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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CURSO DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM WILLIAM JAMES MAURO JUNJI ARAKI SÃO CARLOS 2003

RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM W Jbdsepsi/175a.pdf · centenário do livro, e ele ainda continua sendo um livro atual com o qual todos podemos contar. O livro As Variedades da Experiência

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

CURSO DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA

RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM WILLIAM JAMES

MAURO JUNJI ARAKI

SÃO CARLOS

2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

CURSO DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA

RELIGIÃO E PRAGMATISMO EM WILLIAM JAMES

MAURO JUNJI ARAKI

Monografia apresentada ao

Departamento de Psicologia da

Universidade Federal de São Carlos

para a conclusão do Curso de

Bacharelado em Psicologia.

SÃO CARLOS

2003

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_______________________________

Orientador

Prof. Dr. Bento Prado de Almeida

Ferraz Junior

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Dedico esse trabalho a todas as pessoas

religiosas. Que a crença de vocês

nunca morra.

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AGRADECIMENTOS

A minha família, por me dar apoio não só durante o período de realização deste trabalho, mas durante toda a minha vida.

A turma de Psicologia do ano 2000 da UFSCar, por terem me acompanhado no meu

desenvolvimento acadêmico e compartilhado comigo um pouco de seu aprendizado. Todos foram muito mais do que simples colegas de turma e espero poder levar essa amizade para além dos anos de faculdade.

Aos meus companheiros de república, Zidane, Sá, Fábio, Picachú e Dadinho, e

aqueles que moraram comigo, Raul, Rodrigo, Danka, Thiago e Luiz, por não serem apenas pessoas com quem eu dividia o aluguel e as contas. Mas por serem amigos de verdade nos momentos fáceis e nos difíceis.

Ao corpo docente do Departamento de Psicologia e do Departamento de Filosofia.

Por me transmitirem um pouco do seu saber e possibilitarem que eu esteja onde estou. Ao Rogério do Fast Copy pelos serviços prestados. Grande parte do meu saber

passou pelas suas mãos. A todos os meus amigos, que me ajudaram não só na minha vida acadêmica, mas na

minha vida pessoal também. Agradeço pelas risadas, pelos momentos de divertimento e pelos momentos de apoio.

A Camila, por me ajudar a crer que era possível. Nessa reta final ela me ajudou a

não perder as esperanças e a continuar lutando mesmo quando a batalha parecia vã. A Aninha, por estar sempre ao meu lado e me ajudar a atravessar os momentos

difíceis. Ela foi minha estrela guia por muito tempo, se não fosse por ela talvez eu não tivesse conseguido muitas coisas que consegui em minha vida acadêmica aqui na faculdade.

E finalmente, ao Prof. Dr. Bento Prado de Almeida Ferraz Junior, por me orientar

nesse trabalho e me dar um norte quando estava à deriva em um mar de indecisão.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1

1 – O PRAGMATISMO ........................................................................................................ 4

1.1 – O que é o pragmatismo ............................................................................................. 4

1.2 – Concepção de verdade no pragmatismo.................................................................... 7

2 – RELIGIÃO..................................................................................................................... 15

2.1 – Conceituando a religião........................................................................................... 15

2.1.1 – Delimitação do assunto .................................................................................... 15

2.1.2 – O objeto de estudo............................................................................................ 17

2.2 – Religião e neurologia .............................................................................................. 18

2.3 – A realidade do invisível .......................................................................................... 20

2.4 – Nascidos uma vez e duas vezes (o equilíbrio mental e a alma enferma) ................ 22

2.5 – Conversão e a unificação do eu............................................................................... 29

2.6 – A santidade e seu valor ........................................................................................... 35

2.7 – O misticismo ........................................................................................................... 44

3 – RELIGIÃO E PRAGMATISMO (conclusão) ............................................................... 50

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 61

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RESUMO

O objetivo deste trabalho foi estudar a religião à luz do pragmatismo. William James,

psicólogo, filósofo e um dos principais representantes do pragmatismo, escreveu um livro

exatamente com essa proposta. Explorando o que seria o pragmatismo, esse trabalho

procura entender melhor a posição adotada por James em sua exposição acerca da religião

feita em seu livro intitulado “As Variedades da Experiência Religiosa”. Nele, James

explora as experiências religiosas individuais, em oposição à religião como instituição, pois

ele crê que é nelas que está contida a verdadeira essência da religião. Esse trabalho

acompanha a obra em sua exposição do tema da religião tendo em vista não só a

conceituação teórica, mas também a aplicação prática das características religiosas

presentes nas experiências de cada indivíduo. A argumentação do texto leva-nos a

considerar o fenômeno religioso como sendo real e autêntico, tendo grande influência sobre

as nossas vidas. As conclusões tiradas acerca da natureza dessa experiência, são que

existem diversos mundos da consciência e que essa natureza é caracterizada exatamente

pelo contato da nossa consciência ordinária com estados de consciência mais elevados.

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INTRODUÇÃO

A religião é algo que permeia a natureza humana e está presente desde os

primórdios da humanidade. Ela já foi analisada e comentada por praticamente todas as

abordagens possíveis, tanto a ciência quanto a filosofia já se aventuraram nesse terreno.

Milhares, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de livros já foram escritos com

esse assunto, William James com seu livro As Variedades da Experiência Religiosa

também está nessa lista.

Poucos livros sobre religião escritos neste século tiveram um primeiro impacto

e uma contínua influência como o Variedades de James. A sua linguagem simples e a

precisão dos seus argumentos fizeram com que o livro tivesse alcance mundial, chamando a

atenção de várias gerações de leitores em todo o mundo. O ano passado foi o ano do

centenário do livro, e ele ainda continua sendo um livro atual com o qual todos podemos

contar.

O livro As Variedades da Experiência Religiosa foi lançado pela primeira vez

em junho de 1902. A expectativa que o livro vendesse bem foi justificada e James fez mais

algumas revisões para a versão definitiva que apareceu em agosto do mesmo ano. Ele foi

reimpresso em outubro, novembro e dezembro de 1902 e em janeiro de 1903. Durante a

primeira metade do século, o livro já tinha quarenta edições, e até 1985 elas já

ultrapassavam cinqüenta e seis edições só nos Estados Unidos.

Nesse livro, James utiliza o pragmatismo para explorar o terreno da religião.

Por esse motivo, esse trabalho tem uma primeira parte que é uma breve exposição sobre o

que é o pragmatismo e algumas de suas aplicações teóricas. Isso foi feito para que o leitor

se situe melhor dentro das argumentações utilizadas nas explicações sobre a religião.

Durante todo o texto do Variedades é possível verificar essa influência pragmática e a

análise do método empírico.

O texto base para a exposição do pragmatismo foram as conferências sobre o

pragmatismo proferidas por James nos anos de 1906 e 1907, ou seja, depois da publicação

do Variedades. Mas o método de análise utilizado neste último não difere

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significativamente da sua apresentação alguns anos depois nas conferências sobre o

pragmatismo. Esse método é o empirismo. Foram utilizados também os “Ensaios em

Empirismo Radical”, publicado em 1912, para justificar o termo “radical” sobre o método

empírico.

Depois de feita a exposição sobre o método pragmático, inicia-se a exposição

sobre a religião que tem como base o livro “As Variedades da Experiência Religiosa”. O

corpo do texto acompanha basicamente a mesma estrutura utilizada por James em seu livro.

Inicialmente é feita a conceituação da religião, onde se delimita o assunto e se define o

objeto de estudo. Considerando o fato de que o campo da religião é extremamente vasto, o

assunto que James se propõe a estudar é apenas a experiência religiosa. Assim, o seu objeto

de estudo foi a experiência religiosa individual, não foi estudado a religião como

instituição. E no final, o estudo da religião pessoal se mostrará de todo mais útil do que o

estudo da religião como instituição por constituir a experiência religiosa em primeira mão.

Por causa da influência do paradigma Newtoniano-Cartesiano, James começa a

sua exposição sobre a religião com a visão do materialismo médico, colocando a

experiência religiosa como uma mera loucura ou fantasia. Ele explora a limitação desse

pensamento para, a partir daí, começar a expor o que realmente significa a experiência

religiosa.

Os três próximos tópicos são mais de exploração sobre o assunto. A realidade

do invisível vai tratar da influência que os objetos religiosos exercem sobre o

comportamento dos indivíduos, e como esses objetos tocam o sentido de realidade das

pessoas, são cridas como constituintes de uma realidade que está além do mundo material.

O tópico seguinte trata de duas variedades distintas e praticamente opostas da

experiência religiosa, o otimismo e o pessimismo. O primeiro é caracterizado não por

apenas considerar o lado positivo das coisas, mas por apenas admitir a existência do lado

positivo. Para esse tipo de pessoa, os equilibrados mentalmente, o mal é apenas uma ilusão,

não tem existência real, e por esse motivo deve ser desconsiderado. Em oposição a esse tipo

de vista, o nascido duas vezes (alma enferma) sobreestima o mal, considera que o mal é

parte constituinte da própria essência do mundo.

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A conversão vai tratar de expor como essas duas maneiras de ver o mundo

estão geralmente entrelaçadas nos homens (eu dividido) e como, através da conversão, o

homem se torna unificado e conscientemente certo, superior e feliz.

No tópico sobre a santidade, serão expostos os frutos práticos da vida religiosa

e eles serão julgados. Existem características fundamentais presentes na santidades, a

primeira diz respeito à sensação de que existe algo maior, um Poder Ideal; o segundo diz

respeito ao sentimento de continuidade desse poder com a nossa vida e a entrega total ao

seu controle; o terceiro é uma alegria e uma liberdade imensas que aparecem na medida em

que esse abandono da individualidade vai acontecendo; e finalmente, uma transferência do

centro emocional na direção positiva e longe das pretensões do não-ego. Essas

características serão analisadas e serão tiradas as conseqüências práticas delas, o ascetismo,

a força da alma, a pureza e a caridade. Cada uma delas vai ser julgada sob a luz do

pragmatismo, que as considerará úteis ou não.

O último tópico da segunda parte do trabalho, o misticismo, serve para explorar

o que seria a chamada “consciência mística”. E serve também para uma preparação para as

conclusões que serão tomadas na terceira parte do trabalho ao discutir a questão da verdade

na religião.

Finalmente, a terceira parte do trabalho faz uma relação um pouco mais

profunda entre o pragmatismo e a religião. Através disso, são tiradas conclusões a respeito

do que seria os elementos essenciais na religião, e a explicação pessoal de James para os

fenômenos religiosos. Ele procura conceituar o que seria o “algo superior” ao qual os

homens religiosos se sentem ligados, de maneira a satisfazer tanto aos religiosos quanto aos

cientistas. Por fim, coloca a sua própria crença de que existem inúmeros mundos de

consciência que devem conter experiências providas de significado para a nossa vida, e que

o mundo vai muito além do que é postulado pela ciência física.

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1 – O PRAGMATISMO

1.1 – O que é o pragmatismo

Pragmatismo é caracterizado principalmente por defender que a verdade deve

ter como critério sua eficácia ou utilidade. Um conhecimento é verdadeiro não só quando

explica alguma coisa ou um fato, mas sobretudo quando permite retirar conseqüências

práticas e aplicáveis.

William James (1842-1910) foi um dos principais representantes dessa corrente

filosófica, e em uma série de oito conferências proferidas entre 1906 e 1907 ele caracteriza

o que é o pragmatismo e algumas aplicações dessa teoria.

O termo deriva da mesma palavra grega prágma, que significa ação, do qual

vêm as nossas palavras “prática” e “prático”. Em filosofia foi introduzida pela primeira vez

por Charles Peirce, em 1878. Porém, não há nada de novo no método pragmático. Vários

filósofos utilizaram-no de forma fragmentária preludindo o que viria a se tornar o

pragmatismo, como Sócrates, Aristóteles, Locke, Berkley, Hume, Hodgson, entre outros.

Mas foi só no século XIX que ele se generalizou.

O pragmatismo representa o empirismo, uma corrente muito conhecida em

filosofia, mas o representa de uma maneira radical, não contraditória como já foi assumida

alguma vez. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões

a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensões ao absoluto e às

origens. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder.

Em sua segunda conferência intitulada “O que significa pragmatismo”, ele

começa com um exemplo de uma discussão ocorrida alguns anos antes da conferência.

“O corpus da disputa era um esquilo – um esquilo vivo que se

supunha estar agarrado a um lado de uma árvore; enquanto do outro

lado, oposto da árvore, imaginava-se estar um ser humano. Essa

testemunha humana tenta ver o esquilo movendo-se rapidamente em

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torno da árvore, mas, não importa quão rápida se mova, o esquilo se

movimenta também rapidamente na direção oposta, e sempre mantém

a árvore entre si e o homem, de maneira que jamais o tem em vista. O

problema metafísico resultante agora é este: O homem anda em torno

do esquilo ou não? (...) Atento ao adágio escolástico de que sempre

que se encontra uma contradição deve-se fazer uma distinção,

imediatamente procurei e encontrei uma, como se segue. ‘O lado que

está certo’, disse, ‘vai depender do que se entende praticamente por ir

em torno do esquilo. Se se entende passar do norte dele para o leste,

então para o sul, então para o oeste, e então para o norte dele de novo,

é óbvio que o homem vai em torno dele, pois ocupa essas posições

sucessivas. Se, porém, ao contrário, entende-se que primeiro está em

frente a ele, então, à sua direita, então atrás, então à esquerda, e

finalmente, de novo em frente dele, é óbvio que o homem deixa de ir

em torno do esquilo, pois pelos movimentos compensadores que o

esquilo faz, mantém o seu ventre voltado para o homem todo o tempo,

e as suas costas voltadas para o lado oposto. Faça-se a distinção, e não

haverá ocasião para qualquer disputa posterior. Os dois lados estão ao

mesmo tempo certos e errados, de acordo com o que se conceba em

relação à locução ir em torno, em um sentido prático ou em outro’”

(James, 1906).

Introduzindo este problema, James tenta dar um exemplo do cotidiano para

explicar o que é pragmatismo. Ele mesmo admite ser um exemplo “banal” por ser muito

simples, mas é de acordo com a sua resolução ele tenta introduzir o que seria o método

pragmático. Que no fundo visa resolver disputas metafísicas que tendem a se estender ao

infinito. Questões do tipo: é o mundo um ou muitos (monismo ou pluralismo)?

Predestinado ou livre (determinismo e livre-arbítrio)? Material ou espiritual? Nesses casos,

o método pragmático “é tentar interpretar cada noção traçando as suas conseqüências

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práticas respectivas. (...) Se não pode ser traçada nenhuma diferença prática qualquer, então

as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã” (Idem Ibidem).

Em palavras usadas na metafísica como “Deus”, “Matéria”, “Razão”,

“Absoluto”, “Energia”, etc., a aplicação do pragmatismo se dá não as considerando como

definitivas como princípio do Universo. “Tem-se de extrair de cada palavra o seu valor de

compra prático, pô-lo a trabalhar dentro da corrente de nossa experiência. Desdobra-se,

então menos como uma solução do que como um programa para mais trabalho, e mais

particularmente como uma indicação dos caminhos pelos quais as realidades existentes

podem ser modificadas”. Sendo assim, o método pragmático significa a atitude de “olhar

além das primeiras coisas, dos princípios, das ‘categorias’ das supostas necessidades; e de

procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüência, fatos” (Idem Ibidem). O que torna as

teorias instrumentos de investigação, e não respostas aos enigmas onde podemos descansar.

Em princípio, o método pragmático não visa resultados particulares, não tem dogmas ou

doutrinas, com exceção exclusiva de seu método.

Nas ciências, que se envolveram com o ramo da lógica indutiva, os

pesquisadores começaram a mostrar certa unanimidade em relação ao que significam leis

da natureza e os elementos de fato quando formulados por matemáticos, físicos e químicos.

Nas palavras de James, “quando as primeiras uniformidades matemáticas, lógicas e

naturais, as primeiras leis, foram descobertas, os homens ficaram tão arrebatados pela

clareza, beleza e simplicidade daí resultantes, que acreditaram ter decifrado autenticamente

os pensamentos eternos do Todo-Poderoso. (...) À medida, porém, que as ciências se

desenvolveram, ganhou corpo a noção de que muitas, talvez todas, de nossas leis são

somente aproximações. As próprias leis, mais ainda, tornaram-se tão numerosas, que não há

como contá-las; e tantas formulações rivais foram propostas em todos os ramos da ciência,

que os investigadores acostumaram-se à noção de que nenhuma teoria é absolutamente uma

transcrição da realidade, mas que qualquer delas pode, de certo ponto de vista, ser útil”.

Elas funcionam como nossa maneira de ver o mundo, nossos informes sobre a natureza; e

“a língua, como é bem conhecido, toleram muita escolha de expressão e muitos dialetos”

(Idem Ibidem).

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Assim, também na ciência está presente o pragmatismo na medida em que as

leis formuladas por ela não são exatamente um retrato da realidade, não são explicações ou

descrições perfeitas da realidade, mas apenas uma aproximação. Isso, porém, não tira seu

valor prático. Basta observar o número de descobertas científicas tecnológicas para

comprovar que essas “aproximações” têm grande utilidade prática.

A palavra “pragmatismo” é utilizada também em um sentido mais amplo, como

sendo uma certa “teoria da verdade”. Schiller e Dewey dizem que as idéias “tornam-se

verdadeiras na medida em que nos ajudam a manter relações satisfatórias com outras partes

de nossa experiência, para sumariá-las e destacá-las por meio de instantâneos conceptuais,

ao invés de seguir a sucessão interminável de um fenômeno particular” (Idem Ibidem). Isso

nos leva ao próximo tópico, que abordará o que significa o conceito de verdade de acordo

com o pragmatismo.

1.2 – Concepção de verdade no pragmatismo

A sexta conferência de William James sobre o pragmatismo é dedicada à

concepção de verdade no pragmatismo. Nela, James discute não só o conceito de verdade,

mas o que a torna verdade, suas características, etc.

A definição encontrada em qualquer dicionário é que a verdade é uma

propriedade de nossas idéias, que significa estar de “acordo” com a realidade. Porém, em

um debate entre o pragmatismo e o intelectualismo, começa uma discordância sobre o que

significa o termo “acordo” e “realidade”, quando realidade é tomada como algo com o qual

nossas idéias devem concordar.

Os pragmatistas são mais analíticos e meticulosos nessa análise, enquanto os

intelectualistas mais imediatos e irreflexivos. James coloca essa diferença dando o exemplo

de um relógio na parede, se fecharmos os olhos e pensarmos no relógio na parede tem-se

um quadro verdadeiro, é uma cópia de seu mostrador. Porém a idéia que nós temos das

peças do relógio não é exatamente uma cópia (a não ser que tenhamos conhecimento

profundo de todas as partes do relógio), contudo ela não colide com a realidade, assim a

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palavra “peças” é considerada verdadeiramente. E quando se fala de “função de marcar o

tempo” do relógio, ou da “elasticidade” de suas molas, é difícil ver exatamente o que sua

idéias podem copiar.

Claramente existe um problema com isso, quando nossas idéias não podem

copiar exatamente o objeto, que significa a concordância com aquele objeto? A suposição

dos intelectualistas é que “a verdade significa essencialmente uma relação estática inerte.

Quando se chega à idéia verdadeira de alguma coisa, chega-se ao fim da questão”. O

pragmatismo, por outro lado, diz que “as idéias verdadeiras são aquelas que podemos

assimilar, validar, corroborar e verificar. As idéias falsas são aquelas com as quais não

podemos agir assim”. Sendo que a posse de pensamentos verdadeiros significa a posse de

valiosos instrumentos de ação. É dever primário do ser humano buscar essas idéias através

de dois processos básicos na formação da verdade: a verificação e a validação.

A posse dessas idéias verdadeiras não é um fim em si, mas um meio para a

satisfação de outras necessidades vitais. O pensamento verdadeiro é útil, pois deriva

primariamente da importância prática de seus objetos para nós, porém não em todos os

tempos. James usa um exemplo de alguém que fica perdido na floresta, faminto e depara-se

com o que parece ser uma trilha de gado, é de suma importância que se pense em uma

habitação humana ao fim da mesma, se assim fizer a pessoa se salva. Nesse caso, a casa é

um objeto útil para nós, por isso o pensamento verdadeiro se torna importante. Em outra

ocasião, a casa pode não ser útil, então a idéia sobre ela poderia permanecer latente. Porém,

quase todo objeto pode vir a ser útil em alguma ocasião, assim, é importante que se tenha

um estoque geral em nossa memória de verdades “extras”, que poderão ser utilizadas em

algum momento. Sempre que necessária, uma dessas verdades extras torna-se ativa para

solucionar um caso de emergência. Podendo dizer então que as frases “é útil porque é

verdadeira” e “é verdadeira porque é útil” significam a mesma coisa.

Voltando no exemplo do relógio na parede, duas pessoas podem considerá-lo

como sendo um relógio mesmo sem ter acesso às peças que fazem dele um relógio. Tem-se

a noção de verdade sem verificá-la. Se considerarmos a verdade como processo de

verificação, verdades como essas poderiam ser contestadas. Porém, elas formam um

número imensamente grande de nossas verdades do dia-a-dia das quais vivemos. Como o

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próprio James afirma, “tanto as verificações indiretas quanto as diretas passam pelo exame”

(Idem Ibidem). Então, quando as evidências circunstanciais forem suficientes, podemos

confiar sem testemunho visual. Assim como podemos afirmar que existe a Europa sem

nunca termos estado lá, podemos afirmar que o objeto na parede é um relógio, e até

utilizamos como relógio. O caráter verificável do objeto é tão eficaz quanto a própria

verificação, “se estamos bem certos de que a verificação é possível, omitimo-la, e ficamos

normalmente justificados por tudo que aconteça” (Idem Ibidem).

Um outro argumento para não se fazer a verificação integral todas as vezes

(além da economia de tempo), é que as coisas existem em certas espécies, e não apenas

singularmente. De modo que, “quando temos verificado de uma vez nossas idéias a respeito

de um espécime de certa espécie, consideramo-nos livres para aplicá-las a outros espécimes

sem verificação”. Concluindo então que “indiretamente ou somente potencialmente, os

processos de verificação podem, pois, ser verdadeiros tanto quanto os processos de

verificação integrais” (Idem Ibidem).

Há ainda outra esfera de idéias, as relações entre idéias puramente mentais,

onde as crenças verdadeiras e falsas prevalecem, e onde as regras são absolutas,

incondicionais. Quando as idéias são verdadeiras, elas podem ser chamadas de princípio ou

definição. Uma vez verdadeiro, sempre verdadeiro. Existem princípios como 1 mais 1

fazem 2, o branco difere menos do cinza que do preto, se iniciada a causa também se inicia

o efeito, etc. Se encontrarmos um objeto concreto que seja “um” ou “branco” ou “cinza” ou

um “efeito”, então nossos princípios se aplicarão sempre.

Relacionando uma idéia abstrata a outra, estruturamos grandes sistemas de

verdades lógica e matemática, “sob cujos respectivos termos os fatos sensíveis da

experiência arranjam-se por fim, de modo que nossas verdades eternas são tão verdadeiras

quanto às realidades” (Idem Ibidem). Se tivermos considerado nossos objetos corretamente,

o enunciado citado acima é verdadeiro. As relações abstratas nos coagem a tratá-las

coerentemente, independentemente do que achamos ou queremos. Aliás, essa coerção se dá

para toda a realidade, seja ela abstrata ou concreta, fatos ou princípios, podendo estar

sujeito à desarmonia e frustração.

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As realidades então, significam “fatos concretos ou espécies abstratas de coisas

e relações percebidas intuitivamente entre elas. Mais ainda, significam, como coisas que

novas idéias nossas não menos devem levar em conta, o corpo inteiro de outras verdades já

possuídas por nós” (Idem Ibidem). Iniciaremos agora o que significa “concordância”.

Nesse ponto o pragmatismo e o intelectualismo começam a se aproximar.

Inicialmente, concordar seria copiar, porém como demonstrada acima, essa definição tem

alguns problemas. “Concordar” em um mais amplo sentido com a realidade “só pode

significar ser guiado diretamente a ela ou aos seus arredores, ou ser colocado em tal relação

de trabalho de modo a poder operá-la ou a alguma coisa que lhe esteja ligada, melhor do

que se tivesse concordado”. E “freqüentemente a concordância significará apenas o fato

negativo que nada contraditório da área daquela realidade venha a interferir com a maneira

pela qual nossas idéias guiam-nos a outras partes” (Idem Ibidem). O essencial então, não é

apenas copiar uma realidade (que é uma maneira muito importante de concordar com a

realidade), mas ser guiado até ela. “Qualquer idéia que nos ajude a lidar, prática ou

intelectualmente, com a realidade ou seus pertences, que não perturba nosso progresso com

frustrações, que ajusta, de fato, e adapta nossa vida ao cenário geral da realidade,

concordará suficientemente em satisfazer o requisito. Manterá a verdade daquela realidade”

(Idem Ibidem).

A grande maioria de nossas idéias verdadeiras não admite verificação direta,

por exemplo, o passado, “a corrente do tempo só pode ser remontada apenas verbalmente,

ou verificada indiretamente pelos prolongamentos ou efeitos presentes do que o passado

abrigou” (Idem Ibidem). Assim como o presente é verdadeiro, o passado foi verdadeiro, o

passado é garantido por sua coerência com tudo o que é presente.

“A concordância, assim, acontece ser essencialmente um caso

de conduzir. (...) As idéias verdadeiras levam-nos a áreas verbais e

conceituais úteis, tanto quanto diretamente a termos sensíveis úteis.

(...) e no fim e por fim, todos os processos verdadeiros devem levar à

face de experiências perceptíveis diretamente verificáveis em alguma

parte, que as idéias de alguém copiaram” (Idem Ibidem).

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Esse é basicamente o processo pelo qual o pragmatista interpreta a

concordância verbal. E ao seu ver, é somente assim que as idéias científicas podem dizer

que concordam com suas realidades. Termos como “energia” nem mesmo visam traduzir

algo objetivo, “é somente uma maneira de medir a superfície dos fenômenos, de modo que

suas mudanças ou variações possam ser definidas por uma fórmula simples” (Idem Ibidem).

A escolha dessas fórmulas humanas está atrelada ao seu funcionamento, deve

ser uma teoria que funcione. Isso é extremamente difícil, pois a teoria precisa mediar entre

todas as verdades prévias e certas experiências novas. “Deve perturbar o menos possível o

senso comum e a crença anterior, e deve levar a algum término perceptível ou a outro que

possa ser verificado exatamente”. E em caso de alternativas igualmente compatíveis,

“escolhemos o tipo de teoria à qual nos mostramos parciais seguimos ‘elegância’ ou

‘economia’” (Idem Ibidem).

No trecho que se segue, James aponta para uma argumentação racionalista para

a verdade:

“A verdade não é feita, ela prevalece absolutamente, sendo

uma relação única que não espera por qualquer processo, mas passa

dita por cima da experiência, e atinge sua realidade a cada hora. Nossa

crença em que aquela coisa ali na parede é um relógio, já é verdadeira,

embora ninguém na história inteira do mundo verificasse isso. A

simples qualidade de permanecer naquela relação transcendente é o

que torna verdadeiro qualquer pensamento que a possua, haja ou não

verificação. O pragmatista põe o carro adiante dos bois ao fazer que o

ser da verdade resida nos processos-verificação. Esses são meramente

sinais de seu ser, meramente maneiras trôpegas de averiguação

perante o fato, que de nossas idéias já receberam a maravilhosa

qualidade. A qualidade em si é sem tempo, como todas as essências e

naturezas. Os pensamentos participam dela diretamente, como

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participam da falsidade ou da irrelevância. Não pode ser analisada por

suas conseqüências pragmáticas” (Idem Ibidem).

Porém, como dito anteriormente, para o pragmatista muitas idéias trabalham

melhor por meio de sua verificação indireta ou possível, do que por meio de sua verificação

direta e positiva. O racionalismo coloca o nome de uma realidade fenomenal concreta como

uma entidade prévia independente, e coloca-a atrás da realidade como sua explicação. Para

retratar o que isso significa, James usa o exemplo da saúde, da força o do dinheiro. Os

racionalistas utilizam esses nomes como explicação para os fenômenos, como, por

exemplo, quando dizem que um homem dorme bem e faz uma boa digestão porque é

saudável, consegue levantar muito peso porque é forte e tem muito dinheiro porque é rico.

Saúde, força e riqueza são apenas os nomes dos fenômenos, por ter o homem um bom sono

e uma boa digestão é que chamamo-lo de saudável, etc. Além disso, seguindo Aristóteles

na diferenciação entre hábito e ato, “o verdadeiro, expondo o assunto com brevidade, é

somente o expediente no processo de nosso pensamento, do mesmo modo que o direito é

somente o expediente no processo de nosso comportamento” (Idem Ibidem).

Com esse pensamento, o “absolutamente” verdadeiro, significando algo que

jamais se alterará, ou seja, que nenhuma experiência jamais alterará, é algo muito obscuro,

é aquele ponto ideal onde imaginamos que todas as nossas verdades temporárias algum dia

convergirão. Porém, até que se tenha um sábio com a experiência absolutamente completa,

temos que viver hoje com a verdade que podemos ter hoje e estarmos prontos amanhã para

tachá-la de falsidade. Assim como aconteceu com inúmeras descobertas da ciência, como o

próprio James afirma:

“A astronomia ptolemaica, o espaço euclidiano, a lógica

aristotélica, a metafísica escolástica foram a solução por séculos, mas

a experiência humana tem superado esses limites, e nós agora

chamamos essas coisas somente de relativamente verdadeiras, ou

verdadeiras dentro daqueles limites de experiência. Em termos

absolutamente, eram falsos; pois sabemos que esses limites eram

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casuais, e podiam ter sido transcendidos pelos teóricos passados do

mesmo modo como o são pelos pensadores modernos” (Idem Ibidem).

Assim, a verdade absoluta terá que ser construída com a contribuição das

meias-verdades, “será feita como uma relação incidental para o crescimento de uma massa

de experiência-verificação, para a qual as meias-verdades contribuem com sua cota” (Idem

Ibidem).

A verdade é constituída em grande parte por verdades prévias, a crença dos

homens tem seu alicerce na experiência passada. Mas as próprias crenças fazem parte da

experiência do mundo e contribuem para a formação de novas crenças futuras, sendo um

processo de dupla influência. As verdades estão em constante mutação, “as verdades

emergem dos fatos; elas, porém, mergulham de novo nos fatos e trazem acréscimos a estes;

os fatos criam de novo ou revelam nova verdade (a palavra é indiferente) e assim

indefinidamente” (Idem Ibidem). Os fatos não são verdadeiros em si mesmos, eles apenas

são, a verdade é função das crenças que começam e terminam entre eles.

Esse é o ponto crucial na diferença entre o pragmatista e o racionalista, o

racionalista nunca vai admitir que a verdade em si ou a realidade em si é mutável. O

racionalista pode permitir que a experiência esteja na mutação, e que nossas certezas

psicológicas da verdade acham-se em constante mutação, mas nunca que a verdade em si

está em mutação. Para o racionalista, a realidade mostra-se completa desde a eternidade e a

verdade não tem relação alguma com nossa experiência, não faz diferença alguma para a

realidade em si. O pragmatista olha o futuro, o racionalista olha para o passado, busca os

princípios, e pensa que uma vez adquiridos, virá uma solução oracular.

Em poucas palavras, a verdade pode ser considerada benéfica, que cresce

absolutamente preciosa, e a falsidade maléfica, que é absolutamente condenável. Porém, a

obrigação de reconhecer a verdade é muito condicional. A verdade, no singular, clama por

ser reconhecida, mas as verdades, no plural, apenas necessitam ser reconhecidas quando

necessárias. Em uma mesma situação, a verdade é sempre preferível do que a falsidade,

mas quando não, a verdade é tão pouco necessária quanto a falsidade. Como por exemplo,

não precisamos ficar repetindo que dois mais dois são quatro independentemente da

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situação apenas porque essa verdade clama por reconhecimento, mas precisamos saber

apenas quando ela se faz necessária, ou quando fazem-nos uma pergunta e respondemos

outra coisa, a resposta dada pode ser verdadeira, mas não satisfaz a necessidade da situação.

Admitindo que a verdade é condicional, a verdade pragmatista aparece em toda sua

plenitude.

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2 – RELIGIÃO

2.1 – Conceituando a religião

2.1.1 – Delimitação do assunto

Existem diversas formas de se conceituar “religião”, e é pelo próprio fato de

serem elas tão numerosas e tão diferentes uma da outra que a palavra “religião” significa

antes um nome coletivo do que um princípio ou essência singular. Assim, nesse estudo não

encontraremos uma essência única, mas muitas características que podem fazer parte da

religião.

Além do conceito de religião propriamente dito, é preciso também considerar o

“sentimento religioso”. Considerado amiúde uma entidade única, existem muitas relações

que os autores fazem para especificar que tipo de entidade ela é. “Uma pessoa a liga ao

sentimento de dependência; outra, a deriva do medo; outras a ligam à vida sexual; outras

ainda a identificam com o sentimento do infinito; e assim por diante” (James, 1995). Essas

divergências mostram como o sentimento religioso também não pode ser tomado como

algo específico, mas um conjunto de sentimentos que podem estar presentes nos indivíduos

de modo alternado. “Existe o medo religioso, o amor religioso, o terror religioso, a alegria

religiosa, etc” (Idem Ibidem), e esses sentimentos são os mesmos que as pessoas

manifestam em outras ocasiões. Contudo, as emoções religiosas são, naturalmente,

distinguíveis das outras emoções concretas. Mas não há motivos para pensar o sentimento

religioso como uma entidade isolada dos outros sentimentos. Pensando que não existe uma

emoção religiosa específica, é possível afirmar também que não existe nenhum tipo

específico e essencial de objeto da religião.

Sendo tão vasto o campo da religião, não é possível cobri-lo por inteiro nesse

estudo, que terá que se limitar a uma parcela do assunto. A primeira distinção que pode ser

feita é a distinção entre religião individual e religião institucional. James propõe em seu

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livro se preocupar apenas com a religião pessoal e deixar à parte o ramo institucional. De

certa forma, essa é uma posição surpreendente, pois a religião é mais comumente

relacionada à instituição religiosa do que à devoção individual de cada um.

Porém, pelo menos em um sentido a religião pessoal se mostrará mais

importante do que a religião institucional, pois depois de estabelecidas, as igrejas passam a

viver uma tradição “de segunda mão”, pois são os seus fundadores que originalmente

mantiveram a comunhão direta e pessoal com o divino.

“A religião, por conseguinte, (...) significará para nós os

sentimentos, atos e experiências de indivíduos em sua solidão, na

medida em que se sintam relacionados com o que quer que possam

considerar o divino. Uma vez que a relação tanto pode ser moral

quanto física ou ritual, é evidente que da religião (...) podem brotar

secundariamente teologias, filosofias e organizações eclesiásticas.

Nestas conferências, no entanto, como eu já disse, as experiências

pessoais imediatas encherão mantos que farte o nosso tempo, e

escassamente trataremos de teologia ou eclesiasticismo” (Idem

Ibidem).

Mas apesar dessa definição, existe a possibilidade de controvérsia no termo

“divino” se esse for definido num sentimento demasiado restrito. Pois existem sistemas de

pensamento que costumamos chamar de religiosos e que, na verdade, não postulam de

forma positiva um Deus, como no caso do Budismo. Diante de religiões como esta, James

adota a posição de “quando em nossa definição de religião falamos da relação do indivíduo

com ‘o que ele considera divino’, faz-se mister interpretarmos o termo ‘divino’ de modo

muito lato, como se denotasse qualquer objeto semelhante à divindade, seja ele uma

divindade concreta ou não” (Idem Ibidem).

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2.1.2 – O objeto de estudo

Iniciando-se a indagação sobre o que é religião, nos deparamos com duas

perguntas diferentes: Que são as propensões religiosas? E qual é a sua significação

filosófica? Do ponto de vista lógico, essas duas questões são de ordens totalmente

diferentes. A lógica faz distinção entre duas ordens de indagação tocantes a alguma coisa, a

primeira são questões do tipo, qual é a sua natureza? Como veio a existir? Qual é a sua

constituição, sua origem, sua história? E a segunda, qual é sua importância, sua

significação, seu valor? A resposta à primeira pergunta é dada num juízo ou proposição

existencial. Enquanto que a resposta à segunda pergunta é dada numa proposição de valor.

Segundo as palavras de James, em matéria de religiões é particularmente fácil

de distinguir as duas ordens de perguntas. Todo fenômeno religioso tem sua história e sua

derivação de antecedentes naturais. A crítica superior da Bíblia não passa de um estudo da

Bíblia do ponto de visa existencial, descurado por muito tempo pela igreja primitiva.

Contudo, não há como ver como as respostas dadas a todas essas perguntas históricas possa

decidir a pergunta subseqüente, “que utilidade pode ter para nós como guia de vida e como

revelação um volume como esse, nascido e maneira acima descrita? Para responder a essa

pergunta precisamos ter em mente alguma teoria geral sobre quais devem ser as

peculiaridade que dão a uma coisa valor de revelação, e essa mesma coisa seria o que acabo

de chamar juízo espiritual”. O próprio James afirma que combinando com o nosso juízo

existencial, podemos, deduzir outro juízo espiritual sobre o valor da bíblia, mas se a teoria

do valor de revelação afirmasse que qualquer livro, para possuí-la, não pode conter nenhum

erro científico ou histórico nem expressar nenhuma paixão local ou pessoal, a Bíblia,

provavelmente, não estaria em boa situação. “Mas se, por outro lado, nossa teoria permitir

que um livro seja uma revelação, em que pese aos erros e paixões e à deliberada

composição humana, bastando que seja um registro verdadeiro das experiências íntimas de

grandes almas em lua com as crises do seu destino, o veredicto será muito mais favorável”

(James, 1995). Assim, os fatos existenciais, por si mesmos, são insuficientes para

determinar o valor, não podendo confundir então o valor existencial com o espiritual.

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James introduz essa distinção para justificar o uso das experiências religiosas

como objeto principal para o estudo da religião. Essa experiência se dará naqueles

indivíduos para os quais a religião existe não como hábito aborrecido, mas como uma febre

ardente. Esses indivíduos são considerados gênios na esfera religiosa. O estudo se dará no

relato de gênios porque “a insanidade fronteiriça, a excentricidade, o temperamento insano,

a perda do equilíbrio mental, a degeneração psicopática, tem certas peculiaridades e

suscetibilidades que, ao se combinar com uma qualidade superior do intelecto num

indivíduo, torna mais provável que ele venha a deixar a própria marca na sua época e influa

nela...” (Idem Ibidem).

2.2 – Religião e neurologia

Esses gênios religiosos citados acima, muitas vezes têm sintomas de

instabilidade nervosa. Mais até do que outros tipos de gênios, os líderes religiosos têm sido

passíveis de manifestações psíquicas anormais. “Não conheceram medida, sujeitos como

estavam a obsessões e idéias fixas; e, muitas vezes, caíram em transes, ouviram vozes,

tiveram visões e apresentaram toda sorte de peculiaridades, classificadas, de ordinário,

como patológicas. Com freqüência, além disso, esses fatos patológicos em sua carreira têm

concorrido para conferir-lhes autoridade e influência religiosas” (Idem Ibidem). Se esses

aspectos psicológicos fossem considerados em pessoas não religiosas, não seria possível

desprezar os aspectos patológicos do assunto.

Porém, nas ciências naturais e nas artes industriais jamais ocorre a alguém

tentar refutar opiniões duvidando da condição neurológica do autor. Isso não deveria ser

diferente também quando se trata de opiniões religiosas. O valor dessas experiências

religiosas só pode ser determinado por juízos espirituais que lhes digam diretamente

respeito, baseados em nosso sentimento imediato e em segundo lugar em nossas relações

com as nossas necessidades morais e com o resto do que julgamos verdadeiro.

O materialismo médico amiúde apela para um pensamento demasiado simplista

para os fenômenos religiosos.

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“O materialismo médico dá cabo de São Paulo explicando sua

visão na estrada de Damasco como uma descarga violenta do córtex

occipital, visto ter sido epiléptico. Tacha Santa Teresa de histérica,

São Francisco de Assis de vítima de uma degenerescência hereditária.

O descontentamento de George Fox com as imposturas do seu tempo

e o seu anseio de veracidade espiritual são conseqüência de um

desarranjo no cólon. Os tons graves de tristeza de Carlyle decorrem do

seu catarro gastroduodenal. Todas essas hipertensões mentais

afiançam o materialismo médico, revelam-se-nos, quando chegamos

ao âmago da questão, meras questões de diátese (mais provavelmente

intoxicações), devida à ação viciosa de várias glândulas que a

fisiologia ainda descobrirá” (Idem Ibidem).

Com essas explicações, o materialismo médico procura tirar a autoridade

espiritual de todos esses personagens.

Adotando essas suposições, deve-se aceitar sem dúvida os acontecimentos nas

vidas desses personagens citados acima. Porém, a indagação que permanece é a de que,

pode um relato existencial de fatos da história mental decidir de um modo ou de outro

acerca da sua significação espiritual? “De acordo com o postulado geral da psicologia (...),

não existe um só dos nossos estados de espírito, baixo ou alto, saudável ou mórbido, que

não tenha por condição algum processo orgânico. As teorias científicas estão condicionadas

organicamente tanto quanto as emoções religiosas (...). Eles são igualmente de fundo

orgânico, seja o seu conteúdo religioso ou não” (Idem, ibidem). Além disso, o materialismo

médico não tem nenhuma teoria fisiológica que explique a produção desses estados de

espírito. Seguindo esse pensamento, argumentar contra o valor espiritual através da

causação orgânica de um estado de espírito religioso é totalmente ilógico e arbitrário.

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2.3 – A realidade do invisível

Caracterizando a vida religiosa no sentido mais amplo e mais geral possível,

poderíamos dizer que ela consiste na crença de que existe uma ordem invisível, e que o

nosso bem consiste em nos ajustarmos harmoniosamente a ela. Conforme o próprio James

diz, “todas as nossas atitudes, morais, práticas ou emocionais, bem como as religiosas,

devem-se aos ‘objetos’ da nossa consciência, às coisas que acreditamos existirem, seja real,

seja idealmente, junto de nós. Tais objetos podem estar presentes aos nossos sentidos, ou

podem estar presentes apenas ao nosso pensamento” (Idem Ibidem). No caso da religião, os

objetos mais concretos são as divindades. Mas além desses objetos mais concretos, existem

outros objetos mais abstratos que mostram um poder semelhante, como por exemplo as

qualidades de Deus (santidade, justiça, misericórdia, infinidade, etc.) que também

despertam inspiração para as meditações dos cristãos.

Para ilustrar essa característica dos seres humanos, James cita Kant e sua visão

a respeito dos objetos de crença como Deus, alma, etc. Segundo Kant, essas coisas não são

propriamente objetos de nenhum conhecimento, pois para podermos trabalhar com as

concepções que temos, elas precisam ter conteúdo sensorial, o que esses conceitos não

possuem. Assim, teoricamente falando, essas palavras são destituídas de qualquer

significação. E James complementa, “no entanto, por estranho que pareça, elas têm um

significado definido para a nossa prática. Podemos agir como se existisse Deus; sentir como

se fôssemos livres; considerar a Natureza como se ela andasse cheia de propósitos

especiais; fazer planos como se devêssemos ser imortais; e verificamos então que essas

palavras determinam uma genuína diferença na nossa vida moral” (Idem Ibidem). Assim,

do ponto de vista prático (ou pragmático), esses objetos possuem uma existência real,

constituindo um estranho fenômeno, segundo Kant, de uma mente que acredita com toda a

sua força na presença real de uma série de coisas das quais não podemos de modo algum

formar qualquer noção.

Mas a citação de James a Kant se estende um pouco mais. Ele também fala

sobre as abstrações superiores que trazem consigo a mesma característica.

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“Todo o universo de objetos concretos, tais como os

conhecemos (...), navega num universo mais amplo e mais alto de

idéias abstratas, que lhe emprestam sua significação. (...)

“Tais idéias, e outras igualmente abstratas, formam o substrato

de todos os nossos fatos, o manancial de todas as possibilidades que

concebemos. Elas emprestam sua ‘natureza’, como lhe chamamos, a

cada coisa especial. Tudo o que conhecemos é o ‘que é’ porque

partilha da natureza de uma dessas abstrações. Nunca poderemos

olhar diretamente para elas, pois não têm corpo, nem trações, nem

pés, mas captamos todas as outras cosas por meio delas e, no trato

com o mundo real, nós nos veríamos impotentes na exata medida em

que perdêssemos esses objetos mentais, esses adjetivos, advérbios,

predicados e chaves de classificação e concepção.

“A determinabilidade absoluta da nossa mente por abstrações é

um dos fatos cardeais da nossa constituição humana. Embora nos

polarizem e magnetizem, voltamos-nos para elas, apartamo-nos delas,

procuramos-las, agarramo-las, odiamo-las, abençoamo-las,

exatamente como se fossem outros tantos seres concretos. E seres elas

são, seres tão reais no reino que habitam quanto as coisas mutáveis

dos sentidos o são no reino do espaço.” (Idem Ibidem)

Em seguida James faz uma comparação entre Platão e sua teoria das idéias e

Emerson, escritor de uma corrente religiosa. Um escritor como Emerson pode tratar a

divindade abstrata das coisas, a estrutura moral do universo, como fato digno de adoração.

Assim como acontece em várias igrejas sem Deus, há um culto similar do divino abstrato,

da lei moral considerada como objeto final.

Todas essas citações levam James à seguinte conclusão: “É como se houvesse

na consciência humana um sentido de realidade, um sentimento de presença objetiva, uma

percepção do que podemos chamar ‘alguma coisa ali’, mais profunda e mais geral do que

qualquer um dos ‘sentidos’ especiais e particulares pelos quais a psicologia atual supõe que

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as realidades existentes são originalmente reveladas” (Idem Ibidem). Na medida então que

as concepções religiosas possam tocar esse sentimento de realidade, elas seriam cridas

como reais.

Com a citação de diversos casos, James tenta provar que existe em nosso

mecanismo mental um sentido da realidade presente mais difundido e geral do que aquele

que os nossos sentido especiais nos fornecem. Na esfera puramente religiosa da

experiência, muitas pessoas possuem os objetos de sua crença na forma de realidades quase

sensíveis, diretamente apreendidas. Chegam a ser quase tão intensas quanto as alucinações.

Elas são tão convincentes para aqueles que a experimentam, que podem se passar por

qualquer experiência sensível direta, e em regra geral, são muito mais convincentes que os

resultados estabelecidos pela lógica simples.

2.4 – Nascidos uma vez e duas vezes (o equilíbrio mental e a alma enferma)

Se fôssemos procurar a preocupação principal da vida humana, uma das

possíveis respostas seria “a busca pela felicidade”.

“A escola hedonística de ética deduz a vida moral inteiramente das

experiências de felicidade e infelicidade produzidas pelos diferentes gêneros de

conduta; e, ainda mais na vida religiosa do que na vida moral, a felicidade e a

infelicidade parecem ser os pólos ao redor dos quais gira o interesse. Não

precisamos ir tão longe a ponto de dizer, com o autor recentemente citado, que

todo entusiasmo persistente é, como tal, religião, nem precisamos qualificar o

mero riso de exercício religioso; mas somo obrigados a admitir que qualquer

gozo persistente pode produzir o tipo de religião que consiste na admiração

agradecida do dom de uma existência tão feliz; e precisamos também

reconhecer que as maneiras mais complexas de experimentar a religião são

novas maneiras de produzir felicidade, maravilhosos caminhos interiores para

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uma categoria sobrenatural de felicidade, quando o primeiro dom da existência

natural é infeliz, como tantas vezes acontece” (Idem Ibidem).

Com essas relações entre a religião e a felicidade, talvez não seja tão

surpreendente que os homens venham a considerar a felicidade proporcionada por uma

crença religiosa como prova de sua verdade. Para o homem comum, se uma crença o faz

sentir-se feliz ele a adota quase que inevitavelmente, tem que ser verdadeira, então para ele

será verdadeira.

As espécies mais singelas da felicidade religiosa, em muitas pessoas, são

congênitas e irrevogáveis. “Não me refiro apenas aos animalmente felizes. Refiro-me aos

que, quando a infelicidade lhes é oferecida ou proposta, se recusam positivamente a senti-

la, como se fosse alguma coisa mesquinha e errada” (Idem Ibidem). Para essas pessoas,

Deus é aquele que oferece liberdade, assim como diz a máxima de Santo Agostinho, ama a

Deus e faze o que desejas. Em uma citação a Francis W. Newman, James coloca a

diferença entre dois tipos de pessoas, os nascidos uma vez e os nascidos duas vezes, essa

denominação será por ele adotada no decorrer do livro. Nas palavras de Newman:

“Deus tem duas famílias de filhos nesta terra, os nascidos uma vez e os

nascidos duas vezes”. E descreve os nascidos uma vez da seguinte forma: “Eles

vêem Deus, não como Juiz rigoroso, nem como Glorioso Potentado; senão

como Espírito animador de um belo mundo harmonioso, Benfazejo e Bondoso,

Misericordioso e Puro. Esses personagens geralmente não têm tendências

metafísicas: não olham para dentro de si mesmos. Por conseguinte, não se

afligem com as próprias imperfeições; e, todavia, fora absurdo chamar-lhes

presunçosos; pois escassamente pensam em si mesmos. Essa qualidade infantil

da sua natureza faz o caminho da religião muito feliz para eles; pois eles não se

encolhem mais diante de Deus quanto uma criança diante de um imperador,

cuja presença faz tremer seus pais: com efeito, eles não têm qualquer concepção

vívida de nenhuma das qualidades da mais severa Majestade de Deus, que é,

para eles, a personificação da Bondade e da Beleza. Eles lêem-lhe o caráter, na

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no mundo desordenado do homem, mas na natureza romântica e harmoniosa.

Do pecado humano talvez pouco saibam em seus corações e não muito no

mundo; e o sofrimento humano mal lhes desperta a ternura. Assim sendo,

quando se aproximam de Deus, nada lhes perturba o interior, e, sem ser

espirituais, têm certa complacência e talvez um sentido romântico de

excitamento em sua singela adoração” (Newman, 1852 apud James, 1995).

Essas pessoas, os nascidos uma vez, tem um temperamento organicamente

voltado para o lado da alegria e sem demorar-se nos aspectos mais escuros do universo.

“Em alguns indivíduos o otimismo torna-se quase patológico, como se não fossem capazes

nem mesmo de uma tristeza transitória ou de uma humildade momentânea, graças a uma

espécie de anestesia congênita” (James, 1995).

Essa tendência de encarar as coisas, a qual James se refere amiúde como

equilíbrio mental, pode ser distinguida em dois tipos: um algo mais involuntário e um algo

mais voluntário ou sistemático de ser mentalmente equilibrado. No primeiro tipo, o

equilíbrio mental é um modo de sentir-se feliz ao contato imediato com as coisas, enquanto

que o segundo é um modo abstrato de conceber as coisas como boas. Nessa maneira

abstrata de conceber as coisas, o sujeito escolhe um aspecto dela como sua essência por

algum tempo e despreza os outros aspectos. Assim, concebendo o bem como o aspecto

essencial e universal do ser, ele exclui deliberadamente o mal do seu campo de visão.

Essa é uma posição que, aparentemente, é muito difícil de se manter para quem

é intelectualmente sincero consigo mesmo e honesto em relação aos fatos. Mas se

refletirmos um pouco a respeito, percebemos que não podemos fazer uma crítica tão

simples assim. Primeiramente, a felicidade, assim como todos os outros estados

emocionais, é cega e insensível aos fatos contrários dados a ela. Quando a felicidade impera

realmente, a idéia do mal pode deixar de ter o sentido da realidade, assim como a idéia do

bem não está presente em um estado profundo de melancolia. Além disso, impor o silêncio

ao mal pode ser uma política religiosa. Pode-se considerar qualquer coisa que se denomine

mal se deve ao modo de como os homens encaram o fenômeno.

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O pensamento a respeito da infelicidade também pode ajudar a esclarecer as

coisas. “A atitude de infelicidade não é somente penosa, mas também mesquinha e feia.

Que é o que pode ser mais baixo e indigno do que o estado de espírito choramingas,

lamurioso, mal-humorado, sejam quais forem os males externos que o possam ter

engendrado? Que é mais prejudicial aos outros? Que é menos útil como meio de livrar-se

da dificuldade? Ele apenas fixa e perpetua o problema que o ocasionou, e aumenta o mal

total da situação” (Idem Ibidem). Então, o cultivo sistemático do equilíbrio mental pode ser

quase tudo, mas não é um absurdo.

Um exemplo que James mais utiliza para descrever esse tipo de pensamento é o

“Movimento da cura psíquica”, ou “Pensamento Novo”. Nela, as pessoas adotam um estilo

de vida deliberadamente otimista, com um lado ao mesmo tempo especulativo e prático.

Esse movimento tem como uma se suas fontes “os quatro Evangelhos; outra é o

emersonianismo ou o transcendentalismo da nova Inglaterra; outra é o idealismo de

Berkeley; outra é o espiritismo, com suas mensagens de ‘lei’, ‘progresso’ e

‘desenvolvimento’; outra é o evolucionismo da ciência popular otimista de que falei a

pouco; e, finalmente, o estudo do Hinduísmo” (Idem Ibidem). Mas o traço mais

característico desse movimento é que os seus chefes tiveram uma crença intuitiva no poder

salvador das atitudes de equilíbrio mental como tais, na eficácia conquistadora da coragem,

da esperança e da confiança, e num desprezo correlativo da dúvida, do medo, da

preocupação e de todos os estados de espírito nervosamente repreensivos.

Esse sistema é composto total e exclusivamente de otimismo: o pessimismo

leva à fraqueza e o otimismo leva ao poder. Pensamentos são coisas, e “se os seus

pensamentos forem de saúde, mocidade, vigor e sucesso, antes que os senhores dêem por

isso, essas coisas serão também a sua porção exterior. (...) O medo, pelo contrário, e todos

os modos limitados e egoístas de pensamento são caminhos para a destruição” (Idem

Ibidem). O semelhante atrai o semelhante, o homem atrai para si as coisas condizentes com

o seu tipo de pensamento.

O movimento da cura psíquica se propagou enormemente na América, e essa

propagação se deveu em grande parte “aos seus frutos práticos, e o caráter sumamente

pragmático do povo americano jamais encontrou melhor oportunidade para mostrar-se do

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que esta, sua única contribuição decididamente original à filosofia sistemática da vida, tão

intimamente ligada à terapêutica concreta” (Idem Ibidem). Esse movimento não se espalhou

apenas pela proclamação e pela afirmação, senão pelos resultados palpáveis de experimento

prova que a experiência confirma amplamente essas idéias religiosas, citados em diversos

casos contidos no livro de James.

Em contraste a opiniões como estas, James apresenta uma opinião

completamente oposta, onde ao invés de subestimar o mal, ele é sobreestimado. Essa visão

é “baseada na persuasão de que os maus aspectos da nossa vida são de sua própria essência,

e que o sentido do mundo tanto mais nos impressiona quanto mais nos preocupamos com

ele” (Idem Ibidem). Porém, antes de explorar mais a fundo essa visão, vale a pena mostrar

um pouco a reflexão que James faz a respeito do mal dentro da religião.

O teísmo filosófico sempre revelou uma tendência ao monismo, reluta em

admitir que Deus seja menos que Tudo-em-Tudo, “e isso tem estado em desacordo com o

teísmo popular ou prático, que mais recentemente se vem mostrando mais ou menos

pluralista, para não dizer politeísta, e perfeitamente satisfeito com um universo composto

de muitos princípios originais, bastando que os seja concedido acreditar que o princípio

divino permanece supremo, e os demais, subordinados” (Idem Ibidem). No último caso,

Deus não é necessariamente responsável pela existência do mal, mas na visão monista o

mal, assim como tudo mais, é necessariamente fundado em Deus, mas como isso é possível

sendo Deus absolutamente bom? Essa é uma questão que não tem nenhuma solução muito

fácil ou clara, a solução mais óbvia seria admitir que o mundo existe desde sua origem de

forma pluralista, assim o mal não precisa ser essencial, pode ser uma porção independente

desde o começo.

O equilíbrio mental é totalmente a favor da visão pluralista. Enquanto que o

filósofo monista “se julga mais ou menos obrigado a dizer, como Hegel dizia, que tudo o

que é real é racional, e que o mal, como elemento dialeticamente necessário, precisa ser

pregado, conservado, consagrado e ter uma função no sistema final da verdade” (Idem

Ibidem). Com essa posição de que o equilíbrio mental aceita a noção de que existem

elementos no universo que podem não fazer parte de nenhum todo racional em conjunção

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como os outros elementos, James passa para o outro tipo de experiência religiosa, a mente

mórbida.

Essas pessoas não conseguem lançar de si nem por um instante o fardo da

consciência do mal, estando inevitavelmente destinadas a sofrer com a sua presença.

Existem níveis diferentes de mente mórbida, para algumas pessoas, “o mal significa apenas

um desajustamento com as coisas, uma correspondência errada entre a vida da pessoa e o

ambiente. Um mal dessa ordem é curável, pelo menos em princípio, no plano natural, pois

bastará modificar o eu ou as coisas, ou ambos ao mesmo tempo, para que os dois termos

sejam levados a ajustar-se e tudo volte a ser alegre como o bimbalhar de um sino de

casamento. Para outros, porém, o mal não é apenas uma relação entre o sujeito e

determinadas coisas externas, senão algo mais radical e geral, um erro ou vício em sua

natureza essencial, que nenhuma alteração do ambiente e nenhum rearranjo do eu interior

vingam curar, e que requer um remédio sobrenatural” (Idem Ibidem).

A frustração é um traço freqüentemente presente nesse tipo de pensamento, o

homem está sempre destinado ao fracasso, nunca ao sucesso. Mas esse é apenas a primeira

característica, para essas pessoas, “todos os bens naturais perecem. As riquezas têm asas; a

fama é um sopro; o amor, uma fraude; a mocidade, a saúde e o prazer desaparecem” (Idem

Ibidem). A vida e sua negação estão sempre juntas, se a vida for boa, a sua negação terá que

ser má. Toda a felicidade parece estar contaminada com algum tipo de contradição. “O fato

de podermos morrer, de podermos ficar doentes, deixa-nos perplexos; o fato de estarmos

por ora vivendo e de estarmos bem é irrelevante para a nossa perplexidade. Precisamos de

uma vida não correlacionada com a morte, uma saúde não sujeita à doença, uma espécie de

bem que não pereça, um bem, de fato, que suba acima dos Bens da natureza” (Idem

Ibidem).

Assim como o equilibrado mentalmente não consegue aceitar a existência do

mal, o pessimista extremo também não consegue aceitar a existência do bem. Podendo ele

sofrer de melancolia no sentido da incapacidade de experienciar um sentimento alegre, ou

uma melancolia que é a angústia positiva, um sentimento negativo onde pode predominar a

aversão, a irritação e exasperação, a desconfiança de si próprio e o desespero, ou a suspeita,

a ansiedade, a trepidação, o medo.

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Esse sentimento experienciado pelos melancólicos chega a ser tão profundo que

o mundo parece alterado para eles. “O mundo se apresenta remoto, estranho, sinistro

fantástico. Foi-se-lhe a cor, o seu hálito é frio, não há brilho nos olhos com que ele fita as

coisas” (Idem Ibidem). Quando o sentimento chega a esse nível de profundidade,

dificilmente a felicidade volta a aparecer para o sujeito. E a felicidade que volta, quando

volta, é uma felicidade que é muito mais complexa do que a simples ignorância do mal

presentes nos equilibrados mentalmente, é algo que inclui o mal natural como um dos seus

elementos, mas que não acha o mal natural um obstáculo e um terror tamanhos, porque

agora o vê engolido pelo bem sobrenatural. Desse modo, quando o sujeito se salva ele o faz

através de um segundo nascimento, uma espécie de redenção, uma vida mais consciente e

mais profunda que a que ele tinha antes. Essa redenção muitas vezes pode ser dar através da

religião, e a própria religião encontra nesse tipo de caso o verdadeiro âmago de seu

problema, o pedido de socorro. A libertação deve expressar-se de modo tão intenso quanto

a lamentação para fazer efeito.

A essa altura já é possível perceber claramente o antagonismo entre o

equilibrado mentalmente e a alma enferma. O primeiro vê o segundo como sendo

desvirtuado e doentio, enquanto que o segundo vê o primeiro como sendo cego e

superficial. Na opinião de James, a morbidez mental caracteriza um tipo de experiência

mais ampla, e que seu estudo é o que se sobrepõe, ainda que parcialmente. Pois o mero

desvio da atenção do mal se constitui um método eficiente enquanto funciona, mas o seu

desarranjo pode levar à melancolia. Além disso, essa não pode ser adotado como uma

doutrina filosófica, pois os fatos maus, que se recusa positivamente a levar em

consideração, constituem uma porção genuína da realidade, e talvez sejam a melhor chave

para o significado da vida, “os únicos abridores dos nossos olhos para os níveis mais

profundos da verdade”, e “visto que os fatos maus são partes tão genuínas da natureza

quanto os bons, a presunção filosófica há de ser a de que eles têm algum significado

racional, e que o equilíbrio mental sistemático, não concedendo à tristeza, ao sofrimento e à

morte nenhuma atenção positiva e ativa, é formalmente menos completo do que os sistemas

que tentam, pelo menos, incluir tais elementos em sua esfera de ação” (Idem Ibidem).

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2.5 – Conversão e a unificação do eu

Em termos gerais, conversão diz respeito ao processo, gradual ou repentino,

“por cujo intermédio um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz,

se torna unificado e conscientemente certo, superior e feliz, em conseqüência do seu

domínio mais firme das realidades religiosas” (Idem Ibidem). Então, para entender o que

ocorre na conversão é preciso entender o que é o “eu dividido”.

Vimos na sessão anterior dois tipos de seres humanos não apenas distintos, mas

opostos. Essas posições são os extremos da experiência do homem, mas a maioria dos

outros homens se encontra em uma mistura ou variedade intermediária. Algumas pessoas

nascem com uma constituição interior harmoniosa e bem equilibrada desde o princípio,

enquanto outros são constituídos de maneira oposta, há uma heterogeneidade em sua

personalidade, uma constituição moral e intelectual incompletamente unificada. “O espírito

entra em choque com a carne, os desejos são incompatíveis entre si, impulsos caprichosos

lhes interrompem os planos mais deliberados, e suas vidas são um longo drama de

arrependimento e esforço para reparar inconveniências e erros” (Idem Ibidem). Os

exemplos extremos dessa personalidade heterogênea se encontram nos psicopatas.

A evolução normal do caráter consiste principalmente no endireitamento e na

unificação do eu interior. “Os sentimentos mais altos e os mais baixos, os impulsos úteis e

os desviados, começam criando um caos relativo dentro de nós – precisam acabar formando

um sistema estável de funções em correta subordinação” (Idem Ibidem). O interior do

homem é um campo de batalha para dois “eus” hostis um ao outro, sendo um real e outro

ideal. Esse período de luta se caracteriza pela melancolia, e se o sujeito tiver a religião viva,

a infelicidade tomará a forma do remorso e da compunção moral, essa é a melancolia

religiosa e a “convicção do pecado” que representaram tão grande papel na história do

Cristianismo protestante. Quando se chega à unidade interior, ela é acompanhada de uma

característica de alívio, uma felicidade muito grande.

Mas as pessoas que experimentaram esse tipo de melancolia nunca chegarão a

ser equilibrados mentalmente. A melancolia se mostra de tal forma profunda que não é

possível esquece-la ou negar a sua existência. O que interessa é que eles encontraram algo

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dentro de seu ser que proporcionou a vitória sobre essa melancolia, um estímulo, uma

excitação, uma fé, uma força que inspira novamente a vontade positiva de viver.

Voltando agora ao tema da conversão e só para abrir um parênteses, James faz

uma referência à Psicologia dominante da época sobre o conceito de Associação. Segundo

ele, “as idéias, metas e objetivos de um homem formam diversos grupos e sistemas

internos, relativamente independentes uns dos outros” (Idem Ibidem). Cada meta desperta

um tipo diferente de excitação dentro de cada um, juntamente com um certo grupo de idéias

a ela subordinadas e associadas. Quando um grupo de idéias está presente ele domina todo

o interesse do indivíduo para esse grupo, enquanto todos os outros grupos são excluídos do

domínio mental. Ele utiliza o seguinte exemplo, “quando o Presidente dos Estados Unidos,

apetrechado de remo, espingarda e vara de pescar, vai acampar no mato em gozo de férias

modifica de cabo a rabo seu sistema de idéias. As preocupações presidenciais são

inteiramente relegadas a um segundo plano; os hábitos oficiais são substituídos pelos

hábitos de um filho da natureza, e os que conheciam o homem apenas como o estrênuo

magistrado não ‘o conheceriam como a mesma pessoa’ se o vissem no acampamento’”

(Idem Ibidem). Com isso James pretende ilustrar que essas mudanças de metas são comuns

em nossa vida cotidiana, mas não podem ser chamadas de transformações porque cada uma

delas é rapidamente seguida de outra na direção contrária sem que nenhuma seja excluída

permanentemente, mas se uma meta se tornasse tão estável que expulsasse definitivamente

suas rivais anteriores, poderíamos chamar esse processo de transformação. Essas

alternativas são os mais completos dos modos com que um eu pode ser dividido. À

proporção que a vida passa, há uma mudança constante nos interesses e uma conseqüente

mudança de lugar em nossos sistemas de idéias, de partes mais centrais para partes mais

periféricas e vice versa.

Temos então o “eu que oscila” e o “eu dividido”, sendo que o ponto de vista do

qual se visa a meta pode vir a estabelecer-se permanentemente num dado sistema, se essa

mudança for religiosa dá-se o nome de “conversão”. “Dizer que um homem está

‘convertido’ significa, nesses termos, que as idéias religiosas, anteriormente periféricas em

sua consciência, assumem agora um lugar central, e que metas religiosas formam o centro

habitual da sua energia” (Idem Ibidem).

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Existem, no entanto, algumas pessoas que jamais serão convertidas. Em alguns

casos, a inaptidão para a fé religiosa é de origem intelectual. Suas faculdades religiosas são

inibidas por outras crenças a respeito do mundo, crenças pessimistas ou materialistas, por

exemplo. Muitas pessoas nunca superam tais inibições, outras ainda se mostram insensíveis

aos aspectos religiosos, nunca chegando a serem convertidas.

Deixando essas pessoas que nunca poderiam atingir a conversão, vamos voltar

àqueles que podem e o fazem. Existem duas formas distintas de se alcançar a conversão.

Fazendo uma analogia ao processo da lembrança, algumas vezes, quando esquecemos um

nome, por exemplo, ficamos trabalhando com a lembrança, percorrendo mentalmente com

ela os lugares, as pessoas e as coisas a que a palavra estava ligada. Mas às vezes esse

esforço não resulta em nada. Ficamos nos esforçando para lembrar o nome e não importa o

que fazemos que ele não vem à memória, então quando desistimos de ficar nos esforçando

ele aparece sem mais nem menos. Algum processo oculto iniciado pelo esforço continua

quando o esforço cessa, e o resultado aparece espontaneamente.

Assim como na memória, existem dois tipos de conversão, uma consciente e

voluntária e uma maneira involuntária e inconsciente com que se podem obter resultados

mentais. James cita Starbuck para se referir a esses dois tipos de conversão como sendo do

tipo volitivo e do tipo da renúncia de si, respectivamente. “No tipo volitivo a mudança

regenerativa, geralmente gradual na edificação, peça por peça, de um novo conjunto de

hábitos morais e espirituais” (Idem Ibidem). Existindo sempre alguns pontos onde o

movimento se dá um pouco mais rápido. Mas mesmo nessas mudanças volitivas, há

passagens onde existe uma renúncia parcial, e na grande maioria dos casos, depois da

vontade fazer o máximo possível, o último passo tem que ser dado sem essa ajuda, tendo

que ser entregue a outras forças.

Nesses termos, renunciar as forças conscientes em favor das inconscientes seria

segundo Starbuck, “entregar-se a pessoa à uma nova vida, fazendo dela o centro de uma

nova personalidade, e viver, interiormente, a verdade dela, antes visada objetivamente”

(apud James, 1995). Isso seria como entregar o processo de conversão a uma força maior,

um eu melhor que pode fazer essa operação muito melhor que o eu consciente.

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Podemos assim, da mesma maneira, diferenciar entre dois tipos diferentes de

conversão, ou melhor, dois ritmos diferentes de conversão: um gradual e outro súbito. O

tipo gradual é geralmente relacionado com o tipo volitivo de conversão, ela se dá, de um

modo geral, conscientemente. Enquanto que a conversão súbita está mais relacionada com

o tipo da renúncia, ou seja, o processo se dá, de um modo geral, inconscientemente.

Será priorizada aqui a conversão desse último tipo, o instantâneo. Aquele que

em um instante se estabelece uma completa divisão entre a vida antiga e a vida nova. A

conversão desse tipo é uma fase muito importante da experiência religiosa, em razão do

papel que ela representou na teologia protestante, e por isso ela será estudada mais

atenciosamente.

A primeira característica que deve ser notada é que para aqueles que

experienciam essa conversão súbita, o evento parece indubitavelmente real, definido e

memorável. E ao mesmo tempo que eles passam por uma experiência dessa, quase sempre

ela vem acompanhada de um sentimento de que isso foi um milagre, e não um

acontecimento natural. Freqüentemente ouvem-se vozes, vêem-se luzes, presenciam-se

visões, ocorrem fenômenos motores automáticos, e depois da renúncia pessoal tem-se

sempre a impressão de que um poder estranho, mais elevado, inundou o íntimo do

indivíduo e tomou posse dele. Além disso, o sentido de renovação, segurança, limpeza,

retidão, pode ser tão maravilhoso que justifica a crença em tal substância totalmente nova.

James faz uma relação entre esse tipo de fenômeno e a noção de que existe uma

consciência além dos limites da nossa própria consciência, uma consciência ultramarginal.

A importância dela se dá porque “os campos ordinários de consciência estão sujeitos a

incursões dela, de cuja origem o sujeito não tem a menor idéia e que, portanto, assumem

para ele a forma de inexplicáveis impulsos para agir, inibições, idéias obsessivas e até

alucinações da vista ou da audição” (James, 1995). Seria o chamado automatismo, que seria

a fala ou a escrita automática, cujo significado o próprio sujeito talvez não entenda

enquanto a pronuncia.

Desse ponto de vista, as características da conversão súbita não passariam de

meros automatismos. Sendo que a diferenciação da conversão súbita e a conversão gradual

não seria necessariamente a presença do milagre divino em uma e algo menos divino na

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outra, mas apenas uma peculiaridade psicológica, “o fato de que no recebedor da graça

mais instantânea temos um desses Sujeitos que estão de posse de ampla região em que o

trabalho mental prossegue subliminalmente, e do qual podem irromper experiências

invasivas, que perturbam de repente o equilíbrio da consciência primária” (Idem Ibidem).

Enquanto que na conversão gradual o processo, em sua maioria, é consciente.

Contudo, o próprio James diz que não vê por que alguém possa objetar a esse

modo de ver. De acordo com ele, “se os frutos para a vida do estado de conversão são

bons, devemos idealizá-lo e venerá-lo, ainda que seja uma peça de psicologia natural; em

caso contrário, devemos livrar-nos dele o mais depressa possível, seja qual for o ser

sobrenatural que possa tê-lo inspirado” (Idem Ibidem). Mas mesmo tendo esses “frutos para

a vida”, aqueles que passaram por uma conversão súbita, com exceção dos santos mais

notáveis, não irradiam nenhum esplendor digno de uma criatura totalmente sobrenatural,

eles não se diferenciam dos outros homens. Como classe, os homens convertidos não se

distinguem dos naturais.

A “escala de excelência espiritual” mostra diferenças contínuas entre os

homens. Além disso, esse estado de excelência espiritual se mostra relativo de pessoa para

pessoa, “quando tocamos nosso próprio limite superior e vivemos em nosso mais alto

centro de energia, podemos dizermo-nos salvos, por mais alto que esteja, em relação ao

nosso, o centro de outra pessoa. A salvação de um homem pequeno será sempre uma

grande salvação e o maior de todos os fatos para ele (...). Se arrumarmos mais ou menos os

seres humanos em classes, cada uma das quais representando um grau de excelência

espiritual, acredito que encontraremos homens naturais e convertidos, tanto repentina como

gradualmente, em todas as classes. As formas que a mudança regenerativa produz não têm,

portanto, nenhuma significação espiritual, mas apenas significação psicológica” (Idem

Ibidem).

Inevitavelmente surge uma pergunta a essa altura, essa posição diminui a

importância da conversão súbita quando ela ocorre? O próprio James responde a essa

pergunta do seguinte modo, de maneira nenhuma. E cita o professor Coe para

complementar o que ele quer dizer, “o critéiro final dos valores religiosos não é

psicológico, nem definível em função do como isso acontece, senão algo ético, definível

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apenas em função do quê se consegue”. Além disso, ele afirma que a remissão do

fenômeno a um eu subliminal não exclui de todo a noção da presença direta da Divindade.

Pois, “assim como nossa consciência primária plenamente desperta nos abre os sentidos

para o toque das coisas materiais, assim também é lógico supor que, se houver agentes

espirituais superiores capazes de tocar-nos diretamente, a condição psicológica para que o

façam pode ser a nossa posse de uma região subconsciente apta a dar-lhes acesso” (Idem

Ibidem). Por isso a noção de subconsciente por certo não deve ser considerada excludente

de toda e qualquer noção de um contato superior.

Para encerrar o tema da conversão, serão colocados os sentimentos que estão

presentes no momento em que ocorre a conversão. O primeiro a ser notado é justamente o

sentimento de controle superior. Esse sentimento seria caracterizado basicamente pela fé

em algo superior, a confiança e a entrega total a essa entidade. A característica principal

desse sentimento é a perda de todas as preocupações, o sentimento de que tudo está bem, a

paz, a harmonia, a disposição de ser. Nos cristãos, a certeza da “graça” de Deus, da

“salvação”. Outra característica é o sentimento de perceber verdades que antes não eram

conhecidas.

Mas o mais característico de todos os elementos da crise de conversão é o

êxtase da felicidade produzida. Essa felicidade é um estado tão profundo de graça que os

sujeitos que a experienciam dificilmente conseguem retratar o que sentem. Apenas para

ilustrar esse sentimento vou transcrever um trecho do relato do Presidente Finney contido

no livro “As variedades da experiência religiosa” de James: “Todos os meus sentimentos

pareciam elevar-se e transbordar; e o meu coração dizia, ‘Quero derramar toda a minha

alma aos pés de Deus’. A elevação da minha alma era tão grande que me precipitei para a

sala dos fundos do escritório, a fim de rezar” (apud James, 1995). O relato continua

mostrando a experiência que o Presidente Finney teve.

A última consideração a ser feita diz respeito à questão da transitoriedade ou

permanência das conversões repentinas. Mesmo que essas conversões repentinas não sejam

duradouras, o que importa é a natureza e a qualidade das mudanças de posição de caráter

para níveis mais altos. James faz uma analogia com o amor que, mesmo inconstante, revela

novos vôos e arrancadas de idealismo enquanto dura. O que constitui a importância da

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conversão “é o fato de mostrar a um ser humano, nem que seja por um breve lapso de

tempo, o ponto culminante da sua capacidade espiritual – uma importância que

reincidências o erro não podem diminuir, mas que a persistência pode aumentar” (Idem

Ibidem).

2.6 – A santidade e seu valor

Depois de ter passado pela conversão, chegamos ao ponto onde é preciso

mostrar quais são os frutos práticos das conversões para a vida. Isso pode ser dividido em

duas etapas distintas, uma é descrever os frutos da vida religiosa, a outra é julgá-los.

Passemos então para a primeira tarefa.

Inicialmente, seria útil fazer uma reflexão a respeito das diferenças entre os

homens. Quais são as condições internas que podem fazer um caráter humano diferir tanto

de outro? A resposta que James oferece é a de que “as causas da diversidade humana

residem sobretudo em nossas diferentes suscetibilidades para a excitação emocional e nos

diferentes impulsos e inibições que elas trazem em seu cortejo” (idem, ibidem). De um

modo geral, a nossa atitude moral e prática é sempre resultante de dois conjuntos de forças

que atuam dentro de nós, os impulsos e as inibições. Os impulsos são aqueles que nos

impelem a fazer algo, nos empurram para uma direção, nos impulsionam para algum lugar.

Enquanto que as inibições são aquelas que nos retêm.

Mas uma grande excitação emocional pode romper com todas as inibições.

Quando uma emoção se torna muito forte a ponto de quase explodir ela é capaz de derrubar

as inibições que vão contra ela, esse sentimento dominante sufoca todos os outros

sentimentos que podem surgir. Nos homens é muito freqüente esse tipo de episódio e são

fáceis de se lembrar muitos exemplos, mas James cita um exemplo com animais

particularmente interessante que citarei na íntegra:

“Num dos seus discursos, Henry Drummond fala de uma inundação na

Índia, onde uma eminência encimada por um bangalô permaneceu in-submersa

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e passou a ser o refúgio de certo número de animais selvagens e répteis em

adição aos seres humanos que lá se achavam. Em certo momento, um tigre real

de Bengala veio nadando para o bangalô, alcançou-o e deixou-se ficar no chão,

no meio das pessoas, ofegando como um cachorro, presa ainda de tamanha

agonia de terror que um dos ingleses teve tempo de aproximar-se calmamente

com uma carabina e estourar-lhe os miolos. A ferocidade habitual do tigre fora

temporariamente sufocada pela emoção do medo, que se tornou soberana e

formou um novo centro para o seu caráter” (Idem Ibidem).

Muitas vezes, nenhum estado emocional é soberano, muitos estados se

misturam uns aos outros onde impulsos e inibições se anulam. Nesse caso o sujeito vacila

em que decisão tomar. Mas existe um limite de intensidade que a emoção pode atingir que

ela se sobrepõe sobre todas as outras e afugenta todas as antagonistas e as inibições. Dentro

desses sentimentos, o mais efetivo para anular as inibições é a raiva, o ódio. Nada aniquila

uma inibição de maneira tão irresistível quanto a raiva.

Até então estamos apenas nas alterações temporárias produzidas por grandes

excitações em cada pessoa. Mas dependendo da pessoa, essas alterações podem ser de

modo definitivo. Em algumas pessoas o que parece ser apenas transitório pode ser, para

outras, permanente. Depende apenas da quantidade de sentimento supressor das inibições.

Passemos agora para o homem religioso. O homem religioso age de acordo com

seu entusiasmo espiritual, não por seu eu carnal de anteriormente. “O novo ardor que lhe

inflama o peito consome em seu brilho os ‘nãos’ que dantes o sitiavam, e mantêm-no imune

à infecção de toda a porção rastejante da sua natureza” (Idem Ibidem). Sendo que essas

conversões, como mostrado na sessão anterior, se mostram até certo ponto permanentes. O

que implica numa mudança total no sujeito que a experiencia. Nesses casos é difícil não

crer que as influências subliminais desempenham um papel decisivo nessas mudanças, em

muitos indivíduos, essas influências são prerrogativas para uma mudança estável.

O nome que James dá aos frutos religiosos sobre um caráter é Santidade. O

caráter santo é aquele que tem como seu centro de energia pessoal as emoções espirituais.

As características fundamentais da santidade são:

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“1. Uma sensação de achar-se numa vida mais ampla do que a dos

interessezinho egoístas deste mundo; e uma convicção, não meramente

intelectual, mas por assim dizer, sensível, da existência de um Poder Ideal. Na

santidade cristã, esse poder é sempre personificado pro Deus; mas ideais morais

abstratos, utopias cívicas ou patrióticas ou visões internas de santidade ou

direito também se podem sentir como os verdadeiros senhores e ampliadores da

nossa vida, segundo as maneiras que descrevi na conferência sobre a Realidade

do Invisível.

“2. Um sentido da continuidade amistosa do poder ideal com a nossa

vida, e um abandono solícito ao seu controle.

“3. Uma alegria e uma liberdade imensas, à proporção que os contornos

da individualidade limitadora se derretem.

“4. Uma transferência do centro emocional pra afeições amantes e

harmoniosas, na direção do ‘sim, sim’, e para longe do ‘não’, no que diz

respeito às pretensões do não-ego” (Idem Ibidem).

Essas condições internas têm conseqüências práticas muito características:

a – Ascetismo: quando a renúncia de si mesmo se torna tão extrema que se

transforma em um auto sacrifício, as inibições da carne são de tal forma dominadas que o

santo encontra o prazer positivo no sacrifício e no ascetismo, que expressam o grau de sua

lealdade ao poder superior. Existem três ramos menores de mortificação, a castidade, a

obediência e a pobreza.

b – Força da alma: o sentido do alargamento da vida se eleva tanto que os

motivos e inibições pessoais se tornam insignificantes, os temores e as ansiedades são

substituídos pela equanimidade bem-aventurada.

c – Pureza: aumenta a sensibilidade às discórdias espirituais e torna-se

imperativo limpar a existência de elementos brutais e sensuais.

d – Caridade: o santo ama os inimigos e trata como irmãos a todos.

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Posto isso, passemos agora à tarefa de julgar esses fenômenos, os frutos da

religiosidade. Em poucas palavras, o que James se propõe a fazer é “experimentar a

santidade à luz do bom senso, usar critérios humanos para ajudar-nos a decidir até onde a

vida religiosa se recomenda como tipo ideal de atividade humana. Se ela se recomendar,

quaisquer crenças teológicas que possam inspirá-la, na medida em que o fizerem, serão

acreditadas. Se não, serão desacreditadas, e tudo isso com referência apenas a princípios

humanos de trabalho” (Idem Ibidem).

Uma das coisas mais importantes, é que a religião não está livre da acusação de

que o excesso de zelo ou o fanatismo são um dos seus riscos. A religião está sujeita à

corrupção pelo excesso. Ele pode ser entendido como sendo unilateralidade e falta de

equilíbrio. Para que exista equilíbrio, nenhuma faculdade deve ser demasiado forte, pois se

houver, haverá predominância dessa característica mais forte. Na vida dos santos, as

faculdades espirituais são fortes, mas examinando bem, o excesso costuma aparecer quando

há uma deficiência relativa do intelecto. Isso pode ser encontrado em todos os atributos dos

santos, devoto amor a Deus, pureza, caridade, ascetismo, todos podem desencaminhar.

Começando pela Devoção. Quando em excesso pode receber o nome de

Fanatismo, que não passa de uma lealdade levada a um extremo convulsivo. Quando uma

mente se vê presa a um sentimento de que certa pessoa sobre-humana merece a sua

devoção exclusiva, uma das coisas que pode acontecer é a pessoa idealizar a própria

devoção, a compreensão dos méritos do ídolo passa a ser considerada o único grande

mérito do adorador. A conseqüência principal disso é que o fanático começa a lutar pela

honra de sua divindade, e os inimigos da divindade começam a ser confundidos. Exemplos

disso são as cruzadas quando são pregadas, chacinas instigadas pelo simples motivo de uma

ligeira desatenção para com o Deus.

Isso é o que acontece quando se encontra a devoção no caráter dominador e

agressivo. Em caráter delicado, a devoção intensa e o intelecto fraco tendem a fazer uma

absorção imaginativa no amor de Deus com a exclusão de todos os interesses humanos

práticos. “Uma mente excessivamente estreita só tem espaço para uma espécie de afeição.

Quando o amor de Deus toma posse de uma mente assim, expulsa dali todos os amores e

usos humanos” (Idem Ibidem). James chama essa condição de teopática. Esse é um tipo de

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santidade que se mostra em grande medida inútil, pois o santo nesse caso se abstém de

todas as suas tarefas terrenas e não consegue mais viver em sociedade. Passa a ser um fardo

para aqueles que estão à sua volta, por se mostrar superficial e pouco edificante.

A próxima virtude em excesso a ser tratada é a Pureza. Em personagens

teopáticos, o amor de Deus não pode se misturar com nenhum outro. Mesmo parentes ou

amigos são considerados distrações que devem ser eliminadas, pois a sensibilidade e a

estreiteza, quando juntas, requerem um mundo simplificado onde possam morar. Essa

mente extremamente sensível a discórdias íntimas, abrirá mão de todas as relações

exteriores por interferirem com a absorção da consciência nas coisas espirituais. “Os

divertimentos vão primeiro, depois a ‘sociedade’ convencional, depois os negócios, depois

as obrigações familiares, até chegar, por fim, à reclusão, com uma subdivisão do dia em

horas para determinados atos religiosos, a única coisa que pode ser tolerada. As vidas dos

santos constituem uma história de sucessivas renúncias de complicações, em que são postas

de lado, uma depois da outra, todas as formas de contacto com a vida externa, para salvar a

pureza do tom interior” (Idem Ibidem).

Chegamos agora aos excessos de ternura e caridade. A santidade é acusada de

preservar os inaptos e alimentar os parasitos e mendigos. A questão é se o santo tem razão

quando diz “ame seus inimigos” e realmente é possuidor de um grau mais profundo da

verdade, ou são os homens que olham para essa atitude com um certo grau de impaciência é

que tem razão para isso. Não é possível de se obter uma resposta simples, a vida moral é

complexa e o modo como os fatos e ideais se entrelaçam é um mistério.

A conduta perfeita é uma relação de três termos: aquele que age, os objetivos

que o movem a agir e os recipientes da ação. Para que a ação seja considerada perfeita, os

três termos devem ser apropriados um ao outro. Portanto, a conduta do homem perfeito só

parecerá perfeita se o ambiente foi perfeito, ela não se adaptará convenientemente a

nenhum ambiente inferior. Considerando o mundo real tal como ele é, a ternura e a

caridade podem muito bem ser manifestadas em excesso. Porém, há de convir que se o

mundo não possuísse pessoas que manifestassem esse tipo de virtude, ele seria um mundo

bem pior. Existindo da maneira como existem, os santos podem ser inspiradores das

pessoas, eles podem manifestar nas pessoas o desejo de serem dignos.

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Então, mesmo que o santo possa momentaneamente desperdiçar a própria

ternura e ser vítima da febre caritativa que o consome, a função geral da sua caridade na

evolução social é vital e essencial. Se as coisas têm de se mover sempre para cima, alguém

deve estar disposto a dar o primeiro passo e assumir o risco. Quem não estiver disposto a

assumir esse risco não poderá dizer se esses métodos serão ou não bem sucedidos. E

quando esses métodos são bem sucedidos, eles são muito mais bem sucedidos que a força

ou a prudência mundanas.

“A força destrói os inimigos; e a melhor coisa que se pode dizer da

prudência é que conserva o que já temos em segurança. Mas a não-resistência

bem-sucedida transforma inimigos em amigos; e a caridade regenera seus

objetivos. Esses métodos santos, como eu já disse, são energias criativas; e os

santos genuínos encontram na excitação elevada de que a fé os dota uma

autoridade e uma impressionabilidade que os tornam irresistíveis em situações

que homens de natureza mais superficial não conseguem resolver sem o

emprego da prudência mundana. Essa prova prática de que a sabedoria

mundana pode ser transcendida com segurança é o presente mágico do santo

para o mundo” (Idem Ibidem).

O próximo tópico a ser discutido é o Ascetismo. Essa é uma virtude que sem

sombra de dúvida está sujeita ao excesso. A primeira consideração a ser feita a respeito

dessa virtude, é que ela é pregada como uma forma de se mostrar emancipado da carne,

mas aquele que estiver genuinamente emancipado da carne, os prazeres e as dores, a

abundância e a privação serão igualmente irrelevantes e indiferentes. Pode-se experimentar

prazeres sem o receio da corrupção. Nesse sentido, a mortificação do corpo praticada pelos

ascetas se mostra de todo sem sentido.

Mas fazendo uma análise mais cuidadosa, podemos verificar que essa conduta

do ascetismo pode ser identificada com a ideologia dos nascidos duas vezes. Simboliza a

crença de que existe um elemento de mal verdadeiro neste mundo, mal que não deve ser

desprezado nem evitado, senão enfrentado frontalmente e superado por um apelo aos

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recursos heróicos da alma e neutralizado e purificado pelo sofrimento. O ascetismo tem o

mesmo princípio, acompanhando a maneira mais profunda de lidar com a dádiva da

existência. Então parece justo que ele não seja simplesmente ignorado, mas tem que ser

trabalhado a fim de transformar os seus frutos em algo útil. “O culto do luxo e da riqueza

materiais, que constitui tão grande porção do ‘espírito’ da nossa época, por exemplo, não

explica, até certo ponto a efeminação e a desvirilização? O modo exclusivamente simpático

e faceto com que se educa a maioria das crianças nos dias que correm – tão diferente da

educação de centena de anos atrás, sobretudo nos centros evangélicos – não terá por

conseqüência, em que pese às suas muitas vantagens, certa ausência de fibra? Não haverá

por certo alguns pontos de aplicação de uma disciplina ascética renovada?” (Idem Ibidem)

Primeiramente, talvez poderiam haver alternativas além do ascetismo, como o

militarismo, o atletismo, etc. De fato, a guerra e a aventura impedem que os seus

participantes se comportem com demasiada delicadeza. Nessas situações os esforços e as

ações são tão vigorosos que qualquer desconforto, a fome, a dor, o frio, deixam de ter

qualquer função dissuasiva, seja ela qual for.

Mas quando comparados, os santos e os militares, são encontradas diferenças

muito acentuadas em todos os concomitantes espirituais. Enquanto o militar se mostra

bárbaro demais, selvagem demais, cruel demais; o santo se mostra diametralmente o

oposto. O soldado tem sua vida voltada somente para a destruição e nada mais que isso.

Mas será que essa organização complexa de irracionalidade e crime é a única saída contra a

ausência de fibra? Quando feita essa pergunta, o ascetismo passa a ser visto de uma

maneira mais condescendente. É preciso descobrir um equivalente social à guerra, algo que

caracterize a vida estrênua, algo que possa ser heróico, que seja tão universal quanto a

guerra e que no entanto seja compatível com o eu espiritual. Uma alternativa é a pobreza.

“A pobreza, de feito, é a vida estrênua – sem charangas, nem uniformes,

nem aplausos populares histéricos, nem mentiras, nem circunlóquios; e quando

vemos o modo com que a acumulação de riquezas entra como ideal nos

próprios ossos e tutanos da nossa geração, perguntamos a nós mesmos se uma

revivescência da crença de que a pobreza é uma digna vocação religiosa não

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pode ser ‘a transformação da coragem militar’ e a reforma espiritual de que

tanto precisa o nosso tempo” (Idem Ibidem).

O medo à pobreza é uma característica marcante na sociedade capitalista, onde

se pensa somente em dinheiro, acumular bens e somos julgados pelo que temos e não pelo

que somos. Esse desejo de acumular bens e o medo de perdê-los são os maiores geradores

de covardia e corrupção. Pensando nisso, o desapego aos bens materiais serviria para

dedicarmo-nos a causas impopulares, a causa ficaria com o fundo de que necessita, mas nós

seríamos poderosos na proporção em que nos contentássemos com a pobreza. Essa posição

deve ser levada em consideração pois o medo da pobreza é a pior doença moral entre as

classes cultas da sociedade capitalista.

Dito tudo isso, chegou o momento de fazer as conclusões gerais sobre o assunto

da santidade, lembrando que ela seria julgada pelos seus frutos. O conjunto dos atributos

dos santos é combinado de tal forma que ele se caracteriza inevitavelmente é religioso, pois

parece fluir do sentido do divino como seu centro psicológico. Isso proporciona com que

ele extraia uma significação infinita da sua relação com uma ordem divina invisível,

conferindo uma denominação superior de felicidade e uma firmeza de alma com a qual

nenhuma outra pode comparar-se. James caracteriza os frutos da santidade da seguinte

forma:

“Nas relações sociais sua utilidade é exemplar; ele é fértil em impulsos

para ajudar; sua ajuda é tanto interna quanto externa, pois sua simpatia alcança

não somente almas mas também corpos, e neles acende faculdades inesperadas.

Em vez de colocar a felicidade onde os homens comuns costumam colocá-la,

no conforto, ele a coloca num tipo mais alto de excitação interior, que converte

os desconfortos em fontes de alegria e anula a infelicidade. Por isso, não vira as

costas a nenhuma tarefa, por ingrata que seja. E quando estamos precisados de

assistência, podemos ter certeza de que, mais do que qualquer outra pessoa, o

santo nos estenderá a mão. Finalmente, sua humildade e suas tendências

ascéticas salvam-no das mesquinhas pretensões pessoais que tanto obstruem o

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nosso intercâmbio social ordinário, e sua pureza nos dá um homem limpo por

companheiro. Felicidade, pureza, caridade, paciência, severidade consigo

mesmo – todas são esplêndidas excelências, e o santo, entre todos os homens, é

o que as manifesta na medida mais completa possível” (Idem Ibidem).

Mas nem todas essas coisas juntas tornam os santos infalíveis, quando

relacionados com a estreiteza da mente, eles podem cair nos excessos como visto

anteriormente. Certamente, não é apenas aos padrões intelectuais que se devem esses erros.

Muito se deve ao contexto histórico em que o santo está inserido. Todo ato santo é santo em

apenas um determinado período de tempo, depois disso, os atos que serão valorizados não

serão mais os mesmos, e eles tem que viver sua santidade de acordo com o comportamento

vigente da época.

Existe também a questão de que tipo de pessoa seria a ideal, o homem forte ou

o santo. O homem forte teve sua importância histórica representada nos chefes de tribo, os

quais são os tiranos em potencial (ou reais). Nas guerras intermináveis daquele tempo, os

chefes eram absolutamente indispensáveis à sobrevivência da tribo. Na visão desse homem

forte, o santo pareceria apenas um homem de vitalidade insuficiente, e sua preponderância

colocaria em risco o tipo humano. Qual então é o tipo mais ideal, o santo ou o homem

forte?

Há muito tempo tem-se julgado que pode haver um tipo intrinsecamente ideal

de caráter humano. Imagina-se que um determinado tipo de homem seja o melhor de

maneira absoluta, independente de qualquer situação. “De acordo com a filosofia empírica,

no entanto, todos os ideais são relativos. Seria absurdo, por exemplo, pedir uma definição

do ‘cavalo ideal’ enquanto os cavalos de carroça e os cavalos de corrida, os animais que

transportam crianças e os que carregam os fardos dos comerciantes de um lado para outro

forem todos diferenciações indispensáveis da função eqüina. Os senhores poderão tomar

por meio-termo um animal para todo serviço, mas ele será inferior a qualquer outro de um

tipo mais especializado, numa direção particular” (Idem Ibidem). O mesmo ocorre com

relação à discussão do homem ideal, é preciso levar em consideração o contexto em que

essa idealidade é analisada.

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Pensando no idealismo como sendo uma questão de adaptação, em uma

sociedade dita “ideal”, os santos teriam vantagem. Pois uma sociedade onde todos fossem

agressivos acabaria por se autodestruir pelos atritos internos. Para que haja uma sociedade

que possa haver pessoas agressivas, é preciso que haja igualmente pessoas não agressivas e

não resistentes. Isso se aproximaria da sociedade atual, que não é o que se costuma-se

chamar de sociedade ideal. Agora, é completamente possível que se conceba uma sociedade

onde não houvesse agressividade, apenas simpatia e justiça. Essa poderia ser considerada

uma sociedade ideal na medida em que todas as coisas boas poderiam ser ali realizadas sem

que haja nenhum atrito. Nessa sociedade o santo estaria inteiramente adaptado. Por

conseqüência, o santo pode ser considerado um homem mais “elevado” que o homem forte,

pois se adaptaria melhor no mais elevado tipo de sociedade concebível, seja ela possível ou

não.

Portanto, de um modo geral o santo tem um lugar privilegiado na história pela

análise do método empírico. O grupo piedoso de qualidades é indispensável para o bem

estar do mundo. James fecha o assunto com a seguinte mensagem: “Sejamos santos,

portanto, se o pudermos, quer tenhamos êxito, quer não, visível e temporalmente. Mas na

casa de nosso Pai há muitas mansões, e cada um de nós precisa descobrir por si mesmo o

tipo de religião e a dose de santidade que melhor se harmoniza com o que acredita serem

seus poderes e sente serem sua missão e vocação mais verdadeiras. Não há garantir triunfos

e não há dar ordens rígidas a indivíduos enquanto seguirmos os métodos da filosofia

empírica” (Idem Ibidem).

2.7 – O misticismo

A experiência religiosa pessoal tem sua raiz e seu centro em estados místicos de

consciência. E a primeira pergunta que tem que ser feita é: O que significa a expressão

“estados místicos de consciência”?

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Para o uso em suas conferências, James propõe simplesmente quatro marcas

que, encontradas numa experiência, permitem sejam chamadas de místicas. São elas:

inefabilidade, qualidade noética, transitoriedade e passividade.

Um aspecto negativo, a inefabilidade, é uma das marcas mais características

que caracteriza um estado místico. “Quem a experimenta diz incontinenti que ela desafia a

expressão, que não se pode fazer com palavras nenhum relato adequado do seu conteúdo.

Disso se segue que a sua qualidade precisa ser experimentada diretamente; não pode ser

comunicada nem transferida a outros” (Idem Ibidem). Por essa característica, podemos

dizer que os estados místicos se assemelham muito mais com estados de sentimento do que

com estados do intelecto.

Mesmo sendo mais parecidos com estados de sentimento, os estados místicos

parecem ser também “estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a

profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações,

revelações, cheias de significado e importância, por mais inarticuladas que continuem

sendo; e via de regra, carregam consigo um senso curioso de autoridade pelo tempo

sucessivo” (Idem Ibidem).

Apenas esses dois aspectos já permitem que um estado seja chamado de

místico, mas existem ainda duas outras características menos nítidas.

Uma é a transitoriedade, os estados místicos não podem ser sustentados por

muito tempo. Muitas vezes a sua qualidade pode ser apenas imperfeitamente reproduzida

na memória, mas quando se repetem são reconhecidos. E de uma ocorrência a outra pode

ocorrer um contínuo enriquecimento.

A última das características é a passividade. Ela é caracterizada por um

sentimento em que a própria vontade está adormecida, e que ele está sendo agarrado e

seguro por uma força superior. Essa última característica liga os estados místicos com o

discurso profético, a escrita automática, o transe mediúnico ou qualquer outro fenômeno

dessa natureza.

Essas quatro características são suficientes para caracterizar um grupo peculiar

de estados de consciência chamado de estados místicos.

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O rudimento mais simples da experiência mística é o aprofundamento da

significação de uma máxima ou fórmula que de vez em quando nos ocorre. É quando

ouvimos uma frase durante muito tempo e apenas entendemos o seu verdadeiro significado

um tempo depois, como se a frase passasse a ter um significado mais profundo, mais

tocante. Isso pode acontecer não apenas com frases, mas também com palavras, odores,

efeitos da luz sobre algo, entre outras coisas. Um degrau mais alto na escala mística se

encontra naquela sensação de ter “estado aqui antes” ou de ter “visto isso antes”.

Existem também um tipo de consciência produzido por intoxicantes e

anestésicos, especialmente pelo álcool. “O poder do álcool sobre o gênero humano deve-se,

por certo, à sua capacidade de estimular as faculdades místicas da natureza humana,

geralmente pregadas ao solo pelos fatos frios e críticas secas da hora sóbria. A sobriedade

diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, une e diz sim. É, com efeito, a grande

excitadora da função do Sim no homem” (Idem Ibidem). O mesmo pode-se dizer sobre o

éter e o óxido nitroso, principalmente esse último, quando suficientemente diluído no ar,

estimula a consciência mística de uma maneira extraordinária. O próprio James relata ter

realizado algumas observações sobre esse aspecto da intoxicação pelo óxido nitroso, e

desde então ele permanece com uma conclusão que se tornou inabalável, nas palavras dele:

“A nossa consciência desperta normal, a consciência racional como lhe

chamamos, não passa de um tipo especial de consciência, enquanto que em toda

a sua volta, separadas dela pela mais fina das telas, se encontram formas

potenciais de consciência inteiramente diferentes. Podemos passar a vida inteira

sem suspeitar-lhes da existência; basta, porém, que se aplique o estímulo certo

para que, a um simples toque, elas ali se apresentem em sua plenitude, tipos

definidos de mentalidade que têm provavelmente em algum lugar o seu campo

de aplicação e adaptação” (Idem Ibidem).

E conclui que não se pode dar as costas para esse tipo de estado de consciência.

E citando vários relatos, mostra como esses estados artificiais da mente se caracterizam

como legítimos estados místicos. Dentro desses relatos, surge a seguinte questão: “Será

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possível que, naquele momento, eu tenha sentido o que alguns santos disseram ter sentido

sempre, a indemonstrável mas irrefragável certeza de Deus?” (Symonds apud James, 1995).

Essa questão traz de volta a discussão sobre a súbita compreensão da presença imediata de

Deus, já discutida na sessão sobre a Realidade do Invisível. E é um traço bastante

característico da consciência mística e da chamada “consciência cósmica”.

Existem também aqueles que cultivam metodicamente essa consciência

cósmica ou mística. Hindus, budistas, maometanos e cristãos, todos eles cultivaram

metodicamente. Na Índia, por exemplo, o treinamento da visão mística é conhecido como

Ioga, que significa a união experimental do indivíduo com o divino. James define a Ioga da

seguinte maneira, “Baseia-se no exercício perseverante; e a dieta, a postura, a respiração, a

concentração intelectual e a disciplina moral variam ligeiramente nos diferentes sistemas

que a ensinam. O iogue, ou discípulo, entra na condição denominada Samadhi, e ‘se vê face

a face com fotos que nenhum instinto ou razão ode jamais conhecer’” (Idem Ibidem). Os

vedantistas dizem que podemos entrar em contato esporadicamente com a superconsciência

sem a disciplina prévia, mas ela seria impura. A prova de pureza acontece de forma

empírica, quando os seus frutos são bons para toda a vida.

No cristianismo também encontramos místicos. A base do sistema é a “oração”

ou meditação, a metódica elevação da alma a Deus. A primeira coisa a ser feita na oração é

o desapegar-se da mente de sensações externas, pois estas interferem na sua concentração

em coisas ideais. Mas não cabe colocar todos os estádios da vida mística cristã, pois essas

experiências poderia ser infinitamente variadas. E o que interessa é o seu valor com relação

à revelação.

Os estados místicos em geral apontam para uma direção teórica bem

perceptível, uma delas é o otimismo e a outra é o monismo. A passagem da consciência

normal para a consciência mística é como se fosse uma passagem do menos para o mais, de

uma pequenez para uma vastidão, de uma agitação para um repouso. E embora esses

estados se dirijam muito mais para o sim do que para o não, é com uma série de negativas

que ele é geralmente retratado. Dionísio o Areopagita descreve a verdade absoluta

exclusivamente por meio de negativas.

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“A causa de todas as coisas não é a alma nem o intelecto; nem tem

imaginação, opinião, ou razão, ou inteligência; nem é razão ou inteligência; não

é falado nem pensado. Não é número, nem ordem, nem magnitude, nem

pequenez, nem igualdade, nem desigualdade, nem similaridade, nem

dissimilaridade. Não está de pé, nem se move, nem descansa. ... Não é essência,

nem eternidade, nem tempo. Nem o contato intelectual lhe pertence. Não é

ciência nem verdade. Não é nem mesmo realeza ou sabedoria; não um; não

unidade; não divindade ou bondade; nem sequer espírito qual o conhecemos,”

(tradução de T. Davidson, em Journal of Speculative Philosophy apud James,

1995)

Mas essa definição feita por negativas não ocorre por a verdade ser menor do

que elas, mas por ela ser infinitamente maior. Por isso muitas vezes surgem expressões

paradoxais como quando Boehme escreve sobre o Amor Primevo:

“pode adequadamente comparar-se ao Nada, pois é mais profundo do

que qualquer Coisa, e é como nada em relação a todas as coisas, visto que não é

compreensível por nenhuma delas. E por ser nada respectivamente, está,

portanto, livre de todas as coisas e é aquele único bem que o homem não pode

expressar nem pronunciar o que é, não havendo nada a que se possa comparar,

para expressá-lo” (Boehme, 1901 apud James 1995).

A grande consecução mística é a superação de todas as barreiras entre o eu e o

divino. No Hinduísmo, no Neoplatonismo, no misticismo cristão, entre outras, todas elas

tem como discurso a total unidade do homem com Deus, eles se tornam um com o

Absoluto. Em resumo, James caracteriza a os traços gerais da consciência mística da

seguinte maneira: “Ela é, em conjunto, panteísta e otimista, ou pelo menos o oposto do

pessimismo. É antinaturalista e se harmoniza melhor com as almas nascidas duas vezes e

com os estados de espírito chamados do outros mundo” (James, 1995)

E encerra a conferência sobre o misticismo com a resposta da pergunta:

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“Fornece ele alguma garantia da verdade do renascimento, da

sobrenaturalidade e do panteísmo que favorece? (...)

“Em suma, minha resposta é esta, e eu a dividirei em três partes:

“1. Estados místicos, quando bem desenvolvidos, geralmente são, e têm

o direito de sê-lo, autoridades absolutas sobre os indivíduos que os

experimentam.

“2. Delas não emana autoridade alguma que obrigue os que estão fora

lhes aceitarem as revelações sem nenhuma crítica.

“3. Eles quebram a autoridade da consciência não-mística ou

racionalista, que se baseia apenas no intelecto e nos sentidos. Mostram que esta

não passa de uma espécie de consciência. Abrem a possibilidade de outras

ordens de verdade, nas quais, na medida em que alguma coisa em nós responda

vitalmente a elas, possamos continuar livremente a ter fé” (James, 1995).

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3 – RELIGIÃO E PRAGMATISMO (conclusão)

Depois da exposição sobre o pragmatismo e sobre a religião, chegou o

momento de relacionar esses dois tópicos a fim de tirar as conclusões finais desse trabalho.

A exposição da religião feita, já apresenta muitos traços da aplicação do pragmatismo, na

verdade, em quase toda a sua extensão. Mais do que a simples presença do pensamento

pragmático, este determina em grande parte a posição sustentada diante da religião.

A primeira grande implicação do pensamento pragmático sobre a religião diz

respeito ao método utilizado por James em sua análise, o método empírico. O empirismo é

conhecido como sendo o oposto do racionalismo, e muitas dessas diferenças foram

expostas na primeira parte do trabalho. Mas basicamente, “o racionalismo tende a enfatizar

os universais e a construir os todos anteriormente às partes tanto na ordem da lógica como

na do ser. O empirismo, ao contrário, fundamenta a ênfase explanatória na parte, no

elemento, no indivíduo, e trata o todo como uma coleção e o universal como uma

abstração” (James, 1912). A descrição de James, então, começa com as partes e faz do todo

um ser de segunda ordem. É uma filosofia de mosaicos, de fatos plurais, e não se referem a

estes fatos nem a Substâncias às quais eles seriam inerentes, nem a uma Mente Absoluta

que os criaria como objetos seus. Mas esse empirismo de James difere do empirismo

anterior como o de Hume, por isso ele coloca o epíteto radical.

James define o seu tipo de empirismo da seguinte maneira:

“Para ser radical, um empirismo não deve nem admitir em suas

construções qualquer elemento que não seja diretamente experienciado. Para

esta filosofia, as relações que ligam experiências devem elas mesmas ser

relações experienciadas, e qualquer espécie de relação experienciada deve ser

considerada tão ‘real’ quanto qualquer outra coisa no sistema. Os elementos

podem, entretanto, ser redistribuídos, ficando corrigida a colocação original das

coisas, mas na organização filosófica final deve ser encontrado um lugar real

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para cada espécie de coisa experienciada, seja ela termo ou relação” (Idem

ibidem).

Com relação à religião, o método empírico se aplicou no sentido de estar

avaliando a religião através de seus frutos. O julgamento sobre a religião foi feito sem

nenhum sistema teológico a priori, e a partir de um agregado e juízos fragmentários sobre o

valor de algumas experiências, foi decidido que um tipo de religião foi aprovado ou não

pelos seus frutos.

Abstratamente, pareceria ilógico tentar medir o valor dos frutos de uma religião

em termos meramente humanos de valor. De que maneira se pode medir o valor sem

considerar se existe realmente o Deus que os inspira? Se existe o Deus, a conduta dos

homens para a sua satisfação seria razoável, ela só não seria se Deus não existisse. Mas essa

crença em Deus é fruto de uma evolução empírica, as divindades em geral eram cultuadas

porque os frutos eram apreciados.

Além da própria existência de Deus, também é aplicado o pragmatismo aos

atributos de Deus. Eles podem ser diferenciados em dois tipos diferentes, atributos

metafísicos e atributos morais. Os atributos metafísicos dizem respeito a qualidades como a

existência a se de Deus, por exemplo; seu repúdio à inclusão num gênero; sua infinidade

realizada; sua auto-suficiência, seu amor de si próprio e sua absoluta felicidade em si

mesmo; entre outras. Com relação a esses atributos metafísicos, James se pergunta qual

seria a utilidade dessas qualidades serem verdadeiras para a nossa vida. E conclui que não

tem importância nenhuma se eles forem verdadeiros ou não. Nas palavras dele, “devo

confessar com franqueza que (...) não posso conceber que tenha a menos importância para

nós, sob o aspecto religioso, que qualquer um deles seja verdadeiro” (James, 1995).

Já os atributos morais estão em uma situação totalmente diferente, eles são o

alicerce da vida santa, determinam de um modo positivo o medo, a esperança, a

expectativa, etc.

“A santidade de Deus, por exemplo: sendo santo, Deus só pode querer o

bem. Sendo onipotente, pode assegurar-lhe o triunfo. Sendo onisciente, pode

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ver-nos no escuro. Sendo justo, pode punir-nos pelo que vê. Sendo amante,

também pode perdoar. Sendo inalterável, contamos com ele seguramente. Essas

qualidades entram em conexão com a nossa vida e é importantíssimo que

sejamos informados a seu respeito. Que o propósito de Deus na criação deva ser

a manifestação da sua glória é também um atributo que tem relações definidas

com a nossa vida prática. Entre outras coisas, imprimiu um caráter definido ao

culto em todos os países cristãos. Se a teologia dogmática realmente prova, sem

sombra de dúvida, que existe um Deus com caracteres como esses, ela pode

perfeitamente afirmar que fornece uma base sólida ao sentimento religioso”

(Idem Ibidem).

A santidade também foi avaliada à luz do bom senso, foram utilizados critérios

humanos para ajudar-nos a decidir até onde a vida religiosa se recomenda como tipo ideal

de atividade humana. E como foi visto, esse exame deixou a religião como um todo em um

lugar privilegiado na história.

Usualmente, três elementos são tidos como sendo essenciais na religião: o

Sacrifício, a Confissão e a Oração. Comentarei cada um deles brevemente.

Os sacrifícios aos deuses estão onipresentes no culto primevo, e com o passar

do tempo os cultos foram se requintando e os holocaustos e o sangue de bodes foram sendo

substituídos por sacrifícios de natureza mais espiritual. Na sessão 2.5 desse trabalho, ao

dissertar sobre o ascetismo, mencionei a importância deste como símbolo dos sacrifícios

que a vida exige, todas as vezes que é levada com vigor. Mas como já falei o suficiente

sobre isso anteriormente, não vou me alongar mais.

A exposição sobre a Confissão também será breve, James a define como

fazendo parte “do sistema geral de purgação e limpeza de que nos sentimos necessitados

em ordem a manter relações corretas com a nossa divindade” (Idem Ibidem). Aquele que se

confessa exterioriza todo o seu lado ruim, não precisando mais manter as aparências e

podendo viver em uma base de veracidade.

Finalmente a oração, esse tópico será comentado com menos brevidade.

Existem opiniões muito diversas sobre a oração, principalmente com relação à oração para

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a reabilitação de enfermos e para a melhoria do tempo. Com relação aos enfermos, quando

um fato médico pode considerar-se inabalável, a oração contribui para o restabelecimento e

pode até ser estimulada como medida terapêutica, sendo que sua omissão pode ser até

deletéria. No caso do tempo é diferente, sabe-se que os eventos climáticos são antecedidos

de eventos físicos e que não se pode ir contra eles. Mas a oração peticional é apenas um

departamento da oração, e se a considerarmos em uma concepção mais ampla, significando

todo tipo de comunhão ou conversação interior com o poder reconhecido por divino,

veremos facilmente que a crítica científica a deixou intocada.

A oração nessa concepção mais ampla é a própria alma e essência da religião.

James cita um francês, Auguste Sabatier, para ilustrara essa posição.

“A religião é um intercâmbio, uma relação consciente e voluntária, na

qual ingressou uma alma aflita, com o misterioso poder de que ela depende e ao

qual o seu destino é contingente. O intercâmbio com Deus realiza-se pela

oração. A oração é a religião em ato; ou melhor, a oração é a verdadeira

religião. A oração distingue o fenômeno religiosos dos fenômenos similares ou

vizinhos, como sentimento puramente moral e estético. A religião não será nada

se não for o ato vital pelo qual a mente inteira procura salvar-se agarrada ao

princípio do qual tira a sua vida. Esse ato é oração, termo pelo qual não entendo

o vão exercício de palavras, nem a mera repetição de fórmulas sagradas, senão

o próprio movimento da alma, que se coloca numa relação pessoa de contato

com o misterioso poder cuja presença sente – pode ser até antes que ele tenha

um nome pelo qual possa ser chamado. Onde quer que falte a oração interior,

não há religião; por outro lado, onde quer que a oração se eleve e faça fremir a

alma, mesmo na ausência de formas ou doutrinas, temos a religião viva”

(Sabatier, 1897 apud James, 1995).

Como um todo, James parece concordar com essa posição adotada por Sabatier.

Estudado como fato interior, o fenômeno religioso mostrou consistir, em toda parte e em

todos os estádios, na consciência que têm os indivíduos de um intercâmbio entre eles e

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poderes mais altos com os quais se sentem relacionados. Essa relação é compreendida

como ativa e mútua ao mesmo tempo. Se ele não for de fato efetivo, se não for uma relação

de permuta, então a oração, tomada no significado amplo de uma sensação de que alguma

transação está acontecendo, é um sentimento ilusório. Mas mesmo assim, “na melhor das

hipóteses, quando as experiências diretas de oração forem excluídas como falsos

testemunhos, poderá sobrar uma crença inferencial em que toda a ordem da existência deve

deter uma causa divina” (James, 1995).

A autenticidade da religião está, portanto, ligada à questão de saber se a

consciência devota é ou não é enganosa. A convicção de que algo está genuinamente sendo

transacionada nessa consciência é o verdadeiro âmago da religião. “Através da oração,

insiste a religião, realizam-se as coisas que não podem ser realizadas de nenhum outro

modo: a energia que, não fora a oração, estaria atada, é desatada pela oração e opera em

alguma parte, objetiva ou subjetiva, do mundo dos fatos” (Idem Ibidem).

Tendo exposto todo esse material, podemos agora fazer as conclusões finais do

trabalho. Resumindo da maneira mais ampla possível, James caracteriza as seguintes

crenças:

“1. Que o mundo visível é parte de um universo mais espiritual do qual

ele tira sua principal significação;

“2. Que a união ou a relação harmoniosa com esse universo mais

elevado é a nossa verdadeira finalidade;

“3. Que a oração ou a comunhão interior com o espírito desse universo

mais elevado – seja ele ‘Deus’ ou a ‘lei’ – é um processo em que se faz

realmente um trabalho, e em que a energia espiritual flui e produz efeitos,

psicológicos ou materiais, dentro do mundo fenomênico.

“A religião inclui também as seguintes características psicológicas:

“4. Um novo sabor que se adiciona como dádiva à vida, e que assume a

forma de encantamento lírico ou apelo à veemência e ao heroísmo.

“5. Uma certeza de segurança e uma mistura de paz e, em relação aos

outros, uma preponderância de afeições extremosas” (Idem Ibidem).

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Essas características foram retratadas no livro através de muitos relatos, que

fizeram com que o livro se enchesse de sentimentalismo. Isso se deve ao fato de que ele

procurou esses relatos no meio de extravagâncias do assunto, são exemplos extremos que

foram escolhidos justamente por eles fornecerem uma informação mais profunda.

Pensando na variedade desses relatos, surge a pergunta se em todos os homens

estão presentes os mesmos elementos religiosos. Será que a existência de tantos tipos, seitas

e credos religiosos é algo lamentável? James responde a essa pergunta com um enfático

“não”. E argumenta que não é possível que criaturas tão diferentes e com poderes tão

diferentes como são os seres humanos, terem exatamente as mesmas funções e as mesmas

obrigações. Não há duas pessoas com dificuldades idênticas, cada um vê os fatos e os

problemas de um ângulo diferente. Sendo assim, “o divino não pode significar uma

qualidade única, tem de significar um grupo e qualidades, e se diferentes homens forem

paladinos delas alternadamente, poderão todos encontrar missões dignas” (Idem Ibidem).

Uma questão que pode ser feita a esse respeito é, poderia uma ciência da

religião tomar lugar de todas as outras religiões como sendo a única religião para todos?

Para responder essa pergunta é preciso explorar alguns pontos.

O primeiro deles, é com relação ao conhecimento de uma coisa não poder ser a

própria coisa. Essa distinção já foi feita antes em outra parte desse texto, mas só para

retomar alguns pontos, “se a religião for uma função pela qual a causa de Deus ou a causa

do homem deva ser realmente promovida, então aquele que vive a vida dela, por mais

estreitamente que a viva, e será um servo melhor do que aquele que apenas sabe a respeito

dela, por mais que saiba. O conhecimento da vida é uma coisa; a ocupação efetiva de um

lugar na vida, com suas correntes dinâmicas passando através do nosso ser, é outra” (Idem

Ibidem).

Por esse motivo, a ciência da religião nunca poderá ser um equivalente da

religião viva. Além do mais, as ciências da natureza mantém uma distancia tremenda da

religião, elas nada sabem de presenças espirituais. No geral, essas ciências são tão

materialistas que podemos dizer que a sua influência contraria a noção de que a religião

deve ser reconhecida de algum modo. E esse pensamento ecoa dentro da própria ciência da

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religião, cujo cultivador precisa familiarizar-se com tantas superstições abjetas e horríveis,

que lhe acode facilmente à cabeça a presunção de que qualquer crença religiosa é

provavelmente falsa. A conseqüência disso é que as conclusões da ciência das religiões têm

tantas probabilidades de serem contrárias quantas têm de serem favoráveis à afirmação de

que a essência da religião é verdadeira.

Uma característica marcante é que a vida religiosa gira em torno do indivíduo, é

o interesse do indivíduo pelo seu destino pessoal. Os deuses em que as pessoas acreditam

concordam entre si no reconhecimento de chamados pessoais. O indivíduo religioso diz que

o divino vem ao seu encontro no terreno dos seus interesses pessoais.

Em oposição a isso, a ciência rejeita inteiramente o ponto de vista pessoal. “Ela

cataloga os seus elementos e registra as suas leis indiferente ao propósito que possam

manifestar, e constrói suas teorias sem curar da relação delas com as ansiedades e destinos

humanos” (Idem Ibidem). O Deus que adequava as maiores coisas da natureza aos

caprichos insignificantes das necessidades particulares dos homens não é mais reconhecido,

o único Deus que a ciência poderia reconhecer há de ser um Deus exclusivamente de leis

naturais. Ele não pode acomodar os seus processos à conveniência dos indivíduos.

Mas apesar desse apelo à impessoalidade da atitude científica para dar um certo

ar de grandeza de espírito, James afirma que a ciência é superficial.

“A razão é que, enquanto lidarmos com o cósmico e o geral, lidaremos

apenas com os símbolos da realidade, mas logo que lidarmos com fenômenos

privados e pessoais como tais, estaremos lidando com realidades no sentido

mais completo do termo”. E continua a explicação. “O mundo da experiência

consiste sempre em duas partes, uma objetiva e outra subjetiva; a primeira pode

ser incalculavelmente mais extensa que a última, mas a última não pode ser

omitida nem suprimida. (...) os objetos cósmicos, na medida em que a

experiência os oferece, são apenas imagens ideais de alguma coisa cuja

existência não possuímos interiormente, mas apenas miramos exteriormente, ao

passo que o estado interior é a nossa própria experiência; sua realidade e a da

nossa experiência são uma só. (...) Esse sentimento, que não pode ser

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partilhado, e que cada um de nós tem do valor do seu destino individual,

quando o sente rolando sobre a roda da fortuna, pode ser desacreditado pelo seu

egotismo, ou chasqueado por não ser científico, mas é a única coisa que enche a

medida da nossa realidade concreta, e qualquer existência presumida que

carecesse desse sentimento, ou do seu análogo, seria uma peça de realidade

desenvolvida apenas pela metade” (Idem Ibidem).

Se isso for verdade, então é um absurdo a ciência dizer que os elementos

individuais devem ser suprimidos. Toda a realidade gira em torno desses elementos,

descrever o mundo sem eles seria como oferecer um cardápio no lugar de uma refeição. A

religião jamais comete esse erro, ela pode ser egotista e as realidades privadas as quais ela

tem contato estreitas, mas ela se mostra infinitamente menos vazia e abstrata, no seu

campo, do que uma ciência que se envaidece de não tomar conhecimento de nada

particular. Por esse motivo James tem se voltado a reabilitar o elemento sentimental na

religião. A individualidade funda-se no sentimento, e comparado com esse mundo de

sentimentos vivos individualizados, o mundo dos objetos generalizados que o intelecto

contempla não tem solidez nem vida. Sendo que a religião se ocupa com as únicas

realidades absolutas, ela deverá desempenhar um papel fundamental na história humana.

A conduta humana pode ser determinada tanto pelo pensamento quanto pelo

sentimento. Mas quando se trata da religião, os sentimentos têm uma importância

prioritária. E se quisermos apreender a essência da religião, é para os sentimentos que

devemos olhar. O estado de fé, do qual os homens religiosos são guiados, contém um

mínimo de conteúdo intelectual. E quando um conteúdo intelectual positivo se associa a

esse estado, ele é impregnado na crença, explicando a lealdade apaixonada das pessoas

religiosas.

A influência dos estados religiosos subjetivos é tão intensa que eles podem ser

classificados entre as mais importantes funções biológicas humanas. Seu efeito é tão

grande, que não ocorre aos homens indagar o que Deus é, e nem mesmo se ele é. Como o

professor Leuba diz, “Deus não é conhecido nem, nem compreendido; Deus é usado” (apud

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James, 1995). Se Deus se revela útil, seja como fornecedor de alimentos, suporte moral,

amigo ou qualquer outra coisa, a consciência religiosa não pede mais do que isso.

Mas além do ponto de vista da mera utilidade subjetiva, também cabe indagar

sobre o próprio conteúdo intelectual. Para essa tarefa são feitas duas perguntas: Debaixo de

toda a variedade e discrepância de credos, existe um núcleo comum de que eles possam dar

testemunho de maneira unânime? E devemos considerar esse testemunho como verdadeiro?

James responde a primeira pergunta afirmativamente e ressalta um certo

julgamento que está presente em todas as religiões, esse julgamento se divide em duas

partes: uma inquietude; e sua solução.

A inquietude remete a um sentimento de que existe algo errado a nosso respeito

tal como estamos naturalmente. Enquanto que a sua solução acontece se fizermos uma

conexão apropriada com os poderes superiores. Nas mentes mais desenvolvidas, o erro

assume um caráter moral e a salvação um toque místico. Na medida em que o indivíduo

sofre a conseqüência do seu erro e o critica, ele está consciente da possibilidade de que

exista além dele algo mais elevado e num contato com esse algo. Existe nele, juntamente

com a parte errada, uma parte mais elevada de si mesmo. Quando chega na fase da

salvação, o homem identifica o seu verdadeiro eu com essa parte mais elevada de si. James

descreve esse processo da seguinte maneira: “Torna-se consciente de que essa parte mais

elevada é contínua e vizinha de um MAIS da mesma qualidade, operativo no universo fora

dele, e com quem ele pode manter um contato ativo e, de certo modo, subir a bordo e

salvar-se quando todo o seu ser inferior se houver estraçalhado no naufrágio” (Idem

Ibidem).

A segunda pergunta vai se relacionar com a verdade daquele “MAIS da mesma

qualidade”. Será que esse “mais” realmente existe ou será apenas a nossa própria noção? Se

existir, em que forma existe? Age, além de existir? Todas as teologias concordam que esse

“mais” realmente existe, que ele tanto age como existe, e que alguma coisa realmente se

opera para melhor quando atiramos nossa vida em suas mãos.

Por fim, James procura conceituar esse “mais” de forma a se ajustar com tanta

facilidade aos fatos que a lógica científica não encontraria nenhum pretexto para não

reconhecê-lo como verdadeiro.

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Para isso, ele identifica o “mais” com o “eu subconsciente”. A idéia de que

exista algo inconsciente ou subconsciente influindo nos fenômenos religiosos foi exposta

brevemente na sessão sobre conversão. Agora James propõe que o “mais” ao qual na

experiência religiosa nos sentimos ligados é, em seu lado mais próximo, a continuação

subconsciente da nossa vida consciente. Desse modo ele explica o fenômeno religioso

através de uma base reconhecida pela ciência, e ao mesmo tempo justifica a afirmação de

que o homem religioso é movido por uma força externa. Na vida religiosa sente-se um

controle “superior”, e através dessa hipótese, esse controle vem de faculdades superiores

ocultas de nossa própria mente. Assim, o sentido de união com o poder além de nós é o

sentido de alguma coisa que se diria concretamente verdadeira.

Mas essa posição é apenas uma porta para a ciência das religiões, e as

dificuldades aparecem logo depois que ela é atravessada. Cada religião interpretará essa

posição de uma maneira diferente, e seguir qualquer uma delas seria pelo puro exercício da

própria liberdade pessoal. Cada um constrói a sua própria religião da maneira mais

congruente com as suas suscetibilidades pessoais, entre as quais as intelectuais representam

um papel decisivo. E conclui, “a pessoa consciente é contínua com um eu mais amplo

através do qual sobrevém a experiência salvadora, um conteúdo positivo de experiência

religiosa que, segundo me parece, é literal e objetivamente verdadeiro em toda a sua

extensão” (Idem Ibidem).

James defende ainda a posição de que os limites mais distantes do nosso ser

mergulham numa dimensão inteiramente outra do mundo sensível e meramente

“compreensível”. E na medida em que os nossos impulsos ideais se originam dela, estamos

conectados e ela em um sentido muito íntimo. Sendo que essa região produz efeitos nesse

mundo, então ela não é meramente ideal. E “como aquilo que produz efeitos dentro de

outra realidade precisa ser chamado de realidade também, a mim me parece não haver uma

desculpa filosófica para qualificar de irreal o mundo invisível ou místico”. A noção de

Deus segue o mesmo princípio, “Deus é real porque produz efeitos reais” (Idem Ibidem). E

a maioria dos homens religiosos crêem que não só eles, mas todo o universo está a salvo

nas mãos de Deus. Deus seria a garantia de uma ordem ideal, que será permanentemente

preservada.

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As conclusões finais de James sobre a exploração religiosa, vista sob a ótica do

pragmatismo, estão contidas nos últimos parágrafos de seu livro, e tomo a liberdade de

fazê-las as minhas próprias conclusões também a respeito desse trabalho.

“Segundo a minha maneira de ver, o modo pragmático de considerar a

religião é o mais profundo. Dá-lhe corpo assim como lhe dá alma, fá-lo

reivindicar para si, como tudo o que é real precisa reivindicar, algum reino

característico de fatos. O que são os fatos mais caracteristicamente divinos,

independentemente do influxo real de energia no estado de fé e no de oração,

não sei. Mas a supercrença à qual estou pronto para aventurar-me pessoalmente

é que eles existem. Toda a corrente da minha educação tende a persuadir-me de

que o mundo da nossa consciência presente é apenas um dentre os inúmeros

mundos de consciência que existem, e que esses outros mundos devem conter

experiências providas também de um significado para a nossa vida; e que

embora tais experiências e as experiências deste mundo sejam discretas, em

certos pontos se tornam contínuas, e energias mais elevadas filtram-se até nós.

“Sendo fiel, na medida das minhas pobres forças, a esta supercrença,

dou a impressão a mim mesmo de que me mantenho mais são e mais

verdadeiro. Está visto que posso colocar-me na atitude do cientista sectário e

imaginar vividamente que o mundo das sensações, das leis e dos objetos

científicos pode ser tudo. Entretanto, (...) o mundo real tem, seguramente, um

temperamento diferente – mais intricadamente construído do que o permite a

ciência física. Nestas circunstâncias, tanto a minha consciência objetiva quanto

a subjetiva me fazem abraçar, ambas, estreitamente, a supercrença que

expresso.

“Quem sabe se a fidelidade dos indivíduos aqui embaixo às suas

miseráveis supercrenças não seja para ajudar a Deus, na realidade, a ser, por seu

turno, mais efetivamente fiel às suas próprias tarefas mais excelsas?” (James,

1995)

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REFERÊNCIAS

JAMES, W. As Variedades da Experiência Religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995.

JAMES, W. Ensaios em Empirismo Radical, 1912 In: Coleção Os Pensadores: William

James. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

JAMES, W. Pragmatismo, 1907 In: Coleção Os Pensadores: William James. São Paulo:

Abril Cultural, 1979.

JAMES, W. The Varieties of Religious Experience. Cambrige: Harvard, 1985.