
conforme o Quadro 2.
19
QUADRO 1- DADOS INICIAIS DOS ENTREVISTADOS
CURSO FUNÇÃO GRAU CATEGORIA
IDADE ANOS DE SERVIÇO
Cursos de Engenharia
PRESIDENTE CONSELHO PEDAGÓGICO
Doutor Associado
40-50 28
DIRETOR Doutor Auxiliar
40-50 12 Engenharia Mecânica
DIRETOR Doutor Associado
40-50 12
DIRETOR Doutor Associado
40-50 16 Engenharia Eletrônica e de Computadores DIRETOR Doutor
Associado 50-60 27
PROFESSOR Doutor Auxiliar
40-50 22
PROFESSOR Doutor Associado
60-70 33
PROFESSOR Doutor Associado
50-60 32
Engenharia Mecânica
PROFESSOR Doutor Associado
40-50 22
PROFESSOR Doutor Associado
50-60 30
PROFESSOR
Doutor Auxiliar
30-40 6
Engenharia Eletrônica e de Computadores
PROFESSOR Doutor Auxiliar
50-60 36
Como pólo estruturante epistemológico, a análise das entrevistas foi
resultante de um exercício feomenológico-hermenêutico (JAPIASSÚ,1992), na
busca de significados construídos na interlocução entre entrevistado/
entrevistadora, em que as vozes se interseccionaram para a elaboração de um
certo construto teórico-prático com algum novo sentido acerca da docência e
da pedagogia em ação na academia e nos cursos de engenharia. O arcabouço
teórico elaborado para a compreensão do cenário e contexto em que os
sujeitos da pesquisa estão inseridos foi se construindo á medida que as vozes
dos professores eram captadas, registradas e entrelaçadas aos elementos
reflexivos que forraram as análises efetuadas e toda a problemática que havia
sido traçada na proposta deste trabalho, desocultando possíveis uniformidades
de práticas pedagógicas construídas num certo contexto acadêmico.
20
QUADRO 2 - GUIÕES DAS ENTREVISTAS
QUESTÕES COMUNS AOS 3
GRUPOS
A. Aspetos do Processo de Bolonha Com a implantação do Processo de Bolonha, o que mudou no curso e na(s) UC que leciona? Em que medida essas mudanças têm tido algum efeito na sua prática de ensino? Em que medida considera que o Processo de Bolonha se tem traduzido numa maior valorização institucional do ensino e num maior apoio à inovação pedagógica na sua universidade?
QUESTÕES APENAS
DIRIGIDAS A DIRETORES DE
CURSO
B. Aspectos da direção de curso Na sua opinião, quais são as funções principais da Direção de Curso? Quais são os principais desafios com que se depara enquanto Diretor(a) de Curso? Na sua opinião, que caraterísticas deve ter um Diretor de Curso? Que aspetos das práticas de ensino têm sido mais bem conseguidos e menos bem conseguidos no curso que coordena? Tem conhecimento de iniciativas de inovação pedagógica desenvolvidas recentemente neste curso? Se sim, pode descrever uma delas? Tem tido algum papel no acompanhamento dessas ou de outras práticas dos docentes? Se sim, qual? Se não, porquê? Que relação vê entre a melhoria da qualidade do ensino e a (auto)avaliação das UC e dos cursos pelos docentes e Diretores de Curso? Que relação vê entre a melhoria da qualidade do ensino e a ação da Direção de Curso e do Conselho Pedagógico? Na sua opinião, que medidas institucionais têm contribuído ou poderiam contribuir para melhorar a qualidade do ensino na sua universidade?
QUESTÕES APENAS
DIRIGIDAS A DOCENTES DOS
CURSOS
B. Aspectos da prática de ensino Pense numa das UC do curso de que leciona: UC: _________________ Como vê o contributo dessa UC para o perfil de saída do curso? Que competências trabalha com os estudantes nesse sentido? Vê alguma relação entre as suas atividades de investigação e de ensino? Se sim, qual? Se não, porquê? Quando prepara as aulas da UC, que preocupações/ fatores tem em consideração? Pode descrever brevemente uma aula típica da UC? Das atividades da UC, pode descrever uma que tenha resultado bem e explicar por que razões resultou? Costuma acompanhar a aprendizagem dos estudantes (na aula ou em tutorias extra-aula)? Se sim, como o faz? Se não, porquê? Que métodos de avaliação usa na UC? (avaliação das aprendizagens, autoavaliação, heteroavaliação...) Utiliza alguma estratégia para ir avaliando a sua prática de ensino? Se sim, como o faz? Se não, porquê? Quais são os principais desafios com que se depara enquanto professor(a)? Na sua opinião, que caraterísticas deve ter um professor universitário? C. Aspectos da coordenação, apoio, acompanhamento, avaliação do ensino Que relação vê entre a melhoria da qualidade do ensino e a (auto)avaliação das UC e dos cursos pelos docentes e Diretores de Curso? Que relação vê entre a melhoria da qualidade do ensino e a ação da Direção de Curso e do Conselho Pedagógico? Na sua opinião, que medidas institucionais têm contribuído ou poderiam contribuir para melhorar a qualidade do ensino na sua universidade?
21
A análise foi feita numa lógica indutiva, em que os dados colhidos nas
entrevistas foram explorados e tratados em profundidade a fim de desvelar os
sentidos das práticas narradas e dos significados apresentados no decorrer do
diálogo interseccionado com as teorias que guiam o exercício hermenêutico
desta escuta. Por se constituir qualitativa, descrevendo, analisando,
contextualizando, des-contextualizando e recontextualizando o seu próprio
objeto, esta pesquisa não se esgota aqui (LESSARD-HERBERT et al., 1994).
Nela, há a necessária e inerente característica de se manter aberta a outras
indagações e a novas e possíveis problematizações.
6- Uma arquitetura pedagógica em construção
Primeiras impressões
De todas as entrevistas realizadas, verdadeiras conversas sobre as
práticas de ensino, sobre as dificuldades do processo de ensino e de
aprendizagem, o que ficou evidente é a disposição dos sujeitos em dizer sobre
suas práticas, e também o quanto não há espaço em seu cotidiano para
exporem seus modos de fazer, em simplesmente sentar e serem ouvidos e
compartilharem suas angústias sobre o que será o “certo” do que fazem e
pensam. Pode-se observar o quanto a entrevista provoca e evoca o pensar, a
reflexão pelo exercício direto de ter que elaborar a frase, transformá-la em
linguagem e desse modo, cria-se o próprio discurso, que vai se lapidando no
diálogo, no encontro de vozes acerca do mesmo cenário em questão. Em
alguns momentos, a interlocução se fazia com o próprio pensar, em que o
entrevistado se perguntava e buscava elaborar a resposta, exercendo um
movimento interessante de “ pensar alto”. Por exemplo:
Será que faço certo? Não poderia fazer diferente? Ahhh, pode ser, se eu tivesse tempo para pensar nas aulas, mas há tanto artigo que precisa de ser feito. (Diretor de Curso) Eu gostaria que os meus alunos me procurassem mais….E por que não procuram? Porque trabalham em grupos e porque deixam tudo para a última hora, perto dos exames. Aí quem me vem procurar é um apenas de cada grupo. É…assim que acho que acontece. (Prof.)
22
A entrevista também se reverteu como lugar para as queixas, as
lamentações de professores que desejam alunos mais atentos, mais
dinâmicos, mais interessados no aprender. Isso talvez signifique que a
academia não oferece espaço para este pensar compartilhado e
consequentemente para buscar soluções também compartilhadas e decididas
coletivamente. Deste modo, as soluções ou possíveis arranjos se dão em
âmbito individual e poucas vezes dito ou revisto pela ausência de diálogo entre
os pares.
Não tenho como saber o nome dos alunos. Sinto-me mal por isso. Mas como saber o nome de mais de 100 alunos? Então, para não ficar apenas eu ali de palestrante, de vez em quando eu faço uma pergunta, conto uma piada. Porque sei que da aula eles não se lembrarão, mas da piada sim. (Prof.)
Os nossos alunos são desinteressados. Ninguém pergunta, ninguém nem lê a matéria que será dada aquele dia. Diferentes dos alunos brasileiros que se interessam, perguntam, anotam….Eu não sei como fazer com que eles se interessem. (Prof.)
Nas entrevistas houve lugar para que a fragilidade da ação docente, as
dúvidas e as incertezas se tornassem presentes. E no decorrer de toda a
conversa, as defesas diminuíam e os sujeitos, professores, pensando suas
práticas, mostravam seus desacertos terminológicos, de uma Pedagogia que
provoca estranheza a eles e que, por isso, esta acaba sendo afastada como
possibilidade…
Fiz alguns cursos de atualização, mas sabe, a Pedagogia simplifica e não se aproxima da prática. E a gente tem que tentar que dê certo, que a gente passe o conhecimento, que o aluno aprenda o que é importante. (Prof.)
Assim, as primeiras impressões das entrevistas correspondem à
percepção do prazer em dizer, á necessidade de articular em discurso e ao
dizê-lo organizá-lo melhor como prática refletida. As entrevistas tornam-se
referência para o papel do diálogo em todo esse processo de conscientização
acerca do quê se faz, do como se faz e porquê.
23
A voz dos gestores pedagógicos e a supervisão da pedagogia
Para construir um cenário acerca da Pedagogia que subjaz as políticas
internas das universidades, dar voz aos gestores responsáveis diretamente
pelas práticas docentes tornou-se importante para esta pesquisa. Ao se buscar
o registro das vozes de gestores de cursos de engenharia, teve-se como
referência o sentido da supervisão que permeia o exercício desses cargos no
interior da academia. Qual a forma como esta supervisão se concretiza nos
processos de avaliação das práticas docentes? De que maneira a supervisão
(via direção/coordenadores de curso) se traduz como representante
institucional nas políticas garantidoras de qualidade de ensino desejáveis para
o ensino superior? Estas e outras indagações sustentaram o sentido das
perguntas formuladas nas entrevistas efetuadas.
Cabe destacar que os diretores entrevistados são, em sua maioria,
professores auxiliares e têm poucos anos de magistério superior. Tal aspecto
pode indicar que o cargo de direção de um curso não tenha como requisito a
experiência docente nem os anos anteriores de pesquisa académica.
O quadro 3 sintetiza o conteúdo das respostas do Presidente de
Conselho Pedagógico (PCP) e dos Diretores de Curso (DC) em diversas
dimensões temáticas da entrevista. Por meio das respostas dadas, buscou-se
compreender o sentido e a forma como a supervisão vem sendo exercida no
que diz respeito ás práticas docentes a partir do Processo de Bolonha.
Pela voz dos gestores entrevistados, pode-se perceber que há uma
forma de supervisão das atividades de ensino que apresenta-se como um
movimento constante de aproximação-afastamento das ações docentes. Isso
implica em elementos que são acionados e que favorecem um certo exercício
de supervisão entre um modo burocrático e formal e outro, contingencial e
informal, de acordo com o contorno que se lhe apresenta no cotidiano
acadêmico. Vê-se que o exercício da supervisão, entendida aqui como um
trabalho de teoria e prática de regulação de processos de ensino e de
aprendizagem em contexto educativo formal (VIEIRA e MOREIRA, 2011), tem
como objetivo indagar e melhorar a qualidade da ação educativa.
24
QUADRO 3 – SÍNTESE DE RESPOSTAS DOS GESTORES ENTREVISTADOS
DIMENSÕES RESPOSTAS APORTADAS A PCP RESPOSTAS APORTADAS A DC
MUDANÇAS OCORRIDAS NA UNIVERSIDADE APÓS BOLONHA
Ações anteriores de mudança Integração de disciplinas em novas UC Sentido prático: trabalho com projetos
Processo organizacional e curricular N. de alunos Burocratização Gestão do tempo
POLÍTICA DE MUDANÇA NA VALORIZAÇÃO INSTITUCIONAL DO ENSINO E APOIO Á INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
Inovação correspondente ao conceito empresarial Parceria universidade-empresas Necessidade do tempo para incorporação da terminologia e mudanças
Mais visível antes do Processo de Bolonha Movimento de descentralização da aula expositiva Domínio da terminologia Negociação permamente( prof.-aluno) Responsabilização dos sujeitos Trabalho docente coletivizado Uso das TIC
FUNÇÕES DO CONSELHO PEDAGÓGICO
Focadas no trabalho Atenção ás questões formais e burocráticas
Atividade de registro e burocrática Atividade de mediação e intervenção
DESAFIOS
Ligados à própria prática docente
Gerir a trajetória de formação dos alunos Acompanhar a auto-gestão da aprendizagem otimizando o funcionamento do curso Constrangimento em mediar a atividade docente Questão do tempo
CARACTERÍSTICAS NECESSÁRIAS AOS PCP/DC
Gostar do que faz Prazer no trabalho
Ter visão ampla e completa do curso Competências pessoais
PRÁTICAS EXITOSAS
Acompanhamento do que o aluno faz
Aulas de resolução de problemas Uso da plataforma para registros e avaliações Atividades entre pares
INICIATIVAS DE INOVAÇÃO
Projetos Uso de recursos didáticos diversificados Alterações curriculares Projetos
PAPEL DO CONSELHO PEDAGÓGICO/DIREÇÃO DO CURSOS NA INOVAÇÃO
Acompanhamento dos projetos em andamento
Formal: acompanhamento do registro da prática docente Forma mista de regulação
RELAÇÃO MELHORIA DA QUALIDADE DE ENSINO E AUTO-AVALIAÇÃO
Referência ao aluno Centralização no currículo Captação do olhar (avaliação) do aluno Uso do formulário eletrônico de avaliação do ensino
POLÍTICAS VOLTADAS PARA A QUALIDADE DO ENSINO
UC de Trabalho com Projetos e Acompanhamentos Workshops prévias a Bolonha
Responsabilização dos sujeitos Necessidade de mediação (datações de provas)
25
Os sujeitos que estão em cargo administrativo que supõe como função
exatamente a supervisão de ações educativas na universidade, traduzem, em
suas atividades, os valores e as tradições que constituem a própria instituição
em que estão inseridos. Encarnados, pois, na historicidade das universidades,
postam-se de forma cuidadosa e, algumas vezes, distante diante de seus
pares, por trazerem consigo o sentido da autonomia docente e do caráter de
responsabilização que definem as práticas docentes na academia.
Todavia, mesmo numa aparente postura de reprodução e conformidade
com uma certa tradição acadêmica, há um aparato sutil de supervisionar as
atividades educativas utilizando estratégias que objetivam a transformação das
próprias práticas docentes. De maneira indireta, trabalhando para reafirmar as
políticas institucionais de mudanças a partir do Processo de Bolonha, os
gestores entrevistados reafirmam práticas docentes que sugerem algum
avanço e mudança, como as unidades curriculares que desenvolvem-se por
meio da metodologia de projetos, ajustando elementos que facilitem sua
concretização. Do mesmo modo, pode-se observar que ao exercerem a
supervisão como acompanhamento das atividades educativas via aparato
instrumental (plataforma de rede, registros, inquéritos, etc.) os diretores de
curso exercitam um trabalho que, ao parecer manter a distância das práticas de
ensino, aproximam-se do fazer-pedagógico e é nessa interseção que ocorre a
possibilidade de esta supervisão assumir um caráter emancipatório. Como
esse movimento se faz?
A lógica do controle implícita num tipo de supervisão reprodutivista e
com caráter de conformação, pelas vias de todo um conjunto de suporte ao
registro e publicização dos planejamentos das unidades curriculares bem como
as estratégias operacionais de garantia das (auto)avaliações efetuadas por
alunos e professores, acaba criando um espaço indireto de reflexão – um
espaço indireto por não ser explicitamente o objetivo dessa mesma logica, mas
que pode se constituir emancipatório no sentido de propiciar meios para a
efetiva reflexividade das práticas docentes, seja no exercício mesmo de
organizar o cotidiano para registrá-lo, seja no momento de justificar
determinados resultados, como reprovações em demasia. Da mesma forma, a
participação, mesmo que questionável, dos alunos no processo de avaliação
das unidades curriculares constitui-se numa atividade que requer algum grau
26
de reflexão acerca da ação docente e do percurso de aprendizagem. São pois
movimentos que resvalam por um caminho que ultrapassa (ainda não de modo
suficiente) uma atividade supervisiva de controlo, abrindo atalhos possíveis
para que efetivamente o caminho da emancipação aconteça. Há que se
observar que a autonomia docente não deve significar a falta de um processo
de avaliação de suas práticas de ensino. Quanto maior a autonomia, maior o
grau e a necessidade de se tornar sujeito do processo educativo,
responsabilizando-se por suas ações em curso.
Assim, a supervisão aqui apresenta indícios de ter como imperativo a
ação profissional consciente e deliberada (VIEIRA e MOREIRA, 2011), mesmo
que os fatores que limitam a pedagogia estejam presentes nesse contexto
acadêmico. Teorias pessoais de alunos e professores acerca do ensinar e do
aprender começam a se tornar insuficientes por conta das obrigatoriedades de
responder inquéritos e de preencher plataforma das unidades curriculares. A
afirmação “sempre foi assim feito” não garante, por si só, a necessidade de
atender às novas regras e modos de fazer na universidade. Mesmo como
atividade vista como meramente burocrática, há aí uma desmodelização da
ação docente e é por esta via que a emancipação como reflexividade e como
busca de novas formas de fazer vão sendo paulatinamente incorporadas. O
trabalho entre pares é um exemplo dessa desmodelização, apesar de se
constituir ainda uma atividade tímida no cotidiano docente. Apesar de tímida,
há uma certa repercussão desse trabalho na própria supervisão efetuada pelos
gestores que pode garantir disseminação, incentivo e resultados exitosos que
mobilizem outros docentes nessa tentativa de pensar com um certo rigor as
suas próprias práticas de ensino.
A supervisão da ação pedagógica combina uma lógica do controle com
uma lógica da singularidade das práticas docentes (uma lógica que ainda não é
emancipatória, mas que respeita os modos de fazer-pedagógico dos docentes
de sua equipe), as quais se que combinam com uma terceira lógica de
formação profissional, correspondente modelo de professor-engenheiro. Tem-
se pois o entrelaçamento e circularidade de três lógicas que definem o modo
de (auto-)supervisionar as atividades educativas nos cursos de engenharia.
Lógicas distintas, em que as duas primeiras, ao se contraporem num mesmo
tempo, acabam por se complementar e assentar junto à lógica própria que
27
define o modelo de professor-engenheiro (a terceira lógica), feita de uma
pedagogia conteudista, tradicional e positivista em uma teoria pessoal advinda
principalmente da experiência como alunos que tais professores carregam
consigo. Assim, tem-se o seguinte esquema:
AVALIAÇÃO-REGULAÇÃO
Figura 1 – Esquema da atividade supervisiva
Cabe destacar que a forma como ocorrem os processos de supervisão-
regulação desses cursos advém de professores formados em Engenharia,
cujas teorias pessoais decorrem mais da sua formação inicial e experiência e
menos de fundamentos teóricos das ciências da Educação. Isso se traduz
nesse movimento circular em que as lógicas de controle, atreladas a um modo
reprodutivo de supervisão, se contrapõe e se enfraquece ao assumir uma
supervisão menos-diretiva, aparentemente distanciada das práticas docentes
(e por isso singularizando-as ou mantendo as suas singularidades), porém,
efetuando uma certa regulação regida pelos instrumentos teórico-conceituais
advindos da própria formação em engenharia (racionalidade, quantificação,
tempo para as mudanças…). É exatamente nos interstícios dessas lógicas que
há a possibilidade de se exercitar um caminho potencial de emancipação,
nomeadamente através de:
− responsabilização dos sujeitos do processo ensino-aprendizagem,
alunos e professores.
ATIVIDADE SUPERVISIVA NOS CURSOS DE ENGENHARIA
lógicadassingularidadesdeprá:casdocentes
lógicadaformaçãoprofissional
lógicadecontrole
28
− uso de uma terminologia que avança na sentido de compreender os
processos de ensinar e aprender
− exercícios paulatinos de análise das práticas docentes pelos seus
resultados (aprovação-reprovação)
− incentivo a práticas docentes correspondentes à metodologia de
projetos.
− aproveitamento de recursos de registro e de comunicação que instala a
possibilidade de reflexividade das práticas docentes.
A voz dos professores e a prática docente
Há na Pedagogia, de maneira geral, como área do conhecimento que
trata das questões do processo de ensino, um caráter instrumental que nem
sempre corresponde ás necessidades impostas pelo contexto real, pelos
contornos de uma sala de aula em seu dia a dia. Ao se criar, pelo movimento
das práticas docentes em suas errâncias, sob o filtro das formações
específicas (como no caso, de engenheiros que se tornaram professores), um
exercício de reflexividade, tem-se a possibilidade de uma Pedagogia para a
Universidade – uma pedagigia ancorada no fazer, partindo daí para impingir o
caráter autodiretivo e criativo das práticas docentes situadas, encarnadas em
suas especificidades formativas.
O quadro 4 é resultante de um exercício reflexivo a partir das entrevistas
efetuadas a professores dos dois cursos de engenharia nas três universidades,
sintetizando as suas ideias em diversas dimensões temáticas da entrevista e
tendo como referencial de alguns dos princípios pedagógicos atrás enunciados
(VIEIRA et al., 2002, 2004; VIEIRA, 2009a/b), considerados como uma possível
gramática de uma pedagogia para a autonomia no ensino superior: Relevância,
Reflexividade, Democraticidade, Autodireção e Criatividade/inovação. A partir
dos testemunhos dos docentes, procurou-se inferir que princípios estão
implícita ou explicitamente subjacentes ao seu pensamento e ação, aos
constrangimentos ou dificuldades que apontam, à sua visão do que é e deve
ser a pedagogia na universidade. Usamos uma noção ampla destes princípios,
abarcando a ação de docentes e discentes, cabendo destacar que são
29
princípios que podem estar potencialmente postos, mas não totalmente
norteando as ações.
QUADRO 4 – SÍNTESE DE RESPOSTAS DOS DOCENTES ENTREVISTADOS.
DIMENSÕES RESPOSTAS APORTADAS (DOCENTES) PRINCÍPIOS EMERGENTES
MUDANÇAS NAS PRÁTICAS DE ENSINO COM O PROCESSO DE BOLONHA
Formação aluno-pesquisador Trabalho com projetos Integração de disciplinas em UC Planejamento: nova terminologia Foco na aprendizagem
Relevância Reflexividade Criatividade/Inovação
AÇÕES DAS INSTITUIÇÕES QUANTO ÁS PRÁTICAS DE ENSINO
Dificuldade no reconhecimento da própria mudança Maior estreitamento entre teoria e prática Aumento da atividade burocrática Necessidade de tempo
Reflexividade
COMPETÊNCIAS TRABALHADAS NAS UC
Confusão entre competência e conteúdo Pedagogia tradicional (foco no conteúdo) Modelo transmissivo (foco no ensino e na aula expositiva)
Relevância
PLANEJAMENTO DAS UC
Pouco foco no procedimento por questões de tempo Busca de alinhamento com a pesquisa e a publicação Diversidade no pensar
Autodireção Criatividade/Inovação Reflexividade
AULAS TÍPICAS DE UMA UC
Contingência no nº de alunos Arranjos formais Improvisos Busca de práticas mais coletivizadas (atividades entre pares)
Autodireção/criatividade Democraticidade Reflexividade
ATIVIDADE EXITOSA Aproximação maior com os alunos Diálogo estabelecido Focalizado no conteúdo (aspecto transmissivo)
Democraticidade
MODOS DE ACOMPANHAMENTO DA APRENDIZAGEM
Contingência do nº de alunos Uso das TIC Responsabilização e participação do aluno Diversidade do olhar docente (aspectos objetivos e subjetivos) Busca do tangível
Reflexividade Relevância
PROCEDIMENTOS DE AVALIAÇÃO
Contingência do nº de alunos Contingência dos procedimentos de ensino Exercício tímido e limitado devido ao tempo docente Responsabilização do aluno
Reflexividade
PROCEDIMENTOS DE AUTO-AVALIAÇÃO
Sem método intencional e planejado Vinculado ao aprendizado do aluno e ao modelo transmissivo: foco no conteúdo
Relevância
PRINCIPAIS DESAFIOS COMO DOCENTE
Viabilização de recursos/procedimentos didáticos Atualização necessária de conteúdos e formas
Autodireção Criatividade/Inovação
CARACTERÍSTICAS DE UM PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
Capacidade de transmitir (moldar): foco no conteúdo Capacidade para trabalhar a responsabilização do aluno na busca pelo
Autodireção
30
saber Capacidade de aprender e aprender formas de ensinar
RELAÇÃO ENTRE MELHORIA DA QUALIDADE DO ENSINO E A AUTO-AVALIAÇÃO DAS UC E CURSOS
Sistematização das UC Postura crítica acerca dos limites dos instrumentos de avaliação do ensino Limites dos efeitos dos resultados dos inquéritos de avaliação do ensino Autonomia discente e auto-regulação da aprendizagem (no discurso) Ameaças à autonomia docente
Reflexividade Autodireção
MELHORIA DA QUALIDADE DE ENSINO E A AÇÃO DA DIREÇÃO DOS CURSOS
Autonomia do professor Desnessário o papel de mediadores
Autodireção
MEDIDAS INSTITUCIONAIS PARA A MEHORIA DA QUALIDADE DO ENSINO
Ações iniciais e descontinuidade dos programas de capacitação Atitude de descrédito
Reflexividade
Observa-se que há uma conjuntura favorável, a partir do Processo de
Bolonha, que estabelece a Relevância como um princípio presente, por se
constituir na Universidade uma série de mudanças em termos de arranjos
curriculares, planejamento, a importância de se formar o aluno-pesquisador, a
realização de cursos anteriores de capacitação em metodologia de projetos
que orientam as práticas docentes em outra direção. Tais mudanças estão ao
serviço de uma formação discente adequada e articulada a um currículo, a
procedimentos de ensino e a uma realidade sócio-profissional que requer mais
autonomia e diferenciação. E todo esse movimento impulsionado pelo
Processo de Bolonha com foco na responsabilização do processo de
aprendizagem deflagra a necessidade de Reflexividade de professores e
alunos quanto às atividades educativas e quanto aos constrangimentos
presentes nesse processo de mudança, a saber: número de alunos por turma,
aumento da atividade burocrática. A necessidade de se pensar e buscar modos
alternativos de se fazer e realizar o ensino conduz ao princípio da
Criatividade/Inovação para o sucesso do processo de aprendizagem e para
garantir a maior aproximação teoria-prática.
As tentativas de trabalhar com projetos, de buscar o alinhamento entre
pesquisa e ensino e os modos como tais tentativas são pensadas apontam
para os princípios da Reflexividade e Autodireção (porque se ensaia maior
envolvimento dos alunos) e Criatividade/Inovação pela consciência desta
31
necessidade. Nas aulas típicas, observa-se que está presente também o
princípio da Democraticidade quando o professor busca envolver mais o aluno
e incitá-lo a responsabilizar-se pelo seu próprio aprendizado. Aqui observa-se
também que a autodireção e reflexividade estão presentes quando, por
exemplo, os docentes se mostram capazes de improvisos em suas aulas,
buscando soluções próprias para alguns constrangimentos (a falta de interesse
dos alunos, ausência de diálogo) surgidos em suas práticas diárias.
Em relação ás aulas exitosas, apesar do caráter tradicional, transmissivo
e com foco no conteúdo, percebe-se o princípio da Democraticidade no
exercício docente em aproximar-se dos alunos, garantindo o diálogo e a
negociação. Os modos como os professores acompanham a aprendizagem
dos alunos indicam ações apoiadas na Relevância e Reflexividade em que,
apesar do número de alunos ser um fator de constrangimento, há um uso
otimizado das TIC que auxilia no processo de responsabilização discente
(relevância em termos de alinhamento com todo o Processo de Bolonha)
mesmo que os docentes entendam que ainda há insuficiência nesses
procedimentos. O mesmo se pode observar quanto aos procedimentos de
avaliação, em que a preocupação latente com a Reflexividade está presente no
sentindo em que o professor destaca a importância do aprendizado do aluno e
a dificuldade em empreender um trabalho avaliativo mais justo e completo.
Nota-se, porém, a dificuldade que o professor tem de exercitar a auto-
avaliação, sendo ainda um processo pouco formal e intencional.
O princípio da Autodireção também está presente nos aspectos
concernentes às características que deve ter um professor universitário, em
que as capacidades necessárias para o mesmo revelam um sentido importante
de autogerir a aprendizagem, docente e discente, no caminho da busca
permanente do saber. E ao discorrerem sobre a relação entre a melhoria da
qualidade de ensino e a auto-avaliação das UC, os docentes apresentam o
princípio da Reflexividade, em que nota-se um pensar docente crítico quanto
aos limites dos instrumentos de auto-avaliação bem como uma postura
instigadora em relação aos efeitos dos resultados dos inquéritos respondidos
pelos alunos. A Reflexividade também está presente na importância acerca da
auto-regulação do aprendizado. O risco da perda da autonomia do professor e
32
todos os fatores que tem colaborado para não favorecer práticas docentes mais
inovadoras indicam a valorização desse princípio e também da Autodireção.
Com base na análise efetuada, identificamos indícios de uma pedagogia
para a autonomia (docente e discente) em construção:
o Importância da formação do aluno-pesquisador
o Uso de terminologia adequada no planejamento das aulas
o Garantia de conteúdos com conceitos básicos para unidades
curriculares práticas e de projeto
o Desenvolvimento de procedimentos avaliativos mais tangíveis do
processo de aprendizagem
o Utilização das TIC para o exercício de auto-regulação da aprendizagem
o Realização de partilhas de experiência com os pares
o Aplicações de procedimentos dialógicos com os alunos
o Viabilização de práticas de aprendizagem mais coletivizadas
o Manutenção de uma postura crítica frente ás políticas e
supervisão das atividades educativas da Universidade
o Garantia da autonomia discente (auto-regulação) e atividades que
desenvolvam a responsabilização dos alunos pelo próprio
aprendizado
RELEVÂNCIA
DEMOCRATICIDADE
REFLEXIVIDADE
33
o Busca de maior aproximação entre teoria e prática no processo
formativo em desenvolvimento
o Respeito ao aspecto temporal nos processos de mudança nas
práticas docentes
o Garantia das práticas docentes e de avaliação focadas na
aprendizagem
o Viabilização de recursos físicos para uso de tecnologias
adequadas ao ensino
o Proposições de meios para aprender modos diferentes de ensinar
o Desenvolvimento e aperfeiçoamento usando a metodologia de projeto
o Alinhamento do ensino com a pesquisa nas práticas docentes
o Uso de improvisos para maior participação dos alunos em situações de
aprendizagem como a aplicação de práticas do dizer, encaixando
anedotas e diálogos
Concordando com Vieira et al. (2004, p.33) que os princípios pedagógicos
aqui considerados, “pela sua carga axiológica e porque implicam mais
diretamente os alunos na construção das aprendizagens, são (...) os que mais
fortemente potenciam a direção transformadora e emancipatória da
Pedagogia”, há que se destacar que tais princípios devem contemplar, pela sua
carga axiológica, não apenas a construção de aprendizagens de alunos, mas
de professores que estão atentos e ainda incomodados (inconformados) com
suas práticas de ensino. E ao se deparar com esses sujeitos, refletindo, se
AUTODIREÇÃO
CRIATIVIDADE/
INOVAÇÃO
I
iN
34
indagando, duvidando e buscando formas de desenvolver outros modos do
fazer docente, nota-se a postura corrente de se ser aprendiz, porque se é
professor.
Considerando que os indícios encontrados correspondem a uma prática
docente mais executada que refletida, com forte referência às teorias pessoais
e menos tendo como fundamento as teorias legitimadas pelas Ciências da
Educação, há a possibilidade de que os traços de uma arquitetura pedagógica
estejam sendo construídos em todo o processo de mudança impingido por
Bolonha nas universidades portuguesas, em particular, nos cursos de
engenharia. Há contradições nessas vozes que parecem tatear práticas
inovadoras, embasadas ainda numa razão instrumental onde os meios tornam-
se mais importante que os fins a que se destina a ação racional, e na qual “O
pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso,
também sua relação com a verdade” (ADORNO e HORKHEIMER, 1986, p.13).
Porém, é na interseção mesmo destas contradições (que caracterizam a
historicidade/ dialética do real) que existe um potencial interessante de
arquitetura pedagógica. Seguem-se algumas contradições identificadas nas
vozes dos professores entrevistados e que podem se constituir dialeticamente
na possibilidade de uma arquitetura pedagógica com vistas á autonomia:
PLANEJAMENTO x EXECUÇÃO: a terminologia utilizada e o registro
em plataforma de rede podem se constituir um meio de repensar a
prática docente em que o planejar seja resultante de uma ação revista
permanentemente pelo docente, ano a ano, semestre a semestre, não
como imposição institucional e sim como sistematização reflexiva
requerida pela consciência da responsabilização do ensino (professor
como sujeito do processo e não mero instrumento de execução de
regras acadêmicas);
PESQUISA x ENSINO: compromisso alargado na necessidade de se
formar o aluno com competência de investigação, promovendo o ensino
como prática de teorizações e métodos, seja por meio de projetos,
desafios, inquirições permanentes do contexto profissional;
35
INQUÉRITOS RESPONDIDOS x SUPERVISÃO: modificação, por meio
de negociações e reflexões no interior das universidades acerca do
sentido e formas dos inquéritos respondidos pelo aluno a fim de
estabelecer um diálogo entre discente-docente acerca das práticas de
ensino enquanto sujeitos, ambos responsáveis pelo processo educativo
(supervisão no sentido de transformação e emancipação);
TESTES x AVALIAÇÃO: reconhecimento de que a avaliação supõe um
conjunto de procedimentos importantes para captar o sentido do
aprendizado e da auto-gestão da aprendizagem e não se reduz a teste e
que o mesmo, por si só, não garante informação do desenvolvimento
das competências requeridas pelo projeto formativo de engenheiros;
ÍNDICE DE REPROVAÇÃO x QUALIDADE DA PRÁTICA DOCENTE: a
compreensão de que a auto-regulação do processo de aprendizagem
supõe atentar para um projeto que redimensione os critérios de
qualidade embasados em valores objetivos e subjetivos garantidores de
uma prática coerente, democrática, reflexiva, autodirigida e inovadora.
As contradições vivenciadas no cotidiano acadêmico apontam para
práticas docentes que se realizam num determinado contexto e que se
movimentam historicamente. Tal historicidade impõe a dialeticidade como
possibilidade de superação das contradições acima delineadas com contornos
críticos para uma pedagogia que se desterritorializa de seu caráter formal-
técnico. Uma arquitetura pedagógica que ao se deslocar em seus sentidos,
renova-se e atualiza-se nos desvios que o cotidiano acadêmico apresenta, em
busca de uma pedagogia focada nos sujeitos, professor e aluno produtores de
novos valores e de novos sentidos nos discursos e nas práticas. No bojo desta
desterritorialização tem-se a possibilidade também de resignificar a Supervisão
centrada no controle para um conjunto de atividades de contra-controle, em
que o professor e os alunos se assumem como sujeitos de um processo
dialógico que tem a pedagogia como o locus de emancipação.
36
Um traçado possível para uma gramática pedagógica
A partir da análise dos testemunhos recolhidos e da reflexão teórica
sobre o lugar da pedagogia na universidade, propõe-se em seguida um traçado
possível para a consolidação de uma gramática pedagógica nos cursos de
engenharia:
Supervisão como exercício emancipatório
Clarificação terminológica de conceitos como competências, projetos,
pedagogia, avaliação e medida;
Planejamento coletivo e avaliação entre pares, fazendo uso de
instrumentos participativos na atividade avaliativa;
Promoção de atividades de auto-estudo (discente e docente) e
sistematização do conhecimento pedagógico partilhado;
Co-construção e disponibilização de procedimentos de ensino variados
utilizando recursos das TIC.
Resignificação da profissionalidade na profissionalidade
Assunção da reflexão sistemática sobre a experiência, criando
mecanismos reflexivos individuais e coletivos;
Retomada/controle do tempo de docência no rol das atividades
académicas;
Compromisso/ esforço no exercício da valorização da professoralidade
que há na profissionalidade académica;
Professoralidade que implica percurso na relação pedagógica pela via
do conhecimento específico, preservando o foco no conteúdo e ao
mesmo tempo resignificando a aula expositiva de maneira mais
dialógica, com menos alunos, mais participação e modalidades de
codocência.
37
Desenvolvimento de competências investigadoras e criativas no âmbito da docência
Garantia de uma educação de qualidade para um contexto em
permanente mudança;
Procedimentos de ensino de caráter desafiador, partindo de elementos
retirados de situações reais-profissionais;
Inserção maior da universidade na comunidade e empresas, que
possibilite a transformação de “incidentes críticos” em recursos didáticos;
Definição de procedimentos didáticos de acordo com os objetivos do
percurso formativo discente;
Reconhecimento da historicidade que caracteriza o processo de ensino
e as práticas docentes;
Ampliação da capacidade da academia se transformar em espaço de re-
instrumentação para o exercício docente.
Compreensão do sentido ético que subjaz á responsabilização do aluno pelo processo de aprendizagem
Compromisso de autogestão da aprendizagem (planejamento de
estudos, consecução de prazos e atividades, etc);
Planejamento e publicação de planos, orientações, guiões, bibliografia,
execução de aulas expositivas, introdutórias e de fechamentos;
Apresentação de situações desafiadoras, de auto-avaliação e definição
de critérios de avaliação;
Mecanismos de monitorização e tutoria de todo o processo de ensino-
aprendizagem.
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Reconhecimento do Outro como sujeito de um processo de ensinar e de aprender
Estabelecimento de mecanismos de auto e hetero-avaliação
consubstanciadas no sentido da negociação permanente;
Criação de espaços dialógicos que dêem sustentação ao exercício
curricular de alinhamentos sucessivos entre teoria-prática e entre
trabalhos individuais e orientações coletivas;
Disponibilização de espaços diversos de aprendizagem, reais e virtuais,
num fluxo constante de auto-estudo e de conhecimento mútuo entre os
sujeitos do processo pedagógico.
7- Considerações finais
Dos testemunhos dos sujeitos inquiridos infere-se que há um sistema
privado de ação docente que pode estar em transformação, construindo uma
arquitetura pedagógica com um caráter mais coletivizado do que
aparentemente se percebe, mas onde coexistem lógicas contraditórias, de
algum modo decorrentes dos paradoxos inerentes às reformas em curso.
Se é verdade que a razão tendencialmente instrumental de professores-
engenheiros privilegia uma racionalidade técnica e pragmática (matematizável)
advinda da própria formação em engenharia, de cunho positivista, também é
verdade que o Processo de Bolonha integra essa mesma racionalidade a par
do apelo à renovação das práticas docentes. Uma orientação pragmática
distancia o sujeito de sua condição crítica e reflexiva, porém, de acordo com
Habermas (1989), através da razão comunicativa, apoiada no discurso e
desenvolvendo competências de interação com o outro, a razão instrumental
pode acender a uma condição emancipatória. É no movimento dialético de
contradições que, segundo Chauí (2000), a realidade histórica se modifica e
que as lógicas/ racionalidades se fazem, refazem e reinventam. Daí a
importância de se desvelar os equívocos, assumir as dicotomias (ou falsas
dicotomias) que permeiam as práticas docentes e promover espaços de
39
compartilhamento e de reflexão que criem condições de aproximação a uma
gramática pedagógica mais transformadora e crítica, feita de sentidos que se
mesclam, de princípios que se consolidam de acordo com o compasso das
práticas docentes e que exigem uma inserção dialógica de todos os envolvidos
– gestores, professores e alunos. A criação de espaços/ tempos para o diálogo
e a reflexão deve ser garantida nas práticas de ensino e de supervisão da sua
qualidade, respeitando e considerando os saberes específicos da área de
docência a fim de garantir-lhe uma lógica própria e a preservação de sua
singularidade, num processo que se faz local (em cada universidade, em cada
pais), mas que tem repercussões globais nas sociedades, muito além de
Bolonha.
Que outras pesquisas sejam efetuadas a fim de se compreender a
pedagogia vivida no cotidiano docente, tornando-a mais visível e mais
permeável à discussão coletiva. E que o caminho continue se fazendo no
caminhar…
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